2
Hidrelétricas no Brasil
2.1
Retrospectiva histórica no contexto da política energética para
exploração da hidroeletricidade no Brasil.
Para que se possa melhor compreender a complexidade do setor
hidrelétrico brasileiro e todas as suas implicações, inclusive socioambientais,
necessário se faz procedermos a um breve relato sobre a retrospectiva histórica do
setor no cenário brasileiro. Nesse relato, prioritariamente histórico, destacaremos
os fatos mais marcantes: não interessa na presente Dissertação, detalhar acerca das
diversas disputas entre setores da esfera pública e da privada na condução de tal
política no Brasil. Nosso objetivo, na verdade, centra-se na contextualização da
questão no cenário brasileiro, para que, depois, possam ser discutidas as hipóteses
pertinentes ao nosso estudo.
Outro dado que merece registro é o fato de que muitas das importantes
modificações estruturais do setor ocorreram após um intenso processo de luta e
resistência, com a interferência de diversos atores, representando interesses
múltiplos no desenvolvimento de tal atividade econômica.
Assim, o início do processo de produção de energia (à base de
hidroeletricidade) se deu, no Brasil, no final do século XIX, tendo passado,
durante todos esses anos, por diferentes etapas, até chegar ao formato em que
atualmente se encontra.
Uma circunstância preponderante e merecedora de ser considerada desde
logo, de acordo com Mielnik e Neves ( 1988 )1, é o fato de que, até a primeira
metade do século XX, duas grandes vertentes condicionaram a estruturação do
setor hidrelétrico: a privada e a institucional. Mas, embora com alguns aspectos
1 MIELNIK, Otávio. NEVES, C.C. Características da estrutura de produção de energia hidrelétrica no Brasil. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes
projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, p. 17.
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em comum, tais vertentes atuaram em campos distintos, medindo forças para
dirigir o processo.
Assim, os primeiros aproveitamentos hidrelétricos foram realizados no
Estado de Minas Gerais, por iniciativa do setor industrial ( têxtil e de mineração ).
Inaugura-se, então, em 1883, a primeira unidade de produção de energia
hidrelétrica ( UHE ), com vistas à autoprodução – a Usina de Ribeirão do Inferno.
Já a primeira UHE com serviço de utilidade pública foi a Usina de Marmelos-
Zero, de propriedade da Companhia Mineira de Eletricidade, operativa a partir de
1889.2
Cumpre ressaltar que, até meados dos anos 50, os interesses de duas
grandes empresas estrangeiras comandaram a definição do processo de
estruturação do referido setor no Brasil: a Brazilian Traction, Light & Power (
LIGHT ) e a American Foreign Power Company ( AMPORP ). A primeira
assumiu a exploração dos serviços públicos do Rio de Janeiro e de São Paulo,
entre fins do século XIX e início do século XX. Durante a primeira metade deste
último, construiu as UHE’s de Edgar de Souza ( SP ), Fontes ( RJ ), Pombos (
MG-RJ ) e UHE Henry Borden I ( Cubatão-SP ). Já a American Foreign Power
Company ( AMPORP ) estabeleceu-se no Brasil em 1924, controlada pela
empresa americana Eletric Bond and Share Company ( EBASCO ). Após adquirir
um conjunto de pequenas empresas de geração, distribuição e transmissão de
energia, consolidou-se no setor empresarial através da constituição da Companhia
Paulista de Força e Luz, cujo processo se repetiu em outros estados brasileiros. 3
Todavia, em decorrência de insatisfação do setor privado com a margem
de autofinanciamento oferecida pelas tarifas de energia elétrica - não sendo
possível determinar o custo de kWh produzidos pelas empresas – uma
reestruturação do setor, ocorrida anos mais tarde, foi motivada, com o
estabelecimento, em 1962, da ELETROBRÁS – Centrais Elétricas Brasileiras
S.A. - empresa de economia mista.4 5
2 Ibid. p. 18. 3 Ibid. pp. 18-19. 4 Ibid. pp.19-20. 5 As modificações implementadas foram no sentido de que caberia ao setor estatal a ampliação da capacidade instalada, ou seja, de geração da energia, enquanto o setor privado ficaria com a distribuição energética. Essas mudanças estruturais causaram uma rearticulação dos interesses privados, tendo as empresas se voltado para atender a determinados setores na área da produção energética, como os da construção civil; estudos e projetos; fornecimento de material; equipamentos etc.
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Assim, na década de 60, ocorreu a estatização das empresas de produção
da energia elétrica, tendo as ações e direitos das empresas Light e Ebasco sido
adquiridas pela Eletrobrás.
No setor público, em meio às divergências estabelecidas com o setor
privado entre o período de 1940 a 1962, foram criadas a Companhia Hidroelétrica
do São Francisco ( CHESF ), em 1945, e, na década de 50, a CEMIG ( 1952 ) e
FURNAS (1957). A seu turno, a fim de garantir a captação de financiamentos
necessários à ampliação da capacidade instalada, o governo federal criou, em
1953, o Fundo Federal de Eletrificação, tendo o BNDES - constituído em 1952 -
sido mobilizado para administrar tal Fundo e financiar projetos. Foi instituído,
ainda, o Imposto Único sobre Energia Elétrica – IUEE -, para contribuir para a
estruturação das empresas públicas do setor. Importante mencionar, ainda, a
criação do Ministério de Minas e Energia, em 1960, então responsável pela
política energética do país.6
Foi na Era Vargas, então, que a decisão do governo no sentido da ampla
industrialização do país acarretou investimentos de grande monta em infra-
estrutura. A energia assume, pois, uma posição estratégica para a concretização
desse projeto, o que impôs a necessidade de edição de uma legislação federal que
unificasse o tratamento jurídico dado à atividade em todo o país.
A Constituição Federal de 1934, portanto, previu a competência da União
para legislar sobre energia elétrica.7 Outro marco jurídico importante dentro de tal
contexto histórico foi a edição, na forma de decreto do então governo provisório
de Getúlio Vargas, do Código de Águas (Decreto 24.643, de 10 de julho de 1934).
Representou o primeiro diploma legal que possibilitou ao Poder Público
disciplinar o aproveitamento industrial das águas e, de modo especial, o
aproveitamento e exploração da energia hidráulica. Pode-se inclusive afirmar que
juntamente com o Código de Minas, foi o de Águas a contribuição mais
importante do governo provisório, na esfera jurídica, no sentido da intervenção do
Estado no domínio econômico8. E, apesar de ser um texto bastante antigo, ainda é
6 Ibid. p. 21-24. 7 LANDAU, Elena. Introdução. O setor elétrico em uma visão introdutória. LANDAU, Elena (coord). Regulação Jurídica do Setor Elétrico. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 3. 8 BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, p. 107.
29
vigente (mesmo com as alterações em razão da nova ordem constitucional
instituída a partir de 1988, bem como de leis especiais posteriores).9
Importante também esclarecer que, durante o governo constitucional de
Getulio Vargas, a aplicação do Código de Águas permaneceu suspensa em razão
de uma série de fatores: a inconstitucionalidade da lei foi argüida por diversas
vezes, tendo o TJSP acatado uma das argüições propostas, em dezembro de 1936,
porém, o STF a rejeitou, em 1938; a falta de regulamentação do referido diploma
também contribuiu para que este não tivesse aplicabilidade imediata. Assuntos
como a questão da revisão dos contratos das concessionárias foram
sucessivamente adiados, em virtude da resistência de empresas estrangeiras à
implantação das novas regras, que previam um controle mais rígido do poder
público sobre as concessionárias, com a fiscalização técnica, financeira e contábil
de todas as empresas do setor.
O Código de Águas estabelecia, como postulado básico e inovador no
regime jurídico brasileiro, a distinção entre a propriedade do solo e a propriedade
das quedas d’água, bem como outras fontes de energia hidráulica para efeito de
exploração ou aproveitamento industrial. As quedas d’água eram consideradas
bens imóveis, distintos do solo onde se encontravam de propriedade da União,
sendo que o seu aproveitamento hidrelétrico somente poderia ser realizado através
de autorizações ou concessões da União (arts. 139 e 147 do Decreto 24.643/34).
Com o crescente processo de industrialização e urbanização10 (e
conseqüente aumento por demanda energética) novos potenciais passaram a ser
explorados pelas empresas estatais. Por outro lado, novas usinas hidrelétricas
como Paulo Afonso, no rio São Francisco (início da operação em 1955), Salto
9 BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 110-113. 10 Durante o governo do Presidente Juscelino Kubitschek (1956-1960), houve relevante crescimento da produção industrial, que atingiu no país índices jamais vistos antes na história brasileira.. A política desenvolvimentista de Kubitschek, baseada no chamado Plano de Metas, foi responsável pela instalação, em tempo recorde, dos setores mais modernos e dinâmicos da indústria brasileira, com destaque para os ramos automobilísticos, da construção naval e da mecânica pesada, controlados em grande parte pelo capital estrangeiro. Além do avanço, no referido governo, da produção de energia elétrica, duas grandes questões estiveram presentes: a questão tarifária e a dos espaços de atuação das empresas públicas e das empresas particulares, sobretudo as estrangeiras no setor. Verificou-se, nesse período, uma divisão de atribuições entre o capital público e o capital privado. BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 182-191.
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Grande, no rio Paranapanema, (1960) e Três Marias, no rio São Francisco (1962),
foram construídas.
Em 1962, o governo brasileiro, em parceria com o Banco Mundial e com o
Fundo Especial das Nações Unidas, contratou o Consórcio de Consultoria
Canambra, constituído pelas empresas canadenses Montreal Engineering e
Crippen Engineering, e pela empresa americana Gibbs & Hill. Com isso,
obtiveram-se o primeiro levantamento sistemático dos potenciais hidrelétricos dos
rios das regiões Sudeste e Sul e a sugestão de um conjunto de obras de
hidrelétricas e linhas de transmissão de energia elétrica.
A proposta de expansão da indústria elétrica tinha, como uma de suas
características, o aproveitamento de um conjunto de projetos hidrelétricos a fim de
combinar aproveitamentos de uma mesma bacia hidrográfica.11
No referido programa de obras, elaborado pela Canambra, para o período
de 1964-1966, estava prevista a construção das seguintes hidrelétricas: a) Funil,
com 230 MW de potência, no rio Paraíba pela CHEVAP, empresa estatal federal
pertencente a FURNAS; b) Estreito, com 600 MW, a ser construída no rio Grande
por Furnas; c) Xavantes, com potência de 400 MW, a ser construída no rio
Paranapanema pelas Centrais Elétricas de Urubupungá, empresa estatal do Estado
de São Paulo; d) reforma de Marechal Mascarenhas de Moraes (Ex-Peixoto), com
300 MW de aumento de potência, localizada no rio Grande, incorporada a Furnas;
e e) Jupiá, com 1.200 MW, no rio Paraná, pelas Centrais Elétricas de Urubupungá.
Com o início da ditadura imposta pelo governo militar no Brasil, a partir
de 1964, delineou-se uma nova ordem antidemocrática. Esta se caracterizou pela
concentração de poderes excepcionais nas mãos do Poder Executivo Federal e
redução do campo de atuação do Legislativo Federal. Tais fatores favoreceram a
política de implementação de diretrizes governamentais, inclusive na área
econômica, com vistas à sua estabilização.12
11 PINHEIRO, Maria Fernanda. Problemas Sociais e Institucionais causados por hidrelétricas no
Brasil e no exterior. Dissertação de Mestrado. Disponível em www.fem.unicamp.br/rseva/dissertação_final_Maria_ Fernanda_Pinheiro.pdf. p.24-25. Vide também BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 287 e 289. 12Objetivos como a diminuição do déficit público e de redução gradual da inflação foram alcançados no Governo Castello Branco, preparando o terreno para a retomada do crescimento e a expansão da economia nos governos dos Presidentes Arthur da Costa e Silva (1967-1969) e Emilio Garrastazu Médici (1969-1974). ( BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, p. 263 ).
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Já em finais da década de 60 e início dos anos 70, foi implantada uma
política que procurou garantir energia elétrica com margem mais que suficiente
para o consumo, especialmente o industrial. Dentro dessa perspectiva, grandes
centrais hidrelétricas, como a de Itaipu (Binacional – Paraná- 12.600 MW) e
Tucuruí (PA- Rio Tocantins) foram construídas neste período, além de um grande
programa de construção de reatores nucleares em cooperação com a Alemanha.
Ressalte-se que tais empreendimentos foram edificados sem qualquer avaliação
prévia de impacto ambiental ou consulta pública, já que a legislação brasileira
vigente à época não previa tais instrumentos.13 14
Durante o governo militar Médici, foi lançado o I PND- Plano Nacional de
Desenvolvimento para o período de 1972 a 1974, com o estabelecimento de metas
para crescimento dos setores básicos – siderurgia, petroquímica, energia elétrica e
mineração, entre outros.
Um dos principais argumentos apresentados pelo governo, nessa época,
segundo ROSA (1988) para justificar o intenso investimento em energia elétrica,
com a elaboração de grandes obras, foi o fato de que haveria uma “crise de
energia” provocada em razão dos choques do petróleo, já que o Brasil era - e
ainda é - grande importador de petróleo para produção de combustíveis líquidos.
Porém, tal fato não teria repercussões sobre o setor hidrelétrico, conforme foi
possível comprovar na década seguinte.
