AS NOVAS DIMENSÕES DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA DIANTE DO
RETROCESSO CONCEITUAL DA LEI Nº 13.467/17
Gustavo Ramos1
PORTIA: Está bem; já passou o prazo de pagamento e, pelas
estipulações consignadas em contrato, o judeu pode legalmente
reclamar uma libra de carne, e tem direito de cortar o mais perto do
coração desse mercador. Sê compassivo, recebe três vezes a importância
da dívida; deixa-me rasgar a caução.
SHYLOCK: Ao conteúdo de meu contrato, eu me atenho.
(Trecho em destaque da obra O Mercador de Veneza, de William
Shakespeare)2
Sumário: 1. Introdução. 2. Crise do conceito clássico de subordinação: a quem se dirige o Direito do Trabalho?
3. Novas dimensões da subordinação jurídica visando ao reconhecimento do vínculo empregatício. 4. A
subordinação à luz da Lei nº 13.467/17: modernidade ou retrocesso? 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
As relações sociais e trabalhistas vêm sofrendo, ao longo das últimas décadas
(desde 1970), transformações cada vez mais velozes, impulsionadas pelos sucessivos avanços
tecnológicos em escala global, que têm sido chamados de terceira revolução tecnológica do
capitalismo3. Diante de tal fator de notória constatação, e também em decorrência da
readequação da estrutura organizacional das empresas e de seu sistema produtivo num contexto
de concorrência internacional, surgiu certo discurso de matriz intelectual desconstrutiva do
1 Mestrando em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas pelo Centro Universitário UDF, linha de pesquisa
Constitucionalismo, Direito do Trabalho e Processo. Advogado com experiência relevante nas áreas de Direito do
Trabalho, Direito Ambiental do Trabalho e Direito Constitucional, sobretudo no âmbito do Tribunal Superior do
Trabalho – TST e do Supremo Tribunal Federal – STF. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho
pela Universidade Mackenzie. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. 2 Trecho em destaque extraído da obra: SHAKESPEARE, William. O Mercador de Veneza. Tradução de Fernando
Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2013, p. 102. 3 “Tais aperfeiçoamentos e inovações, por sua profundidade, têm sido denominados de terceira revolução
tecnológica do capitalismo. Seus pontos mais notáveis consistem nas conquistas da microeletrônica, da
robotização, da microinformática, inclusive internet, e das telecomunicações”. In DELGADO, Maurício Godinho.
Capitalismo, Trabalho e Emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos da reconstrução. 3ª ed. São
Paulo: LTr, 2017, p. 37/38. Também a esse respeito: HOBSBAWN, Eric. Tempos fraturados. Cultura e sociedade
no século XX. Tradução de Berilo Vargas. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
primado do trabalho e do emprego4, quase sempre visando à promoção de alterações normativas
trabalhistas ditas modernizantes5.
Nesse contexto, os elementos conceituais e estruturais do Direito do Trabalho são
colocados à prova e passam por necessária reavaliação, em prol de sua atualização, sempre
atrelada ao alcance de seus objetivos e à realização de sua missão: regular a relação de emprego
visando à proteção e à garantia da dignidade do ser humano que trabalha6.
Com efeito, a aproximação virtual entre os habitantes do planeta, promovida pela
tecnologia, aliada à reestruturação empresarial num contexto de globalização econômica e de
intensificada concorrência entre empresas (por menores custos e maiores mercados) e entre
trabalhadores (por empregos) em nível internacional, ao tempo em que permite mais fácil
controle do trabalho e exercício do poder diretivo pelo empregador, dificulta a percepção e a
caracterização da subordinação do trabalhador, à luz de seu conceito clássico7, elemento sem
o qual não se tem acesso às tutelas normativas do Direito do Trabalho.
Inegavelmente o conceito de subordinação jurídica constitui elemento estrutural
para o Direito do Trabalho, porquanto seu objeto de interesse é a relação de emprego, que tem
na subordinação seu pressuposto fático-jurídico8 essencial. Nessa trilha, na maior parte do
4 Por exemplo: HARARI, Yuval Noah. The menaning of life in a world without work. Disponível em:
<Https://www.theguardian.com/technology/2017/may/08/virtual-reality-religion-robots-sapiens-book> Acesso
em 12 mar. 2018. Ricardo Antunes sintetiza: “No pensamento contemporâneo, tornou-se (quase) lugar-comum
falar em desaparição do trabalho (Dominique Méda), em substituição da esfera do trabalho pela “esfera
comunicacional” (Habermas), em “perda de centralidade da categoria trabalho” (Off), ou ainda em “fim do
trabalho” (como Jeremy Rifkin, ou ainda na versão mais crítica à ordem do capital, como em Kurtz), para citar as
formulações mais expressivas”. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. 16ª ed. São Paulo: Cortez, 2015, p. 174. 5 DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, Trabalho e Emprego: entre o paradigma da destruição e os
caminhos da reconstrução. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 35/67. 6 Consultar a esse respeito do tema: SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia. A Justiça Social diante do Mercado
Total. Tradução de Tânia do Valle Tschiedel. Porto Alegre: Sulina, 2014. 7 “A subordinação ressalta esse estado pessoal de sujeição ao poder de direção, que é um estado jurídico criado ou
revelado pelo contrato de trabalho; um modo de ser do sujeito, do qual decorrem deveres e obrigações; dentre
esses deveres, o de fidelidade, obediência e disciplina”. COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder punitivo trabalhista.
