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    A MULHER COMO PRODUTORA DE ARTE ESTUDO DE CASO SOBRE A PRESENA FEMININA NA ACADEMIA IMPERIAL E ESCOLA NACIONAL DE

    BELAS ARTES NO RIO DE JANEIRO, SCULO XIX. 1

    Ragnaia Coutinho Macedo2Universidade Federal de Uberlndia

    RESUMO

    Sendo o modelo de educao voltado para as meninas adotado no Brasil colnia, baseado nos moldes da metrpole, tendo a igreja catlica como encarregada durante muitos anos pela educao; sendo a tal amparada pelo governo, imps normas de conduta para as bases do casamento, dentro de um sistema patriarcal, onde a vida feminina estava restrita ao bom desempenho do governo domstico e na assistncia moral famlia, fortalecendo seus laos (SAMARA, 1983, p. 59) e ao homem cabia a responsabilidade de manter e proteger a mulher e os filhos, concentrando todos os poderes e decises da famlia, a mulher cabia responder com obedincia. (SAMARA, 1998, p. 161). A mulher at o sculo XIX fruto do machismo introduzido no Brasil pela colonizao portuguesa, que possua uma educao voltada para a religio, sendo negada a mulher o direto de acesso educao formal, sendo as atividades de ensinar a ler e a escrever consideradas atividades irrelevantes para o trabalho domstico. Durante 322 anos de 1500 a 1822 -, perodo em que o Brasil foi colnia de Portugal, a educao feminina ficou geralmente restrita aos cuidados com a casa, o marido e os filhos. A instruo era reservada aos filhos/homens dos indgenas e dos colonos. Esses ltimos cuidavam dos negcios do pai, seguiam para a universidade de Coimbra ou tornavam-se padres jesutas. Tanto as mulheres brancas, ricas ou empobrecidas, como as negras escravas e as indgenas no tinham acesso arte de ler e escrever. Essa questo nos remete tradio ibrica, transposta de Portugal para a colnia brasileira: as influncias da cultura dos rabes naquele pas, durante quase 800 anos consideravam a mulher um ser inferior. O sexo feminino fazia parte do imbecilitus sexus, ou sexo imbecil. Uma categoria a qual pertenciam mulheres crianas e doentes mentais... (RIBEIRO, 2000, 79). As condies vividas pela mulher no sculo XIX, mais precisamente vontade de ser produtora de arte, foram ausentes ou desconsideradas na histria da arte brasileira, enquanto sujeito, as fontes so poucas e logo se percebe o descaso em relao s mesmas. O que se sabe at ento, sobre essas produtoras de arte no sculo XIX, que faziam parte de um grupo de pintoras amadoras que nos fins do sculo XIX participaram das Exposies Gerais da Academia Imperial de Belas Artes.(OLIVEIRA, 1993, p. 17). Faz-se necessrio rastrear as informaes mais humildes, adivinhar a imagem mais apagada e reexaminar o discurso mais repetido. Vale ento, refletir sobre o que Del Priori diz: as zonas de anlise mais produtivas para a histria da mulher so as nebulosas, onde encontramos as mulheres annimas (DEL PRIORI, 1994, p. 13), sendo aqui as bases da minha pesquisa, encontrar quais foram as primeiras mulheres que estudaram na Escola Nacional de Belas Artes Rio de Janeiro, como ingressaram e em que condies assistiram os cursos, tornando visvel o que estava esquecido ou mesmo desaparecido na histria da arte do Brasil. Fazendo-se presente a todos os momentos, a autoridade masculina chega at mesmo o no consentimento mulher de se projetar nas artes plsticas. A Academia Imperial de Belas Artes contribuiu para a essa viso discriminada da artista feminina no sculo XIX, uma vez que era vetado o ingresso na Instituio, liberado somente ao sexo masculino, permitindo apenas s pintoras de participarem como convidadas para as Exposies Gerais (OLIVEIRA, 1993, p. 72). As Exposies Gerais de Belas Artes revelam cerca de 200 nomes femininos, nmero que contradiz a falsa idia de que as mulheres ingressaram na vida artstica apenas com os movimentos de vanguarda. (SIMIONI, 2004, p. 24). As mulheres s puderam matricular-se na Academia Imperial de Belas Artes, apenas por ocasio da transformao da Academia Imperial em Academia Nacional de Belas Artes, nota-se que eram tratadas de forma diferenciada: Podero matricular-se em qualquer Faculdade indivduo de outro sexo, havendo, porm, nas aulas logares separados. (OLIVEIRA, 1993, p. 77). Um fato interessante que no possvel sabermos quem foi a