Nas décadas de 70 e 80, pôde-se perceber, ainda, um movimento de
centralização do setor elétrico, representado pelo papel forte da Eletrobrás e de
suas subsidiárias regionais, através das já criadas CHESF e FURNAS, da
Eletrosul e Eletronorte (criadas posteriormente, em 1968 e 1972,
respectivamente). Desde então, a Eletrobrás assumiu o processo de planejamento
da expansão dos sistemas elétricos do país, definindo a programação de obras do
13 ROSA, Luiz Pinguelli. Um paralelo entre grandes projetos hidrelétricos e nucleares. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e
nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, p.72-73. 14 A recuperação industrial, ocorrida em 1968, marcou o início de um acelerado processo de desenvolvimento econômico, conhecido como “milagre” brasileiro, tendo esse ciclo ascendente da economia perdurado até a eclosão do primeiro choque do petróleo, que se deu no final de 1973. (BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 263 ).
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setor e atribuindo tanto metas quanto responsabilidades para o conjunto das
empresas concessionárias.
Tratava-se de planejamento baseado em estudos sequenciais de longo,
médio e curto prazo sobre os requisitos do mercado de energia elétrica e as
alternativas de expansão dos sistemas elétricos. Os estudos de longo prazo
procuravam determinar um planejamento de desenvolvimento dos sistemas
elétricos para alcançar um horizonte de (até) trinta anos. Os de médio definiram os
planos de expansão das empresas regionais e estaduais no horizonte até 15 anos.
Os de curto prazo, por fim, com horizonte de até 10 anos.
No início da década de 70, começam a surgir, paralelamente, no cenário
internacional, as primeiras manifestações reveladoras de uma preocupação
ambiental15 e, nesse contexto, debates sobre a necessária mudança de consciência
e de comportamento por parte de todos os setores, públicos ou privados, da
sociedade civil.16 Com efeito, a degradação ambiental, decorrente do aumento
devastador do crescimento econômico e de uma política voltada para o incentivo
do crescimento da produção e consumo de bens (vivenciada pela grande parte das
sociedades ocidentais de economia capitalista), passou a ser motivo de
preocupação no campo científico, originando diversos estudos acadêmicos e as
primeiras reações no sentido de se obterem métodos e fórmulas capazes de reduzir
os danos socioambientais. Resultado disso foram os estudos elaborados pelo
Clube de Roma, liderado por Dennis L. Meadows, a partir de 1968, através dos
quais foi realizado um diagnóstico dos recursos naturais terrestres. Concluiu-se
que a degradação ambiental seria resultado principalmente do descontrolado
crescimento populacional e econômico. Ficou evidente, naquele momento da
15 A preocupação do homem com a preservação da biosfera – atmosfera sadia, águas limpas e exploração dos recursos minerais, vegetais e animais de forma equilibrada -, por estar intimamente vinculada à própria sobrevivência da espécie humana, advém das culturas presentes no período da Antiguidade Clássica e persistiu até o período da Revolução Industrial. A partir dela, no entanto, houve inegável mudança na conduta humana, com agressões constantes ao meio ambiente, em prol do progresso e aumento dos bens de consumo, com gastos energéticos de recursos não renováveis, sem nenhum controle. Cf. ROTA, Demetrio Loperena. El derecho al medio ambiente
adecuado.Pais Basco: IVAP – Organismo Autônomo Del Gobierno Vasco, 1996, pp. 25-31. 16 O primeiro ato legislativo mais importante da referida época, de representação internacional, é provavelmente a aprovação da National Environmental Policy Act - NEPA, sancionada em 01 de março de 1970, nos Estados Unidos. Esse marco normativo se revela emblemático no Direito Ambiental também por estabelecer, pela primeira vez, a necessidade de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) como requisito prévio a qualquer atividade pública ou privada com impactos relevantes no meio ambiente. Cf. ROTA, Demetrio Loperena. El derecho al medio ambiente
adecuado.Pais Basco: IVAP – Organismo Autônomo Del Gobierno Vasco, 1996, pp. 25-31.
33
história, que não seria mais possível falar em desenvolvimento econômico sem a
preocupação com a preservação ambiental. Fala-se, inclusive, da existência de
uma verdadeira “crise ambiental” ou “ecológica” em nível planetário acirrada
após a segunda guerra mundial.17
As análises antes apontadas serviram de base para a idéia - que se
desenvolveria a partir de então - sobre o imprescindível desenvolvimento
econômico com a paralela (e também imprescindível) preservação ambiental.18
Assim, os movimentos ambientalistas - que se iniciaram com o chamado
Clube de Roma - tiveram continuidade na década de 70, com a Conferência das
Nações Unidas para o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo em 1972, a
primeira de uma série de três conferências ambientais realizadas pela ONU.
Contou com a presença de 113 países e resultou na Declaração de Estocolmo e na
instauração do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA)19.
Em nível nacional, pode-se afirmar que o movimento iniciado com a
Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente teve repercussões também
importantes, pois, em 1981, foi editada a Lei n. 6938, com o estabelecimento dos
princípios e objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente. A referida lei
instituiu, ainda, o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) e, em caráter
obrigatório, previu o licenciamento ambiental de atividades (efetiva ou
potencialmente) poluidoras como também a avaliação de impacto ambiental,
instrumentos basilares para efetivação da política ambiental.
Cumpre destacar, no âmbito internacional do movimento ambientalista, a
divulgação em 1987 do relatório das Nações Unidas intitulado “Nosso futuro
comum”, coordenado pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Brundtland,
razão pela qual passou a ser conhecido como Relatório Brundtland. A importância
desse documento se revela pela constatação de ser o modelo de desenvolvimento
econômico capitalista industrial, baseado na ampliação crescente do consumo, o
responsável pela rápida devastação ambiental e pelo risco de exaurimento dos
17 Afirmando a existência da crise ambiental ou ecológica, há vários autores, valendo citar GUATTARI, Félix. As três Ecologias. Campinas- SP: Papirus, 2006; MORIN, Edgar. KERN, Anne Brigitte. Terra-pátria. Porto Alegre: Sulina, 2005; e PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 18 BRASIL. Almanaque Brasil Socioambiental (2008), editado pelo Instituto Socioambiental (ISA), pp. 439-440, São Paulo: ISA, 2007. 19 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. A gestão ambiental em foco. Doutrina.Jurisprudência.Glossário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 56-57.
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recursos ambientais do planeta. Pela primeira vez, foi utilizado o conceito de
desenvolvimento sustentável, entendido como “aquele que satisfaz as
necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações
futuras de satisfazer as suas próprias necessidades”, tendo sido conferido destaque
para os três componentes fundamentais do novo modelo de desenvolvimento
sustentável: proteção ambiental, crescimento econômico e equidade social.
Já no Brasil, o movimento ambientalista ganhou força a partir da segunda
metade dos anos 80, com o processo histórico de redemocratização do país,
consolidado com a promulgação da Constituição Federal de 198820. A
consolidação da democracia, inclusive com as eleições diretas para Presidente da
República, em 1989, passou a fornecer à sociedade civil um amplo espaço de
mobilização/articulação que resultou em alianças políticas estratégicas entre o
movimento social e o ambiental. Santilli21 descreve que, na Amazônia, nesse
período, houve a articulação entre os povos indígenas e as populações
tradicionais, levando ao surgimento da Aliança dos Povos da Floresta, um dos
marcos do socioambientalismo, que tinha como um de seus líderes o seringueiro
Chico Mendes.
É também no período da década de 80 que o direito ambiental passa a
integrar a agenda de preocupações do direito da energia.22
20 Historicamente, no âmbito constitucional nacional, verifica-se que a evolução da proteção ao meio ambiente como um bem juridicamente tutelado se deu em quatro estágios20: 1) a existência de uma legislação que nada previa sobre a proteção ao meio ambiente, como o Código Civil de 1916 e as constituições anteriores a de 1988; 2) alguns aspectos setoriais da questão ambiental foram sendo legislados, como a proteção à flora e fauna, com a edição do Código Florestal – Lei n.4.771/65, por exemplo ; 3) em seguida, foram sendo editadas leis ambientais informadas por uma concepção mais holística e sistemática, analisando o meio ambiente como um todo (a lei de Política Nacional do Meio Ambiente - Lei n. 6.938/81 - é um exemplo disso); e, por fim, 4) no quarto e último estágio, deu-se a incorporação da proteção ambiental ao texto constitucional. Cf. BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção do meio ambiente nos países menos desenvolvidos: o caso da América Latina. In Revista de Direito Ambiental. Revista dos Tribunais: São Paulo,Vol. 0, p.98. Neste artigo, o autor analisa o desenvolvimento do direito ambiental na América Latina, tendo fornecido a identificação dos estágios citados no contexto da América Latina, o que se aplica perfeitamente ao Brasil. 21 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. Proteção jurídica à diversidade
biológica e cultural. São Paulo. Peirópolis: 2005, p. 51. 22 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Princípios do direito da energia e integração com o direito
ambiental. Revista de Direito Ambiental. v. 47, p. 96-120, 2007. O autor afirma que o direito da energia, como disciplina jurídica consolidada, surgiu na Europa, no final do século XI, porém, apesar dos esforços em se empreender uma teoria jurídica, a autonomia disciplinar restou prejudicada pela falta de princípios próprios. Acrescenta que, a partir do surgimento de uma preocupação ambiental explícita, o direito à energia passou a incorporar também referências à sustentabilidade ambiental. Assinala que a energia somente pode ser juridicamente entendida se levar em conta a tutela jurídica ambiental e também os aspectos tecnológicos da questão,
35
Outra alteração realizada, no âmbito do setor elétrico, especialmente na
estrutura interna da Eletrobrás, deu-se com a criação do Departamento do Meio
Ambiente (DEMA), vinculado à Diretoria de Planejamento e Engenharia, em
agosto de 1987. Essa modificação decorreu, em especial, de grande pressão dos
movimentos sociais e ambientais em relação aos impactos socioambientais
causados pela implantação das hidrelétricas. Posteriormente, em dezembro de
1986, foi criado o Comitê Consultivo do Meio Ambiente (CCMA ) e, em abril de
1988, o Comitê Coordenador de Atividades de Meio Ambiente do Setor Elétrico (
Comase ).23
Portanto, o grande avanço dos investimentos no setor de energia elétrica,
sob o comando financeiro e institucional da Eletrobrás, desde 1967, sofreu uma
queda de ritmo vertiginosa a partir de 1982, em razão da grave crise econômica
que se abateu sobre o país, com efeitos negativos para todo o setor elétrico.
Por conseguinte, em virtude da crise cambial e do agravamento de
problemas fiscais, o Brasil começa a discutir, na segunda metade da década de 80,
a possibilidade de delegar ao setor privado o direito de explorar atividades até
então de responsabilidade exclusiva do Estado.24
Na década de 90, mudanças estruturais ocorreram no setor energético em
razão das privatizações de empresas estatais e do início do processo de
desregulamentação do setor elétrico, ocorridas pela forte tendência econômica
liberal vigente na América Latina, em geral. Este processo de liberalização
econômica do sistema elétrico brasileiro, conhecido como “reestruturação” desse
setor, foi uma das principais diretrizes da política de reforma institucional e de
ajuste econômico orientado pelas agências multilaterais25 – Banco Interamericano
defendendo, portanto, que haja uma maior reciprocidade entre o campo ambiental e o energético, na esfera jurídica, já que os princípios para tutela deste – segurança no aproveitamento energético, eficiência energética, não-retrocesso no uso de tecnologias, acesso universal à rede de distribuição de energia. e liberdade energética – careceriam de uma harmonização mais forte com os princípios de direito ambiental. 23BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, p. 283. 24 LANDAU, Elena Introdução. O setor elétrico em uma visão introdutória. LANDAU, Elena (coord ). Regulação Jurídica do Setor Elétrico. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 5. 25 As mudanças políticas ocorridas na América Latina na década de 80, com a substituição de governos autoritários militares por governos democráticos, com claras tendências liberais, levaram à aceitação cada vez maior de políticas de ajustes econômicos preconizadas pelas agências multilaterais para a região do Mercosul, cuja síntese ficou conhecida como Consenso de Washington. Entre as estratégias adotadas no Consenso de Washington estavam a privatização acelerada de empresas estatais lucrativas, notadamente as de caráter estratégico, como as de energia, com a finalidade de pagamento de dívidas interna e externa; a flexibilização de direitos
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de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial (BIRD), Fundo Monetário
Internacional (FMI) – colocada em prática pelo governo federal brasileiro nesse
período26. O Programa Nacional de Desestatização (PND), instituído pelo governo
Collor, em 1990, teve início através da Medida Provisória 155/90, convertida
posteriormente na Lei n. 8.031/90, a qual foi revogada pela Lei n. 9491/97. Com a
entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 05/95 e da Lei n. 8987/95 (Lei
Geral das Concessões), que regulamentou o art. 175 da Constituição Federal de
88, houve a instituição dos princípios básicos para a concessão de serviços
públicos. O referido modelo de privatizações brasileiro optou pela adoção das
chamadas agências reguladoras, baseado na experiência norte-americana, com as
comissions. A Lei n. 9427/96 criou, então, a ANEEL – Agência Nacional de
Energia Elétrica – como autarquia sob regime especial, vinculada ao MME, para
desempenhar as responsabilidades do antigo DNAEE, ou seja, funções executivas
(de concessão e fiscalização), legislativas (criação de regras e procedimentos com
força normativa) e também decisórias (imposição de penalidades, interpretação de
contratos e julgamentos), com autonomia administrativa, financeira e decisória
para tal.
