Pedro Manuel Rodrigues da Silva Madeira e Gis
A construo secular de uma identidade tnica transnacional: a cabo-verdianidade
Dissertao de Doutoramento em Sociologia apresentada Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, na especialidade de Sociologia da Cultura, do Conhecimento e da Comunicao, sob a orientao do Prof. Doutor Carlos Jos Cndido Guerreiro Fortuna
Maio de 2011
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Palavras-chave: Sociologia das Migraes; Sociologia da Cultura; Migraes cabo-verdianas; Identidade tnica; Etnicidade; Cabo-verdianidade
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Esta Dissertao de Doutoramento em Sociologia foi apoiada com uma Bolsa de Investigao com a ref. SFRH / BD / 18797 / 2004 pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia do Ministrio da Cincia, Tecnologia e Ensino Superior da Repblica Portuguesa
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Esta Dissertao de Doutoramento em Sociologia foi apoiada com uma Bolsa de Investigao para trabalho de campo em pases Africanos pelo Instituto de Cooperao Cientfica e Tecnolgica Internacional (ICCTI) da Fundao para a Cincia e a Tecnologia do Ministrio da Cincia, Tecnologia e Ensino Superior da Repblica Portuguesa (Proc. 4.1.6/PFA Estudos Africanos e Timorenses)
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Resumo Cabo Verde um dos poucos pases do mundo que tem tido uma emigrao ininterrupta ao longo de mais de dois sculos. um pas marcado pela existncia de algumas dezenas de milhares de emigrantes e de centenas de milhares dos seus descendentes no exterior de Cabo Verde a par de outros tantos no interior do arquiplago. Como podemos pensar a existncia de uma identidade colectiva nestas condies? Como se formam e mantm os vnculos de ligao a Cabo Verde nos ncleos de emigrantes e seus descendentes? Como ser cabo-verdiano em diferentes destinos migratrios ao longo do tempo? As observaes efectuadas em alguns dos destinos migratrios onde se estabeleceram Cabo-verdianos em confronto com os dados recolhidos no arquiplago de Cabo Verde, levaram-nos a estruturar a hiptese de uma co-influncia recproca no que respeita s dimenses que constituem a identidade social e cultural cabo-verdiana contempornea. No nosso caso, invertemos o tradicional olhar e analisamos a identidade cabo-verdiana a partir no do arquiplago de Cabo Verde mas do arquiplago migratrio e do confronto com os vrios outros com que se tem defrontado ao longo dos ltimos sculos. A anlise efectuada permite questionar o modo como se estruturam as ligaes simblicas entre os cabo-verdianos que se movem no seio de um mundo social transnacional e descobrir a construo de uma identidade social transnacional baseada numa identificao tnica. A partir daqui encontramos o campo conceptual que nos permite discutir sociologicamente a etnicidade cabo-verdiana enquanto dimenso que enforma uma identidade tnica transnacional. O nosso percurso leva-nos de volta aos clssicos da sociologia para, atravs da anlise circunstanciada das suas contribuies analticas, compreendermos como a etnicidade ou identidade tnica se tornou uma caracterstica socialmente marcante e sociologicamente consequente ao longo dos tempos. A etnicidade ou a identidade tnica emergem na actualidade das cincias sociais, como algo mais do que construes sociais ou polticas. A vida social est, embora de forma desigual, profundamente estruturada em linhas tnicas, e a etnicidade acontece numa variedade de cenrios quotidianos. A etnicidade est incorporada e visvel no apenas nos projectos polticos e na retrica nacionalista mas tambm em encontros do dia-a-dia, em categorias prticas, no conhecimento de senso comum, em idiomas culturais, em esquemas cognitivos, em construes discursivas, em rotinas organizacionais, em redes sociais e/ou em formas institucionais. H, portanto, uma centralidade que deve ser analisada. Procuramos demonstrar que a identidade tnica transnacional cabo-verdiana vem sendo construda continuamente ao longo dos ltimos sculos enquanto fenmeno social e sociolgico. Existe no porque exista (apenas) uma crena que supe a sua existncia mas por que h aces, interaces e relaes sociais que, analisadas longitudinalmente, comprovam a sua existncia. Referimos exemplos diversos desta actividade nos EUA, em Portugal, em Cabo Verde ou na Argentina. Defendemos que no existe [no poderia nunca existir] uma (nica) identidade tnica cabo-verdiana geral, mas ao contrrio, estaremos em presena de uma (re)construo tnica mltipla e, portanto diferente em cada um dos pases onde existem comunidades imigradas (e no arquiplago de Cabo Verde), resultante, por um lado, do confronto com os outros diferenciadores e, numa outra vertente, dos contextos e conjunturas em que ocorreu e ocorre essa interaco.
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Abstract Cape Verde is one of the few countries of the world whose immigration has been continuous for over two centuries. One of the characteristics of this country is the existence of some dozens of thousands of Cape Verdean immigrants, and hundreds of thousands of their descendants outside the country and the same number within the archipelago. In what way can we think of the existence of a collective identity under these conditions? How are the bonds to Cape Verde created and maintained within immigrants and their descendents groups? What is it like to be Cape Verdean in different migration destinations throughout time? Observation made in some of the migration destinations of Cape Verdeans, when compared with data gathered in the Cape Verde archipelago, led us to the hypothesis of the existence of a reciprocal co-influence regarding the dimensions of the contemporaneous social and cultural Cape Verdean identity. In our case, we inverted the traditional way of looking at it, and analysed the Cape Verdean identity not from the Cape Verde archipelago but from the migratory archipelago, and from the confrontation with the several others it has been facing throughout the last centuries. The analysis done allows us to question the way in which symbolic bonds among Cape Verdeans who operate within a transnational social world are structured, as well as learning about the construction of a transnational social identity based on an ethnic identification. From here we find the conceptual field that allows us to sociologically discuss the Cape-Verdean ethnicity as a dimension that shapes up a transnational ethnic identity. Our path led us back to the classics of sociology to, through the circumstantiated analysis of its analytical contributions, understand how ethnicity or ethnic identity became a socially important characteristic and sociologically consequent throughout time. Ethnicity or ethnic identity emerges in the current social sciences as something further than a social or political construction. Social life is, although not uniformly, deeply structured around ethnic lines, and ethnicity happens in a variety of different daily scenarios. Ethnicity is incorporated and visible not only in political projects and nationalist rhetoric, but also in daily meetings, practical categories, commonsense knowledge, cultural idioms, cognitive schemas, discursive constructions, social networks and/or institutional forms. We aim to demonstrate that the Cape Verdean transnational ethnic identity is being continuously built for the last centuries, as a social and sociological phenomenon. It exists not only because there was (only) a belief that presupposes its existence, but also because there are actions, interactions and social relationships that, when longitudinally analysed, prove their existence. We mentioned several examples of this activity in the USA, Portugal, Cape Verde or Argentina. We believe that is does not exist [it could never exist] a (unique) general Cape Verdean ethnic identity; on the contrary, we would be in the presence of a multiple ethnic (re)construction, therefore different in each of the countries with immigrant communities (and in the Cape Verde archipelago), resulting, on one hand, of the confrontation with the differentiating others and, on the other, of the contexts and conjunctures in which that interaction occurs.