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    primeira mulher inscrita na Escola Nacional de Belas Artes, uma vez que o Livro de matrcula passa de 1870 para 1891. Assim, ainda permanece na escurido, quais foram as primeiras mulheres que estudaram na Escola Nacional de Belas Artes, mas que de uma forma implcita, participaram da vida artstica no sculo XIX e incio do sculo XX, perceberam as complexidades, os paradoxos e contradies de serem produtoras de arte nesse perodo, em que as mulheres lutaram e continuam a lutar por um lugar no mundo das artes plsticas. Devo aqui ressaltar que a falta de registros oficiais, desde os livros de matrcula, como documentos, obras de arte, etc, refletem a discriminao em relao mulher, e principalmente a mulher produtora de arte, que acaba por obscurecer o processo de identidade cultural brasileira, o que nos revela o tamanho do trabalho de resgate dessas mulheres, contribuindo para que elas no caiam no total esquecimento, ou mesmo que no sejam nem conhecidas...

    TRABALHO COMPLETO

    Uma das questes mais debatidas nas ltimas dcadas o papel da mulher na sociedade atual, e entre essas vrias questes temos o papel da mulher no mundo das artes plsticas, enquanto produtora de arte e a sua introduo no circuito artstico oficial. E no sculo XIX, com o incio do ensino acadmico no Brasil, que direcionamos o nosso estudo, procurando lanar luzes sobre o potencial artstico das mulheres produtoras de arte, fornecendo subsdios para repensar a condio feminina no campo das artes desde o incio, 3 sendo inclusive possvel considerar, a partir desse momento o incio de grandes mudanas em

    relao s mulheres, no caso particular do Brasil. O incio do sculo XIX marcado pela vinda da Misso Artstica Francesa, que devido as grandes mudanas na vida social, cultural e principalmente econmica do Brasil; com a chegada de D. Joo VI ao Brasil, que passa de simples Colnia a Metrpole.

    D. Joo VI transforma a vida poltica e administrativa da Colnia, com o incio de uma autonomia que ir fornecer bases para a perspectiva de um novo imprio a ser estabelecido (RENAULT, 1969, p. 7), assim a prpria monarquia portuguesa dava um empurro no processo de emancipao nacional e iniciava um movimento de independncia que a Coroa portuguesa monitorava de perto. (COSTA, 2002, p. 80) O Rio de Janeiro decretado a capital da monarquia Portuguesa, necessitando de estabelecimentos de educao que completassem as iniciativas tomadas desde a chegada da famlia real ao Brasil, dando incio ao estabelecimento e desenvolvimento do ensino das artes plsticas no pas, transformando o Brasil em importante centro de produo artstica das Amricas. (OLIVEIRA, 1993)

    Entre as vrias iniciativas tomadas por D. Joo VI estava abertura dos portos ao comrcio estrangeiro, liberdade de comrcio e de explorao de indstria, fundao da Livraria pblica e entre essas vrias mudanas, est criao da Academia Imperial de Belas Artes, que atravs do decreto de doze de agosto de 1816 cria a Escola Real de Cincias, Artes e Oficiais, da qual foi convocado um grupo de artistas e tcnicos franceses, que liderados por Joachim Lebreton (1760-1819), chegam ao pas em 26 de maro de 1816.

    Dentre todos os artistas e tcnicos que faziam parte da Misso, no se tem notcia de nenhuma mulher, mesmo porque o modelo de Academia trazido pelos franceses, s permitia o acesso aos homens. (BANDEIRA, 2003)

    A Misso Artstica Francesa trouxe um sistema de ensino em Academia, ainda inexistente na prpria Metrpole, que ainda no havia atingido esse estgio de educao e representatividade artstica. (BARATA, 1983, p. 383).

