2º CONGRESSO BRASILEIRO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM
SAÚDE
UNIVERSALIDADE, IGUALDADE E INTEGRALIDADE DA SAÚDE: UM PROJETO
POSSÍVEL
O modelo dos múltiplos fluxos de Kingdon na análise de políticas de saúde no Brasil:
aplicabilidades, contribuições e limites
Leila Bernarda Donato Gottems1
Maria Raquel Gomes Maia Pires2
BELO HORIZONTE
2013
1 Secretaria de Estado da Saúde do DF
2 Universidade de Brasília
O modelo dos múltiplos fluxos de Kingdon na análise de políticas de saúde no Brasil:
aplicabilidades, contribuições e limites
The model of multiple streams of Kingdon in the analysis of health policies in Brazil:
applicabilities, contributions and limits
O modelo dos múltiplos fluxos de Kingdon na análise de políticas de saúde no Brasil
The model of multiple streams of Kingdon in the analysis of health policies in Brazil
RESUMO
O artigo objetiva analisar as aplicabilidades, os potenciais e os limites do modelo dos múltiplos
fluxos (Kingdon, 2003 e Zarahiadis, 2007) na análise da dimensão política das políticas de
saúde no contexto do Sistema Único de Saúde brasileiro. Será elaborado a partir de estudo de
caso que investigou o processo de formação da política de Atenção Primária à Saúde (APS), no
Distrito Federal do Brasil, no período de 1979 a 2009. Trata-se de uma análise em uma
perspectiva processual da formulação, nas fases pré-decisional e decisional, e de
implementação no âmbito da gestão pública, que busca explicar como a política surgiu, o que
mudou e por que as mudanças ocorreram, respondendo “por que” e “como” as decisões do
governo culminaram em mudanças dessa política ao longo do tempo. Aplica-se o modelo
conceitual dos múltiplos fluxos de Kingdon (2003) em uma narrativa analítica. O estudo de
caso buscou responder “que fatores ligados ao fluxo de problemas, das propostas e ao contexto
político explicam o processo de formação da política de Atenção Primária à Saúde no Distrito
Federal”? Partiu-se da hipótese que o desenvolvimento da política de APS no Distrito Federal
foi fortemente influenciado por questões relativas ao fluxo político, mais do que pela
formulação das propostas e de interpretação de problemas epidemiológicos e sociais, que
justificassem as mudanças que se operaram ao longo desse período. O estudo possibilitou a
construção de uma explicação válida para as descontinuidades e a baixa implementação dessa
política; a identificação da complexidade da inter-relação dos problemas, das soluções e do
meio político com a atuação dos atores na abertura de janelas de oportunidades para a inclusão
de questões novas na agenda do governo; a identificação das aplicabilidades, dos potenciais e
limites do modelo dos múltiplos fluxos na analise da dimensão política da política de saúde.
ABSTRACT
The article aims to analyze the applicabilities, potentials and limits of the model of multiple
streams (KINGDON, 2003 and ZARAHIADIS, 2007) in the analysis of the political dimension
of health policies in the context of the Brazilian Unified Health System. It will be created from
the case study that investigated the formation process of policy of Primary Health Care (PHC)
in the Distrito Federal of Brazil, from 1979 to 2009. This is an analysis under a procedural
perspective of the formulation, in the pre-decisional and decisional phases, and of
implementation within the public administration, which seeks to explain how the policy came
about, what has changed and why changes happened, answering “why” and “how” government
decisions culminated in that policy changes during the time. The conceptual model of multiple
streams of Kingdon (2003) was applied in an analytical narrative. The case study sought to
answer “what factors related to flow problems, proposals and political context explain the
process of policy formation of Primary Health Care in the Distrito Federal?”. We started from
the hypothesis that the development policy of the PHC in Distrito Federal was heavily
influenced by political issues concerning the political flow, rather than the formulation of
proposals and interpretation of epidemiological and social problems, to justify the changes that
have taken place over this period. The study permitted the construction of a valid explanation
for the discontinuities and poor implementation of this policy, identifying the complexity of the
interrelation of the problems, the solutions and the political actors acting with the opening
windows of opportunities for adding issues on the agenda of the new government; and the
identification of applicabilities, potentials and limits of the model of multiple streams in the
analysis of the political dimension of health policy. Keywords: Public policies; Health
policies; Case study.