Em razão de tal legislação, a ANEEL recebeu delegação da União para
atuar como poder concedente, tornando-se responsável pela condução dos
processos de licitação destinados à contratação de concessionárias de serviço
público (para geração, transmissão e distribuição de energia elétrica) e para
outorga de concessão para o aproveitamento de potenciais hidráulicos e
implantação de termelétricas. Ficou também incumbida a autarquia de zelar pela
defesa da concorrência no setor, estabelecendo regras para coibir a concentração
do mercado, de forma articulada27, com organismos responsáveis por análises de
trabalhistas; a desregulamentação da vida econômica em todas as instâncias; a redução dos investimentos do Estado em políticas públicas básicas; a reforma do Estado e a redução do funcionalismo, para redução geral dos gastos públicos. Cf. SAUER, Ildo Luís. Um novo modelo
para o setor elétrico brasileiro. SAUER, Ildo Luís. (et al) A reconstrução do setor elétrico. Campo Grande: Ed. UFMS; São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 16. 26 Idem
27 A legislação que impõe à ANEEL tais atribuições não substitui as disposições da lei geral de defesa da concorrência e nem a competência das autoridades antitruste, reconhecendo a lei 9427/96, criadora da ANEEL, que esse organismo deverá articular-se com a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça – SDE. Nesse sentido, dispõem os seguintes artigos: Art. 3o Além das atribuições previstas nos incisos II, III, V, VI, VII, X, XI e XII do art. 29 e no art. 30 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, de outras incumbências expressamente previstas em lei e observado o disposto no § 1o, compete à ANEEL: (Redação dada pela Lei nº
37
atos de concentração de empresas e de denúncias de atividades anticompetitivas
(como, por exemplo, a Secretaria de Direito Econômico – SDE, órgão do
Ministério da Justiça, Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), órgão
do Ministério da Fazenda, e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica –
CADE, autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça28)
Há que se mencionar também a Lei n. 9074/95 que definiu regras para
outorga, prorrogação de concessões e permissões de serviços públicos. Nela se
dedica um capítulo específico para o setor de energia elétrica. A referida lei
reconheceu, ainda, a figura do Produtor Independente de Energia (PIE), liberou os
grandes consumidores do monopólio comercial das concessionárias e instituiu o
princípio do livre acesso aos sistemas de transmissão e distribuição.29
10.848, de 2004) (...) VIII - estabelecer, com vistas a propiciar concorrência efetiva entre os agentes e a impedir a concentração econômica nos serviços e atividades de energia elétrica, restrições, limites ou condições para empresas, grupos empresariais e acionistas, quanto à obtenção e transferência de concessões, permissões e autorizações, à concentração societária e à realização de negócios entre si; (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998) IX - zelar pelo cumprimento da legislação de defesa da concorrência, monitorando e acompanhando as práticas de mercado dos agentes do setor de energia elétrica; (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998). Parágrafo único. No exercício da competência prevista nos incisos VIII e IX, a ANEEL deverá articular-se com a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça. (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998). BRASIL. Planalto. Lei n. 9427/96. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9427cons.htm>. ( Acesso em 15 de fevereiro de 2009 )
28 Estes órgãos compõem o chamado Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), responsável pela promoção de uma economia competitiva, por meio da prevenção e da repressão de ações que possam limitar ou prejudicar a livre concorrência no Brasil, com sua atuação orientada pela Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994. Cf. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ29715BC8ITEMIDCEF35B5AB2E84F6A8CA8858B129BB4EFPTBRIE.htm. (Acesso em 15 de fevereiro de 2009).
29 Além da ANEEL, outras instâncias institucionais foram sendo criadas, a partir de 1998, ao longo do processo de reestruturação e reconstrução do sistema elétrico nacional, perdurando até o primeiro mandato do governo Lula. Foram elas: 1) ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico): criado e regulamentado em 1998 – Lei n. 9648 -, tendo como finalidade operar o Sistema Interligado Nacional (SIN)29 e administrar a rede básica de transmissão de energia. Tendo sido alterada sua regulamentação através do Decreto 5.081 de maio de 2004, o ONS ficou autorizado a executar as atividades de coordenação e controle da operação, da geração, e da transmissão de energia elétrica do SIN, sob fiscalização e regulação da ANEEL. Tem autonomia frente aos organismos privados e públicos; 2) CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica): foi regulamentada pelo Decreto Nº 5.177, de 12 de agosto de 2004. Pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos e sob regulação e fiscalização da ANEEL, a CCEE tem por finalidade viabilizar a comercialização de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional (SIN). Ficou também a seu cargo realizar os leilões de energia. A CCEE sucedeu ao Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE), criado pela Lei nº 10.433, de 24 de abril de 2002. O MAE, ambiente organizado e regido por regras estabelecidas, no qual se processava a compra e venda de energia entre seus participantes, através de contratos bilaterais e de um mercado de curto prazo, era considerado essencial para o completo funcionamento do modelo de competição do mercado de energia elétrica; 3) EPE (Empresa de Pesquisa Energética): empresa pública, vinculada ao
38
O referido processo de reestruturação acabou por se basear em uma
intervenção mínima do Estado, sobretudo em relação à expansão necessária para o
sistema elétrico nacional, e colocou, em segundo plano, as atividades de
formulação tanto de políticas públicas quanto de planejamento energético. O
governo, assim, superestimou a capacidade do mercado para resolver os
problemas estruturais e as incertezas do setor, sendo esta uma das causas da crise
de abastecimento de energia de 2001.30 Em verdade, pode-se afirmar que a
questão de tal desabastecimento revelou-se como consequência de uma conjunção
de fatores políticos, sociais, econômicos e climáticos.31
Outra das causas apontadas para a eclosão da crise, ocorrida durante o
segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi a insuficiência
de investimentos em geração e transmissão nos anos anteriores, além de condições
hidrológicas desfavoráveis verificadas nas regiões Sudeste e Nordeste32. Essa
crise que deu ensejo a um programa de racionamento de energia iniciado em
junho de 2001, com duração de sete meses, suscitou intenso debate sobre a
política de privatizações e reforma do setor de energia elétrica implementada pelo
governo Fernando Henrique Cardoso.
Várias e duradouras foram as conseqüências de tal crise. Dentre elas,
podemos citar a quebra das expectativas de crescimento do mercado (existentes
até 2000) e a sobrecapacidade que deprimiu preços e desestimulou investimentos
no setor, além de afetar a capacidade financeira de todos os agentes. Além disso, a
chamada crise do “apagão” deixou exposta a fragilidade institucional do setor e a
insegurança por uma falta de regulação normativa adequada. Não é sem razão
que, nos primeiros anos após as privatizações, o embate entre investidores e
Ministério de Minas e Energia, foi regulamentada pelo decreto Nº 5.184, de 16 de agosto de 2004. Dentre suas atribuições está a de realizar estudos e pesquisas que subsidiarão a formulação, o planejamento e a implementação de ações do MME, no âmbito da política energética nacional. O Sistema Interligado Nacional ( SIN ) caracteriza-se por ser um sistema de produção e transmissão de energia elétrica no Brasil, formado pelas empresas das regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e parte da região Norte. 30 PEREIRA, André Flavio Soares. BAJAY, Sergio Valdir. Bases de Dados Públicas sobre
Geração Hidrelétrica no Brasil. Anais do X Congresso brasileiro de Energia – CBE. A universalização do Acesso à Energia, Vol. I, 2004, p. 472. 31 ANTUNES, Paulo de Bessa. Política Energética Nacional e Meio Ambiente ou Tellico Dam seja aqui. LANDAU, Elena ( coord ). Regulação Jurídica do Setor Elétrico. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p.431. 32 SAUER, Ildo Luís. Um novo modelo para o setor elétrico brasileiro. SAUER, Ildo Luís. ( et al ) A reconstrução do setor elétrico. Campo Grande: Ed. UFMS; São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 24.
39
reguladores centralizou-se basicamente na discussão sobre a aplicação de regras
tarifárias expressas nos contratos de concessão.33
2.2
O setor elétrico hoje. Novo modelo normativo do setor elétrico
brasileiro.
Após a mudança de governo ocorrida em 2002, percebe-se um processo de
redefinição do modelo institucional do setor de energia elétrica. Sinaliza-se uma
intenção de conferir ao Estado um papel mais ativo na regulação das atividades de
energia elétrica e na expansão do sistema elétrico nacional.
Em 2003, então, foi instituído, pelo governo federal um grupo de trabalho,
no âmbito do Ministério de Minas e Energia, que culminou com a publicação do
documento intitulado “Modelo Institucional do Setor Elétrico”. De acordo com tal
documento, algumas diretrizes foram estabelecidas e novas estruturas de
planejamento e comercialização de energia elétrica foram propostas. Dentre as
principais diretrizes, destacam-se34:
1) a prevalência do conceito de serviço público para a produção e distribuição de
energia elétrica para os consumidores cativos;
2) a diminuição das tarifas;
3) a restauração do planejamento da expansão do sistema;
4) a redução dos riscos para as indústrias e maior retorno aos investidores;
5) a universalização do acesso e do uso dos serviços de eletricidade;
e 6) a modificação do processo de licitação de concessão do serviço público de
geração, priorizando a menor tarifa.
Fica evidente que as mudanças foram implementadas com a pretensão de
retomar o papel pró-ativo do Estado nas atividades de formulação de políticas
publicas energéticas e planejamento energético e, por outro lado, com a intenção
de tornar este último não meramente indicativo, mas determinativo35. Na
administração anterior também se verificou uma ausência de estudos de inventário
33 LANDAU, Elena. Introdução. O setor elétrico em uma visão introdutória. LANDAU, Elena ( coord ). Regulação Jurídica do Setor Elétrico.Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 11. 34 BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, p. 663. 35 Isso não significa, entretanto, que o governo atual tenha logrado implementar um planejamento determinativo.
40
e de viabilidade de usinas hidrelétricas, antes realizadas basicamente pelas
empresas geradoras estatais do Grupo Eletrobrás.36
Em dezembro de 2003, foram editadas duas medidas provisórias ( MP’s n.
144 e 145 ), estabelecendo a base legal para a implantação do novo modelo
normativo, segundo o qual as decisões acerca do planejamento energético
estariam centralizadas no âmbito governamental, e introduzidas importantes
alterações no ordenamento institucional vigente. Manteve-se, todavia, a
concepção de livre concorrência nos mercados de geração e comercialização, bem
como de regulação nos segmentos de transmissão e distribuição.
A Medida Provisória n. 145, a seu turno, tratou da criação da Empresa de
Pesquisa Energética – EPE, empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e
Energia – MME, encarregada da elaboração dos estudos de planejamento
integrado de recursos energéticos e planos de expansão do setor de energia
elétrica, assim como pela promoção dos estudos de potencial energético e de
viabilidade de novas usinas, incluindo a obtenção de licença prévia para os
aproveitamentos hidrelétricos.
O novo modelo reafirmava a competência da ANEEL para mediação,
regulação e fiscalização do setor. Contudo, transferia para o MME o poder de
concessão dos empreendimentos de geração e transmissão.
Em março de 2004, finalmente, após inúmeras discussões e críticas aos
textos das medidas provisórias acima mencionadas junto à Câmara dos Deputados
e Senado Federal (e de diversas emendas realizadas ao texto original), foram
sancionadas as leis n. 10.847 e 10.84837. A primeira autorizou a criação da EPE e
a segunda definiu as regras de comercialização de energia elétrica.
Portanto, desde 2004, após a introdução de novas mudanças na política
energética, a comercialização da energia vem sendo realizada em dois ambientes
36PEREIRA, André Flavio Soares. BAJAY, Sergio Valdir. Bases de Dados Públicas sobre
Geração Hidrelétrica no Brasil. Anais do X Congresso brasileiro de Energia – CBE. A universalização do Acesso à Energia, Vol. I, 2004, pp. 473-474. 37 Foi ajuizada no âmbito do STF ação direta de inconstitucionalidade contra a MP n. 145 que se converteu, após várias alterações de forma e conteúdo no texto, na lei 10847/2004, pelo Partido da Frente Liberal- PFL, - ADIN 3101 / DF - DISTRITO FEDERAL, julgada em 15/12/2005. Nessa, o STF julgou extinto o processo sem resolução do mérito, em razão de ter reconhecido a presença de questão prejudicial atinente ao fato de que a medida provisória impugnada já não possuía mais seu texto original, tendo sofrido diversas alterações substanciais ao longo do processo de conversão legislativa, tanto de forma como de fundo, o que prejudicaria o julgamento da referida ação. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIN 3101. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=3101&processo=3101>. ( Acesso em 15 de fevereiro de 2009 )
41
de mercado: o Ambiente de Contratação Regulada ( ACR ) e o Ambiente de
Contratação Livre (ACL). Naquele, a contratação é formalizada através de
contratos bilaterais regulados, denominados Contratos de Comercialização de
Energia Elétrica no Ambiente Regulado (CCEAR), celebrados entre agentes
vendedores (comercializadores, geradores, produtores independentes ou
autoprodutores) e compradores (distribuidores). Neste, em contrapartida, há a
livre negociação entre os agentes geradores, comercializadores, consumidores
livres, importadores e exportadores de energia.
