Epicuro Lucrcio Ccero Sneca
Marco Aurlio
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CONTRA-CAPA Neste volume
EPICURO ANTOLOGIA DE TEXTOS (sc. IV/lII a.C.) Pensamentos sobre a filosofia, a teoria do conhecimento, a fsica e a tica de um dos maiores filsofos da Antigidade. LUCRCIO DA NATUREZA (sc. I a.C.) Num longo e belo poema, Lucrcio expe a doutrina atomista criada por Leucipo e Demcrito e desenvolvida por Epicuro. CCERO DA REPBLICA (51 a.C.) As vrias formas de governo so analisadas luz do ecletismo filosfico de um dos maiores nomes do pensamento romano. SNECA CONSOLAO A MINHA ME HLVIA (sc. I a.C.) DA TRANQILIDADE DA ALMA (sc. I a.C.) MEDIA (sc. l a.C.) APOCOLOQUINTOSE DO DIVINO CLAUDIO (sc. I a.C.) Obras representativas de um dos mais importantes filsofos esticos da Roma Antiga, no tempo de Calgula e Nero. MARCO AURLIO MEDITAES (sc. II) Reflexes morais do imperador-filsofo, adepto do estoicismo. Seleo de textos: Jos Amrico Motta Pessanha Tradues e notas: Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide
Leoni, Jaime Bruna Estudos introdutrios: E. Joyau (Epicuro) e C. Ribbeck (Lucrcio) Consultor da Introduo Geral: Jos Amrico Motta Pessanha
ORELHAS
Os Pensadores Epicuro Lucrcio Ccero Sneca
Marco Aurlio
"Nunca se protele o filosofar quando se jovem, nem canse o faz-lo quando se velho, pois que ningum jamais
pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a sade da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda no chegou
ou j passou assemelha-se ao que diz que ainda no chegou ou j passou a hora de ser feliz." EPICURO: A Filosofia e o seu
Objetivo " indubitvel que a matria no forma um todo compacto, visto vermos que tudo se gasta e por assim dizer se
desfaz ao longo dos tempos e se oculta na velhice aos nossos olhos; o conjunto, no entanto, parece permanecer intato, pois o
que se retira de qualquer corpo, e por a o diminui, vai aumentar aquele a que se junta: obrigam uns a envelhecer, outros a
prosperar; e no param nesse ponto. Assim continuamente se renova o Universo e vivem os mortais de trocas mtuas.
Aumentam umas espcies, diminuem outras, e em breve espao se substituem as geraes de seres vivos e, como os
corredores, passam uns aos outros o facho da vida." LUCRCIO: Da Natureza "No procedas como se houvesses de durar dez milnios; o fim inevitvel pende sobre ti; enquanto vives, enquanto
podes, torna-te um bom."
MARCO AURLIO: Meditaes
FAZEM PARTE DESTA SRIE:
VOLTAIRE MARX ARISTTELES SARTRE ROUSSEAU NIETZSCHE KEYNES ADORNO SAUSSURE - PR-
SOCRTICOS GALILEU PIAGET KANT BACHELARD - DURKHEIM LOCKE PLATO DESCARTES - MERLEAU-PONTY
WITTGENSTEIN HEIDEGGER BERGSON - STO TOMS DE AQUINO HOBBES ESPINOSA - ADAM SMITH SCHOPENHAUER
VICO KIERKEGAARD PASCAL MAQUIAVEL HEGEL E OUTROS
CIP-Brasil. Catalogao-na-Publicao Cmara Brasileira do Livro, SP
Epicuro, 342 ou 1-271 ou 70A.C.
E54a Antologia de textos / Epicuro. Da natureza / Tito Lucrcio Caro. 3.ed. Da repblica / Marco Tlio Ccero. Consolao a minha me Hlvia ;
Da tranqilidade da alma ; Media ; Apocoloquintose do divino Cludio / Lcio Aneu Sneca. Meditaes / Marco Aurlio ; tradues e notas de Agostinho da Silva ... [et al.] ; estudos introdutrios de E. Joyau e G. Ribbeck. 3. ed. So Paulo : Abril Cultural, 1985.
(Os pensadores)
Contm vida e obra de Epicuro, Lucrcio, Ccero, Sneca e Marco Aurlio.
Bibliografia.
1. Epicuristas 2. Esticos 3. Filosofia antiga I. Lucrcio, 98?-55?A.C. II. Ccero, 106-43A.C. III. Sneca, 4?-65 ou 6. IV. Marco Aurlio, 121-180. V. Silva, Agostinho da, 1906- VI. Joyau, Emmanuel, 1850-1924. VII. Ribbeck, G. VIII. Ttulo. IX. Ttulo: Da natureza. X. Ttulo: Da repblica. XI. Ttulo: Consolao a minha me Hlvia. XII. Ttulo: Da tranqilidade da alma. XIII. Ttulo: Media. XIV. Ttulo: Apocoloquintose do divino Cludio. XV. Ttulo: Meditaes. XVI. Srie.
CDD- 180
-187 84-1228 -188
ndices para catlogo sistemtico: 1. Epicurismo : Filosofia antiga 187 2. Estoicismo : Filosofia antiga 188 3. Filosofia antiga 180 4. Filsofos antigos 180
EPICURO ANTOLOGIA DE TEXTOS
TITO LUCRCIO CARO
DA NATUREZA
MARCO TLIO CCERO DA REPBLICA
LCIO ANEU SNECA
CONSOLAO A MINHA ME HLVIA *
DA TRANQILIDADE DA ALMA *
MEDIA *
APOCOLOQUINTOSE DO DIVINO CLUDIO
MARCO AURLIO
MEDITAES
Tradues e notas de Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni, Jaime Bruna Estudos introdutrios de E. Joyau e G. Ribbeck
1985 EDITOR: VICTOR CIVITA
Ttulos originais: Texto de Lucrcio: De Rerum Natura Textos de Sneca:
Ad Helviam Matrem de Consolatione Ad Serenum de Tranquillitate Animi
Medea Divi Claudi Apokolokintosis Texto de Marco Aurlio: T (Meditaes)
Copyright desta edio, Abril S.A. Cultural, So Paulo, 1973 2. edio, 1980 3. edio, 1985. Tradues publicadas sob licena de Editora Globo S.A.,
Porto Alegre (Antologia de Textos de Epicuro; Da Natureza); D. Giosa Indstrias Grficas S.A., So Paulo (Da Repblica;
Consolao a Minha Me Hlvia; Da Tranqilidade da Alma; Media; Apocoloquintose do Divino Cludio); Editora Cultrix Ltda., So Paulo (Meditaes).
Direitos exclusivos sobre "Epicuro, Lucrcio, Ccero, Sneca, Marco Aurlio Vida e Obra", Abril S.A. Cultural, So Paulo.
EPICURO
LUCRECIO CCERO SNECA
MARCO AURLIO VIDA E OBRA
Consultoria: Jos Amrico Motta Pessanha
A perda da liberdade poltica primeiro dominada pelos macednios,
depois pelos romanos alterou profundamente os quadros dentro dos quais a
Grcia Antiga vinha desenvolvendo sua experincia cultural e, em particular, sua
criao mais arrojada: a especulao filosfica. Tornando-se parte do imprio
fundado por Filipe da Macednia e ampliado por seu filho Alexandre, o pas passa
a integrar vasto organismo poltico, verdadeiro mosaico de povos. Tendem a se
diluir as distines entre gregos e orientais, distines que, ento, os primeiros
orgulhosamente proclamavam e procuravam preservar.
O historiador Herdoto (c.480-c.425 a.C.) mostrara que a raiz dessas
distines estava no senso de liberdade poltica que um grego possua por pertencer
a uma cidade-Estado, cnscia de sua autonomia e de suas tradies, e onde, ao
usufruir os direitos de cidadania, ele no estava submetido a nenhum senhor. O
abismo entre os gregos do perodo helnico e os "brbaros" orientais provinha,
segundo Herdoto, da conscincia de liberdade que os gregos desenvolveram a
partir da peculiaridade de sua organizao social e poltica. Essa conscincia de
liberdade est ilustrada, pelo historiador, no episdio dos dois espartanos que, por
ocasio das Guerras Mdicas, se apresentam voluntariamente aos persas para serem
sacrificados como expiao pelo assassnio dos embaixadores de Xerxes. Indagados
sobre por que Esparta insistia em resistir ao Grande Rei, rejeitando as vantagens da
rendio e da submisso, os dois gregos respondem, altaneiros, ao persa que os
conduzia ao sacrifcio: "Tu no podes compreender. Conheces apenas a vida de
servido. Jamais experimentaste a liberdade, para saber se ela doce ou no. Do
contrrio, tu nos aconselharias a combater por ela no somente com a lana mas
tambm com o machado".
Depois da batalha de Queronia (338 a.C), que marca a derrota dos gregos
frente Macednia, a situao muda completamente. O desaparecimento da
autonomia da cidade-Estado torna sem sentido qualquer sentimento isolacionista.
Mas, pelo fato mesmo de inserir-se no grande organismo poltico dos macednios,
a cultura grega se difunde, tornando-se patrimnio comum a todos os pases
mediterrneos. Comea o chamado perodo helenstico, no qual, desde a morte de
Alexandre at a conquista romana, a cultura grega vai progressivamente se
impondo do Egito e da Sria at Roma e Espanha. E se Atenas inicialmente
permanece como centro da investigao cientfica e filosfica, outros focos de
atividade intelectual passaro depois a se afirmar, particularmente Alexandria.
No perodo helenstico as cincias particulares comeam a ter
desenvolvimento autnomo, despregadas do tronco original da antiga sabedoria
filosfica. O sculo III a.C. o sculo de Euclides, de Arquimedes (287-212 a.C.) e
de Apolnio de Perga (c.262-c.180 a.C), um esplndido sculo, portanto, para as
matemticas e a astronomia. Mas tambm o sculo em que, no museu de
Alexandria cujo bibliotecrio o gegrafo Eratstenes (275-194 a.C.) , ocorre
grande desenvolvimento da crtica filosfica e das cincias baseadas na observao.
Surge um novo tipo de intelectual, inexistente na fase helnica: o especialista
erudito. E se isso representa um impulso s especializaes cientficas, manifesta
tambm o novo rumo que tomara o conhecimento, desde que sua meta deixara de
ser o universo poltico: o da realizao subjetiva e pessoal, que acompanha o ideal
de cincia pela cincia.
Em busca da serenidade As novas condies impostas ao mundo grego tornam impossvel a
participao do indivduo no governo da polis, que o cidado helnico conhecera
sobretudo na fase democrtica. O conhecimento deixa de ser preparao para a
atividade poltica (como fora em Plato), passando a se ocupar do aprimoramento
interior do homem. Distanciada das preocupaes polticas, a filosofia aspira ao
estabelecimento de normas universais para a conduta humana e se prope a dirigir
as conscincias: o problema tico torna-se o centro da especulao de diferentes,
correntes filosficas.
