ZIZEK, slavoj. Primeiro Como Tragedia, Depois Como Farsa

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E D I T O R I A L Slavoj Zizek primeiro como tragédia, depois como farsa

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  • 1. Slavoj Zizekprimeirocomo tragdia,depoiscomo farsaE D I T O R I A L

2. Copyright Slavoj Zizek, 2009Copyright Verso Books, 2009Copyright da traduo Boitempo Editorial 2011Traduzido do original em ingls: First as tragedy, then as farceCoordenao editorialIvana JinkingsEdi tora-assisten teBibiana LemeAssistncia editorialCarolina Malta e Livia CamposTraduoMaria Beatriz de MedinaPreparaoMariana EchalarCapa e diagramaoaeroestdiosobre a ilustrao Lord of Flies* dc Jeannie PhanProduoAna Lotufo ValverdeC1P-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.Z72p2izek, Slavoj, 1949-Primciro como cragdia, depois como farsa / Slavoj Zzck; traduoMaria Beatriz de Medina. - So Paulo : Boitempo , 201I.Traduo de: First as tragedy, then as frceInclui ndiceISBN 978-85-7559-174*1t. Globalizao - Filosofia. 2. Crise financeira global, 2008-2009 -Filosofia. 3. Arenrado terrorista de 11 de seicmbro de 2001.1. Tculo.11-2280 CDD: 337CDU: 339 vedada, nos termos da lei, a reproduo de qualquerparte desce livro sem a expressa autorizao da editora.Este livro atende s normas do acordo ortogrfico em vigor desde janeiro de 2009.Ia edio: maio de 2011BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.Rua Pereira Leite, 37305442-000 So Paulo-SPTel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869editor@boitempoeditorial.com.brwww.foitcmpoeditorial.com.br 3. Su m r ioPrefcio edio brasileira.................................................................. 7In tr o d u o : As lies da primeira dcada...................................... 151. A IDEOLOGIA, ESTPIDO!....................... ............................... ..............21Socialismo capitalista? A crise como terapia de choque A estruturada propaganda inimiga Humano, demasiado humano... O novo espritodo capitalismo Entre os dois fetichismos Comunismo outra vez!2. A hiptese comunista............................. ....................................79O novo cercamento das reas comuns Socialismo ou comunismo?.*O uso pblico da razo ...no Haiti A exceo capitalista Capitalismode valores asiticos... na Eiiropa Do lucro renda Ns somos aquelespor quem estvamos esperandondice onomstico................................................................................. 131 4. P r e f c io e d i o b r a s il e ir aDizem que, na China, a maldio que se lana contra algum que realmente sedetesta : Que voc viva em tempos interessantes!. Em nossa histria, temposinteressantes so de fato os perodos de agitao, guerra e luta pelo poder, em quemilhes de espectadores inocentes sofrem as consequncias. Nos pases desenvolvidos,estamos claramente nos aproximando de um novo perodo de tempos interessantes.Depois de dcadas (de promessa) d Estado de bem-estar social, em que os cortesfinanceiros se limitavam a curtos perodos e se apoiavam na promessa de que tudologo voltaria ao normal, entramos num novo perodo em que a crise, ou melhor,um tipo de estado de emergncia econmica, que necessita de todos os tipos demedidas de austeridade (corte de benefcios, reduo dos servios gratuitos de sade eeducao, empregos cada vez mais temporrios etc.), permanente e est em constantetransformao, tornando-se simplesmente um modo de viver. Alm disso, as crisesocorrem hoje nos dois extremos da vida econmica, e no mais no ncleo do processoprodutivo: ecologia (exterioridade natural) e pura especulao financeira. Por isso, muito importante evitar a soluo simples dada pelo senso comum: Temos de noslivrar dos especuladores, pr ordem nisso tudo, e a produo continuar. A liodo capitalismo aqui que as especulaes irreais so o real; se as esmagarmos, arealidade da produo sofrer.Essas mudanas no podem deixar de abalar a confortvel posio subjetiva dosintelectuais radicais. No tratamento psicanaltico, aprendemos a identificar nossosdesejos: quero mesmo essa coisa que quero? Vejamos o caso clssico do marido quese envolve numa apaixonada relao extraconjugal e sonha o tempo todo com omomento em que a esposa desaparecer (morrer, pedir divrcio ou seja o que for)para ento poder viver por inteiro com a amante; quando isso finalmente acontece, seumundo desmorona, porque ele descobre que tambm no quer a amante. Como dizo velho ditado: pior do que no conseguir o que se quer conseguir. Os acadmicos 5. 8 / Primeiro como tragdia, depois como farsaesquerdistas esto perto de um desses momentos de verdade: eles queriam mudanasreais? Pois tomem! Em 1937, em O caminho para Wigan Pier*y George Orwellcaracterizou com perfeio essa atitude, ressaltando o importante fato de que todaopinio revolucionria tira parte de sua fora da convico secreta de que nada podeser mudado; os radicais invocam a necessidade de mudana revolucionria como umaespcie de sinal supersticioso que leva ao seu oposto, impedir que a mudana ocorra defato. Quando a revoluo ocorre, deve ser a uma distncia segura: Cuba, Nicargua,Venezuela... de modo que, embora meu corao se anime ao pensar nesses eventoslongnquos, eu possa dar continuidade minha carreira acadmica.Essa nova situao no exige absolutamente que abandonemos o trabalho intelectualpaciente, sem nenhum uso prtico imediato: hoje, mais do que nunca, no devemosesquecer que o comunismo comea com o que Kant chamou de uso pblico darazo, com o pensamento, com a universalidade igualitria do pensamento. QuandoPaulo diz que, do ponto de vista cristo, no h grego nem judeu, no h homem nemmulher, afirma que razes tnicas, identidade nacional etc no so uma categoria daverdade; para usar termos kantianos precisos, quando refletimos sobre nossas razestnicas, praticamos o uso privado da razo, restrito por pressupostos dogmticoscontingentes, isto , agimos como indivduos imaturos, no como seres humanoslivres que se concentram na dimenso da universalidade da razo. Para Kant, o espaopblico da sociedade civil mundial designa o paradoxo da singularidade universal,de um sujeito singular que, numa espcie de curto-circuito, contornando a mediaodo particular, participa diretamente do Universal. Desse ponto de vista, o privadono a matria-prima de nossa individualidade oposta aos laos comunitrios, mas aprpria ordem institucional-comunitria de nossa identificao particular.A luta, portanto, deveria se concentrar nos aspectos que constituem uma ameaaao espao pblico transnacional. Parte desse impulso global para a privatizao dointelecto geral a tendncia recente de organizar o ciberespao para a chamadacomputao em nuvem. H uma dcada, o computador era uma grande caixaque ficava em cima da mesa, e a transferncia de arquivos era feita por meio dediscos flexveis e pen drives hoje, no precisamos mais de computadores individuaispotentes, porque a computao em nuvem ocorre na internet, isto , os programas e asinformaes so fornecidos sob demanda aos computadores ou celulares inteligentes,na forma de ferramentas ou aplicativos localizados na internet que os usurios podemacessar e utilizar por meio de navegadores, como se fossem programas instalados nocomputador. Dessa maneira, podemos ter acesso s informaes de qualquer partedo mundo onde estivermos, com qualquer computador, e os celulares inteligentesp em esse acesso literalmente em nosso bolso. J participamos da computao em* So Paulo, Companhia das Letras, 2010. E.) 6. Prefcio i edio brasileira I 9nuvem quando realizamos buscas e obtemos milhes de resultados numa frao desegundo; o processo de busca feito por milhares de computadores interligados,que compartilham recursos na nuvem. Do mesmo modo, o Google Books tornadisponveis milhes de livros digitalizados, a qualquer momento, em qualquerlugar do mundo. Sem falar do novo nvel de socializao criado pelos celularesinteligentes, que combinam telefone e computador: hoje, um celular desse tipo temum processador mais potente que um computador de dois anos atrs, alm de estarligado internet, de modo que no s temos acesso a um volume imenso de dadose programas, mas tambm podemos trocar instantaneamente mensagens de voz evideoclipes, coordenar decises coletivas etc.No entanto, esse maravilhoso mundo novo apenas um lado da histria, elembra aquelas famosas piadas de mdico sobre primeiro a notcia boa, depois aruim. Os usurios acessam programas e arquivos guardados muito longe, em salasclimatizadas com milhares de computadores ou, segundo um texto de propagandada computao em nuvem: Os detalhes so abstrados dos consumidores, que notm mais necessidade de conhecer nem controlar a infraestrutura da tecnologia nanuvem* que lhes d suporte1. Aqui, duas palavras so reveladoras: abstrao e controle;para gerenciar a nuvem, necessrio um sistema de monitorao que controle seufuncionamento, e, por definio, esse sistema est escondido do usurio. O paradoxo,portanto, que, quanto