São Paulo: LTr, 1999, p. 26.
Lorena Porto observa que a subordinação é a contraface do poder diretivo: “são as duas faces de uma mesma
moeda. Então, para haver subordinação, deve haver também o exercício do poder diretivo, seja de fato, seja
potencialmente. O fenômeno do poder somente pode ser bem compreendido caso analisado sob a perspectiva
multidimensional, pois ele se realiza concretamente por meio de diversas dimensões. Esse caráter
multidimensional é ainda mais marcante na sociedade contemporânea”. PORTO, Lorena Vasconcelos. A
subordinação no contrato de trabalho: uma releitura necessária. São Paulo: LTr, 2009, p. 42. 8 “Esses elementos ocorrem no mundo dos fatos, existindo independentemente do Direito (devendo, por isso, ser
tidos como elementos fáticos). Em face de sua relevância sociojurídica, são eles porém captados pelo Direito, que
lhes confere efeitos compatíveis (por isso devendo, em consequência, ser chamados de elementos fático-jurídicos).
” DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2004, p. 290.
mundo, se o trabalho é caracterizado como subordinado, isto se traduz, em tese9, em acesso às
normas tutelares que regulam a relação de emprego10, sejam elas de índole constitucional, legal,
supralegal, convencional ou principiológica. Daí porque Márcio Tulio Viana lançou a
pertinente consideração de que a existência ou não da subordinação indica quem o direito do
trabalho visa a proteger11.
A Lei nº 13.467/17, principal instrumento da denominada reforma trabalhista,
buscou dificultar a caracterização da subordinação jurídica mediante afirmação de noção
relativa à prevalência de instrumentos jurídicos formais (aparência) em detrimento da realidade
cotidiana da relação de emprego (essência). Tal se deu com a indisfarçada finalidade de inibir
o acesso de parcela dos trabalhadores brasileiros à generalidade das normas tutelares
trabalhistas e, assim, talvez, promover maior geração de empregos no Brasil, ainda que distantes
do conceito de trabalho decente propugnado pela Organização Internacional do Trabalho12 e da
própria gênese do Direito do Trabalho, que busca sempre tutelar a parte da relação de emprego
dependente do ponto de vista socioeconômico.
Cuida-se, pois, de retrocesso conceitual, mascarado de modernização13, sob o
discurso de que a CLT conteria normas desatualizadas, porquanto editada em 1941, como se o
9 Ainda que os elementos caracterizadores da relação de emprego no Brasil abranjam a prestação intuito personae
(pessoalidade) por pessoa física, a não-eventualidade, a onerosidade e a subordinação, normalmente a
comprovação da existência de subordinação é o elemento chave para a caracterização da relação de emprego.
Assim consta do artigo 3º da CLT, cujo teor não foi alterado pela Lei 13.467/17: “Considera-se empregado toda
pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante
salário”. 10 De acordo com Jorge Luiz Souto Maior: “a verificação da relação de emprego é uma questão de ordem pública
e sua configuração parte do pressuposto jurídico do elemento subordinação”. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. A
supersubordinação – invertendo a lógica do jogo. In Revista Justiça do Trabalho, Porto Alegre, ano 25, nº 297, p.
61-95, set. 2008, p. 76. 11 PORTO, Lorena Vasconcelos. Por uma releitura universalizante do conceito de subordinação: a subordinação
integrativa. ROCHA, Cláudio Jannotti da; PORTO, Lorena Vasconcelos, coordenadores. Trabalho: diálogos e
críticas. Homenagem ao professor Márcio Túlio Viana. Volume I. São Paulo: LTr, 2018, p. 69. 12 Os elementos centrais da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, aprovada na última Assembleia
Geral das Nações Unidas, em setembro de 2015, em vigor desde janeiro de 2016, são exatamente os quatro pilares
do programa de trabalho decente da Organização Internacional do Trabalho - OIT, quais sejam: (i) promoção de
emprego de qualidade; (ii) respeito às normas internacionais do trabalho, em especial os princípios e direitos
fundamentais; (iii) proteção social; (iv) diálogo social. Segundo a OIT, o trabalho decente implica gerar suficientes
postos de trabalho para responder às demandas da população, mas também é um requisito indispensável que sejam
empregos produtivos e de qualidade, e que os trabalhadores os ocupem em condições de liberdade, igualdade,
segurança e dignidade. Organização Internacional do Trabalho. Trabajo decente em América Latina y el Caribe.
Disponível em: <http://www.ilo.org/americas/trabajo-decente-america-latina-caribe/lang--es/index.htm>. Acesso
em 13 mar. 2018. 13 A respeito do mascaramento da relação de emprego mediante o uso da retórica: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Relação de emprego & Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p. 21/23. Nas páginas referidas, o autor, ironicamente, faz engraçada analogia do mascaramento da relação de emprego com personagens de quadrinhos ou super-heróis que se valem de uma pequena máscara (Superman, por exemplo) e isto é suficiente para não serem reconhecidos por todos os outros personagens.
legislador pudesse desconhecer o fato de que a absoluta maioria dos dispositivos da CLT foi
modificada por legislações posteriores e recentes, e que, em sua quase totalidade, vem
recebendo interpretação jurisprudencial que lhe atualiza o sentido ou, quando necessário,
confirma a correção do comando original. Como observa Lenio Streck, “no Brasil, a
modernidade é arcaica. O que houve (há) é um simulacro de modernidade”14. Os artífices da
Lei 13.467/17 – legisladores do capital industrial e financeiro – se refugiam na formalização e
na construção de modelos que visam a esconder a realidade das relações trabalhistas.