A ANEEL, então, é responsável pelas licitações para contratação regulada
de energia elétrica e pela realização dos leilões38, diretamente ou por intermédio
da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica ( CCEE ).
As grandes geradoras estatais, a seu turno, foram definitivamente retiradas
do Plano Nacional de Desestatização, de maneira que a maior parte do segmento
de distribuição, cerca de 63%, foi privatizada. Somente 22% da geração, no
entanto, passou à exploração da iniciativa privada39.
38 Foram realizados leilões de compra de energia existente em dezembro de 2004 ( venda de 17.060 Mw médios ), em abril de 2005 ( 1.325 Mw médios ), em novembro de 2005 ( terceiro e quarto leilões, com venda de 102 Mw e 1.166 Mw médios, respectivamente ). Já para comercialização de energia nova, ocorreram leilões em dezembro de 2005, resultando na contratação de 3.286 Mw médios dos 5.434 Mw disponibilizados pelos geradores, e em junho de 2006. No de 2005, foram arrematados sete novos empreendimentos hidrelétricos, com potência instalada conjunta de 776 Mw e seis novos térmicos, com 998 Mw de potência. Complementaram o leilão 15 hidrelétricas e 23 térmicas. No segundo leilão, foram comercializados 1.682 Mw médios, sendo que dos 89 projetos habilitados para serem oferecidos no leilão, somente 31 foram contratados. Tais informações foram extraídas do relato constante de BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, p. 715. 39 LANDAU, Elena Introdução. O setor elétrico em uma visão introdutória. LANDAU, Elena (coord). Regulação Jurídica do Setor Elétrico. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 16.
42
Necessário se faz destacar pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE)40
papel fundamental na retomada do controle pelo Estado da atividade de
planejamento energético. Possui como atribuições, entre outras: a) realizar estudos
e projeções da matriz energética brasileira; b) elaborar e publicar o balanço
energético nacional; c) identificar e quantificar os potenciais de recursos
energéticos; d) dar suporte e participar das articulações relativas ao
aproveitamento energético de rios compartilhados com países limítrofes; e)
realizar estudos para a determinação dos aproveitamentos ótimos dos potenciais
hidráulicos; f) obter a licença prévia ambiental e a declaração de disponibilidade
hídrica necessárias às licitações envolvendo empreendimentos de geração
hidrelétrica e de transmissão de energia elétrica, selecionados pela EPE; g)
elaborar estudos necessários para o desenvolvimento dos planos de expansão da
geração e transmissão de energia elétrica de curto, médio e longo prazos; h)
desenvolver estudos de impacto social, viabilidade técnico-econômica e
socioambiental para os empreendimentos de energia elétrica e de fontes
renováveis; i) efetuar o acompanhamento da execução de projetos e estudos de
viabilidade realizados por agentes interessados e devidamente autorizados; j)
40 A lei n. 10847/2004 previu no art. 4º as atribuições da EPE: I - realizar estudos e projeções da matriz energética brasileira; II - elaborar e publicar o balanço energético nacional; III - identificar e quantificar os potenciais de recursos energéticos; IV - dar suporte e participar das articulações relativas ao aproveitamento energético de rios compartilhados com países limítrofes; V - realizar estudos para a determinação dos aproveitamentos ótimos dos potenciais hidráulicos; VI - obter a licença prévia ambiental e a declaração de disponibilidade hídrica necessárias às licitações envolvendo empreendimentos de geração hidrelétrica e de transmissão de energia elétrica, selecionados pela EPE; VII - elaborar estudos necessários para o desenvolvimento dos planos de expansão da geração e transmissão de energia elétrica de curto, médio e longo prazos; VIII - promover estudos para dar suporte ao gerenciamento da relação reserva e produção de hidrocarbonetos no Brasil, visando à auto-suficiência sustentável; IX - promover estudos de mercado visando definir cenários de demanda e oferta de petróleo, seus derivados e produtos petroquímicos; X - desenvolver estudos de impacto social, viabilidade técnico-econômica e socioambiental para os empreendimentos de energia elétrica e de fontes renováveis; XI - efetuar o acompanhamento da execução de projetos e estudos de viabilidade realizados por agentes interessados e devidamente autorizados; XII - elaborar estudos relativos ao plano diretor para o desenvolvimento da indústria de gás natural no Brasil; XIII - desenvolver estudos para avaliar e incrementar a utilização de energia proveniente de fontes renováveis; XIV - dar suporte e participar nas articulações visando à integração energética com outros países; XV - promover estudos e produzir informações para subsidiar planos e programas de desenvolvimento energético ambientalmente sustentável, inclusive, de eficiência energética; XVI - promover planos de metas voltadas para a utilização racional e conservação de energia, podendo estabelecer parcerias de cooperação para este fim; XVII - promover estudos voltados para programas de apoio para a modernização e capacitação da indústria nacional, visando maximizar a participação desta no esforço de fornecimento dos bens e equipamentos necessários para a expansão do setor energético; e XVIII - desenvolver estudos para incrementar a utilização de carvão mineral nacional. Parágrafo único. Os estudos e pesquisas desenvolvidos pela EPE subsidiarão a formulação, o planejamento e a implementação de ações do Ministério de Minas e Energia, no âmbito da política energética nacional.
43
desenvolver estudos para avaliar e incrementar a utilização de energia proveniente
de fontes renováveis; l) promover estudos e produzir informações para subsidiar
planos e programas de desenvolvimento energético ambientalmente sustentável,
inclusive, de eficiência energética; e m) promover planos de metas voltadas para a
utilização racional e conservação de energia, podendo estabelecer parcerias de
cooperação para esse fim.
No planejamento energético, consideram-se as características do sistema
de energia elétrica nacional e dos demais setores energéticos. Desenvolvido em
três etapas distintas de estudos, com objetivos e horizontes temporais
diversificados, conforme o enfoque a ser priorizado: os estudos de longo41,
médio42 e curto prazo.
Para os fins desta análise, torna-se mais importante a definição dos estudos
de curto prazo: são eles que indicarão os aproveitamentos hidrelétricos de
interesse nacional para desenvolvimento.
Esses estudos, com horizonte de, no mínimo 10 anos, e periodicidade
anual, resultam no plano decenal de expansão. Nele são apresentadas as decisões
relativas à expansão física da oferta de energia, definindo os empreendimentos e
sua alocação temporal. São elaboradas também as análises das condições de
suprimento ao mercado. Estas metas, no caso da energia elétrica, tornam possível
a realização dos leilões de compra de energia de novos empreendimentos de
geração e dos leilões de novas instalações de transmissão. Segundo o Manual de
Inventário Hidrelétrico Eletrobrás (2007), no estudo de curto prazo, apontam-se
41 De acordo com o Manual de Inventário Hidrelétrico elaborado pela Eletrobrás (2007), os estudos de longo prazo, com horizontes de ate 30 anos, buscam analisar as estratégias de desenvolvimento dos diversos sistemas energéticos do País e a composição futura da oferta de energia. Neste plano, também são estabelecidas prioridades para o desenvolvimento tecnológico e industrial do país e um programa de estudos de engenharia voltados para definir a viabilidade técnica, econômica e socioambiental dos diversos empreendimentos energéticos. Do resultado de tais estudos tem-se a indicação das bacias consideradas prioritárias para elaboração de Estudos de Inventário Hidrelétrico, as diretrizes para os estudos de curto prazo, assim como as indicações dos custos marginais de expansão de longo prazo. Esse estudo é feito, em média, de 4 a 5 anos, tendo como resultados as estratégias e as políticas para a energia, consolidadas nos estudos da Matriz Energética Nacional e do Plano Nacional de Energia. 42 De acordo com o Manual de Inventário Hidrelétrico elaborado pela Eletrobrás ( 2007), os estudos de médio prazo, com horizontes de 15 anos, analisam para o setor de energia elétrica alternativas de expansão, geração e transmissão, ajustadas aos requisitos do mercado de energia elétrica. São desenvolvidos, via de regra, para casos específicos do planejamento, como por exemplo, na inserção da hidreeletricidade da Amazônia no sistema interligado nacional e definição de custos marginais para dimensionamento de hidrelétricas. A sua realização atende as necessidades específicas de estudos da expansão do sistema elétrico nacional.
44
estudos de viabilidade técnica, econômica e socioambiental de novos
empreendimentos de geração a serem realizados. Os outros elementos energéticos
(petróleo e derivados, os combustíveis líquidos, o gás natural, as fontes
alternativas renováveis e o carvão mineral) também devem ser analisados a partir
de uma visão integrada. Condicionam a realização deste estudo os requisitos do
mercado de energia, os critérios de garantia de suprimento (e de minimização dos
custos de investimento) e os prazos de implantação dos empreendimentos, com a
consideração dos estudos de engenharia e de meio ambiente.43
Portanto, o planejamento da expansão do sistema de energia nacional
consolida os estudos em dois planos distintos: o Plano Decenal de Expansão e o
Plano Nacional de Energia. Este último fixa as diretrizes e políticas energéticas
fundamentais para a adequada elaboração do Plano Decenal.
A EPE concluiu, em março de 2006, os estudos do Plano Decenal de
Expansão de Energia Elétrica – PDEE – 2006-201544. Tal documento foi
apresentado como marco de retomada do planejamento do setor de energia
elétrica, tendo sido aprovado pelo MME, através da portaria MME n. 131.
Ora, o Plano Decenal de Expansão de Energia objetiva proporcionar
informações que possam orientar ações e decisões relacionadas ao
equacionamento do equilíbrio entre as projeções de crescimento econômico, seus
reflexos tanto na demanda como na oferta de energia, em bases técnica,
econômica e ambientalmente sustentável. Assim, o PDE pressupõe a realização de
diversos estudos, elaborados pela EPE, com um horizonte de 10 anos para se
definir:
um cenário de referência para implementação de novas instalações na infra-estrutura de oferta de energia, necessárias para se atender ao crescimento dos requisitos do mercado, segundo critérios de garantia de suprimento pré-
43 ELETROBRÁS. Manual de Inventário Hidrelétrico, 2007. Disponível em: < http://www.eletrobras.gov.br/ELB/data/Pages/LUMISF99678B3PTBRIE.htm>. (Acesso em 02 de fevereiro de 2009). 44 O referido plano decenal abrangeu a construção de três grandes hidrelétricas na bacia do rio Amazonas: as usinas Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, e Belo Monte, no rio Xingu, no estado do Pará, tendo estas sido programadas para entrar em operação entre janeiro de 2011 e dezembro de 2013. Além disso, o plano postulou a construção de linhas de transmissão para integração da Região Norte com o Sistema Interligado Nacional (SIN) e previu 18 novos projetos termelétricos, baseados no gás natural, biomassa, carvão e diesel, bem como o início de operação da usina Angra 3, em 2012. Foi previsto, ainda, o aumento da participação de outras fontes de energia na matriz energética com a dinamização do Proinfa e a entrada em funcionamento de 53 empreendimentos no segmento eólica até janeiro de 2008, somando 1.353 Mw.BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 722-724.
45
estabelecidos, de forma ambientalmente sustentável e minimizando os custos totais esperados de investimentos inclusive socioambientais, e de operação.45 No processo de planejamento energético, mostra-se imprescindível, desde
o seu início, a participação de todos os demais setores envolvidos, como o
ambiental e o hídrico, mas também da própria sociedade civil, primando pela
participativa pública efetiva, de modo a integrar visões extra-setoriais e reduzir a
margem de conflitos socioambientais, em etapas mais adiantadas.
2.3
Implantação de usinas hidrelétricas.
2.3.1
Etapas: Estudo de inventário hidrelétrico, Estudos de viabilidade,
Execução do projeto.
O processo de planejamento e monitoramento da expansão da oferta de
energia elétrica, alterado pelo novo modelo normativo do setor elétrico, desde
2004, é de responsabilidade, respectivamente, da Empresa de Pesquisa Energética
(EPE) e do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), com o apoio da
ANEEL (responsável pela regulação e fiscalização das atividades dos
concessionários).
A geração de energia hidrelétrica passa pelo referido processo de
planejamento e monitoramento, envolvendo basicamente três etapas: 1) inventário
do potencial hidrelétrico das bacias hidrográficas; 2) viabilidade dos
aproveitamentos hidrelétricos, ambos correspondentes à fase de planejamento, de
responsabilidade da EPE, e 3) implantação do projeto, cujo
monitoramento/fiscalização cabe ao CMSE/ANEEL.
Embora haja uma orientação oficial no sentido de se incorporar nesta fase
do processo decisório a dimensão socioambiental, conforme sugere, inclusive, o
Manual de Inventario Hidrelétrico Eletrobrás (2007), o fato é que, efetivamente,
45 Disponível em: <http://www.epe.gov.br/Lists/Estudos/DispForm.aspx?ID=8&Source=http%3A%2F%2Fwww%2Eepe%2Egov%2Ebr%2FLists%2FEstudos%2FEstudos%2Easpx>. (Acesso em 06/10/2008).
46
como pretendemos ao final deste trabalho demonstrar, tal variante não é
considerada na tomada de decisões sobre a expansão da produção hidroenergética.
Necessário, no entanto, ter sempre em mente a premissa de que a
implantação de uma hidrelétrica é o produto de um conjunto múltiplo de
decisões46, coordenado e dirigido pelo setor elétrico, mas com a participação ativa
dos demais setores: o ambiental e o setor hídrico, especialmente.