INTRODUÇÃO
O movimento da Reforma Sanitária dos anos 70 e 80, no Brasil, quando ocorre a
transição democrática do país, produz mudanças substanciais que são inseridas na Constituição
Federal de 19883, nas Leis nº. 8080/90
4 e n.º 8142/90
5 e culminam com a criação do Sistema
Único de Saúde. Desde então, o Ministério da Saúde (MS) vêm impulsionando a reorganização
da assistência a saúde, visando a enfrentar os desafios decorrentes da transição epidemiológica
e demográfica, das desigualdades sociais e da garantia do direito da população ao acesso a
serviços de qualidade1-5
. Ao longo das últimas três décadas, fortaleceu, os processos de
descentralização da gestão da rede de serviços, por meio do repasse aos municípios, da
prestação direta da maioria das ações e programas de saúde6-7
.
Desde 1994 a Atenção Primária à Saúde (APS) ou Atenção Básica à Saúde (ABS) –
denominações aqui empregadas como sinônimos – por meio da Estratégia Saúde da Família
(ESF)7-12
, passa a integrar a agenda do MS. Trata-se de um conjunto de ações fundamentadas
nos princípios do SUS, no âmbito da saúde individual e coletiva, que abrangem a promoção e a
proteção, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da
saúde. A iniciativa tem caráter participativo e pressupõe a integração dos serviços em rede de
atenção, enfatizando-se o trabalho em equipe, a territorialização, a co-responsabilidade
sanitária e o foco nas necessidades da população, tendo as unidades básicas de saúde (UBS)
como contato preferencial do sistema e como ordenadoras do cuidado ao usuário, à família e à
comunidade7-13
.
Avaliações sobre a implantação da ESF no Brasil8-10
revelam resultados positivos,
sobretudo nos municípios de pequeno porte, com menos de 100 mil habitantes, com elevação
nas taxas de cobertura assistencial no curto prazo e melhoria no acesso aos serviços. Nos
grandes centros, especialmente com mais de 500 mil habitantes, a consolidação é prejudicada
por aspectos multifatoriais, como a complexidade epidemiológica, o adensamento
populacional, o processo de urbanização desorganizado, as desigualdades sociais e o déficit em
saneamento10
. O tema é relevante para a compreensão do contexto da descentralização da
saúde no Brasil7, na medida em que os governos locais implementam políticas, solucionam
problemas e criam serviços, respondendo demandas sociais e fazendo emergir questões
relativas ao processo decisório entre gestores e formuladores de políticas públicas que
influenciam a evolução da APS.
JUSTIFICATIVA
. O sistema de saúde do DF se caracteriza-se pela ampla rede pública, com oferta de
atenção em todos os níveis de complexidade – primária, média e alta. A Secretaria de Estado
da Saúde (SES-DF) conta com 76% do total de leitos SUS disponíveis na Capital14
. Em relação
à Atenção Primária, a rede física regionalizada dispõe, em média, de uma unidade básica de
saúde para cada 25 mil habitantes. De 1995 a 2009 a organização dos serviços básicos
contemplam o modelo tradicional pelos Centros de Saúde (CS), a Estratégia Saúde da Família
(ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Atualmente, a cobertura
populacional é de 15,3% pela ESF, de 20,7% pelo PACS e de 58,0%, pelos CS. 14-15
A política de APS adquiriu diferentes matizes e conformações no período de 1979 a
2009. A partir de meados dos anos 90, a ESF vem sendo implementada com sucessivas
mudanças decorrentes da alternância de gestão do Governo local, observando-se, nas últimas
décadas, interrupções e declínios na sua implantação, contrapondo-se à tendência nacional de
expansão contínua da cobertura populacional por equipes16
.
O objetivo do presente estudo é analisar a política de APS desenvolvida no DF, no
período de 1979 a 2009, a partir de uma perspectiva processual e do uso do modelo dos
múltiplos fluxos ou multiple streams model17-18
, analisar a inter-relação entre os problemas, as
alternativas e o contexto político nos momentos de alternância de gestão, bem como identificar
os potenciais e limites da aplicação do modelo teórico na analise de políticas de saúde
brasileiras. Trata-se de uma análise do conteúdo da política (policy) setorial e sua inter-relação
com o processo político (politics) construído pelos governos locais19
no contexto analisado.
REFERENCIAL TEÓRICO
A escolha dos múltiplos fluxos se deu em função da amplitude das categorias que
compõem o modelo, da incorporação da ambiguidade nos processos decisórios sobre as
políticas públicas e da valorização da consistência das ideias17-18
. Essa abordagem baseia-se
nos trabalhos sobre formação da agenda das políticas públicas elaborada por Kingdon17
e
Zahariadis18
, mas sua origem é o modelo de decisão em organizações proposto por vários
autores20-21
. Fundamenta-se na ambiguidade nos processos decisórios decorrente da ausência
de clareza e consistência nas interpretações sobre a realidade, nas relações de causalidade e nos
objetivos a serem alcançados. A ambiguidade está presente na maioria das decisões em
organizações que enfrentam problemas complexos e nas quais interagem múltiplos atores com
preferências e identidades heterogêneas.
