A Reafricanização Da Capoeira Em Aracajú - Identidades Em Jogo

download A Reafricanização Da Capoeira Em Aracajú - Identidades Em Jogo

of 119

Transcript of A Reafricanização Da Capoeira Em Aracajú - Identidades Em Jogo

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    1/119

    1

    Universidade Federal de SergipeNcleo de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais

    Mestrado em Sociologia

    A Reafricanizao da Capoeira em Aracaju: identidades em jogo

    Alvaro Machado de Andrade Jnior

    So Cristvo/SEMaio/2005

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    2/119

    2

    Universidade Federal de SergipeNcleo de Ps-Graduao em Cincias Sociais

    Mestrado em Sociologia

    A Reafricanizao da Capoeira em Aracaju: identidades em jogo

    Dissertao apresentada ao Ncleo de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociaisda Universidade Federal de Sergipe, para aobteno do Ttulo de Mestre em Sociologia,

    sob a orientao do Prof. Dr. RogrioProena Leite.

    So Cristvo/ SE

    Maio/ 2005

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    3/119

    3

    Universidade Federal de SergipeNcleo de Ps-Graduao em Cincias SociaisMestrado em Sociologia

    ALVARO MACHADO DE ANDRADE JNIOR

    A Reafricanizao da Capoeira em Aracaju: identidades em jogo

    Banca Examinadora

    ____________________________________

    Dr. Prof. Rogrio Proena Leite Orientador. CECH-UFS

    ___________________________________________

    Dr. Prof. Osmundo S. de Arajo Pinho Examinador. UCAM

    __________________________________________Dr. Prof. Csar Ricardo S. Bolao Examinador. CECH-UFS

    So Cristvo - SE.

    Maio/2005

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    4/119

    4

    Negro Preto.Eu sou negro!

    Meus olhos so negros.Meus filhos so negros.

    Sou todo, absolutamene preto.Preto! Preto! Preto!

    Meus sonhos so pretos...Minha pele preta como a noite preta e bela.

    Toda iluminada de fricas!

    Aloysio Coutinho Neves Ferreira. (1959 1998)Mestre Maca

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    5/119

    5

    Dedicatria

    Dedico essa dissertao a todas as pessoas que lutam contra o preconceito racialno mundo e visam ao fim das diversificadas formas de desigualdadessocioculturais, que tanto fragilizam, oprimem e desumanizam o ser no planeta.

    Desta forma, esse trabalho dedicado tambm aos meus alunos e ex-alunos doGrupo Mocambo de Capoeira Angola, bem como ao Mestre Puma (GrupoResistncia), ao Mestre Lucas (Grupo Os Molas), ao Mestre Ren Bittencourt(Associao de Capoeira Angola Navio Negreiro ACANNE) e sua estimadafamlia e aos camaradas do Grupo Aba de Capoeira Angola - Wellinghton,Robson Martins e Alex.

    v

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    6/119

    6

    Agradecimentos

    Aos meus pais queridos lvaro e Auxiliadora pela dedicao e amor ofertado

    todos os dias.

    A minha linda Marisa, filha querida, e aos meus lindos irmos Miguel, Any e Alex

    pela amizade, respeito e amor de todos.

    Ao Prof. Dr. Rogrio Proena, orientador dessa dissertao, que atravs do seuolhar sociolgico e de suas sugestes sempre lanou uma luz para visualizarmos

    mais claramente o caminho a seguir nesse trabalho.

    Aos profs. do Mestrado em Sociologia da UFS pela valiosa contribuio

    acadmica ao longo do mestrado.

    Aos funcionrios Conceio e Rondinelson do Ncleo de Ps-Graduao pela

    ateno e significativos servios prestados.

    Aos colegas do Mestrado, em especial, a amiga Edilene, Dnio Papai e

    Humberto pela camaradagem e discusses dentro e fora da UFS.

    vi

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    7/119

    7

    Sumrio

    Introduo 10

    Captulo I

    1. O Jogo das identidades na capoeira 19

    1.1. Consideraes iniciais e notas sobre o referencial terico 19

    1.2. Memria e tradio na capoeira: a ritualizao da identidade 27

    Captulo II

    2. A trama da desafricanizao do jogo de capoeira 37

    2.1. A esportivizao da vadiao 37

    2.2. Capoeira: uma ginstica nacional 49

    2.3. Capoeira: um desporto brasileiro 62

    Captulo III

    3. Capoeira de Angola: uma herana de africanos no Brasil 68

    3.1. A Bahia no imaginrio dos capoeiras 68

    3.2. Capoeira Angola: resistncia e cultura negra 76

    3.3. Capoeira de Angola em Aracaju: redescobrindo a identidade cultural afro-

    brasilreira 80

    3.4. Mestre Maca: capoeirista, poeta e andarilho cigano 89

    3.5. Grupo Aba: 10 anos de luta e resistncia de cultura negra 98

    Consideraes Finais 109

    Referncias Bibliogrficas 113

    vii

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    8/119

    8

    Resumo

    Esta dissertao tem como escopo examinar, no mbito da cultura, a relao entre

    o jogo de capoeira e a identidade. Nesse sentido, a capoeira concebida como

    uma tpica manifestao da cultura popular que, nos ltimos trinta anos, vem

    passando por um longo processo de transformaes de seus cdigos e rituais.

    Com efeito, no primeiro captulo, tratamos do referencial terico para pensar nonexo que tentamos estabelecer, fazendo uso de conceitos de cientistas sociais da

    atualidade, tais como Stuart Hall, Nestor Canclini, e Anthonny Giddens. No

    segundo captulo, investigamos o processo de desafricanizao do jogo da

    capoeira e a inveno da identidade nacional a partir da apropriao desse

    prprio jogo-luta enquanto cone representativo da nossa nacionalidade. Desta

    forma, foi fundamental a interpretao de documentos e textos de autores do final

    do sculo XIX e princpios do sculo XX que propuseram a transformao do jogo

    de capoeira em esporte nacional. No terceiro captulo, no qual fizemos a pesquisa

    emprica, tentamos uma breve reconstruo histrica do jogo de capoeira em

    Aracaju, entrevistando alguns dos capoeiristas negros que reafricanizam a

    capoeira nessa cidade a partir do resgate da tradio da Capoeira de Angola e

    da recriao de uma identidade afro-brasileira.

    Palavras-chaves: afro-descendente, cultura, capoeira, identidade, negro, reafricanizao.

    viii

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    9/119

    9

    Abstract

    That dissertation has as mark to examine, in the ambit of the culture, the

    relationship between the capoeira game and the identity. In that sense, the

    capoeira is conceived as a typical manifestation of the popular culture, that in the

    last thirty years it is going by a long process of transformations of your codes and

    rituals. With effect, in the first chapter we treated of the theoretical referencial to

    think in the connection that we tried to establish, making use of social cientists' ofthe present time concepts; such like Stuart Hall, Nestor Canclini, and Anthonny

    Giddens. In the second chapter of that dissertation we investigated the process of

    desafricanizao of the game of the capoeira and the invention " of the national

    identity starting from the appropriation of that own game-fight while representative

    icon of our nationality. This way, fundamental it was the interpretation of

    documents and authors' of the end of the century texts XIX and beginnings of the

    century XX that proposed the transformation of the capoeira game in national

    sport. In the third chapter, in which we made the empiric research, we tried anabbreviation historical reconstruction of the capoeira game in Aracaju, interviewing

    some of the black capoeiristas that reafricanizam the capoeira in Aracaju, starting

    from the " ransom " of the tradition of the Capoeira of Angola and of the recriao

    of an Afro-Brazilian identity.

    Word-keys: afro-descending, culture, capoeira, identity, black, reafricanizao.

    ix

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    10/119

    10

    Introduo

    A temtica da identidade tem mobilizado nas pesquisas contemporneas

    um enorme esforo por parte dos estudiosos das cincias sociais. Essa

    constatao emprica nos motivou a pensar na construo de um problema de

    pesquisa que articulasse esse tema com o jogo-luta de capoeira, uma das

    expresses mais significativas da cultura negra no Brasil, a qual fui iniciado em

    1978 pelo Grupo Os Molas, em Aracaju.Com efeito, a escolha do jogo de capoeira para objeto de investigao

    no se configura numa forma causal ou arbitrria de empreender uma pesquisa,

    tendo em vista a nossa participao direta no universo das rodas de capoeira e

    batizados1, cursos, campeonatos, formaturas, oficinas e outros eventos do gnero

    tanto em Aracaju, onde desenvolvemos a pesquisa de campo, quanto em outras

    regies do pas. Com efeito, a oportunidade da pesquisa do Mestrado em

    Sociologia nos motiva a olhar a capoeira com uma viso diferente daquela com a

    qual estamos habituados no cotidiano da vida.

    No jogo da capoeira, luta e dana se mesclam com toques de berimbaus,

    pandeiros, atabaque e agog, sempre acompanhados por um rico repertrio de

    cantigas tradicionais e outras improvisadas pelos prprios capoeiristas na hora da

    roda. Essas cantigas podem ser de louvaes, de desafios, de imprecaes de

    males ou sobre algumas situaes concretas da vida real, do prprio cotidiano das

    pessoas, como por exemplo, o conflito racial, as desigualdades sociais ou o amor

    por uma linda donzela. Talvez no haja na atualidade em todo o territrio

    1O batizado de capoeira um dos rituais de passagem da Capoeira Regional, estilo criado pelo Mestre Bimba(Manoel dos Reis Machado) no final da dcada de 1920 em Salvador. Na atualidade, o ritual do batizadoconsiste basicamente no recebimento da primeira graduao dos alunos (cordo, corda ou cordel, dependendodo sistema adotado pelo grupo de capoeira. Segundo o Mestre Xaru (Hlio Jos Bastos Carneiro deCampos), que foi formado pelo Mestre Bimba no final da dcada de 1960, o batizado: um momento degrande significado para o aluno, depois de ter aprendido toda a seqncia, encontra-se apto para jogar pelaprimeira vez na roda. Itapuan, ex-aluno, retrata o batizado da seguinte maneira: O batizado consistia emcolocar em cada calouro um Nome de Guerra, o tipo fsico, o bairro onde morava, a profisso, o modo de sevestir, atitudes, um dom artstico qualquer, serviam de subsdios para o apelido. Cf.http://www.svn.com.br.capoeira. Ainda sobre o batizado na capoeira Cf. ITAPUAN, Raimundo Csar Alvesde Almeida. A Saga do Mestre Bimba. Ginga Associao de Capoeira. Salvador. 1994, pp. 63-66.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    11/119

