Associao Nacional de Histria ANPUH
XXIV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA - 2007
Alm da cidade: histria, etnografia, urbanismo e comunicao
Clara Luiza Miranda*
Resumo: A formao material e imaterial da esfera pblica global conduz a reavaliao da cidade como produto da manufatura. A logstica e as tecnologias da informao e da comunicao permitem processos de interveno territorial, que extrapolam o espao fsico tangvel. Estas promovem diversas situaes de reconhecimento e de abordagem. Para compreender os novos paradigmas que compreendam as mediaes simblicas e sociais da metapolis, aliam-se histria, geografia e urbanismo, a etnografia e a comunicao, que se soma s disciplinas que estudam a cidade, a fim de examinar criticamente a complexidade relacional entre as novas tecnologias e os tecidos sociais e urbanos.Palavras-chave: Cidade . Comunicao . Interdisciplinaridade
Abstract: The material and immaterial formation of the global public sphere drives the revaluation of the city as product of the manufacture. The logistics and the information and communication technologies enable processes of territorial intervention that supersede the tangible physical space. These promote several recognition situations and methods of approach. The history, geography and urbanism, ethnography and communication integrate their insights to work together looking for understand the new paradigms of the city, the metapolis and its symbolic and social mediations, in order to make critical analysis the complexity relational between the new technologies and the social and urban structure.Keywords: City . Communication . Interdisciplinarity
Onde estamos ns? Que, se os planos e desenhos que regulavam os nossos lugares habituais, as nossas redes os prolongam sem qualquer limite? Michel Serres.
Com o advento da sociedade da informao, a cidade moderna de morfologia
compacta e desenho urbanstico catalogado no vocabulrio acadmico e tcnico, est sendo
substituda por novas situaes territoriais urbanas cada vez mais complexas. Estas resultam
de dinmicas produtivas e comunicativas, que intensificam a eficcia do agenciamento do
controle apartado fisicamente na cidade, de modo que os problemas urbanos ultrapassam aos
da localizao, tendo em vista as incidncias locais de problemas transitrios e globais.
A separao entre o controle social da produo e os contextos locais se d
mediante novas formas de desterritorializao, que fundamentam as relaes sociais, * Programas de Ps Graduao em Artes e em Arquitetura e Urbanismo. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal do Esprito Santo. Doutora em Comunicao e Semitica pela PUCSP
simbologias e novos dispositivos scio-tcnicos. Estes mecanismos asseguram as conquistas
de mercado por tomada de controle, suplantando a colonizao ou o domnio territorial estrito.
A distncia no o meio predominante de ordenao do mundo global, em face
conquista do espao com o tempo, visando facilitar as comunicaes e superar as restries da
distncia. A compresso espao-tempo produto do aumento da mobilidade, da co-presena
local-global e da ubiqidade do mercado e das informaes, que abolem ou reduzem ao
mnimo as distncias. O problema de organizao social da distncia corresponde
maximizao das condies de interaes entre cidades atravs das redes mundiais.
Pierre Veltz (2000) e outros autores levantaram a hiptese de que com a
globalizao advm um arquiplago mundial que concentra as principais potencialidades
tecnolgicas mundiais, o poder financeiro, simblico e da mdia. A cartografia do arquiplago
reala a ciso entre cidades e entorno desplugado das redes, promovendo seleo e incluso
diferenciada nos processos de acumulao e na hierarquia entre matriz organizativa e
operao nas cadeias produtivas. O territrio do arquiplago articulado em escalas
intermitentes, materializa-se mediante espaos de acessibilidade controlada, que transformam
a desterritorializao global em isolamento corpreo da localidade daqueles que necessitam
de encaixe territorial.
A idia do arquiplago um pouco diversa, da definio de metpolis (ASCHER,
1998), mas no inteiramente controversa. A metpolis se baseia no princpio comunicacional
regente do mundo contemporneo e produz uma territorialidade geourbana, com alto grau
diversidade infra-estrutural e cognitiva, disseminando uma multiplicidade de acontecimentos
e espaos inter-relacionados. A metpolis ultrapassa a estrutura tradicional da cidade,
mediante o processamento e a combinao de informaes simultneas (tanto localizadas
quanto deslocadas no espao). Este aspecto relacional configura um territrio multimdia,
pois, se recorre a multimeios como forma de informao e formao urbana.