Antes, porém, de se analisar as alterações legislativas promovidas pela Lei nº
13.467/17 no campo do reconhecimento da relação de emprego, é preciso investigar o estado
da arte do conceito de subordinação jurídica, com o alerta prévio de Paulo Emilio Ribeiro de
Vilhena de que “não há nada mais pacífico e controvertido que a subordinação. Pacífico como
linha divisória, controvertido como dado conceitual”15. Em seguida, será possível dimensionar
se as alterações promovidas pela chamada reforma trabalhista brasileira são, de fato, modernas,
ou se vão de encontro às aspirações de uma sociedade democrática e justa.
2. CRISE DO CONCEITO CLÁSSICO DE SUBORDINAÇÃO: A QUEM SE DIRIGE O DIREITO
DO TRABALHO?
O conceito clássico de subordinação, oriundo de uma concepção industrial da
relação de emprego existente à época do surgimento do Direito do Trabalho, vem sendo
constantemente revisto por grande parte da doutrina e da jurisprudência ao redor do mundo,
diante do incessante e veloz avanço tecnológico e da crescente complexidade das relações
sociais e trabalhistas na sociedade contemporânea, marcada pela globalização da economia.
A subordinação clássica ou tradicional, forjada no período pós-revolução industrial
da segunda metade do século XIX, cujo melhor retrato consta do filme de 1936 “Tempos
Modernos”, de Charles Chaplin, é fundada na relação de sujeição do empregado diante do
empregador, a quem compete o controle, a fiscalização e a gerência do trabalho realizado de
modo milimétrico. Substitui-se a violência como técnica de poder pela rígida disciplina.
Tal critério ainda hoje é hegemônico, sendo o mais utilizado pelo Poder Judiciário
para declarar o vínculo de emprego e, assim, tutelar os direitos de uma grande massa de
14 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 25. 15 VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de emprego. Estrutura legal e supostos. 2ª ed. São Paulo: LTr,
1999, p. 211.
trabalhadores formais. Sem dúvida o critério tradicional da subordinação jurídica, que realça a
submissão funcional do empregado às sucessivas e reiteradas ordens diretas do empregador,
mostra-se, até os dias atuais, importante, pois alberga a maioria dos trabalhadores,
especialmente nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Sucede que a subordinação clássica, com o tempo, vem se revelando insuficiente
para assegurar eficácia protetiva a um universo crescente de trabalhadores (cooperados,
terceirizados, “pejotizados”, teletrabalhadores). A precarização das relações de trabalho vem
ganhando espaço, seja com o aumento do número de trabalhadores autônomos, seja com a
ampliação das formas de subcontratação de trabalho, seja com a simples informalidade. Nesse
contexto, a manutenção do conceito tradicional de subordinação leva a grandes distorções,
comprometendo a própria razão de ser e a missão do Direito do Trabalho, consoante observa
Lorena Porto. Segundo tal autora, o fato de, atualmente, o poder empregatício ser exercido de
forma mais sutil, indireta e, por vezes, quase imperceptível, faz com que a função essencial do
direito laboral não seja atingida.16
Diante de idêntica constatação, grande parte da doutrina nacional e internacional
vem apontando, já há algum tempo, para a tendência de se proteger não apenas os indivíduos
do assim chamado “chão de fábrica”, mas também aqueles trabalhadores que possuem certa
autonomia, por vezes independência técnica ou superior conhecimento específico, mas que
possuem inegável dependência socioeconômica em relação ao empregador.
Segundo Gabriela Neves Delgado, a subordinação jurídica opera hoje por outras
vias que não só a direta e a incisiva, como no caso do trabalho em domicílio, em que o
empregador exerce seu poder diretivo por meio do controle do resultado da produção17. Amauri
Mascaro Nascimento, por seu turno, analisa a diferença de significado de subordinação na
sociedade contemporânea em relação às sociedades anteriores. O termo atenuou-se, segundo
esse autor, por uma razão de respeito aos direitos do homem, pois deixou de ser uma sujeição
pessoal, em que um indivíduo se encontra à mercê de outro, já que tal ideia não tem mais
aprovação na consciência moderna.18
16 PORTO, Lorena Vasconcelos. A necessidade de uma releitura universalizante do conceito de subordinação. In
Revista de Direito do Trabalho, vol. 34, nº 130, abril/jun 2008, p. 121. 17 “Embora mais viva do que nunca, torna-se possível sem a necessidade de um ambiente empresarial ou de um
espaço fixo predeterminado para legitimar-se”. DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho
digno. São Paulo: LTr, 2006, p. 191. 18 VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de emprego. Estrutura legal e supostos. 2ª ed. São Paulo, LTr,
1999, p. 211.
