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2 Hidrelétricas no Brasil 2.1 Retrospectiva histórica no contexto da política energética para exploração da hidroeletricidade no Brasil. Para que se possa melhor compreender a complexidade do setor hidrelétrico brasileiro e todas as suas implicações, inclusive socioambientais, necessário se faz procedermos a um breve relato sobre a retrospectiva histórica do setor no cenário brasileiro. Nesse relato, prioritariamente histórico, destacaremos os fatos mais marcantes: não interessa na presente Dissertação, detalhar acerca das diversas disputas entre setores da esfera pública e da privada na condução de tal política no Brasil. Nosso objetivo, na verdade, centra-se na contextualização da questão no cenário brasileiro, para que, depois, possam ser discutidas as hipóteses pertinentes ao nosso estudo. Outro dado que merece registro é o fato de que muitas das importantes modificações estruturais do setor ocorreram após um intenso processo de luta e resistência, com a interferência de diversos atores, representando interesses múltiplos no desenvolvimento de tal atividade econômica. Assim, o início do processo de produção de energia (à base de hidroeletricidade) se deu, no Brasil, no final do século XIX, tendo passado, durante todos esses anos, por diferentes etapas, até chegar ao formato em que atualmente se encontra. Uma circunstância preponderante e merecedora de ser considerada desde logo, de acordo com Mielnik e Neves ( 1988 ) 1 , é o fato de que, até a primeira metade do século XX, duas grandes vertentes condicionaram a estruturação do setor hidrelétrico: a privada e a institucional. Mas, embora com alguns aspectos 1 MIELNIK, Otávio. NEVES, C.C. Características da estrutura de produção de energia hidrelétrica no Brasil. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, p. 17.

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Hidrelétricas no Brasil

2.1

Retrospectiva histórica no contexto da política energética para

exploração da hidroeletricidade no Brasil.

Para que se possa melhor compreender a complexidade do setor

hidrelétrico brasileiro e todas as suas implicações, inclusive socioambientais,

necessário se faz procedermos a um breve relato sobre a retrospectiva histórica do

setor no cenário brasileiro. Nesse relato, prioritariamente histórico, destacaremos

os fatos mais marcantes: não interessa na presente Dissertação, detalhar acerca das

diversas disputas entre setores da esfera pública e da privada na condução de tal

política no Brasil. Nosso objetivo, na verdade, centra-se na contextualização da

questão no cenário brasileiro, para que, depois, possam ser discutidas as hipóteses

pertinentes ao nosso estudo.

Outro dado que merece registro é o fato de que muitas das importantes

modificações estruturais do setor ocorreram após um intenso processo de luta e

resistência, com a interferência de diversos atores, representando interesses

múltiplos no desenvolvimento de tal atividade econômica.

Assim, o início do processo de produção de energia (à base de

hidroeletricidade) se deu, no Brasil, no final do século XIX, tendo passado,

durante todos esses anos, por diferentes etapas, até chegar ao formato em que

atualmente se encontra.

Uma circunstância preponderante e merecedora de ser considerada desde

logo, de acordo com Mielnik e Neves ( 1988 )1, é o fato de que, até a primeira

metade do século XX, duas grandes vertentes condicionaram a estruturação do

setor hidrelétrico: a privada e a institucional. Mas, embora com alguns aspectos

1 MIELNIK, Otávio. NEVES, C.C. Características da estrutura de produção de energia hidrelétrica no Brasil. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes

projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, p. 17.

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em comum, tais vertentes atuaram em campos distintos, medindo forças para

dirigir o processo.

Assim, os primeiros aproveitamentos hidrelétricos foram realizados no

Estado de Minas Gerais, por iniciativa do setor industrial ( têxtil e de mineração ).

Inaugura-se, então, em 1883, a primeira unidade de produção de energia

hidrelétrica ( UHE ), com vistas à autoprodução – a Usina de Ribeirão do Inferno.

Já a primeira UHE com serviço de utilidade pública foi a Usina de Marmelos-

Zero, de propriedade da Companhia Mineira de Eletricidade, operativa a partir de

1889.2

Cumpre ressaltar que, até meados dos anos 50, os interesses de duas

grandes empresas estrangeiras comandaram a definição do processo de

estruturação do referido setor no Brasil: a Brazilian Traction, Light & Power (

LIGHT ) e a American Foreign Power Company ( AMPORP ). A primeira

assumiu a exploração dos serviços públicos do Rio de Janeiro e de São Paulo,

entre fins do século XIX e início do século XX. Durante a primeira metade deste

último, construiu as UHE’s de Edgar de Souza ( SP ), Fontes ( RJ ), Pombos (

MG-RJ ) e UHE Henry Borden I ( Cubatão-SP ). Já a American Foreign Power

Company ( AMPORP ) estabeleceu-se no Brasil em 1924, controlada pela

empresa americana Eletric Bond and Share Company ( EBASCO ). Após adquirir

um conjunto de pequenas empresas de geração, distribuição e transmissão de

energia, consolidou-se no setor empresarial através da constituição da Companhia

Paulista de Força e Luz, cujo processo se repetiu em outros estados brasileiros. 3

Todavia, em decorrência de insatisfação do setor privado com a margem

de autofinanciamento oferecida pelas tarifas de energia elétrica - não sendo

possível determinar o custo de kWh produzidos pelas empresas – uma

reestruturação do setor, ocorrida anos mais tarde, foi motivada, com o

estabelecimento, em 1962, da ELETROBRÁS – Centrais Elétricas Brasileiras

S.A. - empresa de economia mista.4 5

2 Ibid. p. 18. 3 Ibid. pp. 18-19. 4 Ibid. pp.19-20. 5 As modificações implementadas foram no sentido de que caberia ao setor estatal a ampliação da capacidade instalada, ou seja, de geração da energia, enquanto o setor privado ficaria com a distribuição energética. Essas mudanças estruturais causaram uma rearticulação dos interesses privados, tendo as empresas se voltado para atender a determinados setores na área da produção energética, como os da construção civil; estudos e projetos; fornecimento de material; equipamentos etc.

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Assim, na década de 60, ocorreu a estatização das empresas de produção

da energia elétrica, tendo as ações e direitos das empresas Light e Ebasco sido

adquiridas pela Eletrobrás.

No setor público, em meio às divergências estabelecidas com o setor

privado entre o período de 1940 a 1962, foram criadas a Companhia Hidroelétrica

do São Francisco ( CHESF ), em 1945, e, na década de 50, a CEMIG ( 1952 ) e

FURNAS (1957). A seu turno, a fim de garantir a captação de financiamentos

necessários à ampliação da capacidade instalada, o governo federal criou, em

1953, o Fundo Federal de Eletrificação, tendo o BNDES - constituído em 1952 -

sido mobilizado para administrar tal Fundo e financiar projetos. Foi instituído,

ainda, o Imposto Único sobre Energia Elétrica – IUEE -, para contribuir para a

estruturação das empresas públicas do setor. Importante mencionar, ainda, a

criação do Ministério de Minas e Energia, em 1960, então responsável pela

política energética do país.6

Foi na Era Vargas, então, que a decisão do governo no sentido da ampla

industrialização do país acarretou investimentos de grande monta em infra-

estrutura. A energia assume, pois, uma posição estratégica para a concretização

desse projeto, o que impôs a necessidade de edição de uma legislação federal que

unificasse o tratamento jurídico dado à atividade em todo o país.

A Constituição Federal de 1934, portanto, previu a competência da União

para legislar sobre energia elétrica.7 Outro marco jurídico importante dentro de tal

contexto histórico foi a edição, na forma de decreto do então governo provisório

de Getúlio Vargas, do Código de Águas (Decreto 24.643, de 10 de julho de 1934).

Representou o primeiro diploma legal que possibilitou ao Poder Público

disciplinar o aproveitamento industrial das águas e, de modo especial, o

aproveitamento e exploração da energia hidráulica. Pode-se inclusive afirmar que

juntamente com o Código de Minas, foi o de Águas a contribuição mais

importante do governo provisório, na esfera jurídica, no sentido da intervenção do

Estado no domínio econômico8. E, apesar de ser um texto bastante antigo, ainda é

6 Ibid. p. 21-24. 7 LANDAU, Elena. Introdução. O setor elétrico em uma visão introdutória. LANDAU, Elena (coord). Regulação Jurídica do Setor Elétrico. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 3. 8 BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, p. 107.

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vigente (mesmo com as alterações em razão da nova ordem constitucional

instituída a partir de 1988, bem como de leis especiais posteriores).9

Importante também esclarecer que, durante o governo constitucional de

Getulio Vargas, a aplicação do Código de Águas permaneceu suspensa em razão

de uma série de fatores: a inconstitucionalidade da lei foi argüida por diversas

vezes, tendo o TJSP acatado uma das argüições propostas, em dezembro de 1936,

porém, o STF a rejeitou, em 1938; a falta de regulamentação do referido diploma

também contribuiu para que este não tivesse aplicabilidade imediata. Assuntos

como a questão da revisão dos contratos das concessionárias foram

sucessivamente adiados, em virtude da resistência de empresas estrangeiras à

implantação das novas regras, que previam um controle mais rígido do poder

público sobre as concessionárias, com a fiscalização técnica, financeira e contábil

de todas as empresas do setor.

O Código de Águas estabelecia, como postulado básico e inovador no

regime jurídico brasileiro, a distinção entre a propriedade do solo e a propriedade

das quedas d’água, bem como outras fontes de energia hidráulica para efeito de

exploração ou aproveitamento industrial. As quedas d’água eram consideradas

bens imóveis, distintos do solo onde se encontravam de propriedade da União,

sendo que o seu aproveitamento hidrelétrico somente poderia ser realizado através

de autorizações ou concessões da União (arts. 139 e 147 do Decreto 24.643/34).

Com o crescente processo de industrialização e urbanização10 (e

conseqüente aumento por demanda energética) novos potenciais passaram a ser

explorados pelas empresas estatais. Por outro lado, novas usinas hidrelétricas

como Paulo Afonso, no rio São Francisco (início da operação em 1955), Salto

9 BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 110-113. 10 Durante o governo do Presidente Juscelino Kubitschek (1956-1960), houve relevante crescimento da produção industrial, que atingiu no país índices jamais vistos antes na história brasileira.. A política desenvolvimentista de Kubitschek, baseada no chamado Plano de Metas, foi responsável pela instalação, em tempo recorde, dos setores mais modernos e dinâmicos da indústria brasileira, com destaque para os ramos automobilísticos, da construção naval e da mecânica pesada, controlados em grande parte pelo capital estrangeiro. Além do avanço, no referido governo, da produção de energia elétrica, duas grandes questões estiveram presentes: a questão tarifária e a dos espaços de atuação das empresas públicas e das empresas particulares, sobretudo as estrangeiras no setor. Verificou-se, nesse período, uma divisão de atribuições entre o capital público e o capital privado. BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 182-191.

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Grande, no rio Paranapanema, (1960) e Três Marias, no rio São Francisco (1962),

foram construídas.

Em 1962, o governo brasileiro, em parceria com o Banco Mundial e com o

Fundo Especial das Nações Unidas, contratou o Consórcio de Consultoria

Canambra, constituído pelas empresas canadenses Montreal Engineering e

Crippen Engineering, e pela empresa americana Gibbs & Hill. Com isso,

obtiveram-se o primeiro levantamento sistemático dos potenciais hidrelétricos dos

rios das regiões Sudeste e Sul e a sugestão de um conjunto de obras de

hidrelétricas e linhas de transmissão de energia elétrica.

A proposta de expansão da indústria elétrica tinha, como uma de suas

características, o aproveitamento de um conjunto de projetos hidrelétricos a fim de

combinar aproveitamentos de uma mesma bacia hidrográfica.11

No referido programa de obras, elaborado pela Canambra, para o período

de 1964-1966, estava prevista a construção das seguintes hidrelétricas: a) Funil,

com 230 MW de potência, no rio Paraíba pela CHEVAP, empresa estatal federal

pertencente a FURNAS; b) Estreito, com 600 MW, a ser construída no rio Grande

por Furnas; c) Xavantes, com potência de 400 MW, a ser construída no rio

Paranapanema pelas Centrais Elétricas de Urubupungá, empresa estatal do Estado

de São Paulo; d) reforma de Marechal Mascarenhas de Moraes (Ex-Peixoto), com

300 MW de aumento de potência, localizada no rio Grande, incorporada a Furnas;

e e) Jupiá, com 1.200 MW, no rio Paraná, pelas Centrais Elétricas de Urubupungá.

Com o início da ditadura imposta pelo governo militar no Brasil, a partir

de 1964, delineou-se uma nova ordem antidemocrática. Esta se caracterizou pela

concentração de poderes excepcionais nas mãos do Poder Executivo Federal e

redução do campo de atuação do Legislativo Federal. Tais fatores favoreceram a

política de implementação de diretrizes governamentais, inclusive na área

econômica, com vistas à sua estabilização.12

11 PINHEIRO, Maria Fernanda. Problemas Sociais e Institucionais causados por hidrelétricas no

Brasil e no exterior. Dissertação de Mestrado. Disponível em www.fem.unicamp.br/rseva/dissertação_final_Maria_ Fernanda_Pinheiro.pdf. p.24-25. Vide também BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 287 e 289. 12Objetivos como a diminuição do déficit público e de redução gradual da inflação foram alcançados no Governo Castello Branco, preparando o terreno para a retomada do crescimento e a expansão da economia nos governos dos Presidentes Arthur da Costa e Silva (1967-1969) e Emilio Garrastazu Médici (1969-1974). ( BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, p. 263 ).