As ticas helensticas partem procura do bem individual, de uma sabedoria
que represente a plenitude da realizao subjetiva: o alcance da perfeita serenidade
interior, independente das circunstncias. O bem no mais ter o sentido metafsico
do Bem de Plato, fundamento das idias, dos modelos do mundo corpreo, e,
conseqentemente, sustentao tanto do sujeito do conhecimento e da ao quanto
da prpria realidade objetiva. O bem das ticas helensticas ter acepo
estritamente existencial: o bem como sinnimo do que bom para o indivduo,
para a vida de cada homem.
Para traar o caminho que conduz serenidade interior, algumas ticas
helensticas o epicurismo e o estoicismo partem de uma concepo do
universo fundamentada racionalmente. Ao contrrio do que propunha o
socratismo, epicuristas e esticos fazem da cincia sobre a natureza das coisas a
base para suas construes morais. Bem diverso ser o itinerrio prescrito pelo
ceticismo, fundado por Pirro de lis (360-270 a.C): imperturbabilidade de esprito
s se chegaria partindo-se da suspenso de qualquer julgamento, renunciando-se a
qualquer explicao cientfica, abandonando-se toda pretenso de alcanar certezas
inatingveis.
Outra corrente de pensamento que se manifesta no perodo helenstico o
ecletismo. Procurando um critrio para a ao que escapasse s disputas das
diferentes escolas, essa filosofia pretender estabelecer, para alm das divergncias,
um "sentido comum", um consenso universal. Tal forma de pensar teve larga
aceitao na fase romana e Ccero foi seu mais eminente representante.
O carter de religiosidade, que se tornar evidente no pensamento ocidental
a partir do sculo I d.C, afirma-se antes em centros orientais da cultura helenstica,
como Alexandria. Manifesta-se ento acentuada tendncia fuso ou ao
sincretismo religioso. Ao mesmo tempo, ocorre o confronto entre duas tradies: a
greco-romana, formulada atravs de filosofias dotadas de alto ndice de
racionalizao, e a da religiosidade oriental, fundada como no judasmo e no
cristianismo na noo de "verdade revelada". Os primeiros efeitos da
repercusso do esprito religioso sobre a filosofia manifestam-se nos judeus-
alexandrinos (do sculo II a.C. ao I d.C), nos neopitagricos e platnicos
pitagorizantes (entre os sculos I a.C. e III d.C.) e nos ltimos defensores do
pensamento e da religio do politesmo: os neoplatnicos do sculo II ao sculo VI
d.C.
O neoplatonismo constituiu a mais perfeita manifestao de sincretismo
religioso dessa poca e teve em Plotino (204-270) seu principal representante. Para
o neoplatonismo canto de cisne do pensamento da Grcia Antiga , todos os
seres resultariam de sucessivas emanaes do Um, divino, transcendente e inefvel.
Antes de se calar, a filosofia grega medita sobre um ltimo tema: o silncio do Ser.
O jardim da amizade e do prazer Nascido em 341 a.C, em Atenas ou em Samos, Epicuro teria acompanhado,
dos catorze aos dezoito anos, os ensinamentos do acadmico Pnfilo. E, atravs de
Nausfanes de Teo, discpulo de Demcrito (c.460-370 a.C), teria conhecido as
doutrinas desse grande atomista. Durante algum tempo ganhou a vida como
professor de gramtica. Em seguida deu cursos de filosofia, primeiro em Lmpsaco,
depois em Mitilene e Colofonte. Finalmente regressa a Atenas, por volta de 306
a.C, onde adquire uma pequena casa e abre uma escola de filosofia, que ficar
conhecida como o Jardim de Epicuro.
Os alunos no tm em Epicuro um mestre no estilo tradicional: na verdade,
formam um grupo de amigos que filosofam juntos. Epicuro exerce influncia, no
s pelo ensino direto como pela extraordinria personalidade. um homem
bondoso, de natureza terna e amvel, que, apesar dos sofrimentos fsicos impostos
pela doena que o tortura e aos poucos o paralisa, cultiva as amizades, auxilia os
irmos e trata delicadamente os escravos. Por essa razo todos os que o conhecem
dificilmente deixam seu convvio.
Epicuro foi intensamente venerado por seus primeiros discpulos, grandes
admiradores seus. E cerca de dois sculos depois de sua morte ocorrida em 270
a.C. ainda ser assim exaltado pelo. poeta romano Lucrcio, seguidor e expositor
de suas idias: "Foi um deus, sim, um deus, aquele que primeiro descobriu essa
maneira de viver que agora se chama sabedoria, aquele que por sua arte nos fez
escapar de tais tempestades e de tais noites, para colocar nossa vida numa morada
to calma e to luminosa".
As tempestades e a noite a que se refere o poeta Lucrcio significam os
temores e as perturbaes que agitam o esprito humano e que Epicuro teria
ensinado como vencer. "A morada to calma e to luminosa" seria a meta proposta
pelo epicurismo: a morada da serenidade e do prazer. Com efeito, toda a tica de
Epicuro representa um esforo para libertar a alma humana de equvocos ou de
infundadas crenas aterrorizadoras. A filosofia, para Epicuro, deveria servir ao
homem como instrumento de libertao e como via de acesso verdadeira
felicidade. Esta consistiria na serenidade de esprito que advm da conscincia de
que ao homem que compete conseguir o domnio de si mesmo.
O autodomnio objetivo de toda reflexo filosfica exige a libertao
do jugo das falsas opinies e a conquista do conhecimento verdadeiro e seguro da
realidade e da posio do homem dentro dela. Conseqentemente, a filosofia pode
ser dividida em trs partes que se articulam. Em primeiro lugar, a lgica, que
permitiria distinguir quais as formas de conhecimento verdadeiro, quais as falsas.
Em segundo lugar com base nas solues indicadas pela lgica , uma fsica
que mostrasse a verdadeira estrutura da realidade na qual se insere o homem. A
lgica e a fsica constituiriam, assim, as disciplinas preliminares a possibilitar a
descoberta dos fundamentos da tica. Esta seria a terceira parte da filosofia e seu
objetivo ltimo, constituindo a chave para abrir as portas da felicidade.
A teoria do conhecimento dos epicuristas (que eles chamavam de cannica)
empirista, isto , reduz toda a origem do conhecimento experincia sensvel. As
repetidas experincias dos sentidos, preservadas pela memria, dariam nascimento
antecipao (em grego: prolepsis), equivalente noo geral ou conceito. Quando
se ouve a palavra homem, por exemplo, antecipa-se a presena real e efetiva de um
homem, sem que o mesmo esteja sendo apreendido de fato por qualquer dos
sentidos. A prolepsis teria a funo de classificar as experincias e fixar seus limites
de variao. Seria em si mesma verdadeira, pois simplesmente registra e preserva as
diferenas e semelhanas encontradas na experincia sensvel.
A fonte da verdade. Depois que se possui um nmero suficientemente grande de prolepsis,
podem-se formar juzos, verdadeiros ou falsos. A verdade de um juzo pode ser
provada, segundo os epicuristas, de duas maneiras. Quando o juzo diz respeito a
algo observvel pelos sentidos, o critrio pura e simplesmente a concordncia
entre o juzo e os fenmenos sensveis correspondentes. O segundo critrio de
verificao da verdade de uma proposio refere-se aos juzos sobre fenmenos
no passveis de observao atravs dos sentidos. Nesse caso diz-se que certa
proposio verdadeira se no entrar em contradio com outros dados fornecidos
pela experincia (critrios da no-infirmao). Os fenmenos adotados como prova
so apenas signos de uma realidade invisvel. Por exemplo, segundo a doutrina
atomista, adotada por Epicuro, "todos os corpos, por mais compactos que sejam,
possuem interstcios vazios dentro deles". Esse juzo no atestado diretamente
pelos sentidos; mas, se no for admitido como verdadeiro, tambm no seria
verdade que "a gua destila atravs das rochas", ou que "o calor e o frio passam
atravs das paredes".
A conjugao do conhecimento sensvel e do conhecimento racional permite
a Epicuro justificar sua adeso ao atomismo criado por Leucipo (meados do sculo
V a.C.) e Demcrito (c.470-c.370 a.C).
Com efeito, se os sentidos atestam o movimento como uma evidncia, seria
verdadeira, graas ao critrio da no-infirmao, a teoria atomista, que apresenta
uma explicao racional para o movimento, afirmando que tudo constitudo de
tomos (invisveis) que se movem no vazio.
Como os anteriores atomistas, Epicuro considera os tomos como infinitos
em nmero, indivisveis fisicamente (insecveis) e imensamente pequenos (sua
variao de tamanho estaria situada aqum do limiar de percepo); alm disso,
seriam mveis por si mesmos, pois o vazio no ofereceria qualquer resistncia
locomoo. Leucipo e Demcrito haviam afirmado que os tomos, materialmente
idnticos, diferiam uns dos outros apenas pela forma, pelo tamanho, pela posio
ou, quando constituam conjuntos, pelo arranjo. Epicuro, porm, introduz uma
nova distino: os tomos seriam diferentes tambm quanto ao peso. Os primeiros
atomistas consideravam o peso uma resultante do tamanho dos tomos: os
maiores, mais sujeitos aos impactos dos outros, locomovem-se com mais
dificuldade e tendem a ocupar o centro dos agrupamentos de tomos,
comportando-se como mais pesados. Ao contrrio, Epicuro considera o peso um
atributo inerente aos tomos, concebendo, portanto, um peso absoluto e no
relativo. E devido ao peso que os tomos, num momento inicial, so imaginados
por Epicuro como "caindo"; mas, situados dentro do vazio, teriam que
desenvolver, nessa "queda", trajetrias necessariamente paralelas. Isso significa que
os tomos jamais se chocariam dando origem aos engates e aos torvelinhos
indispensveis constituio das coisas e dos mundos se algum fator no viesse
interferir naquele paralelismo das trajetrias. Afastando-se do rgido mecanismo da
fsica dos primeiros atomistas, Epicuro introduz ento a noo de "desvio"
(clinamen): sem nenhuma razo mecnica, os tomos, em qualquer momento de suas
trajetrias verticais, podem se desviar e se chocar. O clinamen aparece, assim, como
a introduo do arbtrio e do impondervel num jogo de foras estritamente
mecnico: a ruptura da necessidade, no plano da fsica, para acolher a
contingncia.
A justificativa do clinamen est garantida pela cannica de Epicuro: a
evidncia imediata revela que existe um ser o homem que, embora
constitudo de tomos (como todos os seres do universo), manifesta a possibilidade
de arbtrio, pelo qual altera os rumos de sua vida ou, pelo menos, pode modificar
sua atitude interior diante dos acontecimentos. A existncia da vontade livre seria,
portanto, o fato experimentado que, atravs do critrio da no-infirmao,
encontraria explicao no desvio que deve tambm ocorrer nas trajetrias atmicas.