mais o funcionamento do pequeno item (o minsculo celularinteligente ou porttil) que tenho na mo for personalizado, fcil e transparente,mais a configurao toda tem de se basear num trabalho realizado em outro lugar,num vasto circuito de mquinas que coordena a experincia do usurio; quanto maisno alienada essa experincia, mais regulada e controlada por uma rede alienada ela . claro que isso serve para qualquer tecnologia complexa: o usurio no faz ideiade como funciona o televisor com controle remoto; no entanto, aqui o degrau alm que no s a tecnologia que controlada, mas tambm a escolha e a acessibilidadedo contedo. Ou seja, a formao de nuvens vem acompanhada do processo deintegrao vertical: cada vez mais uma nica empresa ou corporao detm todosos nveis do cibermundo, desde o hardware individual (computador, iphone,..) e oda nuvem (armazenamento dos programas e dados acessveis) at o software emtodas as suas dimenses (programas, material em udio e vdeo etc.). Portanto, tudo acessvel, mas mediado por uma empresa que possui tudo, software e hardware, dadose computadores. Alm de vender iphones e ipads, a Apple dona do itunes, onde osusurios compram msicas, filmes e jogos. Recentemente, a Apple fez um acordo comRupert Murdoch para que as notcias da nuvem venham dos meios de comunicaodele. Para resumir, Steve Jobs no melhor que Bill Gates: em ambos os casos, o acessoglobal se baseia cada vez mais na privatizao quase monopolista da nuvem que ofereceo acesso. Quanto mais acesso ao espao pblico universal o usurio individual tem,mais esse espao privatizado. 7. 10 / Primeiro como tragdia, depois como farsaOs apologistas apresentam a computao em nuvem como o prximo passolgico da evoluo natural do ciberespao e, embora isso seja verdadeiro em termosabstrato-tecnolgicos, no existe nada de natural na privatizao progressiva dociberespao global. No existe nada de natural no fato de que duas ou trs empresas,em posio quase monopolista possa determinar os preos a seu bel-prazer, alm defiltrar os programas que fornecem, dando a essa universalidade nuances especficasque dependem de interesses comerciais e ideolgicos. verdade que a computaoem nuvem oferece aos usurios uma riqueza de opes nunca vista antes; mas essaliberdade de escolha no sustentada pela escolha de um provedor com o qual temoscada vez menos liberdade? Os partidrios da abertura gostam de criticar a China portentar controlar o acesso internet; mas no estamos cada dia mais parecidos com aChina, com nossas funes na nuvem mais e mais semelhantes, de certo modo, como Estado chins?Alm disso, a transformao do capitalismo global que est em andamento deuincio a uma mudana do modo hegemnico de interpelao ideolgica. Enquanto naIdade Mdia o principal aparelho ideolgico de Estado era a Igreja (a religio comoinstituio), a modernidade capitalista imps a dupla hegemonia da ideologia legal e daeducao (sistema escolar estatal): os sujeitos eram interpelados como cidados livres epatriotas, sujeitos da ordem legal, enquanto os indivduos se formavam como sujeitoslegais por meio da educao universal compulsria. Assim se mantinha a lacuna entreo burgus e o cidado, entre o indivduo utilitrio e egosta, preocupado com seusinteresses privados, e o citoyen devotado ao domnio universal do Estado; e na medidaem que, na percepo ideolgica espontnea, a ideologia limita-se esfera universalda cidadania, e a esfera privada dos interesses egostas considerada pr-ideolgica,a prpria lacuna entre ideologia e no ideologia transposta para a ideologia. O queacontece no ltimo estgio do capitalismo ps-moderno e ps-68 que a pivpriaeconomia (a lgica do mercado e da concomncia) se impe cada vez mais como ideologiahegemnica: Na educao, assistimos ao desmantelamento gradual do aparelho ideolgicodo Estado da escola burguesa clssica: o sistema escolar cada vez menos umarede compulsria elevada acima do mercado e organizada diretamente peloEstado, portadora de valores esclarecidos {libert, gality fraternit) em nomeda frmula sagrada de menor custo, maior eficincia', vem sendo cada vezmais tomado por vrias formas de PPP (parceria pblico-privada). Na organizao e legitimao do poder, o sistema eleitoral cada vez maisconcebido com base no modelo da concorrncia de mercado: as eleiesso como uma troca comercial, em que os eleitores compram a opo quepromete cumprir da maneira mais eficiente a tarefa de manter a ordem social, 8. Prefacio edio brasileira / I Icombater o crime etc. etc. Em nome da mesma frmula de 'menor custo,maior eficincia, at algumas funes que deveriam ser de domnio exclusivodo poder de Estado (como a administrao das penitencirias) podem serprivatizadas; o Exrcito no se baseia mais na conscrio universal e compe-se de mercenrios contratados etc. At a burocracia do Estado no maispercebida como a classe universal hegeliana, como cada vez mais evidente nocaso de Berlusconi. O que torna o primeiro-ministro italiano to interessantecomo fenmeno poltico o.fato de que, como poltico mais poderoso dopas, ele age de forma cada vez mais desavergonhada: alm de ignorar ouneutralizar politicamente as investigaes jurdicas a respeito das atividadescriminosas que promovem seus interesses comerciais particulares, Berlusconitambm solapa de modo sistemtico a dignidade bsica do chefe de Estado. Adignidade da poltica clssica baseia-se em sua elevao acima do jogo de interessesparticulares da sociedade civil: a poltica alienada da sociedade civil,apresenta-se como esfera ideal do citoyen, em contraste com o conflito de interessesegostas que caracteriza o bourgeois. Berlusconi aboliu essa alienao:na Itlia atual, o poder estatal exercido diretamente pelo bourgeois vil que,de forma declarada e impiedosa, explora o poder estatal para proteger seusinteresses econmicos. At o processo de -envolvimento em relaes emocionais ocorre cada vez maissegundo a linha das relaes de mercado. Alain Badiou1 utilizou o paraleloentre a busca de parceiro sexual (ou conjugal) por intermdio de agnciasmatrimoniais apropriadas e o antigo procedimento de casamentos pr-arran-jadospelos pais: em ambos os casos, o risco propriamente dito de cair deamores suspenso, no h nenhuma queda contingente propriamente dita,o risco do real encontro de amor minimizado pela combinao anterior, queleva em conta todos os interesses materiais e psicolgicos das partes envolvidas.Robert Epstein2 levou a ideia sua concluso lgica ao lhe dar a contrapartidaque faltava: uma vez que voc escolheu o parceiro apropriado, como conseguir quevocs se amem de fato? Com base no estudo dos casamentos arranjados, Epsteindesenvolveu procedimentos de construo do afeto: pode-se construir oamor de modo deliberado e escolher com quem fazer isso... Procedimentosdesse tipo baseiam-se na automercadorizao: nas agncias de matrimnios ouencontros pela internet, cada possvel parceiro se apresenta como mercadoria,mostrando fotos e listando qualidades.1 Ver Alain Badiou, loge de l'amour (Paris, Flammarion, 2009), p. 15.2 Ver o relatrio Love by Choice, Hindustan Times, 3 jan. 2010, p. 11. 9. 12 / Primeiro como tragdia, depois como farsaE, de forma bastante lgica, na medida em que a economia seja considerada a esferada no ideologia, esse admirvel mundo novo de mercadorizao global se consideraps-ideolgico. claro que o aparelho ideolgico de Estado ainda existe, e mais do quenunca; entretanto, como vimos, uma vez que, em sua autopercepo, a ideologia selocalize em sujeitos, em contraste com os indivduos pr-ideolgicos, essa hegemoniada esfera econmica s pode parecer ausncia de ideologia. Isso no significa quea ideologia apenas reflita diretamente a economia como sua base real; continuamostotalmente dentro da esfera do aparelho ideolgico de Estado, a economia funcionaaqui como modelo ideolgico, de modo que temos toda a razo em dizer que aeconomia funciona aqui como aparelho ideolgico de Estado - ao contrrio da vidaeconmica reaT, que definitivamente no segue o modelo idealizado do mercadoliberal.Essa naturalizao (ou autoemenda) total da ideologia impe uma concluso tristemas inevitvel sobre a dinmica social global: hoje, o capitalismo que propriamenterevolucionrio; ele mudou toda a nossa paisagem nas ltimas dcadas, da tecnologia ideologia, enquanto os conservadores, assim como os sociais-democratas, na maioriados casos reagem desesperados a essas mudanas, tentando manter antigas conquistas.Numa constelao como essa, a prpria ideia de transformao social radical pareceum sonho impossvel; contudo, a palavra impossvel deveria nos fazer pararpara pensar. Hoje, possvel e impossvel distribuem-se de modo estranho, e ambosexplodem ao mesmo tempo num excesso. De um lado, no domnio das liberdadespessoais e da tecnologia cientfica, o impossvel cada vez mais possvel (ou assimnos dizem): nada impossvel, podemos praticar todas as verses pervertidas desexo, h arquivos inteiros de msica, cinema e sries de TV a nossa disposio, ir