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NDICE Resumo ............................................................................................................................................... 7 Abstract .............................................................................................................................................. 9 Agradecimentos ............................................................................................................................ 15 Introduo: Do achamento de uma nao descoberta de um transnacionalismo identitrio ...................................................................................................................................... 19 Etimologia do conceito de identidade .................................................................................................... 22 Identidade como conceito mltiplo e identidade como conceito complexo ........................... 24 Uma sociologia da identidade ou vrias? ............................................................................................. 26 Da integrao diversidade. Da diversidade integrao .......................................................... 36 Identidades tipo: a investigao em torno da etnicidade de base identitria .................. 43 T na Lua Ten Kabverdinu? ................................................................................................................... 46 Descrio capitular ......................................................................................................................................... 61
Captulo 1: Da etnicidade como obstculo epistemolgico etnicidade como tipo-ideal ? .................................................................................................................................. 69 Um jardim herderiano: a cada um a sua etnicidade e uma etnicidade a cada um ..... 75 Semntica e razes da etnicidade: uma arqueologia terminolgico-conceptual ................ 79 Substituio ou (re)conceptualizao? ................................................................................................. 86 A etnicidade como herana herderiana ............................................................................................. 87
Captulo 2: A etnicidade nos autores clssicos da Sociologia .................................... 97 Ferdinand Tnnies ....................................................................................................................................... 100 Vilfredo Pareto ............................................................................................................................................... 104 Karl Marx ......................................................................................................................................................... 115 mile Durkheim ............................................................................................................................................. 126 Max Weber ....................................................................................................................................................... 139 Georg Simmel ................................................................................................................................................. 159
Captulo 3: Diferentes abordagens da etnicidade na sociologia contempornea .......................................................................................................................................................... 169 Robert E. Park (1864-1944) ..................................................................................................................... 173 Talcott Parsons (1902-1979) .................................................................................................................. 193 Frederik Barth (1928- ) ............................................................................................................................. 207 Pierre Bourdieu (1930-2002) .................................................................................................................. 223
Captulo 4: Modos de Olhar/Modos de ver: observar a identidade tnica transnacional cabo-verdiana ................................................................................................. 249 A etnicidade como conceito problema ............................................................................................. 252 Como medir a etnicidade. Ser possvel? ........................................................................................ 255 As etapas de investigao: construindo um roteiro metodolgico ......................................... 258 A pergunta de partida ................................................................................................................................ 264 As hipteses de partida, de trnsito e de destino ............................................................................ 265 Obteno e anlise de dados: a variedade de fontes e a construo de tese(s) ................. 268 Construindo etapas: o Estado da Arte ................................................................................................. 273 O inqurito on line (web based) ............................................................................................................. 285
Captulo 5: A emigrao cabo-verdiana para os EUA e os desafios para a construo de uma identidade tnica transnacional ..................................................... 291 O incio da construo do mundo cabo-verdiano ........................................................................... 296 Uma anlise da construo sociolgica da identidade tnica cabo-verdiana nos EUA: recuperar a actualidade, resgatar a histria ................................................................................... 346
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Cabo-verdianos versus afro-americanos: a segmentao do grupo na construo da identidade ........................................................................................................................................................ 350 (1) Ser ou no ser etnicamente portugus: a evoluo e as razes de uma escolha ... 356 (2) Ser ou no ser Negro: as polticas da etnicidade ................................................................. 362 (3) Os Cabo-verdianos-africanos ........................................................................................................... 370 (3.5) Os Cabo-verdianos como Afro-Americanos ............................................................................ 376 (4) A identidade hifenizada composta: ser Cabo-verdiano-americano ................................ 384
Captulo 6: A emigrao cabo-verdiana para a Argentina. O tempo longo da assimilao reversvel .............................................................................................................. 389 Cabo-verdianos na Argentina: comunidade (s) invisveis? Ou uma etnicidade adormecida? ................................................................................................................................................... 390 Trs fases migratrias distintas para a Argentina ........................................................................ 393 Invisibilidade versus Visibilidade social: etapas num percurso longo de assimilao ... 403 Uma tipologia de integrao a partir dos actores ......................................................................... 409 A etnicidade resistente: cabo-verdianidade argentino-cabo-verdiana ............................. 425 Ser a globalizao geradora de visibilizao social para os Cabo-verdiano-descendentes na Argentina? .................................................................................................................... 430 De Argentinos a Cabo-verdianos: as polticas da etnicidade ................................................. 432
Captulo 7 Os diferentes tipos de cabo-verdianos em Portugal : um balano aps 50 anos de migrao (ou o caminho para a construo de identidades adaptativas) .......................................................................................................................................................... 437 As migraes cabo-verdianas para Portugal ................................................................................... 441 O incio da teia migratria: a abertura de mais uma linha para a rede migratria cabo-verdiana ............................................................................................................................................................ 448 Concentrao espacial e fechamento social ..................................................................................... 461 Entre trs grupos e cinco tipos: Cabo-verdianos em Portugal .................................................. 465 As prticas transnacionais dos imigrantes cabo-verdianos em Portugal e a sua ligao construo da identidade tnica transnacional .......................................................................... 477 A segunda gerao: entre o ser, o sentir e o assumir .................................................................... 504
Captulo 8: Pap, ben fla-m ki rasa ki nos , pai ? ................................................. 515 Um duplo arquiplago: a especificidade de cada uma das ilhas ............................................. 517 A polarizao Europa versus frica como construo scio-poltica ................................... 529 Dimenses culturais da cabo-verdianidade: lngua; literatura e msica ............................ 536 A lngua cabo-verdiana como uma estrutura estruturante (ainda pouco estruturada) .............................................................................................................................................................................. 538 A literatura cabo-verdiana como estrutura estruturante da cabo-verdianidade ........... 552 Msica cabo-verdiana: a internalizao transnacional de uma identidade contra-hegemnica? ................................................................................................................................................... 580 A objectivao da tradio. A construo de indicadores de contacto com a cultura cabo-verdiana ................................................................................................................................................ 589 Identidade tnica transnacional ou cabo-verdianidade? ........................................................... 592
O ltimo captulo: algumas concluses e um mapa para investigaes futuras ... 595 Bibliografia .................................................................................................................................. 627
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Sociology is an exporter discipline: key ideas are readily absorbed elsewhere
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Agradecimentos Este projecto de dissertao de doutoramento no foi, como nunca , um projecto
percorrido em solitrio. Ao longo do trajecto, que me conduziu a esta etapa de
apresentao da dissertao, pude contar com a ajuda preciosa de numerosas pessoas
e de algumas instituies. Na impossibilidade de mencionar todas elas, expresso aqui
explicitamente o meu agradecimento quelas que mais ou melhor marcaram este
caminho e fica um agradecimento genrico para todas as outras. Obrigado!
A realizao deste trabalho foi possvel graas a ajudas institucionais decisivas. A
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto concedeu-me quatro semestres de
dispensa de servio docente e permitiu-me usufruir de uma autonomia pedaggica e
cientfica que me possibilitou seguir o meu prprio caminho no interior da Sociologia.
Ao longo deste percurso pude contar tambm com o apoio inestimvel do ncleo de
estudos de migraes do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra que
me possibilitou a experincia de ser investigador num centro de investigao de
excelncia internacional. A Fundao para a Cincia e Tecnologia do Ministrio da
Cincia, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal concedeu-me uma bolsa de
estudos que permitiu a minha estadia na Universidade de Oxford e apoiou, por
diversas vezes, a minha participao em congressos internacionais. A Fundao Luso
Americana para o Desenvolvimento subsidiou, em diversas ocasies, as minhas
comunicaes em congressos e conferncias internacionais que se revelaram marcos
de partilha e aprendizagem essenciais. O Instituto de Cooperao Cientfica e
Tecnolgica Internacional (ICCTI) da Fundao para a Cincia e a Tecnologia do
Ministrio da Cincia, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal concedeu-me uma
bolsa para a realizao do trabalho de campo. A rede de excelncia IMISCOE
permitiu-me um continuado contacto internacional de alto nvel como os melhores
cientistas europeus da minha rea de estudo.
Prof. Maria Ioannis Baganha, que acompanhou o meu trabalho durante mais de
uma dcada, devo a minha carreira enquanto investigador. Tendo sido minha
professora e minha orientadora da dissertao de mestrado, aceitou ser de novo minha
orientadora no projecto de doutoramento que acompanhou at ao seu falecimento. As
minhas palavras nunca podero expressar o quanto lhe devo: a amizade, o seu esprito
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crtico, a sua qualidade cientfica, a sua tica e o seu empenhamento em cada projecto,
mas tambm o seu incentivo crtico e desafiador ou ainda a coragem com que
enfrentava as vicissitudes da vida. So atributos de que sinto a falta e que me serviro
para sempre de referncia.
Ao Prof. Carlos Fortuna, meu professor e orientador, ficarei eternamente agradecido.
A tarefa que empreendeu enquanto supervisor de uma dissertao de doutoramento,
nas circunstncias difceis em que o fez, a leitura critica, o comentrio perspicaz, a
sugesto pertinente, o empenho desinteressado, so a prova de que os bons mestres
persistem na Academia e que so eles (e no a Histria) que tornam Coimbra uma
Universidade nica, singular e incomparvel. Devo ao Prof. Carlos Fortuna o ter
chegado aqui, quando, noutras circunstncias, teria desistido ou mudado de caminho.
Ao Jos Carlos Marques, colega e amigo, sempre presente ao longo dos ltimos anos,
devo o debate, a sugesto de leituras, o incentivo e algumas dores de cabea geradas,
entre outras coisas, por puzzles e labirintos tericos de difcil soluo. Devo-lhe ainda
a ajuda na leitura e compreenso de Luhmann o que, s por si, mereceria um
agradecimento destacado.
Carla Ins agradeo a ajuda nas tradues, a leitura atenta e as correces de erros e
gralhas. Joana Gis agradeo, sobretudo, a ajuda na insero de dados na base de
SPSS. Ao Carlos Elias Barbosa agradeo a ajuda na compreenso do crioulo, na
aplicao de inquritos e nos debates sobre Cabo Verde. A todos eles, e a vrios
outros companheiros de percurso, agradeo tambm a amizade que tornam possvel
que a sociedade acontea.
A minha famlia, que cresceu durante este percurso, foi o pilar mais importante que
sustentou estes trabalhos de Hrcules. por eles e para eles que tudo vale a pena.
Para a Carla a minha gratido permanente e perptua. Para os meus filhos Manuel
Pedro e Joo Nuno o meu agradecimento eterno e definitivo. Aos meus pais e
irmos tempo de dizer: obrigado por tudo. Sem todos vocs o futuro que
imaginvamos ontem no teria sido possvel.
Porque haver sempre amanhs que cantam (e talvez seja em crioulo!).
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Introduo: Do achamento de uma nao descoberta de um transnacionalismo identitrio
Este trabalho surge de uma paixo, de uma descoberta que pode ser definida como um
achamento. Tal como os achamentos ibricos do sculo XV, descobrir Cabo
Verde e os cabo-verdianos revelou-se como uma descoberta de um novo mundo, neste
caso de um novo mundo social. Cabo Verde surge, cada vez mais, para os estudiosos
das migraes internacionais contemporneas, como um laboratrio social muito
interessante para usar uma expresso do pioneiro Robert E. Park e tambm ns no
escapmos a este apelo (Park et al., 1967: 93-94). Este trabalho decorre, igualmente,
da inabilidade total de responder ao que parecia ser uma simples questo com que nos
deparmos no final dos anos 90, no incio do nosso percurso como investigador: o
que ser cabo-verdiano?.
As razes para colocarmos essa questo e, sobretudo, para a impossibilidade de uma
resposta simples so diversas. Em primeiro lugar, esta questo deriva do facto de
termos tido ao longo dos ltimos dez anos um contacto pessoal prolongado com uma
cultura que viemos a descobrir ser slida, durvel e fortemente implementada em
contextos e localizaes distintas em diferentes partes do globo como a cultura
cabo-verdiana. Uma cultura que se revelou aberta, dinmica e que, por ser como ,
impede uma qualquer cristalizao conceptual e uma anlise definitiva por parte do
observador. Uma cultura que , por definio, crioula ou hbrida (Anthias, 2001) e
que se autodefine e se apresenta enquanto tal.
Ser ou no ser [cabo-verdiano] saber o que ser cabo-verdiano foi, de facto, a
questo que pairou, como um fantasma, ao longo de todo este trabalho. Tal como em
Shakespeare a dvida deu origem a um dilogo, neste caso no entre personagens mas
entre teorias, conceitos e dados, que, no final, inapelavelmente, deixar no ar ainda e
sempre perguntas, novas questes, como o verdadeiro moral da histria1.
