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hannah arendt, uma leitora crtica de plato
Daiane Eccel*
* universidade Federal de Santa catarina.
Florianpolis. Brasil
RESUMO: Que Arendt seja amante do pensamento grego j
se sabe, mas o que impressiona nos seus textos a quantidade de
vezes em que ela se volta para Plato para tentar explicar aspectos
do pensamento poltico ocidental. Em funo disso, tratar-se de
Plato a partir de Arendt, visto que no se tem a pretenso de ela-
borar um escrito sobre Plato per Plato, ou seja, Plato como tal.
Plato o primeiro dessa tradio, mas , ironicamente, o primeiro
que enxerga um abismo entre a filosofia e a poltica. O fato de Pla-
to ser considerado o primeiro filsofo da tradio do pensamento
poltico ocidental, est relacionado com o fato de que, a partir da
morte do seu mestre, Scrates, Plato ter enxergado um abismo
entre a filosofia e poltica que se arrastou pelo resto da tradio.
Em funo da polis ateniense ter condenado Scrates e ele, apesar
de sempre ter se colocado como um cidado, no conseguir elaborar
sua defesa e salvar-se da condenao, Plato teria desenvolvido uma
espcie de hostilidade com relao poltica. Em funo desse
sentimento, Plato teria criado uma relao de hierarquia entre a
filosofia e a poltica de forma que esta ltima ficou no patamar
inferior e sua existncia dar-se-ia apenas para garantir o direito do
filsofo usufruir de sua bios theoretikos, fazendo com que a poltica
perdesse sua dignidade.
PalavRaS-chavE: Arendt. Plato. Filosofia. Poltica.
aBSTRacT: We know that Arendt is a Greek philosophy lover, but
what is impressive in her writings is the amount of times she turns
to Plato trying to explain aspects of the Western political thought.
In this sense, we will consider Plato from Arendts point of view,
1. Plato e a gnese da separao entre
Filosofia e poltica
arendt frequentemente reconhecida entre
seus crticos por aquela que retorna ao mundo gre-
go para cotejar tanto as obras dos pr-socrticos,
quanto os escritos de plato e aristteles. Que ela
seja amante do pensamento grego j se sabe, mas o
que impressiona nos seus textos a quantidade de
vezes em que ela se volta para plato para tentar
explicar aspectos do pensamento poltico ocidental.
plato , sem dvida, um dos principais personagens
de arendt no enredo da problemtica entre filosofia
e poltica. a reflexo acerca do abismo, da separao
entre filosofia e poltica uma das chaves de leitura
possveis para a obra de arendt e plato aparece
nos textos arendtianos tanto quando ela trata de
questes especficas da Grcia como quando reflete
acerca de temticas atuais e, como de costume,
retorna ao mundo antigo em busca de respostas para
a modernidade que viveu nas sombras. o resultado
disso que at em textos que tratam de problemas
modernos como o caso daqueles presentes na
coletnea Entre o passado e o futuro o nome de
plato o que, sem dvida, mais aparece no ndice
onomstico. a consulta ao ndice de nomes so-
mente a confirmao do que se constata quando se
eccel, d. (2012). hannah arendtt, uma leitora crtica de plato. archai n. 8, jan-jun 2012, pp. 27-37.
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since there is no purpose to elaborate a paper about Plato
through Plato, or from Platos point of view, as such. Plato
is the first of this tradition, but he is ironically the first who
sees a abyss between philosophy and politics. The fact that
Plato is considered the first philosopher of the tradition of
Western political thought is related to the fact that, due to
the death of his master Socrates, Plato has seen a abyss
between philosophy and politics that continued for the
rest of the tradition. Because Athenian polis condemned
Socrates, although he considered himself as a citizen, he
could not prepare his defense and save himself from the
condemnation. Plato would have developed a kind of hosti-
lity toward politics. Due to this sentiment, Plato would have
created a relationship of hierarchy between philosophy and
politics, so that the latter has been placed in an inferior
level and his existence would only occur to ensure the right
of the philosopher to enjoy his bios theoretikos, and causing
politics to loose its dignity.
KEywORdS: Arendt. Plato. Philosophy. Political.
l os textos nos quais, entre aristteles e Scrates,
plato aparece frequentemente. no diferente em
outros textos como A tradio e a poca moderna1,
O significado da poltica, Filosofia e poltica2, e
outros mais.
em funo disso, no se pode descartar pla-
to, mas, ao exemplo de arendt e, em funo dela,
dar-lhe um espao privilegiado atentando sempre
para o fato de que plato ser lido a partir de aren-
dt, visto que no se tem a pretenso de elaborar
um escrito sobre plato per plato, ou seja, plato
como tal.
no ser difcil justificar este apelo a
plato: ele considerado por arendt o primeiro
pensador da tradio poltica ocidental e disso se
seguem uma quantidade enorme de argumentos que
justificam o espao privilegiado cedido a ele.
o tom utilizado por ela para tratar do funda-
dor da academia , s vezes, um tanto enigmtico,
pois enigmtica tambm a posio dele no rol
da tradio do pensamento poltico. plato o
primeiro dessa tradio, mas , ironicamente, o
primeiro que enxerga um abismo entre a filosofia
e a poltica que nunca mais se fechar. difcil
saber onde exatamente se encontra o elemento
irnico neste emaranhado, ou seja, ironia o
fato de plato ser o primeiro pensador da tradio
e notar a separao entre filosofia e poltica ou
irnico o fato de a tradio do pensamento poltico
iniciar justamente com a separao entre filosofia
e poltica? admitimos que esta no uma questo
bvia de se responder, mas ela s se torna central
quando se passa a especular quais so as impresses
que arendt tem de plato aps a constatao de que
filosofia e poltica estavam separadas e que isso teve
srias consequncias, sobretudo para a poltica. em
alguns momentos, arendt parece enaltecer plato e
em outros, julgar como negativa sua atitude diante
da poltica.
o fato de plato ser considerado o primeiro fi-
lsofo da tradio do pensamento poltico ocidental,
deve-se, em parte, ao seu mestre, Scrates, a quem
arendt atribui a proeza de viver tranquilamente
entre a filosofia e a poltica. Fato que, aos olhos
de plato no era to evidente assim visto que S-
crates o filsofo - cidado, ou cidado - filsofo,
considerando o fato de que essa hierarquia no era
vlida para ele foi condenado pelo sistema pol-
tico vigente. a polis da qual Scrates fazia parte, o
julgou e o fez beber a cicuta. para fazer uso de um
jogo de palavras, possvel afirmar que a tradio
poltica ocidental nasceu quando Scrates morreu.