    A ritualizao do ensino acadmico havia atingido seu apogeu, a partir do sculo XIX e o e estio neoclssico o que predominava nas Academias de artes nesse sculo, representando a restaurao das artes da antiguidade clssica greco-romana. Os princpios estticos em que se baseavam eram transformados em mtodos e processos didticos que foram adotados nas Academias de Artes Oficiais existentes na Europa e trazidos para o Brasil com a Misso Francesa.

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    At a poca colonial a arte era divida em dois sistemas: o da arte em nvel de artesanato mecnico (feita por escravos ou mestios e homens humildes) e o da arte elaborada por monges e irmos religiosos (herdada da Idade Mdia e baseada no respeito da f). (BARATA, 1983, p. 384).

    A abertura da Academia Imperial de Belas Artes (que em 1890, com a Repblica, passou a chamar Escola Nacional de Belas Artes), s se realizou dez anos depois, no dia 05 de novembro de 1826, data aniversrio da chegada de D. Leopoldina ao Brasil, com todo luxo e pompa; (BITTENCOURT, 1976, p.7) inaugurando o ensino artstico no Brasil com moldes semelhantes aos das academias de arte Europias; que procuravam garantir aos artistas uma formao cientfica e humanstica, alm de treinamento no ofcio com aulas de desenho de observao e cpias de moldes.

    Pouco depois de iniciado o curso na Academia, Jos Clemente Pereira, que havia assumido a Pasta do Imprio, atendeu s solicitaes de Porto-Alegre e Debret, e autorizou que fosse organizada uma mostra anual de Belas-Artes, sendo realizada em dois de dezembro de 1829 a primeira exposio oficial de Belas-Artes, sendo apresentado ao pblico os resultados dos cursos (BITTENCOURT, 1967, p. 10), foi uma exposio restrita aos alunos e professores, s em 1840 foram efetivamente implantados a primeira srie de exposies anuais de arte aberta a qualquer pessoa (desde que passasse por avaliao da Academia), com carter institucional e permanente: Exposies Gerais de Belas Artes, criadas por iniciativa do pintor Felix mile Taunay, ento diretor da Academia Imperial de Belas Artes, e instituda em 31 de maro de 1840 atravs de ofcio que determinou:

    ... a exposio pblica de fim de ano, que at hoje tem sido particular e privativa daquele estabelecimento, se torne geral daqui em diante para suas obras de todos os artistas desta Corte, que forem julgados dignas de serem admitidas (...). (LEVY, 1993, p. 8).

    A partir dessa medida tomada por Taunay, temos a abertura dos espaos artsticos para as mulheres, antes vetados com a proibio do seu ingresso na Academia de Belas Artes como aluna; essas mulheres tm agora a possibilidade de participar como artistas amadoras nas Exposies Gerais da Academia.

    Durante o incio da consolidao da Academia Imperial, foi inaugurado oficialmente, no dia 20 de janeiro de 1857, a Sociedade Propagadora das Belas Artes que por fim tinha:

    Fundar e conservar o Liceu de Artes e Ofcios, em que se proporcionasse a todos os indivduos, nacionais e estrangeiros, o estudo das belas-artes e sua aplicao necessria aos ofcios e indstrias, explicando-se os princpios cientficos em que ela se baseia. (BARROS, 1956)

    Provieram do Liceu muitos alunos da Academia, alguns chegaram a lecionar no Liceu, pode ser observado um intercmbio entre as duas instituies. Uma diferena notvel entre a Academia e o Liceu a participao feminina. Bethencourt da Silva, fundador do Liceu, j havia conquistado o respeito e a estima de seus concidados, podendo assim permitir mulher freqentar as aulas noturnas (...) entre 1881 e 1889, houve a matrcula de 8.188 mulheres, enquanto na Academia, elas podiam apenas participar como amadora, nas Exposies Gerais. (OLIVEIRA, 1993, p. 77) A mulher at o sculo XIX fruto do machismo introduzido no Brasil pela colonizao portuguesa, que possua uma educao voltada para a religio, sendo negada a mulher o direto de acesso educao formal, sendo as atividades de ensinar a ler e a escrever consideradas atividades irrelevantes para o trabalho domstico.

