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Universidade Federal de SergipeNcleo de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais
Mestrado em Sociologia
A Reafricanizao da Capoeira em Aracaju: identidades em jogo
Alvaro Machado de Andrade Jnior
So Cristvo/SEMaio/2005
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Universidade Federal de SergipeNcleo de Ps-Graduao em Cincias Sociais
Mestrado em Sociologia
A Reafricanizao da Capoeira em Aracaju: identidades em jogo
Dissertao apresentada ao Ncleo de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociaisda Universidade Federal de Sergipe, para aobteno do Ttulo de Mestre em Sociologia,
sob a orientao do Prof. Dr. RogrioProena Leite.
So Cristvo/ SE
Maio/ 2005
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Universidade Federal de SergipeNcleo de Ps-Graduao em Cincias SociaisMestrado em Sociologia
ALVARO MACHADO DE ANDRADE JNIOR
A Reafricanizao da Capoeira em Aracaju: identidades em jogo
Banca Examinadora
____________________________________
Dr. Prof. Rogrio Proena Leite Orientador. CECH-UFS
___________________________________________
Dr. Prof. Osmundo S. de Arajo Pinho Examinador. UCAM
__________________________________________Dr. Prof. Csar Ricardo S. Bolao Examinador. CECH-UFS
So Cristvo - SE.
Maio/2005
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Negro Preto.Eu sou negro!
Meus olhos so negros.Meus filhos so negros.
Sou todo, absolutamene preto.Preto! Preto! Preto!
Meus sonhos so pretos...Minha pele preta como a noite preta e bela.
Toda iluminada de fricas!
Aloysio Coutinho Neves Ferreira. (1959 1998)Mestre Maca
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Dedicatria
Dedico essa dissertao a todas as pessoas que lutam contra o preconceito racialno mundo e visam ao fim das diversificadas formas de desigualdadessocioculturais, que tanto fragilizam, oprimem e desumanizam o ser no planeta.
Desta forma, esse trabalho dedicado tambm aos meus alunos e ex-alunos doGrupo Mocambo de Capoeira Angola, bem como ao Mestre Puma (GrupoResistncia), ao Mestre Lucas (Grupo Os Molas), ao Mestre Ren Bittencourt(Associao de Capoeira Angola Navio Negreiro ACANNE) e sua estimadafamlia e aos camaradas do Grupo Aba de Capoeira Angola - Wellinghton,Robson Martins e Alex.
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Agradecimentos
Aos meus pais queridos lvaro e Auxiliadora pela dedicao e amor ofertado
todos os dias.
A minha linda Marisa, filha querida, e aos meus lindos irmos Miguel, Any e Alex
pela amizade, respeito e amor de todos.
Ao Prof. Dr. Rogrio Proena, orientador dessa dissertao, que atravs do seuolhar sociolgico e de suas sugestes sempre lanou uma luz para visualizarmos
mais claramente o caminho a seguir nesse trabalho.
Aos profs. do Mestrado em Sociologia da UFS pela valiosa contribuio
acadmica ao longo do mestrado.
Aos funcionrios Conceio e Rondinelson do Ncleo de Ps-Graduao pela
ateno e significativos servios prestados.
Aos colegas do Mestrado, em especial, a amiga Edilene, Dnio Papai e
Humberto pela camaradagem e discusses dentro e fora da UFS.
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Sumrio
Introduo 10
Captulo I
1. O Jogo das identidades na capoeira 19
1.1. Consideraes iniciais e notas sobre o referencial terico 19
1.2. Memria e tradio na capoeira: a ritualizao da identidade 27
Captulo II
2. A trama da desafricanizao do jogo de capoeira 37
2.1. A esportivizao da vadiao 37
2.2. Capoeira: uma ginstica nacional 49
2.3. Capoeira: um desporto brasileiro 62
Captulo III
3. Capoeira de Angola: uma herana de africanos no Brasil 68
3.1. A Bahia no imaginrio dos capoeiras 68
3.2. Capoeira Angola: resistncia e cultura negra 76
3.3. Capoeira de Angola em Aracaju: redescobrindo a identidade cultural afro-
brasilreira 80
3.4. Mestre Maca: capoeirista, poeta e andarilho cigano 89
3.5. Grupo Aba: 10 anos de luta e resistncia de cultura negra 98
Consideraes Finais 109
Referncias Bibliogrficas 113
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Resumo
Esta dissertao tem como escopo examinar, no mbito da cultura, a relao entre
o jogo de capoeira e a identidade. Nesse sentido, a capoeira concebida como
uma tpica manifestao da cultura popular que, nos ltimos trinta anos, vem
passando por um longo processo de transformaes de seus cdigos e rituais.
Com efeito, no primeiro captulo, tratamos do referencial terico para pensar nonexo que tentamos estabelecer, fazendo uso de conceitos de cientistas sociais da
atualidade, tais como Stuart Hall, Nestor Canclini, e Anthonny Giddens. No
segundo captulo, investigamos o processo de desafricanizao do jogo da
capoeira e a inveno da identidade nacional a partir da apropriao desse
prprio jogo-luta enquanto cone representativo da nossa nacionalidade. Desta
forma, foi fundamental a interpretao de documentos e textos de autores do final
do sculo XIX e princpios do sculo XX que propuseram a transformao do jogo
de capoeira em esporte nacional. No terceiro captulo, no qual fizemos a pesquisa
emprica, tentamos uma breve reconstruo histrica do jogo de capoeira em
Aracaju, entrevistando alguns dos capoeiristas negros que reafricanizam a
capoeira nessa cidade a partir do resgate da tradio da Capoeira de Angola e
da recriao de uma identidade afro-brasileira.
Palavras-chaves: afro-descendente, cultura, capoeira, identidade, negro, reafricanizao.
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Abstract
That dissertation has as mark to examine, in the ambit of the culture, the
relationship between the capoeira game and the identity. In that sense, the
capoeira is conceived as a typical manifestation of the popular culture, that in the
last thirty years it is going by a long process of transformations of your codes and
rituals. With effect, in the first chapter we treated of the theoretical referencial to
think in the connection that we tried to establish, making use of social cientists' ofthe present time concepts; such like Stuart Hall, Nestor Canclini, and Anthonny
Giddens. In the second chapter of that dissertation we investigated the process of
desafricanizao of the game of the capoeira and the invention " of the national
identity starting from the appropriation of that own game-fight while representative
icon of our nationality. This way, fundamental it was the interpretation of
documents and authors' of the end of the century texts XIX and beginnings of the
century XX that proposed the transformation of the capoeira game in national
sport. In the third chapter, in which we made the empiric research, we tried anabbreviation historical reconstruction of the capoeira game in Aracaju, interviewing
some of the black capoeiristas that reafricanizam the capoeira in Aracaju, starting
from the " ransom " of the tradition of the Capoeira of Angola and of the recriao
of an Afro-Brazilian identity.
Word-keys: afro-descending, culture, capoeira, identity, black, reafricanizao.
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Introduo
A temtica da identidade tem mobilizado nas pesquisas contemporneas
um enorme esforo por parte dos estudiosos das cincias sociais. Essa
constatao emprica nos motivou a pensar na construo de um problema de
pesquisa que articulasse esse tema com o jogo-luta de capoeira, uma das
expresses mais significativas da cultura negra no Brasil, a qual fui iniciado em
1978 pelo Grupo Os Molas, em Aracaju.Com efeito, a escolha do jogo de capoeira para objeto de investigao
no se configura numa forma causal ou arbitrria de empreender uma pesquisa,
tendo em vista a nossa participao direta no universo das rodas de capoeira e
batizados1, cursos, campeonatos, formaturas, oficinas e outros eventos do gnero
tanto em Aracaju, onde desenvolvemos a pesquisa de campo, quanto em outras
regies do pas. Com efeito, a oportunidade da pesquisa do Mestrado em
Sociologia nos motiva a olhar a capoeira com uma viso diferente daquela com a
qual estamos habituados no cotidiano da vida.
No jogo da capoeira, luta e dana se mesclam com toques de berimbaus,
pandeiros, atabaque e agog, sempre acompanhados por um rico repertrio de
cantigas tradicionais e outras improvisadas pelos prprios capoeiristas na hora da
roda. Essas cantigas podem ser de louvaes, de desafios, de imprecaes de
males ou sobre algumas situaes concretas da vida real, do prprio cotidiano das
pessoas, como por exemplo, o conflito racial, as desigualdades sociais ou o amor
por uma linda donzela. Talvez no haja na atualidade em todo o territrio
1O batizado de capoeira um dos rituais de passagem da Capoeira Regional, estilo criado pelo Mestre Bimba(Manoel dos Reis Machado) no final da dcada de 1920 em Salvador. Na atualidade, o ritual do batizadoconsiste basicamente no recebimento da primeira graduao dos alunos (cordo, corda ou cordel, dependendodo sistema adotado pelo grupo de capoeira. Segundo o Mestre Xaru (Hlio Jos Bastos Carneiro deCampos), que foi formado pelo Mestre Bimba no final da dcada de 1960, o batizado: um momento degrande significado para o aluno, depois de ter aprendido toda a seqncia, encontra-se apto para jogar pelaprimeira vez na roda. Itapuan, ex-aluno, retrata o batizado da seguinte maneira: O batizado consistia emcolocar em cada calouro um Nome de Guerra, o tipo fsico, o bairro onde morava, a profisso, o modo de sevestir, atitudes, um dom artstico qualquer, serviam de subsdios para o apelido. Cf.http://www.svn.com.br.capoeira. Ainda sobre o batizado na capoeira Cf. ITAPUAN, Raimundo Csar Alvesde Almeida. A Saga do Mestre Bimba. Ginga Associao de Capoeira. Salvador. 1994, pp. 63-66.