1 Neste trabalho sentimos a necessidade de trabalhar com conceitos compostos. De alguma forma foi como se sassemos para a chuva com trs chapus de chuva conceptuais (identidade, etnicidade e transnacionalismo) cada um deles suficiente para apanhar o que quisermos mas nenhum deles abrangente o bastante para abarcar os outros dois. A generosidade destes conceitos, analisados individualmente, tal que abarcam quase tudo, so utilizados tanto nas cincias sociais, como no senso comum, nos media e pela poltica. Ao longo deste trabalho procuraremos explicitar a sua significao.
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Esta investigao, que pretendemos de ndole Sociolgica (por contraste com outras
de ndole mais Antropolgica ou com origem em territrios hbridos como os Estudos
Culturais ou os Estudos tnicos), surge na sequncia da anlise das migraes e da
cultura cabo-verdiana realizada ao longo de vrios anos e de que resultaram mltiplas
comunicaes e publicaes2 sobre vrias vertentes desta migrao.
Esta anlise deu origem a algumas (poucas) certezas sobre o tempo e o modo como
decorreram as migraes e a um conjunto (grande) de dvidas sobre as consequncias
(e.g. sociais, polticas, econmicas ou culturais) da disperso geogrfica de um
conjunto de indivduos que partilham uma mesma forma de ser e estar e (talvez)
possuam algo que podemos definir como uma etnicidade3 em comum.
As investigaes mais recentes permitiram questionar o modo como se estruturam as
ligaes simblicas entre os membros desta nao transnacionalizada e formular a
hiptese de estarmos perante um exemplo de uma identidade tnica transnacional,
cuja defesa constituir o cerne desta tese. Estudar uma identidade social, uma
identidade colectiva no , contudo, um trabalho fcil. Ao longo do desenvolvimento
desta tese vrias vezes sentimos que despoletramos o dcimo-terceiro dos trabalhos
de Hrcules tal a dificuldade encontrada.
To cedo como no ano de 2004 apercebemo-nos de que no seria possvel apresentar
um estado-da-arte exaustivo da literatura sobre identidade ou identidade tnica.
Uma pesquisa na Internet atravs do Google (Nov. 1, 2004) sobre identidade social
devolveu-nos 5,59 milhes de resultados, sobre identidade pessoal 6,66 milhes,
sobre identidade colectiva 1,06 milhes e sobre identidade tnica 1,49 milhes de
resultados. Apesar destes resultados no reflectirem necessariamente trabalho
acadmico ou informao relevante para os objectivos da dissertao, no deixam de
mostrar que existe uma grande quantidade de informao disponvel a partir destas
palavras-chave. Mesmo quando cingimos o conceito de relaes tnicas a um
conceito mais dirigido para a investigao, o de relaes intertnicas, a pesquisa d
2 Cf. entre outras publicaes: Baganha e Gis, 1998/1999, Gis, 2002, Gis, 2005, 2006 e 2008a, Gis e Marques, 2006 e 2007, Westin et al., 2009. 3 De acordo com vrios autores, h uma vasta bibliografia sobre etnicidade, em que, na maioria dos casos, o termo utilizado mais como uma categoria descritiva do que, propriamente, como um conceito sociolgico que possibilita definir um objecto cientfico (Poutignat,1998: 83) como procuraremos demonstrar ao longo do presente trabalho.
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origem a um nmero suficientemente grande de resultados para inquietar um largo
grupo de investigadores durante um perodo considervel de tempo.
Assim, aps as leituras iniciais rapidamente conclumos que so tantas e to diversas
as anlises da identidade que, com pragmatismo, necessrio assumir que uma vida
inteira no daria para as conhecer a todas. A primeira das concluses deste trabalho,
paradoxalmente apresentada logo na introduo, , portanto, a de que esta
investigao apenas uma pea de um puzzle multidimensional e que nos serve mais
para conjecturar a realidade do que para a descrever na sua totalidade. Esperamos, no
entanto, que a modstia deste contributo concorra para o esclarecimento deste campo
conceptual ou, pelo menos, para abrir novos caminhos de investigao.
A conscincia da impossibilidade de ser exaustivo no tratamento da identidade cabo-
verdiana no nos desobriga de a abordar em profundidade mas, de certa forma, torna
o nosso trabalho mais descomprometido. Sabemos que certas perspectivas no foram
seguidas (e.g. a da Psicologia Social), que certos autores no foram abordados em
profundidade (e.g. Freud ou Erik Erikson4) e que muitas respostas ficam por dar (at
porque no cabem numa investigao de ndole sociolgica), mas sabemos tambm
que, s vezes, o simples formular de perguntas pode ser um passo importante nos
campos cientficos em que nos inserimos (veja-se o inspirador caso de algumas
conjecturas e hipteses matemticas que nos servem de referncia cientfica).
Privilegimos neste trabalho a abordagem sociolgica, dando-lhe primazia na anlise
de um objecto que pode ser observado atravs de perspectivas distintas e
complementares como as que tm origem, nomeadamente, na Psicologia Social, na
Antropologia Social e Cultural, nos Estudos Culturais, nos Estudos tnicos e/ou
Raciais ou nos Estudos ps-coloniais. A nfase foi posta num retorno aos autores da
Sociologia Clssica como forma de retomar um objecto de estudo (a etnicidade)
que a Sociologia no tem privilegiado e de demonstrar que este , afinal, um objecto
sociolgico por excelncia, que tem uma histria na disciplina que importa
aprofundar e at que alguns conceitos que hoje abundantemente usamos na anlise 4 Na literatura sociopsicolgica sobre identidade existe uma diviso entre identidade autodefinida e hetero-definida. Do lado da identidade autodefinida encontramos muitas perspectivas tericas que se centram nas faces experimental, existencial e emocional da identidade. Sigmund Freud naturalmente uma figura essencial, embora existam outros seguidores da escola psicodinmica, sendo Erik H. Erikson (1950, 1959) um terico importante. O lado da identidade hetero-definida parece concentrar teorias que se centram nas dimenses cognitiva, interactiva e social da identidade.
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sociolgica so originrios precisamente do campo da Sociologia da Etnicidade.
Apesar de privilegiarmos a perspectiva sociolgica as pontes com as outras
disciplinas so evidentes e necessrias mas assumimos que, epistemologicamente,
sentimos a necessidade de fundar a nossa anlise na Sociologia, nos seus conceitos
tericos, nos seus mtodos e, sobretudo, nos seus autores de referncia ensaiando
conceder aos socilogos clssicos e clssicos contemporneos um maior
protagonismo.
Em termos sequenciais a nossa anlise partiu da identidade, passou pela
compreenso da etnicidade e identidade tnica para ter como ponto de chegada a
anlise da construo da identidade tnica transnacional cabo-verdiana a partir de
um conjunto de exemplos. Tambm aqui, neste captulo introdutrio, faremos o
mesmo percurso5 ensaiando lanar as bases para o debate que prosseguiremos ao
longo deste trabalho.
Etimologia do conceito de identidade Etimologicamente, o vocbulo identidade tem origem no latim identitatis que
significa qualidade do idntico e que, por sua vez, deriva do pronome demonstrativo
idem. Na edio de 1978 do Dicionrio Larousse define-se identidade como
"aquele que tem qualidade de idntico" e tambm como "o conjunto de circunstncias
que distinguem uma pessoa das outras". No Academic Press Dictionary of Science
and Technology caracteriza-se a identidade a partir de trs perspectivas distintas: Identidade: Cincia: estado atravs do qual se permanece igual sob
condies variveis; Psicologia: Conceito pessoal do ser (self); conjunto de caractersticas
mediante as quais uma pessoa se reconhece a si mesma e aos outros. Matemtica: 1. Elemento idntico. 2. Equao que se cumpre para
qualquer valor possvel das variveis (Morris, 1992).
No Dicionrio filosfico de Pelayo Garca Sierra (1998) explica-se a identidade
destacando o seu carcter reflexivo: la identidad tiende a ser definida por la reflexividad de las relaciones entre los trminos identificados. No se trata, pues, de que la identidad sea una relacin que, como otras, tenga la propiedad de la reflexividad, sino que mas bien ocurre como si
5 Esta tese de doutoramento tem uma dvida de gratido para todos os colegas que comigo participaram num grupo de trabalho sobre relaes intertnicas, identidade, representao e discriminao no seio da Rede de Excelncia Europeia IMISCOE (www.imiscoe.org) desde 2004. O cluster 7, liderado pelo Prof. Charles Westin da Universidade de Estocolmo, foi, nas suas mltiplas actividades (e.g. seminrios, edio de textos e livros, debates) um excelente espao de descoberta, de confronto de ideias e fonte inspiradora numa temtica to rica como complexa com a que ensaiamos abordar.
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la reflexividad de cualquier relacin constituyese el ncleo mismo de la idea de identidad. (). De hecho, tanto en las frmulas escolsticas de identidad (ens et ens, ens est id quod, etc.), como en el tratamiento lgico formal de la identidad, como constante lgica, es la reflexividad, representada o ejercitada simblicamente, aquello que constituye el ncleo de la idea (Garca Sierra, 1998: 61).