com a ida do velho Scrates ao hades que a filosofia
poltica tem sua arch, seu incio.
a morte de Scrates tem para arendt um
valor singular, pois a partir dela surgem vrias
questes: por que plato assume uma posio to
radical diante da morte de seu mestre? Quais so
as consequncias que aparecem em seus postulados
em funo da separao entre filosofia e poltica? e,
por fim, como isso veio a ter um papel essencial na
poltica moderna? em funo dessa quantidade de
perguntas densas que arendt volta renitentemente
a plato tentando encontrar as respostas.
para ela, plato frustrou-se com a morte
de Scrates em dois sentidos: o primeiro que o
julgamento poltico f-lo morrer, ou seja, a polis
matou seu mestre; o segundo resultado da de-
cepo com o prprio Scrates, a saber, aquele que
andava pela praa pblica tentando fazer parir
os pensamentos de seus concidados, no soube
1. texto presente em arendt,
hannah. Entre o passado e o futuro. So paulo: perspectiva, 2005, p.43-68.
2. texto presente em arendt.
hannah. A dignidade da poltica. 3 ed. rio de Janeiro: relume
dumar, 2002, p. 91-116.
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defender-se e livrar-se das acusaes que lhe foram
dirigidas. a frustrao que veio por dois lados a
polis e o prprio mestre desembocou em uma
nica instncia: a poltica. plato decepcionou-se
com a poltica vigente a ponto de tentar salvar a
filosofia dela. para tanto, colocou a filosofia no
topo da pirmide hierrquica e fez com que a po-
ltica ficasse subordinada a ela. caso essa situao
permanecesse apenas com plato, ele seria somente
um a pensar dessa forma, porm ele foi o primeiro
e arrastou junto de si todo o resto do pensamento
poltico ocidental. a questo talvez no seja (e de
fato no ) o fato de que a filosofia ficou no topo
da pirmide e a poltica embaixo, pois caso fosse o
contrrio seria to grave quanto. a questo que se
formou uma hierarquia entre as duas e se abriu um
espao que jamais apareceu antes. Quanto a ideia
de que plato colocou a filosofia acima da poltica
, realmente, um postulado arendtiano e passvel
de questionamentos. em primeiro lugar, necessrio
esclarecer que arendt nunca quis afirmar que ele no
estava preocupado com a poltica, apenas relegou-
-a ao segundo plano. em segundo lugar, porm,
pertinente se perguntar se realmente isso verdade.
nesta brecha de dvida que se abre, arendt tem a
oportunidade de dialogar constantemente com a
tradio, mesmo que o resultado verdadeiro desse
dilogo nunca tenha, realmente aparecido. dessa
forma, o objetivo deste artigo consiste em investi-
gar as consideraes que hannah arendt tece sobre
plato. alm do papel que o discpulo de Scrates
tem na separao entre filosofia e poltica, ainda
necessrio que se investigue o papel do rei filsofo e
noo de verdade em plato e autoridade em plato,
segundo o olhar de hannah arendt. a fonte principal
so sempre os escritos de arendt, no entanto, em
alguns momentos ser necessrio recorrer aos textos
do prprio plato afim de confirmar ou contestar os
argumentos arendtianos.
em um dos seus dilogos, o Protgoras, de
forma indireta plato acaba tocando no ponto
referente poltica. o mito de epimeteu faz a
narrativa dos deuses distribuindo as funes para
os mortais. alguns ganham fora, outros ganham
a velocidade, outros tantos ganham diversos tipos
de habilidades, mas a poltica escapou-lhe. ela
estava, porm, bem prxima a Zeus que ordenou que
a distribuissem entre todos, pois ela seria funo
de todos. Seguem-se daqui algumas interpretaes
possveis. tais interpretaes certamente seriam
mais bem desenvolvidas por especialistas em plato
e no nos cabe tanto mrito, mas no haveria de
permanecermos sem perguntar: o fato de plato
deixar a poltica por ltimo e distribu-la entre todos
seria uma forma de valoriz-la ou de desprez-la? ela
pode ser to importante que no caberia apenas a
um nico homem, mas ela pode ser to onerosa que
ningum individulamente poderia mant-la sozinha.
essas especulaes permanecem em aberto, porm,
o que inegvel o fato de que a poltica, de uma
forma ou de outra, est presente.
arendt faz uma nobre retomada de alguns di-
logos para confirmar a ideia de que os pensamentos
de plato com relao polis, ou para ser mais fiel a
prpria arendt, os ressentimentos de plato com rela-
o a polis, foram resultados da ocasio da morte de
Scrates. na leitura de arendt, cada vez mais plato
foi encontrando subsdios que confirmavam a exce-
lncia da filosofia e a decadncia da poltica, a come-
ar pelo prprio regime democrtico classificado por
plato como sendo quase a pior forma de governo,
ficando somente na frente da tirania. em um outro
momento, mais uma vez nos textos compilados na
coletnea de Entre o Passado e o Futuro, arendt faz
uso do mesmo artifcio de seu mestre, heidegger, e
recorre etimologia da palavra grega schol e latina
otium para mostrar que a vida da poltica apenas
uma empecilho para a vida do filsofo. a primeira
forma de vida capaz de exigir e consumir tanto
do cidado da polis que o impede de exercer outras
atividades. ir at a gora discursar, opinar e votar,
exige uma espcie de tempo livre especificamente
voltado para essa atividade. a schol, termo que
arendt esclarece dizendo que, atualmente, poderia
ser considerada como ausncia de trabalho, mas no
como lazer, designa esse tempo que livre de ativi-
dades manuais, laboriosas. para elucidar o sentido do
termo ela afirma que um pastor poderia tornar-se
cidado, mas no o campons; o pintor, mas no o
escultor, e era ainda reconhecido como algo mais
que banusos, sendo traada a distino, em ambos
os casos, simplesmente mediante a aplicao do
30
critrio de esforo e fadiga (arendt, 2005, p.46).
a poltica, assim como a filosofia, exige tambm que
o cidado seja livre das necessidades mais primrias
e, quando livre dessas, pode ento dedicar seu tempo
poltica, mas j no pode dedic-lo filosofia
visto que essa se configura como uma outra forma
de vida que tambm exige tempo hbil para tanto.