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brasileiro, depois do jogo de futebol, outra prtica cultural to disseminada no pasquanto a capoeira. A presena dessa manifestao multifacetada na sociedade
brasileira registrada desde o sculo XVII, poca das invases holandesas no
nordeste (VIEIRA, 1995, p. 6). Desta forma, podemos dizer que o jogo de
capoeira faz parte da prpria histria do Brasil, e assim como outras
manifestaes da cultura popular, o Samba e o Candombl2, por exemplo, vm
passando por um processo de profundas mudanas em sua estrutura e
organizao social ao longo dos trs ltimos sculos. Paula Montero (1999), ao
analisar o processo de transformao da capoeira em cone nacional escreve que:
Muitos autores j demonstraram que a cultura das classes populares amatria-prima por excelncia da construo da nacionalidade nos Estadosgerados nesses ltimos 150 anos. Com efeito, embora esse tipo de estruturaburocrtica se inaugure no campo jurdico e da poltica, no campo da culturaque ele ganha espessura. Isto porque, para que os Estados nacionais selegitimem, preciso que eles constituam culturalmente seu povo,homogeneizando o territrio e universalizando as particularidades locais. Esseprocesso de construo simblica da nacionalidade, que procura incluir e dar umsentido nobre ao modo de vida das camadas pobres tradicionalmente obra dosintelectuais. Algumas tentativas foram feitas, j no final do sculo paradescriminalizar capoeiras e batuques, e torn-los cones de brasilidade.(p.3)
Os intelectuais, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, tinham um projeto
para transformar a capoeiragem3 em gynstica nacional, um esporte que
contribusse para aperfeioar e reunir mais um trao da fisionomia nacional
(Filho, 1979). Portanto, para esse projeto de aperfeioamento da fisionomia
brasileira, os aspectos considerados rudes e brbaros da capoeira negra deveriam
ser eliminados inteiramente, tendo em vista que os mesmos eram considerados,
pela elite pensante do Rio de Janeiro, um modo inferior e desprovido de
contedos ou formas nobres, que pudessem representar a identidade nacional.
Segundo o antroplogo Munanga (1999):
2Para um estudo sobre o Candombl, Cf. DANTAS, Beatriz Ges. Vov Nag e Papai Branco: usos e abusosda frica no Brasil. Editora Gral. Rio de Janeiro. 1988.3Capoeiragem era o termo pelo qual a imprensa e autoridades comumente se referiam prtica da capoeirano final do sculo XIX no Brasil. Cf. Alexandre Mello Moraes Filho. Tipos de Rua: capoeiragem e capoeirasclebres. In: Festas e Tradies Populares no Brasil. 1979.
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Como acontece geralmente na maioria dos pases coloniais, a elite brasileira dofim do sculo XIX e incio do sculo XX foi buscar seus quadros de pensamentona cincia europia ocidental tida como desenvolvida, para poder, no apenasteorizar e explicar a situao racial de seu pas, mas tambm, e, sobretudo,propor caminhos para a construo de sua nacionalidade, tida comoproblemtica por causa da diversidade racial.( p. 50)
Portanto, no diagnstico terico racial dos precursores das cincias sociais
do Brasil Silvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues -, os negros e
seus descendentes, assim como os ndios e a amalgama entre os mesmos, so
classificados como inferiores dentro de um quadro de anlise evolucionista em
que a raa branca est numa posio superior. Nina Rodrigues (1977), embora
tenha reconhecido os servios prestados pelo negro civilizao brasileira,
classifica-o numa ordem inferior ao branco. Segundo ele:
A raa negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestveisservios nossa civilizao, por mais justificadas que sejam as simpatias de queo cercou o revoltante abuso da escravido, por maiores que revelem osgenerosos exageros dos seus turiferrios, h de constituir sempre um dosfatores da nossa inferioridade como povo.(RODRIGUES, 1977, p. 7).
Influenciados profundamente pelos paradigmas dessas teorias raciais que
consideram os elementos da cultura negra primitivos, os intelectuais que
inventaram a transformao da capoeira em esporte nacional, alm de propor um
mtodo para seu ensino, recriam uma nova origem para esse jogo. Conforme Reis
(1996), aqueles intelectuais brasileiros de fins do sculo XIX e princpios do XX:
[...], imbudos da responsabilidade de construir uma identidade para a nao edot-la de smbolos que a particularizassem em relao s demais, tendem aapropriar-se de determinadas manifestaes culturais negras, e,
deliberadamente, buscam desafricaniz-las, embranquecendo-assimbolicamente. [grifo da autora].(REIS, 1996, p. 38)
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Em meio a esse processo simblico de embranquecimento da capoeira4
eda sua apropriao enquanto cone de nossa nacionalidade, algumas vozes
pedem a sua criminalizao inconteste dessa atividade de vadios e desordeiros
que infestam as cidades com suas maltas que causam terror e pnico na
populao pacfica5. As maltas de capoeiristas, no Rio de Janeiro dos fins do
sculo XIX e incio do XX, chegavam a ser constitudas por at cem homens
espalhados por suas freguesias, como eram conhecidos os bairros de atuao
das atividades criminosas dos capoeiras. Em seu livro A Negregada Instituio: os
capoeiras no Rio de Janeiro 1850-1890, Soares ( 1994) analisa a formao e o
desenvolvimento das duas maiores maltas6 de capoeira que atuavam na
clandestinidade no Rio de Janeiro, ora trabalhando para o partido republicano, ora
para os monarquistas. Nesse processo de criminalizao da capoeiragem, o
Cdigo Penal da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, em seu Decreto 487 de
outubro de 1890 estabeleceu punies no Captulo XIII para os capoeiras:
Dos Vadios e CapoeirasArt. 402. Fazer nas ruas e praas pblicas exerccios de agilidade
corporal conhecidos pela denominao de capoeiragem; andar em correiriascom armas ou instrumentos capazes de produzir uma leso corporal,provocando tumulto ou desordens, ameaando pessoa certa ou incerta, ouincutindo temor de algum mal:
Pena De priso celular de dois a seis meses.Pargrafo nico. considerada circunstncia agravante pertencer
o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes ou cabeas se impor a penaem dobro.7
4Para uma compreenso do processo de embranquecimento da capoeira Cf. FRIGRIO, Alejandro. Capoeirade Arte Negra a esporte branco. In: Revista Brasileira de Cincias Sociais. AMPOCS. N. 10. v. 4. 1989.Nesse artigo, o autor investiga o processo de criao e desenvolvimento da Capoeira Regional e de sua
migrao para as classes mdia e alta de Salvador, concluindo que a Capoeira Angola representaria a artenegra enquanto a regional, o esporte branco.5 Cf. BRETAS, Marcos Luiz. Navalhas e Capoeiras: uma outra queda. Jornal Muzenza. Ano 4. N 34.Curitiba. 1998. pp. 4-11.6Ver sobre as maltas no Rio de Janeiro, Lbano, Carlos Eugnio (2004). A era de oura da capoeira. RevistaNossa Histria. Ano. I. N 5. Fundao Biblioteca Nacional. Ainda sobre a formao e o desenvolvimentotambm das maltas de capoeira no Par, consultar LEAL, Luiz Augusto Pinheiro (2002) Deixai a poltica dacapoeiragem gritar: capoeiras e discursos de vadiagem no Par. Dissertao de Mestrado em Histria.UFBA. Cf. tambm D7Cf. VIEIRA, Luis R. (1998) O jogo de capoeira: cultura popular no Brasil. 2 ed. Sprint. Rio de Janeiro. p.93.
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Todavia, a partir da dcada de 1930, o processo de criminalizao do jogoda capoeira chega ao fim, emergindo com bastante fora, agora, em Salvador, um
novo movimento que objetiva a legalizao e o reconhecimento da capoeira dentro
da sociedade. Esse movimento, segundo Reis (1996), liderado pelo Mestre Bimba
e sua Capoeira Regional8 e, respectivamente, pelo Mestre Pastinha com a
Capoeira Angola, elabora duas propostas esportivas e diferentes de incluso do
negro na sociedade brasileira.
Deve-se ter em mente nessa dissertao que ao nos referimos
Capoeira Angola, estamos nos referindo forma considerada mais tradicional de
se fazer capoeira, como era praticada nos barraces erguidos nos bairros
populares ou nos casares, ruas e largos de Salvador.
Esse estilo de capoeira enfatiza os aspectos mais ldicos do jogo, bem
como atribui maior importncia aos rituais de dana, na qual a maioria das
tcnicas corporais desenvolvida em plano baixo e a meia altura, diferentemente
do que acontece na Capoeira Regional, que alm de enfatizar movimentos altos,
exige tambm uma caracterstica marcial bastante veloz. Nos captulos dois e trs
desse trabalho, a questo das diferenas de propostas, rituais e tcnicas de cada
estilo ser abordada com maior profundidade.
Para efeitos metodolgicos, o termo cultura negra nessa dissertao
baseia-se na definio dada por Myrian Santos (1999)9, segundo a qual:
Por cultura negra no compreendo um conjunto de valores, hbitos e prticascom contedos fixos facilmente identificveis, ou com uma nica origem, seja elaafricana, ibrica ou brasileira, pois a cultura negra, como qualquer outra, alm derelacional, mutvel e ecltica, muitas vezes sobrevive apenas como subtexto. Meuponto que embora sem caractersticas fixas e imutveis h valores, hbitos esentimentos presentes em expresses musicais e corporais que podem serassociados a determinados grupos sociais ao longo da histria e alm das
fronteiras poltico-geogrficas. Se h uma cultura negra, esta pode ser
8A Capoeira Regional prioriza uma forma na qual os capoeiristas utilizam uma seqncia de golpes e contra-golpes de projees (bales) no utilizados pela Capoeira Angola. Mestre Bimba criou tambm toquesespecficos de berimbau para esse estilo de capoeira, alm de fazer uso de cerimoniais de batizado e formaturade alunos at ento desconhecidos pelos capoeiristas.9 Nesse artigo, a autora analisa a presena da cultura negra nas Escolas de Samba do Rio de Janeiro,objetivando analisar o processo de mudanas no carnaval carioca e o relacionamento atual das escolas com aIndstria Cultural, com os empresrios, bicheiros e traficantes de drogas.
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reconhecida no em sua origem, mas na reconstruo contnua de formas deexpresses culturais e formas sociais institucionalizadas. ( pp. 44-45).
Esse conceito relevante para essa investigao sociolgica medida que
a utilizao do termo pode revelar algumas caractersticas importantes que
compem a organizao e o sentido do jogo da capoeira. Acrescente a isso, o fato
de sua perspectiva histrica que alcana determinados grupos sociais em busca
de sua identidade cultural na sociedade recente. Feitas essas primeiras
consideraes, o objetivo dessa dissertao est assentado na anlise do
processo de Reafricanizao do jogo de capoeira em Aracaju, no perodo
compreendido entre 1985 a 2004. Sua diretriz central o resgate da Capoeira
Angola, enquanto uma forma singular da cultura negra e a recriao da identidade
afro-descendente reivindicada pelos sujeitos sociais entrevistados, que atribuem
frica o local de origem da capoeira e dos seus ancestrais negros. Nesse sentido,
queremos analisar de que forma essa identidade construda. Quais as
estratgias polticas e simblicas que do legitimidade e autenticidade ao
movimento reafricanizador da capoeira em Aracaju? Essas so algumas das
questes que tentaremos compreender e explicitar nessa pesquisa.