A metpolis converte-se em um hiperterritrio onde no h mais um fora para
circunscrever lugares (HARDT, 2000), uma vez que, todo o planeta est sob a
regulamentao do mercado e dos circuitos de controle telemticos. Isto incorpora a tendncia
de separao entre a estrutura fsica da cidade e os processos scio-culturais da urbanizao.
Em todo caso, as formas de cidade densa ou difusa e a urbanizao extensiva do
campo tm referenciais imprecisos, assim como, so indistintos os limites entre centro e
periferia. Por causa da interao entre produo e comunicao, a periferia no exerce apenas
a mera funo de fonte de recursos. Lugares de consumo, da circulao e de produo
interagem em rede mundial.
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A intensificao dos fluxos da matria-energia, da populao e do urbano gera
descodificaes que tendem a escapar para a periferia, descolando-se do centro, onde se
formam espaos intersticiais, que desenvolvem desequilbrio das capacidades de uso ou de
significao. Isso pode suceder tanto nas metrpoles, em pequenas cidades quanto nos
subrbios.
A indistino de limites submete as implicaes fsicas dos lugares
multiplicidade de espaos virtuais, com dados e determinaes intangveis, que desestruturam
a urbe e desreferencializam os processos de sociabilidade. Na impossibilidade de
circunscrio, o territrio urbano esfacelado, dificultando a sua designao e complicando o
planejamento urbano. Por isso, a necessidade de criao de conceitos no apenas
epistemolgica, mas antes um projeto ontolgico, pois, uma atividade que combina
inteligncia, comunicao e operacionalidade (NEGRI & HARDT, 2002).
Registram-se, todavia, inmeros neologismos para batizar as novas
territorialidades, tais como os termos: metpolis, hiperterritrio, cidade difusa, cidade
espraiada, urbanizao extensiva e rurubia. O gegrafo Joan Vicente Ruf (2003) diz que
entender e relacionar estes neologismos pode clarear a ocorrncia dessas situaes,
propiciando conhecimento dos velhos e dos novos territrios. As novas terminologias
pressupem o desaparecimento de modelos de urbanizao preexistentes, o esvaziamento do
espao pblico, a diversidade esttica e a irrupo da fico, mas, na verdade, configuram
diferentes urbes e tipos de sociabilidade, que desmancham, vampirizam, assumem ou
soterram as cidades tradicionais, diz Rufi.
No estgio inicial da globalizao e com o esgotamento do urbanismo moderno
foi incentivada uma terapia da recordao com o resgate de modelos culturais urbanos pr-
modernos, a difuso de programas de reconstruo da comunidade como unidade social.
Determinados discursos sobre a memria e a histria, nesse perodo, ocuparam o lugar das
utopias renegadas tanto como projeo do futuro quanto como modelos formais. A definio
das diretrizes da globalizao e o amortecimento do debate entre moderno e ps-moderno
apontaram outros vieses de realizao histrica.
Neste momento, devido incertezas dos sistemas, impactos das temporalidades
urgentes e transitrias e necessidade de adequao a situaes em constante mutao
instituram-se dinmicas produtivas e comunicativas, que prescindem do planejamento,
substitudo pela programao1. Isso implica em recurso a modelos precrios ou dinmicos que 1 O plano presume o domnio de um campo institucional, que dispe objetos e sistematiza enunciados. O projeto visa o momento da realizao. Programa uma concretizao provisria e fragmentria de objetivos. Os programas passam, o projeto permanece (CASTORIADIS, 1986).
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no colocam a durabilidade ou permanncia como metas, o contexto fsico e histrico pode
ser eventualmente desconsiderado. Por outro lado, os graves problemas da sustentabilidade
das decises de interveno demandam a coerncia das aes, considerando um tempo mais
dilatado e cclico. De todo modo, sempre em qualquer medida do tempo que se queira
considerar, parece ser sempre imprescindvel a continua reformulao dos mecanismos de
planejamento urbanstico diz Pedro Silva (2001).