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Já em finais da década de 60 e início dos anos 70, foi implantada uma

política que procurou garantir energia elétrica com margem mais que suficiente

para o consumo, especialmente o industrial. Dentro dessa perspectiva, grandes

centrais hidrelétricas, como a de Itaipu (Binacional – Paraná- 12.600 MW) e

Tucuruí (PA- Rio Tocantins) foram construídas neste período, além de um grande

programa de construção de reatores nucleares em cooperação com a Alemanha.

Ressalte-se que tais empreendimentos foram edificados sem qualquer avaliação

prévia de impacto ambiental ou consulta pública, já que a legislação brasileira

vigente à época não previa tais instrumentos.13 14

Durante o governo militar Médici, foi lançado o I PND- Plano Nacional de

Desenvolvimento para o período de 1972 a 1974, com o estabelecimento de metas

para crescimento dos setores básicos – siderurgia, petroquímica, energia elétrica e

mineração, entre outros.

Um dos principais argumentos apresentados pelo governo, nessa época,

segundo ROSA (1988) para justificar o intenso investimento em energia elétrica,

com a elaboração de grandes obras, foi o fato de que haveria uma “crise de

energia” provocada em razão dos choques do petróleo, já que o Brasil era - e

ainda é - grande importador de petróleo para produção de combustíveis líquidos.

Porém, tal fato não teria repercussões sobre o setor hidrelétrico, conforme foi

possível comprovar na década seguinte.

Nas décadas de 70 e 80, pôde-se perceber, ainda, um movimento de

centralização do setor elétrico, representado pelo papel forte da Eletrobrás e de

suas subsidiárias regionais, através das já criadas CHESF e FURNAS, da

Eletrosul e Eletronorte (criadas posteriormente, em 1968 e 1972,

respectivamente). Desde então, a Eletrobrás assumiu o processo de planejamento

da expansão dos sistemas elétricos do país, definindo a programação de obras do

13 ROSA, Luiz Pinguelli. Um paralelo entre grandes projetos hidrelétricos e nucleares. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e

nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, p.72-73. 14 A recuperação industrial, ocorrida em 1968, marcou o início de um acelerado processo de desenvolvimento econômico, conhecido como “milagre” brasileiro, tendo esse ciclo ascendente da economia perdurado até a eclosão do primeiro choque do petróleo, que se deu no final de 1973. (BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 263 ).

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setor e atribuindo tanto metas quanto responsabilidades para o conjunto das

empresas concessionárias.

Tratava-se de planejamento baseado em estudos sequenciais de longo,

médio e curto prazo sobre os requisitos do mercado de energia elétrica e as

alternativas de expansão dos sistemas elétricos. Os estudos de longo prazo

procuravam determinar um planejamento de desenvolvimento dos sistemas

elétricos para alcançar um horizonte de (até) trinta anos. Os de médio definiram os

planos de expansão das empresas regionais e estaduais no horizonte até 15 anos.

Os de curto prazo, por fim, com horizonte de até 10 anos.

No início da década de 70, começam a surgir, paralelamente, no cenário

internacional, as primeiras manifestações reveladoras de uma preocupação

ambiental15 e, nesse contexto, debates sobre a necessária mudança de consciência

e de comportamento por parte de todos os setores, públicos ou privados, da

sociedade civil.16 Com efeito, a degradação ambiental, decorrente do aumento

devastador do crescimento econômico e de uma política voltada para o incentivo

do crescimento da produção e consumo de bens (vivenciada pela grande parte das

sociedades ocidentais de economia capitalista), passou a ser motivo de

preocupação no campo científico, originando diversos estudos acadêmicos e as

primeiras reações no sentido de se obterem métodos e fórmulas capazes de reduzir

os danos socioambientais. Resultado disso foram os estudos elaborados pelo

Clube de Roma, liderado por Dennis L. Meadows, a partir de 1968, através dos

quais foi realizado um diagnóstico dos recursos naturais terrestres. Concluiu-se

que a degradação ambiental seria resultado principalmente do descontrolado

crescimento populacional e econômico. Ficou evidente, naquele momento da

15 A preocupação do homem com a preservação da biosfera – atmosfera sadia, águas limpas e exploração dos recursos minerais, vegetais e animais de forma equilibrada -, por estar intimamente vinculada à própria sobrevivência da espécie humana, advém das culturas presentes no período da Antiguidade Clássica e persistiu até o período da Revolução Industrial. A partir dela, no entanto, houve inegável mudança na conduta humana, com agressões constantes ao meio ambiente, em prol do progresso e aumento dos bens de consumo, com gastos energéticos de recursos não renováveis, sem nenhum controle. Cf. ROTA, Demetrio Loperena. El derecho al medio ambiente

adecuado.Pais Basco: IVAP – Organismo Autônomo Del Gobierno Vasco, 1996, pp. 25-31. 16 O primeiro ato legislativo mais importante da referida época, de representação internacional, é provavelmente a aprovação da National Environmental Policy Act - NEPA, sancionada em 01 de março de 1970, nos Estados Unidos. Esse marco normativo se revela emblemático no Direito Ambiental também por estabelecer, pela primeira vez, a necessidade de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) como requisito prévio a qualquer atividade pública ou privada com impactos relevantes no meio ambiente. Cf. ROTA, Demetrio Loperena. El derecho al medio ambiente

adecuado.Pais Basco: IVAP – Organismo Autônomo Del Gobierno Vasco, 1996, pp. 25-31.

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história, que não seria mais possível falar em desenvolvimento econômico sem a

preocupação com a preservação ambiental. Fala-se, inclusive, da existência de

uma verdadeira “crise ambiental” ou “ecológica” em nível planetário acirrada

após a segunda guerra mundial.17

As análises antes apontadas serviram de base para a idéia - que se

desenvolveria a partir de então - sobre o imprescindível desenvolvimento

econômico com a paralela (e também imprescindível) preservação ambiental.18

Assim, os movimentos ambientalistas - que se iniciaram com o chamado

Clube de Roma - tiveram continuidade na década de 70, com a Conferência das

Nações Unidas para o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo em 1972, a

primeira de uma série de três conferências ambientais realizadas pela ONU.

Contou com a presença de 113 países e resultou na Declaração de Estocolmo e na

instauração do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA)19.

Em nível nacional, pode-se afirmar que o movimento iniciado com a

Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente teve repercussões também

importantes, pois, em 1981, foi editada a Lei n. 6938, com o estabelecimento dos

princípios e objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente. A referida lei

instituiu, ainda, o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) e, em caráter

obrigatório, previu o licenciamento ambiental de atividades (efetiva ou

potencialmente) poluidoras como também a avaliação de impacto ambiental,

instrumentos basilares para efetivação da política ambiental.

Cumpre destacar, no âmbito internacional do movimento ambientalista, a

divulgação em 1987 do relatório das Nações Unidas intitulado “Nosso futuro

comum”, coordenado pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Brundtland,

razão pela qual passou a ser conhecido como Relatório Brundtland. A importância

desse documento se revela pela constatação de ser o modelo de desenvolvimento

econômico capitalista industrial, baseado na ampliação crescente do consumo, o

responsável pela rápida devastação ambiental e pelo risco de exaurimento dos

17 Afirmando a existência da crise ambiental ou ecológica, há vários autores, valendo citar GUATTARI, Félix. As três Ecologias. Campinas- SP: Papirus, 2006; MORIN, Edgar. KERN, Anne Brigitte. Terra-pátria. Porto Alegre: Sulina, 2005; e PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 18 BRASIL. Almanaque Brasil Socioambiental (2008), editado pelo Instituto Socioambiental (ISA), pp. 439-440, São Paulo: ISA, 2007. 19 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. A gestão ambiental em foco. Doutrina.Jurisprudência.Glossário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 56-57.

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recursos ambientais do planeta. Pela primeira vez, foi utilizado o conceito de

desenvolvimento sustentável, entendido como “aquele que satisfaz as

necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações

futuras de satisfazer as suas próprias necessidades”, tendo sido conferido destaque

para os três componentes fundamentais do novo modelo de desenvolvimento

sustentável: proteção ambiental, crescimento econômico e equidade social.

Já no Brasil, o movimento ambientalista ganhou força a partir da segunda

metade dos anos 80, com o processo histórico de redemocratização do país,

consolidado com a promulgação da Constituição Federal de 198820. A

consolidação da democracia, inclusive com as eleições diretas para Presidente da

República, em 1989, passou a fornecer à sociedade civil um amplo espaço de

mobilização/articulação que resultou em alianças políticas estratégicas entre o

movimento social e o ambiental. Santilli21 descreve que, na Amazônia, nesse

período, houve a articulação entre os povos indígenas e as populações

tradicionais, levando ao surgimento da Aliança dos Povos da Floresta, um dos

marcos do socioambientalismo, que tinha como um de seus líderes o seringueiro

Chico Mendes.

É também no período da década de 80 que o direito ambiental passa a

integrar a agenda de preocupações do direito da energia.22

20 Historicamente, no âmbito constitucional nacional, verifica-se que a evolução da proteção ao meio ambiente como um bem juridicamente tutelado se deu em quatro estágios20: 1) a existência de uma legislação que nada previa sobre a proteção ao meio ambiente, como o Código Civil de 1916 e as constituições anteriores a de 1988; 2) alguns aspectos setoriais da questão ambiental foram sendo legislados, como a proteção à flora e fauna, com a edição do Código Florestal – Lei n.4.771/65, por exemplo ; 3) em seguida, foram sendo editadas leis ambientais informadas por uma concepção mais holística e sistemática, analisando o meio ambiente como um todo (a lei de Política Nacional do Meio Ambiente - Lei n. 6.938/81 - é um exemplo disso); e, por fim, 4) no quarto e último estágio, deu-se a incorporação da proteção ambiental ao texto constitucional. Cf. BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção do meio ambiente nos países menos desenvolvidos: o caso da América Latina. In Revista de Direito Ambiental. Revista dos Tribunais: São Paulo,Vol. 0, p.98. Neste artigo, o autor analisa o desenvolvimento do direito ambiental na América Latina, tendo fornecido a identificação dos estágios citados no contexto da América Latina, o que se aplica perfeitamente ao Brasil. 21 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. Proteção jurídica à diversidade

biológica e cultural. São Paulo. Peirópolis: 2005, p. 51. 22 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Princípios do direito da energia e integração com o direito

ambiental. Revista de Direito Ambiental. v. 47, p. 96-120, 2007. O autor afirma que o direito da energia, como disciplina jurídica consolidada, surgiu na Europa, no final do século XI, porém, apesar dos esforços em se empreender uma teoria jurídica, a autonomia disciplinar restou prejudicada pela falta de princípios próprios. Acrescenta que, a partir do surgimento de uma preocupação ambiental explícita, o direito à energia passou a incorporar também referências à sustentabilidade ambiental. Assinala que a energia somente pode ser juridicamente entendida se levar em conta a tutela jurídica ambiental e também os aspectos tecnológicos da questão,

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Outra alteração realizada, no âmbito do setor elétrico, especialmente na

estrutura interna da Eletrobrás, deu-se com a criação do Departamento do Meio

Ambiente (DEMA), vinculado à Diretoria de Planejamento e Engenharia, em

agosto de 1987. Essa modificação decorreu, em especial, de grande pressão dos

movimentos sociais e ambientais em relação aos impactos socioambientais

causados pela implantação das hidrelétricas. Posteriormente, em dezembro de

1986, foi criado o Comitê Consultivo do Meio Ambiente (CCMA ) e, em abril de

1988, o Comitê Coordenador de Atividades de Meio Ambiente do Setor Elétrico (

Comase ).23

Portanto, o grande avanço dos investimentos no setor de energia elétrica,

sob o comando financeiro e institucional da Eletrobrás, desde 1967, sofreu uma

queda de ritmo vertiginosa a partir de 1982, em razão da grave crise econômica

que se abateu sobre o país, com efeitos negativos para todo o setor elétrico.

Por conseguinte, em virtude da crise cambial e do agravamento de

problemas fiscais, o Brasil começa a discutir, na segunda metade da década de 80,

a possibilidade de delegar ao setor privado o direito de explorar atividades até

então de responsabilidade exclusiva do Estado.24

Na década de 90, mudanças estruturais ocorreram no setor energético em

razão das privatizações de empresas estatais e do início do processo de

desregulamentação do setor elétrico, ocorridas pela forte tendência econômica

liberal vigente na América Latina, em geral. Este processo de liberalização

econômica do sistema elétrico brasileiro, conhecido como “reestruturação” desse

setor, foi uma das principais diretrizes da política de reforma institucional e de

ajuste econômico orientado pelas agências multilaterais25 – Banco Interamericano

defendendo, portanto, que haja uma maior reciprocidade entre o campo ambiental e o energético, na esfera jurídica, já que os princípios para tutela deste – segurança no aproveitamento energético, eficiência energética, não-retrocesso no uso de tecnologias, acesso universal à rede de distribuição de energia. e liberdade energética – careceriam de uma harmonização mais forte com os princípios de direito ambiental. 23BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, p. 283. 24 LANDAU, Elena Introdução. O setor elétrico em uma visão introdutória. LANDAU, Elena (coord ). Regulação Jurídica do Setor Elétrico. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 5. 25 As mudanças políticas ocorridas na América Latina na década de 80, com a substituição de governos autoritários militares por governos democráticos, com claras tendências liberais, levaram à aceitação cada vez maior de políticas de ajustes econômicos preconizadas pelas agências multilaterais para a região do Mercosul, cuja síntese ficou conhecida como Consenso de Washington. Entre as estratégias adotadas no Consenso de Washington estavam a privatização acelerada de empresas estatais lucrativas, notadamente as de caráter estratégico, como as de energia, com a finalidade de pagamento de dívidas interna e externa; a flexibilização de direitos

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de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial (BIRD), Fundo Monetário

Internacional (FMI) – colocada em prática pelo governo federal brasileiro nesse

período26. O Programa Nacional de Desestatização (PND), instituído pelo governo

Collor, em 1990, teve início através da Medida Provisória 155/90, convertida

posteriormente na Lei n. 8.031/90, a qual foi revogada pela Lei n. 9491/97. Com a

entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 05/95 e da Lei n. 8987/95 (Lei

Geral das Concessões), que regulamentou o art. 175 da Constituição Federal de

88, houve a instituição dos princípios básicos para a concessão de serviços

públicos. O referido modelo de privatizações brasileiro optou pela adoção das

chamadas agências reguladoras, baseado na experiência norte-americana, com as

comissions. A Lei n. 9427/96 criou, então, a ANEEL – Agência Nacional de

Energia Elétrica – como autarquia sob regime especial, vinculada ao MME, para

desempenhar as responsabilidades do antigo DNAEE, ou seja, funções executivas

(de concessão e fiscalização), legislativas (criação de regras e procedimentos com

força normativa) e também decisórias (imposição de penalidades, interpretação de

contratos e julgamentos), com autonomia administrativa, financeira e decisória

para tal.

