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A CONSTITUIÇÃO DE ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL NO
IMAGINÁRIO SOBRE A LÍNGUA INGLESA
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Pauliana Duarte Oliveira1
RESUMO Neste trabalho, analisamos dizeres de aprendizes de inglês do Ensino Fundamental objetivando identificar suas representações acerca dessa língua e discutir o papel de tais representações na constituição da subjetividade destes alunos. A metodologia utilizada foi a entrevista semi-estruturada com alunos que estudavam inglês exclusivamente na escola pública. A análise dos dizeres dos alunos foi realizada conforme os princípios teóricos da Análise do Discurso francesa. A análise do corpus indicou que, apesar do pequeno contato do aluno com o inglês no contexto de escola pública, os aprendizes geralmente enunciam de modo favorável à língua inglesa. Esse dizer que o aluno produz é suscitado pelos discursos sobre a língua inglesa que circulam no contexto histórico-social, os quais constituem representações sobre a língua e que estão presentes no imaginário sobre esse idioma.
Palavras-chave: Representações. Inglês. Discurso. ABSTRACT In this paper, we analyze the English basic school students’ sayings aiming to identify their representations about this language and to discuss the role of such representations in these students’ subjectivity. The methodology used was semi-structured interviews with students that have studied English only in public school. The analysis of the students’ sayings was carried out according to the theoretical principles of French Discourse Analysis. Corpus analysis indicated that despite the students’ small contact with English in the context of public school, students usually enunciate to English language favorably. This saying that student produces is aroused by the discourses about English language that circulate in the social-historical context, which constitute representations about the language and they are present in the imaginary about this language.
Keywords: Representations. English. Discourse.
1 Graduada em Letras Português/Inglês, Mestre em Linguística, doutoranda em Estudos Linguísticos - linha de
pesquisa: linguagem, texto e discurso. Professora de Português/Inglês do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás – Campus Jataí. E-mail: [email protected]
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Introdução
A expansão do inglês e sua presença em diferentes áreas atrelou a esse idioma a
imagem de sucesso e desenvolvimento e nos motivou, na condição de professores de língua
inglesa, a investigar acerca da constituição do imaginário sobre essa língua.
Lacoste (2005) explica que a intensificação do ensino do inglês, oficial ou privado,
reforça ainda mais a sua difusão, porém, apesar de ser uma língua tão difundida e de,
geralmente, possuir até status de objeto de desejo, o ensino de língua inglesa oferecido no
contexto das escolas da rede oficial, especialmente públicas, muitas vezes é desprestigiado,
sendo visto até como “faz de conta” por alguns professores, coordenadores e diretores de
escola. Por parte de alguns alunos há, com frequência, o questionamento sobre a
necessidade de se estudar inglês na escola enquanto disciplina da grade curricular.
Interessados em investigar esse lugar contraditório que a língua inglesa parece
ocupar no contexto da escola pública de Ensino Fundamental, objetivamos analisar dizeres
de aprendizes oriundos desse espaço discursivo de aprendizagem visando identificar suas
representações acerca do inglês.
Os pressupostos teóricos que fundamentam este trabalho são alguns conceitos da
Análise do Discurso francesa tais como formação discursiva, interdiscurso, subjetividade e
imaginário, o conceito de representação oriundo dos Estudos Culturais e também os
estudos de Authier-Revuz sobre as heterogeneidades enunciativas.
Para a análise, utilizamos recortes do corpus coletado para a pesquisa que
realizamos no Curso de Mestrado2. O referido corpus consiste em entrevistas semi-
estruturadas com alunos de escolas públicas cursando a 7ª e a 8ª séries do Ensino
Fundamental.3
2 OLIVEIRA, P. D. O imaginário do aluno sobre a língua inglesa na constituição de sua subjetividade , 2006, 198 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Uberlândia, 2006. 3 8º e 9º ano.
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Formação discursiva e interdiscurso
As vantagens atribuídas ao inglês são várias: língua universal, língua dos negócios,
da Internet, da modernidade, do desenvolvimento. Porém, esses dizeres não diferem com
relação a um tema: em todos eles o inglês é visto de forma positiva, necessária, progressista
e útil. Tomando o suporte teórico da Análise do Discurso, podemos afirmar que os dizeres
sobre tais vantagens filiam-se a determinadas formações discursivas devido à regularidade
temática que neles se encontra.