Tambm no mbito da filosofia, encontramos um estudo exaustivo no Diccionario de
Filosofa de Ferrater-Mora. Este autor vai examinar o conceito de identidade a partir
de dois pontos de vista: o ontolgico e o lgico. O primeiro manifesta-se no chamado
principio ontolgico da identidade (A = A) de acordo com o qual toda a coisa
(apenas) igual a ela mesma ou ens est ens. O segundo manifesta-se no chamado
princpio lgico da identidade, o qual considerado por muitos lgicos de tendncia
tradicional como o reflexo lgico do princpio ontolgico da identidade, e, por outros
lgicos, como o princpio A pertence a todo A ou ento como o princpio se P
ento P (FerraterMora, 1994). Aqui, como em geral na literatura filosfica, a noo
de identidade discutida a chamada identidade estrita ou numrica, a qual
geralmente oposta a uma noo diferente de identidade, a identidade lata ou
qualitativa. Esta ltima noo normalmente caracterizada em termos de uma
determinada relao de semelhana entre coisas, semelhana que sempre com
respeito a um determinado aspecto ou fim, ou com respeito a um determinado
conjunto de aspectos ou de fins, isto , a identidade como pressuposto para um fim,
ou, colocando-a sob um discurso sociolgico: como pressuposto para uma aco
social. A semelhana como ponto de partida para uma aco social.
Ao discutir o tpico da identidade, Leibniz, por exemplo, tinha sempre e s em mente
a identidade estrita. Nesta lgica, sempre que h numericamente duas coisas, no h
identidade estrita, por muito semelhantes que elas sejam entre si (Leibniz, 1987). Por
exemplo, gmeos siameses, ou gotas de orvalho virtualmente indiscernveis, no so
coisas estritamente idnticas6. Apesar de ter suscitado imensa discusso filosfica, o
conceito de identidade estrita parece ter uma grande clareza e simplicidade, como se
pode verificar a partir da caracterizao que ele habitualmente recebe: a identidade
estrita aquela relao que cada coisa tem consigo mesma e com mais nenhuma coisa
(Branquinho, sd). Claro que a crtica imediata vem de Wittgenstein e :
6 Apesar de serem idnticas no sentido lato do termo.
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rudemente falando, dizer de duas coisas que so idnticas destitudo de sentido, e dizer de uma coisa que ela idntica consigo prpria no dizer nada de todo (L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 5. 5303).
Esta passagem rpida por vrias definies de dicionrio e pela filosofia da
identidade, pelas suas mltiplas significaes, demonstra como estamos, tambm
aqui, perante um conceito cujas fronteiras internas so tnues e as significaes
mltiplas. No s no h unanimidade na sua definio como as diversas definies
destacam aspectos muito diversos. Ainda assim, duas outras concluses so, para j,
possveis: (i) o termo identidade no exclusivo de nenhuma das cincias sociais,
utilizado por todas elas e tambm por outras cincias; (ii) o termo identidade, no
mbito da sua utilizao matemtica, significa de forma inequvoca igualdade: a
identidade acontece quando mudando as variveis o resultado o mesmo. A partir
destas definies fica, desde logo, excluda a definio matemtica que no
prosseguiremos. Em sociedade dificilmente poderemos falar de identidade estrita. A
dinmica dos sistemas sociais tem por base conceitos como os de complexidade,
contingncia ou diferena (Luhmann, 2007) pelo que as invariveis tendem a ser
inexistentes. Ensaiemos agora uma aproximao ao nosso modo de entender a
identidade em Sociologia7.
Identidade como conceito mltiplo e identidade como conceito complexo Poucos conceitos das cincias sociais e das cincias comportamentais gozaram de
uma utilizao to abrangente como o de identidade, que se tornou tambm uma
palavra comum na linguagem quotidiana ao longo das ltimas dcadas. Desde h
muito que o conceito de identidade nos tem permitido organizar teoricamente um
vasto nmero de fenmenos aparentemente diferentes estudados por reas acadmicas
distintas. A popularidade deste conceito fica a dever-se, em nosso entender, ao facto
de abranger um vasto campo da experincia humana, desde as emoes mais
profundas e memrias de si mesmo, at interaco social ou a situaes quotidianas.
Por outro lado, sendo um conceito que funciona na fronteira entre o eu e o ns
torna-se um conceito de intermediao entre perspectivas ou paradigmas de anlise.
7 A Sociologia da Identidade uma subrea jovem no interior da disciplina que a sustenta. De acordo com Teixeira Lopes, no processo de construo enquanto objecto cientfico, a identidade tem sido vtima de um erro terico fundamental: ora sendo considerada como uma entidade autnoma e desligada dos enraizamentos societais, ora sendo reduzida a um mero epifenmeno de outras instncias com verdadeiro poder explicativo. Sobre este tpico cf. Lopes, 1998.
25
um conceito que envolve e analisa auto-concepes e hetero-atribuies que podem
ser comunicadas, negociadas e modificadas, juntamente com categorizaes de
colectivos tnicos, culturais, religiosos, de classe ou categorias sociais em sentido
lato. , neste sentido, um conceito polissmico e polivalente.
O conceito identidade , como se compreende, complexo e multidimensional ampla
e diversificadamente usado, tanto num sentido (de senso) comum, como nas vrias
significaes em que usado por vrias cincias sociais e/ou nos estudos
humansticos, ainda que, sublinhe-se, raramente definido em qualquer dos casos.
Comecemos, portanto, por admitir que no h, como seria de esperar, uma (e uma s)
definio totalmente satisfatria para a questo: o que a identidade?8. No h
consistncia universal no uso do conceito e, tambm, no existe uma unanimidade no
modo de o operacionalizar (o que torna o uso universal ou generalizado deste conceito
algo problemtico). No entanto, de acordo com James Fearon (1999) existem, pelo
menos na Sociologia, algumas bases para um consenso sobre o que ou a que se
refere: identidade refere-se a: (a) uma categoria social, definida atravs de regras de pertena e (alegados) atributos caractersticos, ou comportamentos esperados, ou (b) caractersticas socialmente distintivas, das quais as pessoas se orgulham ou sentem como imutveis mas socialmente consequentes ou, ento, (a) e (b) simultaneamente. Estas duas categorias sociais podem (ainda que de forma simplista) ser identificadas como social e pessoal (Fearon, 1999: 3).
A identidade pode, se aceitarmos esta definio, por um lado, ser delimitada
socialmente ou, por outro, ser demarcada individualmente. Uma identidade pessoal ,
nesta perspectiva, um conjunto de atributos, crenas, desejos, ou princpios de aco
que um qualquer indivduo considera poder distingui-lo socialmente de forma
relevante, e de que: (a) o indivduo tem particular orgulho; ou (b) o indivduo no tem
disso particular orgulho, mas que orienta o seu comportamento de tal forma que ele
no saberia como agir ou o que fazer sem eles; ou (c) o indivduo sente que no
consegue mudar, ainda que o quisesse fazer. Uma identidade social, por seu turno,
uma identidade colectiva, isto , uma identidade que descreve e caracteriza um grupo
de pessoas. Refere-se (simplesmente) a uma categoria social, a um conjunto de
8 Em primeiro lugar, no h apenas uma definio porque h muitas (Abdelal et al., 2001). Sendo o conceito de identidade necessariamente plural como procuraremos demonstrar.
26
pessoas marcadas por um rtulo e distinguidas por regras de pertena e (alegados)
traos e atributos caractersticos (Fearon, 1999: 11).
O conceito de identidade (cumulativamente) um conceito politicamente influente
por uma variedade de razes. Por exemplo, uma destas razes ter a ver com o facto
de a procura da sua identidade especfica tender a ser um objectivo de muitos
grupos minoritrios, como forma, nomeadamente, de afirmar a sua diferena e
alcanar reconhecimento poltico pblico (Hutnik, 1985). Outra razo, provavelmente
mais forte, advm da tendncia para uma mobilidade em larga escala (mobilidade
social e geogrfica) que se vem afirmando nas sociedades ps-industriais nas ltimas
dcadas. A globalizao da economia e de fluxos de informao, bem como os
contnuos e continuados encontros interculturais trouxeram a questo da identidade
para o centro do debate.
Porm, ao mesmo tempo que o debate se globalizou o conceito como que se
localizou. Numa poca de sociedade(s) em rede, com um rpido desenvolvimento
tecnolgico de diferentes sistemas de informao e comunicao, a identidade parece
representar uma espcie de inrcia psicossocial condicionando toda a evoluo do
sistema social o que, no mnimo, implica a necessidade de conhecer melhor a sua
gnese e as suas consequncias (Castells, 1996 e 1997). Sendo a identidade um
conceito analtico central a sua centralidade sociolgica e histrica importa ser
destacada e analisada tanto na sua dinmica como na sua inrcia.
Uma sociologia da identidade ou vrias? O conceito de identidade social constri-se historicamente, em Sociologia, a partir
dos autores clssicos e de alguns dos seus conceitos operativos como o de
conscincia colectiva em Durkheim, de comunidade em Tnnies, conscincia de
classe em Marx ou de grupo de status em Weber, para citar apenas alguns que
ensaiaremos desenvolver em captulos posteriores. Tendo esta base, o conceito de
identidade em Sociologia refere-se desde logo ideia de pertena de (e a) um grupo
(contida no conceito anglo-saxnico de we-ness), destacando as semelhanas ou
atributos volta dos quais os elementos do grupo se agregam. A literatura clssica
tende a definir estes atributos como caractersticas naturais ou essenciais
qualidades que emergem de traos fisiolgicos, predisposies psicolgicas,
27
caractersticas regionais, ou propriedades (de certas regies ou locais) que tenderiam a
ser estruturantes (Westin et al., 2009). Supostamente, os membros de um grupo
tendem a internalizar estas qualidades, que lhes proporcionam uma experincia
singular (mas colectiva para o grupo), social e unificada, um espelho, na qual os
actores sociais constrem e visualizam um sentido de si mesmos. Vertentes
associadas raa, etnicidade e/ou nao9 esto normalmente representadas
nestas identidades10 colectivas conferindo-lhes uma base (de semelhana) comum.
Em 1915, mile Durkheim concebeu o conceito de representaes colectivas para
se referir a estas imagens de si e do outro (Durkheim, 1995) e, muitas dcadas depois,
a mesma ideia foi retomada por Serge Moscovici que se referiu a estas imagens como
representaes sociais actualizando as suas significaes e a continuidade histrica
da utilizao deste conceito (Farr e Moscovici, 1984). Esta persistncia conceptual (de
quase um sculo) alerta-nos para a sua importncia analtica estrutural e para o modo
como o conceito evoluiu ao longo do ltimo sculo sem, contudo, desaparecer.