    11

    brasileiro, depois do jogo de futebol, outra prtica cultural to disseminada no pasquanto a capoeira. A presena dessa manifestao multifacetada na sociedade

    brasileira registrada desde o sculo XVII, poca das invases holandesas no

    nordeste (VIEIRA, 1995, p. 6). Desta forma, podemos dizer que o jogo de

    capoeira faz parte da prpria histria do Brasil, e assim como outras

    manifestaes da cultura popular, o Samba e o Candombl2, por exemplo, vm

    passando por um processo de profundas mudanas em sua estrutura e

    organizao social ao longo dos trs ltimos sculos. Paula Montero (1999), ao

    analisar o processo de transformao da capoeira em cone nacional escreve que:

    Muitos autores j demonstraram que a cultura das classes populares amatria-prima por excelncia da construo da nacionalidade nos Estadosgerados nesses ltimos 150 anos. Com efeito, embora esse tipo de estruturaburocrtica se inaugure no campo jurdico e da poltica, no campo da culturaque ele ganha espessura. Isto porque, para que os Estados nacionais selegitimem, preciso que eles constituam culturalmente seu povo,homogeneizando o territrio e universalizando as particularidades locais. Esseprocesso de construo simblica da nacionalidade, que procura incluir e dar umsentido nobre ao modo de vida das camadas pobres tradicionalmente obra dosintelectuais. Algumas tentativas foram feitas, j no final do sculo paradescriminalizar capoeiras e batuques, e torn-los cones de brasilidade.(p.3)

    Os intelectuais, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, tinham um projeto

    para transformar a capoeiragem3 em gynstica nacional, um esporte que

    contribusse para aperfeioar e reunir mais um trao da fisionomia nacional

    (Filho, 1979). Portanto, para esse projeto de aperfeioamento da fisionomia

    brasileira, os aspectos considerados rudes e brbaros da capoeira negra deveriam

    ser eliminados inteiramente, tendo em vista que os mesmos eram considerados,

    pela elite pensante do Rio de Janeiro, um modo inferior e desprovido de

    contedos ou formas nobres, que pudessem representar a identidade nacional.

    Segundo o antroplogo Munanga (1999):

    2Para um estudo sobre o Candombl, Cf. DANTAS, Beatriz Ges. Vov Nag e Papai Branco: usos e abusosda frica no Brasil. Editora Gral. Rio de Janeiro. 1988.3Capoeiragem era o termo pelo qual a imprensa e autoridades comumente se referiam prtica da capoeirano final do sculo XIX no Brasil. Cf. Alexandre Mello Moraes Filho. Tipos de Rua: capoeiragem e capoeirasclebres. In: Festas e Tradies Populares no Brasil. 1979.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    12/119

    12

    Como acontece geralmente na maioria dos pases coloniais, a elite brasileira dofim do sculo XIX e incio do sculo XX foi buscar seus quadros de pensamentona cincia europia ocidental tida como desenvolvida, para poder, no apenasteorizar e explicar a situao racial de seu pas, mas tambm, e, sobretudo,propor caminhos para a construo de sua nacionalidade, tida comoproblemtica por causa da diversidade racial.( p. 50)

    Portanto, no diagnstico terico racial dos precursores das cincias sociais

    do Brasil Silvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues -, os negros e

    seus descendentes, assim como os ndios e a amalgama entre os mesmos, so

    classificados como inferiores dentro de um quadro de anlise evolucionista em

    que a raa branca est numa posio superior. Nina Rodrigues (1977), embora

    tenha reconhecido os servios prestados pelo negro civilizao brasileira,

    classifica-o numa ordem inferior ao branco. Segundo ele:

    A raa negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestveisservios nossa civilizao, por mais justificadas que sejam as simpatias de queo cercou o revoltante abuso da escravido, por maiores que revelem osgenerosos exageros dos seus turiferrios, h de constituir sempre um dosfatores da nossa inferioridade como povo.(RODRIGUES, 1977, p. 7).

    Influenciados profundamente pelos paradigmas dessas teorias raciais que

    consideram os elementos da cultura negra primitivos, os intelectuais que

    inventaram a transformao da capoeira em esporte nacional, alm de propor um

    mtodo para seu ensino, recriam uma nova origem para esse jogo. Conforme Reis

    (1996), aqueles intelectuais brasileiros de fins do sculo XIX e princpios do XX:

    [...], imbudos da responsabilidade de construir uma identidade para a nao edot-la de smbolos que a particularizassem em relao s demais, tendem aapropriar-se de determinadas manifestaes culturais negras, e,

    deliberadamente, buscam desafricaniz-las, embranquecendo-assimbolicamente. [grifo da autora].(REIS, 1996, p. 38)

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    13/119

    13

    Em meio a esse processo simblico de embranquecimento da capoeira4

    eda sua apropriao enquanto cone de nossa nacionalidade, algumas vozes

    pedem a sua criminalizao inconteste dessa atividade de vadios e desordeiros

    que infestam as cidades com suas maltas que causam terror e pnico na

    populao pacfica5. As maltas de capoeiristas, no Rio de Janeiro dos fins do

    sculo XIX e incio do XX, chegavam a ser constitudas por at cem homens

    espalhados por suas freguesias, como eram conhecidos os bairros de atuao

    das atividades criminosas dos capoeiras. Em seu livro A Negregada Instituio: os

    capoeiras no Rio de Janeiro 1850-1890, Soares ( 1994) analisa a formao e o

    desenvolvimento das duas maiores maltas6 de capoeira que atuavam na

    clandestinidade no Rio de Janeiro, ora trabalhando para o partido republicano, ora

    para os monarquistas. Nesse processo de criminalizao da capoeiragem, o

    Cdigo Penal da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, em seu Decreto 487 de

    outubro de 1890 estabeleceu punies no Captulo XIII para os capoeiras:

    Dos Vadios e CapoeirasArt. 402. Fazer nas ruas e praas pblicas exerccios de agilidade

    corporal conhecidos pela denominao de capoeiragem; andar em correiriascom armas ou instrumentos capazes de produzir uma leso corporal,provocando tumulto ou desordens, ameaando pessoa certa ou incerta, ouincutindo temor de algum mal:

    Pena De priso celular de dois a seis meses.Pargrafo nico. considerada circunstncia agravante pertencer

    o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes ou cabeas se impor a penaem dobro.7

    4Para uma compreenso do processo de embranquecimento da capoeira Cf. FRIGRIO, Alejandro. Capoeirade Arte Negra a esporte branco. In: Revista Brasileira de Cincias Sociais. AMPOCS. N. 10. v. 4. 1989.Nesse artigo, o autor investiga o processo de criao e desenvolvimento da Capoeira Regional e de sua

    migrao para as classes mdia e alta de Salvador, concluindo que a Capoeira Angola representaria a artenegra enquanto a regional, o esporte branco.5 Cf. BRETAS, Marcos Luiz. Navalhas e Capoeiras: uma outra queda. Jornal Muzenza. Ano 4. N 34.Curitiba. 1998. pp. 4-11.6Ver sobre as maltas no Rio de Janeiro, Lbano, Carlos Eugnio (2004). A era de oura da capoeira. RevistaNossa Histria. Ano. I. N 5. Fundao Biblioteca Nacional. Ainda sobre a formao e o desenvolvimentotambm das maltas de capoeira no Par, consultar LEAL, Luiz Augusto Pinheiro (2002) Deixai a poltica dacapoeiragem gritar: capoeiras e discursos de vadiagem no Par. Dissertao de Mestrado em Histria.UFBA. Cf. tambm D7Cf. VIEIRA, Luis R. (1998) O jogo de capoeira: cultura popular no Brasil. 2 ed. Sprint. Rio de Janeiro. p.93.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    14/119

    14

    Todavia, a partir da dcada de 1930, o processo de criminalizao do jogoda capoeira chega ao fim, emergindo com bastante fora, agora, em Salvador, um

    novo movimento que objetiva a legalizao e o reconhecimento da capoeira dentro

    da sociedade. Esse movimento, segundo Reis (1996), liderado pelo Mestre Bimba

    e sua Capoeira Regional8 e, respectivamente, pelo Mestre Pastinha com a

    Capoeira Angola, elabora duas propostas esportivas e diferentes de incluso do

    negro na sociedade brasileira.

    Deve-se ter em mente nessa dissertao que ao nos referimos

    Capoeira Angola, estamos nos referindo forma considerada mais tradicional de

    se fazer capoeira, como era praticada nos barraces erguidos nos bairros

    populares ou nos casares, ruas e largos de Salvador.

    Esse estilo de capoeira enfatiza os aspectos mais ldicos do jogo, bem

    como atribui maior importncia aos rituais de dana, na qual a maioria das

    tcnicas corporais desenvolvida em plano baixo e a meia altura, diferentemente

    do que acontece na Capoeira Regional, que alm de enfatizar movimentos altos,

    exige tambm uma caracterstica marcial bastante veloz. Nos captulos dois e trs

    desse trabalho, a questo das diferenas de propostas, rituais e tcnicas de cada

    estilo ser abordada com maior profundidade.

    Para efeitos metodolgicos, o termo cultura negra nessa dissertao

    baseia-se na definio dada por Myrian Santos (1999)9, segundo a qual:

    Por cultura negra no compreendo um conjunto de valores, hbitos e prticascom contedos fixos facilmente identificveis, ou com uma nica origem, seja elaafricana, ibrica ou brasileira, pois a cultura negra, como qualquer outra, alm derelacional, mutvel e ecltica, muitas vezes sobrevive apenas como subtexto. Meuponto que embora sem caractersticas fixas e imutveis h valores, hbitos esentimentos presentes em expresses musicais e corporais que podem serassociados a determinados grupos sociais ao longo da histria e alm das

    fronteiras poltico-geogrficas. Se h uma cultura negra, esta pode ser

    8A Capoeira Regional prioriza uma forma na qual os capoeiristas utilizam uma seqncia de golpes e contra-golpes de projees (bales) no utilizados pela Capoeira Angola. Mestre Bimba criou tambm toquesespecficos de berimbau para esse estilo de capoeira, alm de fazer uso de cerimoniais de batizado e formaturade alunos at ento desconhecidos pelos capoeiristas.9 Nesse artigo, a autora analisa a presena da cultura negra nas Escolas de Samba do Rio de Janeiro,objetivando analisar o processo de mudanas no carnaval carioca e o relacionamento atual das escolas com aIndstria Cultural, com os empresrios, bicheiros e traficantes de drogas.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    15/119

    15

    reconhecida no em sua origem, mas na reconstruo contnua de formas deexpresses culturais e formas sociais institucionalizadas. ( pp. 44-45).