ao tratar desse problema, arendt cita diretamente
aristteles em funo da ideia de bios theoretikos,
mas o mesmo serve para plato, pois o centro do
argumento que a poltica atrapalha uma vida que
deseja ser voltada para a filosofia e esse incmodo,
para plato, semelhante quele que exige dos mor-
tais os cuidados mais bsicos consigo mesmo, como
alimentar-se, dormir, banhar-se. isso porque todos
esses afazeres, incluindo a poltica, so devotados
para as coisas terrenas, materiais, enquanto a filo-
sofia ocupa-se do mundo das ideias e ambas jamais
podem ser realizadas concomitantemente de forma
que seja garantida excelncia para as duas. a ideia
de um bios theoretikos, pode ser remetida a plato,
mesmo que seu uso seja atribudo a aristteles. a
semelhana entre aristteles e seu mestre que
ambos exaltam-na e reconhecem o fato de, quando
o filsofo faz sua opo de vida ficar s, como
a opo filsofica por excelncia ele deve saber
que isso implica em abdicar de elementos que fazem
parte de um outro tipo de forma de vida que no o
bios theoretikos. interessante notar as observaes
realizadas por arendt a respeito das percepes dos
filsofos antigos com relao a vida do filsofo:
O verdadeiro filsofo, o que passa a vida inteira
imerso em pensamentos, tem dois desejos. O primeiro
que possa estar livre de todo tipo de ocupao, especial-
mente livre de seu corpo, que sempre exige cuidados e
se interpe em nosso caminho a cada passo (...) e que
provoca confuso, gera problemas e pnico. O segundo
que ele possa vir a viver em um alm onde todas essas
coisas com que o pensamento est envolvido, tais como a
verdade, a justia e a beleza, no estaro menos reais do
que tudo o que agora podemos perceber com os sentidos
corporais. (ARENDT, 2009, p.101)
a respeito da forma de vida que o filsofo leva,
tema para o qual arendt despende linhas e linhas,
sua fonte sempre plato ou aristteles, dando
preferncia ao primeiro justamente para tentar
analisar e refletir como ele trata dessa questo que
sempre vista luz do problema que o filsofo
mantm com a multido. neste sentido, mesmo
que arendt no ataque diretamente plato por ele
considerar o modo de vida filsofico infinitamente
melhor do que o poltico e exaltar o estar-s diante
dos estar-com-os outros, ela parece, em alguns mo-
mentos do texto, discordar claramente de plato e
critic-lo de forma indireta. a suposta pretenso de
plato parece despertar em arendt um certo desprezo
diante daquele que, para deixar a praa pblica,
fundou uma academia e institucionalizou o ensino
fazendo-o permanecer longe da multido (hadot,
1999, p.32). neste estranho emaranhado traado
por arendt sobre plato, s vezes parece arriscado
afirmar algo categoricamente, mas as afirmaes de
arendt poderiam ser rebatidas ao voltarmos nossas
atenes para a Carta Stima, por exemplo.
evidente que no est se afirmando aqui
que arendt tem a pretenso de rebater toda a
teoria platnica, pois isso envolveria, inclusive,
uma tentativa de desmontar toda a teoria dos
dois mundos. arendt no cometeria o equvoco de
acusar plato ou de consider-lo culpado pelas
tragdias que o abismo entre a filosofia e a poltica
causaram no mundo moderno somente porque ele foi
o primeiro (salvo parmnides) a fazer tal separao.
no entanto, certamente no h como negar o tom
de desconfiana de arendt ao realizar essas anlises
sobre os dilogos platnicos.
2. Plato e a torre de marfim dos filsofos
a questo referente ao modo de vida do
filsofo e o modo de vida das demais pessoas
muitssimo mais abrangente do que o simples fato
de o filsofo, supostamente, no conseguir lidar com
as coisas prticas da vida cotidiana. a diferena,
mais do que em qualquer outra coisa, reside na na-
tureza distinta entre os dois tipos de vida. no caso
de compararmos a vida do filsofo com as demais,
a submisso ao que necessrio para a vida, como
respirar, manter-se preso gravidade, alimentar-se,
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parecem constituir os nicos elementos em comum
com as demais formas de vida. trata-se aqui da
natureza peculiar do modo de vida filosfico: deixar
de estar entre os outros e apenas estar consigo
mesmo. a filosofia exigia uma retirada do mundo
como talvez nenhuma outra atividade na antigui-
dade exigia. nem mesmo fazer oferendas aos deuses
requeria esse tipo de exigncia, pois era este um ato
to pblico como qualquer outro. a ideia de que o
sujeito deve retirar-se e trancar a porta do seu quarto
para orar ao seu deus, como se encontra nos evan-
gelhos, somente crist e no grega. alm disso,
estabelecer algum tipo de contato com os deuses
na Grcia, no era uma questo de tornar ativo o
pensar. essa atividade, o pensar, eminentemente
filosfica, invisvel, no aparece, no tem forma.
o ncleo da filosofia o pensar, ou seja, o que faz o
filsofo filosofar algo que ningum pode ver, nem
ele prprio. arendt insiste no fato de afirmar que o
pensar uma das atividades que compem a vida do
esprito junto com o querer e o julgar e, o que faz
da filosofia a filosofia mantm-se fora do mundo
das aparncias e, mais do que isso, oposto a ele.
para ela, os filsofos e metafsicos monopolizaram
essa capacidade (arendt, 2010, p. 124). a questo
mais proeminente neste emaranhado que aparecer
significa ser lembrado, ser visto, e o que faz com
que os outros nos enxerguem e torna efetiva a con-
vivncia entre os homens. a concluso a que arendt
chegou, que na verdade apenas uma constatao
dos fatos, que a atividade do filsofo invisvel,
ou seja, o bios theoretikos, o modo de vida filsofico
definido por aristteles, acontece fora do convvio
dos demais, justamente porque acontece fora do
mundo das aparncias. arendt cr que a oposio
entre aparecer para os outros e retirar-se do mundo
poderia gerar paradoxos antagnicos como ser e
pensar, por exemplo, de forma que ela logo atribui
essa situao a plato afirmando que, segundo ele
somente o corpo do filsofo isto , o que faz
aparecer entre as outras aparncias ainda habita
a cidade dos homens, como se, pensando, os homens
se retirassem do mundo dos vivos (arendt, 2009,
p.97). essencial notar que a atividade do pensar
em si, diferente da vida vivida para a filosofia, pois
a capacidade de pensar inerente a qualquer ser
humano, inclusive os no filsofos, mas nem por isso
ela deixa de ser invisvel. no entanto, aquele que
desejasse se devotar a um bios theoretikos deveria,
aps a morte de Scrates, necessariamente viver
la sua principal atividade, ou seja, to longe do
mundo das aparncias quanto o pensar.