O conceito de formação discursiva foi formulado por Michel Foucault (2004).
Conforme o autor, quando há regularidade tanto nas escolhas temáticas, quanto entre os
objetos, tipos de enunciação e conceitos, tem-se uma formação discursiva. Posteriormente,
Michel Pêcheux (1995) incorporou a noção de ideologia ao conceito de formação discursiva.
Para Pêcheux (1995), o discurso encontra-se em estreita relação com a ideologia e as
formações discursivas encontram-se no interior das formações ideológicas, ou seja, das
crenças, valores e atitudes.
Segundo Pêcheux, “a formação discursiva é o lugar da constituição do sentido”
(PÊCHEUX, 1995, p. 162). Desse modo, a relevância do conceito de formação discursiva
para este artigo justifica-se pelo trabalho de análise do corpus em que buscamos identificar
as formações discursivas às quais filiam-se os dizeres dos alunos entrevistados.
Pêcheux (1995) discute a questão da formação discursiva, da qual retiramos algumas
proposições relevantes para nosso trabalho.
Na primeira proposição, o autor explica que a palavra não tem sentido próprio
porque seu sentido muda conforme essa ou aquela formação discursiva, e as palavras,
expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por
aqueles que as empregam. Isso quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a
essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas nas quais essas posições se
inscrevem.
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Na segunda proposição, Pêcheux (1995, p. 162) afirma que a formação discursiva é o
lugar de constituição do sentido. E na terceira proposição, o autor explica que toda
formação discursiva dissimula o “todo complexo com dominante”. Pêcheux (1995, p. 162)
explica que esse “todo complexo com dominante” tem como característica a presença de
outros discursos no interior da formação discursiva e o nomeia como interdiscurso.
Ao fazer referência ao interdiscurso como o “todo complexo com dominante” das
formações discursivas, Pêcheux (1995, p. 162) afirma que ele é submetido à lei de
desigualdade-contradição-subordinação que caracteriza as formações ideológicas e
também afirma que toda formação discursiva dissimula, devido à sua aparência de
homogeneidade, a objetividade material contraditória do interdiscurso.
No dizer de Fernandes (2005), a interdiscursividade é “[...] caracterizada pelo
entrelaçamento de diferentes discursos, oriundos de diferentes momentos na história e de
diferentes lugares sociais” (FERNANDES, 2005, p. 49). Desse modo, os discursos advindos
de diferentes lugares e diferentes momentos nem sempre serão coincidentes entre si. Assim
sendo, quando não existe a “coerência interdiscursiva”, o os dizeres produzem efeitos de
sentidos contraditórios.
Como o sujeito, na condição de aprendiz de língua estrangeira, está inserido em um
contexto histórico-social em que circulam tanto discursos que apregoam os benefícios e
vantagens do inglês quanto discursos sobre os locais ideais de aprendizagem desse idioma
e, desse modo, os institutos de idiomas geralmente são eleitos como o local ideal para a
aprendizagem em detrimento do ensino da escola regular, tal aprendiz possivelmente, em
seu processo de constituição da subjetividade, se inscreve nesses discursos.
Representação e imaginário
Segundo Guattari (2005), as representações tomam parte no processo de produção
subjetiva. Complementamos essa ideia com a seguinte afirmação de Woodward (2000): “A
representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais
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os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito” (WOODWARD, 2000, p. 17).
Para significar, o discurso entra em contato com diferentes regiões do interdiscurso.
Discursos sobre a língua inglesa são oriundos de diferentes lugares porque o inglês está
presente em diversos campos. Tais discursos também se originam em diferentes épocas,
pois a história mostra como o inglês tem se expandido desde o início da colonização
britânica em meados do século XVII. Ao longo do tempo foi-se atribuindo sentidos à língua
inglesa que conferem a esse idioma determinadas imagens que passaram a constituir um
imaginário sobre o mesmo. Como exemplo, tem-se a visão do inglês como língua que melhor
se adapta ao mundo moderno, de que nos fala Pennycook (1999). Segundo o autor, essa
visão é sustentada por imagens que associam o inglês a tudo o que é novo.
Conforme Orlandi (2003, p. 40):
[...] as condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica.
Assim, as representações que os alunos possuem do inglês, dentro do atual contexto
sócio-histórico são marcadas pelos efeitos de sua expansão e da globalização e constituem o
seu imaginário sobre a língua inglesa.