Inconcebvel seria admitir que um composto (o homem) apresentasse atributos
inexistentes em seus componentes (os tomos). A doutrina do clinamen serve, assim,
para fundamentar, dentro de um universo de coisas regido pelo fatalismo e pela
necessidade mecnica, a espontaneidade da alma, a autonomia da vontade, a
liberdade humana. Na fsica Epicuro situa as premissas de sua tica.
A verdadeira sabedoria Com sua concepo materialista da realidade, Epicuro pretende libertar o
homem dos dois temores que o impediriam de encontrar a felicidade: o medo dos
deuses e o temor da morte. Os deuses existem, afirma Epicuro, mas seriam seres
perfeitos que no se misturam s imperfeies e s vicissitudes da vida humana. Os
deuses viveriam em perfeita serenidade nos espaos que separam os mundos. Sua
perfeio suprema constitui o ideal a que aspiram os sbios e deve ser objeto de
culto desinteressado; no teria sentido ador-los de maneira servil, temerosa e
interesseira, pois eles desconhecem o mundo imperfeito dos homens e de modo
algum atuam sobre ele. Quanto morte, no h tambm por que tem-la. Ela no
seria mais que a dissoluo do aglomerado de tomos que constitui o corpo e a
alma. A morte, portanto, no existe enquanto o homem vive e este no existe mais
quando ela sobrevm.
A libertao do temor dos deuses e da morte no basta para conduzir o
homem verdadeira felicidade. necessrio ainda que ele se liberte da nsia
incontrolada de prazeres e do incontido pesar pelas dores.
A luminosidade racional da doutrina atomista permitiria ao homem afastar
os sombrios temores que lhe intranqilizavam a alma, bem como reconhecer-se
como um ser perfeitamente integrado na natureza universal. Enquanto ser natural,
o homem como os animais pauta sua vida, espontaneamente, pela procura
do prazer e pela fuga da dor. Mas a verdadeira sabedoria est alm desse
comportamento natural e espontneo: sbio reconhecer que h diferentes tipos de
prazer, para saber selecion-los e dos-los. O hedonismo epicurista reconhece que
o ponto de partida para a felicidade est na satisfao dos desejos fsicos, naturais.
Mas essa satisfao, para no acarretar sofrimentos, deve ser contida, reduzindo-se
ao estritamente necessrio: sbio aquele que "com um pouco de po e de gua
rivaliza com Jpiter em felicidade".
Epicuro considera que todo prazer basicamente um prazer corpreo. Mas,
ao contrrio dos cirenaicos corrente hedonista que se pretendia herdeira de
Scrates , Epicuro afirma que o prazer que o homem deve buscar no o da
pura satisfao fsica imediata e mutvel, o "prazer do movimento". Para Epicuro,
o prazer que deve nortear a conduta humana o prazer com dimenso tica e no
apenas natural o "prazer do repouso", constitudo pela ataraxia (ausncia de
perturbao) e pela aponia (ausncia de dor). Ambas podem ser alcanadas na
medida em que o homem, atravs do autodomnio, busque a auto-suficincia que o
torne um ser que tem em si mesmo sua prpria lei, um ser autrquico, capaz de ser
feliz e sereno independentemente das circunstncias. Para tanto, deve renunciar aos
prazeres que possam ser fontes de aflio e aceitar a dor quando ela portadora de
um bem futuro (que nunca deve ser confundido com a suposta vida depois da
morte). necessrio, portanto, fazer um clculo utilitrio dos prazeres e das dores
possveis, como primeiro passo para a conquista da felicidade. Epicuro, porm,
reconhece que as circunstncias podem impor a dor como um fato inelutvel.
Sabedoria ser ento utilizar a liberdade interior e, atravs do artifcio que essa
liberdade permite, permanecer sereno e feliz. dor presente, ensina Epicuro, pode-
se escapar por meio da lembrana dos prazeres passados ou pela expectativa de
prazeres futuros. Interiormente, o homem livre para jogar, vontade, com as
imagens (eidola) que seriam resqucios corpreos (formados de tomos mais tnues)
de suas sensaes. Epicuro ele prprio um homem doente e vtima de terrveis
sofrimentos fsicos, ele prprio um grego sem liberdade poltica teria dado a
demonstrao dessa tcnica interior de evaso, capaz de permitir ao homem
enfrentar serenamente as mais adversas circunstncias. Seu hedonismo altamente
espiritualizado, que fazia da contemplao intelectual e das delcias da amizade os
mais elevados prazeres, legou s ticas posteriores uma lio que nunca mais ser
esquecida: a de que o homem tambm pode se sustentar de recordaes e de
esperanas.
A poesia do materialismo Na prpria Antigidade o epicurismo no sofreu reformulaes. Os
seguidores imediatos de Epicuro limitaram-se a cultuar a memria do mestre e a
preservar e propagar suas idias.
Segundo Digenes Larcio, a obra de Epicuro compreendia cerca de
trezentos ttulos, dentre os quais s Sobre a Natureza compreenderia 37 livros. Dessa
grande quantidade de escritos, todavia, restou muito pouco: o prprio Digenes
Larcio conservou uma Carta a Herdoto (que trata da fsica), uma Carta a Ptocles (de
"autenticidade contestada e tratando dos meteoros) e uma Carta a Meneceu (sobre
moral); Digenes Larcio faz seguir essas cartas de quarenta sentenas atribudas a
Epicuro e conhecidas sob a denominao de Mximas Principais. Em 1888, K.
Wotke descobriu, num manuscrito da biblioteca do Vaticano, 81 mximas de
Epicuro, algumas j inseridas nas Mximas Principais. Por outro lado, as escavaes
realizadas em Herculanum trouxeram luz uma biblioteca epicurista, contendo
inclusive o Sobre a Natureza de Epicuro.
Mas, se os escritos de Epicuro s so conhecidos de forma fragmentria,
existe uma outra fonte para o conhecimento de sua doutrina: o poema Da Natureza
das Coisas, de seu seguidor Lucrcio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C.
Pouco se sabe da vida de Tito Lucrcio Caro. Nasceu provavelmente em
Roma, onde foi educado.
Quando conheceu a doutrina de Epicuro "honra da raa grega" ,
Lucrcio deslumbrou-se com seus ensinamentos, que lhe pareceram a chave para
desvendar os segredos do universo e para abrir as portas da felicidade humana.
Seguindo as pegadas do mestre, Lucrcio prope-se tarefa de libertar os romanos
da religio que os oprimia e que sobre eles pesava com mais fora do que outrora
pesara sobre os gregos.
Alm de servir de fonte para conhecimento da doutrina epicurista, o poema
de Lucrcio tem imensa importncia literria: atravs dele Lucrcio se revela um
dos maiores poetas da lngua latina.
Lucrcio matou-se em 55 a.C. Seu poema, escrito em intervalos de ataques
de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado, para publicao,
segundo algumas fontes, por um irmo de Ccero chamado Quinto. Segundo outras
fontes, aquele trabalho foi feito pelo prprio Ccero, que tinha pelo poeta do
materialismo profunda admirao.
O ecletismo de Ccero Em janeiro de 49 a.C, o trinviro romano Jlio Csar atravessou o Rubico e
desencadeou a guerra civil que o levaria a dominar todo o imprio. Venceu Pompeu
em Farsala, instalou Clepatra no trono do Egito, reorganizou o Oriente e derrotou
os ltimos adeptos do segundo trinviro da frica, em 46 a.C, e na Espanha, um
ano depois. De volta a Roma em 45 a.C., comeou a governar como dspota
absoluto e tratou de eliminar os ltimos adversrios.
Entre os adversrios perseguidos estava Marco Tlio Ccero (106-43 a.C),
senador e figura proeminente da poltica romana nos anos anteriores. Obrigado a
deixar os negcios pblicos, Ccero recolheu-se vida privada e retomou a
meditao filosfica, de que j se ocupara num primeiro exlio, por volta de 51 a.C.
O resultado foi um conjunto de obras, escritas em aproximadamente dois anos e
que versavam sobre os mais variados assuntos: Sobre os Fins, Controvrsias Tusculanas
e Sobre os Deveres tratam de problemas ticos; Os Tpicos e Os Acadmicos abordam
questes lgicas; A Natureza dos Deuses, Sobre a Arte Adivinhatria e Sobre o Destino so
dedicados a temas da fsica.
Do ponto de vista da filosofia, essas so as principais obras escritas por
Ccero no retiro forado por Csar e vinham juntar-se a Sobre o Orador, escrito em
55 a.C., A Repblica, redigida em 51 a.C, e Sobre as Leis, provavelmente da mesma
poca.
Esse conjunto de obras desempenharia papel de primeiro plano na histria
do pensamento porque fazia do latim um idioma filosfico. Pouco antes, Lucrcio
tinha escrito o poema Sobre a Natureza, mas a obra no foi publicada seno aps a
morte do poeta e, ao que tudo indica, sob os cuidados de Ccero.
Apesar desse valor histrico, as obras de Ccero no contm um pensamento
original, limitando-se a amalgamar diferentes teorias filosficas gregas. Ccero foi
um tipo ecltico, discutindo os argumentos das diferentes doutrinas gregas
correntes na poca, sem vincular-se inteiramente a nenhuma.
Essas correntes ele tinha conhecido quando, na juventude, estudou em
Atenas, antes de tornar-se famoso advogado e homem pblico. Foi discpulo e
amigo de epicuristas, esticos, peripatticos e acadmicos. De todos eles Ccero
retirou algumas idias e comps uma sntese que, alm da importncia pela criao
de um vocabulrio filosfico latino, constitui fonte de estudo de boa parte do
pensamento clssico.
No que diz respeito a suas prprias posies doutrinrias, Ccero, em teoria
do conhecimento, ops-se tanto ao ceticismo radical de Pirro de Elis (360-270 a.C.)
quanto ao dogmatismo extremado. Defendeu como critrio de verdade o
probabilismo do consenso universal, isto , aquela posio que acha possvel ao
homem chegar a algum conhecimento das coisas, sem no entanto atingir a verdade
absoluta. A verdade estaria naquilo que pode ser aceito por todos. As razes dessa
posio so colocadas menos num plano puramente lgico do que no terreno das
necessidades prticas do homem. Para Ccero, o problema do conhecimento no
pode ser solucionado exclusivamente em sua estrutura interna. O homem necessita,
todavia, de admitir como verdadeiras algumas noes sem as quais no possvel
manter a coeso da sociedade.
Em moral, Ccero adere s doutrinas esticas sem, entretanto, aceitar todo o
rigor da concepo segundo a qual o exerccio da virtude basta-se a si mesmo e
consiste na conformidade da conduta humana s leis racionais da natureza.
