Desde as primeiras representações feitas pela mão humana Arte e Ciência caminham lado a lado. A mimesis era o objetivo principal dos artistas e a consequente observação cuidada
da natureza formulava questões e hipóteses no campo da Ciência. Esta simbiose entre as áreas pressupôs sempre uma ferramenta, o Desenho, e um tema principal, o Corpo. No entanto,
alturas houve em que esta relação perdeu pujança, resultando ora no detrimento das práticas artísticas de um modo geral ora em novas formas de Arte distantes destes – no primeiro caso
durante a Idade Média e no segundo durante o século XX, onde a industrialização e as mudanças a ela associadas bem como o avanço tecnológico reformularam não só as fronteiras
como a própria definição da Arte. Porém, no século XXI, a Arte Contemporânea retoma o Desenho e a Figura, ao mesmo tempo que a sociedade ganha gradualmente uma maior
consciência dos problemas sociais, ambientais e culturais.
A questão surge: terá o ato de Desenhar e de observar e estudar o Corpo relação direta com um pensamento mais humanista, centrado nos problemas sociais contemporâneos?
Arte, Ciência, Sociedade:o Desenho como meio e o Corpo como tema
Beatriz Manteigas, Faculdade de Belas-Artes da U. Lisboa
Durante o século XX não bastava representar formas do Mundo Natural. Sendo a Arte resultado da sociedade em
que é gerada, era então mais entusiasmante e pertinente representar as novas descobertas associadas à industrialização:
novos temas e novos meios e médios. O corpo humano mostrou-se aí pela primeira vez banal, desinteressante, simples
– geram-se as correntes e movimentos que viriam a integrar a Arte Moderna. A evolução da Ciência e da Tecnologia
não só fez evoluir a Arte em termos de temáticas e prioridades como pôs em causa todas as premissas a ela associadas.
A partir dos anos 80 sente-se um gradual regresso à figura através de vários movimentos resultantes da necessidade
de regressar à representação de forma mais ou menos fiel do Mundo natural. No século XXI a sua pujança é
inquestionável. Francis Bacon, Lucian Freud, David Hockney, Paula Rego - são vários os artistas figurativos do final
do século XX e do século XXI cuja obra partilha vários pontos, a nível prático e teórico, em comum. Cada um com a
sua linguagem pessoal, todos estes artistas (e muitos outros não enumerados) relembram que a Arte, enquanto matéria
da Humanidade, encontrará sempre pertinência na própria natureza humana. Ao contrário do que acontecia até ao
século XIX, hoje o artista não se dedica ao indivíduo singular, mas antes a este perante a sociedade em que se insere,
relembrando-nos da nossa natureza face ao Mundo Contemporâneo e assumindo assim não necessariamente um papel
ativista mas antes um papel expositor.
Conclusão:
No momento em que os artistas parecem sentir necessidade de compreender a relação do Homem com o Mundo
retomam a prática do Desenho - a forma de expressão que melhor sintetiza a nossa relação com o Mundo (Pedro
Saraiva). A Arte mantém a sua necessidade de ser ativa e pertinente na sociedade do seu tempo e, aparentemente, as
grandes questões prendem-se hoje com o lugar do Homem no Mundo por si criado. Para a compreensão destas questões,
o artista retoma a ferramenta que durante séculos lhe permitiu estudar e compreender o Mundo Natural – o Desenho – e,
através dele, como é costume e obrigação dos artistas (um legado deixado pelos movimentos do século XX), formula
hipóteses e representa as questões de toda a sociedade em que se insere. Conclui-se ainda que, apesar de por vezes na
sombra, o Desenho é inerente e necessário a qualquer criação artística e está intrinsecamente ligado à formulação de
questões e hipóteses. A atual tendência figurativa da Arte relembra-nos que, mesmo na era digital e avanços científicos,
continuamos a ser humanos procurando significado para a vida, conscientes da nossa finitude, enclausurados numa
sociedade como observadores e observados. Hoje, como no regresso do filho pródigo, volta a ser o próprio Homem o
que mais motiva as questões que fazem evoluir a Arte.
Ilustrações da autora
Os músculos da face/auto-retrato, grafite e aguarela, 2014
Pontos em comum entre os artistas
figurativos contemporâneos:
- Utilização das técnicas, meios e médios
tradicionais;
- Utilização do desenho como ferramenta e
meio principal;
- Desenho a partir do natural;
- Figura humana como tema e objecto central;
- Conceito centrado na relação da figura com a
sociedade ou a sua própria natureza: relação
homem-sociedade; relação indivíduo-
colectivo; pertença/diferença; finitude,
impotência, simplicidade e imperfeição humana;
- Utilização da representação da figura
humana não como objeto integrante do Mundo
Natural que, só por si, fora válido até ao século
XIX, mas antes como pretexto para questionar a
relação da Homem com o Mundo.
Bibliografia:
CHIPP, H.B. – Teorias da Arte Moderna. 2ª ed. S.Paulo: Martins
Fortes, 1999. ISBN: 85-336-0545-5.
ECO, Umberto – A Definição da Arte. Lisboa: Edições 70, 1986.
MALBERT, Roger – Drawing people: The Human Figure in
Contemporary Art. 1ª ed. Londres: Thames & Hudson, 2015. ISBN:
978-0-500-29163-4.
MARQUES, António Pedro Ferreira et alt. – Desenhar, saber
Desenhar. Lisboa: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de
Lisboa, 2012. ISBN: 978-989-8300-43-0.
RAMOS, José Artur - Retrato : o Desenho da Presença.
Lisboa : Campo da Comunicação, 2010. ISBN 978-972-8610-79-1.
TAVARES, Cristina Azevedo – Representações do Corpo na Ciência
e na Arte. Lisboa: Fim de Século, 2012. ISBN: 978-972-754-290-1.
Agradece-se ao CIEBA pelo convite, entidade preocupada em não só desenvolver investigações de qualidade mas também em potenciar o
trabalho de jovens investigadores; ao professor Artur Ramos que, desde sempre, demonstrou uma incomparável disponibilidade para a
discussão académica convidando de forma incansável a fazer-se mais e melhor em prol da Arte e em particular do Desenho.
Contactos: [email protected], www.beatrizmanteigas.com
Ilustrações para a dissertação As Variantes Antropométricas da Face na População
Mediterrânica da Península Ibérica (mestrado em Anatomia Artística, 2014)
Madre (série Madonas), 140x100cm, pastel sobre tela, 2015
Leonardo DaVinci,
Estudos Anatómicos, 1510-1511
Rembrandt, Aula de Anatomia de Dr. Tulp, óleo sobre tela, 170x217cm,
1632Jean Gaspar Lavater,
Os Quatro Temperamentos, 1783
Petrus Camper,
Ângulos Faciais de Criança até Homem Idoso, 1791
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