aoespao est ao alcance de todos (que tenham dinheiro..,)? temos a possibilidade demelhorar nossa capacidade fsica e psquica, de manipular nossas propriedades bsicascom intervenes no genoma, at o sonho tecnognstico de alcanar a imortalidadepor meio da transformao de toda a nossa identidade num programa que pode sertransferido de um equipamento a outro... De outro lado, principalmente no domniodas relaes socioeconmicas, nossa poca se percebe como uma poca de maturidade,em que, com o colapso dos Estados comunistas, a humanidade abandonou os antigossonhos utpicos milenaristas e aceitou as restries da realidade (leia-se: a realidadesocioeconmica capitalista) com todas as suas impossibilidades: VOCE NOPODE... participar de grandes atos coletivos (que acabam necessariamente em terrortotalitrio), agarrar-se ao antigo Estado de bem-estar social (torna as pessoas poucocompetitivas e leva crise econmica), isolar-se do mercado global etc. etc. (Em suaverso ideolgica, a ecologia tambm acrescenta sua lista de impossibilidades, os assimchamados 'valores de patamar mximo de aquecimento global de 2 C etc. , com 10. Prefcio edio brasileira / 13base em 4 opinies de especialistas3.) A razo disso que vivemos numa poca ps--poltica de naturalizao da economia: em regra, as decises polticas so apresentadascomo questes de pura necessidade econmica; quando medidas de austeridade seimpem, dizem-nos vezes sem fim que isso simplesmente o que deve ser feito. crucial fazer aqui uma distino clara entre duas impossibilidades: o realimpossvel do antagonismo social e a impossibilidade em que se concentra o campoideolgico predominante. Aqui, a impossibilidade redobrada, serve de mscara desi mesma, isto , a funo ideolgica da segunda impossibilidade obscurecer o realda primeira impossibilidade. Hoje, a ideologia dominante pretende nos fazer aceitar aimpossibilidade da mudana radical, da abolio do capitalismo, da democracia norestrita ao jogo parlamentar etc., para tornar invisvel o impossvel/real do antagonismoque transcende as sociedades capitalistas. Esse real impossvel no sentido de que o impossvel da ordem social existente, ou seja, seu antagonismo constitutivo que,entretanto, de modo algum implica que no se possa tratar diretamente com esse real/impossvel e transform-lo radicalmente num ato 4 maluco, que muda as coordenadastranscendentais bsicas de um campo social. por isso que, como explica Zupancic,a frmula de Lacan de superao de uma impossibilidade ideolgica no tudo possvel, e sim o impossvel acontece. O real/impossvel lacaniano no umalimitao a priori que deveria ser levada em conta de modo realista, mas o domniodo ato, de intervenes que podem mudar suas coordenadas: o ato mais que umainterveno no domnio do possvel; o ato muda as prprias coordenadas do que possvel e, portanto, cria retroativamente suas prprias condies de possibilidade. por isso que o comunismo tambm diz respeito ao Real: agir como comunista significaintervir no real do antagonismo bsico que subjaz ao capitalismo global de hoje.Talvez a caracterizao mais sucinta da poca que comea com a Primeira GuerraMundial seja a famosa frase atribuda a Gramsci: O velho mundo est morrendo,e o novo mundo luta para nascer: agora o tempo dos monstros. O fascismo e ostalinismo no seriam os monstros gmeos do sculo XX que nasceram, num caso,do esforo desesperado do velho mundo para sobreviver e, no outro, do esforoabastardado de construir o mundo novo? Eos monstros que geramos agora, impelidospelos sonhos tecnog ns ticos de uma sociedade com populao biogeneticamentecontrolada? Devemos tirar todas as consequncias desse paradoxo: talvez no hajapassagem direta para o novo, pelo menos no da maneira que imaginamos, e osmonstros surjam necessariamente em qualquer tentativa de forar essa passagem.Nossa situao, portanto, diametralmente oposta dificuldade clssica do sculoXX, quando sabamos o que tnhamos e o que queramos fazer (estabelecer aditadura do proletariado etc.), mas precisvamos esperar com pacincia o momento3 Devo essa ideia a Alenka Zupancic. 11. 14 / Primeiro como tragdia, depois como farsacerto em que a oportunidade se ofereceria. Agora, no sabemos o que temos de fazer,mas temos de agir, porque as consequncias de no agir podem ser catastrficas.Vamos ter de nos arriscar no abismo do novo em situaes totalmente inadequadas;vamos ter de reinventar aspectos do novo s para manter o que era bom no velho(educao, assistncia mdica...). O jornal em que Gramsci publicou seus textosno incio da dcada de 1920 chamava-se VOrdine Nuovo [A nova ordem], ttuloque depois foi totalmente apropriado pela extrema-direita. Em vez de ver nessaapropriao posterior a verdade do uso de Gramsci e abandonar a expresso porser contrria liberdade rebelde da esquerda autntica, deveramos retom-la comosinal do difcil problema de definir a nova ordem que a revoluo deveria gerardepois de seu sucesso. Em resumo, nossa poca como o que disse Stalin quemseno ele - a respeito da bomba atmica: no para quem tem nervos fracos.Hoje, o comunismo no o nome da soluo, mas o nome do problema: o problemado que comum em todas as suas dimenses - o comum da natureza como substnciade vida, o comum da biogentica, o comum cultural (c propriedade intelectual) e, porltimo, mas nem por isso menos importante, o problema imediato do comum comoespao universal de humanidade, do qual ningum deveria ser excludo. Seja qual fora soluo, ela ter de resolver esse problema.abril de 2011 12. I n t r o d u o As LIES DA PRIMEIRA DCADAA inteno do ttulo deste livro ser para o leitor um teste de QI elementar: sea primeira associao que lhe vier cabea for o clich anticomunista usual (Temrazo; depois da tragdia do totalitarismo no sculo XX, todo esse papo de volta aocomunismo s pode ser frsa!), ento eu o aconselho sinceramente a parar por aqui.Na verdade, este livro deveria ser arrancado fora de sua mo, j que trata de umatragdia e de uma farsa totalmente diferentes, ou seja, dos dois eventos que marcaramo comeo e o fim da primeira dcada do sculo XXI: os ataques de 11 de setembro de2001 e a crise financeira de 2008.Devemos notar a semelhana de linguagem dos discursos do presidente Bush aopovo norte-americano depois do 11 de Setembro com aqueles proferidos depois docolapso financeiro: pareciam duas verses da mesma fla. Em ambas, Bush evocou aameaa ao estilo de vida norte-americano e a necessidade de tomar providncias rpidase decisivas para enfrentar o perigo. Em ambas, clamou pela suspenso parcial dosvalores norte-americanos (garantia de liberdade individual, capitalismo de mercado)para salvar esses mesmos valores. De onde vem essa semelhana?Marx comeou O 18 de brumrio corrigindo a ideia d Hegel de que a histrianecessariamente se repete: Em alguma passagem de suas obras, Hegel comentaque todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da histria mundial soencenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vezcomo tragdia, a segunda como farsa1. Esse acrscimo noo de repetio histrica deHegel era uma figura de retrica que havia anos perseguia Marx: est em Contribuio crtica da filosofia do direito de Hegel, em que ele diagnostica a decadncia do ancien1 Karl Marx, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte, em Surveys from exile (org* e intr. DavidFernbach, Harmondsworth, Penguin, 1973), p. 146. [Ed. bras.: O 18 de brumrio de Luis Bonaparte,So Paulo, Boitempo, 2011, p. 25 J 13. 16 / Primeiro como tragdia, depois como farsargime alemo nas dcadas de 1830 e 1840 como repetio farsesca da queda trgicado ancien rgime francs:Para as naes modernas, instrutivo assistir ao ancien rgime, que nelas viveu sua tragdia,desempenhar uma comdia como fantasma alemo. Trgica foi sua histria, porque ele erao poder pr-existente do mundo, ao passo que a liberdade, ao contrrio, era uma fantasiapessoal; numa palavra, porque ele mesmo acreditou em sua legitimidade e nela tinha deacreditar. Na medida em que o ancien rgime, como ordem do mundo existente, lutoucontra um mundo que estava ento a emergir, ocorreu de sua parte um erro histrico--mundial, mas no um erro pessoal. Seu declnio foi, por isso, trgico.Em contrapartida, o atual regime alemo, que um anacronismo, uma flagrantecontradio de axiomas universalmente aceitos - a nulidade do ancien rgime exposta aomundo imagina apenas acreditar em si mesmo e exige do mundo a mesma imaginao.Se acreditasse na sua prpria essncia, tentaria ele ocult-la sob a aparncia de uma essnciaestranha e buscar sua salvao na hipocrisia e no sofisma? O moderno ancien rgime apenaso comediante de uma ordem mundial cujos heris reais esto mortos. A histria sda epassa por muitas fases ao conduzir uma forma antiga ao sepulcro. A ltima fase de umaforma histrico-mundial sua comdia. Os deuses da Grcia, j mortalmente feridos natragdia Prometeu acorrentado, de Esquilo, tiveram de morrer uma vez mais, comicamente,nos dilogos de Luciano. Por que a