    Durante 322 anos de 1500 a 1822 -, perodo em que o Brasil foi colnia de Portugal, a educao feminina ficou geralmente restrita aos cuidados com a casa, o marido e os filhos. A instruo era reservada aos filhos/homens dos indgenas e dos colonos. Esses ltimos cuidavam dos negcios do pai, seguiam para a universidade

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    de Coimbra ou tornavam-se padres jesutas. Tanto as mulheres brancas, ricas ou empobrecidas, como as negras escravas e as indgenas no tinham acesso arte de ler e escrever. Essa questo nos remete tradio ibrica, transposta de Portugal para a colnia brasileira: as influncias da cultura dos rabes naquele pas, durante quase 800 anos consideravam a mulher um ser inferior. O sexo feminino fazia parte do imbecilitus sexus, ou sexo imbecil. Uma categoria a qual pertenciam mulheres crianas e doentes mentais... (RIBEIRO, 2000, 79)

    Sendo o modelo de educao voltado para as meninas adotado no Brasil colnia, baseado nos moldes da metrpole, tendo a igreja catlica como encarregada durante muitos anos pela educao; sendo a tal amparada pelo governo, imps normas de conduta para as bases do casamento, dentro de um sistema patriarcal, onde a vida feminina estava restrita ao bom desempenho do governo domstico e na assistncia moral famlia, fortalecendo seus laos (SAMARA, 1983, p. 59) e ao homem cabia a responsabilidade de manter e proteger a mulher e os filhos, concentrando todos os poderes e decises da famlia, a mulher cabia responder com obedincia. (SAMARA, 1998, p. 161). O que os vrios historiadores vm descobrindo durante as ltimas dcadas atravs de vrias fontes, que a mulher no era to submissa assim, e que ao contrrio da vontade da igreja, essas mulheres no exerciam um papel secundrio no universo da vida rude do Brasil nos sculos XVI, XVII, XVIII e XIX, em que a abertura de novas fronteiras, o trato com os ndios e escravos, era uma realidade constante. Na verdade o que temos uma realidade muito distante da viso romntica, em que as mulheres eram mantidas em casa rodeadas de escravos e filhos, sem muito que fazer sendo responsvel pelas primeiras letras ensinadas aos filhos e a tarefa de gerenciar a manuteno da casa, o que na realidade aconteceu com a grande maioria dessas mulheres que s grandes dificuldades econmicas, urbanizao incipiente e migrao masculina para outras reas seriam as maiores razes para explicar a presena feminina nas chefias das famlias. (SAMARA, 1997, p. 161).

    Smara ainda complementa:

    Senhoras soberbas e valentes encarnavam o iderio da colonizao e os valores sociais adjacentes. Como matriarcas de famlias importantes, encabeavam linhagens com seus sobrenomes e eram, por vezes, mais poderosas que os homens nas colnias ibricas. Brancas pobres, mestias e negras viviam reverso da ordem, mas enfrentavam com astcia e destreza os preconceitos sociais e as dificuldades de sustentar filhos e netos. Na ausncia do homem, mulheres solteiras, vivas e abandonadas configuravam um segmento heterogneo e avultavam a mo-de-obra excedente em muitas vilas e cidades brasileiras do sculo XIX. (SAMARA, 1998, p. 163; In: ARAJO, 2002, p. 11).

    Essas mulheres souberam se adaptar e sobreviver em um mundo dominado pelos homens, muito diferente das normas sociais impostas pela Igreja, a prtica social com papis sociais improvisados e adaptados a realidade, figuras annimas, solteiras, vivas, casadas e abandonadas pelos maridos, revelam o que os viajantes estrangeiros, to presentes no sculo XIX no perceberam. (SAMARA, 1997, p. 166).