No âmbito das políticas públicas, Kingdon17
e Zahariadis18
preconizam a presença de
ambiguidade em função de três fatores: (i) participação fluida, ou seja, há grande rotatividade
dos atores envolvidos nas arenas decisórias; (ii) preferências problemáticas, isso é, os decisores
não compreendem com clareza o impacto de suas decisões e, portanto, não conseguem se
posicionar em relação às diferentes alternativas; (iii) tecnologias mal definidas, isso é, o setor
público é marcado por crescente interdependência, constantes disputas intra e inter
governamentais, conflitos jurisdicionais e contestações em relação à divisão de atribuições e
responsabilidades17-18
.
Ressalte-se que ambiguidade e incerteza são conceitos relacionados, mas distintos. A
ambiguidade vincula-se à ambivalência, ou seja, á presença simultânea de diferentes
interpretações, muitas vezes conflitantes, sobre um mesmo fenômeno. As incertezas decorrem
da ausência de informação. Consequentemente, a ambiguidade não pode ser caracterizada
como erro aleatório na decisão. Os efeitos da ambiguidade, distintos dos gerados pela
incerteza, afetam, sobremaneira, as bases do processo decisório, interferindo na conexão entre
problemas e soluções14-15
.
No modelo adotado, problemas e soluções vão sendo propostos de maneira mais ou
menos independente, formando uma espécie de “sopa primal” de ideias que estariam latentes
nas arenas decisórias. Esses problemas e soluções seriam selecionados conforme a atenção que
despertam nos tomadores de decisão, manifestando-se no surgimento de “janelas de
oportunidades”. Estas podem ocorrer devido à pressão para cumprir um cronograma
previamente definido, forçando o tomador de decisões a fazer escolhas; ou da pressão
decorrente de eventos imprevisíveis, como crises, epidemias ou desastres naturais que
demandam intervenções imediatas17-18
.
Kingdon17
, seguindo Cohen, March e Olsen21
, propõe que esse processo, nas políticas
públicas, poderia ser representado pela confluência de três correntes dinâmicas: dos problemas
(problems), das propostas ou alternativas (policies) e da política (politics). Sinteticamente,
pode-se dizer que as políticas surgem na agenda governamental seguindo um processo não
intencional que se caracteriza pela confluência dos três fluxos: 1) surgimento ou
reconhecimento de um problema pela sociedade em geral; 2) existência de ideias e alternativas
para conceituá-lo, originadas de especialistas, de investigadores, de políticos, de funcionários
públicos, dentre outros; 3) contexto político, administrativo e legislativo favorável ao
desenvolvimento da ação17-18, 21
. É importante destacar que a agenda pública constitui-se de
temas que, em dado momento, mobilizam a atenção de dirigentes governamentais e de
indivíduos fora do governo ligados a esses dirigentes17
, gerando decisões e, por vezes, ações
governamentais.
METODOLOGIA
Realizou-se estudo de caso do tipo rastreamento do processo (process tracing) de
formação da política22
, na forma de narrativa analítica23
, por meio do qual se reconstituiu a
política de APS do DF, a partir das categorias do modelo dos múltiplos fluxos17-18
.
O rastreamento de processo22
é uma metodologia de análise de políticas públicas que
emergem de um conjunto de eventos ou fenômenos de interesse científico, com o intuito de
gerar conhecimentos, testar teorias, identificar diferenças e semelhanças com outros fenômenos
e outras políticas. Nessa perspectiva, o processo é “a sequência de eventos que descrevem
como os fenômenos mudam ao longo do tempo” (pág. 338)24
e sua análise objetiva “explicar o
que, porque e como ocorreram as relações entre contextos, processos e resultados”(pág. 340)24
.
Foram entrevistados 20 informantes-chave que vivenciaram o processo da formação da
agenda, o processo decisório e a implantação da política de APS, de 1979 a 2009. Dentre esses
atores, incluíram-se secretários de saúde (gestores e ex-gestores), servidores públicos, equipe
do governo e deputados distritais e federais, escolhidos segundo a “técnica da bola de neve”
(snowballing technique) em que os respondentes identificam novos entrevistados17
. O roteiro
semi-estruturado permitiu a condução das entrevistas de forma flexível, com o intuito de
mapear os eventos que culminaram nas mudanças. As entrevistas foram gravadas após a
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e transcritas em sua totalidade.