histria assume tal curso? A fim de que a humanidadese separe alegremente do seu passado. E esse alegre destino histrico que reivindicamos paraos poderes polticos da Alemanha.2Observemos a caracterizao precisa do ancien rgime alemo como aquele queapenas imagina que ainda acredita em si mesmo. Podemos at especular sobre osignificado do fato de Kierkegaard ter desenvolvido, no mesmo perodo, a ideia de quens seres humanos no conseguimos nem sequer ter certeza do que acreditamos - emltima anlise, apenas acreditamos que acreditamos. A frmula de um regime queapenas imagina que acredita em si mesmo capta muito bem a anulao do poderperformativo (eficincia simblica) da ideologia dominante; de fato, ela no servemais de estrutura fundamental do lao social. E hoje, podemos perguntar, no estamosna mesma situao? Os pregadores e praticantes da democracia liberal ns dias atuaistambm no imaginam que acreditam em si mesmos, em seus pronunciamentos?Na verdade, seria mais apropriado descrever o cinismo contemporneo como representaoda inverso exata da frmula de Marx: hoje, apenas imaginamos queno acreditamos de verdade em nossa ideologia; apesar dessa distncia imaginria,continuamos a pratic-la. Acreditamos bem mais do que imaginamos acreditar, e no2 Karl Marx, "A Contribution to the Critique of Hegel's Philosophy of Right, em Early Writings (intr.Lucio Colletti, Harmondsworth, Penguin, 1975), p. 247-8. [Ed. bras.: Sao Paulo, Boitempo, 2005.] 14. As lies da primeira dcada / 17bem menos. Benjamin, portanto, foi mesmo proftico ao observar que tudo dependede como se acredita na crena que se tem3.Doze anos antes do 11 de Setembro, em 9 de novembro de 1989, o Muro deBerlim caiu. Esse evento parecia anunciar o incio dos felizes anos 90, a utopiado fim da histria de Francis Fukuyama, a crena de que a democracia liberal, emprincpio, vencera, de que o surgimento de uma comunidade liberal global estava logoali na esquina e os obstculos a esse final feliz hollywoodiano eram apenas empricose contingentes (bolses localizados de resistncia cujos lderes ainda no haviamentendido que seu tempo acabara) Por sua vez, o 11 de Setembro simbolizou o fimdo perodo clintonista e anunciou uma poca em que vimos novos muros surgir portoda parte: entre Israel e Cisjordnia, em torno da Unio Europeia, na fronteira entreEstados Unidos e Mxico e at no interior de Estados-naes.Num artigo para a revista Newsweek, Emily Flynn Vencat e Ginanne Brownellrelatam como hoje em diao fenmeno do s para scios est explodindo num novo estilo de vida que abrange tudo,desde relaes bancrias privativas at clnicas que s aceitam pacientes convidados [...) cadavez mais, aqueles que tm dinheiro trancam sua vida a sete chaves. Em vez de comparecera eventos com grande cobertura miditica, contratam espetculos, desfiles de moda eexposies particulares de arte em casa. Compram fora do horrio comercial e mandaminvestigar a classe social e o patrimnio de vizinhos (e possveis amigos).Portanto, uma nova classe global vem surgindo, com, digamos, passaporteindiano, castelo na Esccia, apartamento em Manhattan e ilha particular noCaribe. O paradoxo que os membros dessa classe global jantam privativamente,compram privativamente, veem obras de arte privativamente, tudo privativo,privativo, privativo. Criam assim um mundo-vida s seu para resolver um problemahermenutico angustiante; como explica Todd Millay, as famlias ricas no podemapenas convidar os outros e esperar que entendam o que ter 300 milhes dedlares'. Ento, quais so seus contatos com o mundo em geral? So de dois tipos:negcios e filantropia (proteger o meio ambiente, combater doenas, apoiar as artesetc.). Esses cidados globais vivem em geral na natureza mais pura, seja caminhandona Patagnia, seja nadando nas guas translcidas de ilhas particulares. No podemosdeixar de notar que a caracterstica bsica da atitude desses super-ricos trancafia-dos o medo: medo da prpria vida social externa. Portanto, a maior prioridade dosindivduos de altssimo patrimnio lquido minimizar os riscos sua segurana(doenas, exposio a crimes violentos etc.)4.3 Walter Benjamin, Gesammelte Briefe (Frankfurt, Suhrkamp, 1995), v. 1, p. 182.4 Emily Flynn Vencat e Ginanne Brownell, Ah, the Secluded Life, Newsweek, 10 dez. 2007. 15. 18/ Primeiro como tragdia, depois como farsaNa China contempornea, os novos-ricos construram comunidades isoladas deacordo com o modelo idealizado de uma cidade ocidental tpica; perto de Xangai,por exemplo, h uma rplica real de uma cidadezinha inglesa, com uma rua principal,pubsy uma igreja anglicana, um supermercado Sainsbury etc.; a rea toda isoladadas cercanias por uma redoma invisvel, mas nem por isso menos real. No h maishierarquia de grupos sociais dentro da mesma nao: os moradores dessa cidade vivemnum universo em que, em seu imaginrio ideolgico, o mundo circundante da classebaixa simplesmente no existe. Os cidados globais dessas reas isoladas no seriamo verdadeiro contraponto dos que moram em favelas e outras manchas brancas ou"lacunas da esfera pblica? Na verdade, eles sao os dois lados da mesma moeda, osdois extremos da nova diviso de classes. A cidade que melhor personifica essa diviso So Paulo, no Brasil de Lula, que ostenta 250 helipontos em sua rea central. Paraevitar o perigo de se misturar com gente comum, os ricos de So Paulo preferemutilizar helicpteros, de modo que, olhando para o cu da cidade, temos realmente aimpresso de estar numa megalpole futurista do tipo que se ve em filmes como BladeRunner ou O quinto elemento', as pessoas comuns enxameando as perigosas ruas lembaixo e os ricos flutuando num nvel mais alto, no cu.Parece, portanto, que a utopia de Fukuyama sobre os anos 1990 teve de morrer duasvezes, j que o colapso da utopia poltica democrtico-Iiberal do 11 de Setembro noafetou a utopia econmica do capitalismo de mercado global. Se a crise financeira de2008 teve um significado histrico, s pode ter sido o sinal do fim da face econmicado sonho de Fukuyama. O que nos leva de volta parfrase de Marx sobre Hegel. preciso lembrar que, na introduo de uma edio da dcada de 1960 de O 18 debrumrio, Herbert Marcuse deu mais uma volta no parafuso: s vezes, a repetiodisfarada de farsa pode ser mais aterrorizante do que a tragdia original*.Este livro toma a crise em curso como ponto de partida e passa gradualmentepara assuntos correlatos com o objetivo de revelar suas condies e consequncias.O primeiro captulo fez um diagnstico de nossa difcil situao e delineia o magoutpico da ideologia capitalista que determinou tanto a prpria crise quanto nossapercepo e reao a ela. O segundo captulo busca localizar aspectos dessa situaoque abrem espao para novas formas de prxis comunista.O que este livro oferece no uma anlise neutra, mas sim engajada eextremamente parcial - pois a verdade parcial, s acessvel quando se adota umdos lados, mas nem por isso menos universal. O lado que se adota aqui, claro, odo comunismo. Adorno inicia Three Studies on Hegel [Trs estudos sobre Hegel]*** Herbert Marcuse, em Karl Matx, O 18 brumrio de Luts Bonaparte (So Paulo, Boitempo, 2011),p. 9. (N. E.)** Cambridge, MIT Press, 1994. (N. E.) 16. As lies da primeira dcada / 19refutando a questo tradicional a respeito de Hegel, exemplificada pelo ttulo do livrode Benedetto Croce: O que vivo e o que morto nafilosofia de Hegel?*. Essa perguntapressupe, por parte do autor, a adoo da posio arrogante de juiz do passado;porm, quando se trata de um filsofo realmente grande, a verdadeira pergunta no o que ele ainda pode nos dizer, o que ainda pode significar para ns, mas o oposto,isto , o que ns somos, o que nossa situao contempornea pode ser para ele-> comonossa poca aparece aos olhos dele. O mesmo se aplica ao comunismo; ao invs defazer a pergunta bvia, A ideia de comunismo ainda pertinente, ainda pode serusada como ferramenta de anlise e prtica poltica?, devemos perguntar o oposto:Como fica, hoje, nossa difcil situao do ponto de vista da ideia comunista?. Areside a dialtica do velho e do novo: os que propem a criao constante de novostermos para compreender o que acontece hoje ("sociedade ps-moderna, sociedadede risco*, sociedade informacional, sociedade ps-industrial etc.) deixam de veros contornos do que realmente novo. A nica maneira de compreender a verdadeiranovidade do novo analisar o mundo pela lente do que era eterno no velho. Se ocomunismo mesmo uma ideia eterna, ento serve de universalidade concretahegeliana: eterna no no sentido de uma srie de caractersticas universais e abstratasque podem ser aplicadas em toda parte, mas no sentido de que deve ser reinventadaa cada nova situao histrica.Nos bons tempos do socialismo real, uma piada comum entre os dissidentes serviapara ilustrar a inutilidade de seus protestos. No sculo XV, com a Rssia sob ocupaodos mongis, um campons e a esposa caminham por uma estrada poeirenta do interi or;um guerreiro mongol a cavalo para ao lado deles e diz ao campons que vai estuprarsua mulher, acrescentando: Mas, como o cho est muito cheio de p, segure meustestculos enquanto estupro sua mulher, para que no se sujem. Depois que o mongolfaz o que quer e vai embora, o campons comea a rir e pular de alegria. Surpresa,a mulher pergunta: Por que est pulando de alegria se acabei de ser violentamenteestuprada na sua frente?. E o campons responde: Ah, mas eu o enganei! O saco deleest todo sujo de p!. Essa piada triste revela a situao dos dissidentes: pensavamque estavam desferindo duros golpes na nomenklatura do partido, mas s conseguiamsujar levemente os testculos; enquanto isso, a elite dominante continuava a estupraro povo...A esquerda crtica no est em posio parecida hoje? (Entre as expressescontemporneas que sujam de leve os que esto no poder, podemos citar desconstruoou 'proteo das liberdades individuais.) Em 1936, num famoso confronto naUniversidade de Salamanca, Miguel de Unamuno caoou dos franquistas: Vencerisypero no convenceris Isso tudo que a esquerda de hoje pode dizer ao triunfante* Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933. (N. E.) 17. 