Há, de fato, um número crescente de trabalhadores que não se enquadram na noção
tradicional de subordinação, diante do exercício do poder empregatício de modo cada vez mais
sutil, num contexto de avanços tecnológicos, reestruturações empresariais e concorrência no
mercado de trabalho em nível internacional. Como observa Ricardo Antunes, o sistema de
metabolismo social do capital necessita cada vez menos do trabalho estável e cada vez mais das
diversificadas formas de trabalho parcial, terceirizado, em explosiva expansão em todo o mundo
produtivo e de serviços19.
3. NOVAS DIMENSÕES DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA VISANDO AO RECONHECIMENTO
DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO
Sucede que as promessas da modernidade, atreladas aos avanços da
microeletrônica, da informática, da automação dos processos industriais e da transformação das
formas de trabalho, que permitiriam trabalhar em casa, longe dos constrangimentos da
hierarquia e, assim, escolher à vontade entre o tempo livre e as fadigas do labor, não passaram,
na realidade, de fábula. Em sua marcha real, o capitalismo fez emergir estruturas e formas de
dependência que agem como forças que frequentemente destroem a natureza, intensificando o
esforço no trabalho, mesmo à distância, daqueles que têm o privilégio de não serem
desempregados20.
Constata-se, modernamente, um número crescente de trabalhadores alijados da
proteção jurídico-laboral, excluídos, assim, do direito a ter direitos, o que, na seara trabalhista,
decorre da caracterização prévia do vínculo de emprego. Tal se dá, entre outros fatores, em
virtude das sutilezas do comando empresarial, por vezes à distância, por vezes valendo-se de
intermediários formais, e, portanto, das possibilidades de exercício do poder empresarial na
atualidade – absolutamente diversas do que se sucedia no ambiente industrial pós-revolução
industrial, em que havia o controle rígido do espaço, do tempo e do modo de trabalho.
Nesse cenário preocupante, novas noções de viés ampliativo vêm surgindo no
Direito do Trabalho, de modo a encarar a subordinação sob ótica alheia ao subjetivismo21, tais
como a subordinação objetiva, a subordinação estrutural e a subordinação integrativa.
19 ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho.
16ª ed. São Paulo: Cortez, 2015, p. 208. 20 BELUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel. Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo. São Paulo:
Editora Contracorrente, 2017, p. 180/182. 21 Os teóricos que consideram a subordinação do ponto de vista subjetivo vinculam-se mais ao critério clássico da
subordinação, pois esta se opera entre o empregador e o empregado, e será medida de acordo com a carga de
hierarquia e dependência pessoal existente entre as partes. Já a corrente objetiva da subordinação vê o instituto do
A subordinação objetiva, ao invés de se manifestar pela intensidade de comandos
empresariais, desponta da simples integração da atividade laborativa obreira nos fins da
empresa. Com isso, reduz-se a relevância da intensidade das ordens, substituindo o critério pela
ideia de integração aos objetivos empresariais. A crítica que se faz a tal construção teórica –
que justifica seu desprestígio – é que se cuida de forma desproporcional, incapaz de diferenciar,
em distintas situações práticas, entre o real trabalho autônomo e o labor subordinado22.
A subordinação estrutural, de outro lado, ao tempo em que atenua o enfoque sobre
o comando empresarial direto, acentua a inserção estrutural do trabalhador na dinâmica do
tomador de seus serviços. Maurício Godinho Delgado qualifica essa nova noção conceitual de
subordinação como a que “se manifesta pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador
de seus serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo,
estruturalmente, sua dinâmica de organização e funcionamento”.23 A subordinação estrutural
vem sendo acolhida pela jurisprudência pátria há pelo menos 10 anos24 e pode ser depreendida
na atual redação do artigo 6o da CLT, conferida pela Lei nº 12.551, de 15/12/2011:
Art. 6o. Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador,
o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam
caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e
supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e
diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.
Um outro novo conceito que desponta na doutrina brasileira na tentativa de abraçar
a nova realidade é intitulado subordinação integrativa. Segundo Lorena Porto:
A subordinação, em sua dimensão integrativa, faz-se presente quando a prestação de
trabalho integra as atividades exercidas pelo empregador e o trabalhador não possui
uma organização empresarial própria, não assume riscos de ganhos ou perdas e não é
ponto de vista da atividade prestada, sem dar maior importância para a relação entre os contratantes. A esse
respeito: PORTO, Lorena Vasconcelos. A subordinação no contrato de trabalho: uma releitura necessária. São
Paulo: LTr, 2009. 22 DELGADO, Maurício Godinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. In Revista LTr, São Paulo, nº
6, junho de 2006, p. 667. 23 Ibid., p. 667. 24 Nesse sentido, exemplifica-se com acórdãos do Tribunal Superior do Trabalho que, por vezes, quando não
enunciam a tese, confirmam acórdãos regionais em que já se considerou a teoria da subordinação estrutural para
fins de reconhecimento do vínculo de emprego: AIRR - 1056-38.2014.5.03.0109, data de
julgamento: 8/6/2016, Relator Ministro: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 3ª Turma, Data de Publicação:
DEJT 17/6/2016; AIRR - 116940-41.2002.5.04.0002, data de julgamento: 25/06/2008, Relator Ministro: Mauricio
Godinho Delgado, 6ª Turma, Data de Publicação: DJ 30/6/2008; RR - 574-78.2011.5.04.0332, data de
julgamento: 15/06/2016, Relator Ministro: José Roberto Freire Pimenta, 2ª Turma, Data de Publicação:
DEJT 17/06/2016; AIRR - 136900-16.2013.5.17.0008, data de Julgamento: 15/06/2016, Relatora Ministra: Dora
Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 17/06/2016.