Diante de um problema dessa natureza, ou seja, da realizao depesquisa baseada na observao participante de um objeto da cultura popular
negra, elaboramos nosso quadro terico, seguindo inicialmente as orientaes de
Canclini (1993), segundo o qual: Mais do que um quadro terico adequado para
anlise da cultura, interessa-nos um quadro que nos ajude na explicao das
desigualdades e dos conflitos entre os sistemas culturais.(p. 18). Nesse caminho
de orientaes do referencial terico para nossa pesquisa sociolgica,
imprescindvel foi a aplicao do conceito de tradio inventada de Eric
Hobsbawm. Para ele:
Por tradio inventada, entende-se um conjunto de prticas, normalmenteregularizadas por regras tcitas ou abertamente aceitas; tais prticas, denatureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas decomportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, umacontinuidade em relao ao passado (HOBSBAWM, 1997, p. 9).
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Dois outros autores se mostraram fundamentais para a anlise ecompreenso do dilema da identidade na sociedade ps-moderna e da relao
que pretendemos estabelecer entre as identidades e o jogo de capoeira. O
primeiro o socilogo jamaicano Stuart Hall, reconhecido internacionalmente
pelos seus ensaios publicados e suas conferncias nos centros universitrios de
diversos pases ao tratar de temas como a identidade, a raa, etnicidade e nao
na sociedade contempornea. Desse estudioso, escolhemos o conceito de
identidade cultural, o qual desenvolve uma interpretao da identidade do sujeito
ps-moderno. Para ele, o sujeito, na sociedade recente, assume diferentes
identidades medida que mantm relaes com outros sistemas de identificao
e representao na sociedade. Nesse sentido, nosso terico dir que:
A identidade totalmente segura, completa, unificada e coerente uma fantasia.Ao contrrio, medida que os sistemas de significao e de representaocultural multiplicam-se, confrontamo-nos com uma multiplicidade difusa, confusae fluida de identidades possveis, podendo nos identificar com cada uma delas ao menos temporariamente (HALL, 1998, pp. 11-12).
Nosso segundo autor Anthony Giddens, socilogo britnico que tambm
ocupa uma posio privilegiada no campo internacional das Cincias Sociais.Desse terico, utilizamos o conceito de tradio para pensar as transformaes
que se desenvolvem no jogo da capoeira. Pretendemos com esse conceito de
Giddens compreender como a tradio e a modernidade se inserem na capoeira e
de que modo cada um desses aspectos interfere na fronteira do outro, bem como
que tipo de relao se pode estabelecer com a tradio na sociedade atual e
como isso acontece na capoeira. Para ele: A integridade da tradio no deriva
do simples fato da persistncia sobre o tempo, mas do trabalho contnuo de
interpretao que realizado para identificar laos que ligam o presente com o
passado (Giddens, 1997, p. 82). Foi importante tambm para a compreenso do
fenmeno observado a concepo de Giddens (1991; 1997) acerca da
modernidade e da ps-modernidade, de sua interpretao sobre as
conseqncias dessa ordem mundial para a prpria identidade do sujeito.
Utilizamos tambm a concepo de cultura hbrida de Canclini (1993) que
investiga o processo de mudanas da cultura popular a partir dos intercmbios
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com outros circuitos culturais urbanos. Nesse sentido, a viso desse autor sobre oprocesso de transnacionalizao da cultura e dos entrecruzamentos gerados pela
hibridizao cultural uma interpretao da qual no podemos prescindir nessa
pesquisa.
Pretende-se com essa dissertao contribuir para o conhecimento
acadmico acerca do jogo de capoeira em Aracaju, apresentando dessa forma
uma anlise histrico-sociolgica dessa manifestao cultural e dos processos
formadores das identidades. A pesquisa de campo foi realizada em Aracaju,
durante os anos de 2003 e 2004, na qual entrevistamos os principais integrantes
dos grupos de capoeira responsveis pelo processo de Reafricanizao desse
jogo nesta cidade. Relevante tambm foi o nosso intercmbio com o Mestre Ren
Bittencourt em Salvador que nos possibilitou um contato direto com a ACANNE
Associao de Capoeira Angola Navio Negreiro em Salvador, onde participamos
de dois encontros internacionais de Capoeira Angola nos anos de 2002 e 200410.
Feitas essas consideraes, essa dissertao est dividida em trs
captulos, combinados dentro de uma lgica seqencial que permite transitar de
um para o outro atravs de suas prprias fronteiras. Desta forma, no primeiro
captulo, procuramos dialogar com nosso referencial terico, tentando estabelecer
um nexo entre o pensamento dos autores e o jogo da capoeira. No segundo
captulo, intitulado A trama da desafricanizao do jogo de capoeira, tratamos de
uma reviso histrico-bibliogrfica que inclui autores do final do sculo XIX e incio
do sculo XX que tinham por objetivo a transformao da capoeira em esporte
nacional. Mostraremos, portanto, o que est por trs dessa tentativa de
esportifizar a capoeira e como reagem alguns capoeiristas do Centro Esportivo de
Capoeira Angola, fundado pelo Mestre Pastinha, em 1941, em Salvador. Por
ltimo, no captulo terceiro, desenvolvemos a pesquisa emprica, no intuito de10 Esses eventos foram realizados na sede da ACANNE, situada na Rua do Sodr, 48, bairro Dois de Julho.No 6 Encontro dos Guardies da Capoeira Angola da Bahia realizado entre os dias 20 e 24 de maro de2002, o homenageado principal foi Washington Bruno da Silva Mestre Canjiquinha. No 7 Encontro dosGuardies da Capoeira Angola da Bahia tambm realizado na sede da ACANNE entre os dias 23 a 28 demaro de 2004, o homenageado principal foi o Mestre Paulo dos Anjos. Nesses encontros, foram realizadasaulas prticas de Capoeira Angola, toques de berimbaus, mostra de vdeos e fotografias alm de rodas com apresena de mestres velhos da Bahia como Joo Pequeno, Bigodinho, Gerson Quadrado, Pel da Bomba,Felipe de Santo Amaro, Virglio do KM 17, Boca Rica e alguns dos novos mestres tais como ValmirDamasceno, Ciro Rasta, Boca do Rio, Satlite, Amncio e Lazinho.
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descobrir a gnese do processo de reafricanizao do jogo de capoeira emAracaju. Nesse captulo, tentamos responder a algumas questes, tais como quais
os mestres e grupos de capoeira que revitalizam a Capoeira Angola e recriam uma
identidade afro-brasileira.
Como recursos metodolgicos de anlise, alm de entrevistas, anotaes
em dirio de campo, consultas em arquivo pblico e em jornais particulares,
recorremos tambm utilizao de dados iconogrficos11, objetivando identificar
nos mesmos alguns aspectos significativos que nos auxiliem na anlise da
reconstruo histrica do processo de reafricanizao da capoeira em Aracaju.
Dentro desse processo de anlise de pesquisa, assistimos a diversos vdeos de
Capoeira Angola e de Capoeira Regional produzidos independentemente por
alguns grupos de capoeira como Grupo Palmares da Bahia, Grupo Mocambo,
Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, Grupo Resistncia, Grupo Novos Irmos,
Grupo Aruand e Grupo Os Molas, assim como produes em vdeo sobre
capoeira, patrocinados com o apoio da Petrobrs, como por exemplo Pastinha:
uma vida pela capoeira12, filmado no Brasil e nos Estados Unidos. Esse
documentrio foi dirigido por Antnio Carlos Muricy em 1999. Em termos de vdeo,
tambm foi imprescindvel o documentrio No fio da Navalha exibido pelo
programa de televiso Sport TV em julho de 2003, assim como o Vdeo
Capoeiragem na Bahia, documentrio produzido pela rede de televiso TV
Educativa da Bahia.
11 Para ver tambm outras imagens de capoeira de Pierre Verger, Cf. o endereo eletrnico: http://www.PirrerVerger.org.12 Esse documentrio registra cenas da capoeira da atualidade e dos Mestres Pastinha, Waldemar daLiberdade, Bimba, Trara, Caiara, entre outros praticantes do jogo nas dcadas de 1950 e 1960 em Salvador,bem como os depoimentos de Pierre Verger, Caribe, Jorge Amado e D. Amlia (esposa do Mestre Pastinha).
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CAPTULO I
1. O Jogo das Identidades na Capoeira
1.1. Consideraes iniciais e notas sobre o referencial terico
A abordagem da temtica da identidade cultural de Hall (1998) uma
advertncia arrebatadora da atual realidade das sociedades modernas.A identidade, na atual modernidade, no est mais ancorada em um porto
seguro: a paisagem que desenhava solidez e certeza de si mesma e do
mundo social e cultural agora fragmentos de runas que se dissolveram,
assumindo outra forma distinta daquela encontrada na sociedade tradicional. Isso
resulta, ento, na crise de identidade moderna, que para Hall (1998) o
conjunto de duplos deslocamentos(p.9) que descentralizam o sujeito no mundo
globalizado.
Corroborador da idia que advoga uma concepo de que no temos mais
uma identidade fixa ou essencialista na sociedade atual, Hall escreve que a
identidade do sujeito ps-moderno:
[...] tornou-se uma festa mvel: formada e transformada continuamente emrelao s maneiras pelas quais somos representados e tratados nos sistemasculturais que nos circundam [...] Ela histrica, no biologicamente definida. [...] Aidentidade totalmente segura, completa, unificada e coerente uma fantasia. Aocontrrio, medida que os sistemas de significado e de representao culturalmultiplicam-se, confrontamo-nos com uma multiplicidade difusa, confusa e fluidade identidades possveis, podendo nos identificar com cada uma delas ao menostemporariamente (HALL, 1998, pp. 11-12).
A argumentao desenvolvida pelo autor aponta para o impacto do
fenmeno da globalizao no processo de ressignificao da identidade do sujeito
na alta modernidade. Essa identidade ampliada e transformada por processos
complexos de interao e identificao dos sujeitos no mundo cultural e social.
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Assim sendo, a concepo de identidade do sujeito ps-moderno para ele umaidentidade mais aberta, fluida e hbrida.