    Esse conceito relevante para essa investigao sociolgica medida que

    a utilizao do termo pode revelar algumas caractersticas importantes que

    compem a organizao e o sentido do jogo da capoeira. Acrescente a isso, o fato

    de sua perspectiva histrica que alcana determinados grupos sociais em busca

    de sua identidade cultural na sociedade recente. Feitas essas primeiras

    consideraes, o objetivo dessa dissertao est assentado na anlise do

    processo de Reafricanizao do jogo de capoeira em Aracaju, no perodo

    compreendido entre 1985 a 2004. Sua diretriz central o resgate da Capoeira

    Angola, enquanto uma forma singular da cultura negra e a recriao da identidade

    afro-descendente reivindicada pelos sujeitos sociais entrevistados, que atribuem

    frica o local de origem da capoeira e dos seus ancestrais negros. Nesse sentido,

    queremos analisar de que forma essa identidade construda. Quais as

    estratgias polticas e simblicas que do legitimidade e autenticidade ao

    movimento reafricanizador da capoeira em Aracaju? Essas so algumas das

    questes que tentaremos compreender e explicitar nessa pesquisa.

    Diante de um problema dessa natureza, ou seja, da realizao depesquisa baseada na observao participante de um objeto da cultura popular

    negra, elaboramos nosso quadro terico, seguindo inicialmente as orientaes de

    Canclini (1993), segundo o qual: Mais do que um quadro terico adequado para

    anlise da cultura, interessa-nos um quadro que nos ajude na explicao das

    desigualdades e dos conflitos entre os sistemas culturais.(p. 18). Nesse caminho

    de orientaes do referencial terico para nossa pesquisa sociolgica,

    imprescindvel foi a aplicao do conceito de tradio inventada de Eric

    Hobsbawm. Para ele:

    Por tradio inventada, entende-se um conjunto de prticas, normalmenteregularizadas por regras tcitas ou abertamente aceitas; tais prticas, denatureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas decomportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, umacontinuidade em relao ao passado (HOBSBAWM, 1997, p. 9).

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    16/119

    16

    Dois outros autores se mostraram fundamentais para a anlise ecompreenso do dilema da identidade na sociedade ps-moderna e da relao

    que pretendemos estabelecer entre as identidades e o jogo de capoeira. O

    primeiro o socilogo jamaicano Stuart Hall, reconhecido internacionalmente

    pelos seus ensaios publicados e suas conferncias nos centros universitrios de

    diversos pases ao tratar de temas como a identidade, a raa, etnicidade e nao

    na sociedade contempornea. Desse estudioso, escolhemos o conceito de

    identidade cultural, o qual desenvolve uma interpretao da identidade do sujeito

    ps-moderno. Para ele, o sujeito, na sociedade recente, assume diferentes

    identidades medida que mantm relaes com outros sistemas de identificao

    e representao na sociedade. Nesse sentido, nosso terico dir que:

    A identidade totalmente segura, completa, unificada e coerente uma fantasia.Ao contrrio, medida que os sistemas de significao e de representaocultural multiplicam-se, confrontamo-nos com uma multiplicidade difusa, confusae fluida de identidades possveis, podendo nos identificar com cada uma delas ao menos temporariamente (HALL, 1998, pp. 11-12).

    Nosso segundo autor Anthony Giddens, socilogo britnico que tambm

    ocupa uma posio privilegiada no campo internacional das Cincias Sociais.Desse terico, utilizamos o conceito de tradio para pensar as transformaes

    que se desenvolvem no jogo da capoeira. Pretendemos com esse conceito de

    Giddens compreender como a tradio e a modernidade se inserem na capoeira e

    de que modo cada um desses aspectos interfere na fronteira do outro, bem como

    que tipo de relao se pode estabelecer com a tradio na sociedade atual e

    como isso acontece na capoeira. Para ele: A integridade da tradio no deriva

    do simples fato da persistncia sobre o tempo, mas do trabalho contnuo de

    interpretao que realizado para identificar laos que ligam o presente com o

    passado (Giddens, 1997, p. 82). Foi importante tambm para a compreenso do

    fenmeno observado a concepo de Giddens (1991; 1997) acerca da

    modernidade e da ps-modernidade, de sua interpretao sobre as

    conseqncias dessa ordem mundial para a prpria identidade do sujeito.

    Utilizamos tambm a concepo de cultura hbrida de Canclini (1993) que

    investiga o processo de mudanas da cultura popular a partir dos intercmbios

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    17/119

    17

    com outros circuitos culturais urbanos. Nesse sentido, a viso desse autor sobre oprocesso de transnacionalizao da cultura e dos entrecruzamentos gerados pela

    hibridizao cultural uma interpretao da qual no podemos prescindir nessa

    pesquisa.

    Pretende-se com essa dissertao contribuir para o conhecimento

    acadmico acerca do jogo de capoeira em Aracaju, apresentando dessa forma

    uma anlise histrico-sociolgica dessa manifestao cultural e dos processos

    formadores das identidades. A pesquisa de campo foi realizada em Aracaju,

    durante os anos de 2003 e 2004, na qual entrevistamos os principais integrantes

    dos grupos de capoeira responsveis pelo processo de Reafricanizao desse

    jogo nesta cidade. Relevante tambm foi o nosso intercmbio com o Mestre Ren

    Bittencourt em Salvador que nos possibilitou um contato direto com a ACANNE

    Associao de Capoeira Angola Navio Negreiro em Salvador, onde participamos

    de dois encontros internacionais de Capoeira Angola nos anos de 2002 e 200410.

    Feitas essas consideraes, essa dissertao est dividida em trs

    captulos, combinados dentro de uma lgica seqencial que permite transitar de

    um para o outro atravs de suas prprias fronteiras. Desta forma, no primeiro

    captulo, procuramos dialogar com nosso referencial terico, tentando estabelecer

    um nexo entre o pensamento dos autores e o jogo da capoeira. No segundo

    captulo, intitulado A trama da desafricanizao do jogo de capoeira, tratamos de

    uma reviso histrico-bibliogrfica que inclui autores do final do sculo XIX e incio

    do sculo XX que tinham por objetivo a transformao da capoeira em esporte

    nacional. Mostraremos, portanto, o que est por trs dessa tentativa de

    esportifizar a capoeira e como reagem alguns capoeiristas do Centro Esportivo de

    Capoeira Angola, fundado pelo Mestre Pastinha, em 1941, em Salvador. Por

    ltimo, no captulo terceiro, desenvolvemos a pesquisa emprica, no intuito de10 Esses eventos foram realizados na sede da ACANNE, situada na Rua do Sodr, 48, bairro Dois de Julho.No 6 Encontro dos Guardies da Capoeira Angola da Bahia realizado entre os dias 20 e 24 de maro de2002, o homenageado principal foi Washington Bruno da Silva Mestre Canjiquinha. No 7 Encontro dosGuardies da Capoeira Angola da Bahia tambm realizado na sede da ACANNE entre os dias 23 a 28 demaro de 2004, o homenageado principal foi o Mestre Paulo dos Anjos. Nesses encontros, foram realizadasaulas prticas de Capoeira Angola, toques de berimbaus, mostra de vdeos e fotografias alm de rodas com apresena de mestres velhos da Bahia como Joo Pequeno, Bigodinho, Gerson Quadrado, Pel da Bomba,Felipe de Santo Amaro, Virglio do KM 17, Boca Rica e alguns dos novos mestres tais como ValmirDamasceno, Ciro Rasta, Boca do Rio, Satlite, Amncio e Lazinho.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    18/119

    18

    descobrir a gnese do processo de reafricanizao do jogo de capoeira emAracaju. Nesse captulo, tentamos responder a algumas questes, tais como quais

    os mestres e grupos de capoeira que revitalizam a Capoeira Angola e recriam uma

    identidade afro-brasileira.

    Como recursos metodolgicos de anlise, alm de entrevistas, anotaes

    em dirio de campo, consultas em arquivo pblico e em jornais particulares,

    recorremos tambm utilizao de dados iconogrficos11, objetivando identificar

    nos mesmos alguns aspectos significativos que nos auxiliem na anlise da

    reconstruo histrica do processo de reafricanizao da capoeira em Aracaju.

    Dentro desse processo de anlise de pesquisa, assistimos a diversos vdeos de

    Capoeira Angola e de Capoeira Regional produzidos independentemente por

    alguns grupos de capoeira como Grupo Palmares da Bahia, Grupo Mocambo,

    Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, Grupo Resistncia, Grupo Novos Irmos,

    Grupo Aruand e Grupo Os Molas, assim como produes em vdeo sobre

    capoeira, patrocinados com o apoio da Petrobrs, como por exemplo Pastinha:

    uma vida pela capoeira12, filmado no Brasil e nos Estados Unidos. Esse

    documentrio foi dirigido por Antnio Carlos Muricy em 1999. Em termos de vdeo,

    tambm foi imprescindvel o documentrio No fio da Navalha exibido pelo

    programa de televiso Sport TV em julho de 2003, assim como o Vdeo

    Capoeiragem na Bahia, documentrio produzido pela rede de televiso TV

    Educativa da Bahia.

    11 Para ver tambm outras imagens de capoeira de Pierre Verger, Cf. o endereo eletrnico: http://www.PirrerVerger.org.12 Esse documentrio registra cenas da capoeira da atualidade e dos Mestres Pastinha, Waldemar daLiberdade, Bimba, Trara, Caiara, entre outros praticantes do jogo nas dcadas de 1950 e 1960 em Salvador,bem como os depoimentos de Pierre Verger, Caribe, Jorge Amado e D. Amlia (esposa do Mestre Pastinha).

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    19/119

    19

    CAPTULO I

    1. O Jogo das Identidades na Capoeira

    1.1. Consideraes iniciais e notas sobre o referencial terico

    A abordagem da temtica da identidade cultural de Hall (1998) uma

    advertncia arrebatadora da atual realidade das sociedades modernas.A identidade, na atual modernidade, no est mais ancorada em um porto

    seguro: a paisagem que desenhava solidez e certeza de si mesma e do

    mundo social e cultural agora fragmentos de runas que se dissolveram,

    assumindo outra forma distinta daquela encontrada na sociedade tradicional. Isso

    resulta, ento, na crise de identidade moderna, que para Hall (1998) o

    conjunto de duplos deslocamentos(p.9) que descentralizam o sujeito no mundo

    globalizado.

    Corroborador da idia que advoga uma concepo de que no temos mais

    uma identidade fixa ou essencialista na sociedade atual, Hall escreve que a

    identidade do sujeito ps-moderno:

    [...] tornou-se uma festa mvel: formada e transformada continuamente emrelao s maneiras pelas quais somos representados e tratados nos sistemasculturais que nos circundam [...] Ela histrica, no biologicamente definida. [...] Aidentidade totalmente segura, completa, unificada e coerente uma fantasia. Aocontrrio, medida que os sistemas de significado e de representao culturalmultiplicam-se, confrontamo-nos com uma multiplicidade difusa, confusa e fluidade identidades possveis, podendo nos identificar com cada uma delas ao menostemporariamente (HALL, 1998, pp. 11-12).