20 / Primeiro como tragdia, depois como farsacapitalismo global? A esquerda est predestinada a representar o papel daqueles que, aocontrrio, convencem, mas perdem mesmo assim (e so especialmente convincentespara explicar retroativamente as razoes de seu fracasso)? Nossa tarefa descobrir comodar um passo adiante. Nossa 11a tese deveria ser: em nossas sociedades, at agora osesquerdistas crticos s conseguiram sujar os que esto no poder, enquanto a verdadeiraquesto castr-los...Mas como fazer isso? Aqui, temos de aprender com os fracassos da poltica daesquerda no sculo XX. A tarefa no fazer a castrao no clmax do confronto direto,mas solapar os que esto no poder com um trabalho crtico-ideolgico paciente, demodo que, embora ainda estejam no poder, percebamos de repente que os poderesconstitudos foram afetados por uma voz aguda e antinatural. Na dcada de 1960,Lacan batizou de Scilicet o peridico efmero e irregular da escola; a mensagem no erao significado hoje predominante da palavra (ou seja, por assim dizer, isto ), masliteralmente * e permitido saber. (Saber o qu? O que a escola freudiana de Paris pensasobre o inconsciente...) Hoje, nossa mensagem deveria ser a mesma: permitido sabere engajar-se totalmente com o comunismo, agindo mais uma vez com toda fidelidade ideia comunista. A permissividade liberal da ordem do videlicet permitido ver>mas o prprio fascnio pel obscenidade que temos permisso de observar nos impedede saber o que que vemos.Moral da histria: a poca da chantagem moralista democrtico-liberal acabou.Nosso lado no tem mais de ficar pedindo desculpas; e bom que o outro lado comecelogo a pedi-las. 18. I . A IDEOLOGIA, ESTPIDO!Socialismo capitalista?A nica coisa realmente surpreendente na crise financeira de 2008 foi a facilidadecom que se aceitou ideia de ter sido um fato imprevisvel que, do nada, atingiuos mercados. Recordemos as manifestaes que, durante toda a primeira dcadado novo milnio, acompanharam regularmente as reunies do FMI e do BancoMundial: as queixas dos manifestantes abrangiam no s os temas de sempre contra aglobalizao (a explorao crescente dos pases do Terceiro Mundo etc.), nias tambm omodo como os bancos criavam a iluso de crescimento brincando com dinheiro defico e como tudo isso acabaria em desastre. No foram s economistas como PaulKrugman e Joseph Stiglitz que alertaram para os perigos que nos esperavam e mostraramque os que prometiam crescimento contnuo na verdade no compreendiam o queacontecia bem debaixo de seu nariz. Em 2004, tantas pessoas fizeram manifestaes emWashington contra o perigo de um colapso financeiro que a polcia teve de mobilizarmais 8 mil agentes locais e convocar outros 6 mil de Maryland e da Virgnia. O que seviu em seguida foi gs lacrimogneo, cassetetes e prises em massa, tantas que a polciateve de usar nibus para o transporte. A mensagem foi alta e clara, e a polcia foi usadaliteralmente para sufocar a verdade.Depois desse esforo contnuo de ignorncia obstinada, no admira que, quandoa crise finalmente explodiu, ningum [soubesse] direito o que fazer, como disseum dos participantes. E a razo disso que as expectativas fazem parte do jogo: omodo como o mercado reage depende no s de quanta gente confia nessa ou naquelainterveno, mas sobretudo at que ponto essa gente acha que os outros confiaro; nose pode levar em conta o efeito da prpria escolha. Muito tempo atrs, John MaynardKeynes explicou muito bem essa autorreferencialidade ao comparar o mercado deaes com uma competio tola em que os participantes tm de escolher vrias garotas 19. 22 / Primeiro como tragdia, depois como farsabonitas cm uma centena de fotografias, sendo que ganha quem escolher as moas maisprximas da mdia das opinies:No o caso de escolher aquelas que, na melhor avaliao de cada um, so realmenteas mais bonitas ou aquelas que a mdia das opinies acha legitimamente mais bonitas.Alcanamos um terceiro grau, em que dedicamos nossa inteligncia a prever o que a mdiadas opinies espera que seja a mdia das opinies.1Assim, somos forados a escolher sem ter disposio o conhecimento quepermitiria uma escolha habilitada ou, como explica John Gray: Somos forados aviver como se fssemos livres2.No auge da crise, Joseph Stiglitz escreveu que, apesar do consenso cada vez maiorentre os economistas de que nenhuma medida de salvamento baseada no plano deHenry Paulson, secretrio do Tesouro americano, funcionaria, impraticvel para os polticos no fazer nada numa crise dessas. Assim, talvez tenhamosde rezar para que um acordo elaborado com uma mistura txica de interesses especiais,medidas econmicas mal direcionadas e ideologias de direita que produziram a crisepossa, sabe-se l como, levar a um plano de salvamento que funcione ou cujo fracasso noprovoque danos excessivos.3Ele est certo, pois os mercados se baseiam de fato em crenas (at mesmo crenassobre as crenas dos outros); assim, quando os meios de comunicao se preocupamcom o modo como o mercado reagir s medidas de salvamento, trata-se noapenas das consequncias reais, mas da crena dos mercados na eficcia do plano. Epor isso que essas medidas podem funcionar mesmo se estiverem economicamenteerradas4.Aqui, a presso para fazer alguma coisa como a compulso supersticiosa afazer um gesto qualquer quando estamos diante de um processo sobre o qual notemos influncia real. Nossos atos no costumam ser assim? A velha frase no fique afalando, fa alguma coisa! uma das coisas mais estpidas que se pode dizer, mesmo1 John Maynard Keynes, The General Theory of Employment Interest and Money (Nova York,Management Laboratory Press, 2009), cap. 12. [Ed. bras.: Teoriageral do emprego, do juro e da moeda,So Paulo, Nova Cultural, 1996.]2 John Gray, Stmiu Dogs (Nova York, Farrar Straus and Giroux, 2007) p. 110. [Ed. bras.: Cachorrosdepalha> Rio de Janeiro, Record, 2005.]3 Joseph Stiglitz, The Bush Administration May Rescue Wall Street, but What About the Economy?,The Guardian, 30 set. 2008. [Disponvel em: .]4 No entanto, j que vivem nos dizendo que a confiana e a crena so fundamentais, devemosperguntar at que ponto o fato de o governo, em pnico, ter aumentado seu envolvimento noprovocou o mesmo perigo que tentava'combater. 20. a ideologia, estpido! / 23para o baixo padro do senso comum. O problema talvez seja, ento, que temos feitodemais, intervindo na natureza, destruindo o meio ambiente etc... Talvez esteja nahora de dar um passo para trs, pensar e dizer a coisa certa. verdade que costumamosfalar em vez de fazer, mas s vezes tambm fazemos coisas para no ter de falar e pensarsobre elas. Como despejar 700 bilhes de dlares num problema em vez de refletir noporqu de ele ter surgido.Sem dvida, h material suficiente na confuso atual para nos fazer pensar. Em15 de julho de 2008, o senador republicano Jim Bunning atacou Ben Bernanke,presidente do Federal Reserve (Fed), afirmando que sua proposta mostrava que osocialismo est vivo e bem de sade nos Estados Unidos: Agora o Fed quer sero regulador do risco sistmico. Mas o Fed o risco sistmico. Dar mais poder ao Fed como dar um basto maior ao garoto que quebrou a nossa janela jogando beisebolna rua, achando que isso vai resolver o problema5. Em 23 de setembro, ele atacoude novo, chamando de no americano o plano do Tesouro para o maior resgatefinanceiro desde a Grande Depresso:Algum precisa assumir esses prejuzos. Podemos deixar que quem tomou as deciseserradas sofra as consequncias de seus atos ou podemos espalhar esse sofrimento entretodos. E exataniente isso que o secretrio prope: pegar o sofrimento de Wall Streete espalh-lo pelos contribuintes... Esse resgate macio no a soluo; isso socialismofinanceiro, e no americano.Bunning foi o primeiro a traar publicamente os contornos do raciocnio por trsda revolta do Partido Republicano contra o plano de salvamento cujo clmax foia rejeio da proposta do Fed em 29 de setembro. Esse argumento merece um olharmais atento. Observemos que a resistncia republicana ao plano de salvamento foiformulada em termos de guerra de classes: Wall Street contra o povo das ruas. Porque deveramos ajudar os que esto em "Wall Street e so responsveis pela crisepedindo aos hipotecados, o povo das ruas, que paguem o pato? Esse no seria umcaso bvio do que a teoria econmica chama de risco moral, definido como "orisco de que algum se comporte de maneira imoral porque a seguradora, a lei ououtra instncia qualquer o proteger dos prejuzos que seu comportamento possacausar - se tenho seguro contra incndio, tomo menos cuidado (ou, in extremis,ponho fogo nas instalaes que cobri com o seguro, mas que me do prejuzo)? Omesmo vale para os grandes bancos: no estariam protegidos contra grandes perdas eno seriam capazes de manter o lucro? No admira que Michael Moore tenha escritouma carta aberta acusando o plano de salvamento de ser o roubo do sculo.5 Ver Edward Harrison, Senator Bunning Blasts Bernanke at Senate Hearing. Disponvel em: . 