Cada entrevistado recebeu um código “E” e um número da sequencia da entrevista. O estudo
foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da SES-DF, Parecer 219/2008.
Realizou-se análise documental de forma complementar, em publicações do MS e SES-
DF – incluindo manuais, portarias, relatórios técnicos e financeiros – em reportagens de
jornais, artigos, teses e dissertações, dos anos de 1980 a 2009. A análise dos documentos e das
entrevistas foi operacionalizada com o software NVIVO8, produzido pela QSR International®.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O desenvolvimento da política de APS no DF foi dividido em cinco Episódios, (Quadro
1) conforme os planos que a adotaram como eixo estruturante da política de saúde. Na análise
do fluxo dos problemas identificam-se as questões que conduziram a APS à agenda do
governo. No fluxo das propostas de mudanças arrolam-se as ideias e as alternativas que
competiram com o modelo de APS, e identifica-se a forma como a proposta evoluiu após sua
implementação. No fluxo político são analisados os contextos políticos nacional e local que
influenciaram as decisões.
Quadro 1- Planos de saúde do Distrito Federal, no período de 1979 a 2009
1979 a 1994 1995 a 1998 1999 a 2002 2003 a 2006 2007 a 2009
Plano de
Assistência a Saúde
no Distrito Federal
Plano de
Reformulação do
Modelo
Assistencial e
Programa Saúde
em Casa
Programa Saúde
da Família
Programa
Família
Saudável
Estratégia
Saúde da
Família
Plano de Assistência à Saúde no Distrito Federal (1979 a 1994): a introdução da APS na
agenda do governo
O período compreendido entre 1979 e 1994 teve como evento central a proposição e
implantação de mudanças, por meio de um Plano de Assistência à Saúde, fundamentado nos
princípios da APS22-24
, de vez que a presença de indicadores demográficos, epidemiológicos e
sociais desfavoráveis identificados na análise do fluxo de problemas demandava a busca de
novas soluções. Além disso, o país enfrentava uma crise financeira do INAMPS, órgão
financiador do sistema de saúde, com falência do modelo médico assistencial centrado em
hospitais e procedimentos de alto custo25-27
.
O Plano incluía diretrizes oriundas de países europeus baseadas no ideário de Alma
Ata, em consonância com o Programa das Ações Integradas de Saúde proposto pelo do
Ministério da Previdência e Assistência Social25-27
. Tanto nacional quanto internacionalmente
propugnava-se a formação da agenda em torno das ações básicas, da medicina comunitária, da
participação popular e da extensão de cobertura1-2
dando a necessária ambiência ao plano
proposto26-27
.
Quanto ao fluxo de propostas, cabe salientar que as entrevistas com os atores-chave
apontaram forte disputa entre dois modelos de atenção a saúde, ou seja, a proposta de APS, que
resgatava a abordagem integral, coletiva, a participação da comunidade, a assistência em redes
de cuidados de complexidade crescente para ampliação das possibilidades de acesso, em
oposição ao modelo curativo, hospitalocêntrico, centrado em especialidades médicas, até então
vigente no país25
.
As ideias recorrentes entre os grupos eram que “se os recursos usados na atenção
primária fossem aplicados na ampliação dos hospitais, resolveriam os problemas da população”
(E1, E2 e E3), que “os profissionais estavam formados para atuar no modelo hospitalar e por
especialidade” (E2 e E4), sendo desafiados ao trabalho “como generalistas dentro das suas
especialidades e isto não daria certo” (E5). O contexto político de ditadura militar do início da
década de 802,14
, com forte centralização administrativa e decisória, foi decisivo para a
permanência do modelo tradicional.
Iniciados os anos 90, o DF conquista a autonomia política, abrindo-se espaço para a
superação da origem burocrática de capital do país. Nesse processo destacou-se a presença de
grupos conservadores e de práticas de clientelismo nas instâncias formais de poder,
contrapondo-se a uma base social ativista, permeada pelos movimentos contestatórios do
período28
. Com a emergência de grupos de oposição, a evolução da política de APS, inovadora
em sua origem, vai perdendo vitalidade, como estratégia de mudança de modelo assistencial,
conforme sumariza um dos entrevistados:
[...] este processo de abertura política, obviamente importante para a
população, trouxe para a saúde, a ideologia partidária, além da setorial
e as dificuldades de alinhar as discussões políticas à lógica do setor
(E2).