Para demonstrar um exemplo de como o sujeito assume identidades
diferentes ao longo de sua prpria histria, gostaramos de transcrever uma parte
significativa de uma entrevista concedida por Stuart Hall a Leandro Colling em
julho de 2000, na cidade de Salvador, quando esteve pela primeira vez no Brasil
para proferir a palestra de abertura no VIII Congresso da Associao Brasileira de
Literatura Comparada, realizada na Universidade Federal da Bahia. Ele explica
nessa entrevista que:
Ns estamos sempre sendo identificados com uma determinada posio. E semesse investimento na cultura impossvel agir. Mas esta posio no permanece amesma. Quando eu cheguei na Inglaterra era chamado de indiano do oeste. Equando eu voltei Jamaica, depois de oito anos, minha me me disse: Ah! Euespero que eles no achem que voc um imigrante.. Naquele momento eu medei conta que eu era um imigrante! Apenas naquele momento eu adquiri aidentidade de imigrante. Quando eu era criana ningum chamava as pessoascomo eu de negras. Aps os movimentos civis e a libertao negra eu me deiconta que eu era, afinal de contas, um negro. Esta nem sempre foi, portanto, aminha identidade. Ela se tornou a minha identidade a partir de um determinadomomento histrico. Ento, importante estudar identidades no plural, mas no
como algo que fixo desde o incio e que jamais muda13
.
Como podemos notar, ao contrrio dos tipos de interpretao
essencialista, que partem de uma perspectiva biologizante, a qual considera que a
cultura e a identidade dos sujeitos so uma espcie de produo transmitida pelos
genes, Hall diz durante a mesma entrevista que a nossa identidade no formada
pela cor da pele. Na verdade, a nossa identidade formada pela nossa histria e
cultura e no apenas pela cor da pele. Ns precisamos desenvolver uma
autocrtica da cultura e de raa e no de biologia (p.11). No texto: Que negro
esse na cultura negra ?14, Stuart Hall (2003) critica diretamente o tipo de
interpretao que essencializa a cultura e a prpria identidade dos negros a partir
de conceitos biolgicos. Segundo ele:
13Cf. COLLING, L. Por uma identidade hbrida. Entrevista publicada Revista da Faculdade Dois de Julho.Salvador. Bahia. 2003.14Cf. HALL, Stuart (2003). Da Dispora: identidade e mediaes culturais. Ed. UFMG. Braslia.
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O momento essencializante fraco porque naturaliza e des-historiciza adiferena, confunde o que histrico e cultural com o que natural, biolgico egentico. No momento em que o significante negro arrancado de seu encaixehistrico, cultural e poltico, e alojado em uma categoria racial biologicamenteconstituda, valorizamos, pela inverso, a prpria base do racismo que estamostentando desconstruir. Alm disso, como sempre acontece quando naturalizamoscategorias histricas (pensem em gnero e sexualidade), fixamos esse significantefora da histria, da mudana e da interveno poltica.(HALL, 2003, p. 345).
O fio condutor da argumentao sociolgica de Hall est nas interconexes que
se multiplicam no mundo social, recriando, ainda que de forma temporria, as
identidades culturais do sujeito ps-moderno. Nesse sentido, o ambiente,
enquanto local de interconexes, reveste-se de significao para o sujeito, porque
exatamente nesse espao que se recriam e se desenvolvem as identidades
possveis na sociedade contempornea recente. Por isso, a posio do sujeito
nesse ambiente que lhe atribui uma identidade. Argumentando contra todo tipo de
concepo essencialista da identidade tnica ou mesmo nacional, Girol (2001),
escreve no captulo O Atlntico negro como contracultura da modernidade que:
O que poderia ser chamado de peculiaridade do negro ingls requer ateno
mistura entre vrias formas culturais distintas. Tradies polticas e intelectuaisanteriormente separadas convergiram e, em juno, sobredeterminaram oprocesso de formao social e histrica no Reino Unido. Essa mistura mal-entendida quando concebida em termos tnicos simples, mas a direita e aesquerda, racista e anti-racista, negros e brancos compartilham tacitamente umaviso dela como sendo pouco mais do que uma coliso entre comunidadescompletamente formadas e mutuamente excludente. Esta se torna a perspectivadominante a partir da qual a histria e a cultura negras so percebidas, assimcomo os prprios colonos negros, como uma intruso ilegtima em uma viso devida nacional britnica autntica que, antes de sua chegada, era to estvel etranqila quanto etnicamente indiferenciada (GIROL, 2001, pp. 42-43).
Antes de prosseguirmos com a concepo de identidade cultural em Hall,
pretendemos definir o que entendemos pelo termo reafricanizao da capoeira.Assim, esse termo se refere ao processo de re-inveno da identidade afro-
descendente e preservao do estilo angola. Em vista disso, estamos
interessados nas prticas sociais e culturais desses sujeitos que recriam essa
identidade, queremos descobrir o que est em jogo? Quais as relaes que se
estabelecem nesse processo? Quais as estratgias polticas elaboradas pelos
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sujeitos sociais que reafricanizam o jogo de capoeira e as conseqncias maisevidentes desse fenmeno? Como se organiza e se desenvolve esse processo de
re-inveno da tradio da capoeira em Aracaju? O que lhe confere autenticidade
e legitimao, a quem e ao que se ope essa reafricanizao? Essas so as
questes centrais dessa pesquisa, s quais tentaremos responder ao longo dos
captulos.
Com efeito, considerando o grau de complexidade dessas questes e
objetivando uma compreenso e explicao desse problema, valemo-nos tambm
nessa pesquisa do conceito de tradio inventada formulado por Eric Hobsbawm
(1997) para quem:
Por tradio inventada entende-se um conjunto de prticas regulamentadas porregras tcitas ou abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ousimblica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs darepetio, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relao aopassado. Alis, sempre que possvel, tenta-se estabelecer continuidade com umpassado histrico apropriado (HOBSBAWM, 1997, p. 9).
Essa concepo de Hobsbawm relevante para nossa investigao medida que
nos ajuda na explicao dos valores representados e reinterpretados no cotidiano
dos sujeitos observados, bem como compreender a prpria questo da tradio
no jogo de capoeira no contexto atual dessa pesquisa.
Colocadas essas primeiras indicaes do nosso referencial terico,
gostaramos de retornar, ainda, para a entrevista supracitada de Leandro Colling
com Stuart Hall para demonstrar mais um pouco da viso desse socilogo
jamaicano. O indagador de Hall diz que ele [Hall] est sempre rejeitando posies
binrias, e que essa uma constante nos textos do entrevistado, diz tambm que
uma das idias de Hall que lhe chamaram ateno a sua reflexo sobre o fato
de que no momento em que algum tenta agir sobre a identidade do outro, nobasta recorrer raiz, para a unidade perdida. Objetivando com isso descobrir a
posio dos movimentos negros britnicos e de outros movimentos sociais de
diferentes lugares, Leandro Colling diz a Hall que em relao aos movimentos
brasileiros parecem que eles sempre esto querendo retornar me frica.
Vejamos ento a resposta dada pelo socilogo:
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A resposta desta pergunta realmente complicada. Porque a forma atravs daqual as identidades perdidas tm de lutar pensar as suas identidades comouma volta ao que eles perderam. Mas quando voc observa as identidades e asprticas que eles produziram, eles no podem recapitular o passado. Isso absolutamente impossvel! A frica da qual eles foram tirados ficou h 400 anosatrs e se tornou um continente h apenas 100 anos. Antes disso havia apenastribos, pessoas, religies e lnguas. A noo da frica propriamente dita umanoo moderna. E a frica no tem esperado por eles sem mudar, mas tempassado por 400 anos de colonialismo, de imperialismo, de reestruturao. Noh dvida de que a capoeira de Angola veio de Angola por alguma rota secreta.Mas Angola uma sociedade que sofre muito com a guerra civil, ela esttotalmente partida, em uma batalha. E o que ns dizemos diante da volta dacapoeira baiana para a angolana? Isso no significa dizer que o desejo de voltar
no seja importante, pois de fato o , mas trata-se de uma metfora. a formade eles falarem a respeito de tudo o que aconteceu desde que eles foramtirados de l. como eles reescrevem uma histria para si em termos nareconstruo do passado. Ento, metaforicamente, isto importante para suaslutas polticas, mas, literalmente, seria intil para tentar voltar (HALL, 2003,p.10).
Embora essa pesquisa no esteja interessada em desvendar essa rota secreta,
ou seja, na questo de uma origem para o jogo de capoeira, importante colocar
que no atual contexto das pesquisas essa rota tem sido ampliada tambm para
outras regies do continente africano. O aspecto mais importante que se deve
ressaltar dessa argumentao nos parece que justamente o reconhecimento de
uma luta poltica dentro do movimento capoeirstico em direo capoeira
angolana. A existncia desse movimento atual da capoeira, lembrado por Hall em
sua entrevista, tem sua origem de fato com a fundao da CECA Centro
Esportivo de Capoeira Angola em 1941, que teve em seu comando o famoso
Mestre Pastinha, reconhecido como um dos principais guardio da tradio da
capoeira em Salvador, e que tem seus representantes atuais em vrias regies do
Brasil - inclusive em Sergipe, onde realizamos nossa pesquisa de campo -, enoutras localidades geogrficas do mundo. A noo de guardio da tradio nessa
pesquisa se baseia na concepo do termo fornecida por Giddens (1977) que
define:
A tradio impensvel sem guardies, porque estes tm acesso privilegiado verdade; a verdade no pode ser demonstrada, salvo na medida em que se
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manifesta nas interpretaes e prticas dos guardies. O sacerdote, ou xam,pode reivindicar ser no mais que o porta-voz dos deuses, mas suas aes defato definem o que as tradies realmente so. As tradies secularesconsideram seus guardies como aquelas pessoas relacionadas ao sagrado; oslideres polticos falam a linguagem da tradio quando reivindicam o mesmo tipode acesso a verdade formular (GIDDENS, 1997, p. 100).
Embora haja outros elementos significativos desempenhando papis
importantes no universo da capoeira como, por exemplo, os prprios discpulos, o
guardio na concepo de Giddens ocuparia um lugar privilegiado dentro do
quadro de hierarquia existente na estrutura social do jogo de capoeira. Ele seria,
portanto, uma espcie de pessoa prestigiosa (Mauss, 1974), aquela quetransmite s novas geraes, ou seja, aos educandos, os fundamentos, as regras
e tcnicas corporais. Para que possamos compreender e explicar o processo de
reafricanizao da capoeira importante que se tenha em mente essa qualidade
do guardio da tradio.