ao iniciar um dos seus textos e afirmar que o
interesse pela poltica no algo corriqueiro para o
filsofo. ns, cientistas polticos, no costumamos
levar em considerao que as filosofias polticas, em
sua maioria, se originam da atitude negativa e as
vezes at hostil em relao polis e a todo campo
dos assuntos humanos (arendt, 2008, p.444) ela
est, com certeza, referindo-se no s a plato,
mas primordialmente a ele, dado o fato de ele ser
o pioneiro nesta forma de pensar. desde plato at
hegel3 predomina a ideia de que a polis v o filsofo
com hostilidade. arendt enfatiza a ideia de que,
na verdade, hostilidade no bem o sentimento
que supostamente ocorreria por parte da multido
para com o filsofo, mas talvez o deboche, o riso.
Segundo cr plato, o filsofo passa por ridculo
diante da multido que nada sabe, mas acha que
sabe. para a ral, o filsofo aquele que vive no
mundo das ideias e no capaz de lidar com
coisas cotidianas, exceto aquelas que permitam sua
sobrevivncia e s vezes nem estas, visto que muito
era motivo de deboche o fato de nem vestirem-se de
forma adequada. plato, porm, foi vtima (e foi a
primeira) do vcio mais comum dos filsofos: crer, de
forma iludida e pretensiosa, que sabe mais do que o
senso-comum. crer que o filsofo v o sol antes de
todos os demais moradores da caverna que (muitos
dos quais), talvez nunca vero , para arendt, um
equvoco perpetuado entre os filsofos. os sentimen-
tos arredios do filsofo com a polis so recprocos,
portanto. porm, so de carter diferente, visto
que enquanto o filsofo mantm um sentimento de
hostilidade ou at mesmo frustrao com a polis,
esta o enxerga com deboche. arendt, no entanto,
faz a ressalva de que poucas evidncias histricas
provam o que plato afirmou, e ainda classifica esse
vcio que o filsofo possui de enxergar as coisas
assim de mania persecutria tradicional do filsofo
(arendt, 2009, p.100). uma delas (inclusive citada
mais de uma vez por arendt em seus mais diversos
3. arendt salva Kant desse vcio
afirmando que o considera o
filsofo mais livre dos vcios dos
filsofos por ser o (...) mais
crtico dos filsofos em relao
aos preconceitos metafsicos
tradicionais (...) (arendt, 2009,
p.91)
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textos), curiosamente, resulta de uma descrio de
plato no Teeteto, que ilustra com mxima perfeio
a incompatibilidade do filsofo com a multido.
arendt cita essa passagem mesclada a seus comen-
trios e vale cit-la textualmente:
O que decisivo aqui no so as passagens dos
dilogos polticos as leis ou a repblica contra a
poesia e especialmente contra os comediantes, mas a
maneira totalmente sria com que conta a histria da
camponesa trcia explodindo s gargalhadas quando v
Tales cair no poo enquanto observava os movimentos
dos corpos celestes, declarando que ele estava ansioso
por conhecer as coisas dos cus, enquanto lhe escapavam
(...) as que se encontravam aos seus ps. E Plato acres-
centa: Qualquer pessoa que dedique sua vida filosofia
est vulnervel a esse tipo de escrnio (...). Toda ral
se juntar camponesa, rindo dele. (...) pois, em seu
desamparo, ele parece um tolo (ARENDT, 2009, p.101)
Volta aqui a ideia de que, como bem sugere
hadot, o filsofo um estrangeiro no mundo, que
perambula pelos cantos pensando nas coisas do alto
e que assim, cultiva a incapacidade de enxergar
um palmo a frente de seu nariz. o resultado disso,
para plato, desembocou no ideal da Repblica.
Segundo arendt: plato, que na Repblica queria
no s proibir aos poetas o seu ofcio, mas tambm
o riso aos cidados, (...) temia mais as zombarias
de seus concidados do que honestidade das opi-
nies contra a exigncia do carter absoluto da
verdade (arendt, 2003, p. 229). a ideia de plato
idealizar uma polis4, faz com que arendt o critique
de forma direta. isso acontece porque a partir da
ela passa a sentir uma de suas principais crenas
serem ameaadas: a imprevisibilidade da ao. com
todo planejamento traado por plato em sua polis,
o novo jamais poder irromper, pois tudo passa a
ser logicamente e categoricamente planejado. o
rei-filsofo torna-se um tirano e a liberdade prin-
cipal sentido da poltica impedida de existir. a
repblica ideal de plato, maximamente organiza-
da, destroa as possibilidades da ao como algo
novo. aqui, arendt e plato so to incompatveis
quanto so a gua e o leo quando postos em um
nico recipiente.
neste sentido, provavelmente, arendt conside-
ra plato um discpulo infiel do seu mestre, Scrates,
pois a ideia de que h uma verdade na filosofia de
plato e que o filsofo portador dela to forte
quanto a de que Scrates acreditava nada saber. a
diferena entre a aletheia louvada por plato e a
doxa por ele criticada e, de certa forma, praticada
por Scrates, abismal. a preferncia do filsofo em
estar somente com ele mesmo, embaraado em seus
prprios pensamentos, que faz com que ele seja,
como todos percebem, algum que aspira a solido.
enquanto os demais homens permanecem imersos no
murmurinho do dia-a-dia e constroem suas opinies
baseadas nessa convivncia, o filsofo se mantm na
sua to conhecida pela tradio torre de marfim.
de forma oposta poltica, a vida do filsofo exige
uma ascese que, de alguma maneira, o torna inapto
para lidar com questes prticas do cotidiano e algu-
mas capacidades ficam comprometidas como, entre
outras, a de realizar um julgamento, por exemplo.