À luz do método proposto, observa-se que a ambiguidade decorrente das diferentes
interpretações e preferências dos atores17-18
sobre o modelo adequado ao DF, associada às
“dificuldades dos gestores da saúde em lidarem com a oposição ao Plano” (E2 e E3) e à
“acelerada expansão urbana” (E1-5), em um contexto de transição democrática, constituíram
eventos que interferiram na gestão da política e no curso das ações29
. Essa dinâmica corrobora
os estudos que aplicam o modelo dos múltiplos fluxos e confirma que a convergência de
diferentes perspectivas dos atores com a baixa sensibilização para a proposta em governos não
democráticos, influenciam a implementação de politicas que constam na agenda
governamental29-30
.
Plano de Reformulação do Modelo Assistencial (REMA) e o Programa Saúde em Casa
(PSC) de 1995 a 1998: competição entre o modelo tradicional de APS e o Programa Saúde
em Casa
No Episódio 2, segundo os três entrevistados, os problemas recorrentes que capturaram
a atenção dos gestores foram o “esgotamento do modelo hospitalar, a insuficiência na oferta de
serviços e a falência da APS na forma como estava implantada até então no DF”(E6, E7, e E8).
Os entrevistados referem-se, ainda, à pressão normativa do MS para a reorganização do
sistema de saúde conforme “previsto na Constituição Federal e nas Leis do Sistema Único de
Saúde” (E9). Em âmbito nacional, o Saúde da Família entra para a agenda do governo em
1994, constituindo a grande aposta para a implementação dos princípios do SUS7-12
.
Em resposta à pressão normativa e política, o governo local propôs, para os dois
primeiros anos, o Plano de Reformulação do Modelo Assistencial (REMA)29
, privilegiando
estratégias do modelo tradicional de APS baseado em centros de saúde e de fortalecimento da
gestão e do controle social11,31
. Em 1996, o Saúde da Família é enfatizado na agenda do MS,
com a criação do Piso da Atenção Básica7-12
, proposta adotada pelo DF, sob a denominação
Programa Saúde em Casa (PSC). As divergências detectadas na forma de implantação revelam
disputas intragovernamentais, características de decisões ambíguas no âmbito das políticas
públicas, conforme o modelo dos múltiplos fluxos17-18
.
O desenho de implantação do PSC incluía, ainda, a parceria com o terceiro setor, a
terceirização de profissionais e a locação de imóveis para as Unidades Básicas de Saúde. A
essas estratégias de flexibilização administrativa adotadas pelo governo local credita-se o
alcance de 78% de cobertura populacional do programa em 1998. Essa proposta contemplou,
ainda, “o alinhamento técnico e político entre as agendas da saúde nacional e local” (E8)
pressuposto relevante para o processo de descentralização das politicas públicas propostas pelo
governo federal e para possibilitar a inter-relação dos fluxos no nível local17-18
.
O Programa Saúde da Família, reimplantado entre 1999 a 2002: incrementalismo na
política de saúde
Atores que vivenciaram o Episódio 3 assinalam que o fluxo de problemas esteve
imbricado no processo de operacionalização das mudanças na APS, o que evidencia crise
interna, devido à interrupção do PSC, à demissão de trabalhadores e ao fechamento de
unidades de saúde. Dentre as motivações mais citadas para a decisão da interrupção
intempestiva do Programa Saúde em Casa, assinala-se a excessiva “partidarização política do
PSC” (E10), considerado como “um grande celeiro de votos” (E11), ao “não realizar concurso
público para contratação de ACS” (E10) e “abusar de nomeações de profissionais para as
chefias das unidades de saúde” (E11).
Na evolução política, foram observadas características de path dependence11
, uma vez
que decisões tomadas pelo governo anterior determinaram a sua trajetória numa gestão de
oposição. Paradoxalmente a medida fragilizou o governo, expondo-o a novas pressões
externas, especialmente do MS e da oposição local, levando-o a reimplantar a iniciativa com o
nome original – Programa Saúde da Família (PSF)32
. Na agenda federal, o PSF estava
fortalecido, atrelado ao financiamento e às estratégias de descentralização da gestão dos
serviços por meio das Normas Operacionais de Atenção a Saúde dos anos 2001 e 20027-12
.