Aceita essas idias, mas exige que tais normas sejam vlidas pelo consenso
universal.
Esse consenso universal articula-se em torno de algumas idias que do
fundamento vida moral e social, principalmente a da existncia de Deus e sua
providncia. Tais noes seriam comprovadas pela conscincia natural dos homens
e pela constatao de que na natureza os fenmenos organizam-se em torno de
fins, os quais supem a existncia de um fim ltimo de todas as coisas. Outra idia
com a mesma funo de fundamentar a vida social e moral a da essncia espiritual
e divina da alma e sua imortalidade. Essa idia encontrar-se-ia confirmada na
preocupao do homem com sua vida futura.
Os esticos Depois de Ccero ter iniciado a histria da filosofia em lngua latina,
formulando sua sntese ecltica, o movimento de idias mais importante dentro do
pensamento romano foi o desenvolvimento das doutrinas esticas, tambm
originrias da Grcia, como o epicurismo e o ecletismo.
A escola estica foi fundada por Zeno de Ccio (334-264 a.C.) e continuada
por Cleanto de Assos (331-232 a.C) e Crisipo de Solis (280-210 a.C.).
Posteriormente, a escola transformou-se, tendendo para uma posio ecltica, com
Pancio de Rodes (185-112 a.C.) e Possidnio de Apamia (135-51 a.C).
O estoicismo grego prope uma imagem do universo segundo a qual tudo o
que corpreo semelhante a um ser vivo, no qual existiria um sopro vital
(pneuma), cuja tenso explicaria a juno e interdependncia das partes. Em seu
conjunto, o universo seria igualmente um corpo vivo provido de um sopro gneo
(sua alma), que reteria as partes e garantiria a coeso do todo. Essa alma
identificada, por Zeno, razo, e assim o mundo seria inteiramente racional. A
Razo Universal (Logos), que tudo penetra e comanda, tende a eliminar todo tipo de
irracionalidade, tanto na natureza, quanto na conduta humana, no havendo lugar
no universo para o acaso ou a desordem.
A racionalidade do processo csmico manifesta-se na idia de ciclo, que os
esticos adotam e defendem com rigor. Herdeiros do pensamento de Herclito de
feso (sc. VI a.C), os esticos concebem a histria do mundo como feita por
sucesso peridica de fases, culminando na absoro de todas as coisas pelo Logos,
que Fogo e Zeus. Completado um ciclo, comea tudo de novo: aps a
conflagrao universal, o eterno retorno.
Tudo o que existe corpreo e a prpria razo identifica-se com algo
material, o fogo. O incorpreo reduz-se a meios inativos e impassveis, como o
espao vazio; ou ento quilo que se pode pensar sobre as coisas, mas no s
prprias coisas.
Nesse universo corpreo e dirigido pelo fatalismo dos ciclos sempre
idnticos, tudo existe e acontece segundo predeterminao rigorosa porque
racional. Governada pelo Logos, a natureza por isso justa e divina e os esticos
identificam a virtude moral com o acordo profundo do homem consigo mesmo e,
atravs disso, com a prpria natureza, que intrinsecamente razo. Esse acordo
consigo mesmo o que Zeno chama "prudncia" e dela decorrem todas as demais
virtudes, como simples aspectos ou modalidades.
As paixes so consideradas pelos esticos como desobedincia razo e
podem ser explicadas como resultantes de causas externas s razes do prprio
indivduo; seriam, como j haviam mostrado os cnicos, devidas a hbitos de pensar
adquiridos pela influncia do meio e da educao. necessrio ao homem
desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e Razo
Universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer
circunstncia, mesmo na dor e na adversidade.
Uma nova lgica Os esticos gregos no se limitaram a formular uma fsica e uma tica.
Elaboraram tambm uma teoria do conhecimento de acentuada originalidade. As
trs formariam um conjunto sistemtico que expressaria, no plano do
conhecimento, a mesma racionalidade encontrada na natureza.
A teoria do conhecimento consiste, para os esticos, em vincular
estreitamente a certeza e a cincia ao plano do conhecimento sensvel. A base de
qualquer conhecimento seriam as impresses recebidas pelos sentidos; mas j o
nvel do sensvel estaria penetrado pela razo, sendo portanto predisposto
sistematizao pela inteligncia.
Ao lado das coisas sensveis, os esticos distinguem os "exprimveis", isto ,
aquilo que se pode pensar e dizer sobre as coisas. Os "exprimveis" seriam objeto
da dialtica, disciplina que se ocuparia dos enunciados verdadeiros ou falsos a
respeito das coisas, e no das prprias coisas.
Os mais simples enunciados, segundo os esticos, so compostos por um
sujeito (expresso por um substantivo ou um pronome) e um atributo (expresso por
um verbo). Esses enunciados distinguem-se, assim, das proposies da lgica
aristotlica, que estabelecem relaes entre conceitos (por exemplo: "O homem
um animal racional"). Na lgica estica, o sujeito sempre singular (algum, Pedro
etc.) e o atributo indica sempre algo que ocorre com o sujeito. As ligaes entre os
enunciados, portanto, nunca assumem o carter de juzo categrico, permanecendo
como relacionamento entre eventos, cada qual expresso por uma proposio
simples (por exemplo: "Est claro, dia").
Os esticos distinguem cinco tipos de juzos compostos que renem os
enunciados simples. O juzo hipottico exprime relao entre antecedente e
conseqente ("Se h fumaa, h fogo"). O juzo conjuntivo simplesmente justape
fatos (" dia, est claro"). O juzo disjuntivo separa os enunciados, de modo que s
um deles pode ser verdadeiro ("Ou dia, ou noite"). Finalmente, o quinto tipo de
juzo expressa a idia de mais e menos ("Fica menos claro quando mais noite").
A medicina da alma No foi a lgica dos esticos gregos, nem mesmo sua teoria do mundo
fsico, que sobretudo atraiu o interesse dos esticos romanos. Foi antes sua moral
da resignao, sobretudo nos aspectos religiosos que ela permitia desenvolver.
O primeiro representante do estoicismo romano, sem contar as idias
esticas que se encontram no ecletismo de Ccero, foi Lucius Annaeus Sneca,
nascido em Crdoba (Espanha), aproximadamente quatro anos antes da era crist.
Era filho de Annaeus Sneca (55 a.C-39 d.C.) conhecido como Sneca, o Velho
, que teve renome como retrico e do qual restou uma obra escrita (Declamaes).
O futuro filsofo Sneca foi educado em Roma, onde estudou a retrica ligada
filosofia. Em pouco tempo tornou-se famoso como advogado e ascendeu
politicamente, passando a ser membro do senado romano e depois nomeado
questor.
O triunfo poltico, no entanto, no se fazia sem conflitos e o renome de
Sneca suscitou a inveja do imperador Calgula, que pretendeu desfazer-se dele pelo
assassinato. Sneca, contudo, foi salvo por sua frgil sade; julgava-se que ele
morreria muito cedo, de morte natural. O prprio Calgula que faleceria logo
depois e Sneca pde continuar vivendo em relativa tranqilidade. No duraria esse
perodo muito tempo. Em 41 d.C. foi desterrado para a Crsega, sob acusao de
adultrio, supostamente praticado com Jlia Livila, sobrinha do novo imperador
Cludio Csar Germnico. Na Crsega, Sneca passaria quase dez anos em grande
privao material.
Em 49 d.C, Messalina, primeira esposa do imperador Cludio e responsvel
pelo exlio de Sneca, caiu em desgraa e foi condenada morte. O imperador
Cludio casou-se com Agripina e esta mandou chamar Sneca para educar seu filho
Nero. Em 54 d.C, quando Nero se torna imperador, Sneca passa a ser seu
principal conselheiro. Esse perodo estende-se at 62 d.C, ano em que sua estrela
comea a perder o brilho junto ao desptico soberano. Sneca deixa a vida pblica
e sofre a perseguio de Nero, que acaba por conden-lo ao suicdio, em 65 d.C.
As Cartas Morais de Sneca, escritas entre os anos 63 e 65 e dirigidas a
Luclio, misturam elementos epicuristas com idias esticas e contm observaes
pessoais, reflexes sobre a literatura e crtica satrica dos vcios comuns na poca.
Entre seus doze Ensaios Morais, destacam-se Sobre a Clemncia, cautelosa advertncia
a Nero sobre os perigos da tirania, Da Brevidade da Vida, anlise das frivolidades nas
sociedades corruptas, e Sobre a Tranqilidade da Alma, que tem como assunto o
problema da participao na vida pblica. As Questes Naturais expem a fsica
estica enquanto vinculada aos problemas ticos.
Alm dessas obras propriamente filosficas, Sneca escreveu ainda nove
tragdias e uma obra-prima da stira latina, Apokolokintosis, que ridiculariza Cludio
e suas pretenses divindade.
Todas essas obras revelam que Sneca foi, sobretudo, um moralista. A
filosofia para ele uma arte da ao humana, uma medicina dos males da alma e
uma pedagogia que forma os homens para o exerccio da virtude. O centro da
reflexo filosfica deve ser, portanto, a tica; e a fsica e a lgica devem ser
consideradas como seus preldios.
Sua concepo do mundo repete as idias dos esticos gregos sobre a
estrutura puramente material da natureza. Contudo, a razo universal dos gregos
Cleanto e Zeno transforma-se em Sneca num deus pessoal, que sabedoria,
previso e vigilncia, sempre em ao para governar o mundo e realizar uma ordem
maravilhosa.
O imperador filsofo Cronologicamente, o segundo grande representante do estoicismo romano
foi Epicteto (c.50-130), escravo durante muitos anos e, posteriormente, professor
de filosofia. Seu ensino foi recolhido pelo discpulo Ariano de Nicomia, em oito
livros. Chegaram at a atualidade quatro livros inteiros e apenas alguns fragmentos
dos restantes.
Grande admirador de Epicteto foi o imperador Marco Aurlio Antonino,
que, nas pausas tranqilas de seu conturbado governo, se dedicou reflexo
filosfica e com isso tornou-se o terceiro e ltimo grande expoente do estoicismo
romano.
Marco Aurlio nasceu em 121, no seio de uma famlia aristocrtica, e muito
cedo perdeu os pais. Foi ento adotado pelo tio, Aurlio Antonino. O tio tornar-se-
ia imperador e nomearia Marco Aurlio seu sucessor, em 161.
Aos onze anos de idade, Marco Aurlio conheceu o estoicismo e adotou
hbitos de vida austera, recomendados por aquela escola filosfica. Depois dos
anos de formao passou a colaborar intimamente com o imperador, seu pai
adotivo, ocupando o cargo de cnsul por trs vezes. Em 161, Aurlio Antonino
faleceu e Marco Aurlio tornou-se imperador.