a esta atividade, aos moldes de Kant, arendt atribui
uma conotao totalmente poltica e o filsofo, no
seu reduto de marfim, no consegue faz-lo. ele
no consegue, de forma geral, como afirma arendt:
Ver as coisas no apenas do seu prprio ponto de
vista mas na perspectiva de todos aqueles que porven-
tura estejam presentes (...). Os gregos davam a essa
faculdade o nome de phrnesis, ou discernimento, e
consideravam-na a principal virtude ou excelncia do
poltico, em distino da sabedoria do filsofo (ARENDT,
2005, p.275).
eis, novamente na filosofia de plato, o
carter no amigvel entre o filsofo e os no
filsofos, ou aqueles que enxergam (e ainda muito
mal) as coisas terrenas. arendt insiste na ideia de
que plato, na sua posio de filsofo, sente-se
extremamente inseguro na polis e que a ideia do
rei-filsofo est intimamente ligada com a alegoria
da caverna. Que isso seja uma interpretao tra-
dicional, todos j sabem, mas o que necessrio
notar que arendt d uma conotao totalmente
poltica para essa interpretao. Quando plato
sugere que a filosofia deve conduzir a polis atravs
do rei-filsofo, talvez no seja porque ele deseja o
4. arendt provavelmente tem
conhecimento do fato de que
no final da Repblica, plato
afirmou que sabia que ela no iria
se realizar, mas aparentemente
ela nunca deu muita importncia
a isso.
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melhor para a polis, mas porque almeja sua prpria
segurana e bem-estar. S no poder o filsofo teria
a garantia de que poderia viver sua bios theoretikos.
isso pode at soar contraditrio, pois aquele que
tem o poder, supostamente deveria dedicar-se s
questes polticas, deveria viver o tempo livre para
dedicar-se s questes devotadas ao e no
contemplao. mas no se deve esquecer que em
plato isso jamais funcionava assim, porque seu
governante um filsofo, ou seja, o carter de rei,
na leitura de arendt, s existe em funo da filosofia.
aqui reaparece a figura do pobre tales ridicularizado
pela camponesa, pois caso o filsofo fosse rei, quem
ousaria zombar dele? nem a mais ignorante campo-
nesa trcia ousaria faz-lo. a poltica pode, para o
filsofo, ser tanto um assunto irrelevante5, desses
sobre os quais se conversa cotidianamente quando
se est entediado, quanto adquirir um carter til,
como plato o fez.
neste sentido, interessante observar outro
dado a partir das interpretaes de arendt. Quando
ela faz sua famosa distino entre poder e violncia
(Macht und Gewalt), d tambm uma definio de
autoridade e, curiosamente, o elemento que o
mais capaz de desautorizar algum, de lhe tirar a
autoridade, o riso. Quando algum ri de outro que,
por algum motivo, mantinha-lhe autoridade sobre,
causa o efeito de uma espcie de falta de respeito
(com todas as ressalvas que se h de fazer sobre
esse termo), que faz com que a autoridade caia por
terra. claro que, diante do acontecimento narra-
do no Teeteto, no qual toda a ral se juntaria
camponesa e riria de tales, o filsofo jamais poderia
tornar-se autoridade na polis. para plato, porm,
o filsofo tinha uma natural autoridade, aquela que
mantida atravs da relao filsofo (como aquele
que enxerga o Sol antes de todos) e os demais, que
so simplesmente os demais.
3. A tirania da verdade
hannah arendt mostra-se bastante incomoda-
da a esse respeito e, apesar de plato ser relutante
com relao tirania, dela se aproxima em alguns
sentidos, segundo arendt. talvez isso seja uma
incoerncia por parte dela se considerarmos o fato
de plato ir trs vezes a Siracusa tentando, de al-
guma forma, convencer dionsio, o tirano, a crescer
em seus estudos de filosofia e sair da condio de
tirano. por outro lado, ironicamente, arendt parece
ser mais coerente do que nunca, pois, caso dionsio
tivesse acatado o conselho de plato coisa que
nunca aconteceu ele poderia reinar ainda mais
como tirano. hadot trata explicitamente da inten-
o poltica que plato possui ao resolver formar
homens ntegros, capazes tanto de governar, como
de filosofar e no meros oradores mentirosos e sem
compromisso com a verdade, como faziam os sofis-
tas, que inclusive cobravam de seus aprendizes6. a
explicao de que plato teria institucionalizado o
saber montando sua academia fora da polis, seria,
para hadot, resultado disso. o que poderia acabar
acontecendo e, de fato, acontecia, era que a forma-
o na academia era to voltada para a pura filosofia
que a poltica, por vezes, acabava esquecida. ao
referir-se s intenes polticas de plato, hadot cita
a Carta Stima e, de fato, conforme observado por
irwin, plato expressa na carta a sua concluso sobre
a filosofia e a poltica: a de que, ou os filsofos
deveriam conquistar o poder poltico, ou o poder
poltico devia estudar filosofia (hadot,1998, p.8).
V-se que a Carta Stima, mesmo se tendo motivos
suficientes para duvidar que ela tenha sido realmente
escrita por plato, merece ateno neste contexto,
pois nela que aparece, entre outras coisas, a
decepo de plato com a poltica, gerada a partir
da morte de Scrates, o que confirma, ao menos
parcialmente, a tese de arendt. para ele, aqueles que
acusaram Scrates, que era o homem mais justo de
todos (car Vii., 315 d), eram pessoas que possuam
o poder. mas, antes dessa decepo plato narra
que tinha sinceros desejos de participar da poltica:
Quando eu era jovem, senti o mesmo que muitos:
pensei, mal me tornasse senhor de mim mesmo, ir direto
poltica. Eis como alguns eventos de coisas pblicas me
atingiram. (...) Um amigo meu, mais velho, Scrates,
que eu certamente no me envergonharia de dizer ser
ento o mais justo, mandaram-no com os outros contra
um dos cidados, conduzindo-o fora para a morte, a
fim de que fosse cmplice dos negcios deles, querendo
ou no. Mas ele no se deixou persuadir e arriscou-se a
5. aqui vale observar a passagem
que arendt cita de pascal em seu
texto j referenciado de 1954:
S imaginamos plato e
aristteles com longas vestes
de pedantes. eram homens de
sociedade que gostavam, como os
outros, de se divertir com os seus
amigos; e quando se divertiram
em escrever suas Leis e a sua
Poltica, fizeram-no brincando.
essa era a parte menos filsofica
e menos sria da sua vida [...]