    A argumentao desenvolvida pelo autor aponta para o impacto do

    fenmeno da globalizao no processo de ressignificao da identidade do sujeito

    na alta modernidade. Essa identidade ampliada e transformada por processos

    complexos de interao e identificao dos sujeitos no mundo cultural e social.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    20/119

    20

    Assim sendo, a concepo de identidade do sujeito ps-moderno para ele umaidentidade mais aberta, fluida e hbrida.

    Para demonstrar um exemplo de como o sujeito assume identidades

    diferentes ao longo de sua prpria histria, gostaramos de transcrever uma parte

    significativa de uma entrevista concedida por Stuart Hall a Leandro Colling em

    julho de 2000, na cidade de Salvador, quando esteve pela primeira vez no Brasil

    para proferir a palestra de abertura no VIII Congresso da Associao Brasileira de

    Literatura Comparada, realizada na Universidade Federal da Bahia. Ele explica

    nessa entrevista que:

    Ns estamos sempre sendo identificados com uma determinada posio. E semesse investimento na cultura impossvel agir. Mas esta posio no permanece amesma. Quando eu cheguei na Inglaterra era chamado de indiano do oeste. Equando eu voltei Jamaica, depois de oito anos, minha me me disse: Ah! Euespero que eles no achem que voc um imigrante.. Naquele momento eu medei conta que eu era um imigrante! Apenas naquele momento eu adquiri aidentidade de imigrante. Quando eu era criana ningum chamava as pessoascomo eu de negras. Aps os movimentos civis e a libertao negra eu me deiconta que eu era, afinal de contas, um negro. Esta nem sempre foi, portanto, aminha identidade. Ela se tornou a minha identidade a partir de um determinadomomento histrico. Ento, importante estudar identidades no plural, mas no

    como algo que fixo desde o incio e que jamais muda13

    .

    Como podemos notar, ao contrrio dos tipos de interpretao

    essencialista, que partem de uma perspectiva biologizante, a qual considera que a

    cultura e a identidade dos sujeitos so uma espcie de produo transmitida pelos

    genes, Hall diz durante a mesma entrevista que a nossa identidade no formada

    pela cor da pele. Na verdade, a nossa identidade formada pela nossa histria e

    cultura e no apenas pela cor da pele. Ns precisamos desenvolver uma

    autocrtica da cultura e de raa e no de biologia (p.11). No texto: Que negro

    esse na cultura negra ?14, Stuart Hall (2003) critica diretamente o tipo de

    interpretao que essencializa a cultura e a prpria identidade dos negros a partir

    de conceitos biolgicos. Segundo ele:

    13Cf. COLLING, L. Por uma identidade hbrida. Entrevista publicada Revista da Faculdade Dois de Julho.Salvador. Bahia. 2003.14Cf. HALL, Stuart (2003). Da Dispora: identidade e mediaes culturais. Ed. UFMG. Braslia.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    21/119

    21

    O momento essencializante fraco porque naturaliza e des-historiciza adiferena, confunde o que histrico e cultural com o que natural, biolgico egentico. No momento em que o significante negro arrancado de seu encaixehistrico, cultural e poltico, e alojado em uma categoria racial biologicamenteconstituda, valorizamos, pela inverso, a prpria base do racismo que estamostentando desconstruir. Alm disso, como sempre acontece quando naturalizamoscategorias histricas (pensem em gnero e sexualidade), fixamos esse significantefora da histria, da mudana e da interveno poltica.(HALL, 2003, p. 345).

    O fio condutor da argumentao sociolgica de Hall est nas interconexes que

    se multiplicam no mundo social, recriando, ainda que de forma temporria, as

    identidades culturais do sujeito ps-moderno. Nesse sentido, o ambiente,

    enquanto local de interconexes, reveste-se de significao para o sujeito, porque

    exatamente nesse espao que se recriam e se desenvolvem as identidades

    possveis na sociedade contempornea recente. Por isso, a posio do sujeito

    nesse ambiente que lhe atribui uma identidade. Argumentando contra todo tipo de

    concepo essencialista da identidade tnica ou mesmo nacional, Girol (2001),

    escreve no captulo O Atlntico negro como contracultura da modernidade que:

    O que poderia ser chamado de peculiaridade do negro ingls requer ateno

    mistura entre vrias formas culturais distintas. Tradies polticas e intelectuaisanteriormente separadas convergiram e, em juno, sobredeterminaram oprocesso de formao social e histrica no Reino Unido. Essa mistura mal-entendida quando concebida em termos tnicos simples, mas a direita e aesquerda, racista e anti-racista, negros e brancos compartilham tacitamente umaviso dela como sendo pouco mais do que uma coliso entre comunidadescompletamente formadas e mutuamente excludente. Esta se torna a perspectivadominante a partir da qual a histria e a cultura negras so percebidas, assimcomo os prprios colonos negros, como uma intruso ilegtima em uma viso devida nacional britnica autntica que, antes de sua chegada, era to estvel etranqila quanto etnicamente indiferenciada (GIROL, 2001, pp. 42-43).

    Antes de prosseguirmos com a concepo de identidade cultural em Hall,

    pretendemos definir o que entendemos pelo termo reafricanizao da capoeira.Assim, esse termo se refere ao processo de re-inveno da identidade afro-

    descendente e preservao do estilo angola. Em vista disso, estamos

    interessados nas prticas sociais e culturais desses sujeitos que recriam essa

    identidade, queremos descobrir o que est em jogo? Quais as relaes que se

    estabelecem nesse processo? Quais as estratgias polticas elaboradas pelos

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    22/119

    22

    sujeitos sociais que reafricanizam o jogo de capoeira e as conseqncias maisevidentes desse fenmeno? Como se organiza e se desenvolve esse processo de

    re-inveno da tradio da capoeira em Aracaju? O que lhe confere autenticidade

    e legitimao, a quem e ao que se ope essa reafricanizao? Essas so as

    questes centrais dessa pesquisa, s quais tentaremos responder ao longo dos

    captulos.

    Com efeito, considerando o grau de complexidade dessas questes e

    objetivando uma compreenso e explicao desse problema, valemo-nos tambm

    nessa pesquisa do conceito de tradio inventada formulado por Eric Hobsbawm

    (1997) para quem:

    Por tradio inventada entende-se um conjunto de prticas regulamentadas porregras tcitas ou abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ousimblica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs darepetio, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relao aopassado. Alis, sempre que possvel, tenta-se estabelecer continuidade com umpassado histrico apropriado (HOBSBAWM, 1997, p. 9).

    Essa concepo de Hobsbawm relevante para nossa investigao medida que

    nos ajuda na explicao dos valores representados e reinterpretados no cotidiano

    dos sujeitos observados, bem como compreender a prpria questo da tradio

    no jogo de capoeira no contexto atual dessa pesquisa.

    Colocadas essas primeiras indicaes do nosso referencial terico,

    gostaramos de retornar, ainda, para a entrevista supracitada de Leandro Colling

    com Stuart Hall para demonstrar mais um pouco da viso desse socilogo

    jamaicano. O indagador de Hall diz que ele [Hall] est sempre rejeitando posies

    binrias, e que essa uma constante nos textos do entrevistado, diz tambm que

    uma das idias de Hall que lhe chamaram ateno a sua reflexo sobre o fato

    de que no momento em que algum tenta agir sobre a identidade do outro, nobasta recorrer raiz, para a unidade perdida. Objetivando com isso descobrir a

    posio dos movimentos negros britnicos e de outros movimentos sociais de

    diferentes lugares, Leandro Colling diz a Hall que em relao aos movimentos

    brasileiros parecem que eles sempre esto querendo retornar me frica.

    Vejamos ento a resposta dada pelo socilogo:

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    23/119

    23

    A resposta desta pergunta realmente complicada. Porque a forma atravs daqual as identidades perdidas tm de lutar pensar as suas identidades comouma volta ao que eles perderam. Mas quando voc observa as identidades e asprticas que eles produziram, eles no podem recapitular o passado. Isso absolutamente impossvel! A frica da qual eles foram tirados ficou h 400 anosatrs e se tornou um continente h apenas 100 anos. Antes disso havia apenastribos, pessoas, religies e lnguas. A noo da frica propriamente dita umanoo moderna. E a frica no tem esperado por eles sem mudar, mas tempassado por 400 anos de colonialismo, de imperialismo, de reestruturao. Noh dvida de que a capoeira de Angola veio de Angola por alguma rota secreta.Mas Angola uma sociedade que sofre muito com a guerra civil, ela esttotalmente partida, em uma batalha. E o que ns dizemos diante da volta dacapoeira baiana para a angolana? Isso no significa dizer que o desejo de voltar

    no seja importante, pois de fato o , mas trata-se de uma metfora. a formade eles falarem a respeito de tudo o que aconteceu desde que eles foramtirados de l. como eles reescrevem uma histria para si em termos nareconstruo do passado. Ento, metaforicamente, isto importante para suaslutas polticas, mas, literalmente, seria intil para tentar voltar (HALL, 2003,p.10).

    Embora essa pesquisa no esteja interessada em desvendar essa rota secreta,

    ou seja, na questo de uma origem para o jogo de capoeira, importante colocar

    que no atual contexto das pesquisas essa rota tem sido ampliada tambm para

    outras regies do continente africano. O aspecto mais importante que se deve

    ressaltar dessa argumentao nos parece que justamente o reconhecimento de

    uma luta poltica dentro do movimento capoeirstico em direo capoeira

    angolana. A existncia desse movimento atual da capoeira, lembrado por Hall em

    sua entrevista, tem sua origem de fato com a fundao da CECA Centro

    Esportivo de Capoeira Angola em 1941, que teve em seu comando o famoso

    Mestre Pastinha, reconhecido como um dos principais guardio da tradio da

    capoeira em Salvador, e que tem seus representantes atuais em vrias regies do

    Brasil - inclusive em Sergipe, onde realizamos nossa pesquisa de campo -, enoutras localidades geogrficas do mundo. A noo de guardio da tradio nessa

    pesquisa se baseia na concepo do termo fornecida por Giddens (1977) que

    define:

    A tradio impensvel sem guardies, porque estes tm acesso privilegiado verdade; a verdade no pode ser demonstrada, salvo na medida em que se

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    24/119

    24

    manifesta nas interpretaes e prticas dos guardies. O sacerdote, ou xam,pode reivindicar ser no mais que o porta-voz dos deuses, mas suas aes defato definem o que as tradies realmente so. As tradies secularesconsideram seus guardies como aquelas pessoas relacionadas ao sagrado; oslideres polticos falam a linguagem da tradio quando reivindicam o mesmo tipode acesso a verdade formular (GIDDENS, 1997, p. 100).

    Embora haja outros elementos significativos desempenhando papis

    importantes no universo da capoeira como, por exemplo, os prprios discpulos, o

    guardio na concepo de Giddens ocuparia um lugar privilegiado dentro do

    quadro de hierarquia existente na estrutura social do jogo de capoeira. Ele seria,

    portanto, uma espcie de pessoa prestigiosa (Mauss, 1974), aquela quetransmite s novas geraes, ou seja, aos educandos, os fundamentos, as regras

    e tcnicas corporais. Para que possamos compreender e explicar o processo de

    reafricanizao da capoeira importante que se tenha em mente essa qualidade

    do guardio da tradio.