O governo de Marco Aurlio que se estendeu por quase vinte anos, at
sua morte em 180 foi perturbado por guerras sangrentas e prolongadas, com as
conseqentes dificuldades internas. Alm disso, Roma foi vtima de inundaes,
tremores de terra e incndios. Marco Aurlio conseguiu enfrentar todas as
dificuldades, tendo sido excelente guerreiro e administrador e, ao mesmo tempo,
humanizando profundamente o exerccio do poder. Nos poucos momentos que os
encargos de governo permitiam, recolhia-se meditao filosfica e escrevia seus
pensamentos em lngua grega, que lhe parecia a mais apta a exprimir inquietaes
intelectuais e morais profundas. As Meditaes (como posteriormente ficaram
conhecidos aqueles pensamentos) so simples notas, apenas esboadas.
O contedo das Meditaes a filosofia estica, mas de um estoicismo
bastante distante das doutrinas de Zeno, Cleanto e Crisipo. As especulaes fsicas
e lgicas cedem lugar ao carter prtico dos romanos e ao aconselhamento moral.
Em Marco Aurlio como tambm nas Mximas de Epicteto a questo central
da filosofia o problema de como se deve encarar a vida para que se possa viver
bem. Esse problema assume a forma de intensa preocupao com o estado de sua
prpria alma, em virtude da natureza delicada e sensvel do autor das Meditaes,
homem sobretudo religioso e pouco interessado na investigao cientfica. Por essa
razo o estoicismo de Marco Aurlio freqentemente apresenta discrepncias em
relao a suas origens gregas. Marco Aurlio no chegou a ser um pensador original
e no procurou resolver as inconsistncias de sua prpria posio. Enquanto a
ortodoxia estica levava-o na direo de um credo materialista, seu sentimento
religioso impelia-o no sentido da fora moral e da benevolncia. Por isso, as
Meditaes de Marco Aurlio expressam-se atravs de uma linguagem que, por um
lado, parece pressupor a aceitao de um pantesmo puramente fsico; por outro,
abandona os dogmas da escola estica para seguir os ditames do corao.
Por certo a verdadeira chave para compreenso das oscilaes de Marco
Aurlio deve ser procurada menos em suas caractersticas psicolgicas do que nas
circunstncias histricas em que viveu. O imprio romano estava perdendo o
antigo esplendor e a cultura clssica greco-latina mostrava os ltimos sinais de
vitalidade. Cada vez mais ganhava corpo uma nova concepo do mundo: o
cristianismo.
Marco Aurlio expressa claramente essa etapa de transio. Nele a auto-
suficincia do antigo estoicismo grego cede lugar falta de confiana em si mesmo
e conscincia das prprias imperfeies. Com isso antecipa a virtude crist da
humildade e mais um passo apenas poderia lev-lo concepo de um Deus nico
e pessoal.
Cronologia
470 a.C. Nasce Scrates.
460 a.C. Nasce Demcrito.
428 a.C. Nascimento de Plato.
399 a.C. Processo e morte de Scrates.
359 a.C. Ascenso de Filipe ao trono da Macednia.
341 a.C. Nasce Epicuro.
338 a.C. Batalha de Queronia: Filipe derrota os gregos.
336 a.C. Morte de Filipe. Ascenso de Alexandre.
334 a.C. Nasce Zeno de Ccio, fundador da escola estica. Aristteles funda o
Liceu. 331 a.C. fundada a cidade de Alexandria. 323 a.C. Morre
Alexandre. 306 a.C. Epicuro abre sua escola em Atenas. 287 a.C. Nasce
Arquimedes. 270 a.C. Morre Epicuro.
148 a.C. Os romanos reduzem a Macednia a provncia. 106 a.C. Nasce Ccero.
98(?) a.C. Nasce Lucrcio. 55(?) a.C. Morre Lucrcio.
51 a.C. No exlio, Ccero redige suas primeiras obras filosficas. 46 a.C. Jlio Csar
derrota foras de Pompeu na frica. 45-44 a.C. Ccero redige suas obras mais
importantes. 44 a.C. Assassnio de Jlio Csar. 43 a.C. Ccero assassinado.
29-19 a.C. Virglio compe a Eneida. 4(?) a.C. Nasce Sneca.
41 d.C. Sneca banido para a Crsega.
49 d.C. Torna-se preceptor do jovem Nero.
50 d.C-130 d.C. Vida de Epicteto.
54 d.C. Nero torna-se imperador. Sneca feito seu conselheiro.
65 d.C. Nero condena Sneca ao suicdio.
68 d.C. Morte de Nero.
121 d.C. Nasce Marco Aurlio.
161 d.C. Torna-se imperador.
180 d.C. Morte de Marco Aurlio.
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EPICURO ANTOLOGIA DE TEXTOS
Traduo e notas de Agostinho da Silva Estudo introdutrio de E. Joyau
EPICURO (por E. Joyau)
Epicuro era de Atenas. Sua famlia pertencia ao demo de Gargetos; era
nobre, ao que parece, mas reduzida a grande pobreza; segundo certas tradies,
remontava a Fileu, neto de Ajax. O pai do nosso filsofo, Nocles, fez parte dos
colonos que os atenienses enviaram a Samos em 352 a.C. e entre os quais se
realizou uma partilha de terras. Foi a que nasceu Epicuro, no ano terceiro da 109.a
Olimpada (341 a.C.) no ms de Gamelion. Certos historiadores, entre outros
Digenes Larcio, dizem que nasceu em Gargetos; parece, porm, que se trata de
um erro. Mas se veio luz em Samos era incontestavelmente de pais atenienses e
no tinham razo nenhuma os seus adversrios quando pretendiam que no era um
verdadeiro cidado. Por outro lado, foi completamente por acaso que Epicuro
nasceu em Samos, como Pitgoras, e no h razo alguma para que se procurem no
seu sistema vestgios de influncia pitagrica. Nocles exercia o mister de mestre-
escola; sua mulher, Querstrata, adivinhava o futuro; ia s casas dos pobres
conjurar o mau-olhado e atalhar as doenas; o filho acompanhava-a e recitava as
frmulas propiciatrias. Foi isso, sem dvida, o que lhe deu oportunidade de
conhecer de perto as supersties populares e os males que causa a credulidade dos
homens.
Manifestou muito cedo a curiosidade do seu esprito. No tinha mais de
catorze anos, alguns dizem mesmo doze, quando o professor de gramtica citou
diante dele o verso de Hesodo No princpio todas as coisas vieram do caos. "E o caos",
perguntou Epicuro, "donde veio ele?" O professor ficou atnito; disse que no lhe
competia resolver a questo e que era necessrio formul-la aos filsofos. Os
estudos do moo foram, pois, orientados nessa direo; compreendeu a
importncia e o interesse dos estudos filosficos e foi escutar as lies das
diferentes escolas. Foi ento que conheceu Nausifanes, discpulo de Demcrito, de
quem se devia inspirar em muitos pontos da doutrina. Ouviu um grande nmero de
outros mestres sem se ligar a nenhum. Conheceu, pois, as filosofias anteriores, mas
no se deu ao trabalho de as estudar, de as discutir a fundo. Seria, segundo nos
parece, perder tempo investigar sobre o que ele deve ou sobre o que ele critica de
cada uma delas. Os dois grandes sistemas de Plato e de Aristteles teriam exigido,
para serem bem conhecidos e compreendidos, um exame longo e paciente; teriam
merecido ser discutidos ponto por ponto; Epicuro no se demorou nesse trabalho;
talvez no fosse muito capaz de o executar; em todo caso, no sofreu a influncia
destas duas doutrinas e no se inspirou nelas.
Aos dezoito anos de idade veio pela primeira vez a Atenas, mas no
permaneceu na cidade durante muito tempo. Foi ento que travou relaes com
Menandro, que era da sua idade. Este ltimo, num epigrama que nos chegou em
parte, aproxima Epicuro de Temstocles: o pai de um, exatamente como o do
outro, chamava-se Nocles; e, quanto aos dois filhos, "um de vs salvou a ptria da
escravido, o outro da irreflexo". Epicuro no pde nesta poca ouvir Aristteles,
que j se tinha retirado para Clcis. Exerceu primeiramente, como seu pai, o ofcio
de mestre de letras e de gramtica; s mais tarde abriu escola de filosofia, primeiro
em Lmpsaco, depois em Mitilene e Colofonte, por fim em Atenas, em 306 a.C,
com a idade de trinta e seis anos.
Talvez tivesse vindo a esta cidade um pouco mais cedo e tivesse sido forado
a abandon-la bruscamente. Depois da tomada de Atenas por Demtrio Poliorceto,
Sfocles, filho de Anticlides, fez votar uma lei pela qual era proibido, sob pena de
morte, abrir uma escola sem autorizao do Senado e do povo; todos os filsofos
tiveram que abandonar a cidade. A lei foi promulgada logo depois de derrubado
Demtrio de Falero e de ter sido restabelecida a liberdade; da mesma maneira tinha
sido Scrates condenado pelo tribunal dos Heliastas depois da expulso dos Trinta
Tiranos. curioso notar como era fcil aos demagogos excitar a desconfiana do
povo ateniense contra os filsofos. Mas logo no ano seguinte, graas interveno
do peripattico Flon, o decreto foi revogado e Sfocles, convencido de ter violado
as leis, foi condenado a uma penalidade de 5 talentos. Os filsofos puderam ento
reentrar em Atenas e no foram inquietados mais. No temos os elementos
necessrios para saber ao certo se Epicuro se contou entre aqueles a quem se imps
o xodo; neste como noutros pontos, a nossa curiosidade fica excitada no mais alto
grau e no encontra com que se satisfazer.
Comprou pelo preo de 80 minas (6 000 ou 7 000 francos) um jardim, isto ,
uma pequena casa com um jardim, e foi a que estabeleceu a sua escola. Que idia
deveremos fazer desses jardins de Epicuro de que nos falam todos os escritores
antigos e que lhes pareciam constituir notvel inovao? No era um parque:
Ccero emprega muitas vezes, para os designar, o diminutivo hortuli: era uma
propriedade para renda mais do que uma propriedade de recreio, porque Epicuro
no seu testamento fala dos rendimentos que dela recebia. E provvel que as casas
com jardim no fossem raras em Atenas, porque a cidade no era muito povoada e
as habitaes no estavam amontoadas umas sobre as outras; mas Epicuro, em
lugar de reunir os seus auditores numa sala, num ginsio ou num prtico, dava-lhes
lies ao ar livre; no fazia os seus cursos a certas horas, mas passava todo o dia no
jardim, falando familiarmente com uns e com outros, de modo que se no via nele
um mestre rodeado de discpulos, mas um grupo de amigos que filosofavam juntos.