Em razão de tal legislação, a ANEEL recebeu delegação da União para

atuar como poder concedente, tornando-se responsável pela condução dos

processos de licitação destinados à contratação de concessionárias de serviço

público (para geração, transmissão e distribuição de energia elétrica) e para

outorga de concessão para o aproveitamento de potenciais hidráulicos e

implantação de termelétricas. Ficou também incumbida a autarquia de zelar pela

defesa da concorrência no setor, estabelecendo regras para coibir a concentração

do mercado, de forma articulada27, com organismos responsáveis por análises de

trabalhistas; a desregulamentação da vida econômica em todas as instâncias; a redução dos investimentos do Estado em políticas públicas básicas; a reforma do Estado e a redução do funcionalismo, para redução geral dos gastos públicos. Cf. SAUER, Ildo Luís. Um novo modelo

para o setor elétrico brasileiro. SAUER, Ildo Luís. (et al) A reconstrução do setor elétrico. Campo Grande: Ed. UFMS; São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 16. 26 Idem

27 A legislação que impõe à ANEEL tais atribuições não substitui as disposições da lei geral de defesa da concorrência e nem a competência das autoridades antitruste, reconhecendo a lei 9427/96, criadora da ANEEL, que esse organismo deverá articular-se com a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça – SDE. Nesse sentido, dispõem os seguintes artigos: Art. 3o Além das atribuições previstas nos incisos II, III, V, VI, VII, X, XI e XII do art. 29 e no art. 30 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, de outras incumbências expressamente previstas em lei e observado o disposto no § 1o, compete à ANEEL: (Redação dada pela Lei nº

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atos de concentração de empresas e de denúncias de atividades anticompetitivas

(como, por exemplo, a Secretaria de Direito Econômico – SDE, órgão do

Ministério da Justiça, Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), órgão

do Ministério da Fazenda, e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica –

CADE, autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça28)

Há que se mencionar também a Lei n. 9074/95 que definiu regras para

outorga, prorrogação de concessões e permissões de serviços públicos. Nela se

dedica um capítulo específico para o setor de energia elétrica. A referida lei

reconheceu, ainda, a figura do Produtor Independente de Energia (PIE), liberou os

grandes consumidores do monopólio comercial das concessionárias e instituiu o

princípio do livre acesso aos sistemas de transmissão e distribuição.29

10.848, de 2004) (...) VIII - estabelecer, com vistas a propiciar concorrência efetiva entre os agentes e a impedir a concentração econômica nos serviços e atividades de energia elétrica, restrições, limites ou condições para empresas, grupos empresariais e acionistas, quanto à obtenção e transferência de concessões, permissões e autorizações, à concentração societária e à realização de negócios entre si; (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998) IX - zelar pelo cumprimento da legislação de defesa da concorrência, monitorando e acompanhando as práticas de mercado dos agentes do setor de energia elétrica; (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998). Parágrafo único. No exercício da competência prevista nos incisos VIII e IX, a ANEEL deverá articular-se com a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça. (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998). BRASIL. Planalto. Lei n. 9427/96. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9427cons.htm>. ( Acesso em 15 de fevereiro de 2009 )

28 Estes órgãos compõem o chamado Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), responsável pela promoção de uma economia competitiva, por meio da prevenção e da repressão de ações que possam limitar ou prejudicar a livre concorrência no Brasil, com sua atuação orientada pela Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994. Cf. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ29715BC8ITEMIDCEF35B5AB2E84F6A8CA8858B129BB4EFPTBRIE.htm. (Acesso em 15 de fevereiro de 2009).

29 Além da ANEEL, outras instâncias institucionais foram sendo criadas, a partir de 1998, ao longo do processo de reestruturação e reconstrução do sistema elétrico nacional, perdurando até o primeiro mandato do governo Lula. Foram elas: 1) ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico): criado e regulamentado em 1998 – Lei n. 9648 -, tendo como finalidade operar o Sistema Interligado Nacional (SIN)29 e administrar a rede básica de transmissão de energia. Tendo sido alterada sua regulamentação através do Decreto 5.081 de maio de 2004, o ONS ficou autorizado a executar as atividades de coordenação e controle da operação, da geração, e da transmissão de energia elétrica do SIN, sob fiscalização e regulação da ANEEL. Tem autonomia frente aos organismos privados e públicos; 2) CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica): foi regulamentada pelo Decreto Nº 5.177, de 12 de agosto de 2004. Pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos e sob regulação e fiscalização da ANEEL, a CCEE tem por finalidade viabilizar a comercialização de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional (SIN). Ficou também a seu cargo realizar os leilões de energia. A CCEE sucedeu ao Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE), criado pela Lei nº 10.433, de 24 de abril de 2002. O MAE, ambiente organizado e regido por regras estabelecidas, no qual se processava a compra e venda de energia entre seus participantes, através de contratos bilaterais e de um mercado de curto prazo, era considerado essencial para o completo funcionamento do modelo de competição do mercado de energia elétrica; 3) EPE (Empresa de Pesquisa Energética): empresa pública, vinculada ao

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O referido processo de reestruturação acabou por se basear em uma

intervenção mínima do Estado, sobretudo em relação à expansão necessária para o

sistema elétrico nacional, e colocou, em segundo plano, as atividades de

formulação tanto de políticas públicas quanto de planejamento energético. O

governo, assim, superestimou a capacidade do mercado para resolver os

problemas estruturais e as incertezas do setor, sendo esta uma das causas da crise

de abastecimento de energia de 2001.30 Em verdade, pode-se afirmar que a

questão de tal desabastecimento revelou-se como consequência de uma conjunção

de fatores políticos, sociais, econômicos e climáticos.31

Outra das causas apontadas para a eclosão da crise, ocorrida durante o

segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi a insuficiência

de investimentos em geração e transmissão nos anos anteriores, além de condições

hidrológicas desfavoráveis verificadas nas regiões Sudeste e Nordeste32. Essa

crise que deu ensejo a um programa de racionamento de energia iniciado em

junho de 2001, com duração de sete meses, suscitou intenso debate sobre a

política de privatizações e reforma do setor de energia elétrica implementada pelo

governo Fernando Henrique Cardoso.

Várias e duradouras foram as conseqüências de tal crise. Dentre elas,

podemos citar a quebra das expectativas de crescimento do mercado (existentes

até 2000) e a sobrecapacidade que deprimiu preços e desestimulou investimentos

no setor, além de afetar a capacidade financeira de todos os agentes. Além disso, a

chamada crise do “apagão” deixou exposta a fragilidade institucional do setor e a

insegurança por uma falta de regulação normativa adequada. Não é sem razão

que, nos primeiros anos após as privatizações, o embate entre investidores e

Ministério de Minas e Energia, foi regulamentada pelo decreto Nº 5.184, de 16 de agosto de 2004. Dentre suas atribuições está a de realizar estudos e pesquisas que subsidiarão a formulação, o planejamento e a implementação de ações do MME, no âmbito da política energética nacional. O Sistema Interligado Nacional ( SIN ) caracteriza-se por ser um sistema de produção e transmissão de energia elétrica no Brasil, formado pelas empresas das regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e parte da região Norte. 30 PEREIRA, André Flavio Soares. BAJAY, Sergio Valdir. Bases de Dados Públicas sobre

Geração Hidrelétrica no Brasil. Anais do X Congresso brasileiro de Energia – CBE. A universalização do Acesso à Energia, Vol. I, 2004, p. 472. 31 ANTUNES, Paulo de Bessa. Política Energética Nacional e Meio Ambiente ou Tellico Dam seja aqui. LANDAU, Elena ( coord ). Regulação Jurídica do Setor Elétrico. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p.431. 32 SAUER, Ildo Luís. Um novo modelo para o setor elétrico brasileiro. SAUER, Ildo Luís. ( et al ) A reconstrução do setor elétrico. Campo Grande: Ed. UFMS; São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 24.

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39

reguladores centralizou-se basicamente na discussão sobre a aplicação de regras

tarifárias expressas nos contratos de concessão.33

2.2

O setor elétrico hoje. Novo modelo normativo do setor elétrico

brasileiro.

Após a mudança de governo ocorrida em 2002, percebe-se um processo de

redefinição do modelo institucional do setor de energia elétrica. Sinaliza-se uma

intenção de conferir ao Estado um papel mais ativo na regulação das atividades de

energia elétrica e na expansão do sistema elétrico nacional.

Em 2003, então, foi instituído, pelo governo federal um grupo de trabalho,

no âmbito do Ministério de Minas e Energia, que culminou com a publicação do

documento intitulado “Modelo Institucional do Setor Elétrico”. De acordo com tal

documento, algumas diretrizes foram estabelecidas e novas estruturas de

planejamento e comercialização de energia elétrica foram propostas. Dentre as

principais diretrizes, destacam-se34:

1) a prevalência do conceito de serviço público para a produção e distribuição de

energia elétrica para os consumidores cativos;

2) a diminuição das tarifas;

3) a restauração do planejamento da expansão do sistema;

4) a redução dos riscos para as indústrias e maior retorno aos investidores;

5) a universalização do acesso e do uso dos serviços de eletricidade;

e 6) a modificação do processo de licitação de concessão do serviço público de

geração, priorizando a menor tarifa.

Fica evidente que as mudanças foram implementadas com a pretensão de

retomar o papel pró-ativo do Estado nas atividades de formulação de políticas

publicas energéticas e planejamento energético e, por outro lado, com a intenção

de tornar este último não meramente indicativo, mas determinativo35. Na

administração anterior também se verificou uma ausência de estudos de inventário

33 LANDAU, Elena. Introdução. O setor elétrico em uma visão introdutória. LANDAU, Elena ( coord ). Regulação Jurídica do Setor Elétrico.Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 11. 34 BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, p. 663. 35 Isso não significa, entretanto, que o governo atual tenha logrado implementar um planejamento determinativo.

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40

e de viabilidade de usinas hidrelétricas, antes realizadas basicamente pelas

empresas geradoras estatais do Grupo Eletrobrás.36

Em dezembro de 2003, foram editadas duas medidas provisórias ( MP’s n.

144 e 145 ), estabelecendo a base legal para a implantação do novo modelo

normativo, segundo o qual as decisões acerca do planejamento energético

estariam centralizadas no âmbito governamental, e introduzidas importantes

alterações no ordenamento institucional vigente. Manteve-se, todavia, a

concepção de livre concorrência nos mercados de geração e comercialização, bem

como de regulação nos segmentos de transmissão e distribuição.

A Medida Provisória n. 145, a seu turno, tratou da criação da Empresa de

Pesquisa Energética – EPE, empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e

Energia – MME, encarregada da elaboração dos estudos de planejamento

integrado de recursos energéticos e planos de expansão do setor de energia

elétrica, assim como pela promoção dos estudos de potencial energético e de

viabilidade de novas usinas, incluindo a obtenção de licença prévia para os

aproveitamentos hidrelétricos.

O novo modelo reafirmava a competência da ANEEL para mediação,

regulação e fiscalização do setor. Contudo, transferia para o MME o poder de

concessão dos empreendimentos de geração e transmissão.

Em março de 2004, finalmente, após inúmeras discussões e críticas aos

textos das medidas provisórias acima mencionadas junto à Câmara dos Deputados

e Senado Federal (e de diversas emendas realizadas ao texto original), foram

sancionadas as leis n. 10.847 e 10.84837. A primeira autorizou a criação da EPE e

a segunda definiu as regras de comercialização de energia elétrica.