Para Pêcheux (1995), o ego é o imaginário no sujeito. É onde se constitui para o
sujeito a sua relação imaginária com a realidade. A interpelação do indivíduo em sujeito de
seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o
domina, isto é, na qual ele é constituído como sujeito. Essa identificação, fundadora da
unidade (imaginária) do sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso que
constituem no discurso do sujeito os traços daquilo que o determina são reinscritos no
discurso do próprio sujeito.
De acordo com Serbena (2003), o campo do imaginário é formado por imagens,
símbolos, sonhos, aspirações, mitos, fantasias, muitas vezes pré-racionais e com forte
conotação afetiva que existem e circulam nos grupos sociais. No imaginário do aluno,
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sujeito de nossa pesquisa, a língua inglesa geralmente é vista como franqueadora de boas
oportunidades de trabalho e, consequentemente, de ascensão social.
Subjetividade
Neste trabalho, compartilhamos da noção de sujeito modelizado de que nos fala
Guattari (2005, p. 33, grifo do autor.):
o sujeito, segundo toda uma tradição da filosofia e das ciências humanas, é algo que encontramos como um être-là, algo do domínio de uma suposta natureza humana. Proponho, ao contrário, a idéia de uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida.
Destacamos a necessidade de se considerar a questão das contradições existentes na
subjetividade: “As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem
nossas identidades, a subjetividade inclui as dimensões inconscientes do eu, o que implica a
existência de contradições” (WOODWARD, 2000, p. 55).
As dimensões inconscientes do eu, incluídas na subjetividade e que explicam a
existência de contradições e o dizer heterogêneo originado no interdiscurso, reforçam
ainda mais essa característica contraditória da subjetividade. Além disso, devemos
considerar, também, os processos de subjetivação.
Segundo Guattari (2005, p. 33), existe no sistema capitalístico4 a produção de
subjetividade, uma subjetividade de natureza industrial e maquínica, que é fabricada,
modelada, recebida e consumida.
As máquinas de produção de subjetividade variam. Em sistemas tradicionais, por exemplo, a subjetividade é fabricada por máquinas mais territorializadas, na escala de uma etnia, de uma corporação profissional, de uma casta. Já no sistema capitalístico, a produção é industrial e se dá em escala internacional.
4 Ao se referir a sistema econômico, Guattari utiliza a palavra capitalístico ao invés de capitalista. Segundo Michaelis: moderno dicionário da língua portuguesa o verbete capitalístico é assim definido: “capitalístico adj (capitalista + ico) Pertencente ou relativo ao capitalismo” (MICHAELIS, 1998, p. 422).
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Guattari explica, ainda, que há “[...] certos processos da constituição da subjetividade
coletiva, que não são resultado da somatória de subjetividades individuais, mas sim do
confronto com as maneiras com que, hoje, se fabrica a subjetividade em escala planetária”
(GUATTARI, 2005, p. 37). Conforme esse autor, o indivíduo consome sistemas de
representação, de sensibilidade etc., e a máquina de produção de subjetividade capitalística
opera desde a infância do indivíduo, “[...] desde a entrada da criança no mundo das línguas
dominantes, com todos os modelos tanto imaginários quanto técnicos nos quais ela deve se
inserir” (GUATTARI, 2005, p. 49). Guattari explica também: “[...] que é a subjetividade
individual que resulta de um entrecruzamento de determinações coletivas de várias
espécies, não só sociais, mas econômicas, tecnológicas, de mídia e tantas outras”
(GUATTARI, 2005, p. 43).
A TV, o cinema, a música, a mídia, as propagandas de institutos de idiomas e o livro
didático de língua inglesa são também grandes agentes modelizadores de subjetividade.
Além disso, constituem grandes propagadores dos benefícios e vantagens do inglês. Esses
elementos fornecem imagens sobre a língua inglesa extremamente atraentes para os jovens
e que se constituem por essas imagens.
A heterogeneidade do sujeito e do discurso
Neste trabalho, compartilhamos também da noção de heterogeneidades enunciativas
desenvolvida por Authier-Revuz. Inicialmente, no desenvolvimento de sua teoria, Authier-
Revuz formula a noção de heterogeneidade enunciativa constitutiva do sujeito e do
discurso. Ao falar de heterogeneidade, Authier-Revuz faz reflexões sobre o dialogismo de
Bakhtin, a noção de sujeito da psicanálise lacaniana e também sobre o conceito de
interdiscurso de Pêcheux. A autora lança mão desses conceitos para explicar a presença do
outro no dizer do sujeito e mostra porque esse dizer é um dizer não-coincidente e explica
ainda, como o dizer do sujeito é um dizer que se constitui pelo outro.