A influncia extraordinria que exerceu sobre os seus discpulos foi devida ao
ascendente da sua personalidade mais que s suas doutrinas; como o disse Sneca,
Metrodoro, Hermarco, Polieno devem mais a terem freqentado Epicuro do que a
seu ensino. com efeito um dos caracteres mais notveis da escola epicurista esta
amizade que no cessou de nela reinar, unindo por um lado os professores e os
alunos, por outro lado os alunos entre si. Todos os escritores da Antigidade esto
de acordo sobre este ponto; os adversrios mais odientos nunca nos falam de
dissenses, de rivalidades que tivessem dividido os epicuristas: "Foi ele prprio um
homem bom, e houve muitos epicuristas, e ainda hoje existem, fiis na amizade e
em toda a sua vida graves e constantes".0F1 Era de natureza terna, como o atestam a
sua piedade com os pais, a sua bondade, com os irmos, a sua delicadeza com os
escravos e em geral a sua humanidade com todos. Parece, por outro lado, ter sido
muito amvel. Metrodoro de Lmpsaco, desde o dia em que conheceu Epicuro,
nunca mais o deixou, exceto para uma viagem que fez sua ptria. Na carta a
Idomeneu, escrita mesmo no dia da morte, dizia ele: "Em nome da amizade que
sempre me testemunhaste, toma conta dos filhos de Metrodoro".
Segundo certos comentadores, Epicuro, alm do seu jardim de Atenas, teria
ainda possudo uma casa de campo em Melite e t-la-ia legado tambm sua escola.
Mas se examinarmos os planos de Atenas e da tica que foram reconstitudos pelos
arquelogos, vemos que o nome Melite designa no uma localidade distinta mas
um bairro da cidade perto da porta ocidental. Achamos, pois, que Epicuro no
tinha duas propriedades, uma dentro, outra fora das muralhas, mas uma s,
compreendendo jardim e casa de habitao, situada em Atenas, muito perto da
extremidade do subrbio.
Apesar das perturbaes que afligiram a Grcia, Epicuro passou em Atenas
toda a segunda parte da sua vida, exceto duas ou trs viagens que fez aos confins da
Jnia, para visitar amigos. No se meteu em assuntos pblicos, no desempenhou
nenhum papel nas sucessivas revolues da sua ptria, no atraiu sobre ele prprio
nem sobre os seus amigos o dio de nenhum partido. A sua carreira no foi,
portanto, assinalada por nenhum acontecimento importante e os historiadores
antigos no nos contam a seu respeito nenhuma anedota interessante. Durante um
cerco da cidade, quando os habitantes sofriam cruelmente de fome, alimentou os
seus discpulos partilhando com eles as provises de favas que tinha tido a
1 Ccero, De Finibus, II, XXV, 80, 81.
precauo de pr de reserva e dando aos outros exatamente o mesmo que guardava
para si prprio.
O xito que obteve no foi efmero; prolongou-se sem interrupo durante
trinta e seis anos; consolou Epicuro dos cruis ataques de uma terrvel doena, a
pedra; suportou-a com uma grande firmeza e morreu em 270 a.C, no segundo ano
da 127.a Olimpada, com a idade de setenta e dois anos. Dava desta firmeza sinais
bem engenhosos e bem delicados. "Durante as minhas doenas", escreve ele, "no
falava a ningum do que sofria no meu miservel corpo; no tinha essa espcie de
conversao com aqueles que me vinham visitar: no falava com eles seno daquilo
que desempenha na natureza o primeiro papel. Procurava sobretudo fazer-lhes ver
que a nossa alma, sem ser insensvel s perturbaes da carne, podia no entanto
manter-se isenta de cuidados e no gozo pacfico dos bens que lhe so prprios. Ao
chamar os mdicos, no contribua com a minha fraqueza para lhes fazer tomar
ares importantes, como se a vida que eles procuravam conservar-me fosse para
mim um grande bem. Mesmo nesse tempo vivia eu tranqilo e feliz."
A sua constncia no se desmentiu mesmo no momento da morte; eis aqui a
sua ltima carta a Idomeneu: "Este dia em que te escrevo o ltimo da minha vida
e tambm um dia feliz. Sinto tais dores de bexiga e de entranhas que nem se
poderia imaginar dores mais violentas; mas estes sofrimentos so compensados
pela alegria que traz minha alma a recordao das nossas conversaes". Nos
ltimos tempos da sua vida, no podia nem sequer suportar os vesturios, nem
descer da cama, nem consentir luz, nem ver lume. Conta Hermarco que, depois de
ter sido atormentado por dores incessantes durante catorze dias, pediu que o
metessem numa bacia de bronze cheia de gua quente para dar alguma trgua ao
mal; em seguida bebeu um pouco de vinho, exortou os amigos a lembrarem-se dos
seus preceitos e nesta conversao terminou a vida. Guyau compara a serenidade
da morte de Epicuro de Scrates. Outros historiadores, pelo contrrio, foram at
o ponto de dizerem que estas prticas constituam um verdadeiro suicdio. No
somos desta opinio: o recurso a uma morte voluntria em tais circunstncias no
teria estado de acordo com os ensinamentos de Epicuro e nada na sua atitude, no
decurso dos ltimos tempos, nos autoriza a crer que ele queria ter dado a si prprio
um desmentido to formal. Se tivesse tomado tal caminho, ter-se-ia desacreditado
aos olhos dos discpulos; a prova de que esta suspeita no penetrou nos seus
espritos ou no encontrou a nenhuma aceitao a prpria persistncia da escola
e da venerao pela pessoa do mestre.
Epicuro tinha trs irmos, que morreram antes dele: Nocles, Caridemo,
Aristbulo; Plutarco cita-os como modelo de amizade fraternal.
No seu testamento preocupa-se com assegurar a perpetuidade da sua escola:
os seus executores testamentrios devero velar por que os jardins fiquem
propriedade da seita epicurista; sero, pois, ocupados por Hermarco (Epicuro tinha
primeiro designado como sucessor o seu amigo Metrodoro, mas, como este
morrera sete anos antes do mestre, este substituiu-o por Hermarco, que tinha
adotado todas as suas doutrinas); depois dele, passaro quele que lhe suceder
como chefe de escola: alm disso, todos os epicuristas se reuniro l
periodicamente para tomar parte em refeies em comum e para celebrar o
aniversrio da morte do seu chefe, de maneira a alimentarem a amizade que os une.
Esta amizade, como o faz notar Dugas,1F2 tem caracteres muito especiais: "Nesta
amizade entra o esprito de seita; os amigos devem ter a mesma f filosfica... Pe
por condio sua amizade que lhe abracem a doutrina; cumula de benefcios os
filhos de Metrodoro e de Polieno, mas exige deles que obedeam ao seu sucessor
Hermarco, que vivam e filosofem com ele; quanto filha de Metrodoro, estar
tambm submetida a Hermarco; aceitar o marido que ele escolher e esse marido
ser epicurista". Esta clusula foi observada durante muito tempo. No entanto, na
poca de Ccero os jardins, que estavam ento em muito mau estado, tinham-se
tornado propriedade de um romano, C. Memmius. Ccero escreveu-lhe para lhe
pedir que os restitusse seita epicurista; no sabemos qual foi o resultado desta
diligncia.
2 Dugas, L 'Amiti Antique, 1.I, ch. II, p. 33.
H mais ainda: Epicuro, que durante a sua vida tinha tomado a seu cargo os
filhos do seu amigo Metrodoro, recomenda-os aos seus executores testamentrios,
a fim de que lhes no falte nada. Finalmente, d a liberdade a quatro dos seus
escravos, trs homens e uma mulher.
Este testamento faz grande honra a Epicuro, porque est de acordo com
toda a sua vida; no podemos ver nele uma pea de efeito destinada a tomar de
surpresa a admirao, e a perturbar o juzo da posteridade. Se Epicuro reuniu sua
volta um grande nmero de amigos que lhe ficaram fiis, porque de tal foi digno,
porque era na verdade um homem excelente e os seus inimigos no puderam
recusar-lhe este testemunho: "Quem nega que ele foi um homem bom, agradvel e
humano?" 2F3
No princpio da edio das Animadversiones in librum Diogenis Laertii, de
Gassendi, publicado em Lio, por Guill. Barbier, em 1649, encontramos um retrato
de Epicuro segundo um original conservado na coleo du Puy. Usener, no
frontispcio do seu volume, reproduziu, segundo uma fotografia, um busto em
bronze de Herculanum, publicado tambm por Comparetti e Petra. Em uma destas
imagens o filsofo representado de perfil, na outra, de frente. "A cabea", diz
Chaignet, " forte; as feies, sobretudo o nariz, acentuadas; os lbios espessos; a
expresso calma, benevolente mais que severa, sincera e simples, mas sem esprito,
sem graa e sem sorriso; no de admirar que, quando desejava ser amvel e
gracejar, os seus cumprimentos, como lho censuravam, trassem o esforo e fossem
um pouco pesados."
*
Epicuro tinha agrupado uma multido de discpulos e depois da sua morte a
prosperidade da escola manteve-se at os ltimos dias do paganismo, embora haja
sem dvida muito exagero nas frases de Ccero e de Sneca: "Realmente Epicuro,
numa s casa e esta mesmo pequena, reuniu, pelo consentimento de uma grande
conspirao de amor, um elevadssimo nmero de amigos; e isto o que mesmo
3 Ccero, o. c, 1. c.
agora acontece com os epicuristas". O nmero de epicuristas despertava
provavelmente a inveja dos esticos, cujos preceitos austeros no podiam ser
postos em prtica seno por um raro escol.
Segundo parece, Epicuro abriu a sua escola alguns anos depois de Zeno.
Em todo caso, era sensivelmente mais novo do que este ltimo, e morreu muito
antes dele, porque no viveu seno setenta e dois anos, ao passo que Zeno atingiu
a idade de oitenta e oito anos. No entanto, o epicurismo no foi uma reao contra
a severidade dos esticos e nenhum dos dois sistemas exerceu qualquer influncia
sobre a constituio do outro; provvel que mais tarde no tenha acontecido o
mesmo, a luta entre as duas escolas rivais tornou-se cada vez mais spera e mais
encarniada, muitos homens, no se sentindo com foras de aderir ao estoicismo,
lanaram-se na doutrina oposta; mas no a um sentimento desta natureza que se
deve atribuir o aparecimento do epicurismo.
O que nos impressiona primeiro a docilidade com que os discpulos
aceitaram as doutrinas do mestre e as conservaram sem alterao. O epicurismo
no tem histria: est todo ele nos ensinamentos de Epicuro e o tempo no lhes
trouxe nenhuma modificao; nenhum dos epicuristas foi um filsofo original,
nenhum procurou ganhar qualquer nomeada. No entanto, parece-nos justo
mencionar alguns dos discpulos imediatos de Epicuro.
Metrodoro de Lmpsaco, a quem Ccero chama "quase um outro Epicuro" e
a quem o prprio mestre tinha conferido o ttulo de Sbio. So algumas vezes
apresentados como sendo dele os fragmentos de um tratado Acerca das Sensaes
publicados no tomo sexto dos papiros de Herculano, mas a atribuio duvidosa.