proprietário dos frutos do seu trabalho, que pertence, originalmente, à organização
produtiva alheia para a qual presta a sua atividade.25
A noção de subordinação integrativa, tanto quanto as demais novas leituras do
elemento subordinação, não visam a substituir a verificação prévia da existência da
subordinação em sua acepção clássica, até mesmo porque o controle preciso da jornada, do
ambiente laboral e do modo da execução do trabalho ainda prevalece em grande parte do
mundo, especialmente nos países menos desenvolvidos. A ideia é ampliar o conceito para
abraçar os socioeconomicamente dependentes que vêm sendo sistematicamente excluídos do
sistema protetivo laboral sob a máscara do discurso da liberdade e da independência.
A Organização Internacional do Trabalho - OIT compartilha a preocupação com a
crescente diminuição da proteção ao trabalho, tendo identificado que o tema (caracterização da
relação de trabalho para fins de reconhecimento de direitos) é de interesse geral de
empregadores, do governo e dos trabalhadores. Interessa aos empregadores que a concorrência
seja equivalente no mercado de trabalho, o que pode ser prejudicado se algumas empresas
conseguirem o trabalho humano a um preço mais baixo, mediante a supressão de direitos (donde
a célebre frase de Marx: “E o direito à igual exploração da força de trabalho é o primeiro direito
humano do capital”26). Também interessa aos empresários para que o mercado de consumo seja
intenso, aumentando as vendas, já que a grande massa de trabalhadores é quem mais consome
em qualquer economia. O tema interesse ao governo em função da perspectiva de maior
arrecadação tributária, mediante a caracterização do emprego em detrimento do trabalho
autônomo ou informal, e também em função do sempre visado aquecimento da economia. E,
naturalmente, interessa aos trabalhadores porque terão mais direitos, proteção (saúde,
segurança) e benefícios econômicos.
Daí ter a OIT editado a Recomendação nº 198 em 2006 (Recomendação sobre a
Relação de Trabalho), em que orienta aos países membros a adoção de uma política nacional
que busque esclarecer a todos (população, governo, magistrados) em relação aos elementos
possíveis de caracterização da relação de trabalho e que haja verificação frequente da adequação
da legislação laboral existente em cada país a esse respeito. Entre os elementos indicativos da
caracterização do trabalho que merece proteção, aponta-se, exemplificativamente, (i)
25 PORTO, Lorena Vasconcelos. Por uma releitura universalizante do conceito de subordinação: a subordinação
integrativa. In ROCHA, Cláudio Jannotti da; PORTO, Lorena Vasconcelos (Coord.). Trabalho: diálogos e
críticas. Homenagem ao professor Márcio Túlio Viana. Volume I. São Paulo: LTr, 2018, p. 68. 26 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de
Rubens Enderle. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 364.
verificação dos fatos independentemente da forma; (ii) integração do trabalhador na
organização da empresa; (iii) que a remuneração seja a única ou a principal fonte de renda do
trabalhador; (iv) o fato de não haver riscos financeiros para o trabalhador.
Sem dúvida, o debate em questão é extremamente atual e interessa aos diversos
países do mundo, tendo tal debate encontrado terreno fértil, de modo especial, nos países
europeus (Espanha, Alemanha, França, Itália), de modo que professores e doutrinadores vêm
enunciando novos conceitos e discutindo os problemas relacionados à definição da
subordinação e à sua diferenciação em relação à autonomia27.
4. A SUBORDINAÇÃO À LUZ DA LEI Nº 13.467/17: MODERNIDADE OU RETROCESSO?
Alheio a toda essa tendência, o legislador brasileiro editou a Lei nº 13.467, em vigor
desde 11 de novembro de 2017, que além de admitir a ampliação absoluta das hipóteses de
terceirização na relação de emprego (novos artigos 4º-A e 5º-A da Lei nº 6.019/7428), figura
que tradicionalmente mascara verdadeira relação de emprego entre o tomador de serviços e o
empregado29, incentivam a ilícita “pejotização” e o não reconhecimento de vínculos de emprego
reais com as tutelas normativas daí decorrentes. A reforma trabalhista promovida pela Lei nº
13.467/17 terá o condão, então, de precarizar ainda mais o trabalho no Brasil, cujo mão-de-obra
27 Em luminar artigo, Lorena Porto resgata propostas do relatório Supiot para a Comissão Europeia, com seus
quatro círculos concêntricos de tutela, as correntes pluralista e monista na doutrina italiana, o conceito de alienação
na doutrina espanhola e suas diversas dimensões (quanto aos frutos do trabalho, à titularidade da organização, ao
mercado e quanto aos riscos) e também a proposta de Rolf Wank na doutrina alemã, em que se cuida de definir a
autonomia a partir de critérios negativos (liberdade empresarial, participação nos riscos e possibilidade de realizar
ganhos), deixando a subordinação como figura residual e, portanto, mais ampla: PORTO, Lorena Vasconcelos.