Portanto, desde 2004, após a introdução de novas mudanças na política

energética, a comercialização da energia vem sendo realizada em dois ambientes

36PEREIRA, André Flavio Soares. BAJAY, Sergio Valdir. Bases de Dados Públicas sobre

Geração Hidrelétrica no Brasil. Anais do X Congresso brasileiro de Energia – CBE. A universalização do Acesso à Energia, Vol. I, 2004, pp. 473-474. 37 Foi ajuizada no âmbito do STF ação direta de inconstitucionalidade contra a MP n. 145 que se converteu, após várias alterações de forma e conteúdo no texto, na lei 10847/2004, pelo Partido da Frente Liberal- PFL, - ADIN 3101 / DF - DISTRITO FEDERAL, julgada em 15/12/2005. Nessa, o STF julgou extinto o processo sem resolução do mérito, em razão de ter reconhecido a presença de questão prejudicial atinente ao fato de que a medida provisória impugnada já não possuía mais seu texto original, tendo sofrido diversas alterações substanciais ao longo do processo de conversão legislativa, tanto de forma como de fundo, o que prejudicaria o julgamento da referida ação. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIN 3101. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=3101&processo=3101>. ( Acesso em 15 de fevereiro de 2009 )

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41

de mercado: o Ambiente de Contratação Regulada ( ACR ) e o Ambiente de

Contratação Livre (ACL). Naquele, a contratação é formalizada através de

contratos bilaterais regulados, denominados Contratos de Comercialização de

Energia Elétrica no Ambiente Regulado (CCEAR), celebrados entre agentes

vendedores (comercializadores, geradores, produtores independentes ou

autoprodutores) e compradores (distribuidores). Neste, em contrapartida, há a

livre negociação entre os agentes geradores, comercializadores, consumidores

livres, importadores e exportadores de energia.

A ANEEL, então, é responsável pelas licitações para contratação regulada

de energia elétrica e pela realização dos leilões38, diretamente ou por intermédio

da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica ( CCEE ).

As grandes geradoras estatais, a seu turno, foram definitivamente retiradas

do Plano Nacional de Desestatização, de maneira que a maior parte do segmento

de distribuição, cerca de 63%, foi privatizada. Somente 22% da geração, no

entanto, passou à exploração da iniciativa privada39.

38 Foram realizados leilões de compra de energia existente em dezembro de 2004 ( venda de 17.060 Mw médios ), em abril de 2005 ( 1.325 Mw médios ), em novembro de 2005 ( terceiro e quarto leilões, com venda de 102 Mw e 1.166 Mw médios, respectivamente ). Já para comercialização de energia nova, ocorreram leilões em dezembro de 2005, resultando na contratação de 3.286 Mw médios dos 5.434 Mw disponibilizados pelos geradores, e em junho de 2006. No de 2005, foram arrematados sete novos empreendimentos hidrelétricos, com potência instalada conjunta de 776 Mw e seis novos térmicos, com 998 Mw de potência. Complementaram o leilão 15 hidrelétricas e 23 térmicas. No segundo leilão, foram comercializados 1.682 Mw médios, sendo que dos 89 projetos habilitados para serem oferecidos no leilão, somente 31 foram contratados. Tais informações foram extraídas do relato constante de BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, p. 715. 39 LANDAU, Elena Introdução. O setor elétrico em uma visão introdutória. LANDAU, Elena (coord). Regulação Jurídica do Setor Elétrico. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 16.

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42

Necessário se faz destacar pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE)40

papel fundamental na retomada do controle pelo Estado da atividade de

planejamento energético. Possui como atribuições, entre outras: a) realizar estudos

e projeções da matriz energética brasileira; b) elaborar e publicar o balanço

energético nacional; c) identificar e quantificar os potenciais de recursos

energéticos; d) dar suporte e participar das articulações relativas ao

aproveitamento energético de rios compartilhados com países limítrofes; e)

realizar estudos para a determinação dos aproveitamentos ótimos dos potenciais

hidráulicos; f) obter a licença prévia ambiental e a declaração de disponibilidade

hídrica necessárias às licitações envolvendo empreendimentos de geração

hidrelétrica e de transmissão de energia elétrica, selecionados pela EPE; g)

elaborar estudos necessários para o desenvolvimento dos planos de expansão da

geração e transmissão de energia elétrica de curto, médio e longo prazos; h)

desenvolver estudos de impacto social, viabilidade técnico-econômica e

socioambiental para os empreendimentos de energia elétrica e de fontes

renováveis; i) efetuar o acompanhamento da execução de projetos e estudos de

viabilidade realizados por agentes interessados e devidamente autorizados; j)

40 A lei n. 10847/2004 previu no art. 4º as atribuições da EPE: I - realizar estudos e projeções da matriz energética brasileira; II - elaborar e publicar o balanço energético nacional; III - identificar e quantificar os potenciais de recursos energéticos; IV - dar suporte e participar das articulações relativas ao aproveitamento energético de rios compartilhados com países limítrofes; V - realizar estudos para a determinação dos aproveitamentos ótimos dos potenciais hidráulicos; VI - obter a licença prévia ambiental e a declaração de disponibilidade hídrica necessárias às licitações envolvendo empreendimentos de geração hidrelétrica e de transmissão de energia elétrica, selecionados pela EPE; VII - elaborar estudos necessários para o desenvolvimento dos planos de expansão da geração e transmissão de energia elétrica de curto, médio e longo prazos; VIII - promover estudos para dar suporte ao gerenciamento da relação reserva e produção de hidrocarbonetos no Brasil, visando à auto-suficiência sustentável; IX - promover estudos de mercado visando definir cenários de demanda e oferta de petróleo, seus derivados e produtos petroquímicos; X - desenvolver estudos de impacto social, viabilidade técnico-econômica e socioambiental para os empreendimentos de energia elétrica e de fontes renováveis; XI - efetuar o acompanhamento da execução de projetos e estudos de viabilidade realizados por agentes interessados e devidamente autorizados; XII - elaborar estudos relativos ao plano diretor para o desenvolvimento da indústria de gás natural no Brasil; XIII - desenvolver estudos para avaliar e incrementar a utilização de energia proveniente de fontes renováveis; XIV - dar suporte e participar nas articulações visando à integração energética com outros países; XV - promover estudos e produzir informações para subsidiar planos e programas de desenvolvimento energético ambientalmente sustentável, inclusive, de eficiência energética; XVI - promover planos de metas voltadas para a utilização racional e conservação de energia, podendo estabelecer parcerias de cooperação para este fim; XVII - promover estudos voltados para programas de apoio para a modernização e capacitação da indústria nacional, visando maximizar a participação desta no esforço de fornecimento dos bens e equipamentos necessários para a expansão do setor energético; e XVIII - desenvolver estudos para incrementar a utilização de carvão mineral nacional. Parágrafo único. Os estudos e pesquisas desenvolvidos pela EPE subsidiarão a formulação, o planejamento e a implementação de ações do Ministério de Minas e Energia, no âmbito da política energética nacional.

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desenvolver estudos para avaliar e incrementar a utilização de energia proveniente

de fontes renováveis; l) promover estudos e produzir informações para subsidiar

planos e programas de desenvolvimento energético ambientalmente sustentável,

inclusive, de eficiência energética; e m) promover planos de metas voltadas para a

utilização racional e conservação de energia, podendo estabelecer parcerias de

cooperação para esse fim.

No planejamento energético, consideram-se as características do sistema

de energia elétrica nacional e dos demais setores energéticos. Desenvolvido em

três etapas distintas de estudos, com objetivos e horizontes temporais

diversificados, conforme o enfoque a ser priorizado: os estudos de longo41,

médio42 e curto prazo.

Para os fins desta análise, torna-se mais importante a definição dos estudos

de curto prazo: são eles que indicarão os aproveitamentos hidrelétricos de

interesse nacional para desenvolvimento.

Esses estudos, com horizonte de, no mínimo 10 anos, e periodicidade

anual, resultam no plano decenal de expansão. Nele são apresentadas as decisões

relativas à expansão física da oferta de energia, definindo os empreendimentos e

sua alocação temporal. São elaboradas também as análises das condições de

suprimento ao mercado. Estas metas, no caso da energia elétrica, tornam possível

a realização dos leilões de compra de energia de novos empreendimentos de

geração e dos leilões de novas instalações de transmissão. Segundo o Manual de

Inventário Hidrelétrico Eletrobrás (2007), no estudo de curto prazo, apontam-se

41 De acordo com o Manual de Inventário Hidrelétrico elaborado pela Eletrobrás (2007), os estudos de longo prazo, com horizontes de ate 30 anos, buscam analisar as estratégias de desenvolvimento dos diversos sistemas energéticos do País e a composição futura da oferta de energia. Neste plano, também são estabelecidas prioridades para o desenvolvimento tecnológico e industrial do país e um programa de estudos de engenharia voltados para definir a viabilidade técnica, econômica e socioambiental dos diversos empreendimentos energéticos. Do resultado de tais estudos tem-se a indicação das bacias consideradas prioritárias para elaboração de Estudos de Inventário Hidrelétrico, as diretrizes para os estudos de curto prazo, assim como as indicações dos custos marginais de expansão de longo prazo. Esse estudo é feito, em média, de 4 a 5 anos, tendo como resultados as estratégias e as políticas para a energia, consolidadas nos estudos da Matriz Energética Nacional e do Plano Nacional de Energia. 42 De acordo com o Manual de Inventário Hidrelétrico elaborado pela Eletrobrás ( 2007), os estudos de médio prazo, com horizontes de 15 anos, analisam para o setor de energia elétrica alternativas de expansão, geração e transmissão, ajustadas aos requisitos do mercado de energia elétrica. São desenvolvidos, via de regra, para casos específicos do planejamento, como por exemplo, na inserção da hidreeletricidade da Amazônia no sistema interligado nacional e definição de custos marginais para dimensionamento de hidrelétricas. A sua realização atende as necessidades específicas de estudos da expansão do sistema elétrico nacional.

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estudos de viabilidade técnica, econômica e socioambiental de novos

empreendimentos de geração a serem realizados. Os outros elementos energéticos

(petróleo e derivados, os combustíveis líquidos, o gás natural, as fontes

alternativas renováveis e o carvão mineral) também devem ser analisados a partir

de uma visão integrada. Condicionam a realização deste estudo os requisitos do

mercado de energia, os critérios de garantia de suprimento (e de minimização dos

custos de investimento) e os prazos de implantação dos empreendimentos, com a

consideração dos estudos de engenharia e de meio ambiente.43

Portanto, o planejamento da expansão do sistema de energia nacional

consolida os estudos em dois planos distintos: o Plano Decenal de Expansão e o

Plano Nacional de Energia. Este último fixa as diretrizes e políticas energéticas

fundamentais para a adequada elaboração do Plano Decenal.

A EPE concluiu, em março de 2006, os estudos do Plano Decenal de

Expansão de Energia Elétrica – PDEE – 2006-201544. Tal documento foi

apresentado como marco de retomada do planejamento do setor de energia

elétrica, tendo sido aprovado pelo MME, através da portaria MME n. 131.

Ora, o Plano Decenal de Expansão de Energia objetiva proporcionar

informações que possam orientar ações e decisões relacionadas ao

equacionamento do equilíbrio entre as projeções de crescimento econômico, seus

reflexos tanto na demanda como na oferta de energia, em bases técnica,

econômica e ambientalmente sustentável. Assim, o PDE pressupõe a realização de

diversos estudos, elaborados pela EPE, com um horizonte de 10 anos para se

definir:

um cenário de referência para implementação de novas instalações na infra-estrutura de oferta de energia, necessárias para se atender ao crescimento dos requisitos do mercado, segundo critérios de garantia de suprimento pré-

43 ELETROBRÁS. Manual de Inventário Hidrelétrico, 2007. Disponível em: < http://www.eletrobras.gov.br/ELB/data/Pages/LUMISF99678B3PTBRIE.htm>. (Acesso em 02 de fevereiro de 2009). 44 O referido plano decenal abrangeu a construção de três grandes hidrelétricas na bacia do rio Amazonas: as usinas Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, e Belo Monte, no rio Xingu, no estado do Pará, tendo estas sido programadas para entrar em operação entre janeiro de 2011 e dezembro de 2013. Além disso, o plano postulou a construção de linhas de transmissão para integração da Região Norte com o Sistema Interligado Nacional (SIN) e previu 18 novos projetos termelétricos, baseados no gás natural, biomassa, carvão e diesel, bem como o início de operação da usina Angra 3, em 2012. Foi previsto, ainda, o aumento da participação de outras fontes de energia na matriz energética com a dinamização do Proinfa e a entrada em funcionamento de 53 empreendimentos no segmento eólica até janeiro de 2008, somando 1.353 Mw.BRASIL. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 722-724.

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estabelecidos, de forma ambientalmente sustentável e minimizando os custos totais esperados de investimentos inclusive socioambientais, e de operação.45 No processo de planejamento energético, mostra-se imprescindível, desde

o seu início, a participação de todos os demais setores envolvidos, como o

ambiental e o hídrico, mas também da própria sociedade civil, primando pela

participativa pública efetiva, de modo a integrar visões extra-setoriais e reduzir a

margem de conflitos socioambientais, em etapas mais adiantadas.

2.3

Implantação de usinas hidrelétricas.

2.3.1

Etapas: Estudo de inventário hidrelétrico, Estudos de viabilidade,

Execução do projeto.

O processo de planejamento e monitoramento da expansão da oferta de

energia elétrica, alterado pelo novo modelo normativo do setor elétrico, desde

2004, é de responsabilidade, respectivamente, da Empresa de Pesquisa Energética

(EPE) e do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), com o apoio da

ANEEL (responsável pela regulação e fiscalização das atividades dos

concessionários).

A geração de energia hidrelétrica passa pelo referido processo de

planejamento e monitoramento, envolvendo basicamente três etapas: 1) inventário

do potencial hidrelétrico das bacias hidrográficas; 2) viabilidade dos

aproveitamentos hidrelétricos, ambos correspondentes à fase de planejamento, de

responsabilidade da EPE, e 3) implantação do projeto, cujo

monitoramento/fiscalização cabe ao CMSE/ANEEL.