Se escreveram de poltica , foi,
de certo modo, para pr ordem
num hospital de doidos; e, se
aparentaram de falar dessas coisas
como de um magno assunto,
porque sabiam que os doidos a
quem falavam pensavam ser reis
e imperadores. punham-se em
consncia com os princpios deles
para lhes moderar a loucura da
melhor maneira possvel. (paScal
apud arendt, 2008, p.445).
6. com relao a interpretao
acerca dos sofistas, vale ressaltar
que essa apenas umas das
interpretaes possveis, que ,
justamente aquela derivada de
plato, mas importante observar
os estudos mais recentes com
relao a essa temtica como
caSSin, Barbara. O efeito sofstico:
sofstica, filosofia, retrica,
literatura. trad. ana lcia de
oliveira, maria cristina Franco
Ferraz e paulo pinnheiro. So
paulo: editora 34, 2005.
34
suportar tudo, em vez de se tornar cmplice deles em
atos mpios. Considerando ento todas essas coisas e
ainda outras tais no pequenas, desgostei-me e afastei-
-me dos males de ento. (carVii., 324c-324e)7
caso esses dados a respeito de plato esti-
verem corretos, arendt pecaria contra ele afirmando
que ele se ocupa da poltica em funo de seus
prprios interesses, como manter seguro o filsofo,
por exemplo, pois, em um outro momento desta
carta, plato comenta que poderia entrar na poltica
para ajudar a melhor-la. o fato que o prprio
plato pode estar contradizendo-se, visto que al-
guns elementos contidos na carta so diferentes de
alguns outros contidos na Repblica. alm disso, se
tomarmos em conta que plato afirma explicitamen-
te na ltima frase, arendt est correta em afirmar
o desgosto de plato pela poltica. o que de se
estranhar que arendt tenha citado a Carta Stima
duas ou trs vezes e com pouca relevncia, talvez
porque teria certeza de que ela no era da autoria de
plato, visto que as evidncias apontam para isso.
ainda de grande valia observar as consideraes que
Bignotto (1998) faz a respeito da relao de plato
e da Carta Stima. Bignotto, como comentador, tem
provavelmente, a mesma opinio decorrente de toda
tradio e por isso to interessante contrap-lo a
arendt. a interpretao de Bignotto corresponde a
de hadot, ou seja, ambos confiam na boa inteno
de plato de agir politicamente contra a tirania,
tornando a poltica melhor para todos. o adendo
que Bignotto faz a respeito da educao do tirano,
pois no difcil notar que a maior parte da carta
tratou do fato de plato tentar, incansavelmente, por
trs vezes, melhorar a situao da Siclia educando
dionsio atravs da filosofia. para tanto, plato che-
gou a arriscar sua prpria vida, mas nada adiantou.
alis, serviu apenas para que ele se decepcionasse
ainda mais com a poltica. neste oneroso trabalho
de plato com o tirano de Siracusa ficam evidentes
algumas constataes a respeito da filosofia e da po-
ltica, sendo a principal, o fato de plato realmente
crer que a filosofia era a melhor forma de resolver
os interminveis problemas de corrupo que, desde
os gregos, corroem a poltica. Segundo Bignotto:
plato refugia-se na filosofia porque ela parece
apontar para o nico caminho capaz de assegurar
aos homens uma vida digna, a distncia das malezas
que dominam sua cidade (BiGnotto, 1998, p.158).
a partir da ideia de que plato deseja educar
o tirano atravs da filosofia, possvel estabelecer
muitas relaes entre tirania e filosofia, que sendo
tambm um tema clssico tratado pela tradio,
arendt retoma. a interpretao que arendt nos
fornece a respeito da existncia de uma suposta
tirania da verdade por parte de plato, tambm
bastante sui generis quando comparada ao restante
das interpretaes, conservando porm, alguns
elementos bastante conhecidos por todos, mas
como de hbito nas consideraes arendtianas, ela
costuma ler as entrelinhas dos escritos platnicos.
plato, na sua clebre classificao das formas de
governo, elege a tirania como a pior, como dege-
narao da democracia, justamente porque as duas
so os extremos: a primeira, o extremo da servido
gerada pelo extremo da segunda que a liberdade.
em A Repblica, a tirania pior forma de governo
posta como oposto da monarquia, a melhor forma de
governo que, resultar na ideia do rei filsofo.8 mas o
fato, bem observado por Bignotto, que plato no
d nenhuma receita de como se sai da tirania a
pior forma para a monarquia a melhor forma.
aristteles, por sua vez, no tarda em aproximar a
monarquia da tirania. Fato no diferente ocorreu a
hannah arendt, que mesmo no fazendo a classifi-
cao das formas de governo a maneira clssica, viu
uma aproximao entre tirania e monarquia que, no
caso de arendt, no se trata de qualquer monarquia,
mas daquela na qual reina o filsofo rei. o problema
que arendt enxerga na tirnica monarquia de plato
(para exagerar um pouco nos termos, pois ela mesma
nunca utilizou esses adjetivos) a pretenso do
filsofo de achar que atingiu a episteme, e se encon-
tra em um patamar muito superior do que aqueles
que ainda esto no estgio da doxa. a tirania que
arendt diz encontrar em plato no tem a servido
como pior defeito, mas tem a imposio da verdade
do filsofo, sendo a tirania platnica, a tirania da
verdade. o rei-filsofo, mantendo-se no poder, est
seguro para filosofar sem correr o perigo de zom-
barem dele e, diferente da maiutica socrtica, de
nada vale a doxa alheia, mas muito vale sua prpria
7. o interessante tambm
notar que plato, ao que parece,
tinha um real interesse pela
poltica, pois mesmo depois desses
desgostos, ele volta afirmar que,
mesmo de que de forma amena,
tinha vontade de participar dos
assuntos pblicos: em no muito
tempo, caram os trinta e todo o
governo dessa poca; de novo,
mas mais lentamente, arrastava-
me o desejo de administrar a coisa
pblica e o governo (Car VII 325
b). mais tarde ele afirma crer que
a morte de Scrates foi resultado
de vinganas pessoais vindas de
pessoas pblicas.
8. Vale conferir a passagem
textual de plato:
Scrates: - o que ento sob
o ponto de vista da virtude uma
tirania em relao realeza, tal
como a definimos no princpio?
desgnio 8
35
jan.2012
verdade, visto que no h, para ele, dvida alguma
de que ele deve manter-se na posio de sbio,
diferente mais uma vez de Scrates.