A perplexidade dos arquitetos diante da crise das cidades tradicionais, assenta-se
no fato de que qualquer tentativa de reunificao parece anti-histrica, tal como ponderou
Marina Waisman. Se a crise da cidade tradicional uma conseqncia fsica da fragmentao
social e econmica, certamente, no vai ser com a pureza formal que se reverte essa
tendncia, visando reunificao fsica da cidade (WAISMAN, 1995). H quem comemore
a liberao dos modelos tradicionais e da camisa de fora da identidade, o caso do arquiteto
Rem Koolhaas (2004). Franoise Choay (2004) por sua vez, diz que se deve admitir sem
sentimentalismo o desaparecimento da cidade tradicional, porm, interrogar-se sobre a no-
cidade e sobre a natureza da urbanizao das sociedades avanadas.
Os dados duros, macro-sociais que descorporificam os lugares no mapa requerem
a investigao das descries scio-culturais, que captam processos especficos do lugar e as
possibilidades de ao em tais processos.
O novo espao pblico imaterial e virtual global incita a reavaliao da cidade e
da arquitetura, como produtos da manufatura, seus decorrentes impactos slidos, tteis,
hpticos, do quais provm o sentido da objetividade do mundo, como parte da condio
humana tal qual define Hannah Arendt (1995). As novas tecnologias da informao e da
comunicao e a logstica propagam processos de interveno territorial, que no se
restringem apenas ao espao fsico e fixo. As condies globais esto progressivamente
hbridas e multifacetadas, superpem flutuaes e mutaes, acumulando extratos de
realidade e de informaes alm da localizao sensvel. As conseqncias urbanas de tais
processos sintetizam diversas situaes de reconhecimento e de abordagem.
As informaes que circulam em bytes sobrepem-se rede fsica industrial,
suporte do movimento e da comunicao do urbanismo moderno. Mesmo assim, as redes das
novas tecnologias da informao e da comunicao reproduzem-se nos espaos intensivos da
conjuno das infra-estruturas e das capacitaes tcnicas que ocorrem nas cidades, que so
os motores da interdependncia do sistema inteiro.
Por sua vez, a produo flexvel estendida inclui fbricas, transportes, circulao,
portos, aeroportos, depsitos de produtos, campos de operao urbanos, suburbanos e rurais.
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As redes estendem-se por zonas cada vez mais remotas, alm da estrutura metropolitana que
domina a cena contempornea. Por esse motivo, a histrica oposio entre cidade e campo
confrontada pela urbanizao extensiva, que diz respeito no apenas a converso do espao
rural aos propsitos da produo flexvel, mas tambm ao alcance das novas tecnologias de
controle do agro-negcio. Estas tecnologias rompem com as caractersticas definidoras das
atividades primrias, industriais, comerciais e de servios.
A organizao espacial que coordena a disperso da produo flexvel depende da
estratgia de manobra (logstica), cuja finalidade dominar o espao a partir de qualquer
ponto. No necessrio controlar estritamente o espao pelo qual se visa propagao. Enfim,
os espaos dos fluxos e os espaos dos lugares no so excludentes, operam simultaneamente
produzindo situaes espaciais e sociais conjugadas.
Entre os territrios da operao rotineira e do consumo conspcuo, aparecem
espaos liminares, cidades de passagem ou cidades pontes. Estas se constituem dispositivos
que interligam fisicamente ou logicamente em rede os vrios sistemas ou suas partes, lugares
que funcionam como zonas de encontro entre elementos globais e locais, so espaos de
coexistncia e de transformao. Em oposio caracterstica espectral da cidade
contempornea e de seus habitantes, assinalada por Paul Virilio, tais zonas de transio so
potencialmente experimentais de novos elementos culturais e de novas regras de atuao.
H, alm destes, os espaos residuais, identificados com a pobreza, margem dos
densos fluxos comunicacionais. Para Antonio Negri (2003) a pobreza no to somente
misria, mas, o desejo, a busca de inmeras coisas. Sua abertura ao possvel, a mestiagem, a
migrao modificam o mundo. Por isso, consideram-se o nomadismo e a miscigenao as
primeiras prticas ticas globais (NEGRI & HARDT, 2002). Milton Santos por seu turno diz
que a fora dos fracos seu tempo lento.