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Ao desenvolver o conceito de heterogeneidades enunciativas, Authier-Revuz trata de
dois tipos de heterogeneidades: heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva.
Por heterogeneidade mostrada, Authier-Revuz (1990) entende as formas que inscrevem o
outro na sequência do discurso. Em assim sendo, Authier-Revuz (1990, p. 36) distingue
duas formas de heterogeneidade mostrada, as formas marcadas e as formas não
marcadas:
neste conjunto de formas marcadas, distingo aquelas que mostram o lugar do outro de forma unívoca (discurso direto, aspas, itálicos, incisos de glosas) e aquelas não marcadas onde o outro é dado a reconhecer sem marcação unívoca (discurso indireto livre, ironia, pastiche, imitação...).
As formas marcadas da heterogeneidade mostrada são identificadas no fio do dizer,
pelas aspas, travessão, glosas etc. e as formas não marcadas são expressas especialmente
no discurso indireto.
Um outro tipo de heterogeneidade enunciativa é a heterogeneidade constitutiva do
sujeito e do discurso. A esse respeito, Authier-Revuz afirma que a heterogeneidade
mostrada está articulada com a heterogeneidade constitutiva do sujeito e do discurso e ao
enunciar o sujeito falante faz negociações com a heterogeneidade constitutiva que o
constitui e que também constitui o discurso.
Authier-Revuz informa que se apóia no conceito de interdiscurso e no dialogismo de
Bakhtin para explicar o conceito de heterogeneidade constitutiva do discurso, e afirma:
“Nenhuma palavra é “neutra, mas inevitavelmente “carregada”, “ocupada”, “habitada”,
“atravessada” pelos discursos nos quais “viveu sua existência socialmente sustentada”
(AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 27).
Na heterogeneidade constitutiva do discurso, a presença do outro, ao contrário da
heterogeneidade mostrada, está implícita. Ou seja, o discurso e o sujeito se constituem de
elementos oriundos dos espaços sócio-históricos e também do inconsciente do sujeito. O
sujeito tem a ilusão de que aquilo que ele diz surgiu dele mesmo. Logo, Authier-Revuz nos
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remete a outro conceito relevante para este trabalho: o interdiscurso, conceito tratado no
tópico anterior.
O sujeito heterogêneo produzirá um dizer também heterogêneo, deixando que se
perceba nesse seu dizer, a presença de outros dizeres. Nos dizeres dos alunos que
entrevistamos há a presença de diferentes vozes tais como: a do livro didático, a do
professor, a da política de ensino de língua estrangeira e da mídia que promove discursos
que atribuem vantagens às pessoas que têm conhecimento da língua inglesa.
Pressupomos que o aluno tece enaltecimentos à língua inglesa porque ele se
constitui em um imaginário que é favorável a essa língua. É a partir desse imaginário que
ele vai constituindo sua subjetividade, assumindo identidades e produzindo dizeres nos
quais é possível flagrar manifestações interdiscursivas.
Posteriormente aos conceitos de heterogeneidades enunciativas, Authier-Revuz
trata das não-coincidências do dizer, retomando a questão da dupla heterogeneidade, ou
seja, a heterogeneidade do discurso e a heterogeneidade do sujeito. As modalizações
autonímicas, que são os modos pelos quais se manifestam as negociações que o sujeito faz
com a heterogeneidade constitutiva, são descritas como fatos de não-coincidências, que,
conforme Teixeira (2005), levam ao questionamento do uso standard das palavras.
Authier-Revuz (1998) enumera quatro tipos de nao-coincidência: a) a não coincidência do
discurso com ele mesmo; b) a não-coincidência entre as palavras e as coisas; c) a não-
coincidência das palavras com elas mesmas; e d) a não coincidência interlocutiva entre o
enunciador e o destinatário.
Destacamos que a não-coincidência é constitutiva do dizer. Na análise do dizer dos
alunos entrevistados, pudemos perceber contradições em seus enunciados e é essa não-
coincidência constitutiva do dizer que possibilita analisarmos como a contradição se opera.