No processo social de des-centramento do sujeito na sociedade
contempornea, Hall (1998) considera a dcada de 1960 como um marco residual
dos grandes movimentos sociais revolucionrios, [...] das revolues estudantis,
dos movimentos anti-guerra e da contra-cultura jovem, das lutas pelos direitos
civis, dos movimentos revolucionrios do terceiro mundo, dos movimentos
pacifistas e de todo o resto associado a 1968 (p. 34). Esse momento histrico
ficou conhecido, segundo esse autor, como o momento das polticas identitrias,
o qual cada segmento social apelava para a sua prpria identidade social. Desta
maneira, o feminismo atraia as mulheres; a poltica sexual, os gays; as lutas
raciais, os negros; o movimento anti-guerra, os pacifistas e assim por diante. Esse
o nascimento histrico do que veio as ser conhecido como polticas identitrias
uma identidade por movimento (pp. 34-35).
Para a capoeira, na onda desses movimentos sociais no Brasil, foi
fundamental a participao do Mestre Moraes15, por exemplo, dentro do
movimento negro de Salvador para o processo de reafricanizao da capoeira em
15Pedro Moraes Trindade (Mestre Moraes) fundou o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho GCAP - no Riode Janeiro em 1980, transferindo-se para Salvador em 1982, onde instala um ncleo desse grupo, passando adesenvolver um trabalho de difuso da Capoeira Angola. Mestre Moraes tem participado de centenas deeventos ligados capoeira tanto aqui no Brasil quanto no exterior.
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Aracaju, tendo em vista que o trabalho desse capoeirista e de outros no menosimportantes influenciaram significativamente o movimento de Capoeira Angola na
capital sergipana. Esse movimento contrape-se, ento, forma como a capoeira
vinha sendo praticada em Sergipe, sobretudo, por sua opo pela valorizao do
estilo regional, que enfatiza mais os aspectos marciais e esportivos em detrimento
das formas ldicas e religiosas.
Mestre Moraes diz, em entrevista a Revista Praticando Capoeira16,
referindo-se ao jogo de capoeira que o mesmo uma das representaes da
ancestralidade africana, uma herana africana e tradio no Brasil, contrapondo-
se s diversas formas e estilos que emergem nos novos contextos culturais e
polticos, desde a dcada de 30, poca da criao da Capoeira Regional, em
Salvador pelo Mestre Bimba. Para Mestre Moraes, que escreve no prospecto do
evento que foi distribudo em Salvador durante o perodo de comemorao dos 20
anos do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho - GCAP-, em outubro de 2000, o
trabalho com esse grupo relevante para a permanncia e preservao dos
valores ancestrais. Conforme ele:
O Grupo de Capoeira Angola Pelourinho GCAPest nesta virada de sculo,completando vinte anos de fundao. Nestes vinte anos experimentamos vriastentativas de anulao do nosso trabalho, o qual sempre foi e ser voltado para oresgate e preservao das razes da Capoeira Angola, mas resistimos e temosvencido a todas elas. A nossa sobrevivncia prova real de que a fora mstica daCapoeira Angola atua positivamente sobre aqueles que tm uma relao derespeito e seriedade para com essa manifestao afro-brasileira, alm dereconhec-la como uma das formas vivas de luta dos nossos ancestrais, peloresgate das suas dignidades.17
No discurso de Moraes, a preocupao central com o resgate da capoeira se d
atravs de uma ao efetiva que possa ritualizar a luta dos ancestrais na
atualidade em torno de uma dignidade (do homem negro) que parece est sendosempre ameaada por aqueles que no respeitam as razes da Capoeira Angola
enquanto manifestao do pensamento afro-brasileiro. A atualidade das
estratgias construdas por Mestre Moraes est presente, como mostraremos no
16Cf. Mestre Moraes. Revista Praticando Capoeira Ano I. Nmero 5. So Paulo. P. 3417Cf. prospecto do GCAP. 20 Anos de Resistncia. Salvador. 2003
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terceiro captulo, no discurso dos depoentes pertencentes aos grupos de capoeiraUnidos do Quilombo e Aba.
A notoriedade alcanada por Mestre Moraes frente do GCAP Grupo
de Capoeira Angola Pelourinho - chegou a tanto, que o mesmo na atualidade tem
estabelecido ncleos de Capoeira de Angola em diversas cidades brasileiras e de
pases como Os Estados Unidos, Israel e Frana. O contato GCAP com alguns
capoeiristas ligados direta ou indiretamente com o Movimento Negro de Aracaju
possibilitou a fundao, nessa cidade, do Grupo Aba de Capoeira Angola em
1994. Esse grupo, embora no momento da realizao dessa pesquisa estivesse
passando por um momento de transio, continua sendo de fato o nico grupo de
capoeira em Aracaju a reivindicar publicamente uma identidade afro-descendente,
lutando estrategicamente pelo reconhecimento da Capoeira de Angola enquanto
um smbolo da cultura africana.
Na construo do nosso quadro terico, apropriamo-nos das indicaes
metodolgicas de Beatriz Dantas (1998), que ao tratar do estudo acerca do
Candombl no nordeste brasileiro, descobre uma discrepncia de contedos e
traos entre as casas de santo. Nesse estudo antropolgico, ela vai mostrar que
algumas caractersticas dos rituais de batismo, por exemplo, tidas como Nag
puro para uma Me de Santo no o so para uma outra do Candombl. A
identificao desses Candombls com a frica est nessa noo de pureza,
portanto, quanto mais puro o Candombl mais laos simblicos de identificao
com a frica tm seus Filhos de Santo e, respectivamente, seus terreiros, seus
orixs e seus rituais. No entanto, o que fundamental, no sentido metodolgico,
consoante Beatriz Dantas que:
Para os objetivos deste trabalho, pouco importa se so realmente africanos osestoques culturais apresentados como tais. No limite, poderiam at ser forjados.Importa que o grupo considera como africanos e que foram escolhidos pelo prpriogrupo, como significativos, sendo usados como sinais das diferenas em funodas quais se afirma a pureza nag( DANTAS, 1998, p. 91).
Nesse sentido, ao trabalharmos com nossos entrevistados, no estaremos
interessados, desse modo, na pureza da capoeira ou se a mesma de fato
africana, importa saber como os sujeitos sociais se vem e se representam como
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descendentes diretos de africanos no Brasil ao tempo em que recriam suasidentidades. Este o aspecto importante para esse estudo sobre a reafricanizao
da capoeira em Aracaju: apreender os processos constitutivos das identidades da
Capoeira Angola.
1.2 Memria e Tradio na Capoeira: a ritualizao da identidade.
Giddens (1997), em seu texto sobre as sociedades tradicionais e ps-
tradicionais, escreve que a tradio no destruda inteiramente pelas novaspaisagens que esto em evidente transio na passagem de um mundo social
para outro com sua nova ordem social. Entretanto, ele mostra que: Durante a
maior parte de sua histria, a modernidade reconstruiu a tradio enquanto a
dissolvia. Nas sociedades ocidentais, a persistncia e a recriao da tradio
foram fundamentais para legitimao do poder, no sentido em que o Estado era
capaz de se impor sobre sujeitos relativamente passivos.(pp. 73-74).
O mundo atual est repleto de incertezas, inseguranas e perigo, mas
oferece, segundo o autor supracitado, oportunidades nunca antes vislumbradaspelas sociedades precedentes e tradicionais. As experincias do cotidiano das
sociedades na era da modernidade tardia, diz Giddens (1997), refletem o papel
da tradio - em constante mutao e como tambm ocorre no plano global,
devem ser consideradas no contexto do deslocamento e da reapropriao de
especificidades, sob o impacto da invaso dos sistemas abstratos. (p.77). Para
ele, essas experincias esto ligadas ao eu e identidade, mas tambm
envolvem uma multiplicidade de mudanas e adaptaes na vida cotidiana.
(ibidem).
A ligao do jogo de capoeira com a identidade cultural na sociedade
ps-tradicional, ou seja, na sociedade moderna atual, possibilita compreender
como a tradio ritualizada e mantida, que tipo de solidariedades se organizam,
como os sujeitos sociais celebram essa identidade e quais as caractersticas
fundamentais desse processo social. Giddens mostra que as aes de um
indivduo sozinho podem ter um alcance incalculvel e atingir um nmero cada
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vez maior de pessoas pelo mundo contemporneo, ainda que ele no tenhaconscincia plena dessa atitude. Entretanto, essa atitude no est isolada, ela
est interligada a contextos que se modificam gravemente no amplo processo de
globalizao da modernidade Essas mudanas tm chegado a todas as esferas
na sociedade atuais, entretanto, Giddens afirma que foi:
No plano puramente econmico, por exemplo, a produo mundial aumentou deforma dramtica, com vrias flutuaes e quedas; e o comrcio internacional umindicador melhor da inter-relao cresceu ainda mais. Mas foi o comrcioinvisvel nos servios e nas finanas o que mais cresceu. (GIDDENS, 1997,p. 75)
Giddens analisa essas flutuaes de capital, de deslocamento de instituies no
plano das dimenses da globalizao, demonstrando, portando, a fora do
mercado e de suas transaes no processo de expanso planetria do
capitalismo, no qual as companhias e instituies comerciais e industriais so
transformadas em multinacionais. Conforme ele:
As firmas de negcios, especialmente as corporaes multinacionais, podem
controlar imenso poder econmico, e ter a capacidade de influenciar sistemaspolticos em seus pases-bases e em outros lugares. [...] No h uma rea nasuperfcie da terra, com a exceo parcial das regies polares, que no sejareivindicada como legtima esfera de controle de um ou de outro estado.(GIDDENS, 1991, p. 75)
As implicaes geradas pelos movimentos de internacionalizao de companhias
e instituies capitalistas acabam provocando abalos profundos nas estruturas
dos prprios sistemas culturais encravados nas estruturas de todas as sociedades
modernas. Para Canclini (1983), as conseqncias mais graves nesse processo
de inter-relaes do comrcio internacional, so, sobretudo, a permanncia dasprprias desigualdades entre as classes sociais de cada pas, geradas pelas
trocas desiguais que fazem permanecer desta forma uma distncia social que
divide no somente as pessoas dentro de um pas, mas tambm entre pases
perifricos e centrais. Nesse sentido, Canclini dir, ento, que:
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A multinacionalizao do capital, que acompanhada pela transnacionalizaoda cultura, impe uma troca desigual tanto de bens materiais quanto aos benssimblicos. Mesmo os grupos tnicos mais remotos so obrigados a subordinar asua organizao econmica e cultural aos mercados nacionais, e estestransformam-se em satlites da metrpole, de acordo com uma lgicamonopolistica.(CANCLINI, 1983, p. 26).