Embora haja uma orientação oficial no sentido de se incorporar nesta fase

do processo decisório a dimensão socioambiental, conforme sugere, inclusive, o

Manual de Inventario Hidrelétrico Eletrobrás (2007), o fato é que, efetivamente,

45 Disponível em: <http://www.epe.gov.br/Lists/Estudos/DispForm.aspx?ID=8&Source=http%3A%2F%2Fwww%2Eepe%2Egov%2Ebr%2FLists%2FEstudos%2FEstudos%2Easpx>. (Acesso em 06/10/2008).

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como pretendemos ao final deste trabalho demonstrar, tal variante não é

considerada na tomada de decisões sobre a expansão da produção hidroenergética.

Necessário, no entanto, ter sempre em mente a premissa de que a

implantação de uma hidrelétrica é o produto de um conjunto múltiplo de

decisões46, coordenado e dirigido pelo setor elétrico, mas com a participação ativa

dos demais setores: o ambiental e o setor hídrico, especialmente.

1) ESTUDOS DE INVENTARIO HIDRELETRICO47:

Os estudos de inventário hidrelétrico são conceituados pela Resolução

393/9848 da ANEEL como a etapa de estudos de engenharia em que se define o

potencial hidrelétrico de uma bacia hidrográfica, mediante o estudo de divisão de

quedas e a definição prévia do aproveitamento ótimo de que tratam os §§ 2º e 3º

do art. 5º da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995.

Nessa etapa, procede-se a pesquisas e sondagens para a identificação dos

aproveitamentos da bacia hidrográfica e para a seleção dos mais viáveis sob os

pontos de vista energético, econômico e socioambiental. Desenvolvem-se em

consonância com o planejamento indicativo do setor elétrico que deverá observar

as diretrizes estabelecidas pelo poder concedente.

A realização dos estudos de inventário é de fundamental importância para

a definição do chamado “aproveitamento ótimo”. É a fase em que o setor elétrico

deve buscar uma atuação compartilhada com o setor hídrico e o ambiental, a fim

de que o inventário, ao final, não tome uma dimensão unilateral, respeitando,

assim, os diversos segmentos envolvidos na questão.

Sob a ótica do setor energético, o referido inventário assume um papel

central na determinação da boa qualidade da expansão do setor: analisam-se as

46 FALCÃO, Joaquim de Arruda. Palestra proferida no Seminário temático sobre política de meio ambiente e aproveitamento do potencial hidrelétrico brasileiro. In Anais dos seminários temáticos

sobre política de meio ambiente e aproveitamento do potencial hidrelétrico brasileiro/Eletrobrás. Rio de Janeiro: Eletrobrás, 1991, p. 37. 47 Antes desta etapa, são realizados estudos prévios para estimativa do potencial hidrelétrico, em que se procede à analise preliminar das características da bacia hidrográfica, especialmente quanto aos aspectos topográficos, hidrológicos, geológicos e ambientais, no sentido de verificar sua vocação para geração de energia elétrica. Tal análise baseia-se em dados já disponíveis em escritório. Permite uma primeira avaliação do potencial e realiza estimativa de custo do aproveitamento da bacia hidrográfica, definindo as prioridades para a etapa posterior dos inventários hidrelétricos. 48 ANEEL. Resolução 393/98. Art. 1º.

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47

múltiplas implicações dos diferentes aproveitamentos, sem ainda ter ocorrido o

comprometimento de recursos técnicos e financeiros.

Sob o ponto de vista ambiental, o inventário hidrelétrico representa a fase

em que podem ser identificados os impactos socioambientais do conjunto de

aproveitamentos sobre a bacia hidrográfica, os efeitos cumulativos e as sinergias

entre os diferentes projetos. Além disso, impõem-se restrições aos demais usos

dos recursos hídricos e são também buscados meios para equacioná-las ou

minimizá-las.

Nesse sentido, a Resolução ANEEL nº 393/98 estabelece que os titulares

de registro de estudos de inventário deverão formalizar consulta aos órgãos

ambientais. O objetivo será a definição dos aspectos socioambientais e hídricos

relevantes pelos órgãos responsáveis, com vistas à melhor caracterização do

“aproveitamento ótimo” e à garantia do uso múltiplo dos recursos hídricos.

Já a definição de aproveitamento ótimo é regulada pela Lei 9.074, de 7 de

julho de 1995. Por seu intermédio, estabelece-se, entre outros itens, que o

aproveitamento de potenciais hidráulicos será objeto de concessão. Nas licitações,

cabe ao poder concedente especificar as finalidades do aproveitamento (ou da

implantação) da usina. Assim, nenhuma dessas atividades pode ser licitada sem a

definição de “aproveitamento ótimo”, conceituado pela lei como “todo potencial

definido em sua concepção global pelo melhor eixo do barramento, arranjo físico

geral, níveis d'água operativos, reservatório e potência, integrante da alternativa

escolhida para divisão de quedas de uma bacia hidrográfica.”49

A mesma conceituação vem ainda expressa no Decreto 2.003, de 10 de

setembro de 1996, no artigo 3º, §3.

De acordo com o aludido decreto, o órgão regulador e fiscalizador do

poder concedente pode delegar, mediante autorização, a realização dos estudos

técnicos necessários para definição do aproveitamento ótimo. Em todo caso, os

estudos e levantamentos (realizados e aprovados) pelo órgão regulador e

fiscalizador serão obrigatoriamente fornecidos a todos os interessados na licitação

da outorga de concessão.

Nesse ponto, é preciso chamar a atenção para o fato de que a visão de

aproveitamento ótimo, de acordo com a definição legal acima referida, restringe-

49 LEI FEDERAL n. 9074/95. Art. 5º, parágrafo 3º.

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48

se ao conceito de eficiência energética, que não abrange a eficiência social e

ambiental.50

Entretanto, por intermédio de uma interpretação sistemática, há de se

buscar a superação de tal obstáculo. Em um estudo de inventário hidrelétrico,

portanto, a conceituação de aproveitamento ótimo deve passar por múltipla

análise, que não deve priorizar somente os aspectos econômico-energéticos, mas

também os socioambientais e os relativos à esfera dos recursos hídricos.

Isto é o que se extrai da leitura do próprio art. 13 da Resolução 393/98,

segundo o qual deverá ser formalizada consulta aos órgãos ambientais (para

definição dos estudos relativos aos aspectos do ambiente) e aos órgãos

responsáveis pela gestão dos recursos hídricos, nos níveis estadual e federal, para

que haja a “melhor definição do aproveitamento ótimo e a garantia do uso

múltiplo dos recursos hídricos”.

Por outro lado, a legislação de gestão dos recursos hídricos deu

fundamento jurídico para que os demais setores usuários da água e os estados

federados participassem da tomada de decisões pelo setor elétrico e, até mesmo,

para que pudessem questionar a regularidade das decisões previamente tomadas

por aquele e pela Administração Pública federal, em razão do princípio dos usos

múltiplos da água.

Nesse sentido, dispõe a Lei n. 9433/97 que estão sujeitos à outorga pelo

Poder Público, para uso de recursos hídricos, os aproveitamentos dos potenciais

hidrelétricos.51 A referida outorga e a utilização de recursos hídricos, para fins de

geração de energia elétrica, estará subordinada ao Plano Nacional de Recursos

Hídricos, obedecida a disciplina da legislação setorial específica.52 Estabelece,

ainda, que toda outorga estará condicionada às prioridades de uso estabelecidas

nos Planos de Recursos Hídricos. Deverá preservar, também, seus múltiplos usos

e respeitar a classe em que o corpo d’água estiver enquadrado e a manutenção de

condições adequadas ao transporte aquaviário, quando for conveniente.53

50 VAINER. Carlos B. Recursos hidráulicos: questões sociais e ambientais. Revista Estudos Avançados n 59, Dossiê Energia. São Paulo: Instituto de Estudos avançados da USP, 2007. Disponível em < http://www.fem.unicamp.br/~seva/artVAINER_EstudAvan_abril07.pdf -> Último acesso em 31 de janeiro de 2009. 51 LEI FEDERAL n. 9433/97. Art. 12, inciso IV. 52 Ibid. Art. 12, parágrafo 2º. 53 Ibid. Art. 13, caput e parágrafo único.

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49

Portanto, em linha de princípio, a outorga para fins de aproveitamento

hidráulico somente pode ser concedida se estiver de acordo com as prioridades

estabelecidas pelo Plano de Recursos Hídricos. Ademais, a Resolução nº 37, de 26

de março de 2004, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos ( CNRH ),

estabelece diretrizes para a outorga de tais recursos para a implantação de

barragens em corpos d’água sob o domínio dos Estados, do Distrito Federal ou da

União.

Nesse ponto, oportuna a análise de Paulo Affonso Leme Machado54, que

condena a concessão de outorga sem a observância dos Planos de Recursos

Hídricos. Afirma, expressamente:

O setor elétrico obedece aos princípios, estratégias, diretrizes e concepções da nova Lei de Política Nacional de Recursos Hídricos, ainda que sua especificidade seja reconhecida. Na outorga para fins de geração de energia elétrica não se aplicará legislação de exceção, não se cogitando nem de favoritismo, nem de juízo preconcebido (...) Assim, a utilização dos potenciais hidráulicos para fins de geração de energia elétrica, ao aplicar a disciplina setorial específica, não pode ignorar e contrariar os Planos Estaduais de Recursos Hídricos e os Planos de Recursos Hídricos das bacias hidrográficas, mesmo não havendo Plano Nacional de Recursos Hídricos.

A resolução nº 37/2004 do CNRH traz os conceitos de “barragens” e

“reservatório” entre outros, declinando os documentos e procedimentos

necessários para a outorga de seu uso para empreendimentos hidrelétricos,

destacando que, dentre os documentos, deverá o pedido ser instruído com a

manifestação setorial, quando necessária, sendo que a ausência desta não é

obstáculo à continuidade do processo.55 Há previsão, ainda, de que - nos casos de

alteração significativa do regime do rio da quantidade ou qualidade do corpo

hídrico - deverão ser observadas também as diretrizes emanadas do respectivo

comitê de bacia hidrográfica.56

No caso de barragens para a produção de energia hidroelétrica, a outorga

de direito de uso de recursos hídricos será precedida da declaração de reserva de

disponibilidade hídrica.57

54 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 447. 55 CONSELHO NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS. Resolução n. 37/2004. Art. 4º, caput e parágrafos 1º e 2º. 56 CONSELHO NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS. Resolução n. 37/2004. Art. 4º, parágrafo.4º. 57 CONSELHO NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS. Resolução n. 37/2004. Art. 9º .

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50

Desde mais especificamente a revisão do Manual de Inventário

Hidrelétrico de Bacias Hidrográficas de 1996 (ELETROBRAS), há uma

orientação no sentido de que os estudos de inventário levem em consideração

aspectos socioambientais, como ecossistemas terrestres e aquáticos, modos de

vida, populações indígenas, organização territorial e base econômica, para a

tomada de decisão sobre a melhor partição de quedas de um rio. No entanto, uma

questão surge: mesmo quando o Estudo de Inventário Hidrelétrico é elaborado

com observância de todas as dimensões socioambientais (o que, na maioria das

vezes não ocorre), esse é remetido apenas para a Agência Nacional de Energia

Elétrica - ANEEL para análise e aprovação, sem o prévio conhecimento do órgão

ambiental envolvido. O órgão licenciador somente toma conhecimento

oficialmente de algum aproveitamento quando recebe, bem depois, o pedido de

Licença Prévia – LP.58

2) ESTUDOS DE VIABILIDADE DOS APROVEITAMENTOS

HIDRELÉTRICOS:

A segunda etapa é relativa aos estudos de viabilidade de cada

aproveitamento hidrelétrico. Compreende o aprofundamento do conhecimento

sobre as condições físicas, ambientais e socioeconômicas da área onde se situa o

aproveitamento, possibilitando a elaboração dos estudos de viabilidade técnica,

socioambiental e econômica. Nesta etapa, são realizadas investigações de campo

no local, para dimensionamento do aproveitamento, do reservatório, da sua área

de influência, das obras de infra-estrutura local e regional necessárias. Com a

presença de equipes técnicas na região do projeto, são ocasionados os primeiros

movimentos e ações dos segmentos representativos das comunidades, associados

aos mais diversos interesses despertados pela futura usina hidrelétrica. Com base

nesses estudos, são preparados o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o

Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) de um empreendimento, para fins de

obtenção da Licença Prévia (LP), junto aos órgãos ambientais.

A Resolução n. 395/98 da ANEEL objetiva, portanto, estabelecer os

procedimentos gerais para (1) registro, seleção e aprovação de estudos de viabilidade

58 BURIAN, Paulo Procópio. Avaliação Ambiental Estratégica como instrumento de licenciamento

para hidrelétricas – o caso das bacias do rio Chopim no Paraná. Disponível pelo site < http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT06/paulo_burian.pdf>. Ultimo acesso em 25 de agosto de 2008.

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e projeto básico de empreendimentos de geração hidrelétrica; (2) autorização de

exploração de potenciais hidráulicos até 30.000 kW; e (3) emissão de declaração de

utilidade pública, para fins de desapropriação (ou instituição de servidão

administrativa) das áreas necessárias à implantação de instalações de geração de

energia elétrica;

Após a conclusão, os estudos de viabilidade técnica e os estudos

socioambientais são submetidos, respectivamente, à aprovação da EPE e do órgão

ambiental (IBAMA ou órgão ambiental estadual, conforme o caso). A aprovação

desses estudos constitui a declaração da viabilidade técnica e socioambiental do

projeto que, assim, estará apto a integrar o programa de licitações.