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Metodologia
Conforme anunciamos na introdução deste artigo, o corpus analisado neste trabalho
é parte integrante de nossa dissertação de mestrado. Para a pesquisa que realizamos no
curso de mestrado, entrevistamos 15 alunos de 7ª e 8ª séries e também entrevistamos 5
professoras de língua inglesa. Os alunos entrevistados estudavam na rede pública estadual
de uma cidade do Estado de Goiás e não frequentavam aulas de língua estrangeira em
institutos de idiomas. As professoras entrevistadas atuavam no magistério da rede pública e
possuíam graduação em Letras Português-Inglês. A metodologia utilizada consiste em
entrevistas semi-estruturadas e a análise foi feita com base nos conceitos teóricos da
Análise do Discurso francesa preconizada por Michel Pêcheux. Fundamentamos nossa
análise também nos estudos sobre heterogeneidades enunciativas realizados por Authier-
Revuz.
Informamos que omitimos os nomes dos alunos e das professoras entrevistadas.
Desse modo, identificamos os alunos com o código a e acrescentamos um número de
controle. O código ficou assim estabelecido: para o aluno 01 utilizamos o código a01, para o
aluno 02 utilizamos o código a02 e assim por diante. As professoras entrevistadas foram
identificadas pelo código p, como por exemplo p01, p02 até p05.
No presente trabalho, apresentaremos apenas uma amostra deste corpus. Desse
modo, analisamos recortes discursivos das entrevistas dos alunos a01, 02, a03, a04, a05,
a09, a10 e a11 por se mostrarem adequados ao tema desse artigo.
Análise do corpus: o inglês da escola
Neste trabalho, tratamos de um tópico específico de nossa pesquisa: os dizeres dos
alunos com relação ao ensino de inglês da escola. Para tanto, apresentamos uma mostra do
corpus composta pelos recortes discursivos em que os alunos enunciam sobre sua relação
com a língua inglesa na escola.
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Quando perguntamos aos alunos Como tem sido estudar inglês na escola? Do que você
gosta e do que você não gosta? pudemos comprovar que o contato que os alunos têm com a
língua inglesa geralmente se resume à execução de determinadas atividades. Um tipo de
atividade bastante recorrente nos dizeres dos alunos é a tradução de textos. Verificamos
isso nos seguintes recortes discursivos:
(01) a01- “Eu gosto de traduzir.”
(02) a03- “Ah, eu gosto das atividades que a professora passa a gente tem que corrigir
e ... a gente que corrige a gente mesmo e traduzir as perguntas e as respostas, aí eu
acho legal.”
(03) a04- “Assim, ficar fazendo as tarefas em inglês porque é muito divertido, ficar
traduzindo.”
(04) a05- “Eu gosto de traduzir texto.”
(05) a09- “Eu gosto daquelas tradução, gosto de fazer aquelas questões de pessoas
conversando...
(06) a11- “Gosto assim... tem as que eu não gosto porque eu não sei traduzir né pra
português... alguma coisa assim que a professora (incomp) ela passa no quadro e ela
manda a gente responder... aí se a gente não sabe ela ensina. Acho que isso é legal!
Observamos aqui, um ponto de não-coincidência do dizer. O aluno a11 inicialmente
enuncia Gosto assim, em seguida enuncia tem as que eu não gosto. O uso do advérbio de
modo assim demonstra a hesitação do sujeito. A esse modo de dizer hesitante, à procura da
palavra certa, Authier-Revuz (2004) denomina ponto de não-coincidência entre as palavras
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e as coisas. Ao enunciar desse modo, o aluno deixa flagrar em seu dizer fragmentos da
heterogeneidade que o constitui.
As alusões à tradução são parte do reflexo da política de língua estrangeira em
prática no sistema educacional brasileiro. Nos colégios em que esses alunos estudam, o
material didático disponível quase sempre resume-se ao livro didático, que é acompanhado
de CD. Em muitos casos, o professor não utiliza o CD, ou por falta de incluir atividades de
listening em seu planejamento ou às vezes até por não haver aparelho de som disponível,
pois geralmente muitas escolas possuem um único aparelho de som para toda a escola.
Desse modo, as atividades realizadas no caderno do aluno são as mais comuns, e dentre
elas, as atividades mais exploradas são os exercícios de gramática e de tradução de texto.