Ento, essa mundializao do capital tem provocado o aumento da distncia que
separa as culturas subalternas das culturas dominantes na sociedade moderna,
embora persista a iluso do fim dessas diferenas. Canclini no deixa dvida do
poder do capitalismo e do seu controle estratificativo que coloca em grande
desigualdade os diversos grupos culturais no interior da sociedade globalizada.
Para ele:
As diferentes modalidades de produo cultural (da burguesia e do proletariado,do campo e da cidade) so reunidas, e at certo ponto homogeinizadas, devido absoro, num nico sistema, de todas as formas de produo (manual eindustrial, rural e urbana). A homogeinizao das aspiraes no significa que osrecursos so igualados. No so eliminadas as distncias entre as classes nementre as sociedades no aspecto fundamental a propriedade e o controle dosmeios de produo -, mas se cria a iluso de que todos podem desfrutar, real ouvirtualmente, da superioridade da classe dominante.(CANCLINI, 1983, p. 27).
Nesse sentido, nada pode escapar dessa rede de relacionamentos e interesses da
elite, Frigrio (1989), ao tratar da capoeira e do Candombl enquanto cultura
negra, na tentativa de esclarecer as mudanas ocorridas na estrutura de cada
uma dessas manifestaes culturais, a partir da sua incluso na classe mdia e
alta no Brasil, explica que elas [...] para serem legitimadas e integradas ao
sistema, precisam perder vrias caractersticas que lhes so prprias, em virtude
de sua origem tnica, para adquirirem outros traos que lhe tornem mais
aceitveis aos olhos das classes dominantes(p. 87). Dessa forma, aquele autor
escreve que essas mudanas no mbito gestual e do ritual da capoeira voacabar expressando tambm as assimtricas relaes de poder existente na
sociedade. Quem tem maior poder econmico e social poder com maior
facilidade influir no processo de mudanas, impondo seus valores e vises de
mundo. (ibidem).
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Por conseguinte, a construo do nosso referencial terico para estudar ojogo de capoeira enquanto uma cultura popular parte dessa perspectiva que
visualiza a contradio e a diferena entre as prprias classes sociais, ou seja,
que nos ajuda a compreender e explicar as desigualdades e os conflitos entre as
classes populares e os setores hegemnicos da sociedade, dentro de um
processo de hibridizao cultural. Para Canclini:
Passamos de sociedades dispersas em milhes de comunidades rurais comculturas tradicionais, locais e homogneas, em algumas regies com fortes razesindginas, com pouca comunicao com o resto de cada nao, a uma trama
majoritariamente urbana, em que se dispe de uma oferta simblica heterognea,renovada por uma constante interao local com redes nacionais e transnacionaisde comunicao(CANCLINI, 1993, p.285).
Nesse sentido, pretendemos descobrir como esses contatos hbridos se
estabelecem no jogo da capoeira e quais so as conseqncias disso para a
prpria tradio nessa manifestao sociocultural. Como, ento, persiste a
tradio da capoeira nessa ordem urbana, na qual tudo parece entrar em fuso,
combinando e misturando-se com outros circuitos culturais dentro de uma
sociedade multiracial como a nossa?
Giddens (1997), ao tratar da tradio na sociedade moderna, mostra a
importncia funcional das relaes sociais existentes entre os Kung do deserto de
Kalahari. De acordo com esse autor: A tradio est ligada ao ritual e tem suas
conexes com a solidariedade social, mas no a continuidade mecnica de
preceitos que aceita de modo inquestionvel (p.80). A tradio est,
dialeticamente, para esse terico, associada a uma idia do passado, mas
tambm relacionada concepo de futuro. Para ele:
[...] a tradio uma orientao para o passado, de tal forma que o passado temuma pesada influncia sobre o presente. Mas evidentemente, em certo sentido, eem qualquer medida, a tradio tambm diz respeito ao futuro, pois as prticasestabelecidas so utilizadas como uma maneira de se organizar o tempo futuro(GIIDDENS, 1997, p.80).
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A identidade tradicionalmente reconstruda pelos grupos de capoeira aquiinvestigados um exemplo verdadeiro desse tipo de orientao de
comportamentos sociais que reafirmam a reafricanizao da identidade e do
prprio jogo da capoeira. Dito desta forma, esses grupos de angoleiros parecem
germinar pelo mundo como um vio revivalista e reafricanizador que toma corpo
poltico e cultural, retomando prticas, conceitos e modos gestuais, dialogando
dentro da sociedade mais ampla com vises cristalizadoras sobre a cultura negra
e o prprio negro no Brasil.18
Mestre Moraes, j citado nessa pesquisa, disse referindo-se capoeira
durante entrevista concedida Revista Capoeira19 que: Na cultura popular o
desafio est em fundir modernidade e tradio sem perder a essncia. A
supervalorizao da modernidade somente uma forma de atender aos
interesses daqueles que no acreditam na existncia da subjetividade na cultura
africana. E essa subjetividade est embutida na tradio. Para ele: A perda
dessa referncia leva automatizao, o que implicaria tambm na limitao da
capoeira a elementos externos. Um exemplo dessa perda de referncia o
desrespeito aos mestres antigos de capoeira. (ib). Essas atitudes levadas adiante
por parte de pessoas descompromissadas, como dizem os angoleiros, provocam
um tipo radical que quebra e descaracteriza profundamente a tradio do jogo
de capoeira.
Seguindo as pistas de Edward Shils sobre sua concepo de tradies,
Giddens(1997) afirma que para Shils elas:
esto sempre mudando; mas h algo em relao noo de tradio quepressupe persistncia; se tradicional, uma crena ou prtica tem umaintegridade e continuidade que resiste ao contratempo da mudana. As tradiestm um carat orgnico: elas se desenvolvem e amadurecem, ou enfraquecem emorrem. Por isso, a integridade ou autenticidade de uma tradio maisimportante para defini-la como tal que seu tempo de existncia(pp. 80-81).
18 Para saber mais sobre o movimento de reafricanizao da cultura negra no Brasil, sugerimos a leituraimediata do livro O Povo do Santo: religio, histria e cultura dos orixs, vodus, inquices e caboclos deRaul Lody. Pallas Editora. Rio de Janeiro. 1995.19Cf. Revista Capoeira Ano II, N 06. Editora Candeias. So Paulo. So Paulo. P. 14.
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Com efeito, o problema da pureza da tradio africana associada idiade tempo de existncia ou de ser a mais tradicional no passa de uma inveno
que busca em ltima instncia garantir a legitimidade do poder em jogo e uma
idia de continuidade com a frica me. Um exemplo clssico desse fato pode ser
constatado na leitura de Beatriz Dantas (1988), antroploga sergipana, demonstra
uma diversidade enorme de caractersticas entre os Candombls pesquisado em
Sergipe e Bahia. Segundo ela:
O resultado foi desconcertante, pois em muitos aspectos havia flagrante
desacordo quanto composio dessa herana africana. Que houvessediferenas entre a frica e o Brasil, compreendia-se; afinal, havia diferenashistricas e estruturais muito significativas j assinaladas, alis, por Roger Bastideao estudar o processo de interpenetrao de civilizaes atravs da persistnciadas religies africanas no Brasil (p.26).
Muito embora temos constatado tambm alguns flagrantes desses
desacordos no jogo de Capoeira Angola, quanto aos aspectos da estrutura
musical dos instrumentos, indumentrias e formas de cantar e jogar dentro dos
grupos observados, no diminui em nada a qualidade ou o carter da africanitude
e reafricanizao desses grupos que privilegiam a prtica da Capoeira Angola emsuas sede ou academias, como so comumente chamadas no universo da
capoeira.
Apropriando-se do conceito de memria coletiva de Maurice Halbwachs,
Giddens escreve que A memria, como a tradio em um sentido ou outro -, diz
respeito organizao ao passado em relao ao presente(p.81). Giddens diz
ainda que para Halbwachs, o passado no preservado, mas continuamente
reconstrudo, tendo como base o presente (ib).
Ao abordar o problema da cultura popular e da identidade nacional, Ortiz(1994), tambm baseado nos estudos de Roger Bastide, Halbwachs e Golffman e
de outros no menos importantes, pretende interpretar e explicar os contedos
folclricos da chamada cultura popular a partir do conceito de memria coletiva e
denomina o conceito de memria nacional para investigar a identidade brasileira.
Consoante Ortiz(1994):
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A memria de um fato folclrico existe enquanto tradio, e se encarna no gruposocial que a suporta. atravs das sucessivas apresentaes teatrais que ela realimentada. Isso significa que os grupos folclricos encenam uma pea deenredo nico que constitui sua memria coletiva; a tradio mantida pelo esforode celebraes sucessivas, como no caso dos ritos afro-brasileiros (p.134).
Nesse sentido, podemos falar de uma memria africana para o negro no
Brasil e que encontramos, no nosso caso, no somente na musicalidade do jogo
de capoeira, mas tambm nos depoimentos prestados pelos capoeiristas. Um
exemplo tipicamente perfeito o prprio GCAP, j citado nesse trabalho. No artigo
Capoeira Angola/Resistncia Negra20, esse grupo de Capoeira Angola deixa bem
claro seus objetivos e propostas scio-polticas tendo como preocupao principal
o resgate da memria negra no Brasil, considerando a Capoeira Angola como
um legado da cultura africana. No encarte de seu primeiro CD lanado em 1995, o
GCAP escreve:
Na sua histria e na sua prtica cotidiana, a Capoeira Angola exibe a filosofia e aesttica de suas origens africanas. As culturas africanas tradicionais sogeralmente holsticas sem clara distino entre sagrado e secular, entre trabalho elazer, entre luta e brincadeira. A Capoeira Angola, , dessa forma, uma
conjugao de diferentes manifestaes culturais que incluem artes marciais,dana, msica, filosofia, espiritualidade, teatro, brincadeira e jogo. (Encarte doGCAP, CD gravado EUA. p.13).