Por uma releitura universalizante do conceito de subordinação: a subordinação integrativa. In ROCHA, Cláudio
Jannotti da; PORTO, Lorena Vasconcelos (Coord.). Trabalho: diálogos e críticas. Homenagem ao professor
Márcio Túlio Viana. Volume I. São Paulo: LTr, 2018, p. 59-65. 28 Lei. 6.019/74: Art. 4º-A. Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da
execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado
prestado de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução”.
Lei. 6.019/74: Art. 5º-A. Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação
de serviços relacionados a quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal. 29 Ademais, a terceirização tem sido a formalidade escolhida para acobertar a utilização de trabalhadores em
condições análogas às de escravo, consoante dados colhidos recentemente. “Entre 2010 e 2014, os maiores
flagrantes de trabalhadores em condições análogas à de escravos já sugeriam a predominância maciça dos
terceirizados entre as vítimas desse crime. Agora, o Núcleo de Estudos Conjunturais da Universidade Federal da
Bahia levantou todos os 86 resgates ocorridos no Estado entre 2003 e 2016, e descobriu que 76,7% de todos os
casos envolviam trabalhadores terceirizados”. SAKAMOTO, Leonardo. Dados de resgates mostram relação entre
terceirização e trabalho escravo. Disponível em:
<Https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2017/03/30/dados-de-resgates-mostram-relacao-entre-
terceirizacao-e-trabalho-escravo/?cmpid=copiaecola>. Acesso em 12 mar. 2018.
em alguns setores já é uma das mais baratas do mundo30, para, com isso, aumentar lucros, e não
gerar empregos, como propõe.
Além do mais, a Lei nº 13.467/17 adotou técnica legislativa já superada, em face
dos fins a que se propõe, ao introduzir o artigo 442-B da CLT com o seguinte comando: “A
contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem
exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º
desta Consolidação” (grifou-se).
Ora, em primeiro lugar, os artigos 2º e 3º da CLT não foram alterados pela Lei
13.467/17 e consagram a relação de emprego no ordenamento jurídico brasileiro quando o
trabalhador presta serviços com pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação
a empregador que assume os riscos da atividade econômica e dirige a prestação pessoal do
serviço31. Também o artigo 9º da CLT permanece íntegro: Serão nulos de pleno direito os atos
praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos
na presente Consolidação. Haveria no caso, portanto, ao menos quanto à “contratação de
autônomo”32, antinomia entre normas da própria CLT, não fosse o disposto no § 6º do mesmo
dispositivo, introduzido pela Medida Provisória nº 808 de 201733, a evidenciar a absoluta
inocuidade do preceito do caput e a carência de sistematicidade da reforma trabalhista
implementada em 2017 no Brasil.
De qualquer modo, seja (i) à luz da interpretação sistemática, operada em conjunto
com os demais dispositivos da CLT, entre os quais os artigos 2º, 3º, 9º e 442; ou (ii) à luz das
inúmeras normas constitucionais vigentes, a prestigiar o regime de emprego socialmente
protegido e a recomendar a busca do pleno emprego (artigos 1º, III e IV, 3º, III, 6º, 7º, 8º, 9º,
30 “O salário do chinês na indústria triplicou de 2005 para 2016 de US$ 1,20 para US$ 3,60 por hora, enquanto o do brasileiro caiu de US$ 2,90 para US$ 2,70”. CALEIRO, João Pedro. Trabalhador industrial brasileiro ganha menos do que um chinês. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/economia/trabalhador-industrial-brasileiro-ganha-menos-que-um-chines/> Acesso em 12 mar. 2018. Consoante consta da notícia, os dados são da
OIT, Eurostat (agência de estatísticas da União Europeia) e de órgãos estatísticos nacionais, convertidos para dólar
e ajustados pela inflação, mas não pelo custo de vida. 31 CLT: Art. 2º. Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade
econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal do serviço.
CLT. Art. 3º. Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a
empregador, sob a dependência deste e mediante salário. 32 Expressão que insinua contradição entre os termos do próprio dispositivo. 33 A Medida Provisória nº 808 de 2017, cuja parte é transcrita abaixo, ainda depende de aprovação pelo Congresso
Nacional:
CLT: Art. 442-B. A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, de forma contínua
ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação.
[...] § 6º. Presente a subordinação jurídica, será reconhecido o vínculo de emprego.
170, III e VIII, da Constituição); (iii) em razão das normas internacionais ratificadas pelo Brasil,
entre as quais se encontram os princípios da Organização Internacional do Trabalho - OIT, com
destaque para a enunciação maior segundo a qual “o trabalho não é uma mercadoria”, bem
como a Recomendação nº 198 da OIT34; (iv) por força dos princípios protetivo e da primazia
da realidade, consagrados na doutrina e na jurisprudência nacional e internacional35; (v) até
mesmo em função do diálogo das fontes, haja vista o que dispõe o atual artigo 167 do Código
Civil (negócio jurídico simulado36), aplicável supletivamente ao Direito do Trabalho por força
do artigo 8º da CLT, não deve prevalecer a matriz conceitual inerente às alterações normativas
promovidas pela Lei no 13.467/17 no que se refere ao reconhecimento do vínculo de emprego
no Brasil37.