Vejamos o dizer do aluno a04. Ao utilizar o verbo ficando no gerúndio, o aluno
expressa idéia de frequência e continuidade com que esse tipo de atividade é realizada. Não
é só a tradução de textos que é explorada; o aluno a03 se refere a traduzir as perguntas e as
respostas deixando evidente que a tradução não se restringe a textos, mas a frases também.
Um ponto interessante é que os alunos quase sempre expressam gosto pela tradução
de textos em seus dizeres. A presença do verbo gostar é recorrente em seus dizeres e a isso
acrescenta-se a utilização dos adjetivos legal e divertido. Tais enunciados demonstram uma
abordagem instrumentalizada da língua. Especialmente no caso desses alunos, a
identificação com a língua inglesa se resume a realizar atividades de tradução. Ou seja, é
uma identificação que se resume ao gosto por determinadas tarefas escolares, como se elas
bastassem a si mesmas. Não há envolvimento com a língua inglesa por parte do aluno.
Nesse processo de ensino e aprendizagem, a língua estrangeira é tratada como se fosse um
conteúdo escolar que se estuda para realizar uma avaliação, para se fazer um teste ou para
se obter uma vaga em algum trabalho.
Quando o aluno resume o gosto pelas aulas de inglês ou o gosto por atividades de
tradução, ele produz um dizer contraditório, pois uma das vantagens comumente atribuídas
aos institutos de idiomas é que o ensino oferecido em tais instituições habilita os alunos a
se comunicar em inglês porque são utilizadas modernas metodologias que tornam o ensino
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dinâmico, enquanto na escola regular, geralmente, acredita-se que a comunicação na língua
inglesa não é desenvolvida. Destacamos ainda, que os alunos parecem constituídos pela
representação de que a língua inglesa é a língua ideal para se comunicar com pessoas
estrangeiras ou em situações de viagem ao exterior.
Os efeitos de sentidos contraditórios revelam as manifestações interdiscursivas
presentes nos dizeres analisados. Esse dizer pode ser classificado como não coincidente e
Authier-Revuz (1998. p. 23) explica que ocorre a não-coincidência do discurso com ele
mesmo.
Assinalando entre suas palavras a presença estranha de palavras marcadas como pertencendo a um outro discurso, um discurso esboça em si o traçado - assinalando uma “interdiscursividade representada” - de uma fronteira interior/exterior.
Assim, tais dizeres são contraditórios porque se originam de diferentes lugares:
enquanto o aluno está inserido em um espaço discursivo no qual possui um contato com a
língua inglesa que lhe oferece uma visão instrumentalizada dessa língua, ele é ao mesmo
tempo constituído por outros discursos oriundos de formações discursivas que têm um
apelo à comunicação e à integração ao mundo globalizado.
A referência negativa à tradução é feita pelo aluno a11. Porém o aluno enuncia que
não gosta da atividade porque não sabe traduzir: “Gosto assim... tem as que eu não gosto
porque eu não sei traduzir né pra português...” Esse enunciado se iguala aos anteriores
porque o advérbio de negação não permite concluir que se o aluno soubesse fazer a
tradução ele gostaria da atividade. É possível perceber um sentimento de frustração
presente nesse enunciado, de falta de “domínio” em traduzir.
Pressupomos que o fato de os alunos praticamente reduzirem o ensino de inglês às
atividades de tradução é reflexo da política de ensino de língua estrangeira e dos efeitos de
sentido produzidos pelos discursos que circulam nesse espaço discursivo. Grigoletto (2003,
p. 226) denomina como “discurso tipicamente escolar” o discurso que:
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[...] iguala todo processo de transmissão e aquisição de conhecimento à assimilação de uma matéria escolar. No caso do aprendizado de uma língua estrangeira, nota-se o eco das recomendações dos professores e dos métodos tradicionais de ensino de línguas estrangeiras em predicados tais como “saber a gramática (ou as regras gramaticais) da língua”, “ser capaz de traduzir frases e textos”, “ser capaz de resolver exercícios”, dentre outros.
Verificamos esse discurso no dizer do aluno a04 que enuncia ficar fazendo as tarefas,
ou seja, realizar atividades escritas, provavelmente de vocabulário ou de gramática.
Essa situação é gerada pelo modo como se organiza a política de ensino de língua
estrangeira no Brasil em que não há muitos esforços no sentido de se promover um ensino
de língua estrangeira que possibilite ao aluno sua circunscrição na discursividade da nova
língua.