A identidade, seja ela individual, social, cultural, profissional, religiosa ou poltica,
constitui o ponto de partida para toda e qualquer anlise ou relao com o outro,
com os outros. A identidade o que faz de ns quem somos e como nos
apresentamos aos outros. No entanto, a experincia da identidade, a nossa prpria
experincia da identidade (identidade pessoal), evoca necessariamente cdigos de
excluso, de diferena, de diferenciao ou de distino pelo que a identidade se
constri, muitas vezes, em confronto ou conflito. Da mesma forma, a identidade
social, na sua formulao grupal ou colectiva, constri-se tambm numa tentativa (bi-
polar ou de oposio) simultaneamente de identificao e de diferenciao, de
incluso e de excluso. A pertena a um colectivo evoca sempre (de forma implcita
ou explcita) a construo de outros tambm colectivos e, na mesma lgica, a
pertena a um colectivo evoca, tambm, sempre, a construo de fronteiras (ns-
outros, eles-ns) e, quase sempre, uma lgica de conflito e conteno, de
instituio, implementao e manuteno de relaes de poder.
9 A ideia de nao conceptualmente complexa e abordada de distintas formas em paradigmas distintos. Uma boa reviso ds debates pode ser encontrada em Visvanathan 2007. 10 As identidades sociais ou colectivas destacam-se e articulam-se quando grupos oriundos de diferentes contextos sociais, culturais, raciais, nacionais, tnicos, religiosos, de classe ou lingusticos partilham espaos sociais em reas pblicas.
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A identidade (pessoal) uma qualificao do indivduo que se desenvolve na
interaco material e simblica com todo o sistema social. Salientamos aqui uma
ligao directa ao universo conceptual e terico de interaccionismo simblico,
inicialmente desenvolvido por George Herbert Mead (Mead, 1962)11 numa
demonstrao da presena da capacidade de agncia do indivduo. Ao nvel pessoal,
na sua forma mais simples, a identidade a percepo que um indivduo tem de quem
ou de como e engloba a forma como me apresento aos outros. A pessoa que eu
acredito ser , no entanto, influenciada por quem os outros (um outros abstracto)
confiam (e sentem) que eu sou. Alm disso, a minha auto-concepo afectada por
aquilo que eu acredito que os outros pensam acerca dos meus pensamentos sobre
eles, numa complexa teia de influncias mtuas muito prxima de uma espiral com
reaces em cadeia e que entram dimenses como as que apresentamos na figura
seguinte:
Figura 0.1. A complexidade dimensional da identidade
O trabalho de Erving Goffman, que surgiu nos anos 50-60, na sequncia do
interaccionismo simblico de Mead, levou o conceito de identidade (sobretudo na
forma da identidade pessoal) aos limites, conduzindo-o fronteira partilhada entre os
domnios da Psicologia Social e da Sociologia interpretando as distintas
possibilidades do ser e parecer ser. Goffman introduziu uma perspectiva dramatrgica
nas interaces de identidade demonstrando que a distino entre situaes privadas
e pblicas, na forma como se gerem as apresentaes de identidade, est
relacionada com contexto onde decorre essa interaco, isto , afirmou a(s)
11 Sobre esta temtica ver, entre outros, Farr e Moscovici, 1984, Goffman et al., 1997, Lamont e Fournier, 1992, Maines, 2001, Matthes, 1982.
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identidade(s) como resultados de situaes contextuais. Negociaes de identidade,
gesto de identidade, alter-casting e marcadores de identidade so, por seu turno,
conceitos introduzidos por vrios tericos no seguimento da tradio goffmaniana,
com ligaes teoria da troca social, percepo social e formulaes precoces de
construtivismo social (Goffman, 1959 e 1963) num paradigma terico que muito tem
ajudado a consolidar uma perspectiva especfica da identidade como fluda e no
permanente. Esta abordagem interaccionista tornou-se importante sobretudo na
compreenso da perspectiva individual da identidade mas teve consequncias tambm
no modo como se percepcionam as identidades sociais como mutantes e no modo
como a identidade (ou algumas das suas dimenses) pode ser valorizada ou escondida
consoante os interesses em questo.
Num campo que complementa a perspectiva anterior, autores como Peter Berger e
Thomas Luckmann (1966), bem como as perspectivas tericas que se desenvolveram
a partir do construtivismo social, demonstraram ser, obviamente, de grande
importncia. No entanto, as abordagens interactivas surgem tambm na perspectiva da
auto-identificao, e as abordagens existenciais na ptica da hetero-identificao
visveis no diagrama em rvore, cuja inter-seccionalidade das suas vrias dimenses,
ainda que no representada, deve ser tida em conta (ver figura 0.2). No h uma auto-
atribuio identitria per si, isolada de um grupo de referncia nem uma hetro-
identificao que no contemple uma imagem de um ns face a outros. Aquilo
que penso de mim reflecte muito do que penso que os outros pensam de mim e,
simultaneamente, no que penso dos outros. Veja-se, por exemplo, a complexidade
da identidade e as suas mltiplas dimenses (aqui apresentadas de forma linear ver
figura 0.2).
Compreende-se que conceito de identidade esteja, pois, em permanente mudana,
tanto, pelo menos, como a(s) identidade(s) dos paradigmas que o sustentam. De
acordo com Alec Hargreaves e Jeremy Leaman, se nos limitarmos a definir a
identidade como o padro de significado e valor pelo qual uma pessoa estrutura a sua
vida, torna-se, desde logo, evidente, que esta estruturao evoca um processo
dinmico e no uma condio imutvel (Hargreaves e Leaman, 1995). Os indivduos
constroem os significados e valores com o auxlio de cdigos culturais partilhados,
muitas vezes, partilhados por (e em) grupos especficos, com subculturas prprias,
30
que variam, necessariamente, ao longo do tempo (de um tempo individual e de um
tempo longo mais marcadamente social). A identidade pessoal, neste sentido,
inseparvel da identidade sociocultural e esta ltima to dinmica como a primeira.
Figura 0.2. Uma matriz dos conceitos de identidade
Fonte: Lange (1981 in Galkina sd).
Na verdade, como vrios estudos demonstraram, no infrequente as pessoas
mudarem de cdigos culturais, podendo, ao mesmo tempo, mover-se entre uma
variedade de identidades socioculturais (Klandermans e Johnston, 1995, Swidler,
1986). Deste primeiro grupo de autores conclumos que, em Sociologia, identidade
, portanto, uma categoria multidimensional:
1. Relaciona-se com o grupo de pertena (identidade social);
2. Com o modo como nos apresentamos a ns prprios ao mundo social
(identidade pessoal); e
3. Com o nosso prprio sentido subjectivo de percebermos o modo de sermos
quem somos (identidade de ego).
A identidade em aco Na anlise sociolgica da vida quotidiana, o conceito de identidade tem mostrado
ser relevante na anlise de distintos problemas sociais. As questes de identidade
esto, aparentemente, relacionadas com a rebelio da juventude, com os processos de
ajustamento dos imigrantes s sociedades de destino, com os direitos das minorias,
com a coeso social, com a emergncia, re-emergncia ou esvanecimento do
31
nacionalismo e com a formao do Estado Nao, com os conflitos tnicos, com a
discriminao e excluso social de indivduos ou grupos, etc..
Em consequncia desta (aparente) relevncia explicativa surgiu na literatura uma
(grande) quantidade de sentidos atribudos ao conceito de identidade, a saber:
conceitos como identidadeego, auto identidade, identidade pessoal,
identidade social, identidade nacional, identidade tnica, identidade
colectiva, identidade para si, ou identidade para os outros so conceitos
recorrentes na literatura das cincias sociais e humanidades nas ltimas dcadas.
Surgiram tambm dimenses avaliativas e descritivas de identidade tais como
identidade positiva ou negativa, identidade forte ou fraca. Apesar de uma grande
quantidade de literatura secundria sobre identidade ter surgido desde, pelo menos os
anos 70, foi desenvolvido um esforo mnimo no sentido de coordenar definies ou
de salientar algum tipo de taxonomia de conceptualizaes. O resultado, como
afirmmos anteriormente, contribui para uma indefinio conceptual e para uma
diversa e, por vezes conflitual, utilizao do conceito (Westin et al., 2009).
Uma outra dificuldade na discusso analtica sobre identidade reside no facto de
esta no ser necessariamente algo tangvel, algo no qual podemos tocar, que
podemos avaliar, medir ou comparar12 atravs do recurso a mtodos e tcnicas de
investigao em cincias sociais. Vrias teorias ilustraram a identidade
(particularmente em relao ideia de comunidade ou de grupo) atravs de uma
srie de hipstases, como um contnuo desde algo que pode ser visto como
objectivo (isto , a identidade como produto puro de vrias formas de vida social)
at algo subjectivo (a identidade como um produto de si mesmo)13 e que no pode
ser captado empiricamente de forma simples. No fundo, mais no do que uma outra
forma de apresentar os efeitos epistemolgicos de um debate entre estrutura e/ou
agncia um dos debates fundadores e estruturantes da prpria Sociologia ainda que
no responda questo de como pode ser percebida e medida, como perceberemos ao
longo deste trabalho.
12 Sobre esta temtica conferir o conjunto de textos resultante do projecto Harvard Identity Project (http://www.wcfia.harvard.edu/misc/initiative/identity/publications) ver tambm Abdelal, 2009, Constant et al., 2007b. 13 Cf., entre outros, os trabalhos de Bloch e Solomos, 2010, Hinchman e Hinchman, 1997, Misra e Preston, 1978, Rutherford, 1990, Smith e Bender, 2001.