Metrodoro morreu sete anos antes de Epicuro, que no deixou de lhe cuidar dos
filhos. Existe no Louvre um busto de Epicuro com duplo rosto, representando de
um lado o mestre, do outro o discpulo inseparvel.
Polieno, que morreu tambm antes do seu mestre, era um distinto
matemtico. Hermarco de Mitilene muitas vezes designado pelo nome de
Hermarco; mas, segundo Zeller, no devem subsistir dvidas sobre o seu nome
verdadeiro; foi a ele que coube a direo da escola depois da morte do fundador.
Ao mesmo grupo pertencia ainda Colotes, contra quem Plutarco devia escrever um
livro quatrocentos anos mais tarde.
A admirao pelo gnio do mestre que Lucrcio exprime em tantos passos, a
adeso sem reservas sua doutrina, so sentimentos comuns a toda a escola.
Ficavam encantados pelos ensinamentos de Epicuro como se fosse pelo canto das
sereias; recebiam como verdades incontestveis os princpios formulados pelo
mestre; a convico que tinham era profunda, o dogmatismo intransigente;
aprendiam de cor as frmulas do sistema e tinham um grande cuidado em no
deixar perder nada daquilo que o mestre tinha dito ou escrito; tocar num s ponto
da doutrina era a seus olhos um verdadeiro sacrilgio. "Epicuro", diz Crousl, "foi
o fundador e o deus de uma espcie de religio nova... os discpulos de Epicuro
formavam na realidade uma pequena igreja." Esta docilidade muito nova entre os
gregos, cujo esprito era audacioso e independente. "A apario e o xito do
epicurismo atestam", segundo Croiset, "um enfraquecimento notvel do
pensamento especulativo da Grcia."
A extrema docilidade dos epicuristas deu motivo a uma singular acusao:
censuraram-nos de terem considerado Epicuro como um deus e de o terem
adorado. Sem dvida praticavam-se nessa pequena sociedade certos ritos,
realizavam-se reunies para festas, para repastos em comum, celebravam-se
aniversrios, rodeava-se de um verdadeiro culto a memria do mestre, elevavam-se
esttuas, os discpulos entusiastas traziam sempre sobre eles a sua imagem, ou
ento um anel, como os escravos forros; diziam que era bem digno do seu nome de
"auxiliador" (epi-kourios). Alguns evidentemente no souberam parar a tempo em tal
caminho; nos espritos medocres a superstio depressa se vinga da abolio das
crenas religiosas. Assim Nocles, irmo de Epicuro, escreveu, segundo se diz, que
a me tinha sido bem feliz por ter juntado no seu seio os tomos que tinham
formado um tal sbio. Quanto aos versos de Lucrcio, que iguala Epicuro aos
deuses e o pe acima de Hrcules ou de Ceres, no podemos ver nisso outra coisa
que no seja um brilhante desenvolvimento potico; o que o resto do poema nos
faz conhecer do carter e dos sentimentos do autor no nos permite ter dvidas
sobre o sentido destas expresses.
Mas, segundo se afirma, um dia Colotes lanou-se aos ps do mestre e
adorou-o; Epicuro teve o maior cuidado em no o desenganar. Responderemos
primeiro que esta anedota, embora seja contada por Digenes Larcio, no talvez
muito autntica; pode ser que tenha sido completamente inventada ou que ao
menos o aspecto lhe tenha sido singularmente alterado pelos seus adversrios. Em
todo caso. nica e necessrio que no tiremos dela concluses exageradas. Que
Colotes. que era do nmero dos pequenos espritos de que falvamos h pouco, se
tivesse deixado levar por um entusiasmo irrefletido, que o prprio Epicuro tenha
ficado um momento embriagado pelo prestgio que lhe reconheciam os seus
amigos eis a alguma coisa de muito humano e esta fraqueza passageira no nos
parece manchar seriamente o valor do sistema.
Tem havido grande indignao pelo fato de a escola estar aberta s mulheres
e por vrias terem nela desempenhado um papel importante. Parece desconhecer-se
a liberdade de que gozavam as mulheres na sociedade ateniense e o gosto que
manifestaram algumas pela cultura intelectual; parece esquecer-se sobretudo que
Scrates tinha prazer em conversar com mulheres, mesmo com cortess, e
especialmente com Aspsia. Havia um grande nmero de mulheres nas escolas de
Pitgoras e de Plato. Os costumes dos epicuristas no parecem ter sido diferentes
dos dos seus compatriotas e dos seus contemporneos; seria muitssimo injusto
acus-los de um crime de prticas que a nossa moral condena, mas que no tinham
sido eles a introduzir na Grcia. Nada mais falso do que o quadro delineado por
vrios escritores que representam o jardim de Epicuro como uma espcie de local
mal freqentado, como o teatro de encontros obscenos. Comparam-nos s
cavalarias de Augias, a um chiqueiro de porcos; do pormenores precisos que
fazem honra sua imaginao, mas no ao seu sentido crtico.
Acusam-se ainda os epicuristas de se terem entregue aos prazeres da mesa,
de terem sido familiares com todos os excessos do comer e do beber. fcil diz-
lo, mas difcil apresentar uma prova. Diz-se que gostavam de se reunir para
refeies em comum; mas qual era o cardpio destas refeies? Eram festins,
banquetes, cujo calor comunicativo provoca toda espcie de desvarios de
linguagem e de comportamento? No eram, antes, reunies cujo principal encanto
residia no prazer de se tornar a encontrar, de estarem juntos pela comunidade das
idias e dos sentimentos? Da sobriedade do prprio Epicuro temos ns provas
irrecusveis: gastava pouqussimo na sua alimentao diria: "Hermarco", escreveu
ele, "gaba-se de gastar s um asse por dia na sua alimentao; mas eu nem mesmo
um asse gasto". Contentava-se muito bem com po e gua; pede a um dos seus
amigos que lhe envie um queijo para os dias em que se quiser ofertar um mimo
especial. No pelo atrativo da boa comida que ele pretendia atrair os seus
discpulos; era nestes termos que ele resumia o programa da sua escola:
"Estrangeiro, aqui te encontrars bem: aqui reside o prazer, o bem supremo.
Encontrars nesta casa um mestre hospitaleiro, humano e gracioso, que te receber
com po branco e te servir abundantemente gua clara, dizendo-te: No foste bem
tratado? Estes jardins no foram feitos para irritar a fome, mas para a apaziguar,
no foram feitos para aumentar a sede com a prpria bebida, mas para a curar por
um remdio natural e que nada custa. Eis aqui a espcie de prazer em que eu tenho
vivido e em que envelheci".
certo que se no poderia dizer o mesmo de todos os epicuristas; houve
muitos cujas desordens explicam e justificam a m reputao da escola. Mas, como
Sneca nota muito judiciosa-mente, no foi por uma fiel aplicao dos princpios de
Epicuro que eles se abandonaram s suas paixes; procuram, pelo contrrio, colorir
as suas paixes com o nome de epicurismo que eles usurparam. Seria injusto tornar
o mestre responsvel pelo procedimento destes pretensos discpulos, tanto mais
que os adversrios do epicurismo abusaram estranhamente desta palavra: afetaram
confundir com os epicuristas personagens cujo procedimento e cujo carter nada
tinham de filosfico, revestindo com o nome homens que no cuidavam de
nenhum sistema nem de nenhuma doutrina. No nos venham, portanto, falar mais
dos porcos do rebanho de Epicuro: estes porcos, porque muitos no mereciam
outro nome, no eram epicuristas.
Para bem se compreender o carter do epicurismo, para lhe explicar o xito
maravilhoso e duradouro, preciso considerar as circunstncias em que foi
concebido e ensinado. Era alguns anos depois das prodigiosas conquistas e da
morte sbita de Alexandre, enquanto os generais disputavam entre si e partilhavam
a sua herana. As repblicas gregas tinham perecido uma aps outra; j no havia
em parte nenhuma nem liberdade nem vida poltica. A antiga religio j no tinha
crentes e no podia satisfazer aos espritos. Tambm tinha passado o tempo das
grandes construes especulativas. Plato tinha morrido em 347 a.C, sete anos
antes do nascimento de Epicuro, Aristteles em 322 a.C; nenhum metafsico
original lhes tinha sucedido. O pensamento grego manifestava numerosos sinais de
lassido. Os filsofos que continuavam a ensinar na Academia e no Liceu no
tinham iniciativa e cada vez amesquinhavam mais as doutrinas de seus mestres. J
no havia interesse seno pelas questes que diretamente dizem respeito vida
prtica; e, como h duas espcies de esprito, duas maneiras de encarar a natureza
do homem e as suas relaes com o conjunto das coisas, surgiram dois sistemas
opostos que foram acolhidos com entusiasmo por um grande nmero de adeptos,
o epicurismo e o estoicismo: a origem e o desenvolvimento destes dois sistemas so
exatamente contemporneos e paralelos. Ainda mais: o epicurismo e o estoicismo
so de todos os tempos; as duas doutrinas contam ainda nos tempos modernos um
grande nmero de partidrios.
A. Croiset, na sua Histria da Literatura Grega, diz que o princpio da moral
epicurista era fundamentalmente perigoso e que fez ao mundo antigo muito mal.
Pensamos, pelo contrrio, que a voga do epicurismo e, no hesitamos em diz-lo, a
transformao que ele sofreu so o efeito e no a causa da decadncia dos
costumes. Eis o que sobre o assunto escreveu Curtius: "Todos os nobres
sentimentos que tinham florescido na Grcia tinham a sua razo de ser na idia de
Estado. Por isso, logo que o povo viu que lhe interditavam este terreno, logo que
viu que j no tinha ptria e que a prpria vida municipal estava decaindo, perdeu
todas as virtudes que tinha herdado do passado... O bem-estar material, o conforto
da vida de pequena cidade, eis o que a multido se ps a procurar. Todos os nobres
instintos se foram enfraquecendo de dia para dia".