A reimplantação do PSF no DF se deu por meio da parceria com o terceiro setor, tal
como ocorrera no Episódio 2. Destarte, a organização da atenção primaria pautou-se pela
tentativa de acomodar dois modelos: o tradicional, desenvolvido nos Centros de Saúde por
servidores públicos e o PSF, organizado em residências alugadas nas comunidades assistidas,
com profissionais de saúde terceirizados32
. Para minimizar a disputa entre os modelos, adotou-
se a estratégia do “uso comum do espaço físico”(E11) e assumiu-se “a diminuição das
diferenças salariais entre os profissionais do PSF e da SES-DF” (E12), com a criação de
gratificação salarial para os servidores públicos que aderissem aos princípios do PSF 11,3
. A
despeito dessas estratégias, a cobertura populacional pelo PSF não ultrapassou os 11%,
creditados a “baixa adesão dos profissionais de saúde, especialmente dos médicos ao PSF”
(E11), bem como a sua “inadequada formação” (E11 e E12).
Na análise das alternativas em disputa, observou-se o incrementalismo17-18
de ideias
presentes na politica de APS que, ao reimplantar o PSF, adota estratégias similares ao PSC,
interrompidas no inicio do mandato governamental. Destaca-se, ainda, um contexto de forte
ambivalência no processo decisório, com interferência na conexão entre problemas e
soluções17
, o que explicaria o fraco desempenho da politica no período, medido pela singular
cobertura populacional das equipes de PSF15
.
Consonante o modelo de análise adotado observou-se que a política foi tomando
conformações decorrentes da arena decisória, forçando a abertura de uma janela de
oportunidade, pela pressão em retomar compromissos entre os governos local e federal17-18
. O
contexto de interdependência politica e financeira ampliou a ambiguidade no processo
decisório17-18
, gerando baixa implementação do PSF.
O Programa Família Saudável (2003 a 2006): Estratégia de Saúde da Família rebatizada
No Episódio 4 evidenciou-se forte interferência do contexto político no processo
decisório sobre a Atenção Primária. Em 2002 partidos de oposição assumiram o poder nacional
e local, ensejando um cenário de polarização partidária, em um clima de disputas e
questionamentos sobre os resultados das urnas, caracterizado por um dos entrevistados como
“uma ressaca da eleição” (E14) na qual “não se aceitou o resultado das urnas e partiu-se para a
justiça” (E15). Os anos 2003 e 2004 foram marcado por um „clima de incertezas‟ na gestão de
saúde local, configurando uma janela de oportunidade parcialmente aberta, conforme Kingdon
e Zahariadis17-18
.
Em âmbito nacional, a Atenção Primária seguia como aposta para a mudança do
modelo assistencial e ampliação do acesso da população aos serviços de saúde, com o
fortalecimento do Projeto de Expansão da Estratégia de Saúde da Família, em parceria com o
Banco Mundial, bem como pela manutenção dos incentivos à expansão de cobertura e à
formulação da Politica Nacional de Atenção Básica (PNAB) por meio da Portaria Nº 648 de
20067-12,33
.
No DF, o novo governo tem início sob forte pressão, devida à interrupção do PSF no
ano anterior com base em “denúncias de irregularidades na parceria com a entidade que até
2002 contratava os profissionais” (E14), as quais culminaram em indicação, pelo Tribunal
Superior do Trabalho, de demissão de todos os trabalhadores34-35
. Por sua vez, postulava-se a
reorganização da APS, diante da “baixa resolutividade dos Centros de Saúde” na opinião de
seis entrevistados (E2, E12, E13, E14, E15 e E16), e da “ausência de interação entre os
diferentes níveis de atenção” (E12) implicando “dificuldades de acesso da população às
especialidades”(E14). Essas questões dominam o fluxo de problemas do período, forçando a
reimplantação da ESF sob a denominação de Programa Família Saudável (PFS)36
.
Para tanto, havia necessidade de contratação de quantidade expressiva de profissionais
e criação de unidades básicas de saúde, medidas improváveis dadas as condições da SES-DF.
A estratégica escolhida foi a retomada da parceria com o terceiro setor, pela terceira vez
consecutiva, caracterizando medidas incrementais na gestão17
. Entretanto o cenário nacional se
modificara pelas novas diretrizes aprovadas para o SUS, que propunham a “desprecarização do
trabalho” em oposição à “flexibilização dos vínculos de trabalho”, estimuladas nos dois
mandatos anteriores do Governo Federal37
.