21. 24 / Primeiro como tragdia, depois como farsa essa superposio inesperada da viso da esquerda com a dos republicanosconservadores que deveria nos fazer parar para pensar. O que os dois pontos de vistatm em comum o desprezo pelos grandes especuladores e executivos de empresasque lucram com decises arriscadas mas esto protegidos do fracasso por paraquedasdourados. Recordemos a piada cruel de Ser ou no ser, [filme] de [Ernst] Lubitsch:quando lhe perguntam sobre os campos de concentrao alemes na Polnia ocupada,o oficial nazista responsvel, Campo de Concentrao Ehrhardt, responde: "Fazemosa concentrao, e os poloneses, o campo. O mesmo no se aplicaria ao escndalo dafalncia da Enron, em janeiro de 2002, que pode ser interpretada como uma espciede comentrio irnico noo de sociedade de risco? Milhares de funcionrios queperderam emprego e poupana estavam expostos a riscos, sem dvida, mas nesse casosem capacidade real de escolha; o risco surgiu como destino. Ao contrrio, os querealmente tinham noo dos riscos envolvidos, alm de poder para intervir (ou seja, osaltos executivos), minimizaram seus riscos vendendo aes e opes antes da falncia. bem verdade que vivemos numa sociedade de escolhas arriscadas, mas apenas algunstm a escolha, enquanto os outros ficam com o risco...Ento, o plano de salvamento seria mesmo uma medida "socialista, o nascimentodo socialismo de Estado nos Estados Unidos? Se for, de um tipo muito peculiar;uma medida "socialista cuja meta primria no ajudar os pobres, mas os ricos, noos que pedem emprestado, mas os que emprestam. Numa suprema ironia, "socializaro sistema bancrio aceitvel quando serve para salvar o capitalismo. O socialismo ruim, a no ser quando serve para estabilizar o capitalismo. (Observemos a simetriacom a China de hoje: do mesmo modo, os comunistas chineses usam o capitalismopara impingir seu regime "socialista.)Mas e se o "risco moral estiver embutido na prpria estrutura do capitalismo?Ou seja, no ha como separar os dois no sistema capitalista, o bem-estar social das ruasdepende da prosperidade de Wall Street. Assim, enquanto os populistas republicanosque resistem ao salvamento fazem a coisa errada pelas razes certas, quem prope osalvamento faz a coisa certa pelas razes erradas. Para usar termos mais sofisticados, arelao intransitiva: embora o que bom para Wall Street no seja necessariamentebom para o povo das ruas, o povo das ruas no pode prosperar quando Wall Street caidoente, e essa assimetria d a Wall Street uma vantagem a priori.Recordemos o conhecido argumento do pinga-pinga contra a redistribuioigualitria (por meio de altos nveis de tributao progressiva etc.): em vez de tornaros pobres mais ricos, a redistribuio torna os ricos mais pobres. Longe de sersimplesmente anti-intervencionista, essa atitude mostra na verdade uma percepomuito exata da interveno econmica do Estado: embora todos queiramos que ospobres fiquem mais ricos, contraproducente ajud-los diretamente, porque eles 22. a ideologia, estpido! / 25no so o elemento dinmico e produtivo da sociedade. O nico tipo necessriode interveno o que ajuda os ricos a ficar mais ricos; desse modo, os lucros seespalharo automaticamente, por si ss, entre os pobres... Hoje, esse argumentovirou a crena de que, se investirmos dinheiro suficiente em Wall Street, ele acabarpingando no povo das ruas e ajudar os trabalhadores comuns e os proprietrios deimveis. Assim, mais uma vez, se quisermos que todos tenham dinheiro para construirsua casa, no devemos dar dinheiro diretamente a eles, mas queles que, por sua vez,lhes emprestaro os recursos. Seguindo a lgica, essa a nica maneira de criar umaprosperidade genuna; do contrrio, o Estado estaria apenas distribuindo fundos entreos necessitados custa dos verdadeiros criadores de riqueza.Em consequncia, os que pregam a necessidade de abandonar a especulaofinanceira e voltar economia real, produzindo bens para satisfazer as necessidadesdas pessoas reais, no percebem o verdadeiro propsito do capitalismo: impulsionare aumentar a circulao financeira por ela mesma sua nica dimenso do Real,em contraste com a realidade da produo. Essa ambiguidade ficou visvel na criserecente, quando fomos bombardeados por apelos ao retorno economia reale lembrados ao mesmo tempo de que a circulao financeira, o sistema financeiroslido, o fluido vital de nossa economia. Que estranho fluido vital esse que no fazparte da economia real? A 'economia real seria um cadver sem sangue? O sloganpopulista salvem o povo das ruas, no Wall Street! totalmente enganoso, umaforma de ideologia em seu grau mais puro, porque passa por cima do fato de que, nocapitalismo, o que sustenta o povo das ruas Wall Street! Sem ela, o povo das ruas seafogar no pnico e na inflao. Logo, Guy Sorman, idelogo exemplar do capitalismocontemporneo, est certo quando afirma: No h nenhuma razo econmica paradistinguir capitalismo virtuaT de capitalismo real*: nunca se produziu nada real queno fosse financiado antes [...] mesmo numa poca de crise financeira, o benefcioglobal do novo mercado financeiro superou seus custos6.Embora as crises e os desastres financeiros sejam lembretes bvios de que a circulaode capital no um circuito fechado que pode se sustentar por conta prpria quepressupe uma realidade ausente na qual os bens reais que satisfazem as necessidadesdas pessoas so produzidos e vendidos , sua lio mais sutil que no podemosretornar a essa realidade, apesar de toda a retrica do vamos sair do espao virtual daespeculao financeira e voltar s pessoas de verdade, que produzem e consomem.O paradoxo do capitalismo que no se pode jogar fora a gua suja da especulaofinanceira e preservar o beb saudvel da economia real.6 Guy Sorman, Behold, our Familiar Cast of Characters, The Wall Street Journal, 20 e 21 jul. 2001(edio europeia). 23. 26 / Primeiro como tragdia, depois como farsa muito fcil desconsiderar essa linha de raciocnio como uma defesa hipcrita dosricos. O problema que, na medida em que permanecemos numa ordem capitalista,h verdade nelay isto , dar um pontap em Wall Street realmente vai atingir ostrabalhadores comuns. por essa razo que os democratas que apoiaram o plano desalvamento no foram incoerentes com sua orientao esquerdista. S teriam sidoincoerentes se aceitassem a premissa dos populistas republicanos de que o capitalismo(verdadeiro, autntico) e a economia de livre mercado esto ligados classe populartrabalhadora, enquanto a interveno do Estado uma estratgia da elite para exploraras pessoas comuns e trabalhadoras. Sendo assim,1 capitalismo versus socialismo torna--se trabalhadores comuns versus camadas da classe alta.Mas no h nada de novo na forte interveno do Estado no sistema bancrioou na economia em geral. A prpria crise recente resultado dessa interveno:em 2001, quando estourou a bolha das [empresas] ".com (que exprimia a prpriaessncia do problema da propriedade intelectual), decidiu-se facilitar o crdito afim de redirecionar o crescimento para os imveis. (Desse ponto de vista, portanto,a principal causa da crise de 2008 foi o impasse em torno da propriedade intelectual.)Se ampliarmos nosso horizonte para abranger a realidade global, notaremos que asdecises polticas esto entremeadas no prprio tecido das relaes econmicasinternacionais. H cerca de dois anos, uma reportagem da CNN sobre o Mali descreveua realidade do livre mercado internacional. Os dois pilares da economia malinesaso o algodo, no Sul, e a criao de gado, no Norte, e ambos enfrentam problemasdevidos ao modo como as potncias ocidentais violam as prprias regras que tentamimpor aos pases pobres do Terceiro Mundo. O Mali produz algodo de excelentequalidade, mas o problema que o subsdio que o governo norte-americano d a seusprprios produtores de algodo equivale a mais do que