    Viajantes como Rugentas nos revelam uma realidade mascarada, que tendo acesso a uma pequena parte da sociedade nos do como certa essa submisso feminina, servindo apenas para difundir uma realidade que na verdade ocorreu com uma pequena parte dessas mulheres (possivelmente das classes mais abastadas), que eram subordinadas e que viviam segundo as normas ditadas por uma sociedade catlica e retrograda, era a imagem de rostos velados, da clausura e do debruar na janela ficam para aquelas que o status econmico da famlia requeria que fossem protegidas (SAMARA, 1998, p. 166).

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    Essa proteo na maioria dos casos era assegurada pelo uso das gelosias (grade de fasquias de madeira cruzadas intervaladamente, que ocupa o vo de uma janela); as janelas de rtula onde as mulheres viviam ensombradas, escondidas, no podendo ser vistas por ningum. Essas mulheres s podiam sair de casa para acompanhar algum cortejo religioso ou orar na igreja

    mais prxima. A imagem 1 um exemplo tpico das gelosias.

    Imagem 1 As janelas com gelosias so um marco do controle da excluso

    feminina na elite colonial.

    So essas mulheres, que impedidas de se matricularem na Academia de Belas Artes, no se entregaram s dificuldades impostas por uma instituio nitidamente machista e a partir do momento que temos uma pequena abertura, atravs das Exposies Gerais de Belas Artes, encontramos a participao da Madame Emma Gabrielle Piltegrin Gross de Prangey, francesa que apresentou duas aquarelas: Retrato de Senhora e Retrato do Leiloeiro A. Lawrie. (LEVY, 2003) e confeccionou em litografia na oficina de Briggs, o retrato de Pedro II (1840).

    Na Segunda Exposio Geral em 1841, no se tem notcia da participao feminina. Na Terceira Exposio Geral em 1843, so louvados os retratos infantis de Dona Zoe

    Taulois, apresentando Cena de famlia: os filhos do Sr. R., mas temos nessa Exposio um fato impressionante: a participao de Hippolyte Lavenue, a primeira mulher fotgrafa no Brasil, e uma das pioneiras mundiais, tendo ainda a seu crdito o mrito de ser uma das primeiras pessoas a levar a fotografia aos sales de arte. (OLIVEIRA, 1993, p. 82)

    Em relao a essa excluso imposta pela Academia Chiarelli, nos esclarece:

    ... sabe-se que embora o sexo, a origem nacional, racial e social nunca tenham sido explicitamente determinantes para um indivduo ser considerado artista, a Europa universalizou a noo que um artista, para ser de fato significativo, deveria ser necessariamente homem e branco. (CHIARELLI, 1999, P. 11).

    E como as bases da Academia imperial de Belas Artes, foram formadas por um grupo de artistas e tcnicos franceses, mais que natural que essa posio continuasse presente.

    No caso dos Estados Unidos e Europa temos produtoras de arte e historiadoras preocupadas com essa excluso feminina, e que vm realizando pesquisas de recuperao de artistas mulheres que, atravs de anos e dos sculos, produziram obras de interesse, mas que, devido ao preconceito sexista imperante no circuito artstico internacional, nunca foram devidamente valorizadas. (CHIARELLI, 1999, p. 11). A arte europia trazida para o Brasil com o grupo da Misso Artstica Francesa, parece ter sido obrigada a realizar uma srie de adaptaes, de interaes com o meio fsico e humano que acabaram por conferir-lhe certas caractersticas que hoje a distanciam do modelo original (CHIARELLI, 1999, p. 12).

    Como sendo fruto da criao de artistas da Misso Francesa de se esperar que a arte brasileira seja tambm branca e masculina, o que se verifica que ela no se enquadra nesses parmetros, sendo que no processo de absoro dos valores europeus dominantes, a produo local muitas vezes teve que integrar elementos oriundos das camadas populares (...) e teve que absorver igualmente um significativo contingente de produtores do sexo feminino. (CHIARELLI, 1999, p. 13).

    O fato da produo artstica, ser exercida por escravos libertos, mestios e homens humildes ou por monges e irmos religiosos, rotulava a categoria a uma posio marginal, cheia de preconceitos, caracterstica que no mudou com a chegada da Misso Francesa.