A baixa aceitação pública da parceria com o terceiro setor ensejou a mobilização dos
órgãos de controle, especialmente do Ministério Público, do Tribunal de Contas e do
Ministério Público do Trabalho do Distrito Federal34-35
, inviabilizando a expansão do PFS. As
decisões, tomadas durante a transição do governo federal, num ambiente de mudanças na
agenda pública e carregado de incertezas quanto às diretrizes para o SUS, fazem emergir
cenário de conflitos jurisdicionais e contestações, interferindo no desenvolvimento da política
de saúde17-18
. Com efeito, a cobertura populacional por equipes do Programa Família Saudável
no DF oscilou entre 6% em 2004, caindo para 3,5% no ano de 200615
.
Em relação ao fluxo das propostas, o modelo de atenção primária buscava conjugar o
paradigma tradicional com a ESF, numa abordagem integrada, conforme lembra um dos
entrevistados:
“O modelo proposto buscava integrar a organização familiar como organização
sistêmica e a lógica do município saudável enquanto integralidade da assistência
à saúde... articulava os princípios do Bandeira de Melo, do PSC, do PSF fazendo
um mix conforme cada regional. Em síntese, o projeto resgatava toda a evolução
histórica do DF em relação à APS, incorporava tecnologia e usava todos os
demais equipamentos sociais em conjunto com a saúde.” (E2)
A divergência entre os entrevistados demonstra a ambiguidade do processo decisório,
percebendo-se posições ideológicas em relação à formulação do Família Saudável, identificado
como uma “disputa por siglas” e “maior preocupação por definir slogans e não políticas”
(E12). As ambiguidades associadas ao clima de denúncias de corrupção, à fragilidade do
Governo e à baixa implementação do Plano, enfraqueceram o Saúde da Família como principal
modelo de organização da APS. Todavia, consonante o modelo dos múltiplos fluxos, abre-se
uma típica janela para a questão dos vínculos trabalhistas, que saem do espaço da micropolítica
e ganham status na macro política local. Tais efeitos estão presentes em outros estudos,
confirmando que uma janela de políticas públicas contribui para a entrada de questões
correlatas na agenda17-18
.
A continuidade (?) da Estratégia Saúde da Família no período de 2007 a 2009
O Episódio 5 ocorre num contexto de continuidade do governo federal e mudança na
administração local. A PNAB seguia na agenda do Ministério da Saúde, registrando-se uma
cobertura populacional pelo Saúde da Família de 50,7% e de 60,8%, por Agentes Comunitários
de Saúde, presentes em todo o país, atingindo aproximadamente 5.300 municípios14
.
A manutenção da APS na agenda local deveu-se a problemas ligados à “ruptura da
parceria com entidade do terceiro setor e na iminente descontinuidade no PFS” (E20), bem
como na “manutenção do secretário de saúde e sua equipe” (E20). A contratação dos
profissionais no período de transição, 2006/2007, mobilizou gestores, órgãos reguladores e
parlamentares na busca de alternativas para impedir a interrupção do programa com a demissão
em massa de trabalhadores. Entretanto, na percepção dos entrevistados, a ideia recorrente era
de que a atenção básica fora “abandonada” (E17),havendo “falta de credibilidade dos CS pela
população” (E17 e E18), dificuldade de “fixar os profissionais em áreas distantes,
especialmente os médicos” (E17 a E20), bem como de lidar com “a formação inadequada dos
profissionais de saúde para atuarem na atenção básica” (E18). A fraca adesão dos profissionais
à ESF ficou evidenciada nas desistências dos aprovados nos concursos públicos e/ou pedidos
de demissão, quando lotados nas UBS11
.
No fluxo de problemas corroborou-se a dependência de trajetória9, presente também
nos três Episódios anteriores, evidenciada pela repercussão negativa da forma de contratação
de pessoal e pelas denúncias de corrupção, determinando a entrada de questões da saúde na
agenda da nova gestão. Diante da crise em relação aos vínculos flexíveis, os decisores foram
impelidos a adotar o regime estatutário a ESF 13
.
No fluxo das alternativas observou-se que o Plano de Reorganização da APS38
abandona a terceirização de vínculos trabalhistas como estratégia de expansão da cobertura
populacional por equipes de ESF. Paradoxalmente, o documento não apresenta soluções para o
problema dos limites fiscais frente à ampliação do número de servidores, tampouco dialoga
com o Plano de Saúde 2008-2011, que já sinaliza a proximidade dos limites prudenciais da Lei
de Responsabilidade Fiscal37
. Nesse sentido o Plano apresenta intenções mas peca nas
proposições operacionais para o fortalecimento da politica de saúde.