Droysen traa um quadro mais sombrio ainda do estado da Grcia no
comeo do sculo IV: "As massas empobrecidas, imorais; uma juventude
asselvajada pelo mister de mercenrios, estragada pelas cortess, desequilibrada
pelas filosofias em moda; uma dissoluo universal, uma ruidosa agitao, uma
febril exaltao a que sucedem a distenso e uma estpida inrcia, tal o quadro
deplorvel da vida grega nessa altura... (Em especial em Atenas) estas duas coisas, a
leviandade mais frvola e de maior abandono, e a cultura delicada, amvel e
espirituosa que se designou depois com o nome de aticismo, so os traos
caractersticos da vida de Atenas durante o domnio de Demtrio de Falero. uma
questo de bom-tom visitar as escolas dos filsofos; o homem da moda
Teofrasto, o mais hbil dos discpulos de Aristteles, que sabe tornar popular a
doutrina de seu ilustre mestre, rene mil ou dois mil alunos sua volta e que mais
admirado e mais feliz do que nunca o foi seu mestre. No entanto, este Teofrasto e
uma quantidade de outros professores de filosofia eram eclipsados por Stilpon de
Megara. Quando Stilpon vinha a Atenas, os artfices deixavam as suas oficinas para
v-lo e todos os que podiam acorriam para o ouvir; as heteras afluam s suas lies
para o ver e para serem vistas em sua casa, para exercerem na sua escola o vivo
esprito que fazia o seu encanto na mesma medida dos vesturios sedutores e da
arte de reservar os seus ltimos favores. Estas cortess gozavam da companhia
habitual dos artistas da cidade, pintores e escultores, msicos e poetas; os dois
autores cmicos mais clebres do tempo, Filmon e Menandro, louvavam
publicamente nas suas comdias os encantos de Glicera e disputavam-se
publicamente os seus favores, prontos a esquec-la por outras cortess no dia em
que ela encontrava amigos mais ricos do que eles. Da vida de famlia, da castidade,
do pudor j se no fala em Atenas; talvez se mencionem; toda a vida se passa em
frases e em ditos graciosos, em ostentao e em agitada atividade. Atenas lana aos
ps dos poderosos a homenagem dos seus louvores e do seu esprito e aceita como
recompensa os seus dons e as suas liberalidades... Apenas se temia o tdio ou o
ridculo e tinham-se os dois at saciedade. A religio tinha desaparecido e o
indiferentismo do livre-pensamento no tinha feito seno desenvolver ainda mais a
superstio, o gosto da magia, das evocaes e da astrologia; o fundo srio e moral
da vida, expulso dos hbitos, dos costumes e das leis, pelo raciocnio, era estudado
teoricamente nas escolas dos filsofos e tornava-se objeto de discusses e de
querelas literrias".3F4 "O epicurismo", diz por seu lado Denis. "no corrompeu nada
e no matou nada na Grcia porque j no havia mais nada para corromper e para
matar."4F5
O mrito de Epicuro est em ter compreendido que havia alguma coisa que
reclamava um grande nmero de espritos e em ter-lhes dado satisfao de uma
forma admirvel. Muitos homens, com efeito, preocupam-se acima de tudo em ser
felizes; a felicidade o ltimo termo das suas aspiraes; mas, como so
inteligentes, no podem recusar o terem em conta as exigncias do seu esprito; no
poderiam ser completamente felizes se no dessem uma razo plausvel da sua regra
de procedimento; sentem a necessidade de conceber uma explicao do espetculo
que apresentam os seres e os fenmenos do mundo, mas no apresentam muitas
dificuldades, no so muito exigentes em matria de explicao; contentam-se de
boa vontade com a primeira teoria que lhes propem, que julgam compreender e
que aceitam com confiana; no se do ao trabalho de a complicar, de a
aprofundar; se as suas doutrinas apresentam algumas contradies, no do por
isso ou no se inquietam com a sua resoluo. O epicurismo trazia-lhes
precisamente aquilo que eles pediam: " aberta e simples e direta via", diz Ccero.5F6
Na luta contra o estoicismo, os epicuristas conservaram uma atitude mais defensiva 4 Droysen, Histoire de l'Hellnisme. Trad. Bouch-Leclerc, t. II, I. III, ch. III. 5 J. Denis, Histoire des Ides Morales dans s 'Antiquit, l'Antiquit, I, p. 298. 6 Ccero, De Finibus, I, XVIII, 57.
que ofensiva; respondiam s acusaes dos seus adversrios, mas de modo algum
empreendiam a crtica dos dogmas sobre os quais estes fundavam o seu sistema.
Tais homens, considerando a imensidade do universo e o pequeno lugar que ns
temos dentro dele, a impossibilidade em que ns estamos de triunfar sobre as
foras e as leis da natureza, no empreendem a luta; facilmente se acomodam com a
nossa fraqueza, procuram adaptar-se o melhor possvel s condies que nos foram
determinadas e fazem o possvel por passar agradavelmente o pouco tempo que
ns temos para viver. Alguns dentre eles so homens de um esprito muito fino e
muito delicado; o que lhes falta a energia da vontade. Muitas vezes se lhes tm
acusado de covardia: proferir uma palavra bastante violenta que no parece
justificada. O epicurista no um covarde: primeiro, trabalha por se libertar dos
temores que tornam to infelizes a maior parte dos homens; depois, se acontece ser
atingido por algum infortnio, procura consolar-se sem fazer esforos sobre-
humanos e sem se enganar a si prprio com frases ambiciosas. Compreende-se,
pois, a averso que inspira tal sistema queles cujo carter feito sobretudo de
altivez e coragem, que tm uma idia mais alta da dignidade do homem, que no se
propem outro objetivo seno o de ser fortes, e queles tambm que, convencidos
de que o nico objeto digno de ns o conhecimento da verdade, pem as
investigaes cientficas acima da busca da felicidade.
Epicuro um dos escritores mais fecundos da Antigidade: tinha composto
mais de trezentos tratados e estas obras eram realmente dele, no as aumentava por
meio de citaes tiradas aos seus antecessores. Tambm Crisipo escreveu muito,
porque no queria parecer inferior em nada aos seus adversrios; mas seus livros
eram antes rplicas, polmicas, do que exposies sistemticas; alm disso, a sua
abundncia era mais aparente que real, porque muitas pginas estavam cheias de
citaes tomadas aqui ou alm.
Digenes Larcio transmitiu-nos os ttulos dum certo nmero de obras de
Epicuro: um Tratado da Natureza, em trinta e sete livros, sobre os tomos e o vcuo,
resumo do que se escreveu contra os fsicos; objees dos megarenses; dos deuses,
da santidade, dos fins, das maneiras de viver (quatro livros), da justia e das outras
virtudes, dos dons do reconhecimento, da msica; depois, livros intitulados
Queredemo, Hegesianax, Nocles, Eurloco, Aristbulo, Timcrates (trs livros),
Metrodoro (cinco livros), Andidoro (dois livros), Anaxmenes: impossvel arriscar
a menor conjetura sobre qual fosse o objeto de cada uma destas obras. Alm disso,
o mesmo historiador reproduz textualmente, como j o dissemos, uma carta a
Herdoto, uma a Ptocles, uma a Meneceu, uma coletnea de mximas principais e
o testamento do filsofo. Mas, ao passo que os epicuristas estudavam
religiosamente todos os escritos do seu mestre e no liam outros, todos os outros
filsofos professavam o mais profundo desdm pelos livros de Epicuro e de seus
discpulos. Os admiradores fanticos de Epicuro dizem que ele arruinou a sade
fora de trabalhar; provavelmente um erro; mas no menos falsa a lenda
segundo a qual as suas doenas tiveram por causa a sua devassido e o seu amor
imoderado pelos prazeres da mesa.
Epicuro no deve ser contado entre os bons autores: desprezava a glria
literria e no se dava ao cuidado de apurar o seu estilo: "No me dou ao trabalho
de escrever", dizia ele; "no havia necessidade nenhuma de ter educao literria
aquele que pretendia ser filsofo".6F7 Improvisava e no fazia correes. Fazia pouco
caso das artes, o que se lhe censurou muitas vezes e o que nos pode admirar da
parte de um grego. No esqueamos que, se Epicuro ensinava em Atenas, no tinha
nascido na cidade e no tinha passado nela a sua mocidade; a sua primeira educao
tinha sido muito sumria; talvez por isso que o seu estilo e o seu gosto deixavam a
desejar. Acusam-no de escrever mal, de empregar termos baixos, locues
incorretas; outras vezes censuram-no por ter introduzido vrios neologismos: esta
uma crtica que se no pensaria em dirigir hoje a um filsofo ou a um sbio. A
maior parte dos antigos est de acordo em reconhecer-lhe o mrito da clareza;
Ccero contesta-lho muitas vezes, mas no sempre: "Exprime nas suas palavras o
que deseja e diz claramente o que hei de entender".7F8 Parece, com efeito, que, dado
7 Ccero, De Finibus, II, IV, 12. 8 Ccero, op.cit.,I,V, 15.
o carter que procurou imprimir ao seu sistema e espcie de discpulos a que faz
apelo, o que ele pretende, acima de tudo, a clareza. "Tem nervo e energia", diz
Croiset, "mas, de nenhum modo, emoo ou imaginao."
As suas graas so raras e pesadas, e nada h nele que lembre a ironia
socrtica. Que h na aparncia de mais claro e de mais simples do que o
epicurismo? Ao se refletir melhor apresentam-se muitas dificuldades e formulam-se
perguntas s quais o mestre no d seno uma resposta evasiva: as explicaes
parecem-nos muitas vezes insuficientes, mas ele no se detm por to pouco.
Certos autores, entre outros Plutarco, censuram-no por se no ter dado ao trabalho
de estudar e de refutar as teorias dos seus antecessores, sobretudo de Plato e de
Aristteles; uma crtica qual no teria sido sensvel, porque no fazia caso da
erudio e declarava intil a investigao curiosa da histria. No tinha estudado as
matemticas que so, segundo Plato, o vestbulo da filosofia. Alguns
comentadores, interpretando certos textos de Ccero, pensam que Epicuro tinha
um ensino exotrico e um ensino esotrico. Clemente de Alexandria diz que os
epicuristas tinham doutrinas secretas que no revelavam ao vulgo e tomavam o
maior cuidado em no escrever; no nos parece que isto seja verossmil.
Epicuro no um filsofo original: nenhuma das suas teorias deixou de ser
bem antes dele ensinada por algum outro; e, no entanto, se no imaginou uma
teoria prpria sobre os princpios das coisas, no nos apressemos a concluir que o
seu gnio no era bastante poderoso para que o fizesse; no dava, conforme
dissemos, grande importncia ao estudo das cincias naturais e no lhes reconhecia
valor seno na medida em que elas trazem moral um auxlio necessrio. Ocupou-
se, pois, longamente das questes de fsica; o seu tratado Da Natureza no tinha
menos de trinta e sete livros. Todos os historiadores esto de acordo sobre um
ponto, o de que ele no fez progredir nem a cincia nem a filosofia; mas tambm
no manifestou nunca tais ambies. Gabava-se, segundo se diz, de no dever nada
a ningum, de ser o nico autor do seu sistema e no se cansava de troar, mais ou
menos espirituosamente, de todos os filsofos anteriores: no h nisto uma
contradio que no precisamente em seu abono? Dizia que Nausfanes no era
mais do que um pulmo, sem dvida por causa da fora e da beleza da voz; Plato,
um homem de ouro, amigo do fausto; Aristteles, um devasso, que tinha devorado
todo o seu patrimnio; Pro
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