    No processo social de des-centramento do sujeito na sociedade

    contempornea, Hall (1998) considera a dcada de 1960 como um marco residual

    dos grandes movimentos sociais revolucionrios, [...] das revolues estudantis,

    dos movimentos anti-guerra e da contra-cultura jovem, das lutas pelos direitos

    civis, dos movimentos revolucionrios do terceiro mundo, dos movimentos

    pacifistas e de todo o resto associado a 1968 (p. 34). Esse momento histrico

    ficou conhecido, segundo esse autor, como o momento das polticas identitrias,

    o qual cada segmento social apelava para a sua prpria identidade social. Desta

    maneira, o feminismo atraia as mulheres; a poltica sexual, os gays; as lutas

    raciais, os negros; o movimento anti-guerra, os pacifistas e assim por diante. Esse

    o nascimento histrico do que veio as ser conhecido como polticas identitrias

    uma identidade por movimento (pp. 34-35).

    Para a capoeira, na onda desses movimentos sociais no Brasil, foi

    fundamental a participao do Mestre Moraes15, por exemplo, dentro do

    movimento negro de Salvador para o processo de reafricanizao da capoeira em

    15Pedro Moraes Trindade (Mestre Moraes) fundou o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho GCAP - no Riode Janeiro em 1980, transferindo-se para Salvador em 1982, onde instala um ncleo desse grupo, passando adesenvolver um trabalho de difuso da Capoeira Angola. Mestre Moraes tem participado de centenas deeventos ligados capoeira tanto aqui no Brasil quanto no exterior.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    25/119

    25

    Aracaju, tendo em vista que o trabalho desse capoeirista e de outros no menosimportantes influenciaram significativamente o movimento de Capoeira Angola na

    capital sergipana. Esse movimento contrape-se, ento, forma como a capoeira

    vinha sendo praticada em Sergipe, sobretudo, por sua opo pela valorizao do

    estilo regional, que enfatiza mais os aspectos marciais e esportivos em detrimento

    das formas ldicas e religiosas.

    Mestre Moraes diz, em entrevista a Revista Praticando Capoeira16,

    referindo-se ao jogo de capoeira que o mesmo uma das representaes da

    ancestralidade africana, uma herana africana e tradio no Brasil, contrapondo-

    se s diversas formas e estilos que emergem nos novos contextos culturais e

    polticos, desde a dcada de 30, poca da criao da Capoeira Regional, em

    Salvador pelo Mestre Bimba. Para Mestre Moraes, que escreve no prospecto do

    evento que foi distribudo em Salvador durante o perodo de comemorao dos 20

    anos do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho - GCAP-, em outubro de 2000, o

    trabalho com esse grupo relevante para a permanncia e preservao dos

    valores ancestrais. Conforme ele:

    O Grupo de Capoeira Angola Pelourinho GCAPest nesta virada de sculo,completando vinte anos de fundao. Nestes vinte anos experimentamos vriastentativas de anulao do nosso trabalho, o qual sempre foi e ser voltado para oresgate e preservao das razes da Capoeira Angola, mas resistimos e temosvencido a todas elas. A nossa sobrevivncia prova real de que a fora mstica daCapoeira Angola atua positivamente sobre aqueles que tm uma relao derespeito e seriedade para com essa manifestao afro-brasileira, alm dereconhec-la como uma das formas vivas de luta dos nossos ancestrais, peloresgate das suas dignidades.17

    No discurso de Moraes, a preocupao central com o resgate da capoeira se d

    atravs de uma ao efetiva que possa ritualizar a luta dos ancestrais na

    atualidade em torno de uma dignidade (do homem negro) que parece est sendosempre ameaada por aqueles que no respeitam as razes da Capoeira Angola

    enquanto manifestao do pensamento afro-brasileiro. A atualidade das

    estratgias construdas por Mestre Moraes est presente, como mostraremos no

    16Cf. Mestre Moraes. Revista Praticando Capoeira Ano I. Nmero 5. So Paulo. P. 3417Cf. prospecto do GCAP. 20 Anos de Resistncia. Salvador. 2003

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    26/119

    26

    terceiro captulo, no discurso dos depoentes pertencentes aos grupos de capoeiraUnidos do Quilombo e Aba.

    A notoriedade alcanada por Mestre Moraes frente do GCAP Grupo

    de Capoeira Angola Pelourinho - chegou a tanto, que o mesmo na atualidade tem

    estabelecido ncleos de Capoeira de Angola em diversas cidades brasileiras e de

    pases como Os Estados Unidos, Israel e Frana. O contato GCAP com alguns

    capoeiristas ligados direta ou indiretamente com o Movimento Negro de Aracaju

    possibilitou a fundao, nessa cidade, do Grupo Aba de Capoeira Angola em

    1994. Esse grupo, embora no momento da realizao dessa pesquisa estivesse

    passando por um momento de transio, continua sendo de fato o nico grupo de

    capoeira em Aracaju a reivindicar publicamente uma identidade afro-descendente,

    lutando estrategicamente pelo reconhecimento da Capoeira de Angola enquanto

    um smbolo da cultura africana.

    Na construo do nosso quadro terico, apropriamo-nos das indicaes

    metodolgicas de Beatriz Dantas (1998), que ao tratar do estudo acerca do

    Candombl no nordeste brasileiro, descobre uma discrepncia de contedos e

    traos entre as casas de santo. Nesse estudo antropolgico, ela vai mostrar que

    algumas caractersticas dos rituais de batismo, por exemplo, tidas como Nag

    puro para uma Me de Santo no o so para uma outra do Candombl. A

    identificao desses Candombls com a frica est nessa noo de pureza,

    portanto, quanto mais puro o Candombl mais laos simblicos de identificao

    com a frica tm seus Filhos de Santo e, respectivamente, seus terreiros, seus

    orixs e seus rituais. No entanto, o que fundamental, no sentido metodolgico,

    consoante Beatriz Dantas que:

    Para os objetivos deste trabalho, pouco importa se so realmente africanos osestoques culturais apresentados como tais. No limite, poderiam at ser forjados.Importa que o grupo considera como africanos e que foram escolhidos pelo prpriogrupo, como significativos, sendo usados como sinais das diferenas em funodas quais se afirma a pureza nag( DANTAS, 1998, p. 91).

    Nesse sentido, ao trabalharmos com nossos entrevistados, no estaremos

    interessados, desse modo, na pureza da capoeira ou se a mesma de fato

    africana, importa saber como os sujeitos sociais se vem e se representam como

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    27/119

    27

    descendentes diretos de africanos no Brasil ao tempo em que recriam suasidentidades. Este o aspecto importante para esse estudo sobre a reafricanizao

    da capoeira em Aracaju: apreender os processos constitutivos das identidades da

    Capoeira Angola.

    1.2 Memria e Tradio na Capoeira: a ritualizao da identidade.

    Giddens (1997), em seu texto sobre as sociedades tradicionais e ps-

    tradicionais, escreve que a tradio no destruda inteiramente pelas novaspaisagens que esto em evidente transio na passagem de um mundo social

    para outro com sua nova ordem social. Entretanto, ele mostra que: Durante a

    maior parte de sua histria, a modernidade reconstruiu a tradio enquanto a

    dissolvia. Nas sociedades ocidentais, a persistncia e a recriao da tradio

    foram fundamentais para legitimao do poder, no sentido em que o Estado era

    capaz de se impor sobre sujeitos relativamente passivos.(pp. 73-74).

    O mundo atual est repleto de incertezas, inseguranas e perigo, mas

    oferece, segundo o autor supracitado, oportunidades nunca antes vislumbradaspelas sociedades precedentes e tradicionais. As experincias do cotidiano das

    sociedades na era da modernidade tardia, diz Giddens (1997), refletem o papel

    da tradio - em constante mutao e como tambm ocorre no plano global,

    devem ser consideradas no contexto do deslocamento e da reapropriao de

    especificidades, sob o impacto da invaso dos sistemas abstratos. (p.77). Para

    ele, essas experincias esto ligadas ao eu e identidade, mas tambm

    envolvem uma multiplicidade de mudanas e adaptaes na vida cotidiana.

    (ibidem).

    A ligao do jogo de capoeira com a identidade cultural na sociedade

    ps-tradicional, ou seja, na sociedade moderna atual, possibilita compreender

    como a tradio ritualizada e mantida, que tipo de solidariedades se organizam,

    como os sujeitos sociais celebram essa identidade e quais as caractersticas

    fundamentais desse processo social. Giddens mostra que as aes de um

    indivduo sozinho podem ter um alcance incalculvel e atingir um nmero cada

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    28/119

    28

    vez maior de pessoas pelo mundo contemporneo, ainda que ele no tenhaconscincia plena dessa atitude. Entretanto, essa atitude no est isolada, ela

    est interligada a contextos que se modificam gravemente no amplo processo de

    globalizao da modernidade Essas mudanas tm chegado a todas as esferas

    na sociedade atuais, entretanto, Giddens afirma que foi:

    No plano puramente econmico, por exemplo, a produo mundial aumentou deforma dramtica, com vrias flutuaes e quedas; e o comrcio internacional umindicador melhor da inter-relao cresceu ainda mais. Mas foi o comrcioinvisvel nos servios e nas finanas o que mais cresceu. (GIDDENS, 1997,p. 75)

    Giddens analisa essas flutuaes de capital, de deslocamento de instituies no

    plano das dimenses da globalizao, demonstrando, portando, a fora do

    mercado e de suas transaes no processo de expanso planetria do

    capitalismo, no qual as companhias e instituies comerciais e industriais so

    transformadas em multinacionais. Conforme ele:

    As firmas de negcios, especialmente as corporaes multinacionais, podem

    controlar imenso poder econmico, e ter a capacidade de influenciar sistemaspolticos em seus pases-bases e em outros lugares. [...] No h uma rea nasuperfcie da terra, com a exceo parcial das regies polares, que no sejareivindicada como legtima esfera de controle de um ou de outro estado.(GIDDENS, 1991, p. 75)

    As implicaes geradas pelos movimentos de internacionalizao de companhias

    e instituies capitalistas acabam provocando abalos profundos nas estruturas

    dos prprios sistemas culturais encravados nas estruturas de todas as sociedades

    modernas. Para Canclini (1983), as conseqncias mais graves nesse processo

    de inter-relaes do comrcio internacional, so, sobretudo, a permanncia dasprprias desigualdades entre as classes sociais de cada pas, geradas pelas

    trocas desiguais que fazem permanecer desta forma uma distncia social que

    divide no somente as pessoas dentro de um pas, mas tambm entre pases

    perifricos e centrais. Nesse sentido, Canclini dir, ento, que:

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    29/119

    29

    A multinacionalizao do capital, que acompanhada pela transnacionalizaoda cultura, impe uma troca desigual tanto de bens materiais quanto aos benssimblicos. Mesmo os grupos tnicos mais remotos so obrigados a subordinar asua organizao econmica e cultural aos mercados nacionais, e estestransformam-se em satlites da metrpole, de acordo com uma lgicamonopolistica.(CANCLINI, 1983, p. 26).