32
As identidades tnicas como identidades colectivas Para autores como Cohen (1997) ou Van Hear (1998), sobretudo o papel
desempenhado pelas comunidades de migrantes e/ou por comunidades tnicas na
dispora, que constitui o elemento distintivo da contemporaneidade ou, na formulao
alternativa de Kachig Tllyan: so as disporas as comunidades exemplares do
momento transnacional (Tllyan, 1991), isto , fazem a diferena no tempo presente
e desafiam a nossa compreenso da dinmica social pelo que a sua anlise se torna
alicerce na construo terica que queremos encetar.
A percepo de que os laos socioculturais baseados em origens colectivas distintas
das de outros grupos so a base das identidades tnicas foi assinalado por diferentes
autores da sociologia ou da antropologia14. Clifford Geertz (1963) descreveu estes
cdigos culturais associados s identidades tnicas como afinidades e ligaes
primordiais (Geertz, 1963a)15 explicando o seu significado. Para este autor, o sentido
primordial da identidade tnica contrasta as relaes sociais que surgem do
parentesco, do compadrio (kinship), da vizinhana, da partilha de uma lngua comum,
de crenas religiosas e/ou costumes partilhados, com aquelas que se baseiam numa
atraco pessoal, numa necessidade tcita, num interesse comum ou numa obrigao
moral (Rex, 1996)16. Geertz definiu as relaes sociais como simplesmente
gratuitas e inexplicveis, e tendo uma fora intensa em si e de si mesmas
(Geertz, 1963a). Reagindo ao funcionalismo britnico, Geertz vai valorizar (tambm)
a cultura como explicao para o posicionamento identitrio e identificaes do
indivduo mas assume a cultura como algo mais primordial do que como algo
construdo17 numa lgica que encontrar seguidores em autores como Frederik Barth
(1969).
Os crticos do modelo analtico de Geertz defendem, por seu turno, que novos cdigos
(incluindo-se aqui, obviamente, os cdigos culturais) podem sempre ser aprendidos ao
longo da vida, e, em muitas circunstncias, substiturem os que foram previamente
14 Designadamente por Abdelal, 2009, Bloch e Solomos, 2010, Geertz, 1963a ou Harden e Carley, 2009. 15 Ver entre outros os trabalhos de Glazer et al., 1975, Guibernau e Rex, 1997, Isaacs, 1975a, Maleevi e Haugaard, 2002, Rex, 1996 para uma discusso destes conceitos. 16 Assinale-se que, ao longo dos ltimos anos, esta perspectiva tem sido alvo de algumas crticas, nomeadamente por assumir que os indivduos tm ligaes primrias e permanentes a uma categoria social particular independentemente da forma como esta esteja definida (Watson, 1977). 17 Nesta perspectiva interpretativa da sociedade, fortemente influenciada por Max Weber e Ludwig Wittgenstein, a ausncia de estruturas sociais dinmicas acaba, a nosso ver, por enfraquecer a sua argumentao.
33
adquiridos pelo que a cultura no pode assumir um valor explicativo hegemnico ou
totalitrio (Banton, 1983, 1988 e 1997, Hargreaves e Leaman, 1995). John Rex, por
exemplo, desenvolve uma abordagem sequencialista para mostrar o modo como estes
cdigos culturais se podem ir alterando ao longo do tempo de vida de cada indivduo
em funo das circunstncias passando a etnicidade de inevitabilidade a escolha.
Para este autor, no incio das suas vidas, os membros so apanhados naquilo que Rex
(1996) chama a armadilha tnica infantil, ou, por outras palavras, as crianas vem-
se apanhadas numa rede de parentesco na qual os indivduos desempenham papis
especficos, e em relao a quem tm direitos e deveres claramente definidos.
Tornam-se membros de um grupo influenciados de fora para dentro e, na verdade,
sem optarem por lhe pertencer. Estas relaes de dependncia geram dependncias de
relaes que prendem o indivduo a uma identidade tnica particular. Mais tarde nas
suas vidas, os indivduos entram num mundo social mais abrangente, e, de acordo
com Rex (1996), acabam por seguir um de dois caminhos: primeiro, atravs do
processo de socializao, as interpretaes de personagens (role-players) externas so
interiorizadas pelos indivduos cujas identidades pessoais so (j) ento o produto de
uma construo social mais abrangente, levando-os, muitas vezes, a agir como
indivduos parte de grupos tnicos (eu sou porque tu s). Em alternativa, possvel
que um indivduo se aperceba que existem grupos maiores alm do seu grupo de
origem, a que, John Rex chama, habitualmente, de etnias ou grupos tnicos e que lhe
podem oferecer o mesmo sentimento de pertena e, atravs de uma opo estratgica,
o indivduo junta-se a estes grupos (Rex, 1986)18. O grupo tnico, para John Rex
distingue-se do tipo mais simples de grupo com base nas relaes de vizinhana e
laos familiares, pelo facto de, neste tipo de organizao social, no existir uma
definio precisa dos papis desempenhados por cada um dos membros.
De uma forma sinttica podemos afirmar que o grupo social tendo por base a etnia
se constitui, de uma forma ou de outra, atravs das seguintes seis condies principais
conjugadas em diferentes formulaes:
(i) um nome apropriado comum, para identificar e expressar a essncia da
comunidade. Este nome funciona como ncora, como legenda da polissemia
conceptual potencial do grupo (Barthes e Heath, 1977);
18 Veja-se o exemplo dos movimento afro ou latinos nos EUA.
34
(ii) um mito, e no necessariamente um facto, de antepassado comum, que
inclui uma origem comum, dando ao grupo tnico um sentimento de afinidade
fictcio; tambm chamado superfamlia (Horowitz, 1985);
(iii) memrias histricas partilhadas, ou antes, memrias partilhadas de um
passado ou passados comuns, incluindo heris, acontecimentos (positivos ou
negativos), e respectiva comemorao (Connerton, 1989 e 2009);
(iv) um ou mais elementos de cultura comum, que no precisam de ser
necessariamente especificados, mas que normalmente incluem religio, hbitos ou
lngua partilhados, gastronomia e alguns elementos com origem na cultura material ou
imaterial;
(v) uma ligao com uma terra natal que no tem que corresponder,
necessariamente, a uma ocupao fsica pelo grupo tnico, apenas a uma ligao
simblica terra ancestral, tal como acontece, por exemplo, com os indivduos das
disporas (Cohen e Vertovec, 1999);
(vi) um sentido de solidariedade, pelo menos da parte de alguns segmentos do
grupo tnico que lhes conferem uma empatia grupal (um we-ness).
No entanto, estas caractersticas no implicam necessariamente que o grupo tnico
assuma algum (do forte) sentido de pertena emocional, designada e inexoravelmente,
a existente nos grupos mais pequenos (e.g. famlia) mas, tambm, no significa, como
veremos, que no possua a sua prpria estrutura de relaes sociais com vnculos
fortes nem que no necessite de construir relaes sociais baseadas na lgica de um
poder diferencial. Habitualmente, nos grupos tnicos tender a existir uma espcie de
diferenciao e complementaridade econmica e de status entre os seus membros,
bem como um certo tipo de diferenciao de papis em relao aos que exercem
autoridade (poltica ou religiosa, por exemplo) e aos que se submetem a esse poder
simblico19. Voltaremos a esta ideia.
A identidade como estrutura ou ao servio dos agentes? No estudo da identidade social ou colectiva, subsistem vrias discusses que, no
essencial se polarizam em torno do modo como assumida enquanto varivel. De um
lado, temos os que a conceptualizam como esttica, essencial, unidimensional, (isto , 19 Sobre esta questo, cf., entre outros, os trabalhos de Hutchinson e Smith, 1996, Rex, 1996, Schermerhorn, 1978, Smith, 1972, 1997 e 2001.
35
a identidade fixada de acordo com a natureza humana) e, do outro, os que a
entendem como fluda, socialmente construda e multidimensional. Podemos estudar a
identidade como varivel independente, no primeiro caso, ou como varivel
dependente, no segundo (Croucher, 2004). Como varivel dependente, a identidade
tradicionalmente usada em estudos de identidade nacional, especialmente sobre
atitudes nacionais, e/ou estudos sobre a identidade tnica (Smith, 1972 e 1986 e
1995) assumindo-se uma continuidade histrica na sua percepo. Como varivel
independente a identidade tem sido usada, nomeadamente, para explicar conflitos,
guerras, agresses, etc. (Croucher, 2004)20. De uma forma necessariamente genrica a
primeira destas abordagens pode ser denominada de primordialista ou essencialista, a
segunda, como construtivista ou social construtivista. Entre estes dois extremos, o
debate assume a forma de escolas de pensamento, de reas sub-disciplinares ou de
paradigmas de investigao distintos que, no caso da Sociologia, ensaiaremos
apresentar ao longo deste texto (Fearon, 1999)21.
Uma abordagem alternativa ao primordialismo (mas ainda longe de ser social
construtivista) pode ser encontrada, por exemplo, no modelo de situacionismo, do
antroplogo Frederick Barth (1969), tambm chamada de boundary approach
theory (Pang, 2000). Com este modelo, Barth sugeriu que a pertena de um
determinado indivduo a um grupo tnico, dependia dos seus objectivos, ou, por
outras palavras, do projecto (e.g. social ou poltico) em que o grupo estivesse
envolvido. As identidades seriam projectos contextuais. De acordo com este ponto de
vista, e embora no se defenda claramente que os grupos tnicos sejam associaes
premeditadas, promove-se a ideia do confronto com outros como forma de definir
fronteiras sociais activas ou reactivas. A identidade tnica, sob a perspectiva da
teorizao das fronteiras de Barth, surge com o intuito de servir propsitos
especficos, principalmente no confronto com outros grupos tnicos com pretenses
similares. Pela sua importncia e influncia voltaremos, detalhadamente, a esta ideia
no captulo terceiro.