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    O preconceito contra a produo artstica, era pelo fato dela ser uma atividade manual, isto , o preconceito era contra o trabalho, gerado pelo hbito portugus de viver de escravos. (BARBOSA, 1978, 27) Felix Ferreira (FERREIRA, 1978, p. 27), nos fala sobre esse preconceito:

    ...o homem livre, ignorante em matria de arte, vendo-a exercida pelo escravo, no a professa porque teme nivelar-se com ele, e o escravo, mais ignorante ainda, tendo arte o mesmo horror que vota a todo trabalho, de que tira proveito por alheio usufruto, no procura engrandecer-se, aperfeioando-a. (FERREIRA, 1978, p. 27).

    Essa marginalizao que existia em relao s artes plsticas, era assimilada pelas camadas mdias da populao, que no as viam como possibilidade profissional para seus filhos, assim mesmo no contexto da arte oficial, a produo artstica brasileira perpetuava-se numa condio de marginalidade do ponto de vista profissional (CHIARELLI, 1999, p. 14).

    As condies vividas pela mulher no sculo XIX, mais precisamente vontade de ser produtora de arte, foram ausentes ou desconsideradas na histria da arte brasileira, enquanto sujeito, as fontes so poucas e logo se percebe o descaso em relao s mesmas.

    O que se sabe at ento, sobre essas produtoras de arte no sculo XIX, que faziam parte de um grupo de pintoras amadoras que nos fins do sculo XIX participaram das Exposies Gerais da Academia Imperial de Belas Artes. (OLIVEIRA, 1993, p. 17).

    Faz-se necessrio rastrear as informaes mais humildes, adivinhar a imagem mais apagada e reexaminar o discurso mais repetido. Vale ento, refletir sobre o que Del Priori diz: as zonas de anlise mais produtivas para a histria da mulher so as nebulosas, onde encontramos as mulheres annimas (DEL PRIORI, 1994, p. 13), sendo aqui as bases da minha pesquisa, encontrar quais foram as primeiras mulheres que estudaram na Escola Nacional de Belas Artes Rio de Janeiro, como ingressaram e em que condies assistiram os cursos, tornando visvel o que estava esquecido ou mesmo desaparecido na histria da arte do Brasil.

    Fazendo-se presente a todos os momentos, a autoridade masculina chega at mesmo o no consentimento mulher de se projetar nas artes plsticas. A Academia Imperial de Belas Artes contribuiu para a essa viso discriminada da artista feminina no sculo XIX, uma vez que era vetado o ingresso na Instituio, liberado somente ao sexo masculino, permitindo apenas s pintoras de participarem como convidadas para as Exposies Gerais. (OLIVEIRA, 1993, p. 72).

    As Exposies Gerais de Belas Artes revelam cerca de 200 nomes femininos, nmero que contradiz a falsa idia de que as mulheres ingressaram na vida artstica apenas com os movimentos de vanguarda. (SIMIONI, 2004, p. 24).

    As mulheres s puderam matricular-se na Academia Imperial de Belas Artes, apenas por ocasio da transformao da Academia Imperial em Academia Nacional de Belas Artes, nota-se que eram tratadas de forma diferenciada: Podero matricular-se em qualquer Faculdade indivduo de outro sexo, havendo, porm, nas aulas logares separados. (OLIVEIRA, 1993, p. 77). Um fato interessante que no possvel sabermos quem foi a primeira mulher inscrita na Escola Nacional de Belas Artes, uma vez que o Livro de matrcula passa de 1870 para 1891, ficando uma lacuna de vinte e um anos.

    Assim, ainda permanecem na escurido, quais foram as primeiras mulheres que estudaram na Escola Nacional de Belas Artes, mas que de uma forma implcita, participaram da vida artstica no sculo XIX e incio do sculo XX, perceberam as complexidades, os paradoxos e contradies de serem produtoras de arte nesse perodo, em que as mulheres lutaram por um lugar no mundo das artes plsticas.