1) ESTUDOS DE INVENTARIO HIDRELETRICO47:
Os estudos de inventário hidrelétrico são conceituados pela Resolução
393/9848 da ANEEL como a etapa de estudos de engenharia em que se define o
potencial hidrelétrico de uma bacia hidrográfica, mediante o estudo de divisão de
quedas e a definição prévia do aproveitamento ótimo de que tratam os §§ 2º e 3º
do art. 5º da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995.
Nessa etapa, procede-se a pesquisas e sondagens para a identificação dos
aproveitamentos da bacia hidrográfica e para a seleção dos mais viáveis sob os
pontos de vista energético, econômico e socioambiental. Desenvolvem-se em
consonância com o planejamento indicativo do setor elétrico que deverá observar
as diretrizes estabelecidas pelo poder concedente.
A realização dos estudos de inventário é de fundamental importância para
a definição do chamado “aproveitamento ótimo”. É a fase em que o setor elétrico
deve buscar uma atuação compartilhada com o setor hídrico e o ambiental, a fim
de que o inventário, ao final, não tome uma dimensão unilateral, respeitando,
assim, os diversos segmentos envolvidos na questão.
Sob a ótica do setor energético, o referido inventário assume um papel
central na determinação da boa qualidade da expansão do setor: analisam-se as
46 FALCÃO, Joaquim de Arruda. Palestra proferida no Seminário temático sobre política de meio ambiente e aproveitamento do potencial hidrelétrico brasileiro. In Anais dos seminários temáticos
sobre política de meio ambiente e aproveitamento do potencial hidrelétrico brasileiro/Eletrobrás. Rio de Janeiro: Eletrobrás, 1991, p. 37. 47 Antes desta etapa, são realizados estudos prévios para estimativa do potencial hidrelétrico, em que se procede à analise preliminar das características da bacia hidrográfica, especialmente quanto aos aspectos topográficos, hidrológicos, geológicos e ambientais, no sentido de verificar sua vocação para geração de energia elétrica. Tal análise baseia-se em dados já disponíveis em escritório. Permite uma primeira avaliação do potencial e realiza estimativa de custo do aproveitamento da bacia hidrográfica, definindo as prioridades para a etapa posterior dos inventários hidrelétricos. 48 ANEEL. Resolução 393/98. Art. 1º.
47
múltiplas implicações dos diferentes aproveitamentos, sem ainda ter ocorrido o
comprometimento de recursos técnicos e financeiros.
Sob o ponto de vista ambiental, o inventário hidrelétrico representa a fase
em que podem ser identificados os impactos socioambientais do conjunto de
aproveitamentos sobre a bacia hidrográfica, os efeitos cumulativos e as sinergias
entre os diferentes projetos. Além disso, impõem-se restrições aos demais usos
dos recursos hídricos e são também buscados meios para equacioná-las ou
minimizá-las.
Nesse sentido, a Resolução ANEEL nº 393/98 estabelece que os titulares
de registro de estudos de inventário deverão formalizar consulta aos órgãos
ambientais. O objetivo será a definição dos aspectos socioambientais e hídricos
relevantes pelos órgãos responsáveis, com vistas à melhor caracterização do
“aproveitamento ótimo” e à garantia do uso múltiplo dos recursos hídricos.
Já a definição de aproveitamento ótimo é regulada pela Lei 9.074, de 7 de
julho de 1995. Por seu intermédio, estabelece-se, entre outros itens, que o
aproveitamento de potenciais hidráulicos será objeto de concessão. Nas licitações,
cabe ao poder concedente especificar as finalidades do aproveitamento (ou da
implantação) da usina. Assim, nenhuma dessas atividades pode ser licitada sem a
definição de “aproveitamento ótimo”, conceituado pela lei como “todo potencial
definido em sua concepção global pelo melhor eixo do barramento, arranjo físico
geral, níveis d'água operativos, reservatório e potência, integrante da alternativa
escolhida para divisão de quedas de uma bacia hidrográfica.”49
A mesma conceituação vem ainda expressa no Decreto 2.003, de 10 de
setembro de 1996, no artigo 3º, §3.
De acordo com o aludido decreto, o órgão regulador e fiscalizador do
poder concedente pode delegar, mediante autorização, a realização dos estudos
técnicos necessários para definição do aproveitamento ótimo. Em todo caso, os
estudos e levantamentos (realizados e aprovados) pelo órgão regulador e
fiscalizador serão obrigatoriamente fornecidos a todos os interessados na licitação
da outorga de concessão.
Nesse ponto, é preciso chamar a atenção para o fato de que a visão de
aproveitamento ótimo, de acordo com a definição legal acima referida, restringe-
49 LEI FEDERAL n. 9074/95. Art. 5º, parágrafo 3º.
48
se ao conceito de eficiência energética, que não abrange a eficiência social e
ambiental.50
Entretanto, por intermédio de uma interpretação sistemática, há de se
buscar a superação de tal obstáculo. Em um estudo de inventário hidrelétrico,
portanto, a conceituação de aproveitamento ótimo deve passar por múltipla
análise, que não deve priorizar somente os aspectos econômico-energéticos, mas
também os socioambientais e os relativos à esfera dos recursos hídricos.
Isto é o que se extrai da leitura do próprio art. 13 da Resolução 393/98,
segundo o qual deverá ser formalizada consulta aos órgãos ambientais (para
definição dos estudos relativos aos aspectos do ambiente) e aos órgãos
responsáveis pela gestão dos recursos hídricos, nos níveis estadual e federal, para
que haja a “melhor definição do aproveitamento ótimo e a garantia do uso
múltiplo dos recursos hídricos”.
Por outro lado, a legislação de gestão dos recursos hídricos deu
fundamento jurídico para que os demais setores usuários da água e os estados
federados participassem da tomada de decisões pelo setor elétrico e, até mesmo,
para que pudessem questionar a regularidade das decisões previamente tomadas
por aquele e pela Administração Pública federal, em razão do princípio dos usos
múltiplos da água.
Nesse sentido, dispõe a Lei n. 9433/97 que estão sujeitos à outorga pelo
Poder Público, para uso de recursos hídricos, os aproveitamentos dos potenciais
hidrelétricos.51 A referida outorga e a utilização de recursos hídricos, para fins de
geração de energia elétrica, estará subordinada ao Plano Nacional de Recursos
Hídricos, obedecida a disciplina da legislação setorial específica.52 Estabelece,
ainda, que toda outorga estará condicionada às prioridades de uso estabelecidas
nos Planos de Recursos Hídricos. Deverá preservar, também, seus múltiplos usos
e respeitar a classe em que o corpo d’água estiver enquadrado e a manutenção de
condições adequadas ao transporte aquaviário, quando for conveniente.53
50 VAINER. Carlos B. Recursos hidráulicos: questões sociais e ambientais. Revista Estudos Avançados n 59, Dossiê Energia. São Paulo: Instituto de Estudos avançados da USP, 2007. Disponível em < http://www.fem.unicamp.br/~seva/artVAINER_EstudAvan_abril07.pdf -> Último acesso em 31 de janeiro de 2009. 51 LEI FEDERAL n. 9433/97. Art. 12, inciso IV. 52 Ibid. Art. 12, parágrafo 2º. 53 Ibid. Art. 13, caput e parágrafo único.
49
Portanto, em linha de princípio, a outorga para fins de aproveitamento
hidráulico somente pode ser concedida se estiver de acordo com as prioridades
estabelecidas pelo Plano de Recursos Hídricos. Ademais, a Resolução nº 37, de 26
de março de 2004, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos ( CNRH ),
estabelece diretrizes para a outorga de tais recursos para a implantação de
barragens em corpos d’água sob o domínio dos Estados, do Distrito Federal ou da
União.
Nesse ponto, oportuna a análise de Paulo Affonso Leme Machado54, que
condena a concessão de outorga sem a observância dos Planos de Recursos
Hídricos. Afirma, expressamente:
O setor elétrico obedece aos princípios, estratégias, diretrizes e concepções da nova Lei de Política Nacional de Recursos Hídricos, ainda que sua especificidade seja reconhecida. Na outorga para fins de geração de energia elétrica não se aplicará legislação de exceção, não se cogitando nem de favoritismo, nem de juízo preconcebido (...) Assim, a utilização dos potenciais hidráulicos para fins de geração de energia elétrica, ao aplicar a disciplina setorial específica, não pode ignorar e contrariar os Planos Estaduais de Recursos Hídricos e os Planos de Recursos Hídricos das bacias hidrográficas, mesmo não havendo Plano Nacional de Recursos Hídricos.
A resolução nº 37/2004 do CNRH traz os conceitos de “barragens” e
“reservatório” entre outros, declinando os documentos e procedimentos
necessários para a outorga de seu uso para empreendimentos hidrelétricos,
destacando que, dentre os documentos, deverá o pedido ser instruído com a
manifestação setorial, quando necessária, sendo que a ausência desta não é
obstáculo à continuidade do processo.55 Há previsão, ainda, de que - nos casos de
alteração significativa do regime do rio da quantidade ou qualidade do corpo
hídrico - deverão ser observadas também as diretrizes emanadas do respectivo
comitê de bacia hidrográfica.56
No caso de barragens para a produção de energia hidroelétrica, a outorga
de direito de uso de recursos hídricos será precedida da declaração de reserva de
disponibilidade hídrica.57
54 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 447. 55 CONSELHO NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS. Resolução n. 37/2004. Art. 4º, caput e parágrafos 1º e 2º. 56 CONSELHO NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS. Resolução n. 37/2004. Art. 4º, parágrafo.4º. 57 CONSELHO NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS. Resolução n. 37/2004. Art. 9º .
50
Desde mais especificamente a revisão do Manual de Inventário
Hidrelétrico de Bacias Hidrográficas de 1996 (ELETROBRAS), há uma
orientação no sentido de que os estudos de inventário levem em consideração
aspectos socioambientais, como ecossistemas terrestres e aquáticos, modos de
vida, populações indígenas, organização territorial e base econômica, para a
tomada de decisão sobre a melhor partição de quedas de um rio. No entanto, uma
questão surge: mesmo quando o Estudo de Inventário Hidrelétrico é elaborado
com observância de todas as dimensões socioambientais (o que, na maioria das
vezes não ocorre), esse é remetido apenas para a Agência Nacional de Energia
Elétrica - ANEEL para análise e aprovação, sem o prévio conhecimento do órgão
ambiental envolvido. O órgão licenciador somente toma conhecimento
oficialmente de algum aproveitamento quando recebe, bem depois, o pedido de
Licença Prévia – LP.58
2) ESTUDOS DE VIABILIDADE DOS APROVEITAMENTOS
HIDRELÉTRICOS:
A segunda etapa é relativa aos estudos de viabilidade de cada
aproveitamento hidrelétrico. Compreende o aprofundamento do conhecimento
sobre as condições físicas, ambientais e socioeconômicas da área onde se situa o
aproveitamento, possibilitando a elaboração dos estudos de viabilidade técnica,
socioambiental e econômica. Nesta etapa, são realizadas investigações de campo
no local, para dimensionamento do aproveitamento, do reservatório, da sua área
de influência, das obras de infra-estrutura local e regional necessárias. Com a
presença de equipes técnicas na região do projeto, são ocasionados os primeiros
movimentos e ações dos segmentos representativos das comunidades, associados
aos mais diversos interesses despertados pela futura usina hidrelétrica. Com base
nesses estudos, são preparados o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o
Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) de um empreendimento, para fins de
obtenção da Licença Prévia (LP), junto aos órgãos ambientais.
A Resolução n. 395/98 da ANEEL objetiva, portanto, estabelecer os
procedimentos gerais para (1) registro, seleção e aprovação de estudos de viabilidade
58 BURIAN, Paulo Procópio. Avaliação Ambiental Estratégica como instrumento de licenciamento
para hidrelétricas – o caso das bacias do rio Chopim no Paraná. Disponível pelo site < http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT06/paulo_burian.pdf>. Ultimo acesso em 25 de agosto de 2008.
51
e projeto básico de empreendimentos de geração hidrelétrica; (2) autorização de
exploração de potenciais hidráulicos até 30.000 kW; e (3) emissão de declaração de
utilidade pública, para fins de desapropriação (ou instituição de servidão
administrativa) das áreas necessárias à implantação de instalações de geração de
energia elétrica;
Após a conclusão, os estudos de viabilidade técnica e os estudos
socioambientais são submetidos, respectivamente, à aprovação da EPE e do órgão
ambiental (IBAMA ou órgão ambiental estadual, conforme o caso). A aprovação
desses estudos constitui a declaração da viabilidade técnica e socioambiental do
projeto que, assim, estará apto a integrar o programa de licitações.
Importante mencionar que o novo modelo normativo não define
claramente o papel socioambiental da EPE, mas esta é responsável pelo
cumprimento das exigências nas duas etapas anteriores e, também, pela obtenção
da licença prévia ambiental (LP), ficando as demais, ou seja, a Licença de
Instalação (LI) e a Licença de Operação (LO), sob responsabilidade do futuro
concessionário.59
Uma critica merece ser realizada quanto à alteração realizada na
legislação, neste particular, para atender aos reclamos dos empreendedores.