Scrates aqui, mais uma vez um personagem
essencial para explicar a pretenso de plato que
aparece na figura do rei-filsofo. ele , justamente
o oposto do rei-filsofo. a explicao , na verdade,
apenas o desenrolar da histria que arendt j contou
muitas e muitas vezes. o fato, novamente que
diante da acusao feita contra Scrates e de sua
prpria dificuldade em defender-se, plato desacre-
ditou no somente da polis, mas da forma com a qual
Scrates conversava com as pessoas e caminhava
pela gora, como se filosofia e poltica fossem duas
irms que se entendiam muito bem. o que plato
constatou com isso foi que, diante da posio de
Scrates que jamais se disse sbio a multido
no via razes para respeit-lo como sbio. Scrates
era respeitado no meio daqueles que reconheciam
seu verdadeiro valor como plato e Xenofonte que
julgava os feitos socrticos como memorveis,
mas a comdia escrita por aristfanes, As Nuvens,
provavelmente ilustrava exatamente as impresses
que a ral mantinha a respeito dele. a tirania da
verdade surgia, ento, como mais um tomo da pea
da separao entre filosofia e poltica. curiosamen-
te, arendt chama esse captulo dessa interminvel
histria de conflito entre verdade9 e poltica.
interessante neste momento fazer compara-
es entre a ideia da separao entre filosofia e pol-
tica e a ideia de conflito entre verdade e poltica. em
primeiro lugar, para os olhares desatentos, o primeiro
par, filosofia e poltica e o segundo, verdade e poltica,
podem parecer sinnimos. Sobre a poltica no h o
que discutir, pois ela certamente a mesma, tanto em
um par quanto em outro. mas identificar filosofia (do
primeiro par) e verdade (no segundo par) , no mnimo,
anti-filosfico. a filosofia pode (entre tantas outras
coisas) ser considerada talvez, uma busca pela verdade,
pela aletheia10, mas afirmar isso veementemente seria
tambm um srio problema de definio conceitual
o qual no cabe nas pretenses desse escrito. mas
importante notar que, caso a interpretao de arendt
sobre plato estiver correta, a saber, a de que o rei
filsofo acaba impondo a verdade a todos, pois ele
o guardio dessa verdade, seria perfeitamente possvel
9. antes de se iniciar a tratar de
verdade essencial atentar na
distino conceitual que arendt
faz entre verdade filsofica (que
aquela a qual este texto tem
por objeto) e verdade fatual. essa
ltima est relacionada com os
fatos histricos e cotidianos e
relaciona-se sempre com outras
pessoas: ela diz respeito a eventos
e cirscunstncias nas quais muitos
so envolvidos; estabelecida
por testemunhas e depende de
comprovao (arendt, 2005,
p. 295). a primeira, aquela que
ser tratada neste texto, fruto
da razo e no de circunstncias
totalmente externas. ela no
precisa de comprovao e pode ser
contemplada somente no isolamento.
10. a abordagem realizada por
moraes sobre o conceito de
verdade de plato tem como
centro a interpretao de
heidegger do mito da caverna
e a posterior complementao
de arendt. heidegger teria
enxergado na histria contada
por plato, duas noes de
verdade: a aletheia, aquela
que desoculta e que possui um
carter at fenomenolgico; e
a orthotes, aquela que aponta
para o lugar correto para onde
deve-se dirigir o olhar do filsofo
que caracteriza a dimenso
normativa da filosofia. o que
chama a ateno de arendt nessa
interpretao heideggeriana que
essa mudana na concepo da
verdade de aletheia para orthotes
se encontra justamente no ltimo
passo do percurso relatado por
plato, quando o personagem
(...) j tendo contemplado as
coisas luz do Sol e o prprio
Sol, retorna ao interior da
caverna e hostilizado pelos que
permaneceram (moraeS, 2003,
p. 38). Sendo assim, o acento
que arendt d especificamente,
a essa parte da histria contada
por plato, pode ser justificada
luz da interpretao que ela
faz da interpretao do prprio
heidegger. enquanto heidegger
interpreta a parbola da caverna
como uma expresso da paideia,
da educao do filsofo, arendt,
a partir da interpretao
heideggeriana, lhe confere uma
conotao poltica. para tanto,
conferir moraeS, eduardo Jardim
de; hannah arendt: filosofia e
poltica in moraeS, eduardo
Jardim de; BiGnotto, newton.
hannah arendt: dilogos,
reflexes, memrias. Belo
horizonte: editora uFmG, 2003,
p.35-47.
ter filosofia e verdade como sinnimos. mas h outro
elemento essencial que caracteriza a diferena entre
o primeiro par de conceitos e o segundo. no primeiro,
h uma ausncia de relao entre filosofia e poltica.
elas so apartadas e colocadas cada uma em lado aps
terem brigado. para arendt, por meio de plato, h um
abismo intransponvel entre a filosofia e a poltica.
e a briga, estopim para essa separao, teria sido
justamente a morte de Scrates. no segundo caso, h
relaes entre verdade e poltica, porm elas no so
amigveis, mas conflituosas.
o problema que plato enxergou em Scrates,
vai alm do fato de ele se relacionar com as simples
pessoas sem a pretensa inteno de mostrar-se sbio,
mas o problema maior que o conduziu at a morte foi
o fato de ele tambm no saber falar com os juzes.
ao invs de ele fazer uso da peithein grega discurso
altamente poltico e que tem a capacidade de, geral-
mente, convencer quem ouve, de persuadir as pessoas
- o velho Scrates fez uso da dialeghestai, do dilogo,
de discutir at o fim com algum (arendt, 2002,
p.96), ou seja, a forma mais filosfica possvel de se
falar. mesmo diante da cadeira de julgamento, o velho
Scrates insistiu em tentar parir as ideias dos juzes,
assim como sua me, Fenaresta, o fazia com as crian-
as que nasciam e, em recompensa recebeu a cicuta
para beber. novamente, depois de uma vida dedicada
a extrair de cada um sua prpria verdade (se que
isso possvel), ele no tentou imp-la ningum e
continuou querendo saber o que todos pensavam, como
cada um, do seu ponto de vista, enxergava as coisas e,
naquele momento especfico, como cada um enxergava
seus feitos. esse sempre foi seu grande interesse e,
ao que parece, continuou sendo mesmo antes de sua
morte. diante disso, o desenrolar da histria por
conta de plato. para arendt o abismo entre filosofia
e poltica, j foi, um dia, resultado do conflito entre a
verdade suposto tesouro do filsofo contra a doxa,
mera opinio daqueles que no so filsofos. a doxa,
pura opinio dos outros, diferente da verdade que pode
ser somente desvelada e contemplada na solido, faz
sentido somente na pluralidade, quando os outros
passam a saber o que cada um pensa.
porm, para plato, de nada servia mostrar
aos outros o que cada um pensa, o que cada um
entende segundo sua forma de enxergar o mundo.