Evidentemente, ficaria impossvel tratar de todos os aspectos que compem o
conjunto cultural do jogo de Capoeira Angola, no entanto, fizemos uma escolha
entre diferentes elementos culturais inteligveis para anlise sociolgica. Portanto,
passaremos a tratar logo mais da religiosidade, da mandinga e da brincadeira,
aspectos os quais consideramos relevantes nessa investigao e que traduzem
claramente uma viso mais ampliada do jogo de Capoeira Angola enquanto umatradio reafricanizadora. Entrementes, acreditamos que, ainda, seja necessrio
nessa altura da pesquisa continuar com o mesmo tpico, mesmo que isso
implique brevemente em algumas consideraes analticas.
20Cf. Revista Exu. Salvador. Fundao Casa de Jorge Amado. N 11. Set/out. 1999.
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Nestor Capoeira (1988), ao escrever seu primeiro livro sobre essamanifestao cultural, certamente no diria mais, hoje, as mesmas palavras que
escreveu em relao Capoeira Angola, diante do grande movimento atual de
reafricanizao dessa luta no somente na Bahia, mas em diferentes estados
brasileiros alm de outros pases como Argentina, Estados Unidos, Frana e
Canad, para onde esto sendo levados, dentro do amplo movimento de
deslocamento da cultura e de sua mercantilizao mundial, grupos de Capoeira de
Angola21. Em 1981, poca do lanamento da primeira edio do livro supracitado,
Nestor (1988) ao se referir aos lendrios mestres Valdemar, Caiara,
Canjiquinha, Joo Grande, Gato, Traira, Cobrinha Verde(p.16), assevera que:
So estes homens os conhecedores e legtimos representantes da capoeirapraticada pela gerao anterior de angoleiros, mas sentem que sua poca acabou:sua escola de valores, seus conhecimentos e sua filosofia so incompatveis coma era tecnolgica, a massificao do indivduo, e os valores culturais que tm seurepresentante mximo na televiso. Sem falar nas sbitas e drsticas mudanasocorridas em Salvador nos ltimos 10 ou 15 anos, que transformaram a msticacapital numa cidade de consuma e turismo. Por isso no existe mais a tradicionalroda de Mestre Valdemar no bairro da Liberdade; muitos dos demais mestres,desgostosos, no mais ensinam e pouqussimas vezes jogam; a mentalidade
mudou e mesmo nas festas de largo e de rua difcil ver-se um bom jogador seexibindo (CAPOEIRA, 1988, pp.16-17).
Realmente, no podemos ter absoluta certeza dos resultados dos fatos
da vida cotidiana das manifestaes socioculturais, Giddens (1997) escreve que
No mundo social, em que a reflexividade institucional tornou-se um elemento
constituinte central, a complexidade dos cenrios ainda mais marcante (p.76).
Segundo esse autor:
Queiramos ou no, estamos todos presos em uma grande experincia, que est
ocorrendo no momento de nossa ao como agentes humanos -, mas fora donosso controle, em um grau impondervel. No uma experincia do tipolaboratorial, porque no controlamos os resultados dentro dos parmetros fixados
21 Um fato social cada vez mais comum que temos observado nos ltimos dez anos tem sido o amplomovimento de expanso mundial da capoeira, independentemente de qual estilo Angola ou Regional. Umexemplo claro e recente dessa natureza de fato foi a realizao do IV Festival Mundial de Artes Marciais deChung Ju, na Coria do Sul, em 2001, que contou com a participao de integrantes do Grupo Abada-Capoeira. Evento esse que reuniu competidores de 28 pases.Cf. Jornal Abada-Capoeira. Ano V. N38 EdioNovembro-Dezembro/2001. Rio de Janeiro.
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mais parecida com uma aventura perigosa, em que cada um de ns, querendoou no, tem de participar (ib).
No demais insistir que houve de fato um equvoco na comunicao de
Nestor Capoeira, sobretudo, depois de mostrarmos o pensamento esclarecedor de
Giddens sobre as incertezas que nos cercam pelo mundo social. A tradio se
renova e assume novos contornos na sociedade globalizada, no podemos definir
concretamente uma imagem do futuro, quando esse mesmo futuro est sempre a
nos oferecer tantas surpresas; qualquer clculo estatstico para a experincia que
vivenciamos atualmente no mundo da alta modernidade, diria Giddens, seria como
lanar flechas no escuro por mais que o arqueiro e o arco sejam perfeitos.
Evidentemente, em certo sentido, a tradio da Capoeira Angola no
apresenta mais os traos da simplicidade verificados por Rego (1968) nos
barraces dos mestres nas dcadas de 1950 e 1960, nem das rodas de rua. Os
barraces foram substitudos por academias, muitas delas em locais privilegiados
da cidade de Salvador, os grupos crescem no somente na cidade onde os
mestres moram, mas so ampliados para alm das fronteiras e muros, invadindo
outros pases, num amplo processo de migrao da cultura. Entretanto, no
concordamos inteiramente com o comentrio de Nestor Capoeira, ainda que oprocesso de hibridizao cultural remova significativamente alguns traos da
organizao e da estrutura do jogo de capoeira, os capoeiristas do estilo angola
parecem se multiplicar por Salvador, reconstruindo e revitalizando esse mesmo
estilo.
Em entrevista concedida ao jornal A Tarde, a sociloga e tambm
componente do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho GCAP - Ndia Cardoso
ao se referir Capoeira de Angola argumenta que:
A Capoeira Angola preserva o que existe de herana africana, rituais edeterminados comportamentos que na Capoeira Regional no mais existem. Porexemplo, o canto da ladainha para comear uma roda de capoeira. A chula e ocorrido no podem entrar antes disso. O gunga, berimbau com a cabaa maior, o que comanda a roda. Os jogadores tm que prestar ateno no som do gunga,porque ele que sinaliza ao jogador se ele continua ou no jogando, se vem pra op do berimbau. Os mestres de capoeira, no decorrer do canto do corrido, vodando toques aos jogadores de como eles esto (p.3).
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A preservao desses rituais a razo da existncia dos grupos em torno da
tradio da Capoeira Angola, so atividades individuais e coletivas que requerem
dedicao, respeito e conhecimento dos fundamentos desse jogo. Essa tambm
a posio defensiva dos grupos de Capoeira de Angola para reconstrurem sua
identidade dentro de um contexto de interesses conflituosos que tende a separar
capoeiristas do estilo angola do estilo regional. Impregnados de um discurso
poltico de defesa da tradio de uma cultura negra, assistimos, assim, a luta
entre os segmentos da prpria capoeira no seio da sociedade. Para Giddens
(1997) A integridade da tradio no deriva do simples fato da persistncia sobre
o tempo, mas do trabalho contnuo de interpretao que realizado para
identificar os laos que ligam o presente com o passado (p.82).
Em acrscimo, podemos dizer que a tradio na Capoeira Angola tem
sido pensada e praticada pelos grupos que seguem esse estilo, mesmo
considerando, aqui, que os efeitos ou conseqncias da modernidade na
atualidade atuam no sentido de recriar uma nova ordem de configuraes sociais
na qual a Capoeira Angola est interligada de modo bem real e direto.
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Captulo II
2. A trama da desafricanizao do jogo de capoeira.
2.1. A esportivizao da vadiao22
Na obra Costumes Africanos no Brasil, Manoel Quirino (1988) descreve
um perfil do angola e atribui ao mesmo a responsabilidade de introdutor da
capoeiragem na Bahia. Segundo ele: O angola era, em geral, pernstico,
excessivamente loquaz, de gestos amaneirados, tipo completo e acabado do
capadcio (p.195).
Fotos de Pierre Verger. Salvador. Dcada 1940
22Vadiao um termo ainda muito utilizado no universo da capoeira, sobretudo, em Salvador. Esse termotambm comum em diversas cantigas dos capoeiristas. Cf. CHARLES, Carlos Pereira.(1992). Cantos eLadainhas da Capoeira da Bahia. Edies Via Bahia. Salvador.
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exatamente esse aspecto, supostamente debochado e petulantepresente no jogo da capoeira, que ser combatido por alguns intelectuais do final
do sculo XIX e incio do sculo XX, baseados, sobretudo, nas concepes
tericas evolucionistas, segundo as quais as sociedades humanas percorrem
etapas que vo das menos avanadas s mais evoludas dentro de uma ordem
classificatria ao longo do seu desenvolvimento. Para Ortiz (1994), as teorias
raciais defendidas pelos precursores das cincias sociais no Brasil Silvio
Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues -, em fins do sculo XIX e incio do
sculo XX, embora com toda importncia tratassem da problemtica da identidade
nacional, apresentavam na verdade um contorno claramente racista (p.13).
Conforme esse estudioso:
O que surpreende o leitor ao se retomar as teorias explicativas do Brasil,elaboradas em fins do sculo XIX e incio do XX, a sua implausibilidade. Comofoi possvel a existncia de tais interpretaes, e, mais ainda, que elas tenham sealado ao status de Cincia. A releitura de Silvio Romero, Euclides da Cunha, NinaRodrigues esclarecedora na medida em que revela esta dimenso deimplausibilidade e aprofunda nossa surpresa, por que no um mal-estar, uma vezque desvenda nossas origens ( ORTIZ, 1994, p. 13).
Lilia Moritz Schwarcz23 pe em evidncia os problemas do racismo no pas,
mostrando como o determinismo racial foi a grande voga do final do sculo XIX e
incio do XX entre os intelectuais brasileiros, destacando-se aqui, Slvio Romero,
Euclides da Cunha e Nina Rodrigues. Segundo ela:
O pressuposto do determinismo racial o princpio do racismo. Nessa escola,no se discute mais o indivduo, mas sim o grupo. Existem, na verdade, quatromximas do determinismo racial, que correspondem s suas diferentes faces. Aprimeira afirma que a raa constitui um fenmeno essencial. Dizia-se com isso quehavia, por exemplo, entre o branco e o negro a mesma distncia que existe entre o
cavalo e a mula. Alguns desses tericos advogam inclusive a tese da infertilidadedo mestio pautados nesse tipo de pressuposto. [...]. Outra mxima estabelecia arelao entre atributos externos e internos. Ou seja, acreditava-se que a partir decaractersticas exteriores como a cor, o tamanho do crebro, o de cabelo poder-se-ia chegar a concluses sobre aspectos morais das diferentesraas(SCHWARCZ, 1996. pp. 168-169).
23Cf. Schwarcz, Lilia Moritz. As teorias raciais, uma construo histrica de finais do sculo XX. O Contextobrasileiro. In. Raa e Diversidade. Orgs. Lilia Moritz Schwarcz, Renato da Silva Queiroz. Ed. Universidadede So Paulo. So Paulo. Edusp. 1996. (pp. 147-185).