Anteriormente, segundo a sistemática regular do licenciamento ambiental, a
licença prévia somente poderia ser obtida após o término do processo de licitação
e o conhecimento do concessionário responsável pela exploração do potencial
hidráulico. Porém, o novo modelo instituído para o setor hidrelétrico acabou por
se curvar aos argumentos de seus defensores, no sentido de que nenhuma empresa
privada se interessaria em participar da licitação de um aproveitamento sem saber
se - e em que condições - seria obtida a licença ambiental. Esta inversão do
processo de licenciamento ambiental, por óbvio, gera prejuízos à análise
socioambiental do projeto, pois aquela empresa responsável pela elaboração do
EIA/RIMA e pela solicitação da licença prévia não necessariamente é a vencedora
da licitação.60
59 Sobre as regras para o licenciamento ambiental, veja-se, mais adiante, o capítulo próprio para tratar da matéria. 60 VAINER. Carlos B. Recursos hidráulicos: questões sociais e ambientais. Revista Estudos Avançados n 59, Dossiê Energia. São Paulo: Instituto de Estudos avançados da USP, 2007. Disponível em < http://www.fem.unicamp.br/~seva/artVAINER_EstudAvan_abril07.pdf -> Último acesso em 31 de janeiro de 2009.
52
De fato, pode ocorrer, como veremos no caso-referência do Complexo do
Rio Madeira, que o empreendedor, após a licença prévia, queira modificar o
projeto original ou discorde de determinadas premissas e critérios adotados no
EIA/RIMA apresentado. Isto, por si só, já é um complicador desnecessário a um
processo que, diga-se de passagem, já é por demais complexo.
Ademais, outra incoerência é que, na prática, o empreendedor obtém a
concessão sem ter assumido qualquer tipo de compromisso com as populações
atingidas ou com o órgão ambiental e, ainda, sem ter participado das audiências
públicas, momento singular em que se formaliza a participação pública no
processo de licenciamento ambiental.
A mera inclusão dos termos da licença ambiental, com eventuais
condicionantes, no edital de licitação, em nosso entender, apenas explicita uma
assunção formal de compromisso. Não traduz de forma legítima a preocupação do
vencedor da licitação em observar seus termos, já que este não participou da etapa
anterior, de extrema relevância para o processo de licenciamento ambiental.
3) ETAPA DE IMPLANTAÇÃO DO PROJETO.
A terceira etapa, de implantação do empreendimento, é de
responsabilidade do vencedor da licitação, a quem foi outorgada a concessão para
a construção e operação do empreendimento. Ela é fiscalizada pela ANEEL e
monitorada pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE). Verifica-se
com o efetivo início das obras civis, o que traz outras consequências para a região
do empreendimento, como a vinda de contingente populacional interessado em
oportunidades de trabalho, oferecidas pela construção da usina.
Cabe, neste momento, tratar do processo de licitação necessário para a
concessão de tal empreendimento.
Nesse particular, a Lei nº 8.666/93 institui normas para a realização de
licitações e para assinatura de contratos de concessão de serviços públicos, o que
inclui a outorga de concessões de aproveitamentos hidrelétricos.
Assim, em conformidade com os artigos 6° e 12º da referida Lei, deverão
ser realizados e aprovados estudos de impacto ambiental como requisito para
análise dos projetos básicos e executivos de obras e serviços. Dispõe, ainda, o
artigo 5º, que o poder concedente deve justificar a conveniência da outorga de
concessão, além de caracterizar seu objeto, área e prazo, previamente à publicação
53
do edital de licitação. A motivação, no caso da concessão de aproveitamento de
potencial hidráulico, advirá das análises que culminam com a elaboração do Plano
Decenal de Geração – PDG. Já a caracterização do empreendimento se dará após
a aprovação dos estudos de viabilidade, etapa em que se inicia a análise
individualizada dos aproveitamentos.
A lei de licitações, no art. 6º, inciso IX, traz a conceituação de Projeto
Básico como aquele que é o
conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução. O projeto básico deve conter:
1) o desenvolvimento da solução escolhida de forma a fornecer visão
global da obra e identificar todos os seus elementos constitutivos com clareza;
2) soluções técnicas globais e localizadas, suficientemente detalhadas, de
forma a minimizar a necessidade de reformulação ou de variantes durante as fases
de elaboração do projeto executivo e de realização das obras e montagem;
3) a identificação dos tipos de serviços a executar e de
materiais/equipamentos a serem incorporados à obra, bem como suas
especificações que assegurem os melhores resultados para o empreendimento,
sem frustrar o caráter competitivo para a sua execução;
4) informações que possibilitem o estudo e a dedução de métodos
construtivos, instalações provisórias e condições organizacionais para a obra, sem
frustrar o caráter competitivo para a sua execução;
5) subsídios para montagem do plano de licitação e gestão da obra,
compreendendo a sua programação, a estratégia de suprimentos, as normas de
fiscalização e outros dados necessários em cada caso; e
6) o orçamento detalhado do custo global da obra, fundamentado em
quantitativos de serviços e fornecimentos propriamente avaliados.61
Já o projeto executivo é definido como o conjunto dos elementos
necessários à execução completa da obra, de acordo com as normas pertinentes da
Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.62
61 LEI FEDERAL n. 8666/93. Art. 6º, inciso IX, alíneas a a f.
54
Por sua vez, tanto no projeto básico como no executivo certos requisitos
devem ser considerados: a) a segurança, a funcionalidade e a adequação ao
interesse público, bem como a economia na execução, conservação e operação; b)
a possibilidade de emprego de mão-de-obra, de materiais, de tecnologia e de
matérias-primas existentes no local para execução, conservação e operação; c) a
facilidade na execução, conservação e operação, sem prejuízo da durabilidade da
obra ou do serviço; d) a adoção das normas técnicas, de saúde e de segurança do
trabalho adequadas; e e) a previsão de impactos ambientais.
Além disso, um primeiro aspecto a ser ressaltado diz respeito à menção
que a lei de licitações faz aos impactos ambientais, deixando de aludir aos sociais.
Quanto a esse último requisito, é importante esclarecer que a sua caracterização
não deve ficar restrita à definição legal prevista no art. 1º da Resolução 01/86 do
CONAMA. Tal dispositivo considera como impacto ambiental somente alterações
de caráter físico, químico e biológico do meio ambiente, causadas por qualquer
forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou
indiretamente, afetem a saúde, a segurança, o bem estar da população, as
atividades sociais e econômicas, a biota, as condições estéticas e sanitárias do
meio ambiente e a qualidade dos recursos naturais.
Ao revés, uma noção mais ampliada de impacto ambiental deve ser
considerada a fim de abranger os aspectos sociais e econômicos do projeto em
discussão. Isso inclui a avaliação do impacto da obra sobre as atividades agrícolas
e industriais, o meio urbano ou rural, os usos potenciais dos recursos ambientais, a
saúde pública e a qualidade de vida em geral da população atingida.63
Na referida etapa, são intensificadas as negociações com representantes
tanto das comunidades locais e quanto daquelas atingidas pelas barragens,
especialmente com relação ao processo de remanejamento populacional (além de
discussões sobre mitigação e compensação pelos impactos socioambientais
ocasionados pelo empreendimento), culminando com a celebração de acordos
para a implantação desses programas, detalhados no Projeto Básico Ambiental
(PBA), que constitui instrumento para a obtenção da Licença de Instalação (LI).
62 LEI FEDERAL n. 8666/93. Art. 6º, inciso X. 63 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 31-32.
55
A seu turno, a Lei de Concessões ( Lei n. 8987/95 ), no artigo 23,
estabelece quinze cláusulas essenciais aos contratos de concessão - mas nenhuma
delas menciona impactos socioambientais. A única referência ao meio ambiente
vem ditada no artigo 29, inciso X, que inclui, entre as incumbências do poder
concedente “estimular o aumento da qualidade, produtividade, preservação do
meio ambiente e conservação”.64
O novo modelo normativo do setor elétrico perdeu a oportunidade, por
conseguinte, de suprir a aludida omissão, incluindo cláusulas de observância
obrigatória, no que diz respeito aos aspectos socioambientais já tradicionalmente
conhecidos na implantação de projetos hidrelétricos, diminuindo, por exemplo, a
margem de autonomia quanto à negociação individual que ocorre entre a empresa
e a população atingida, principalmente no que concerne ao pagamento de
indenizações e ao reassentamento obrigatório.
A não-intervenção do poder público em questões como essas faz com os
interesses do empreendedor, de diminuição dos custos com a produção de energia,
sobreponham-se aos interesses da população afetada, que lutam pela manutenção
de uma qualidade de vida digna. A equação é simples: a legislação prevê que o
poder público, como detentor do direito de uso do potencial hidrelétrico, possa
transferir para a iniciativa privada, por meio de concessão, tal direito de
exploração, porém não estabelece regras mínimas para a observância das
condições de vida e de moradia da população atingida pelo empreendimento. Tal
omissão, logicamente, contribui para o aumento da desigualdade e da exclusão
sociais.
Em virtude das irregularidades e contradições ocasionadas pelo novo
modelo normativo do setor elétrico, impõe-se, a adoção de uma “agenda
socioambiental” que
deverá contemplar questões herdadas da etapa anterior e questões decorrentes do próprio processo de reestruturação. Considerando as conseqüências que as decisões tomadas no âmbito do setor elétrico têm no processo de estruturação do território, no desenvolvimento regional, na minimização ou reiteração de desigualdades regionais e sociais, bem como na gestão de recursos ambientais, hídricos em primeiro lugar, é
64 VAINER. Carlos B. Recursos hidráulicos: questões sociais e ambientais. Revista Estudos Avançados n 59, Dossiê Energia. São Paulo: Instituto de Estudos avançados da USP, 2007. Disponível em < http://www.fem.unicamp.br/~seva/artVAINER_EstudAvan_abril07.pdf -> Último acesso em 31 de janeiro de 2009.
56
indispensável proceder a uma ampla e decisiva democratização do processo de planejamento de longo, médio e curto prazos do setor elétrico.65 Assim, após a apresentação dos procedimentos que constituem a fase
inicial do planejamento energético - sem analisar detalhadamente o processo de
licenciamento ambiental, a ser esmiuçado em capítulo posterior -, verifica-se que,
embora haja algumas referências na legislação setorial sobre a observância de
aspectos socioambientais, estas variantes ficam subdimensionadas quando da
concepção e da implantação dos projetos hidrelétricos. A dimensão econômico-
energética se sobrepõe àquela e acaba ditando os rumos do processo decisório, até
mesmo pelo fato de que a lei incumbe, ao setor energético, a condução desse
processo.
A articulação entre os diversos setores torna-se, enfim, difícil e passível de
entraves por envolver, no âmbito de cada um ( energético, ambiental ou hídrico )
o cumprimento de uma série de regras e de cronogramas de natureza complexa,
que dizem respeito a elementos técnicos (obras de engenharia e execução do
projeto); econômico-financeiros (financiamento); e socioambientais
(licenciamento ambiental, remanejamento populacional), com perspectivas
distintas.
Portanto, apesar dos significativos avanços da normativa na esfera
ambiental, ainda hoje se percebe que a primeira fase de planejamento, a cargo dos
órgãos integrantes do setor elétrico, não se coaduna com os ditames da tutela
ambiental presente na Constituição Federal, no estabelecimento do dever do poder
público de defesa e de preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado
(art. 225 da CF/88). O papel de condução do processo gera, no mais das vezes,
uma interferência indevida do setor energético na análise da viabilidade
ambiental, por meio de mecanismos de pressão para que as licenças ambientais
sejam rapidamente concedidas.66
As imperfeições acima identificadas, na legislação em vigor, e as
distorções que ocorrem no processo decisório, sob o ponto de vista
socioambiental, acabam por contribuir para o aumento dos conflitos inerentes à
65 Idem. 66 Esta afirmação será examinada mais detalhadamente por ocasião da análise dos casos-referência, especialmente, no do Complexo do Rio Madeira, em que se visualizou de forma explícita a interferência do Ministério das Minas e Energia junto ao IBAMA.
57
Planejamento do Setor Elétrico – Ciclo de Empreendimentos Hidroelétricos
Plano de Longo Prazo
(MME/ EPE)
Plano decenal(MME/ EPE)
Programa de licitação
(MME/ EPE)
Operação
Construção
Alternativas energéticas e
tecnológicas
Estudos de
inventário
Estudos de viabilidade
Projeto Básico
EPE
EPE
EPE – EIA RIMA e LP
Projeto executivo
Fonte: Desafios ambientais no novo modelo do setor elétrico, Seminário FBDS – A sustentabilidade socioambiental dos empreendimentos do setor elétrico. Silvia Helena M. Pires – 01/04/2005
Inventário hidroelétrico
Viabilidade + EIA
Projeto básico Construção Operação
Interação com agências ambientais, de recursos hídricos e
outros agentes
LP
Audiência pública
LI
Programas ambientais
LO
Implementação de programas ambientais
LO Renovação
Licitação
Aprovação dos estudos
Aprovação do Projeto
EPE Empreendedor
Articulação do processo de licenciamento com desenvolvimento dos projetos
Fonte: Desafios ambientais no novo modelo do setor elétrico, Seminário FBDS – A sustentabilidade socioambiental dos empreendimentos do setor elétrico. Silvia Helena M. Pires – 01/04/2005
implantação de tais projetos hidrelétricos. A seguir, serão abordados os impactos
socioambientais propriamente ditos, causados pela implantação deste tipo de
empreendimento no cenário brasileiro.