Importante mencionar que o novo modelo normativo não define

claramente o papel socioambiental da EPE, mas esta é responsável pelo

cumprimento das exigências nas duas etapas anteriores e, também, pela obtenção

da licença prévia ambiental (LP), ficando as demais, ou seja, a Licença de

Instalação (LI) e a Licença de Operação (LO), sob responsabilidade do futuro

concessionário.59

Uma critica merece ser realizada quanto à alteração realizada na

legislação, neste particular, para atender aos reclamos dos empreendedores.

Anteriormente, segundo a sistemática regular do licenciamento ambiental, a

licença prévia somente poderia ser obtida após o término do processo de licitação

e o conhecimento do concessionário responsável pela exploração do potencial

hidráulico. Porém, o novo modelo instituído para o setor hidrelétrico acabou por

se curvar aos argumentos de seus defensores, no sentido de que nenhuma empresa

privada se interessaria em participar da licitação de um aproveitamento sem saber

se - e em que condições - seria obtida a licença ambiental. Esta inversão do

processo de licenciamento ambiental, por óbvio, gera prejuízos à análise

socioambiental do projeto, pois aquela empresa responsável pela elaboração do

EIA/RIMA e pela solicitação da licença prévia não necessariamente é a vencedora

da licitação.60

59 Sobre as regras para o licenciamento ambiental, veja-se, mais adiante, o capítulo próprio para tratar da matéria. 60 VAINER. Carlos B. Recursos hidráulicos: questões sociais e ambientais. Revista Estudos Avançados n 59, Dossiê Energia. São Paulo: Instituto de Estudos avançados da USP, 2007. Disponível em < http://www.fem.unicamp.br/~seva/artVAINER_EstudAvan_abril07.pdf -> Último acesso em 31 de janeiro de 2009.

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52

De fato, pode ocorrer, como veremos no caso-referência do Complexo do

Rio Madeira, que o empreendedor, após a licença prévia, queira modificar o

projeto original ou discorde de determinadas premissas e critérios adotados no

EIA/RIMA apresentado. Isto, por si só, já é um complicador desnecessário a um

processo que, diga-se de passagem, já é por demais complexo.

Ademais, outra incoerência é que, na prática, o empreendedor obtém a

concessão sem ter assumido qualquer tipo de compromisso com as populações

atingidas ou com o órgão ambiental e, ainda, sem ter participado das audiências

públicas, momento singular em que se formaliza a participação pública no

processo de licenciamento ambiental.

A mera inclusão dos termos da licença ambiental, com eventuais

condicionantes, no edital de licitação, em nosso entender, apenas explicita uma

assunção formal de compromisso. Não traduz de forma legítima a preocupação do

vencedor da licitação em observar seus termos, já que este não participou da etapa

anterior, de extrema relevância para o processo de licenciamento ambiental.

3) ETAPA DE IMPLANTAÇÃO DO PROJETO.

A terceira etapa, de implantação do empreendimento, é de

responsabilidade do vencedor da licitação, a quem foi outorgada a concessão para

a construção e operação do empreendimento. Ela é fiscalizada pela ANEEL e

monitorada pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE). Verifica-se

com o efetivo início das obras civis, o que traz outras consequências para a região

do empreendimento, como a vinda de contingente populacional interessado em

oportunidades de trabalho, oferecidas pela construção da usina.

Cabe, neste momento, tratar do processo de licitação necessário para a

concessão de tal empreendimento.

Nesse particular, a Lei nº 8.666/93 institui normas para a realização de

licitações e para assinatura de contratos de concessão de serviços públicos, o que

inclui a outorga de concessões de aproveitamentos hidrelétricos.

Assim, em conformidade com os artigos 6° e 12º da referida Lei, deverão

ser realizados e aprovados estudos de impacto ambiental como requisito para

análise dos projetos básicos e executivos de obras e serviços. Dispõe, ainda, o

artigo 5º, que o poder concedente deve justificar a conveniência da outorga de

concessão, além de caracterizar seu objeto, área e prazo, previamente à publicação

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do edital de licitação. A motivação, no caso da concessão de aproveitamento de

potencial hidráulico, advirá das análises que culminam com a elaboração do Plano

Decenal de Geração – PDG. Já a caracterização do empreendimento se dará após

a aprovação dos estudos de viabilidade, etapa em que se inicia a análise

individualizada dos aproveitamentos.

A lei de licitações, no art. 6º, inciso IX, traz a conceituação de Projeto

Básico como aquele que é o

conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução. O projeto básico deve conter:

1) o desenvolvimento da solução escolhida de forma a fornecer visão

global da obra e identificar todos os seus elementos constitutivos com clareza;

2) soluções técnicas globais e localizadas, suficientemente detalhadas, de

forma a minimizar a necessidade de reformulação ou de variantes durante as fases

de elaboração do projeto executivo e de realização das obras e montagem;

3) a identificação dos tipos de serviços a executar e de

materiais/equipamentos a serem incorporados à obra, bem como suas

especificações que assegurem os melhores resultados para o empreendimento,

sem frustrar o caráter competitivo para a sua execução;

4) informações que possibilitem o estudo e a dedução de métodos

construtivos, instalações provisórias e condições organizacionais para a obra, sem

frustrar o caráter competitivo para a sua execução;

5) subsídios para montagem do plano de licitação e gestão da obra,

compreendendo a sua programação, a estratégia de suprimentos, as normas de

fiscalização e outros dados necessários em cada caso; e

6) o orçamento detalhado do custo global da obra, fundamentado em

quantitativos de serviços e fornecimentos propriamente avaliados.61

Já o projeto executivo é definido como o conjunto dos elementos

necessários à execução completa da obra, de acordo com as normas pertinentes da

Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.62

61 LEI FEDERAL n. 8666/93. Art. 6º, inciso IX, alíneas a a f.

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Por sua vez, tanto no projeto básico como no executivo certos requisitos

devem ser considerados: a) a segurança, a funcionalidade e a adequação ao

interesse público, bem como a economia na execução, conservação e operação; b)

a possibilidade de emprego de mão-de-obra, de materiais, de tecnologia e de

matérias-primas existentes no local para execução, conservação e operação; c) a

facilidade na execução, conservação e operação, sem prejuízo da durabilidade da

obra ou do serviço; d) a adoção das normas técnicas, de saúde e de segurança do

trabalho adequadas; e e) a previsão de impactos ambientais.

Além disso, um primeiro aspecto a ser ressaltado diz respeito à menção

que a lei de licitações faz aos impactos ambientais, deixando de aludir aos sociais.

Quanto a esse último requisito, é importante esclarecer que a sua caracterização

não deve ficar restrita à definição legal prevista no art. 1º da Resolução 01/86 do

CONAMA. Tal dispositivo considera como impacto ambiental somente alterações

de caráter físico, químico e biológico do meio ambiente, causadas por qualquer

forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou

indiretamente, afetem a saúde, a segurança, o bem estar da população, as

atividades sociais e econômicas, a biota, as condições estéticas e sanitárias do

meio ambiente e a qualidade dos recursos naturais.

Ao revés, uma noção mais ampliada de impacto ambiental deve ser

considerada a fim de abranger os aspectos sociais e econômicos do projeto em

discussão. Isso inclui a avaliação do impacto da obra sobre as atividades agrícolas

e industriais, o meio urbano ou rural, os usos potenciais dos recursos ambientais, a

saúde pública e a qualidade de vida em geral da população atingida.63

Na referida etapa, são intensificadas as negociações com representantes

tanto das comunidades locais e quanto daquelas atingidas pelas barragens,

especialmente com relação ao processo de remanejamento populacional (além de

discussões sobre mitigação e compensação pelos impactos socioambientais

ocasionados pelo empreendimento), culminando com a celebração de acordos

para a implantação desses programas, detalhados no Projeto Básico Ambiental

(PBA), que constitui instrumento para a obtenção da Licença de Instalação (LI).

62 LEI FEDERAL n. 8666/93. Art. 6º, inciso X. 63 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 31-32.

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A seu turno, a Lei de Concessões ( Lei n. 8987/95 ), no artigo 23,

estabelece quinze cláusulas essenciais aos contratos de concessão - mas nenhuma

delas menciona impactos socioambientais. A única referência ao meio ambiente

vem ditada no artigo 29, inciso X, que inclui, entre as incumbências do poder

concedente “estimular o aumento da qualidade, produtividade, preservação do

meio ambiente e conservação”.64

O novo modelo normativo do setor elétrico perdeu a oportunidade, por

conseguinte, de suprir a aludida omissão, incluindo cláusulas de observância

obrigatória, no que diz respeito aos aspectos socioambientais já tradicionalmente

conhecidos na implantação de projetos hidrelétricos, diminuindo, por exemplo, a

margem de autonomia quanto à negociação individual que ocorre entre a empresa

e a população atingida, principalmente no que concerne ao pagamento de

indenizações e ao reassentamento obrigatório.

A não-intervenção do poder público em questões como essas faz com os

interesses do empreendedor, de diminuição dos custos com a produção de energia,

sobreponham-se aos interesses da população afetada, que lutam pela manutenção

de uma qualidade de vida digna. A equação é simples: a legislação prevê que o

poder público, como detentor do direito de uso do potencial hidrelétrico, possa

transferir para a iniciativa privada, por meio de concessão, tal direito de

exploração, porém não estabelece regras mínimas para a observância das

condições de vida e de moradia da população atingida pelo empreendimento. Tal

omissão, logicamente, contribui para o aumento da desigualdade e da exclusão

sociais.

Em virtude das irregularidades e contradições ocasionadas pelo novo

modelo normativo do setor elétrico, impõe-se, a adoção de uma “agenda

socioambiental” que

deverá contemplar questões herdadas da etapa anterior e questões decorrentes do próprio processo de reestruturação. Considerando as conseqüências que as decisões tomadas no âmbito do setor elétrico têm no processo de estruturação do território, no desenvolvimento regional, na minimização ou reiteração de desigualdades regionais e sociais, bem como na gestão de recursos ambientais, hídricos em primeiro lugar, é

64 VAINER. Carlos B. Recursos hidráulicos: questões sociais e ambientais. Revista Estudos Avançados n 59, Dossiê Energia. São Paulo: Instituto de Estudos avançados da USP, 2007. Disponível em < http://www.fem.unicamp.br/~seva/artVAINER_EstudAvan_abril07.pdf -> Último acesso em 31 de janeiro de 2009.

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indispensável proceder a uma ampla e decisiva democratização do processo de planejamento de longo, médio e curto prazos do setor elétrico.65 Assim, após a apresentação dos procedimentos que constituem a fase

inicial do planejamento energético - sem analisar detalhadamente o processo de

licenciamento ambiental, a ser esmiuçado em capítulo posterior -, verifica-se que,

embora haja algumas referências na legislação setorial sobre a observância de

aspectos socioambientais, estas variantes ficam subdimensionadas quando da

concepção e da implantação dos projetos hidrelétricos. A dimensão econômico-

energética se sobrepõe àquela e acaba ditando os rumos do processo decisório, até

mesmo pelo fato de que a lei incumbe, ao setor energético, a condução desse

processo.

A articulação entre os diversos setores torna-se, enfim, difícil e passível de

entraves por envolver, no âmbito de cada um ( energético, ambiental ou hídrico )

o cumprimento de uma série de regras e de cronogramas de natureza complexa,

que dizem respeito a elementos técnicos (obras de engenharia e execução do

projeto); econômico-financeiros (financiamento); e socioambientais

(licenciamento ambiental, remanejamento populacional), com perspectivas

distintas.

Portanto, apesar dos significativos avanços da normativa na esfera

ambiental, ainda hoje se percebe que a primeira fase de planejamento, a cargo dos

órgãos integrantes do setor elétrico, não se coaduna com os ditames da tutela

ambiental presente na Constituição Federal, no estabelecimento do dever do poder

público de defesa e de preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado

(art. 225 da CF/88). O papel de condução do processo gera, no mais das vezes,

uma interferência indevida do setor energético na análise da viabilidade

ambiental, por meio de mecanismos de pressão para que as licenças ambientais

sejam rapidamente concedidas.66

As imperfeições acima identificadas, na legislação em vigor, e as

distorções que ocorrem no processo decisório, sob o ponto de vista

socioambiental, acabam por contribuir para o aumento dos conflitos inerentes à

65 Idem. 66 Esta afirmação será examinada mais detalhadamente por ocasião da análise dos casos-referência, especialmente, no do Complexo do Rio Madeira, em que se visualizou de forma explícita a interferência do Ministério das Minas e Energia junto ao IBAMA.

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Planejamento do Setor Elétrico – Ciclo de Empreendimentos Hidroelétricos

Plano de Longo Prazo

(MME/ EPE)

Plano decenal(MME/ EPE)

Programa de licitação

(MME/ EPE)

Operação

Construção

Alternativas energéticas e

tecnológicas

Estudos de

inventário

Estudos de viabilidade

Projeto Básico

EPE

EPE

EPE – EIA RIMA e LP

Projeto executivo

Fonte: Desafios ambientais no novo modelo do setor elétrico, Seminário FBDS – A sustentabilidade socioambiental dos empreendimentos do setor elétrico. Silvia Helena M. Pires – 01/04/2005

Inventário hidroelétrico

Viabilidade + EIA

Projeto básico Construção Operação

Interação com agências ambientais, de recursos hídricos e

outros agentes

LP

Audiência pública

LI

Programas ambientais

LO

Implementação de programas ambientais

LO Renovação

Licitação

Aprovação dos estudos

Aprovação do Projeto

EPE Empreendedor

Articulação do processo de licenciamento com desenvolvimento dos projetos

Fonte: Desafios ambientais no novo modelo do setor elétrico, Seminário FBDS – A sustentabilidade socioambiental dos empreendimentos do setor elétrico. Silvia Helena M. Pires – 01/04/2005

implantação de tais projetos hidrelétricos. A seguir, serão abordados os impactos

socioambientais propriamente ditos, causados pela implantação deste tipo de

empreendimento no cenário brasileiro.