todo o oramento do Estadomalins, portanto no surpreende que no seja competitivo. No norte, a culpada a Unio Europeia: a carne malinesa no consegue concorrer com a carne e o leitealtamente subsidiados da Europa. A Unio Europeia subsidia cada vaca com cerca de500 euros por ano, mais do que o PIB per capita do Mali. Como explicou o ministroda Economia; ns no precisamos de ajuda, conselhos ou palestras sobre os efeitosbenficos do fim da regulamentao excessiva do Estado; basta que vocs cumpramsuas prprias regras de livre mercado e nossos problemas acabaro... Onde esto osdefensores republicanos do livre mercado? O colapso do Mali mostra a realidade doque significa, para os Estados Unidos, pr o pas em primeiro lugar.Tudo isso indica claramente que no h mercado neutro: em cada situaoespecfica, as configuraes do mercado so sempre reguladas pelas decises polticas.O verdadeiro dilema, portanto, no "o Estado deveria intervir?, mas que tipo deinterveno estatal necessrio?. Essa uma questo de poltica real, ou seja, uma lutapara definir as coordenadas apolticas bsicas de nossa vida. De certo modo, todas asquestes polticas so apartidrias; tm a ver com a pergunta: O que nosso pas?. 24. a ideologia, estpido! / 27Assim, o debate sobre o plano de salvamento verdadeira poltica, na medida em quediz respeito s decises sobre as caractersticas fundamentais de nossa vida social eeconmica e, nesse processo, mobiliza os fantasmas da luta de classes* No h posioobjetiva' especializada espera simplesmente de ser aplicada; preciso apenas tomarposio de um lado ou de outro, politicamente.Existe a possibilidade real de que a principal vtima da crise em andamento noseja o capitalismo, mas a prpria esquerda, na medida em que sua incapacidade deapresentar uma alternativa global vivel tornou-se novamente visvel a todos. Foi aesquerda que de fato se enredou. Foi como se os acontecimentos recentes tivessemsido encenados com risco calculado para demonstrar que, mesmo numa poca decrise destrutiva, no h alternativa vivel ao capitalismo. Thamzing uma palavratibetana da poca da Revoluo Cultural com reverberaes agourentas para s liberais:significa sesso de luta, uma audincia pblica coletiva e crtica de um indivduo que interrogado de modo agressivo para provocar, por meio da confisso de seus erros ede uma autocrtica constante, sua reeducao poltica. Quem sabe a esquerda de hojeesteja precisando de uma longa sesso de thamzingImmanuel Kant no contraps a injuno no obedea, pense! ao lemaconservador 'no perse, obedea!, mas sim a obedea, mas pense!. Quando ficamosparalisados diante de fatos como o plano de salvamento, devemos ter em mente que, jque se trara de uma forma de chantagem, no devemos ceder tentao populista depr nossa raiva para fora e, assim, nos ferir. No lugar desse gesto impotente,-devemoscontrolar a fria e transform-la em fria determinao de pensar pensar sobre asituao de maneira realmente radical e nos perguntar que tipo de sociedade essa quepossibilita tal chantagem.A crise como terapia de choqueA crise financeira seria um momento de sobriedade, o despertar de um sonho? Tudodepende de como ela ser simbolizada, de qual interpretao ou histria ideolgica seimpor e determinar a percepo geral da crise. Quando o curso normal das coisas interrompido de forma traumtica, abre-se campo para uma competio ideolgicadiscursiva - como aconteceu, por exemplo, na Alemanha no incio da dcada de1930, quando, invocando a conspirao judaica, Hitler triunfou na competiode qual narrativa melhor explicava as causas da crise da Repblica de Weimar eoferecia a melhor sada para escapar da crise. Do mesmo modo, na Frana de 1940,a narrativa do marechal Ptain que venceu a luta para explicar as razes da derrotado pas. Portanto, todas as ingnuas esperanas da esquerda de que a crise financeira eeconmica atual abra necessariamente espao para a esquerda radical so, sem dvida,perigosamente mopes. O efeito imediato primrio da crise no ser a ascenso de uma 25. 28 / Primeiro como tragdia, depois como farsapoltica emancipatria radical, mas a ascenso do populismo racista, de mais guerras,do aumento da pobreza nos pases mais pobres do Terceiro Mundo e de uma divisomaior entre ricos e pobres em todas as sociedades.Embora as crises realmente sacudam o povo para fora de sua complacncia,forando-o a questionar os aspectos fundamentais da vida, a primeira reao, a maisespontnea, o pnico, o que leva ao retorno ao bsico: as premissas bsicas daideologia dominante, longe de ser questionadas, so reafirmadas com ainda maisviolncia. O perigo, portanto, que a crise atual seja usada de modo anlogo ao queNaomi Klein chamou de doutrina do choque. H de feto algo de surpreendentenas reaes predominantemente hostis ao livro mais recente de Klein: so muito maisviolentas do que poderamos esperar; at os benevolentes liberais de esquerda, quesimpatizam com algumas de suas anlises, lamentam que a vociferao lhe obscureao raciocnio, como disse Will Hutton em resenha no Observer. bvio que Kleintocou algum nervo sensvel com sua tese principal:A histria do livre mercado contemporneo foi escrita em choques. Algumas das violaesmais infames dos direitos humanos nos ltimos 35 anos, que tenderam a ser consideradasatos sdicos realizados por regimes antidemocrticos, na verdade foram cometidas com ainteno deliberada de aterrorizar o pblico ou atrel-lo ativamente para preparar o terrenopara a imposio de reformas livre-mercadistas radicais.7Essa tese desenvolvida por meio de uma srie de anlises concretas, das quais umadas mais importantes a guerra do Iraque: o ataque norte-americano foi sustentadopela ideia de que, depois da estratgia militar de choque e pavor, o Iraque poderia sertransformado no paraso do livre mercado, o pas e o povo estariam to traumatizadosque no se oporiam... A imposio total da economia de mercado se torna muitomais fcil quando o caminho preparado por algum tipo de trauma (natural, militar,econmico), que, por assim dizer, force as pessoas a abrir mo dos velhos hbitos e astransforme em tbulas rasas ideolgicas, sobreviventes de sua prpria morte simblica,prontas a aceitar a nova ordem, j que todos os obstculos foram eliminados. E, semdvida nenhuma, a doutrina de choque de Klein tambm serve para as questesecolgicas: longe de ameaar o capitalismo, uma catstrofe ambiental generalizadapode muito bem revigor-lo, abrindo espaos novos e inauditos para o investimentocapitalista.A crise econmica tambm ser usada como choque, criando condiesideolgicas para promover a terapia liberal? A necessidade dessa terapia de choque nasceno mago utpico (e com frequncia negligenciado) da teoria econmica neoliberal.7 Naomi Klein, The Shock Doctrine: the Rise of Disaster Capitalism (Londres, Penguin, 2007), p. iii. [Ed.bras.: A doutrina do choqtie, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008.] 26. a ideologia, estpido! / 29A maneira como os fundamentalistas do mercado reagem ao resultado destrutivoda implementao de suas receitas tpica de totalitrios utpicos: atribuem todofracasso s concesses dos que puseram seus planos em prtica (ainda havia demasiadainterveno do Estado etc.) e simplesmente exigem uma implementao ainda maisradical de suas doutrinas.Consequentemente, para usar termos marxistas antiquados, a tarefa central daideologia dominante na crise atual impor uma narrativa que atribua a culpa do desastreno ao sistema capitalista global como tal, mas a desvios secundrios e contingentes(regulamentao jurdica excessivamente permissiva, corrupo das grandes instituiesfinanceiras etc.). Do mesmo modo como, na poca do socialismo real, os idelogospr-socialistas tentaram salvar a ideia de socialismo afirmando que o fracasso das democraciaspopulares vinha do fracasso de uma verso no autntica de socialismo eno da ideia como tal, de modo que os regimes socialistas reais precisavam de reformasradicais e no de runa e abolio. No sem ironia, observamos que os idelogos quezombaram dessa defesa crtica do socialismo, chamando-a de ilusria, e insistiram nanecessidade de lanar a culpa na prpria ideia, agora recorrem amplamente mesmalinha de defesa: afinal, no o capitalismo como tal que est falido, apenas a suaprtica que foi distorcida...Contra essa tendncia, preciso insistir na questo principal: que falha do sistemacomo tal permite essas crises e colapsos? Aqui, a primeira coisa que devemos ter emmente que a origem da crise benvola: como observamos, depois da exploso dabolha das .com, a deciso, tomada de forma bipartidria, foi facilitar o investimentoem imveis para manter a economia em movimento e impedir a recesso; portanto, acrise de hoje simplesmente o preo das medidas tomadas nos Estados Unidos paraevitar a recesso alguns anos antes. O perigo ento que a narrativa predominante dacrise seja aquela que, em vez de nos despertar de um sonho, nos permita continuarsonhando. E a que devemos comear a nos preocupar no s com as consequnciaseconmicas da crise, como tambm com a tentao bvia de revigorar a guerra aoterror e o intervencionismo norte-americano para manter funcionando o motorda economia, ou no mnimo usar a crise para impor mais medidas duras de ajusteestrutural.Um caso exemplar da maneira como o colapso econmico j est sendo usado nalvita poltico-ideolgica a discusso sobre o que fazer com a General Motors: o Estadodeveria ou no permitir sua falncia? Como a GM uma daquelas instituies querepresentam o sonho americano, sua falncia era impensvel durante muito tempo.Entretanto, agora um nmero de vozes cada vez maior refere-se crise como aqueleempurrozinho que deveria nos fazer aceitar o impensvel. Uma coluna do New YorkTimes intitulada Imaginemos a falncia da GM comea de maneira agourenta:Enquanto a General Motors luta para ter dinheiro no prximo ano, a possibilidade 27. 