    Ento, essa mundializao do capital tem provocado o aumento da distncia que

    separa as culturas subalternas das culturas dominantes na sociedade moderna,

    embora persista a iluso do fim dessas diferenas. Canclini no deixa dvida do

    poder do capitalismo e do seu controle estratificativo que coloca em grande

    desigualdade os diversos grupos culturais no interior da sociedade globalizada.

    Para ele:

    As diferentes modalidades de produo cultural (da burguesia e do proletariado,do campo e da cidade) so reunidas, e at certo ponto homogeinizadas, devido absoro, num nico sistema, de todas as formas de produo (manual eindustrial, rural e urbana). A homogeinizao das aspiraes no significa que osrecursos so igualados. No so eliminadas as distncias entre as classes nementre as sociedades no aspecto fundamental a propriedade e o controle dosmeios de produo -, mas se cria a iluso de que todos podem desfrutar, real ouvirtualmente, da superioridade da classe dominante.(CANCLINI, 1983, p. 27).

    Nesse sentido, nada pode escapar dessa rede de relacionamentos e interesses da

    elite, Frigrio (1989), ao tratar da capoeira e do Candombl enquanto cultura

    negra, na tentativa de esclarecer as mudanas ocorridas na estrutura de cada

    uma dessas manifestaes culturais, a partir da sua incluso na classe mdia e

    alta no Brasil, explica que elas [...] para serem legitimadas e integradas ao

    sistema, precisam perder vrias caractersticas que lhes so prprias, em virtude

    de sua origem tnica, para adquirirem outros traos que lhe tornem mais

    aceitveis aos olhos das classes dominantes(p. 87). Dessa forma, aquele autor

    escreve que essas mudanas no mbito gestual e do ritual da capoeira voacabar expressando tambm as assimtricas relaes de poder existente na

    sociedade. Quem tem maior poder econmico e social poder com maior

    facilidade influir no processo de mudanas, impondo seus valores e vises de

    mundo. (ibidem).

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    30/119

    30

    Por conseguinte, a construo do nosso referencial terico para estudar ojogo de capoeira enquanto uma cultura popular parte dessa perspectiva que

    visualiza a contradio e a diferena entre as prprias classes sociais, ou seja,

    que nos ajuda a compreender e explicar as desigualdades e os conflitos entre as

    classes populares e os setores hegemnicos da sociedade, dentro de um

    processo de hibridizao cultural. Para Canclini:

    Passamos de sociedades dispersas em milhes de comunidades rurais comculturas tradicionais, locais e homogneas, em algumas regies com fortes razesindginas, com pouca comunicao com o resto de cada nao, a uma trama

    majoritariamente urbana, em que se dispe de uma oferta simblica heterognea,renovada por uma constante interao local com redes nacionais e transnacionaisde comunicao(CANCLINI, 1993, p.285).

    Nesse sentido, pretendemos descobrir como esses contatos hbridos se

    estabelecem no jogo da capoeira e quais so as conseqncias disso para a

    prpria tradio nessa manifestao sociocultural. Como, ento, persiste a

    tradio da capoeira nessa ordem urbana, na qual tudo parece entrar em fuso,

    combinando e misturando-se com outros circuitos culturais dentro de uma

    sociedade multiracial como a nossa?

    Giddens (1997), ao tratar da tradio na sociedade moderna, mostra a

    importncia funcional das relaes sociais existentes entre os Kung do deserto de

    Kalahari. De acordo com esse autor: A tradio est ligada ao ritual e tem suas

    conexes com a solidariedade social, mas no a continuidade mecnica de

    preceitos que aceita de modo inquestionvel (p.80). A tradio est,

    dialeticamente, para esse terico, associada a uma idia do passado, mas

    tambm relacionada concepo de futuro. Para ele:

    [...] a tradio uma orientao para o passado, de tal forma que o passado temuma pesada influncia sobre o presente. Mas evidentemente, em certo sentido, eem qualquer medida, a tradio tambm diz respeito ao futuro, pois as prticasestabelecidas so utilizadas como uma maneira de se organizar o tempo futuro(GIIDDENS, 1997, p.80).

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    31/119

    31

    A identidade tradicionalmente reconstruda pelos grupos de capoeira aquiinvestigados um exemplo verdadeiro desse tipo de orientao de

    comportamentos sociais que reafirmam a reafricanizao da identidade e do

    prprio jogo da capoeira. Dito desta forma, esses grupos de angoleiros parecem

    germinar pelo mundo como um vio revivalista e reafricanizador que toma corpo

    poltico e cultural, retomando prticas, conceitos e modos gestuais, dialogando

    dentro da sociedade mais ampla com vises cristalizadoras sobre a cultura negra

    e o prprio negro no Brasil.18

    Mestre Moraes, j citado nessa pesquisa, disse referindo-se capoeira

    durante entrevista concedida Revista Capoeira19 que: Na cultura popular o

    desafio est em fundir modernidade e tradio sem perder a essncia. A

    supervalorizao da modernidade somente uma forma de atender aos

    interesses daqueles que no acreditam na existncia da subjetividade na cultura

    africana. E essa subjetividade est embutida na tradio. Para ele: A perda

    dessa referncia leva automatizao, o que implicaria tambm na limitao da

    capoeira a elementos externos. Um exemplo dessa perda de referncia o

    desrespeito aos mestres antigos de capoeira. (ib). Essas atitudes levadas adiante

    por parte de pessoas descompromissadas, como dizem os angoleiros, provocam

    um tipo radical que quebra e descaracteriza profundamente a tradio do jogo

    de capoeira.

    Seguindo as pistas de Edward Shils sobre sua concepo de tradies,

    Giddens(1997) afirma que para Shils elas:

    esto sempre mudando; mas h algo em relao noo de tradio quepressupe persistncia; se tradicional, uma crena ou prtica tem umaintegridade e continuidade que resiste ao contratempo da mudana. As tradiestm um carat orgnico: elas se desenvolvem e amadurecem, ou enfraquecem emorrem. Por isso, a integridade ou autenticidade de uma tradio maisimportante para defini-la como tal que seu tempo de existncia(pp. 80-81).

    18 Para saber mais sobre o movimento de reafricanizao da cultura negra no Brasil, sugerimos a leituraimediata do livro O Povo do Santo: religio, histria e cultura dos orixs, vodus, inquices e caboclos deRaul Lody. Pallas Editora. Rio de Janeiro. 1995.19Cf. Revista Capoeira Ano II, N 06. Editora Candeias. So Paulo. So Paulo. P. 14.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    32/119

    32

    Com efeito, o problema da pureza da tradio africana associada idiade tempo de existncia ou de ser a mais tradicional no passa de uma inveno

    que busca em ltima instncia garantir a legitimidade do poder em jogo e uma

    idia de continuidade com a frica me. Um exemplo clssico desse fato pode ser

    constatado na leitura de Beatriz Dantas (1988), antroploga sergipana, demonstra

    uma diversidade enorme de caractersticas entre os Candombls pesquisado em

    Sergipe e Bahia. Segundo ela:

    O resultado foi desconcertante, pois em muitos aspectos havia flagrante

    desacordo quanto composio dessa herana africana. Que houvessediferenas entre a frica e o Brasil, compreendia-se; afinal, havia diferenashistricas e estruturais muito significativas j assinaladas, alis, por Roger Bastideao estudar o processo de interpenetrao de civilizaes atravs da persistnciadas religies africanas no Brasil (p.26).

    Muito embora temos constatado tambm alguns flagrantes desses

    desacordos no jogo de Capoeira Angola, quanto aos aspectos da estrutura

    musical dos instrumentos, indumentrias e formas de cantar e jogar dentro dos

    grupos observados, no diminui em nada a qualidade ou o carter da africanitude

    e reafricanizao desses grupos que privilegiam a prtica da Capoeira Angola emsuas sede ou academias, como so comumente chamadas no universo da

    capoeira.

    Apropriando-se do conceito de memria coletiva de Maurice Halbwachs,

    Giddens escreve que A memria, como a tradio em um sentido ou outro -, diz

    respeito organizao ao passado em relao ao presente(p.81). Giddens diz

    ainda que para Halbwachs, o passado no preservado, mas continuamente

    reconstrudo, tendo como base o presente (ib).

    Ao abordar o problema da cultura popular e da identidade nacional, Ortiz(1994), tambm baseado nos estudos de Roger Bastide, Halbwachs e Golffman e

    de outros no menos importantes, pretende interpretar e explicar os contedos

    folclricos da chamada cultura popular a partir do conceito de memria coletiva e

    denomina o conceito de memria nacional para investigar a identidade brasileira.

    Consoante Ortiz(1994):

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    33/119

    33

    A memria de um fato folclrico existe enquanto tradio, e se encarna no gruposocial que a suporta. atravs das sucessivas apresentaes teatrais que ela realimentada. Isso significa que os grupos folclricos encenam uma pea deenredo nico que constitui sua memria coletiva; a tradio mantida pelo esforode celebraes sucessivas, como no caso dos ritos afro-brasileiros (p.134).

    Nesse sentido, podemos falar de uma memria africana para o negro no

    Brasil e que encontramos, no nosso caso, no somente na musicalidade do jogo

    de capoeira, mas tambm nos depoimentos prestados pelos capoeiristas. Um

    exemplo tipicamente perfeito o prprio GCAP, j citado nesse trabalho. No artigo

    Capoeira Angola/Resistncia Negra20, esse grupo de Capoeira Angola deixa bem

    claro seus objetivos e propostas scio-polticas tendo como preocupao principal

    o resgate da memria negra no Brasil, considerando a Capoeira Angola como

    um legado da cultura africana. No encarte de seu primeiro CD lanado em 1995, o

    GCAP escreve:

    Na sua histria e na sua prtica cotidiana, a Capoeira Angola exibe a filosofia e aesttica de suas origens africanas. As culturas africanas tradicionais sogeralmente holsticas sem clara distino entre sagrado e secular, entre trabalho elazer, entre luta e brincadeira. A Capoeira Angola, , dessa forma, uma

    conjugao de diferentes manifestaes culturais que incluem artes marciais,dana, msica, filosofia, espiritualidade, teatro, brincadeira e jogo. (Encarte doGCAP, CD gravado EUA. p.13).