Os esquemas abaixo trazem, a nosso ver, uma melhor visualização do
sistema, do ponto de vista do setor energético:
Figura 1: Planejamento do setor elétrico – Ciclo de empreendimentos hidroelétricos
Fonte: Trabalho apresentado em Seminário do FBDS. PIRES, Silvia Helena M. A sustentabilidade socioambiental dos empreendimentos do setor elétrico. Rio de Janeiro, abril de 2005. Disponível em: http://www.fbds.org.br/IMG/pdf/doc-96.pdf.
Figura 2: Articulação do processo de licenciamento com desenvolvimento dos projetos
Fonte: Trabalho apresentado em Seminário do FBDS. PIRES, Silvia Helena M. A sustentabilidade socioambiental dos empreendimentos do setor elétrico. Rio de Janeiro, abril de 2005. Disponível em: http://www.fbds.org.br/IMG/pdf/doc-96.pdf
58
2.4
Os impactos socioambientais causados pelos empreendimentos
hidrelétricos67: uma breve abordagem.
A história social e ambiental do capitalismo tem sido uma história de
intensificação da produção e do uso da energia. A eletricidade (seja de que origem
for, térmica, hidrelétrica, eólica, termelétrica ou nuclear) deixa de ser apenas uma
forma de energia e passa a ser considerada, na sociedade capitalista, cada vez mais
como uma “mercadoria energética”, de relevante valor estratégico, necessário para
o desenvolvimento dos ciclos econômicos, para a realização de lucros e de
acumulação de capital. 68 Mas, essa intensificação energética tem altos custos
ambientais e sociais, especialmente, no tocante às hidrelétricas.
No caso da hidreletricidade, a energia, bem como a água necessária para a
sua produção, passam a ter uma natureza mercantilizada, “coisificada”, para
determinados segmentos da sociedade, o que contribui para o acirramento dos
confrontos socioambientais em torno da implementação de hidrelétricas: a visão
mercantil não pode impregnar totalmente a questão, devendo-se abrir espaço para
que outras visões, presentes na sociedade, também se manifestem.
A diversidade de valores atribuídos à água, à energia e às hidrelétricas
espelha, pois, a complexidade envolvida em todo o processo para a implantação
de tais empreendimentos: uma hidrelétrica para um engenheiro é um sistema de
técnicas e tecnologias, enquanto para um economista é um conjunto de recursos,
de receitas e despesas, por exemplo. Já para a população, diretamente atingida
67 No presente estudo serão considerados os empreendimentos hidrelétricos de grande porte, excetuando-se, assim, a abordagem das chamadas Pequenas Centrais Hidrelétricas ( PCH’s ), tomando como parâmetro normativo o disposto no art. Artigo 2º , inciso VII da Resolução CONAMA 01/86, in verbis: Art. 2º - Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto ambiental - RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e do IBAMA e1n caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como: (...) VII - Obras hidráulicas para exploração de recursos hídricos, tais como: barragem para fins hidrelétricos, acima de 10MW, de saneamento ou de irrigação, abertura de canais para navegação, drenagem e irrigação, retificação de cursos d'água, abertura de barras e embocaduras, transposição de bacias, diques.
68 FILHO, Arsênio Oswaldo Sevá. MEDEIROS, Josemar Xavier de. MAMMANA, Guilherme Pellegrini. DINIZ, Regina Helena Lima. Renovação e Sustentação da produção energética. In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p.355.
59
pelo empreendimento, representa uma mudança de vida, interpretada por alguns
positivamente – mas por outros não. Para um ribeirinho que vive da pesca e que
terá de sair do local onde retira a sua subsistência, à guisa de exemplificação, a
hidrelétrica representa um risco para a sua sobrevivência e de sua família. Estas
inúmeras formas de atribuir significado às hidrelétricas são indicativas da
intensidade dos conflitos em torno do tema, em razão dos impactos por aquelas
gerados.
Os conflitos socioambientais são, portanto, os que envolvem grupos
sociais diversos, com distintas formas de uso, apropriação e significação do
território. Eles ocorrem quando um desses grupos tem ameaçada a sua forma de
apropriação e uso do recurso ambiental, por impactos inesperados e indesejáveis
decorrentes da ação de outros grupos.69
Tais conflitos, aliás, devem ser analisados, simultaneamente, nos espaços
de apropriação material e simbólica dos recursos do território. No primeiro
espaço, desenvolvem-se as lutas sociais, políticas e econômicas pela apropriação
dos recursos naturais, in casu, recursos hídricos, e no segundo, encontram-se as
representações e desenvolve-se “uma luta simbólica para impor as categorias que
legitimam ou deslegitimam a distribuição do poder”70 sobre os recursos
ambientais.
Esta conceituação é importante para entender a natureza intrinsecamente
conflitiva do meio ambiente e como os conflitos em torno das hidrelétricas são
reiterados, a cada apresentação de novos projetos.
Restringindo, então, o debate ao contexto brasileiro, verifica-se que
significativos e constantes investimentos na construção de hidrelétricas geram
impactos relevantes, tanto do ponto de vista ambiental (localização, viabilidade
ambiental, perda da biodiversidade etc) quanto social (remanejamento
populacional, pagamento de indenizações, perda das referências sócio-culturais e
dos costumes etc ).
69 ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Henri (org). Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 26. 70 Ibid, p. 23.
60
Ora, os defensores das barragens hidrelétricas71 apontam para as
necessidades de desenvolvimento social e econômico que as barragens visam
satisfazer, como a irrigação, a geração de eletricidade e de novos empregos, o
controle de inundações, o fornecimento de água potável e a melhoria dos serviços
públicos, em geral. Já os que são contrários à sua implantação72 salientam a
natureza dos impactos adversos, tais como o aumento do endividamento, com
orçamentos indevidos, o deslocamento e o empobrecimento de populações, a
perda da biodiversidade dos ecossistemas e dos recursos pesqueiros importantes,
bem como a divisão desigual dos custos e dos benefícios.
Evidente é que, nesta Dissertação, não se poderão esgotar todos os
impactos socioambientais porventura advindos da implantação de hidrelétricas, já
que cada um dos casos ocorridos, ao longo da história brasileira, tem suas
particularidades, especialmente, no que diz respeito à caracterização e localização
da área de implantação. Tal tentativa seria, antes de tudo, uma forma generalizante
e inadequada de tratar a questão, gerando a perda da especificidade dos casos
concretos da vida social. Porém, nosso esforço será no sentido de apresentar os
principais impactos socioambientais de hidrelétricas, a partir de casos concretos já
estudados por doutrinadores de outros campos do saber, situando, assim, tais
impactos no tempo e no espaço.
Assim, há impacto ambiental quando “se avalia que uma atividade ou ação
origina ou produz uma alteração ou modificação do meio ou em alguns dos
componentes do sistema ambiental.”73
71 Em geral, incluem-se nesta categoria as empresas envolvidas na formação da estrutura de produção da unidade de produção de energia hidrelétrica (UHE), no Brasil, que abrange os seguintes setores: estudos preliminares e projeto, construção civil da barragem e fabricação de material elétrico. Estas empresas estariam constituindo um oligopólio em torno da venda do produto “UHE”. Cf. MIELNIK, O. NEVES, C. C. Características da estrutura de produção de energia hidrelétrica no Brasil. In: ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 17-38. Em muitos casos, também, os próprios governos têm interesse na aprovação dos projetos hidrelétricos, em razão, especialmente, dos recursos decorrentes da compensação financeira (Lei n. 7990/89 e Decreto n. 3739/2001). 72 Dentre estes, citamos, somente para exemplificar, movimentos sociais, como o MAB, associações, ONG’s ou OSCIP’s (Organização da sociedade civil de interesse público) que tenham como objeto a proteção ao meio ambiente (Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, Apremavi (Associação pela preservação do meio ambiente e da vida), Rios Vivos, Comissão de Preservação da Espécie e do Meio Ambiente (CDPEMA), International Rivers, entre outros) e comissões internacionais independentes como a Comissão Mundial de Barragens. 73 SCHAEFFER, Roberto. Impactos Ambientais de grandes usinas hidrelétricas no Brasil. Dissertação de Mestrado. COPPE/UFRJ, 1986.
61
Partiremos, como já mencionado, de um conceito ampliado de impacto
ambiental, abrangendo não somente os aspectos bio-físico-químicos como
também os efeitos da obra ou atividade sobre as atividades agrícolas, industriais, o
meio urbano ou rural, os usos potenciais dos recursos ambientais, a saúde pública
e a qualidade de vida em geral da população atingida.74
ROSA e SCHAEFFER (1988:180-3)75 chamam a atenção para o fato de
que, nos países em desenvolvimento, o conceito de impacto ambiental é mais
amplo, envolvendo não somente a variável ambiental, como também a
socioeconômica e a política. Fora isso, o processo de tomada de decisão quanto à
implantação de hidrelétricas deve ser democrático e técnico ao mesmo tempo.
Salientam, ainda, que, da maneira como a hidreletricidade está concebida, ela
beneficia e impacta segmentos bastante diferenciados da sociedade, pois o
desenvolvimento da economia, aqui, é altamente dependente do incremento do
suprimento de energia – o PIB do país varia fortemente com o insumo de energia -
, o que não acontece em países desenvolvidos.
Afirmam os autores que, até os anos 70, as preocupações das empresas
concessionárias de energia elétrica do Brasil com os impactos ambientais se
resumiam praticamente à relocação de vias de acesso, linha de transmissão de
energia e linhas telefônicas, à construção de novos acessos e de portos e à
relocação de cidades. Após tal período, a construção de empreendimentos
hidrelétricos passou a ser precedida de estudos de impacto ambiental, o que tem
exigido das concessionárias de energia a mudança de postura na área ambiental,
com a adoção de modelo progressivamente mais adequado de práticas, apesar de
ainda insatisfatório.
Com relação à Usina de Itaipu, por exemplo, houve impactos
consideráveis sobre o meio físico e biótico - perda de recursos naturais e
paisagísticos (Salto de Sete Quedas); os problemas socioculturais também foram
de grande proporção, com a desapropriação de mais de 6.000 propriedades
espalhadas por oito municípios (lado brasileiro) e 1.200 no lado paraguaio, além
74 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 31-32. 75 ROSA, Luiz Pinguelli. SCHAEFFEr, R. Impactos ambientais e conflitos sociais: um paralelo entre usinas hidrelétricas e nucleares. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, p. 180 e 183.
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da submersão de sítios arqueológicos. Já no tocante à Usina de Tucuruí, vários
impactos foram verificados, podendo-se citar a submersão de vários sítios
arqueológicos não estudados, 3.350 famílias (totalizando 17.319 pessoas)
obrigadas a abandonar suas terras e a inundação de nove reservas indígenas.76 77
Quanto à implantação da hidrelétrica de Sobradinho78, ocorrida no período
do governo militar Médici, observa-se uma nítida mudança no rumo dos projetos
previstos pelo poder público para o Vale do Rio São Francisco. Se, antes, havia
uma preocupação na fixação da população no local, com a valorização econômica
de tal região voltada para o desenvolvimento de agricultura, depois, ficou clara a
prioridade aferida à produção de energia.
Os principais impactos socioeconômicos ocorridos79, além da transferência
da população rural de seu povoado originário para o núcleo situado na borda do
lago construído pela CHESF, foram: 1) a descapitalização cumulativa das
populações afetadas pelo empreendimento, gerada pelo despreparo das glebas
recebidas para o desenvolvimento da agricultura e também pelo pagamento de
indenização inadequada e insuficiente, sem a fixação prévia de critérios e em
momento inoportuno – antes do reassentamento, de maneira que a população já
chegava ao núcleo descapitalizada; 2) a perda da criação também representou
importante impacto no fundo de reserva e de acumulação da população rural; 3) a
desestruturação das relações socioculturais da população rural que se encontrava
76 ROSA, Luiz Pinguelli. SHAEFFER, R. Impactos ambientais e conflitos sociais: um paralelo entre usinas hidrelétricas e nucleares. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 188-190. 77 Há divergência quanto aos números apresentados acima, pois consta do Panorama do Setor de Energia Elétrica do Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 389-390, que no lado brasileiro, o empreendimento atingiu 12 municípios e quatro núcleos urbanos e remanejou 40.000 pessoas. 78 Situada no submédio do Rio São Francisco, na Bahia, foi construída pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco ( CHESF ), concessionária da Eletrobrás. Os trabalhos para sua implantação começaram em 1974 e exigiram o desalojamento de aproximadamente 60.000 pessoas, segundo dados oficiais ou 72.000, segundo dados da organização sindical dos trabalhadores rurais. Cf. SIGAUD, Lygia. Efeitos Sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho. In: ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 88-89. 79 SIGAUD, Lygia. Efeitos Sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes
projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 93-94.