Os esquemas abaixo trazem, a nosso ver, uma melhor visualização do

sistema, do ponto de vista do setor energético:

Figura 1: Planejamento do setor elétrico – Ciclo de empreendimentos hidroelétricos

Fonte: Trabalho apresentado em Seminário do FBDS. PIRES, Silvia Helena M. A sustentabilidade socioambiental dos empreendimentos do setor elétrico. Rio de Janeiro, abril de 2005. Disponível em: http://www.fbds.org.br/IMG/pdf/doc-96.pdf.

Figura 2: Articulação do processo de licenciamento com desenvolvimento dos projetos

Fonte: Trabalho apresentado em Seminário do FBDS. PIRES, Silvia Helena M. A sustentabilidade socioambiental dos empreendimentos do setor elétrico. Rio de Janeiro, abril de 2005. Disponível em: http://www.fbds.org.br/IMG/pdf/doc-96.pdf

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2.4

Os impactos socioambientais causados pelos empreendimentos

hidrelétricos67: uma breve abordagem.

A história social e ambiental do capitalismo tem sido uma história de

intensificação da produção e do uso da energia. A eletricidade (seja de que origem

for, térmica, hidrelétrica, eólica, termelétrica ou nuclear) deixa de ser apenas uma

forma de energia e passa a ser considerada, na sociedade capitalista, cada vez mais

como uma “mercadoria energética”, de relevante valor estratégico, necessário para

o desenvolvimento dos ciclos econômicos, para a realização de lucros e de

acumulação de capital. 68 Mas, essa intensificação energética tem altos custos

ambientais e sociais, especialmente, no tocante às hidrelétricas.

No caso da hidreletricidade, a energia, bem como a água necessária para a

sua produção, passam a ter uma natureza mercantilizada, “coisificada”, para

determinados segmentos da sociedade, o que contribui para o acirramento dos

confrontos socioambientais em torno da implementação de hidrelétricas: a visão

mercantil não pode impregnar totalmente a questão, devendo-se abrir espaço para

que outras visões, presentes na sociedade, também se manifestem.

A diversidade de valores atribuídos à água, à energia e às hidrelétricas

espelha, pois, a complexidade envolvida em todo o processo para a implantação

de tais empreendimentos: uma hidrelétrica para um engenheiro é um sistema de

técnicas e tecnologias, enquanto para um economista é um conjunto de recursos,

de receitas e despesas, por exemplo. Já para a população, diretamente atingida

67 No presente estudo serão considerados os empreendimentos hidrelétricos de grande porte, excetuando-se, assim, a abordagem das chamadas Pequenas Centrais Hidrelétricas ( PCH’s ), tomando como parâmetro normativo o disposto no art. Artigo 2º , inciso VII da Resolução CONAMA 01/86, in verbis: Art. 2º - Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto ambiental - RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e do IBAMA e1n caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como: (...) VII - Obras hidráulicas para exploração de recursos hídricos, tais como: barragem para fins hidrelétricos, acima de 10MW, de saneamento ou de irrigação, abertura de canais para navegação, drenagem e irrigação, retificação de cursos d'água, abertura de barras e embocaduras, transposição de bacias, diques.

68 FILHO, Arsênio Oswaldo Sevá. MEDEIROS, Josemar Xavier de. MAMMANA, Guilherme Pellegrini. DINIZ, Regina Helena Lima. Renovação e Sustentação da produção energética. In CAVALCANTI, Clóvis (org) Desenvolvimento e Natureza. Estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003, p.355.

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59

pelo empreendimento, representa uma mudança de vida, interpretada por alguns

positivamente – mas por outros não. Para um ribeirinho que vive da pesca e que

terá de sair do local onde retira a sua subsistência, à guisa de exemplificação, a

hidrelétrica representa um risco para a sua sobrevivência e de sua família. Estas

inúmeras formas de atribuir significado às hidrelétricas são indicativas da

intensidade dos conflitos em torno do tema, em razão dos impactos por aquelas

gerados.

Os conflitos socioambientais são, portanto, os que envolvem grupos

sociais diversos, com distintas formas de uso, apropriação e significação do

território. Eles ocorrem quando um desses grupos tem ameaçada a sua forma de

apropriação e uso do recurso ambiental, por impactos inesperados e indesejáveis

decorrentes da ação de outros grupos.69

Tais conflitos, aliás, devem ser analisados, simultaneamente, nos espaços

de apropriação material e simbólica dos recursos do território. No primeiro

espaço, desenvolvem-se as lutas sociais, políticas e econômicas pela apropriação

dos recursos naturais, in casu, recursos hídricos, e no segundo, encontram-se as

representações e desenvolve-se “uma luta simbólica para impor as categorias que

legitimam ou deslegitimam a distribuição do poder”70 sobre os recursos

ambientais.

Esta conceituação é importante para entender a natureza intrinsecamente

conflitiva do meio ambiente e como os conflitos em torno das hidrelétricas são

reiterados, a cada apresentação de novos projetos.

Restringindo, então, o debate ao contexto brasileiro, verifica-se que

significativos e constantes investimentos na construção de hidrelétricas geram

impactos relevantes, tanto do ponto de vista ambiental (localização, viabilidade

ambiental, perda da biodiversidade etc) quanto social (remanejamento

populacional, pagamento de indenizações, perda das referências sócio-culturais e

dos costumes etc ).

69 ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Henri (org). Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 26. 70 Ibid, p. 23.

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60

Ora, os defensores das barragens hidrelétricas71 apontam para as

necessidades de desenvolvimento social e econômico que as barragens visam

satisfazer, como a irrigação, a geração de eletricidade e de novos empregos, o

controle de inundações, o fornecimento de água potável e a melhoria dos serviços

públicos, em geral. Já os que são contrários à sua implantação72 salientam a

natureza dos impactos adversos, tais como o aumento do endividamento, com

orçamentos indevidos, o deslocamento e o empobrecimento de populações, a

perda da biodiversidade dos ecossistemas e dos recursos pesqueiros importantes,

bem como a divisão desigual dos custos e dos benefícios.

Evidente é que, nesta Dissertação, não se poderão esgotar todos os

impactos socioambientais porventura advindos da implantação de hidrelétricas, já

que cada um dos casos ocorridos, ao longo da história brasileira, tem suas

particularidades, especialmente, no que diz respeito à caracterização e localização

da área de implantação. Tal tentativa seria, antes de tudo, uma forma generalizante

e inadequada de tratar a questão, gerando a perda da especificidade dos casos

concretos da vida social. Porém, nosso esforço será no sentido de apresentar os

principais impactos socioambientais de hidrelétricas, a partir de casos concretos já

estudados por doutrinadores de outros campos do saber, situando, assim, tais

impactos no tempo e no espaço.

Assim, há impacto ambiental quando “se avalia que uma atividade ou ação

origina ou produz uma alteração ou modificação do meio ou em alguns dos

componentes do sistema ambiental.”73

71 Em geral, incluem-se nesta categoria as empresas envolvidas na formação da estrutura de produção da unidade de produção de energia hidrelétrica (UHE), no Brasil, que abrange os seguintes setores: estudos preliminares e projeto, construção civil da barragem e fabricação de material elétrico. Estas empresas estariam constituindo um oligopólio em torno da venda do produto “UHE”. Cf. MIELNIK, O. NEVES, C. C. Características da estrutura de produção de energia hidrelétrica no Brasil. In: ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 17-38. Em muitos casos, também, os próprios governos têm interesse na aprovação dos projetos hidrelétricos, em razão, especialmente, dos recursos decorrentes da compensação financeira (Lei n. 7990/89 e Decreto n. 3739/2001). 72 Dentre estes, citamos, somente para exemplificar, movimentos sociais, como o MAB, associações, ONG’s ou OSCIP’s (Organização da sociedade civil de interesse público) que tenham como objeto a proteção ao meio ambiente (Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, Apremavi (Associação pela preservação do meio ambiente e da vida), Rios Vivos, Comissão de Preservação da Espécie e do Meio Ambiente (CDPEMA), International Rivers, entre outros) e comissões internacionais independentes como a Comissão Mundial de Barragens. 73 SCHAEFFER, Roberto. Impactos Ambientais de grandes usinas hidrelétricas no Brasil. Dissertação de Mestrado. COPPE/UFRJ, 1986.

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Partiremos, como já mencionado, de um conceito ampliado de impacto

ambiental, abrangendo não somente os aspectos bio-físico-químicos como

também os efeitos da obra ou atividade sobre as atividades agrícolas, industriais, o

meio urbano ou rural, os usos potenciais dos recursos ambientais, a saúde pública

e a qualidade de vida em geral da população atingida.74

ROSA e SCHAEFFER (1988:180-3)75 chamam a atenção para o fato de

que, nos países em desenvolvimento, o conceito de impacto ambiental é mais

amplo, envolvendo não somente a variável ambiental, como também a

socioeconômica e a política. Fora isso, o processo de tomada de decisão quanto à

implantação de hidrelétricas deve ser democrático e técnico ao mesmo tempo.

Salientam, ainda, que, da maneira como a hidreletricidade está concebida, ela

beneficia e impacta segmentos bastante diferenciados da sociedade, pois o

desenvolvimento da economia, aqui, é altamente dependente do incremento do

suprimento de energia – o PIB do país varia fortemente com o insumo de energia -

, o que não acontece em países desenvolvidos.

Afirmam os autores que, até os anos 70, as preocupações das empresas

concessionárias de energia elétrica do Brasil com os impactos ambientais se

resumiam praticamente à relocação de vias de acesso, linha de transmissão de

energia e linhas telefônicas, à construção de novos acessos e de portos e à

relocação de cidades. Após tal período, a construção de empreendimentos

hidrelétricos passou a ser precedida de estudos de impacto ambiental, o que tem

exigido das concessionárias de energia a mudança de postura na área ambiental,

com a adoção de modelo progressivamente mais adequado de práticas, apesar de

ainda insatisfatório.

Com relação à Usina de Itaipu, por exemplo, houve impactos

consideráveis sobre o meio físico e biótico - perda de recursos naturais e

paisagísticos (Salto de Sete Quedas); os problemas socioculturais também foram

de grande proporção, com a desapropriação de mais de 6.000 propriedades

espalhadas por oito municípios (lado brasileiro) e 1.200 no lado paraguaio, além

74 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 31-32. 75 ROSA, Luiz Pinguelli. SCHAEFFEr, R. Impactos ambientais e conflitos sociais: um paralelo entre usinas hidrelétricas e nucleares. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, p. 180 e 183.

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da submersão de sítios arqueológicos. Já no tocante à Usina de Tucuruí, vários

impactos foram verificados, podendo-se citar a submersão de vários sítios

arqueológicos não estudados, 3.350 famílias (totalizando 17.319 pessoas)

obrigadas a abandonar suas terras e a inundação de nove reservas indígenas.76 77

Quanto à implantação da hidrelétrica de Sobradinho78, ocorrida no período

do governo militar Médici, observa-se uma nítida mudança no rumo dos projetos

previstos pelo poder público para o Vale do Rio São Francisco. Se, antes, havia

uma preocupação na fixação da população no local, com a valorização econômica

de tal região voltada para o desenvolvimento de agricultura, depois, ficou clara a

prioridade aferida à produção de energia.

Os principais impactos socioeconômicos ocorridos79, além da transferência

da população rural de seu povoado originário para o núcleo situado na borda do

lago construído pela CHESF, foram: 1) a descapitalização cumulativa das

populações afetadas pelo empreendimento, gerada pelo despreparo das glebas

recebidas para o desenvolvimento da agricultura e também pelo pagamento de

indenização inadequada e insuficiente, sem a fixação prévia de critérios e em

momento inoportuno – antes do reassentamento, de maneira que a população já

chegava ao núcleo descapitalizada; 2) a perda da criação também representou

importante impacto no fundo de reserva e de acumulação da população rural; 3) a

desestruturação das relações socioculturais da população rural que se encontrava

76 ROSA, Luiz Pinguelli. SHAEFFER, R. Impactos ambientais e conflitos sociais: um paralelo entre usinas hidrelétricas e nucleares. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 188-190. 77 Há divergência quanto aos números apresentados acima, pois consta do Panorama do Setor de Energia Elétrica do Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2006, pp. 389-390, que no lado brasileiro, o empreendimento atingiu 12 municípios e quatro núcleos urbanos e remanejou 40.000 pessoas. 78 Situada no submédio do Rio São Francisco, na Bahia, foi construída pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco ( CHESF ), concessionária da Eletrobrás. Os trabalhos para sua implantação começaram em 1974 e exigiram o desalojamento de aproximadamente 60.000 pessoas, segundo dados oficiais ou 72.000, segundo dados da organização sindical dos trabalhadores rurais. Cf. SIGAUD, Lygia. Efeitos Sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho. In: ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 88-89. 79 SIGAUD, Lygia. Efeitos Sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes

projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 93-94.