    Evidentemente, ficaria impossvel tratar de todos os aspectos que compem o

    conjunto cultural do jogo de Capoeira Angola, no entanto, fizemos uma escolha

    entre diferentes elementos culturais inteligveis para anlise sociolgica. Portanto,

    passaremos a tratar logo mais da religiosidade, da mandinga e da brincadeira,

    aspectos os quais consideramos relevantes nessa investigao e que traduzem

    claramente uma viso mais ampliada do jogo de Capoeira Angola enquanto umatradio reafricanizadora. Entrementes, acreditamos que, ainda, seja necessrio

    nessa altura da pesquisa continuar com o mesmo tpico, mesmo que isso

    implique brevemente em algumas consideraes analticas.

    20Cf. Revista Exu. Salvador. Fundao Casa de Jorge Amado. N 11. Set/out. 1999.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    34/119

    34

    Nestor Capoeira (1988), ao escrever seu primeiro livro sobre essamanifestao cultural, certamente no diria mais, hoje, as mesmas palavras que

    escreveu em relao Capoeira Angola, diante do grande movimento atual de

    reafricanizao dessa luta no somente na Bahia, mas em diferentes estados

    brasileiros alm de outros pases como Argentina, Estados Unidos, Frana e

    Canad, para onde esto sendo levados, dentro do amplo movimento de

    deslocamento da cultura e de sua mercantilizao mundial, grupos de Capoeira de

    Angola21. Em 1981, poca do lanamento da primeira edio do livro supracitado,

    Nestor (1988) ao se referir aos lendrios mestres Valdemar, Caiara,

    Canjiquinha, Joo Grande, Gato, Traira, Cobrinha Verde(p.16), assevera que:

    So estes homens os conhecedores e legtimos representantes da capoeirapraticada pela gerao anterior de angoleiros, mas sentem que sua poca acabou:sua escola de valores, seus conhecimentos e sua filosofia so incompatveis coma era tecnolgica, a massificao do indivduo, e os valores culturais que tm seurepresentante mximo na televiso. Sem falar nas sbitas e drsticas mudanasocorridas em Salvador nos ltimos 10 ou 15 anos, que transformaram a msticacapital numa cidade de consuma e turismo. Por isso no existe mais a tradicionalroda de Mestre Valdemar no bairro da Liberdade; muitos dos demais mestres,desgostosos, no mais ensinam e pouqussimas vezes jogam; a mentalidade

    mudou e mesmo nas festas de largo e de rua difcil ver-se um bom jogador seexibindo (CAPOEIRA, 1988, pp.16-17).

    Realmente, no podemos ter absoluta certeza dos resultados dos fatos

    da vida cotidiana das manifestaes socioculturais, Giddens (1997) escreve que

    No mundo social, em que a reflexividade institucional tornou-se um elemento

    constituinte central, a complexidade dos cenrios ainda mais marcante (p.76).

    Segundo esse autor:

    Queiramos ou no, estamos todos presos em uma grande experincia, que est

    ocorrendo no momento de nossa ao como agentes humanos -, mas fora donosso controle, em um grau impondervel. No uma experincia do tipolaboratorial, porque no controlamos os resultados dentro dos parmetros fixados

    21 Um fato social cada vez mais comum que temos observado nos ltimos dez anos tem sido o amplomovimento de expanso mundial da capoeira, independentemente de qual estilo Angola ou Regional. Umexemplo claro e recente dessa natureza de fato foi a realizao do IV Festival Mundial de Artes Marciais deChung Ju, na Coria do Sul, em 2001, que contou com a participao de integrantes do Grupo Abada-Capoeira. Evento esse que reuniu competidores de 28 pases.Cf. Jornal Abada-Capoeira. Ano V. N38 EdioNovembro-Dezembro/2001. Rio de Janeiro.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    35/119

    35

    mais parecida com uma aventura perigosa, em que cada um de ns, querendoou no, tem de participar (ib).

    No demais insistir que houve de fato um equvoco na comunicao de

    Nestor Capoeira, sobretudo, depois de mostrarmos o pensamento esclarecedor de

    Giddens sobre as incertezas que nos cercam pelo mundo social. A tradio se

    renova e assume novos contornos na sociedade globalizada, no podemos definir

    concretamente uma imagem do futuro, quando esse mesmo futuro est sempre a

    nos oferecer tantas surpresas; qualquer clculo estatstico para a experincia que

    vivenciamos atualmente no mundo da alta modernidade, diria Giddens, seria como

    lanar flechas no escuro por mais que o arqueiro e o arco sejam perfeitos.

    Evidentemente, em certo sentido, a tradio da Capoeira Angola no

    apresenta mais os traos da simplicidade verificados por Rego (1968) nos

    barraces dos mestres nas dcadas de 1950 e 1960, nem das rodas de rua. Os

    barraces foram substitudos por academias, muitas delas em locais privilegiados

    da cidade de Salvador, os grupos crescem no somente na cidade onde os

    mestres moram, mas so ampliados para alm das fronteiras e muros, invadindo

    outros pases, num amplo processo de migrao da cultura. Entretanto, no

    concordamos inteiramente com o comentrio de Nestor Capoeira, ainda que oprocesso de hibridizao cultural remova significativamente alguns traos da

    organizao e da estrutura do jogo de capoeira, os capoeiristas do estilo angola

    parecem se multiplicar por Salvador, reconstruindo e revitalizando esse mesmo

    estilo.

    Em entrevista concedida ao jornal A Tarde, a sociloga e tambm

    componente do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho GCAP - Ndia Cardoso

    ao se referir Capoeira de Angola argumenta que:

    A Capoeira Angola preserva o que existe de herana africana, rituais edeterminados comportamentos que na Capoeira Regional no mais existem. Porexemplo, o canto da ladainha para comear uma roda de capoeira. A chula e ocorrido no podem entrar antes disso. O gunga, berimbau com a cabaa maior, o que comanda a roda. Os jogadores tm que prestar ateno no som do gunga,porque ele que sinaliza ao jogador se ele continua ou no jogando, se vem pra op do berimbau. Os mestres de capoeira, no decorrer do canto do corrido, vodando toques aos jogadores de como eles esto (p.3).

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    36/119

    36

    A preservao desses rituais a razo da existncia dos grupos em torno da

    tradio da Capoeira Angola, so atividades individuais e coletivas que requerem

    dedicao, respeito e conhecimento dos fundamentos desse jogo. Essa tambm

    a posio defensiva dos grupos de Capoeira de Angola para reconstrurem sua

    identidade dentro de um contexto de interesses conflituosos que tende a separar

    capoeiristas do estilo angola do estilo regional. Impregnados de um discurso

    poltico de defesa da tradio de uma cultura negra, assistimos, assim, a luta

    entre os segmentos da prpria capoeira no seio da sociedade. Para Giddens

    (1997) A integridade da tradio no deriva do simples fato da persistncia sobre

    o tempo, mas do trabalho contnuo de interpretao que realizado para

    identificar os laos que ligam o presente com o passado (p.82).

    Em acrscimo, podemos dizer que a tradio na Capoeira Angola tem

    sido pensada e praticada pelos grupos que seguem esse estilo, mesmo

    considerando, aqui, que os efeitos ou conseqncias da modernidade na

    atualidade atuam no sentido de recriar uma nova ordem de configuraes sociais

    na qual a Capoeira Angola est interligada de modo bem real e direto.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    37/119

    37

    Captulo II

    2. A trama da desafricanizao do jogo de capoeira.

    2.1. A esportivizao da vadiao22

    Na obra Costumes Africanos no Brasil, Manoel Quirino (1988) descreve

    um perfil do angola e atribui ao mesmo a responsabilidade de introdutor da

    capoeiragem na Bahia. Segundo ele: O angola era, em geral, pernstico,

    excessivamente loquaz, de gestos amaneirados, tipo completo e acabado do

    capadcio (p.195).

    Fotos de Pierre Verger. Salvador. Dcada 1940

    22Vadiao um termo ainda muito utilizado no universo da capoeira, sobretudo, em Salvador. Esse termotambm comum em diversas cantigas dos capoeiristas. Cf. CHARLES, Carlos Pereira.(1992). Cantos eLadainhas da Capoeira da Bahia. Edies Via Bahia. Salvador.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    38/119

    38

    exatamente esse aspecto, supostamente debochado e petulantepresente no jogo da capoeira, que ser combatido por alguns intelectuais do final

    do sculo XIX e incio do sculo XX, baseados, sobretudo, nas concepes

    tericas evolucionistas, segundo as quais as sociedades humanas percorrem

    etapas que vo das menos avanadas s mais evoludas dentro de uma ordem

    classificatria ao longo do seu desenvolvimento. Para Ortiz (1994), as teorias

    raciais defendidas pelos precursores das cincias sociais no Brasil Silvio

    Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues -, em fins do sculo XIX e incio do

    sculo XX, embora com toda importncia tratassem da problemtica da identidade

    nacional, apresentavam na verdade um contorno claramente racista (p.13).

    Conforme esse estudioso:

    O que surpreende o leitor ao se retomar as teorias explicativas do Brasil,elaboradas em fins do sculo XIX e incio do XX, a sua implausibilidade. Comofoi possvel a existncia de tais interpretaes, e, mais ainda, que elas tenham sealado ao status de Cincia. A releitura de Silvio Romero, Euclides da Cunha, NinaRodrigues esclarecedora na medida em que revela esta dimenso deimplausibilidade e aprofunda nossa surpresa, por que no um mal-estar, uma vezque desvenda nossas origens ( ORTIZ, 1994, p. 13).

    Lilia Moritz Schwarcz23 pe em evidncia os problemas do racismo no pas,

    mostrando como o determinismo racial foi a grande voga do final do sculo XIX e

    incio do XX entre os intelectuais brasileiros, destacando-se aqui, Slvio Romero,

    Euclides da Cunha e Nina Rodrigues. Segundo ela:

    O pressuposto do determinismo racial o princpio do racismo. Nessa escola,no se discute mais o indivduo, mas sim o grupo. Existem, na verdade, quatromximas do determinismo racial, que correspondem s suas diferentes faces. Aprimeira afirma que a raa constitui um fenmeno essencial. Dizia-se com isso quehavia, por exemplo, entre o branco e o negro a mesma distncia que existe entre o

    cavalo e a mula. Alguns desses tericos advogam inclusive a tese da infertilidadedo mestio pautados nesse tipo de pressuposto. [...]. Outra mxima estabelecia arelao entre atributos externos e internos. Ou seja, acreditava-se que a partir decaractersticas exteriores como a cor, o tamanho do crebro, o de cabelo poder-se-ia chegar a concluses sobre aspectos morais das diferentesraas(SCHWARCZ, 1996. pp. 168-169).

    23Cf. Schwarcz, Lilia Moritz. As teorias raciais, uma construo histrica de finais do sculo XX. O Contextobrasileiro. In. Raa e Diversidade. Orgs. Lilia Moritz Schwarcz, Renato da Silva Queiroz. Ed. Universidadede So Paulo. So Paulo. Edusp. 1996. (pp. 147-185).