20 Na verdade poderamos alterar os exemplos e as explicaes permaneceriam ainda plausveis o que mostra a extrema plasticidade na utilizao dos conceitos mas, em nosso entender, no a capacidade de explicar a formao e sustentao de identidades tnicas. 21 Num outro sentido, importa igualmente assinalar que, enquanto categoria social, a identidade socialmente construda e, se assim , historicamente contingente, isto , pode variar ao longo do tempo e, claro, como socialmente construda pode igualmente variar ao longo do espao).
36
As duas abordagens acima descritas esto ainda relacionadas com aquilo que so
consideradas as dimenses instrumentalista e expressivista da etnicidade,
formulaes analticas alternativas da mesma realidade social (Hutchinson e Smith,
1996). O instrumentalismo refere-se utilizao da etnicidade como uma
ferramenta para adquirir vantagens, como um recurso ou dispositivo social, poltico e
cultural, para diferentes grupos muitas vezes vistos como entidades polticas (por
vezes, sobrepondo-se perspectiva Barthesiana). Uma das verses das teorias
instrumentalistas vai centrar-se na anlise da competio das elites por recursos, e
sugere que a manipulao de smbolos vital para conseguir o apoio das massas e
alcanar objectivos polticos (Brass, 1991) designadamente em momentos de
redefinio de mecanismos de socializao (eg. no ps-colonialismo), enquanto uma
outra verso destas teorias vai examinar as estratgias das elites para maximizar as
experincias em termos de escolha racional individual em determinadas situaes
(Banton, 1983). Desta forma, uma das ideias centrais do instrumentalismo a
natureza socialmente construda de etnicidade e a capacidade dos indivduos para
procederem a uma reformulao identitria a partir de uma variedade de heranas e
culturas tnicas para forjar as suas prprias identidades individuais ou grupais
(Hutchinson e Smith, 1996) uma perspectiva que ter tanto de interessante como de
potencialmente perigosa. Uma terceira via pode ser encontrada na dimenso
expressivista da identidade que assinala o facto da identidade tnica tambm implicar
afecto e um sentimento de proximidade e semelhana (sameness) que cria, promove
ou estimula ligaes e vnculos tnicos. Milton Yinger, por exemplo, afirma que,
num mundo cada vez mais racional e instrumental, as pessoas sentem dificuldade em
se identificarem com uma sociedade heterognea e em rpida mudana pelo que uma
ligao tnica permite preservar (numa escala micro) o sentimento de comunidade,
saber quem se , ultrapassar o sentimento de no ser ningum num mundo annimo
(Yinger, 1994: 45-46) sugerindo uma aproximao a uma Gemeinschaft de Tnnies.
A identificao com o grupo seria, neste caso, uma forma de integrao social um
outro importante conceito que sentimos a necessidade de aprofundar neste texto.
Da integrao diversidade. Da diversidade integrao O conceito de integrao, muito ligado ao campo de estudo da sociologia das
migraes desde, pelo menos a Escola de Chicago de h quase um sculo, tem sido
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visto como problemtico (ou no universal) desde os anos 60 do sculo XX. Em
muitos contextos analticos tem-lhe sido atribuda uma interpretao social e
psicolgica e tem sido compreendido cada vez mais como uma propriedade individual
e no grupal. Nos Estados Unidos, nos anos 60-70, por exemplo, autores como
Nathan Glazer e Daniel Moynihan defenderam que a teoria do melting pot j no era
uma descrio adequada do processo da incorporao dos imigrantes na sociedade
americana (Glazer et al., 1975, Glazer e Moynihan, 1963 [1970]). Esta teoria (do fim
do melting pot) foi igualmente difundida pela psicologia social, por autores como o
psiclogo social canadiano John Berry, de base funcionalista, que desenvolveu uma
sntese terica sobre as estratgias de aculturao, em sociedades etnicamente
diversas sugerindo que h um limite para a gesto social da diversidade. Nestas
teorias o autor postula que a integrao e outras estratgias de interaco social so
operacionalizadas em termos da identificao individual com a maioria
cultura/sociedade e com a minoria cultura/sociedade (Berry, 1990 e 1997).
Berry (1990) defende a existncia de 4 tipos de respostas sociais: (i) assimilao; (ii)
segregao; (iii) marginalizao; e (iv) integrao. Para este autor, a assimilao
representa a imerso total do imigrante na sociedade dominante (ou main stream). O
imigrante adopta a linguagem, a imagem, as formas quotidianas de interaco, de
pensar e de actuar da comunidade receptora numa transfigurao completa. A
segregao, por seu turno, caracteriza-se pelo estabelecimento de relaes mnimas
com a comunidade receptora enquanto, em simultneo, se criam nichos tnicos
exclusivamente com elementos da cultura de origem. As relaes com a sociedade
receptora limitam-se, neste tipo de resposta social, s relaes de produo. No caso
da marginalizao, o imigrante sofre uma perda de identidade de origem sem se
tornar parte da sociedade dominante ou receptora. Por ltimo, a integrao a
resposta que permite ao imigrante manter a sua identidade prpria ao mesmo tempo
que participa na sociedade dominante ou sociedade receptora. O migrante est
plenamente consciente das suas razes, da sua origem e da sua cultura, ao mesmo
tempo que renova dia-a-dia a sua participao na comunidade receptora22.
Vrios instrumentos, desenvolvidos a partir da conceptualizao de Berry, quando
utilizados em investigao psicolgica transcultural, tendem a produzir resultados
22 Segundo a teoria de Berry, a integrao diz respeito participao, nomeadamente, nos domnios econmico e educacional da sociedade maioritria, mantendo simultaneamente valores, linguagens tradicionais e estilos de vida do pas de origem nos domnios da esfera privada da sua vida familiar (Berry, 1990).
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significativos e consistentes que acabam por confirmar empiricamente a validade
desta teoria em termos individuais mas, a nosso ver, no a comprovam em termos
sociais como procuraremos explicitar. Tomadas na sua simplicidade redutora, estas
respostas sociais, quasi tipos-ideais no sentido de Max Weber, mostram a sua
capacidade de enquadramento ao mesmo tempo que revelam a sua incapacidade de se
tornarem totalmente excludentes. Podemos, sem grande esforo, pensar em casos em
que duas das situaes referidas acima se sobreponham no tempo e no espao para
imigrantes de um mesmo pas de origem.
Por exemplo, Karmela Liebkind (2001) sugeriu que os imigrantes so, antes de mais,
confrontados com a marginalizao, passando depois por um estdio de separao at
integrao, alcanando posteriormente a assimilao (Liebkind, 2001, Liebkind,
1984 e 1989). Tendo em conta que o modelo de Berry no foi utilizado em estudos
longitudinais (intra e trans-geracionais) mas sobretudo aplicado ao estudo de
indivduos ou grupos, que so apenas fotografias de uma dada realidade, no existe
ainda suporte emprico suficiente para uma confirmao total desta anlise. Os
estudos que se baseiam nas ideias de Berry tendem, alis, a transmitir uma perspectiva
esttica da integrao individual (e at uma perspectiva em que um se integra no todo
sem interaco recproca) o que lhe tem valido criticas de diferentes autores que a
consideram excessivamente funcionalista (Rudmin, 2003, Schmitz, 1998).
Numa formulao alternativa o socilogo norte-americano Milton Gordon tinha
anteriormente apresentado uma teoria alternativa (nos anos 60), na qual a integrao
era entendida como um processo de participao crescente nas instituies da
sociedade mainstream (Gordon, 1964). As reas importantes de participao seriam,
no entender deste autor, a economia, o trabalho, a lngua, a educao, a habitao, as
organizaes, as actividades de tempos livres, o sistema poltico, a vida social e a vida
familiar e seria a participao em cada uma delas que determinaria o sucesso da
integrao social. De acordo com esta abordagem, a integrao seria vista,
igualmente, como uma fase que precederia a fase de assimilao (Gordon, 1964). As
ideias de Gordon podem ser mais dinmicas do que as de Berry, mas a integrao
continua a ser vista como uma tarefa e propriedade marcadamente individual sendo o
nus colocado no indivduo e no na sociedade. Estas teorias acabam por ter
consequncias no modo como se constroem as polticas migratrias em diferentes
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pases e no modo como, no interior dos Estados, se construram politicas de
integrao ao longo das ltimas dcadas.
A sociloga Nimmi Hutnik desenvolveu uma conceptualizao semelhante mas,
declaradamente independente, em relao a John Berry. Na sua anlise, Nimmi
Hutnik sugere um modelo quadripolar no estudo da identidade das minorias tnicas
(Hutnik 1985 e 1991, Hutnik et al., 1985). O seu modelo descreve os seguintes quatro
tipos de identidade de minorias tnicas: (1) assimilativo abraa os valores do grupo
maioritrio e tem um baixo nvel de identidade tnica prpria; (2) aculturado
mantm um alto nvel de identificao com a maioria e com o prprio grupo; (3)
dissociativo revela uma fraca identificao com a maioria do grupo mas segue as
normas do grupo tnico prprio; (4) marginal oscila entre dois grupos sem saber o
que escolher, resultando numa fraca identificao com ambos os grupos (Westin,
2005).
Ching Lin Pang, ao comentar a tipologia de Hutnik, num estudo de caso sobre as
crianas japonesas expatriadas, vai negar a aplicabilidade universal desta tipologia. O
autor vai defender a ideia de que no existem tipos puros mas que, ao invs, as
pessoas revelam propenso para poderem ser enquadradas em mais do que um dos
tipos definidos ou em espaos intersticiais entre eles (Pang, 2000). Por outras
palavras, cada um destes tipos teria graus diferentes e a identificao dos indivduos
seria (tambm ela) apenas uma questo de grau o que, sendo uma afirmao simples,
transmite a necessidade de complexificarmos tipologias que podem ser
simplificadoras da realidade. As segundas geraes ou, no caso do estudo de Pang, as
crianas que partilham mais do que uma cultura (os descendentes de imigrantes), so
exemplos desafiadores para a pureza e exclusividade dos tipos utilizados por Hutnik
ou Berry mas, por isso mesmo, estes tipos-ideais so estimulantes de serem levados
ao limite. Identificar o grau de etnicidade de cada um torna-se ento na questo
chave da discusso anterior. Compreendendo que no h uma resposta universal
implica a necessidade de olharmos para esta realidade atravs de diferentes exemplos
o que, a seu tempo, faremos. Tendo isto em considerao, e antes de desenvolvermos
esta questo, importante analisarmos, por agora de forma breve, o conceito de
etnicidade e as suas aplicaes que desenvolveremos de forma mais aprofundada ao
longo deste trabalho.