Sob outro prisma, convém rememorar que o Direito do Trabalho surge, logo após a
revolução industrial em meados do século XIX, com a pretensão de estipular um patamar
civilizatório mínimo na relação de emprego, haja vista a imperiosa necessidade social de se
impor limites ao capital. A ampla liberdade de contratar vivenciada na primavera do liberalismo
europeu pós-revolução industrial gerou o que alguns chamam de período de maior exploração
do homem pelo homem da história da humanidade, já que os lucros variavam em função da
34 Por meio da recomendação nº 198, de 31 de maio de 2006, a Organização Internacional do Trabalho propõe, em
seu item 13, que os Estados-membros definam em suas leis e regulamentos indicadores específicos da existência
de uma relação de trabalho, com destaque para “(a) o fato de que o trabalho: é realizado de acordo com as instruções
e sobre o controle de outro grupo; envolvendo a integração do trabalhador na organização da empresa; é executado
unicamente ou principalmente para o benefício de outra pessoa; deve ser realizado pessoalmente pelo trabalhador;
é realizado dentro de horas de trabalho específicas ou dentro do local de trabalho especificado ou acordado pelo
grupo que requisitou o trabalho; é de uma duração particular e tem uma certa continuidade; requer a disponibilidade
do trabalhador; ou envolve a provisão de ferramentas, materiais e maquinário pelo grupo requisitado para o
trabalho; (b) [...]”. 35 “Em razão do exposto é que o contrato de trabalho foi denominado contrato-realidade, posto que existe não no
acordo abstrato de vontades, mas na realidade da prestação do serviço, e que é esta e não aquele acordo que
determina sua existência”. RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner
D. Giglio. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 340. Ver também: DELGADO, Maurício Godinho. Princípios
Constitucionais do Trabalho e Princípios de Direito Individual e Coletivo do Trabalho. 5ª ed. São Paulo: LTr,
2017. 36 Código Civil: Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na
substância e na forma. § 1º. Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: [...] II – contiverem declaração,
confissão, condição ou cláusula não verdadeira. 37 Para análise mais detalhada de cada argumento, indica-se: PORTO, Lorena Vasconcelos. Por uma releitura
universalizante do conceito de subordinação: a subordinação integrativa. In ROCHA, Cláudio Jannotti da;
PORTO, Lorena Vasconcelos (Coord.). Trabalho: diálogos e críticas. Homenagem ao professor Márcio Túlio
Viana. Volume I. São Paulo: LTr, 2018. E também: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SEVERO, Valdete Souto
(Coord.). Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
exploração do trabalhador (mais-valia38), restando aos empresários a real liberdade de oprimir
e aos trabalhadores a liberdade de morrer de fome39.
Constatou-se que a liberdade nem sempre é a liberdade ética, mas a liberdade do
arbítrio, a revelar a triste realidade do homem da época: economicamente oprimido,
espiritualmente escravo, consoante observação de Paulo Bonavides. O liberalismo clássico, que
cultuava a ampla liberdade de contratar e a não-intervenção do Estado nas relações privadas,
não pôde resolver o problema essencial de ordem econômica das vastas camadas proletárias da
sociedade.40
Ademais, desde o emblemático exame do caso Marbury versus Madson pela
Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no início do século XIX (1803), que fincou as
balizas do constitucionalismo moderno, ao tempo em que afirmou o papel do Poder Judiciário
como último intérprete das normas, à luz do princípio da separação dos poderes, seguido da
noção de que ao juiz compete extrair o sentido do texto legal a partir da análise de todo o sistema
jurídico, encontrando-se a Constituição no vértice da pirâmide normativa41, a pretensão do
Parlamento em editar leis que não seriam passíveis de interpretação pelo Poder Judiciário,
devendo ser aplicadas em seu sentido literal, ainda que a realidade as desminta, não pode ser
levada a sério. Normas com tal conteúdo soam autoritárias e, em hipótese similar, já foram
relegadas pelo Poder Judiciário brasileiro em passado recente, à luz dos métodos interpretativos
histórico-evolutivo, sistemático e teleológico42.
O fetichismo da lei – sendo ela legítima ou ilegítima - em desconsideração à verdade
dos fatos e à teleologia do sistema jurídico como um todo, próprio à escola exegética do direito,
38 “Sabemos que o valor de toda mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho materializado em seu valor
de uso, pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção”. MARX, Karl. O Capital: crítica da
economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. 2ª ed. São Paulo:
Boitempo, 2017, p. 263/264. 39 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 61. 40 Ibid., p. 187/191. 41 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 54. 42 Para exemplificar, cite-se o que ocorreu com o parágrafo único do art. 442 da CLT, inserido pela Lei nº 8.949/94,
segundo o qual, ainda que a relação de emprego existisse entre as partes, ela não poderia ser conhecida caso o
vínculo fosse estabelecido mediante cooperativa. “Felizmente, a comunidade jurídica, mediante os métodos
científicos de interpretação do Direito (lógico-racional, sistemático e teleológico), conjugados com o princípio da
primazia da realidade sobre a forma, saneou o intuito de precarização daquela regra de 1994, mantendo hígido o
reconhecimento da relação empregatícia nos casos evidentes de presença de seus elementos estruturais
componentes (trabalho por pessoa física, com pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade)".
DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A Reforma Trabalhista no Brasil com os
comentários à Lei nº 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, p. 153.
foi sepultado com o positivismo jurídico após o regime nazista haver cometido as barbaridades
que cometeu, ainda que sob a égide da evoluída Constituição de Weimar de 1919.