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    39/119

    39

    Esses pressupostos tericos foram aplicados deliberadamente pela elite brasileira

    para justificar o embranquecimento da raa que se queria para a nao.

    Definitivamente, o jogo da capoeira no poderia continuar existindo na sociedade

    brasileira com aqueles traos estranhos e to marcantes da cultura negra, que

    tanto atormentavam os bons costumes de uma nao que se queria nobre e

    civilizada conforme os cnones e desejo de nossos intelectuais brasileiros dessa

    poca. Acreditava-se, portanto, baseados naqueles pressupostos raciais, que o

    homem negro e sua cultura seria inferior, dentro de um quadro de classificao

    que privilegiava a cultura europia e o homem branco. Edson Carneiro(1965), ao

    se referir a capoeira , diz que ela Foi sempre uma vadiao proibida, perseguida,

    e os negros que a ela se davam eram caados nas ruas e escorraados das

    cidades como desordeiros e malandros (p.49). Dessa forma, as danas, a

    religio, a luta e a viso de mundo do negro so ignoradas e ridicularizadas pela

    elite pensante, no merecendo seno uma categoria primitiva, dentro da

    classificao do determinismo racial, que atribui civilizao europia uma

    condio superior do ponto de vista do progresso humano. Do simples ao

    civilizado de gestos nobres, a raa negra e sua cultura estariam bem abaixo na

    escala evolutiva, conforme os cnones dessas doutrinas. Conforme Ortiz:

    Na verdade, o evolucionismo se propunha encontrar um nexo entre as diferentessociedades humanas ao longo da histria; aceitando como postulado que osimples (povos primitivos) evolui naturalmente para o mais complexo(sociedades ocidentais), procurava-se estabelecer s leis que presidiram oprogresso das civilizaes. Do ponto de vista poltico, tem-se que o evolucionismovai possibilitar elite europia uma tomada de conscincia do seu poderio quese consolida com a expanso mundial do capitalismo. Sem querer reduzi-lo a umadimenso exclusiva, pode-se dizer que o evolucionismo em parte legitima

    ideologicamente a posio hegemnica do mundo ocidental. A superioridade dacivilizao europia torna-se assim decorrente das leis naturais que orientam ahistria dos povos (ORTIZ, 1994, pp.14-15).

    Para efeitos metodolgicos, o conceito de cultura negra utilizado por ns nessa

    pesquisa baseia-se na concepo de Myrian Santos (1999), segundo a qual:

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    40/119

    40

    Por cultura no compreendo um conjunto de valores, hbitos e prticas comcontedos fixos facilmente identificveis ou com uma nica origem, seja elaafricana, ibrica ou brasileira, pois a cultura negra como qualquer outra, alm derelacional, mutvel e ecltica, muitas vezes sobrevive apenas como subtexto. Meuponto de vista que embora sem caractersticas fixas e imutveis h valores,hbitos e sentimentos presentes em expresses musicais e corporais que podemser associados a determinados grupos sociais ao longo da histria e alm dasfronteiras poltico-geogrficas. Se h uma cultura negra, esta pode serreconhecida no em sua origem, mas na reconstruo contnua de formas deexpresses culturais e formas sociais institucionalizadas (MYRIAN SANTOS1999, pp.44-45)

    Com efeito, importante que se tenha em mente que no estamos interessados

    em descobrir qual a origem da capoeira, - se africana ou se brasileira -, uma vez

    que este aspecto j foi objeto de anlise em estudo anterior24. Pretendemos

    investigar o processo de reafricanizao desse jogo, quais as estratgias

    elaboradas, como e por que se tentou eliminar os atributos africanos do jogo de

    capoeira e a quem isso interessa de fato. Embora esse estudo no priorize a

    questo da origem propriamente dita da capoeira, fundamental estabelecer a

    diferena entre os estilos, como mostraremos mais adiante, mas tendo tambm a

    preocupao central de conceber primeiramente a capoeira como uma espcie de

    jogo-luta com um tipo peculiar de movimentao dentro de uma roda formadapelos praticantes ao som de instrumentos musicais, tais como berimbaus,

    pandeiros, atabaque, agog e reco-reco acompanhados por cantigas prprias e de

    outras manifestaes da cultura popular, como, por exemplo, a Batucada e o

    Samba de Roda.

    Colocadas as coisas nesses termos, podemos, ento, retornar com Ortiz

    (1994) para descobrirmos quais os interesses de fato da intelligentsia, -

    precursores das cincias sociais no Brasil, no sentido de que pretendemos

    estabelecer um nexo com essas idias para compreender e explicar o fenmeno

    da desafricanizao da capoeira, iniciado no final do sculo XIX e que se

    consolida, dentro do quadro de anlise proposto por essa pesquisa, na dcada de

    1970, quando o jogo de capoeira reconhecido pelo MEC e so fundadas as

    primeiras federaes dessa modalidade no Brasil.

    24Cf. JNIOR, lvaro Machado de Andrade. (2001). O Jogo da capoeira em Aracaju: uma reconstruohistrica. Monografia apresentada ao Colegiado do Curso de Cincias Sociais CECH-UFSe.

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    41/119

    41

    Emconformidade com Ortiz (1994), os intelectuais brasileiros do final dosculo XIX e incio do XX, influenciados pela teoria evolutiva, tinham uma

    conscincia da inferioridade do estgio civilizatrio do homem brasileiro, porm

    essencial para eles que essa inferioridade seja explicada:

    Torna-se necessrio, por isso, explicar o atraso brasileiro e apontar para o futuroprximo ou remoto, a possibilidade de o Brasil se construir enquanto povo, isto ,como nao. O dilema dos intelectuais desta poca compreender a defasagementre teoria e realidade, o que se consubstancia na construo de uma identidadenacional. A interpretao do Brasil passa necessariamente por esse caminho, daa nfase no estudo do carter nacional, o que em ltima instncia se reportava

    formao de um Estado nacional (ORTIZ, 1994, p. 15).

    No jogo da construo da identidade nacional, a cultura popular - que

    comporta um rico conjunto de manifestaes socioculturais e que so expresses

    originrias de pessoas simples, na maioria das vezes marginalizadas e

    desfavorecidas historicamente, sobretudo, de seus direitos fundamentais - vai

    sendo apropriada como smbolo nacional. Segundo o antroplogo Pinho (1998):

    O nacional-popular define-se, em termos gramscianos, como o resgate do

    passado histrico cultural das classes populares (excludos do poder dominante)como patrimnio e base para a construo da nacionalidade. Valores esensibilidades enraizadas nas prticas da gente comum so o manancial danao, alados a nova dignidade pela militncia cultural e intelectual de agentessociais sados organicamente do povo ou a este ligados de algumaforma.(PINHO, 1998, p.4).

    Nesse sentido, as palavras de Ortiz (1994) traduzem de modo bastante

    claro a relao que se quer estabelecer entre cultura popular e a identidade

    nacional, medida que a prpria cultura popular serve de base concreta para a

    fabricao de nossa identidade nacional. Pode-se dizer que a relao entre atemtica do popular e do nacional uma constante na histria da cultura

    brasileira, a ponto de um autor como Nelson Werneck Sodr afirmar que s

    nacional o que popular. Em diferentes pocas, e sob diferentes aspectos, a

    problemtica da cultura popular se vincula da identidade nacional (ORTIZ,

    1994, p. 127). Nesse processo de apropriao da cultura popular pelo Estado para

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    42/119

    42

    a construo dessa identidade nacional, Leite (2000) desconfia desse podercentralizador do prprio Estado afirmando que: [...] torna-se cada vez mais difcil

    crer na sua legitimidade como representante democrtico da diversidade cultural,

    uma vez que o nacionalismo poltico tornou o Estado referente a si mesmo para

    compensar a inexistncia de traos culturais identitrios para toda a nao

    (LEITE, 2000, p. 104).

    O dilema da construo da identidade nacional exigia reflexes e esforos

    cada vez mais intensos dos intelectuais brasileiros. A questo racial se coloca

    imediatamente como problema fundamental e urgente para esses pensadores. A

    eleio de um representante altura da identidade nacional que se queria

    construir naquele momento, coloca o mestio como o elemento mais adequado

    para os intelectuais de final do sculo XIX e incio do sculo XX, uma vez que os

    negros e ndios eram considerados racialmente inferiores. O ideal do

    embranquecimento, portanto, vai consolidando-se medida que chegamos ao fim

    da escravido no Brasil. Segundo a anlise de Moura (1988), para os pensadores

    do final do sculo XIX e princpios do XX, o Brasil teria de ser branco e capitalista.

    O auge da campanha pelo embranquecimento do Brasil surge exatamente nomomento em que o trabalho escravo (negro) descartado e substitudo peloassalariado. A coloca-se o dilema do passado com o futuro, do atraso com oprogresso e do negro com o branco como trabalhadores. O primeirorepresentaria a animalidade, o atraso, o passado, enquanto o branco (europeu)era o smbolo do trabalho ordenado, pacfico e progressista. [...]. A grita foi geral.Precisamos melhorar o sangue, a raa.(MOURA, 1988, p. 79).

    O mestio, ento, gerado pelo cruzamento de brancos com negros no Brasil surge

    como o melhor modelo de representao de nossa identidade nacional, embora

    tenha sido tambm motivo de descriminaes e ressalvas por parte de alguns

    intelectuais, que no via com bons olhos esse elemento hbrido na sociedade

    brasileira. Nesse processo de embranquecimento do povo brasileiro, Ortiz (1994)

    escreve que:

  • 7/25/2019 A Reafricanizao Da Capoeira Em Aracaj - Identidades Em Jogo

    43/119

    43

    Na medida em que a civilizao europia no pode ser transplantadaintegralmente para o solo brasileiro [...], na medida em que no Brasil duas outrasraas consideradas inferiores contribuem para a evoluo da histria brasileira,torna-se necessrio encontrar um ponto de equilbrio. Os intelectuais procuram

    justamente compreender e revelar este nexo que definiria nossa diferenciaonacional. O mestio para os pensadores do sculo XIX mais do que umarealidade concreta, ele representa uma categoria atravs da qual se exprime umanecessidade social a elaborao de uma identidade nacional ( ORTIZ, 1994, p.21)

    Para os objetivos dessa pesquisa, o problema da mestiagem no central,

    embora merea, pela fora e importncia do mesmo, algumas consideraes ao

    longo do captulo. Entretanto, importante que se diga que a poltica da

    mestiagem vai possibilitar tambm um forte movimento de imigrao europia

    para o Brasil, que corresponde evidentemente aos ideais de branqueamento da

    populao brasileira conforme as metas que se quer naquele momento fins do

    sculo XIX e princpio do sculo XX , para a nao. Todavia, DAMATTA (1986)

    adverte que o processo da m