36
o fato que ele provavelmente achava que sabia
o que era melhor para todos, tanto para o filsofo,
quanto para a polis. ao que parece, a verdade fixa e
imutvel que o filsofo busca e cultiva depois que
a descobriu, era a melhor forma de manter bem a
cidade, proeza esta que a doxa seria incapaz de fazer.
a doxa, como contrrio da verdade, a ausncia de
parmetros e medidas. ela no a base de nada por
nada reger. ela relativa e no absoluta como a
verdade, justamente por ser a forma como cada um
v o mundo, ou seja, ela a abertura do mundo
de cada um e, como todos estamos em posies
diferentes, vemos o mundo de um jeito diferente.
talvez isso tambm seja um problema e ele pode
ser srio, pois, quando no se h parmetros, tudo
permitido e, qui, no haja medida para nada.
porm, o total oposto disso tambm igualmente
perigoso. arendt insiste no fato de que, embora logo
no incio de seus dilogos polticos, plato tenha
privilegiado as discusses acerca do Bem e do Belo,
tudo indica que no ao Bem que ele procura sub-
meter o governo da polis, mas a verdade. certamente
a verdade dever ser uma partcula inseparvel do
Bem, mas no o por inteiro. Segundo arendt: (...)
plato concebeu sua tirania da verdade, segundo
a qual o que deve governar a cidade no o tem-
porariamente bom de que os homens possam ser
persuadidos mas sim a eterna verdade de que os
homens no podem ser persuadidos (arendt, 2002,
p.95). o mais interessante nesta suposta forma do
rei-filsofo de plato governar que a verdade ficaria
somente com ele mesmo, porque ela, em sua tota-
lidade, s pode ser contemplada individualmente,
na to famosa retirada do mundo em que arendt
insiste. Quando ela mostrada aos outros, ou seja,
levada ao murmurinho do resto do mundo, ela passa
a ser mais uma doxa, visto que no h uma marca
visvel que separe verdade de opinio (arendt,
2002, p. 96). o rei-filsofo de plato desejou que
ela aparecesse a todos os seus sditos, diferente
do que ela aparecia para ele. enquanto para ele a
verdade aparecia no cu reluzente iluminado pelos
raios do Sol que o filsofo havia descoberto ao sair
da caverna, para os demais ela deveria aparecer
como forma de um modelo, de um paradigma que
fosse a medida de todas as coisas. aqui, diferente
do sofista protgoras, que afirmava que o homem
era a medida de todas as coisas (e de certa forma
a doxa era um pouco isso), a verdade deveria s-
-lo, sobretudo medida e modelo da ao humana.
novamente aqui aparece de forma muito ntida a
desconfiana de arendt com plato, pois, caso a
vontade de plato se realizasse coisa que nunca
aconteceu a ao, que sempre fruto daquilo que
irrompe no novo deveria ser submetida verdade
fixa oferecida pela filosofia platnica. essa a ideia
da tirania da verdade, ou seja, o fato de a liberdade
poltica ficar comprometida em funo daquilo que
algum entende como verdade.
arendt tambm insiste no fato de que plato,
muitssimo diferente de dionsio (e no se esperava
outra coisa), no se cansa de abominar a violncia
e no lugar dela colocar outras formas de coero.
porm, tratando-se de plato, a coero apela para
a instncia do racional e, exemplo evidente disso,
so os mitos e alegorias que plato, incansavelmente
narra em suas obras. eles serviriam, segundo arendt,
como uma forma de coagir aqueles que, casualmente,
quisessem transgredir as medidas impostas pela ver-
dade do filsofo. o que interessante notar aqui,
que plato, sob este ponto de vista, mais ateniense
do que qualquer outro ao tentar pr a fala no lugar
da violncia. ele tornou-se certamente, bastante
descrente da persuaso a forma poltica de falar
aquela da qual o homem que j fora iluminado pelo
cu das ideias eternas e que j conhece a verdade,
no poder jamais, ser persuadido. porm, a per-
suaso era a forma mais indicada de se convencer
algum sobre algo quando no se queria fazer o uso
da fora e ele, embora desconfiado dela, a usava
quando lhe era conveniente, como quando contava
suas histrias de alm-alma, por exemplo.
Concluso
essa fidelidade de plato verdade, alm de
uma forma de proteger a vida do filsofo (sua bios
theoretikos em oposio a bios politikos), teria uma
suposta inteno poltica, visando a melhoria da
polis. as relaes entre plato e arendt, no entanto,
continuam um tanto obnubiladas e o fato que no
se consegue medir com exatido o quanto e em que
desgnio 8
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medida arendt admira plato e o quanto o critica.
aparentemente, em princpio esse um dado que
no teria muita importncia, mas ele merece maior
ateno no contexto em que est colocado, pois
arendt interpreta as questes polticas de plato
de forma diferente de alguns comentadores. uma
das maiores divergncias encontra-se no fato de
que ela se coloca na posio de crtica de plato
no sentido de afirmar que a poltica foi deixada em
segundo plano por ele. no entanto, se arendt faz
uso de A Repblica para tratar da poltica em plato,
agora sabe-se que julg-lo dessa forma, equivaleria
a ignorar muitas de suas obras de filosofia poltica
como As Leis e a prpria Carta Stima, citada por
arendt poucas vezes. pode-se ainda perguntar se a
interpretao da interpretao de arendt sobre pla-
to est correta (embora no tenha sido esse nosso
propsito); no entanto, basta lembrar da narrao
feita por ela mesma sobre o incio da separao entre
filosofia e poltica e das interpretaes que ela tece
com relao ao rei-filsofo da Repblica. aceitar
essa crtica de arendt a plato significa crer que h
uma separao entre filosofia e poltica e que ela
tenha surgido exatamente sob os olhos de plato.
no aceitar tais crticas implica somente livrar
plato desse encargo, mas no significa descartar
a ideia de uma separao entre filosofia e poltica.
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recebido em agosto de 2011.aprovado em outubro de 2012.
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