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Esses pressupostos tericos foram aplicados deliberadamente pela elite brasileira
para justificar o embranquecimento da raa que se queria para a nao.
Definitivamente, o jogo da capoeira no poderia continuar existindo na sociedade
brasileira com aqueles traos estranhos e to marcantes da cultura negra, que
tanto atormentavam os bons costumes de uma nao que se queria nobre e
civilizada conforme os cnones e desejo de nossos intelectuais brasileiros dessa
poca. Acreditava-se, portanto, baseados naqueles pressupostos raciais, que o
homem negro e sua cultura seria inferior, dentro de um quadro de classificao
que privilegiava a cultura europia e o homem branco. Edson Carneiro(1965), ao
se referir a capoeira , diz que ela Foi sempre uma vadiao proibida, perseguida,
e os negros que a ela se davam eram caados nas ruas e escorraados das
cidades como desordeiros e malandros (p.49). Dessa forma, as danas, a
religio, a luta e a viso de mundo do negro so ignoradas e ridicularizadas pela
elite pensante, no merecendo seno uma categoria primitiva, dentro da
classificao do determinismo racial, que atribui civilizao europia uma
condio superior do ponto de vista do progresso humano. Do simples ao
civilizado de gestos nobres, a raa negra e sua cultura estariam bem abaixo na
escala evolutiva, conforme os cnones dessas doutrinas. Conforme Ortiz:
Na verdade, o evolucionismo se propunha encontrar um nexo entre as diferentessociedades humanas ao longo da histria; aceitando como postulado que osimples (povos primitivos) evolui naturalmente para o mais complexo(sociedades ocidentais), procurava-se estabelecer s leis que presidiram oprogresso das civilizaes. Do ponto de vista poltico, tem-se que o evolucionismovai possibilitar elite europia uma tomada de conscincia do seu poderio quese consolida com a expanso mundial do capitalismo. Sem querer reduzi-lo a umadimenso exclusiva, pode-se dizer que o evolucionismo em parte legitima
ideologicamente a posio hegemnica do mundo ocidental. A superioridade dacivilizao europia torna-se assim decorrente das leis naturais que orientam ahistria dos povos (ORTIZ, 1994, pp.14-15).
Para efeitos metodolgicos, o conceito de cultura negra utilizado por ns nessa
pesquisa baseia-se na concepo de Myrian Santos (1999), segundo a qual:
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Por cultura no compreendo um conjunto de valores, hbitos e prticas comcontedos fixos facilmente identificveis ou com uma nica origem, seja elaafricana, ibrica ou brasileira, pois a cultura negra como qualquer outra, alm derelacional, mutvel e ecltica, muitas vezes sobrevive apenas como subtexto. Meuponto de vista que embora sem caractersticas fixas e imutveis h valores,hbitos e sentimentos presentes em expresses musicais e corporais que podemser associados a determinados grupos sociais ao longo da histria e alm dasfronteiras poltico-geogrficas. Se h uma cultura negra, esta pode serreconhecida no em sua origem, mas na reconstruo contnua de formas deexpresses culturais e formas sociais institucionalizadas (MYRIAN SANTOS1999, pp.44-45)
Com efeito, importante que se tenha em mente que no estamos interessados
em descobrir qual a origem da capoeira, - se africana ou se brasileira -, uma vez
que este aspecto j foi objeto de anlise em estudo anterior24. Pretendemos
investigar o processo de reafricanizao desse jogo, quais as estratgias
elaboradas, como e por que se tentou eliminar os atributos africanos do jogo de
capoeira e a quem isso interessa de fato. Embora esse estudo no priorize a
questo da origem propriamente dita da capoeira, fundamental estabelecer a
diferena entre os estilos, como mostraremos mais adiante, mas tendo tambm a
preocupao central de conceber primeiramente a capoeira como uma espcie de
jogo-luta com um tipo peculiar de movimentao dentro de uma roda formadapelos praticantes ao som de instrumentos musicais, tais como berimbaus,
pandeiros, atabaque, agog e reco-reco acompanhados por cantigas prprias e de
outras manifestaes da cultura popular, como, por exemplo, a Batucada e o
Samba de Roda.
Colocadas as coisas nesses termos, podemos, ento, retornar com Ortiz
(1994) para descobrirmos quais os interesses de fato da intelligentsia, -
precursores das cincias sociais no Brasil, no sentido de que pretendemos
estabelecer um nexo com essas idias para compreender e explicar o fenmeno
da desafricanizao da capoeira, iniciado no final do sculo XIX e que se
consolida, dentro do quadro de anlise proposto por essa pesquisa, na dcada de
1970, quando o jogo de capoeira reconhecido pelo MEC e so fundadas as
primeiras federaes dessa modalidade no Brasil.
24Cf. JNIOR, lvaro Machado de Andrade. (2001). O Jogo da capoeira em Aracaju: uma reconstruohistrica. Monografia apresentada ao Colegiado do Curso de Cincias Sociais CECH-UFSe.
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Emconformidade com Ortiz (1994), os intelectuais brasileiros do final dosculo XIX e incio do XX, influenciados pela teoria evolutiva, tinham uma
conscincia da inferioridade do estgio civilizatrio do homem brasileiro, porm
essencial para eles que essa inferioridade seja explicada:
Torna-se necessrio, por isso, explicar o atraso brasileiro e apontar para o futuroprximo ou remoto, a possibilidade de o Brasil se construir enquanto povo, isto ,como nao. O dilema dos intelectuais desta poca compreender a defasagementre teoria e realidade, o que se consubstancia na construo de uma identidadenacional. A interpretao do Brasil passa necessariamente por esse caminho, daa nfase no estudo do carter nacional, o que em ltima instncia se reportava
formao de um Estado nacional (ORTIZ, 1994, p. 15).
No jogo da construo da identidade nacional, a cultura popular - que
comporta um rico conjunto de manifestaes socioculturais e que so expresses
originrias de pessoas simples, na maioria das vezes marginalizadas e
desfavorecidas historicamente, sobretudo, de seus direitos fundamentais - vai
sendo apropriada como smbolo nacional. Segundo o antroplogo Pinho (1998):
O nacional-popular define-se, em termos gramscianos, como o resgate do
passado histrico cultural das classes populares (excludos do poder dominante)como patrimnio e base para a construo da nacionalidade. Valores esensibilidades enraizadas nas prticas da gente comum so o manancial danao, alados a nova dignidade pela militncia cultural e intelectual de agentessociais sados organicamente do povo ou a este ligados de algumaforma.(PINHO, 1998, p.4).
Nesse sentido, as palavras de Ortiz (1994) traduzem de modo bastante
claro a relao que se quer estabelecer entre cultura popular e a identidade
nacional, medida que a prpria cultura popular serve de base concreta para a
fabricao de nossa identidade nacional. Pode-se dizer que a relao entre atemtica do popular e do nacional uma constante na histria da cultura
brasileira, a ponto de um autor como Nelson Werneck Sodr afirmar que s
nacional o que popular. Em diferentes pocas, e sob diferentes aspectos, a
problemtica da cultura popular se vincula da identidade nacional (ORTIZ,
1994, p. 127). Nesse processo de apropriao da cultura popular pelo Estado para
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a construo dessa identidade nacional, Leite (2000) desconfia desse podercentralizador do prprio Estado afirmando que: [...] torna-se cada vez mais difcil
crer na sua legitimidade como representante democrtico da diversidade cultural,
uma vez que o nacionalismo poltico tornou o Estado referente a si mesmo para
compensar a inexistncia de traos culturais identitrios para toda a nao
(LEITE, 2000, p. 104).
O dilema da construo da identidade nacional exigia reflexes e esforos
cada vez mais intensos dos intelectuais brasileiros. A questo racial se coloca
imediatamente como problema fundamental e urgente para esses pensadores. A
eleio de um representante altura da identidade nacional que se queria
construir naquele momento, coloca o mestio como o elemento mais adequado
para os intelectuais de final do sculo XIX e incio do sculo XX, uma vez que os
negros e ndios eram considerados racialmente inferiores. O ideal do
embranquecimento, portanto, vai consolidando-se medida que chegamos ao fim
da escravido no Brasil. Segundo a anlise de Moura (1988), para os pensadores
do final do sculo XIX e princpios do XX, o Brasil teria de ser branco e capitalista.
O auge da campanha pelo embranquecimento do Brasil surge exatamente nomomento em que o trabalho escravo (negro) descartado e substitudo peloassalariado. A coloca-se o dilema do passado com o futuro, do atraso com oprogresso e do negro com o branco como trabalhadores. O primeirorepresentaria a animalidade, o atraso, o passado, enquanto o branco (europeu)era o smbolo do trabalho ordenado, pacfico e progressista. [...]. A grita foi geral.Precisamos melhorar o sangue, a raa.(MOURA, 1988, p. 79).
O mestio, ento, gerado pelo cruzamento de brancos com negros no Brasil surge
como o melhor modelo de representao de nossa identidade nacional, embora
tenha sido tambm motivo de descriminaes e ressalvas por parte de alguns
intelectuais, que no via com bons olhos esse elemento hbrido na sociedade
brasileira. Nesse processo de embranquecimento do povo brasileiro, Ortiz (1994)
escreve que:
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Na medida em que a civilizao europia no pode ser transplantadaintegralmente para o solo brasileiro [...], na medida em que no Brasil duas outrasraas consideradas inferiores contribuem para a evoluo da histria brasileira,torna-se necessrio encontrar um ponto de equilbrio. Os intelectuais procuram
justamente compreender e revelar este nexo que definiria nossa diferenciaonacional. O mestio para os pensadores do sculo XIX mais do que umarealidade concreta, ele representa uma categoria atravs da qual se exprime umanecessidade social a elaborao de uma identidade nacional ( ORTIZ, 1994, p.21)
Para os objetivos dessa pesquisa, o problema da mestiagem no central,
embora merea, pela fora e importncia do mesmo, algumas consideraes ao
longo do captulo. Entretanto, importante que se diga que a poltica da
mestiagem vai possibilitar tambm um forte movimento de imigrao europia
para o Brasil, que corresponde evidentemente aos ideais de branqueamento da
populao brasileira conforme as metas que se quer naquele momento fins do
sculo XIX e princpio do sculo XX , para a nao. Todavia, DAMATTA (1986)
adverte que o processo da m
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