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na área do reservatório ( com verdadeiro “redimensionamento de unidades sociais

preexistentes e uma alteração das relações entre elas”80, além de perda dos

elementos de identidade do povoado - nome, santo padroeiro, festas religiosas, as

atividades desenvolvidas pelos moradores etc. ).; 4) A inviabilização da

agricultura da vazante; 5) a alteração dos hábitos das populações afetadas ( a

plantação passou a ser realizada na margem do lago abaixo da cota máxima do

reservatório – pelas melhores condições físicas destas -, correndo o risco de perda

da colheita pelas inundações causadas com a subida do nível do reservatório; o

“sobe e desce” das águas imposto pelas barragens fez desaparecer, ainda, o

esquema de referências da população, como a forma de proceder no cultivo

agrícola diante do movimento das águas); 6) a inviabilização da atividade de

pesca tradicional, através do uso de pequenas embarcações; 7) alterações na infra-

estrutura dos municípios impactados pela hidrelétrica, com a modernização da

região (pavimentação de rodovias, construção de agências bancárias e de canais

de irrigação, fornecimento de energia elétrica) – atraindo investidores de fora,

especialmente grileiros, que passaram a tomar as terras da região, sem titulação

legal formalizada.

Impactos semelhantes foram notados no caso da hidrelétrica de

Machadinho81, especialmente no tocante ao tratamento desumano e autoritário

conferido à população afetada pela empresa ELETROSUL, sem nenhum

planejamento prévio sobre o seu destino e com a preocupação constante de

redução de custos sociais.82

No entanto, diferentemente do caso anterior, pôde-se notar que, em razão

da mobilização política e organizada da população afetada - desde o início de todo

o processo -, com alianças realizadas junto ao movimento sindical e à Igreja

Católica83, a ELETROSUL mudou um pouco sua postura, preocupada com sua

imagem frente à opinião pública. Ressalte-se que a resistência organizada impôs

80 Idem. p. 123. 81 Usina hidrelétrica instalada entre os municípios de Maximiliano de Almeida – RS e Piratuba – SC, tendo os estudos para sua implantação sido realizados desde a década de 60, porém com funcionamento somente no início de 2002, após processo licitatório para exploração do potencial hidrelétrico e licenciamento ambiental. 82 SIGAUD, Lygia. Efeitos Sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes

projetos hidrelétricos e nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 152-161. 83 Essa situação se tornou possível notadamente pelos contextos político e econômico, já que, no período do projeto de Machadinho, já havia uma ligeira abertura para a “redemocratização” do regime.

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mudanças no projeto original, com a redefinição do eixo da barragem e mudança

da quota, reduzindo significativamente a área inundada e o número de famílias

atingidas.

Destaca-se, neste período, inclusive, a criação da Comissão de Barragens

(dezembro de 1979) antes mesmo da decisão do Estado em construir a usina,

movimento extremamente importante que ensejou, posteriormente, a criação da

Comissão Regional de Atingidos por Barragens (CRAB)84 e de Comissões Locais.

A radicalização desse movimento, que contou com a adesão de vários

segmentos da sociedade regional, inclusive prefeitos e cooperativas, e com a

realização de atos como a Romaria da Terra (da qual participaram cerca de vinte

(20) mil pessoas, com o lema “Águas para a vida, não para a morte”), além de

iniciativas diretas impedindo a ação de técnicos da ELETROSUL no local, deu

ensejo, em 1987, à assinatura de um acordo histórico entre esta e o CRAB.85

O referido acordo representava, de um lado, a aceitação tácita da

construção das barragens situadas na bacia do Rio Uruguai pelas lideranças do

CRAB e, de outro, o reconhecimento pela ELETROSUL e pelo setor elétrico

brasileiro do CRAB como representante legítimo dos atingidos. As principais

conquistas do movimento, através do referido acordo, foram a afirmação da

negociação coletiva, com a presença de representantes do CRAB, o

reconhecimento do direito de reassentamento de todos os atingidos pelo

deslocamento compulsório, proprietários de terras ou não, e a conciliação do

cronograma das obras com o de negociação e solução dos problemas sociais.86

A Comissão Regional de Atingidos por Barragens do alto Uruguai

(CRAB), então, surgiu nesse período (final da década de 70), em meio à crise da

84 A Comissão Regional de Atingidos por Barragens era composta por uma coordenação integrada por várias entidades: Sindicatos dos Trabalhadores Rurais dos Municípios de Marcelino Ramos, Aratiba, Maximiliano de Almeida (no Rio Grande do Sul), Ita, Piratuba, Diocese de Chapecó (em Santa Catarina); Igreja Evangélica de Confissão Luterana e Comissão Pastoral da Terra. Tinha como função promover a discussão sobre os “problemas das barragens”, acompanhar os “atingidos” durante a construção, realizar análise científica das conseqüências e soluções das barragens, fornecer informações aos agricultores, para que pudessem se defender, servindo de ponto de apoio aos agricultores e demais atingidos. Cf. SIGAUD, Lygia. Efeitos Sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho. In ROSA. Luiz Pinguelli. SIGAUD. Lygia. MIELNIK. Otávio. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e

nucleares. São Paulo: AIE/COPPE, Marco Zero. 1988, pp. 132-134. 85 VAINER, Carlos B. O plano de Recuperação e Desenvolvimento Econômico e Social das

Comunidades Atingidas pelas Barragens de Ita e Machadinho. Uma experiência inovadora de

extensão universitária e de planejamento. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XVII, No I, 2003, p. 135-153. 86 Ibid, p. 139-140.

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ditadura militar e ao ambiente de crescentes lutas e reivindicações populares, –

sofrendo a influência dos efeitos da construção de Itaipu e da previsão de novas

usinas para a Bacia do Rio Uruguai, dentre elas, a de Machadinho. A referida

organização foi se consolidando e, ao longo da década de 80, vários encontros

regionais foram realizados, em razão dos problemas sociais decorrentes de usinas

em diversas regiões brasileiras, como na bacia do São Francisco e em Tucuruí, no

Rio Tocantins, contando com o apoio de movimentos sindicais, inclusive, como o

do Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da CUT. Todas essas

articulações deram ensejo, em meados de 1992, à criação de um movimento

nacional, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), de notória

importância no campo da luta tanto pelo respeito aos direitos das populações

afetadas no processo de implantação das hidrelétricas como contra um modelo de

desenvolvimento concentrador de terras e de riquezas. 87

Sua base social é predominantemente composta de pequenos agricultores e

trabalhadores rurais88 e se distingue de outros movimentos populares por sua forte

consciência ambiental. Adota como valores fundamentais, dentre outros, a

primazia da democracia pela base e da ação direta de massas no processo de

negociação, a autonomia do movimento em relação ao Estado e aos partidos

políticos, o reconhecimento de um sujeito político popular coletivo.

Hoje, após quase trinta anos de luta, é notória a consolidação do MAB

como movimento em defesa da democratização da política energética, da busca

por fontes alternativas de energia, da redução do desperdício energético e do fim

dos subsídios destinados a indústrias eletrointensivas voltadas para exportação.89

Com isso, evidencia-se como agente articulador fundamental na busca da

87 VAINER, Carlos B. Águas para a vida, não para a morte. Notas para uma história do movimento de atingidos por barragens no Brasil. In: ACSELRAD, Henri. HERCULANO, Selene. PADUA, José Augusto (org). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Ford, 2004, pp. 187-193. 88 Este segmento predominante não impediu, todavia, o crescimento do movimento, com a incorporação de pequenos comerciantes, profissionais de pequenos povoados, médios proprietários rurais e a aliança com sindicatos rurais e com outros movimentos populares com o Movimento dos Sem Terra (MST). Além disso, o MAB, como importante agente de desenvolvimento local, busca parcerias com ONG’s ambientalistas e com a comunidade científica na busca de ampliação do conhecimento sobre questões técnicas e de parceiros no processo de resistência. 89 VAINER, Carlos B. O plano de Recuperação e Desenvolvimento Econômico e Social das

Comunidades Atingidas pelas Barragens de Ita e Machadinho. Uma experiência inovadora de

extensão universitária e de planejamento. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XVII, No I, 2003, p. 141.

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concretização da participação pública no processo decisório de implantação de

hidrelétricas no Brasil.

Importante destacar, ainda nesse tópico, o trabalho desenvolvido pela

Comissão Mundial de Barragens90, instituída desde 1998, que, após estudo de

diversos casos de implantação de hidrelétrica em todo o mundo, aponta para os

seguintes impactos socioambientais causados pela construção de hidrelétricas:

1) A destruição de florestas e habitats selvagens, o desaparecimento de espécies e

a degradação das áreas de captação a montante devido à inundação da área do

reservatório;

2) A redução da biodiversidade aquática, a diminuição das áreas de “desova” a

montante e à jusante, assim como o declínio dos serviços ambientais prestados

pelas planícies aluviais a jusante, brejos, ecossistemas de rios e estuários, e

ecossistemas marinhos adjacentes;

3) Os impactos cumulativos sobre a qualidade da água, inundações naturais e a

composição de espécies quando várias barragens são implantadas em um mesmo

rio;

4) A emissão de gases que contribuem para o efeito estufa, devido à

decomposição de vegetação e ao influxo de carbono, na formação dos

reservatórios;91

Além disso, destaca-se:

A) A sedimentação e a conseqüente redução, a longo prazo, da capacidade de

armazenamento sentidos particularmente nas bacias com taxas elevadas de erosão

de origem geológica ou humana, em barragens construídas nas extensões a jusante

dos rios e em barragens com reservatórios de menor capacidade;

90 Grupo de Trabalho criado no âmbito do ONU, composto por integrantes dos governos, instituições multilaterais, empresas construtoras, ambientalistas e movimentos de atingidos por barragens de todo o mundo, para analisar os conflitos na implantação das barragens em todo o mundo e propor novas soluções. No total, foram visitadas 100 usinas no mundo e elaborados 15 estudos de casos, sendo que a usina Tucuruí, no Brasil, foi o único caso estudado na América Latina. A comissão ( CMB ) apresentou relatório final publicado em 2000, cujo sumário encontra-se disponível em: http://www.dams.org//docs/overview/cmb_sumario.pdf . Último acesso em 29 de setembro de 2008. 91 A intensidade dessas emissões varia muito. A comissão, analisando os dados preliminares do estudo de caso sobre uma usina hidrelétrica no Brasil, afirma que o nível bruto dessas emissões é significativo quando comparado com as emissões de usinas termelétricas equivalentes.

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B) O alagamento e a salinização afetam um quinto das terras irrigadas do mundo -

incluindo terras irrigadas por grandes barragens - e apresentam graves impactos de

longo prazo, muitas vezes permanentes, sobre a terra, a agricultura e a

subsistência da população, se não for realizada a reabilitação ambiental;

Por outro lado, com relação à efetividade das medidas mitigadoras

adotadas, a Comissão concluiu que:

a) O uso de escadas de peixes para mitigar os impactos sobre as espécies

migratórias não teve sucesso, porque, muitas vezes, a tecnologia não era

adequada para os locais e as espécies em questão.

b) Não é possível mitigar vários dos impactos de uma represa sobre os

ecossistemas e a biodiversidade terrestres (tentativas para o resgate de

animais silvestres tiveram pouco êxito a longo prazo).

c) A eficácia das medidas mitigadoras somente ocorre a partir de uma viável

base de informações, da cooperação antecipada entre ecologistas,

projetistas da barragem e pessoas afetadas, e do monitoramento e

acompanhamento regulares da eficácia das medidas de mitigação.

No que diz respeito aos impactos sociais, o relatório da CMB é enfático ao

afirmar que não são corretamente avaliados e sequer considerados na implantação

das hidrelétricas, acarretando conseqüências danosas para a vida, para a saúde e

para a subsistência das pessoas. Reporta que milhares de indivíduos deslocados

pelas barragens (entre 40 e 80 milhões de pessoas) sofreram prejuízos elevados

em seus meios de subsistência. Por outro lado, a produtividade futura dos recursos

naturais, advindos da prática agrícola desempenhada, foi colocada em risco.

Ressalta, ainda, que muitos dos deslocados não foram reconhecidos (ou

cadastrados) como tal e, portanto, não foram reassentados nem indenizados.

Mesmo nos casos em que houve indenização, ela constantemente se revelou

inadequada e, nos casos em que as pessoas deslocadas foram devidamente

cadastradas, muitas não foram incluídas nos programas de reassentamento. Nesses

últimos, por fim, constatou-se que as pessoas raramente tiveram seus meios de

subsistência restaurados, pois os programas de reassentamento, em geral,

concentram-se na mudança física, excluindo a recuperação econômica e social dos

deslocados.

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Relevante, ainda, mencionar as recomendações trazidas pelo relatório da

Comissão Mundial de Barragens92. Estas envolvem: aumentar a eficiência dos

sistemas já implantados; evitar e minimizar os impactos sobre o meio ambiente,

adotar a análise participativa das opções (em todas as fases de planejamento e

implementação, promovendo resultados negociados) e necessidade de

desenvolvimento, valendo-se de critérios diversos (dentre tais opções incluem-se a

redução do consumo, reciclagem e alternativas tecnológicas e políticas capazes de

promover um uso mais eficiente da água e da eletricidade pelo usuário final);

assegurar a melhoria dos meios de subsistência das pessoas desalojadas e afetadas

pelos projetos de barragens, resolver injustiças e desigualdades passadas,

transformando as pessoas afetadas pelo projeto de barragens em seus beneficiários,

realizar monitoramento constante e revisões periódicas dos projetos; e elaborar,

aplicar e reforçar incentivos, sanções e mecanismos de apelação – especialmente na

área de desempenho ambiental e social.

Nos casos-referência apresentados a seguir, abordar-se-ão os impactos

socioambientais dos empreendimentos hidrelétricos e, como será demonstrado,

suas atuações não diferem, em grande medida, das conclusões acima, advindas do

relatório da CMB.

92 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS. Barragens e Desenvolvimento: um novo modelo

para tomada de decisões. Um sumário. p. 24. Disponível em: http://www.dams.org//docs/overview/cmb_sumario.pdf. (Acesso em 29 de setembro de 2008).

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