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Etnicidade [desterritorializada] A etnicidade, enquanto espao narrativo conceptual, pode ser confusa e incerta, e
at mesmo paradoxal23. Ao tentar definir o conceito, em primeiro lugar, deve ter-se
em considerao que as definies na literatura ou no distinguem entre as
abordagens acima descritas utilizadas na definio do termo, ou, alternativa e
complementarmente, fazem-no de forma a que seja aplicvel a ambas as situaes
(Isajiw, 1974 e 1999). Em segundo lugar, vale a pena sublinhar que o conceito de
etnicidade abarca diferentes propsitos analticos, dependendo da rea de estudo
(Eriksen, 1993, Guibernau e Rex, 1997) o que por si s gerador de conflitos. Por
exemplo, enquanto um antroplogo social pode olhar para a etnicidade como uma
varivel definidora de grupo, um cientista poltico preferir aplicar o termo a uma
fora de motivao poltica, e, por seu turno, um gegrafo tender a preferir uma
aplicao do conceito ligando-o a um territrio delimitado. Apesar de uma boa parte
da teoria sobre etnicidade se ter centrado na ligao de etnia(s) com territrio(s),
ou, por outras palavras, no mbito de teorias de naes e/ou de nacionalismo, por
agora, queremos concentrar-nos na etnicidade que se visualiza no mbito das
migraes e que, ao contrrio da primeira abordagem, se centra muitas vezes,
precisamente, na separao de um territrio e numa (re)territorializao em
consequncia de um movimento migratrio internacional. Tendo isto em conta,
tentaremos fazer aqui um esforo de apresentar vrios argumentos na discusso que
prosseguiremos depois ao longo de todo este trabalho, apresentando, nesta introduo,
apenas noes de mbito mais geral.
Operacionalizar a etnicidade O antroplogo Thomas Eriksen defende que, na linguagem comum, etnicidade
sugere habitualmente questes minoritrias e relaes raciais (Eriksen, 2002,
Guibernau e Rex, 1997: 34). De acordo com o tambm antroplogo Malcom
Chapman o termo etnicidade, na sua forma mais simples, pode significar: a
essncia de um grupo tnico; ou a qualidade de pertencer a uma comunidade ou
grupo tnico; ou aquilo que se tem se se pertencer a um grupo tnico por oposio
a outros grupos tnicos (Chapman, 1989: 15). De forma alternativa ou
complementar, o conceito pode ainda respeitar a uma rea de estudo: a classificao
23 Cf., entre outros, os trabalhos de Bell, 1975, Hutchinson e Smith, 1996.
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de pessoas e as relaes entre grupos, num contexto de distino eu-outro (Erikson,
1993, Erikson e Coles, 2000, Hoover, 2004).
Daniel Bell acrescenta que o conceito pode ter como referncia uma categoria
residual, designando um lao comum a um grupo no identificado pela lngua, cor ou
religio, mas antes pela histria comum e/ou ter uma coerncia garantida por
smbolos comuns. Pode igualmente ser um termo genrico que permita que algum
identifique mais ou menos facilmente qualquer grupo minoritrio num padro
dominante, ainda que a unidade particular de identificao possa ter, de forma
indistinta, um origem nacional, lingustica, racial ou religiosa (Bell, 1975: 156)24.
Tendo em conta as definies acima descritas, podemos afirmar que a etnicidade
parece ser, para estes autores, a varivel mais comum na construo da identidade de
grupo principalmente quando essa identidade deriva da pertena quilo que
habitualmente chamado de grupo tnico.
Numa contribuio adicional para a definio de grupo tnico, John Rex (1986),
sugere os seguintes trs aspectos essenciais: (i) a etnicidade composta por
padres culturais e de comportamento atravs dos quais os indivduos preenchem as
suas necessidades comuns, implicando um sentimento de pertena a uma rede de
relaes fechadas; (ii) existe uma conscincia de pertena a um tipo (comum)
criada pelo reconhecimento de caractersticas culturais e fsicas; (iii) existe um
comportamento cultural semelhante, visto como uma marca de relaes biolgicas
(Rex, 1986, Rex e Mason, 1986).
Dando continuidade a alguns dos aspectos referidos por Rex, Paul Brass, por seu
turno, estabelece trs formas de definir grupos tnicos: (i) no que diz respeito a
atributos objectivos (traos culturais distintos); (ii) em relao a sentimentos
subjectivos (identidade e pertena); e (iii) em relao ao comportamento (cdigos ou
interaces explcitas que se tornam caractersticos e impregnantes numa sociedade
complexa) (Brass, 1991). Todos estes factores podem (devem) ser relevados na
caracterizao dos grupos tnicos e, de igual forma, todos eles so caracterizadores
da etnicidade grupal cabo-verdiana em diferentes contextos. Nos diferentes estudos
24 Cf. Eriksen, 1993, Glazer et al., 1975, Glazer e Moynihan, 1963 [1970].
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de caso, nos captulos da segunda parte deste trabalho, ensaiaremos destacar quais as
caractersticas mais relevantes em cada situao.
Modelo cultural, modelo ambiental, modelo poltico Vrios modelos tericos foram elaborados com base em diferentes estudos de caso e
em distintas geografias com o objectivo de explicar os processos que levam
formao dos grupos tnicos25 em contexto ps-migratrio. Analisemos, de forma
breve, trs destes modelos que resumem muitas das caractersticas importantes para a
nossa anlise.
Os canadianos Marger e Obermiller explicam, a partir da anlise de diferentes grupos
de migrantes e seus descendentes no Canad, que os indivduos se agrupam sob a
forma de grupos tnicos principalmente por razes ou modelos culturais, ambientais
e polticas (Marger e Obermiller, 1987). O modelo cultural explica-se, de acordo com
estes autores, pela forma como os imigrantes dependem da sua cultura como forma de
se adaptarem a um contexto desconhecido. Alm de funcionarem como barreiras do
grupo, os elementos culturais desempenham igualmente um importante papel como
amortecedores do choque em relao ao ajustamento. De acordo com Marger e
Obermiller, os imigrantes recm-chegados, frequentemente por razes de proteco,
tendem a gravitar em torno dos que partilham a mesma cultura (Marger e Obermiller,
1987, Sardinha, 2004).
O modelo ambiental centra-se na ecologia dos ambientes urbanos como base para a
formao de grupos tnicos. Segundo esta perspectiva, os grupos tnicos
desenvolvem-se como resposta s condies urbanas, muitas vezes relacionadas com
as mudanas ou com as condies de alojamento e de trabalho. Esta forma de
proximidade tnica mais evidente quando se observam concentraes tnicas
ligadas ao trabalho (o que chammos noutro local de sectorizao da etnicidade (Gis,
2002) ou aglomeraes residenciais (bairros tnicos), bem como a dependncia de
certos servios e instituies ligadas a grupos especficos (e.g. associaes de
imigrantes, crculos religiosos, actividades culturais tnicas).
25 Cf, entre outros, os trabalhos de Alba, 2000, Barth, 1969, Baumann e Sunier, 1995, Maleevi, 2004a, Maleevi e Haugaard, 2002.
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No terceiro modelo, baseado em interesses de ndole poltica, a formao de grupos
tnicos ocorre quando os indivduos comeam a fazer exigncias de poder, prestgio
e/ou prosperidade, ou a defender direitos em nome de grupos colectivos especficos
(ethnic claims). Estes grupos so muitas vezes compostos por indivduos que buscam
meios polticos ou econmicos, aglomerando-se como resposta competio externa
e/ou para desenvolver tcticas ou estratgias que lhes permitam melhorar o seu
estatuto colectivo quando competem por recursos, no apenas no pas de acolhimento,
mas tambm no seu pas de origem (Westin et al., 2009).
A criao e sustentao de uma etnicidade singular, de acordo com estes autores,
parece ser uma base essencial para defender os interesses de grupo numa sociedade
muitas vezes caracterizada pelo domnio da cultura da maioria (main stream) sobre a
cultura dos grupos minoritrios ou da cultura das elites sobre todos os outros (Glazer
et al., 1975, Maleevi, 2004a, Rex, 1996). Neste caso, a etnicidade funcionaria
como um recurso que poderia ser utilizado para servir objectivos a uma escala
cultural, social, poltica ou econmica, por exemplo, ao lidar com situaes de
conflito, discriminao, explorao ou opresso. A ideia principal em todos estes
autores que a etnicidade pode, em diferentes circunstncias ser utilizada (ou
potencialmente utilizada) como um importante factor de mobilizao individual ou
grupal (Song, 2003). Esta uma ideia que desenvolveremos mais frente a partir das
anlises circunstanciadas de estudos de cabo-verdianos na Argentina, em Portugal ou
nos EUA.
Identidades tipo: a investigao em torno da etnicidade de base identitria A maioria das investigaes nas cincias sociais tem tido por base o que Fearon
(1999) designa por identidade social e, em particular, o que ele apelida identidades
tipo (type identities) (e.g. classe, sexo, raa, etnia, religio, etc.) por oposio a
identidades performativas (role identities) (e.g. pai, advogado, professores, etc.).
Para Fearon (1999: 17) a etnicidade pode ser vista como um exemplo
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