    Chiarelli nos fala da importncia das pesquisas sobre o sculo XIX:

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    Os estudos no apenas sobre a produo artstica brasileira dos sculos anteriores mas, igualmente, sobre a prpria crtica e histria da arte do pas no sculo XIX estudos que necessitam ser urgentemente intensificados, se quisermos estabelecer um quadro mais preciso das bases remotas do debate artstico brasileiro moderno. (CHIARELLI, 1995, p. 11)

    Durante as pesquisas iniciais tivemos a possibilidade de descobrir o nome de vrias mulheres, que no aparecem nos livros oficiais de histria da arte do Brasil, mesmo sabendo que elas existiram e que foram de singular importncia para o circuito artstico do sculo XIX e com certeza forneceram bases para as produtoras de arte do sculo XX.

    Devo aqui ressaltar que a falta de registros oficiais, desde os livros de matrcula, como documentos, obras de arte, etc, refletem a discriminao em relao mulher, e principalmente a mulher produtora de arte, que acaba por obscurecer o processo de identidade cultural brasileira, o que nos revela o tamanho do trabalho de resgate dessas mulheres, contribuindo para que elas no caiam no total esquecimento, ou mesmo que no sejam nem conhecidas...

    REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS

    ARAJO, Roberta M. de Melo. A educao feminina e o ensino de arte. Gnero em pesquisa. Uberlndia, ano 10, n. 18, p. 11-18, 2002.

    BANDEIRA, Julio, XEXO, Pedro Martins Caldas, CONDURU, Roberto. A Misso Francesa. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

    BARATA, Mrio. Sculo XIX transio e incio do sculo XX. In: ZANINI, Walter (org). Histria Geral da arte no Brasil. So Paulo: Instituto Walter Salles, 1983.

    BARBOSA, Ana Mae. Arte-educao no Brasil. So Paulo: Perspectiva, 1978.

    BITTENCOURT, Gean Maria. A Misso Artstica Francesa de1816. Petrpolis: Museu de Armas Ferreira da Cunha, 1967.

    CHIARELLI, Tadeu. Arte Internacional Brasileira. So Paulo: Lemos editora, 1999.

    _________. Introduo e notas. In: GONZAGA, Duque. A Arte Brasileira. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. (Coleo Arte: Ensaios e Documentos).

    COSTA, Cristina. A imagem da mulher: um estudo de arte brasileira. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2002.

    DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histrica ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/So Paulo: Universidade de So Paulo, 1978.

    DEL PRIORI, Mary (Org.). A histria das mulheres no Brasil. So Paulo: Contexto, 1997.

    __________. A mulher na histria do Brasil. So Paulo: Contexto, 1994. (Coleo Repensando o Brasil).

    FERREIRA, Flix. Do ensino profissional. In: BARBOSA, Ana Mae. Arte-educao no Brasil: das origens ao modernismo. So Paulo: Perspectiva, 1978, p. 27.

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    LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposies Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes 1840-1933, catlogo de artistas e obras. Rio de Janeiro: > Publicao digital: Arte data, 2003.

    OLIVEIRA, Miriam Andra. Abigail de Andrade: Artista Plstica do Rio de Janeiro, no sculo XIX. Rio de Janeiro: Arquivo da Ps-Graduao em Artes-Visuais. Mestrado em Histria da Arte, 1993.

    SAMARA, Eni de Mesquita. A famlia brasileira. So Paulo: Brasiliense, 1983.

    __________. Chefiar famlias e trabalhar: trajetria de vida das mulheres brasileiras do sculo XIX. Caderno Espao Feminino, Uberlndia, v. 4/5, n. especial, p. 161-171, jan./dez. 1997.

    SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Sesso do Conselho de Estado, de Georgina de Albuquerque. Nossa Histria. Fundao Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 5, p. 22-25, maro 2004.

    1 Projeto I desenvolvido no semestre 01/05 (com a orientao da Prof. Dra. Yacy-Ara Froner) e 02/05

    (com a orientao da Prof. Ms. Valria Ochoa) para obteno parcial do ttulo de licenciada e bacharel em Artes Plsticas 2 Aluna do Curso de Artes Plsticas da Universidade Federal de Uberlndia

    3 Considero incio, o momento em que temos a abertura da Academia Imperial de Belas Artes, e a

    inteno de tornar o ensino de arte institucional.