Dizeres alusivos às atividades de gramática também fazem parte dos discursos que
circulam no contexto da escola:
(07) a02- “Ah, eu gosto de passar o verbo para as frases interrogativas, negativas, só.
O aluno a02 no recorte 07 enuncia um dizer favorável às atividades de gramática.
Porém, a utilização do verbo gosto não significa que o aluno a02 possui uma identificação
com a língua inglesa. Esse aluno enuncia gostar de uma atividade que indicia um acesso
restrito à língua inglesa, pois, as estruturas gramaticais constituem apenas um aspecto da
língua.
Podemos analisar que, de um lado, no espaço social, há demandas da globalização
que despertam no aluno o desejo de pertencimento ao mundo globalizado e, de outro lado,
a escola oferece um ensino que não corresponde a essas demandas. Isto é, o aluno é
constituído pelos discursos sobre a língua inglesa que circulam no seu espaço social e a
escola oferece um ensino geralmente baseado no ensino de gramática, vocabulário, leitura e
que não atende ao apelo à comunicação promovido pela mídia.
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Da mesma forma, há alunos que enunciam dizeres favoráveis às atividades de
gramática e de tradução de texto, há também alunos que não se constituem nesses dizeres.
Podemos verificar isso no próximo recorte:
(08) a10- “Eu não gosto muito de inglês... mas tem que aprender né? Senão...”
O aluno a10 utiliza o advérbio de intensidade muito para expressar que não gosta do
inglês o suficiente para produzir uma identificação com o idioma. Porém, o seu dizer se filia
à formação discursiva do inglês como língua útil. Mesmo admitindo não possuir simpatia
pela língua inglesa, o aluno expressa sentir necessidade de aprender inglês. A utilização
deôntica do verbo tem indica que ele se constitui pela representação de que o inglês é
necessário. Essa representação toma parte nos discursos da formação discursiva do inglês
como língua útil. O desejo de pertencimento a tudo o que o inglês representa é expresso
pela conjunção senão. O aluno indica também ser constituído pela ideia de que se ele não
aprender inglês, mesmo sem gostar, não terá acesso às vantagens atribuídas ao inglês.
Considerações finais
Percebemos no dizer dos alunos entrevistados filiações a formações discursivas
tais como: saber inglês é necessário, o inglês é uma ferramenta para fins práticos e
aprender inglês é aprender estruturas linguísticas, gramática, vocabulário e também
tradução. No interior dessas formações discursivas estão presentes discursos sobre a língua
inglesa que, veiculados pela mídia, circulam no contexto social e a partir destes discursos
são constituídas representações compondo um imaginário sobre essa língua estrangeira.
Segundo Woodward: “Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a
partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar”
(WOODWARD, 2000, p. 17). Logo, podemos perceber, mediante a análise dos recortes
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discursivos analisados, que os alunos se posicionam de modo contraditório a respeito da
língua inglesa.
O modo como se dá o contato com a língua inglesa na escola não chega a promover o
deslocamento identitário que, para Serrani-Infante (1997), é quando o aluno se inscreve em
relações de preponderância na discursividade nova da segunda língua. Como pudemos
verificar, nos recortes discursivos analisados, a relação desse sujeito com a língua inglesa
parece se resumir a algumas atividades realizadas em sala de aula e que não chegam a
desenvolver uma habilidade em específico, ou seja, não o habilita a ler, a escrever, a ouvir
ou a falar nesta língua estrangeira. Desse modo, a língua inglesa é um objeto que este aluno
quase não toca. Isso quer dizer que esse aluno não está numa relação de constituição com o
idioma.
A base da contradição no dizer do aluno corrobora o que Woodward (2000) afirma
sobre a presença de contradições na subjetividade. Tal contradição, no caso dos sujeitos
entrevistados, parece estar ligada ao fato de que fora da escola há todo um discurso que
propaga vantagens atribuídas à língua inglesa e dentro da escola há, em muitos casos, uma
prática pedagógica que deixa essa língua sem atrativos para o aprendiz. O inglês acaba
resumindo-se a mais um componente curricular que não permite ao aprendiz se
circunscrever na discursividade nova que a aprendizagem de uma língua estrangeira pode
proporcionar.
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Artigo aceito em julho/2013