63
na área do reservatório ( com verdadeiro “redimensionamento de unidades sociais
preexistentes e uma alteração das relações entre elas”80, além de perda dos
elementos de identidade do povoado - nome, santo padroeiro, festas religiosas, as
atividades desenvolvidas pelos moradores etc. ).; 4) A inviabilização da
agricultura da vazante; 5) a alteração dos hábitos das populações afetadas ( a
plantação passou a ser realizada na margem do lago abaixo da cota máxima do
reservatório – pelas melhores condições físicas destas -, correndo o risco de perda
da colheita pelas inundações causadas com a subida do nível do reservatório; o
“sobe e desce” das águas imposto pelas barragens fez desaparecer, ainda, o
esquema de referências da população, como a forma de proceder no cultivo
agrícola diante do movimento das águas); 6) a inviabilização da atividade de
pesca tradicional, através do uso de pequenas embarcações; 7) alterações na infra-
estrutura dos municípios impactados pela hidrelétrica, com a modernização da
região (pavimentação de rodovias, construção de agências bancárias e de canais
de irrigação, fornecimento de energia elétrica) – atraindo investidores de fora,
especialmente grileiros, que passaram a tomar as terras da região, sem titulação
legal formalizada.
Impactos semelhantes foram notados no caso da hidrelétrica de
Machadinho81, especialmente no tocante ao tratamento desumano e autoritário
conferido à população afetada pela empresa ELETROSUL, sem nenhum
planejamento prévio sobre o seu destino e com a preocupação constante de
redução de custos sociais.82
No entanto, diferentemente do caso anterior, pôde-se notar que, em razão
da mobilização política e organizada da população afetada - desde o início de todo
o processo -, com alianças realizadas junto ao movimento sindical e à Igreja
Católica83, a ELETROSUL mudou um pouco sua postura, preocupada com sua
imagem frente à opinião pública. Ressalte-se que a resistência organizada impôs
80 Idem. p. 123. 81 Usina hidrelétrica instalada entre os municípios de Maximiliano de Almeida – RS e Piratuba – SC, tendo os estudos para sua implantação sido realizados desde a década de 60, porém com funcionamento somente no início de 2002, após processo licitatório para exploração do potencial hidrelétrico e licenciamento ambiental. 82 SIGAUD, Lygia. Efeitos Sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes
projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 152-161. 83 Essa situação se tornou possível notadamente pelos contextos político e econômico, já que, no período do projeto de Machadinho, já havia uma ligeira abertura para a “redemocratização” do regime.
64
mudanças no projeto original, com a redefinição do eixo da barragem e mudança
da quota, reduzindo significativamente a área inundada e o número de famílias
atingidas.
Destaca-se, neste período, inclusive, a criação da Comissão de Barragens
(dezembro de 1979) antes mesmo da decisão do Estado em construir a usina,
movimento extremamente importante que ensejou, posteriormente, a criação da
Comissão Regional de Atingidos por Barragens (CRAB)84 e de Comissões Locais.
A radicalização desse movimento, que contou com a adesão de vários
segmentos da sociedade regional, inclusive prefeitos e cooperativas, e com a
realização de atos como a Romaria da Terra (da qual participaram cerca de vinte
(20) mil pessoas, com o lema “Águas para a vida, não para a morte”), além de
iniciativas diretas impedindo a ação de técnicos da ELETROSUL no local, deu
ensejo, em 1987, à assinatura de um acordo histórico entre esta e o CRAB.85
O referido acordo representava, de um lado, a aceitação tácita da
construção das barragens situadas na bacia do Rio Uruguai pelas lideranças do
CRAB e, de outro, o reconhecimento pela ELETROSUL e pelo setor elétrico
brasileiro do CRAB como representante legítimo dos atingidos. As principais
conquistas do movimento, através do referido acordo, foram a afirmação da
negociação coletiva, com a presença de representantes do CRAB, o
reconhecimento do direito de reassentamento de todos os atingidos pelo
deslocamento compulsório, proprietários de terras ou não, e a conciliação do
cronograma das obras com o de negociação e solução dos problemas sociais.86
A Comissão Regional de Atingidos por Barragens do alto Uruguai
(CRAB), então, surgiu nesse período (final da década de 70), em meio à crise da
84 A Comissão Regional de Atingidos por Barragens era composta por uma coordenação integrada por várias entidades: Sindicatos dos Trabalhadores Rurais dos Municípios de Marcelino Ramos, Aratiba, Maximiliano de Almeida (no Rio Grande do Sul), Ita, Piratuba, Diocese de Chapecó (em Santa Catarina); Igreja Evangélica de Confissão Luterana e Comissão Pastoral da Terra. Tinha como função promover a discussão sobre os “problemas das barragens”, acompanhar os “atingidos” durante a construção, realizar análise científica das conseqüências e soluções das barragens, fornecer informações aos agricultores, para que pudessem se defender, servindo de ponto de apoio aos agricultores e demais atingidos. Cf. SIGAUD, Lygia. Efeitos Sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e
nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 132-134. 85 VAINER, Carlos B. O plano de Recuperação e Desenvolvimento Econômico e Social das
Comunidades Atingidas pelas Barragens de Ita e Machadinho. Uma experiência inovadora de
extensão universitária e de planejamento. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XVII, No I, 2003, p. 135-153. 86 Ibid, p. 139-140.
65
ditadura militar e ao ambiente de crescentes lutas e reivindicações populares, –
sofrendo a influência dos efeitos da construção de Itaipu e da previsão de novas
usinas para a Bacia do Rio Uruguai, dentre elas, a de Machadinho. A referida
organização foi se consolidando e, ao longo da década de 80, vários encontros
regionais foram realizados, em razão dos problemas sociais decorrentes de usinas
em diversas regiões brasileiras, como na bacia do São Francisco e em Tucuruí, no
Rio Tocantins, contando com o apoio de movimentos sindicais, inclusive, como o
do Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da CUT. Todas essas
articulações deram ensejo, em meados de 1992, à criação de um movimento
nacional, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), de notória
importância no campo da luta tanto pelo respeito aos direitos das populações
afetadas no processo de implantação das hidrelétricas como contra um modelo de
desenvolvimento concentrador de terras e de riquezas. 87
Sua base social é predominantemente composta de pequenos agricultores e
trabalhadores rurais88 e se distingue de outros movimentos populares por sua forte
consciência ambiental. Adota como valores fundamentais, dentre outros, a
primazia da democracia pela base e da ação direta de massas no processo de
negociação, a autonomia do movimento em relação ao Estado e aos partidos
políticos, o reconhecimento de um sujeito político popular coletivo.
Hoje, após quase trinta anos de luta, é notória a consolidação do MAB
como movimento em defesa da democratização da política energética, da busca
por fontes alternativas de energia, da redução do desperdício energético e do fim
dos subsídios destinados a indústrias eletrointensivas voltadas para exportação.89
Com isso, evidencia-se como agente articulador fundamental na busca da
87 VAINER, Carlos B. Águas para a vida, não para a morte. Notas para uma história do movimento de atingidos por barragens no Brasil. In: ACSELRAD, Henri. HERCULANO, Selene. PADUA, José Augusto (org). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Ford, 2004, pp. 187-193. 88 Este segmento predominante não impediu, todavia, o crescimento do movimento, com a incorporação de pequenos comerciantes, profissionais de pequenos povoados, médios proprietários rurais e a aliança com sindicatos rurais e com outros movimentos populares com o Movimento dos Sem Terra (MST). Além disso, o MAB, como importante agente de desenvolvimento local, busca parcerias com ONG’s ambientalistas e com a comunidade científica na busca de ampliação do conhecimento sobre questões técnicas e de parceiros no processo de resistência. 89 VAINER, Carlos B. O plano de Recuperação e Desenvolvimento Econômico e Social das
Comunidades Atingidas pelas Barragens de Ita e Machadinho. Uma experiência inovadora de
extensão universitária e de planejamento. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XVII, No I, 2003, p. 141.
66
concretização da participação pública no processo decisório de implantação de
hidrelétricas no Brasil.
Importante destacar, ainda nesse tópico, o trabalho desenvolvido pela
Comissão Mundial de Barragens90, instituída desde 1998, que, após estudo de
diversos casos de implantação de hidrelétrica em todo o mundo, aponta para os
seguintes impactos socioambientais causados pela construção de hidrelétricas:
1) A destruição de florestas e habitats selvagens, o desaparecimento de espécies e
a degradação das áreas de captação a montante devido à inundação da área do
reservatório;
2) A redução da biodiversidade aquática, a diminuição das áreas de “desova” a
montante e à jusante, assim como o declínio dos serviços ambientais prestados
pelas planícies aluviais a jusante, brejos, ecossistemas de rios e estuários, e
ecossistemas marinhos adjacentes;
3) Os impactos cumulativos sobre a qualidade da água, inundações naturais e a
composição de espécies quando várias barragens são implantadas em um mesmo
rio;
4) A emissão de gases que contribuem para o efeito estufa, devido à
decomposição de vegetação e ao influxo de carbono, na formação dos
reservatórios;91
Além disso, destaca-se:
A) A sedimentação e a conseqüente redução, a longo prazo, da capacidade de
armazenamento sentidos particularmente nas bacias com taxas elevadas de erosão
de origem geológica ou humana, em barragens construídas nas extensões a jusante
dos rios e em barragens com reservatórios de menor capacidade;
90 Grupo de Trabalho criado no âmbito do ONU, composto por integrantes dos governos, instituições multilaterais, empresas construtoras, ambientalistas e movimentos de atingidos por barragens de todo o mundo, para analisar os conflitos na implantação das barragens em todo o mundo e propor novas soluções. No total, foram visitadas 100 usinas no mundo e elaborados 15 estudos de casos, sendo que a usina Tucuruí, no Brasil, foi o único caso estudado na América Latina. A comissão ( CMB ) apresentou relatório final publicado em 2000, cujo sumário encontra-se disponível em: http://www.dams.org//docs/overview/cmb_sumario.pdf . Último acesso em 29 de setembro de 2008. 91 A intensidade dessas emissões varia muito. A comissão, analisando os dados preliminares do estudo de caso sobre uma usina hidrelétrica no Brasil, afirma que o nível bruto dessas emissões é significativo quando comparado com as emissões de usinas termelétricas equivalentes.
67
B) O alagamento e a salinização afetam um quinto das terras irrigadas do mundo -
incluindo terras irrigadas por grandes barragens - e apresentam graves impactos de
longo prazo, muitas vezes permanentes, sobre a terra, a agricultura e a
subsistência da população, se não for realizada a reabilitação ambiental;
Por outro lado, com relação à efetividade das medidas mitigadoras
adotadas, a Comissão concluiu que:
a) O uso de escadas de peixes para mitigar os impactos sobre as espécies
migratórias não teve sucesso, porque, muitas vezes, a tecnologia não era
adequada para os locais e as espécies em questão.
b) Não é possível mitigar vários dos impactos de uma represa sobre os
ecossistemas e a biodiversidade terrestres (tentativas para o resgate de
animais silvestres tiveram pouco êxito a longo prazo).
c) A eficácia das medidas mitigadoras somente ocorre a partir de uma viável
base de informações, da cooperação antecipada entre ecologistas,
projetistas da barragem e pessoas afetadas, e do monitoramento e
acompanhamento regulares da eficácia das medidas de mitigação.
No que diz respeito aos impactos sociais, o relatório da CMB é enfático ao
afirmar que não são corretamente avaliados e sequer considerados na implantação
das hidrelétricas, acarretando conseqüências danosas para a vida, para a saúde e
para a subsistência das pessoas. Reporta que milhares de indivíduos deslocados
pelas barragens (entre 40 e 80 milhões de pessoas) sofreram prejuízos elevados
em seus meios de subsistência. Por outro lado, a produtividade futura dos recursos
naturais, advindos da prática agrícola desempenhada, foi colocada em risco.
Ressalta, ainda, que muitos dos deslocados não foram reconhecidos (ou
cadastrados) como tal e, portanto, não foram reassentados nem indenizados.
Mesmo nos casos em que houve indenização, ela constantemente se revelou
inadequada e, nos casos em que as pessoas deslocadas foram devidamente
cadastradas, muitas não foram incluídas nos programas de reassentamento. Nesses
últimos, por fim, constatou-se que as pessoas raramente tiveram seus meios de
subsistência restaurados, pois os programas de reassentamento, em geral,
concentram-se na mudança física, excluindo a recuperação econômica e social dos
deslocados.
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Relevante, ainda, mencionar as recomendações trazidas pelo relatório da
Comissão Mundial de Barragens92. Estas envolvem: aumentar a eficiência dos
sistemas já implantados; evitar e minimizar os impactos sobre o meio ambiente,
adotar a análise participativa das opções (em todas as fases de planejamento e
implementação, promovendo resultados negociados) e necessidade de
desenvolvimento, valendo-se de critérios diversos (dentre tais opções incluem-se a
redução do consumo, reciclagem e alternativas tecnológicas e políticas capazes de
promover um uso mais eficiente da água e da eletricidade pelo usuário final);
assegurar a melhoria dos meios de subsistência das pessoas desalojadas e afetadas
pelos projetos de barragens, resolver injustiças e desigualdades passadas,
transformando as pessoas afetadas pelo projeto de barragens em seus beneficiários,
realizar monitoramento constante e revisões periódicas dos projetos; e elaborar,
aplicar e reforçar incentivos, sanções e mecanismos de apelação – especialmente na
área de desempenho ambiental e social.
Nos casos-referência apresentados a seguir, abordar-se-ão os impactos
socioambientais dos empreendimentos hidrelétricos e, como será demonstrado,
suas atuações não diferem, em grande medida, das conclusões acima, advindas do
relatório da CMB.
92 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS. Barragens e Desenvolvimento: um novo modelo
para tomada de decisões. Um sumário. p. 24. Disponível em: http://www.dams.org//docs/overview/cmb_sumario.pdf. (Acesso em 29 de setembro de 2008).
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