Ainda nesse fluxo, observou-se uma retomada das diretrizes do MS para a atenção
primária, “buscando um alinhamento das agendas para recuperar as histórias conturbadas
anteriores e fazer a mudança cultural dentro da SES” (E19). Isso porque, segundo os dirigentes,
a política de atenção primária local não guardava completa coerência com a PNAB e esse
alinhamento era necessário11,33
.
Em suma, optou-se por propostas capazes de responder às fragilidades do sistema de
saúde local, sumarizadas a partir das entrevistas, a saber: buscar respaldo na PNAB, realizar
concurso público para as equipes da ESF, eliminando a contratação terceirizada; criar um
programa de residência em Medicina de Família e Comunidade, com salários atrativos para
fixar os médicos nas equipes; construir UBS, abolindo a locação; implantar o sistema de
classificação de risco nas emergências para alterar os fluxos dos pacientes, dentre outras. É
importante destacar que, em âmbito nacional, a atenção primária já incorporava uma visão
ampla da APS como coordenadora do sistema de saúde e propunha estratégias abrangentes de
fortalecimento da ESF, como a criação dos Núcleos de Apoio a Saúde da Família33
.
Na questão política, nos dois primeiros anos de governo “buscava-se, na saúde, uma
maior visibilidade ao governador” (E19) e mantinham-se “relações de apoio com intercâmbios
técnicos entre SES-DF e MS”, configurando ambiência favorável a mudanças na APS, situação
que perdurou até o final de 2009. Contudo, o Plano saiu da agenda no contexto dos escândalos
de corrupção que, embora presentes desde o Episódio 3, no final de 2009 e 2010 envolveram os
três poderes, culminando com a prisão do Governador40
. Essas circunstâncias podem explicar a
fraca implementação da ESF que, em 2009, mantinha-se em 12,4% de cobertura populacional
por equipes de Saúde da Família e em 16,5%, por ACS15
.
Na perspectiva dos fluxos múltiplos, a política de APS se caracterizou por um processo
em que as soluções foram propostos de maneira mais ou menos independentes dos problemas,
em função da atenção que despertavam nas arenas decisórias. A implantação das decisões,
todavia, foi influenciada pelo contexto político14-15
, caracterizando a dependência de trajetória,
na qual as decisões tomadas ao longo do tempo definiram os desdobramentos e constrangeram
mudanças9. Além disso, a evolução da politica foi demarcada pelo incrementalismo de ideias
paralelo a movimentos de legitimação das ações políticas de determinados grupos no poder e
recorrentes crises de corrupção, produzindo instabilidades e incertezas nos valores e normas
sociais40
.
CONCLUSÕES
A inter-relação dos problemas, das propostas e do meio político que promoveu a
inserção e a manutenção da APS na agenda do governo local caracterizou-se por contextos de
forte ambiguidade e incertezas, interferindo nas decisões, no fluxo politico e de problemas. No
fluxo das alternativas, observa-se que a política nacional de saúde foi a principal fonte de
alternativas, fortalecendo a APS, no caso das diretrizes específicas e fragilizando-a, no caso das
diretrizes que alteraram as escolhas sobre os vínculos com os profissionais de saúde. No DF, a
parceria com o terceiro setor tornou essa questão objeto de embates políticos, jurídicos e
trabalhistas, produzindo baixa aceitação social do Saúde da Família em todos os Episódios. A
despeito das questões da politica setorial, a corrupção se configura como fenômeno que mais
tem interferido para a reduzida priorização da atenção primária no DF , e segue como desafio
a ser enfrentado no contexto da gestão das politicas públicas locais.
Em relação ao modelo dos múltiplos fluxos, as principais contribuições e potencialidades
deste para a análise das políticas de saúde no âmbito do SUS são: a – a incorporação da
ambiguidade nas decisões; b - a valorização da consistência das ideias contidas nas propostas; c
- a análise das diferentes interpretações sobre os problemas complexos da saúde brasileira
pelos tomadores de decisão; d – a influência da macropolítica, das relações
intergovernamentais e da sociedade civil na formação da agenda pública; e - o exame acurado
da atuação dos atores e dos empreendedores nos processos decisórios locais, nacionais e nas
arenas políticas. Os limites do modelo na análise das políticas públicas de saúde do Brasil
constituem-se em: a - baixa capacidade preditiva; b - ênfase descritiva dos aspectos
situacionais e temporais das mudanças políticas; c - foco na atuação dos atores e suas relações
interpessoais em detrimento do marco institucional que delimita suas decisões. Para aumentar o
potencial analítico do modelo, recomenda-se a combinação deste com outros constructos
teóricos que possibilitam abordar o peso das instituições, do tempo e da historicidade das
mudanças políticas.
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