Como os espaos so criados por prticas sociais, possvel identificar
agenciamentos ligados s segmentaes e hierarquias de poder. Nas redes materiais e
imateriais multiplicam-se senhas e protocolos de acesso s informaes e aos lugares. Isso
contribui para a exigncia de se entender como o global se dispe nas zonas de liminaridade e
de multiculturalidade das cidades e igualmente, na segmentao de pblicos miditicos.
Como chegar globalizao significa, para a maioria, aumentar o intercmbio com os outros
mais ou menos prximos, ela serve para aumentar nossa compreenso sobre suas vidas
(CANCLINI, 2003).
Para poder reconhecer as diversas camadas que configuram os territrios
culturais, pode-se recorrer a uma imerso nos mbitos dos discursos e das subjetividades
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coletivas que compartilham espaos de contato. O papel da etnografia, como uma prtica
antropolgica de campo, torna-se relevante para o levantamento de informaes dos
fenmenos da cultura, sua interpretao, a traduo de sua complexidade e de seus focos e,
ainda, no mapeamento de situaes crticas.
A tarefa do etngrafo comea pelo reconhecimento de que as relaes econmicas
no so determinantes exclusivas das transformaes urbanas, e, mormente, pela estima da
alteridade. O etngrafo maneja mtodos de anlise que apreendem teias de significao,
estabelecidas sob comunicaes simblicas, sob a lgica do senso comum e do verossmil.
Aspectos do comportamento, formas de apropriao do espao tornam-se material e mediao
para a anlise da cultura que envolve determinado objeto.
As tcnicas de estudo etnogrficas tem sido um recurso de abordagem da cidade e
da arte, manifestaes constituintes da cultura. Xavier Costa (1998) defende a figura do
arquiteto etngrafo desapegado dos programas ideolgicos estritamente disciplinares, de seus
impulsos colonialistas e do confinamento do escritrio, apresentando-se disposto para
interpretar a complexidade cultural contempornea como fenmeno sem precedentes.
No campo da arte, a etnografia torna-se paradigma de refletividade e de leitura
autoconsciente da cultura, tanto textual quanto esttica. Hal Foster (1996) menciona que entre
os atrativos que o mtodo etnogrfico oferece aos artistas, destacam-se sua reputao de
cincia da alteridade; a abordagem da cultura como campo de referncia ampliado; e a sua
condio contextual, compartilhada entre muitas prticas e pensada de modo interdisciplinar.
A etnografia penetra no campo da arte com a arte conceitual e da performance, com a
explorao do corpo e das condies espaciais de percepo, que ampliam as limitaes do
formalismo e do purovisibilismo, indicando alternativas de se pensar e expressar o contato
corpreo imediato e renovado com o mundo e os afetos.
A indissociabilidade entre comunicao, produo flexvel e as novas
territorialidades incluem a comunicao entre as disciplinas que estudam a cidade, junto
geografia, as cincias sociais, a histria e o urbanismo. A situao contempornea da cultura e
histria do local, sua morfologia urbana devem ser desdobradas em tramas multidimensionais
(MOMPART, 1998) e inclusivas: forma, transformao e informao, afora a cidade ser
interface dos processos comunicacionais e a necessidade de interpretao da batalha dos
signos que se trava nos espaos real e virtual.
Josep Mompart afirma que compreender o territrio sob a perspectiva da
comunicao, implica em encarar o entrelaamento e a permutao entre a vida urbana e as
tecnologias da informao e da comunicao. Estas tecnologias justificam-se na esfera
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pblica, ampliada e adensada por elas, constituindo-se mediaes na construo simblica e
social da realidade.
As novas tecnologias da informao e da comunicao possibilitaram a
transformao das formas de organizao produtiva e social e intensificaram as comutaes
globais. O territrio interface destes processos. As inovaes tecnolgicas no se limitam s
estruturas (hardware) e programao (software), relacionam-se, principalmente, as suas
potencialidades operativas, evidenciando o papel produtivo do consumidor. A rede atualiza a
virtualidade produtiva e cooperativa constituda pela sociedade, interrelacionada pelo
territrio. E esta uma dimenso que apenas comea a ser explorada, a interdisplinaridade e a
multidisplinaridade so imprescindveis neste empreendimento conceitual e operativo.
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