5. CONCLUSÃO
O constitucionalismo apreendeu ser imprescindível à democratização da sociedade
política e especialmente da sociedade civil a presença de sistema normativo interventivo no
contrato de trabalho, mecanismo racional e eficiente para viabilizar maior equilíbrio de poder
na principal relação de trabalho existente no capitalismo. Sob tal premissa, Maurício Godinho
Delgado observa que a Constituição de 1988 sabiamente detectou que o trabalho regulado é o
mais importante veículo de afirmação comunitária da grande maioria dos seres humanos que
compõem a atual sociedade capitalista, sendo, desse modo, um dos mais relevantes
instrumentos de afirmação da democracia na vida social43.
Mais adiante, afirma o renomado autor que, na desigual sociedade capitalista, “o
emprego, regulado e protegido por normas jurídicas, desponta, desse modo, como o principal
veículo de inserção do trabalhador na arena socioeconômica capitalista, visando a propiciar-lhe
um patamar consistente de afirmação individual, familiar, social, econômica e, até mesmo,
ética”44.
Por isso é possível dizer que o Direito do Trabalho é de ordem pública, ditando suas
normas à margem da vontade das partes. A desconstrução do modelo juslaboral contribui para
degradar as condições sociais e de trabalho e incrementar o processo de exclusão dos
trabalhadores do sistema de direitos45.
Torna-se urgente, pois, reposicionar a economia de mercado em bases institucionais
sólidas, que colocam as empresas, e não os sistemas jurídicos, em níveis de concorrência,
consoante importante alerta de Alain Supiot46. Cada vez mais os empresários têm tomado a
decisão consciente de transferir os meios de produção para lugares onde há mão-de-obra mais
barata e não existem normas de saúde e segurança no trabalho, nem restrições ambientais47.
43 DELGADO, Maurício Godinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista LTr. Vol. 70, nº 6, junho
de 2006, p. 658. 44 Ibidem, p. 659. 45 PEREIRA, Ricardo. A Inconstitucionalidade da liberação generalizada da terceirização. Revista da ABET, vol.
14, nº 1, janeiro a junho de 2015, p. 72. 46 SUPIOT, Alain. O Espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução de Tânia do Valle
Tschiedel. Porto Alegre: Sulina, 2014, p. 98/99. 47 CHOMSKY, Noam. Réquiem para o sonho americano: os 10 princípios de concentração de riqueza e poder.
Tradução de Milton Chaves de Almeida. 1ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017, p. 53.
Assim, o esvaziamento do conceito de subordinação, por intermédio da lei, é claramente um
método para se rebaixar o nível salarial dos trabalhadores, além do que implica a retirada de
inúmeros direitos sociais reconhecidos nas constituições ou nas leis.
Conforme aprofundada pesquisa de Lorena Vasconcelos Porto e Augusto Grieco
Sant´Anna Meirinho a esse respeito:
A importância fundamental do emprego para o desenvolvimento econômico e a
maior igualdade e justiça social pode ser demonstrada estatisticamente. Conforme
nos revelam dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os países mais
desenvolvidos econômica e socialmente do mundo são aqueles que possuem o maior
percentual da população economicamente ativa (PEA) na condição de
“empregados” e menor percentual nas categorias “empregadores e trabalhadores
autônomos” e “trabalhadores familiares não remunerados”. Basta confrontar, por
exemplo, no que tange ao percentual de empregados na composição da PEA, os
números da Noruega (92,5%), Suécia (90,4%), Dinamarca (91,2%), Alemanha
(88,6%), Países-Baixos (88,9%) e Reino Unido (87,2%), com aqueles presentes na
Grécia (60,2%), Turquia (50,9%), Tailândia (40,5%), Bangladesh (12,6%) e Etiópia
(8,2%)48.
A ideia de dignidade humana, incorporada em várias constituições ao redor do
mundo após a II Guerra Mundial, foi fortemente influenciada pelo pensamento de Immanuel
Kant, ao diferenciar o que possui preço - e é substituível - do que possui dignidade, o ser
humano49. Consoante visto, a crescente acolhida, em nível doutrinário, jurisprudencial e legal,
no plano nacional e internacional, da tendência verdadeiramente modernizante de ampliação do
conceito de subordinação - em vez de sua pretensa restrição, como na matriz “shylockiana”50
da Lei no 13.467/17 - , cuja consequência principal será o alcance da tutela do Direito do
Trabalho até os trabalhadores que vêm sendo marginalizados em face das sutilezas da
modernidade, é medida salutar e indispensável em favor do ser humano que depende da venda
de sua força de trabalho e que tem o direito de manter íntegra sua dignidade no âmbito de um
Estado Democrático de Direito.
48 PORTO, Lorena Vasconcelos; Meirinho, Augusto Grieco Sant´Anna. O Trabalho Autônomo e a reforma
trabalhista. In COSTA, Ângelo Fabiano Farias da; MONTEIRO, Ana Cláudia Rodrigues Bandeira;
BELTRAMELLI NETO, Silvio (Coord.). Reforma Trabalhista na visão de Procuradores do Trabalho. Salvador:
JusPODIVM, 2018, p. 81. 49 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 81. 50 Neologismo criado a partir da postura da personagem Shylock no livro O Mercador de Veneza de William
Shakespeare.
REFERÊNCIAS
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