30 I Primeiro como tragdia, depois c o itio farsaantes impensvel de concordata parece muito mais, digamos, pensvel8. Depois deuma srie de argumentos previsveis (concordata no significa perda automticade empregos, apenas uma reestruturao para tornar a empresa mais leve e gil, maisadaptada s difceis condies da economia de hoje, e assim por diante etc.), a colunape os pingos nos is no final, concentrando-se no impasse entre a GM e os operriossindicalizados e aposentados: A concordata permitiria GM rejeitar uni lateralmenteos acordos coletivosy desde que com a aprovao de um juiz. Em outras palavras, aconcordata seria usada para dobrar um dos ltimos sindicatos fortes dos EstadosUnidos, diminuindo o salrio de milhares de operrios e a aposentadoria de milharesde outros. Observemos novamente o contraste com a necessidade urgente de salvaros grandes bancos: no caso da GM, em que est em jogo a sobrevivncia de dezenasde milhares de trabalhadores na ativa e aposentados, claro que no se trata deemergncia, mas, ao contrrio, uma oportunidade de permitir que o livre mercadofuncione com fora bruta. Como se fossem os sindicatos, e no as falhas na estratgiade administrao, os culpados pelos problemas da GM! assim que o impossvel setorna possvel: o que at ento era impensvel no horizonte dos padres estabelecidosde condies de trabalho decentes hoje se torna aceitvel.Em A misria da filosofia, Marx escreveu que a ideologia burguesa gosta dehistoricizar: todas as formas sociais, religiosas e culturais so histricas, contingentese relativas; todas, exceto a dela. Houve histria no passado, mas agora no h maishistria nenhuma:Os economistas tm um mtodo peculiar de proceder. Para eles, s h dois tipos dc instituio:as artificiais e as naturais. As instituies do feudalismo so artificiais, as da burguesia sonaturais. Nisso, eles lembram os telogos, que estabelecem, da mesma forma, dois tipos dereligio. Todas as que no sejam a deles so invenes dos homens, enquanto a deles emanade Deus. Quando os economistas dizem que as relaes atuais as relaes de produoburguesas - so naturais, insinuam que so essas as relaes em que a riqueza se cria e asforas produtivas se desenvolvem em conformidade com as leis da natureza. Essas relaesso em si leis naturais que independem da influncia do tempo. So leis eternas que devemsempre governar a sociedade. Houve histria, portanto, mas no h mais. Houve histria,porque havia as instituies do feudalismo, e nessas instituies do feudalismo encontramosrelaes de produo bem diferentes daquelas da sociedade burguesa, que os economistastentam apresentar como naturais e, como tais, eternas.98 Imagining a G.M. bankruptcy, New York Times, 2 dez. 2008 (DealBook, seo Business);9 Karl Marx, The Poverty of Philosophy (Moscou, Progress Publishers, 1955), cap. 2: Seventh and lastobservation. [Ed. bras.: A misria dafilosofiay So Paulo, Expresso Popular, 2009.] No encontramosreflexos da mesina posio no historicismo discursivo antiessendalisra de hoje (dc Ernesto Laclaua Judith Butler), que v qualquer entidade ideolgico-social como produto de uma luta discursivacontingente pela hegemonia? Como j. observou Fredric Jameson, o historicismo universalizado tem 28. a ideologia estpido! I 31Substitua feudalismo por socialismo e exatamente o mesmo se aplica aosdefensores do capitalismo democrtico-liberal de hoje.No admira que na Frana prospere o debate sobre os limites da ideologia liberal -no pela longa tradio estadista que desconfia do liberalismo, mas porque a distnciaque os franceses mantm da linha anglo-sax predominante permite no s uma posturacrtica, como tambm uma percepo mais clara da estrutura ideolgica bsicado liberalismo. Quem busca uma verso clinicamente pura e destilada da ideologiacapitalista contempornea deve recorrer a Guy Sorman. O prprio ttulo da entrevistaque concedeu recentemente na Argentina - Esta crise ser bastante curta10 - mostraque Sorman cumpre a exigncia bsica que a ideologia liberal tem de satisfazer em re-lao crise financeira, ou seja, renormalizar a situao: As coisas talvez paream difceis,mas a crise ser curta, simplesmente faz parte do ciclo normal de destruio criativapor meio do qual o capitalismo progride. Ou, como explicou o prprio Sormanem outro texto, a destruio criativa o motor do crescimento econmico: Essasubstituio incessante do velho pelo novo impulsionada pela inovao tcnicae pelo empreendedorismo, ele mesmo estimulado por boas polticas econmicas -traz prosperidade, apesar de os desalojados pelo processo, aqueles cujos empregosse tornaram inteis, .fazerem objeo, como compreensvel11. ( claro que essarenormalizao coexiste com seu oposto, o pnico provocado pelas autoridades paradar um choque no pblico em geral os prprios alicerces de nosso estilo de vidaesto ameaados! , preparando-o, portanto, para aceitar como inevitvel a soluoproposta, obviamente injusta.) A premissa de Sorman que, nas ltimas dcadas (maisprecisamente, desde a queda do socialismo, em 1990), a economia finalmente se tornouuma cincia totalmente testada: numa situao quase de laboratrio, um mesmo pasfoi dividido em dois (Alemanha Ocidental e Oriental, Coreia do Sul e do Norte) e cadaparte foi submetida a um sistema econmico oposto, com resultados no ambguos.Mas a economia mesmo uma cincia? Embora Sorman admita que o mercadoseja cheio de reaes e comportamentos irracionais, sua receita no nem a psicologia,mas a neuroeconomia;um estranho sabor anistrico: quando aceitamos por completo e praticamos a contingncia radical denossas identidades, toda tenso histrica autntica se esvai dc algum modo nos jogos performativos einterminveis do presente eterno. H uma tima ironia autorrefereme aqui: s h histria na medidaem que persistem resduos de essencialismo anistrico. E por isso que os antiessencialistas radicaistm de mobilizar todo o seu talento desconstrutivo-hermenutico para detectar vestgios ocultos deessencialismo no que parece ser uma 'sociedade de risco de contingncias ps-moderna; se admitissemque j vivemos numa sociedade antiessencialista, teriam de enfrentar a questo verdadeiramente difcildo carter histrico do prprio historicismo radical que hoje predomina isto e, enfrentar a questo dessehistoricismo como forma ideolgica do capitalismo global "ps-moderno.10 Esta crisis ser bastante breve, Perfil, Buenos Aires, 2 nov. 2008, p. 38-43.11 Essa e todas as demais citaes desta seo so de Guy Sorman, Econqmics Does Not Lie, CityJournal, vero de 2008. Disponvel em: . 29. 32 / Primeiro como tragdia, depois como farsaos atores cconmicos tendem a se comportar de modo racional e irracional. Escudos emlaboratrio demonstraram que uma parte de nosso crebro responsvel por muitas denossas decises de curto prazo economicamente erradas, enquanto outra responsvel pordecises que fazem sentido em termos econmicos, em geral de viso mais ampla. Assimcomo nos protege da assimetria de Akerlof, proibindo negociaes baseadas em informaesprivilegiadas, o Estado tambm deveria nos proteger de nossos impulsos irracionais?E claro que Sorman logo acrescenta:seria absurdo usar a economia comportamenral para justificar o restabelecimentoda regulamentao estatal excessiva. Afinal de contas, o Estado no mais racional doque os indivduos, e suas aes podem ter consequncias extremamente destrutivas. Aneuroeconomia deveria nos encorajar a tornar o mercado mais transparente, e no maisregulado.Com essa alegre regra dupla de cincia econmica e neuroeconomia, termina aera dos sonhos ideolgicos mascarados de cincia - como em Marx, cuja obra podeser descrita como uma reescritura materialista da Bblia. Com a presena de todos,e o proletariado no papel de Messias, O pensamento ideolgico do sculo XIX e,sem debate, uma teologia materializada*. Mas, ainda que o marxismo esteja morto,o imperador nu continua a nos perseguir com roupas novas, das quais a principal oecologismo:Mais do que desordeiros comuns, os verdes so os sacerdotes de uma nova religio quepe a natureza acima da humanidade. O movimento ecolgico no um belo lobby depaz e amor, mas uma fora revolucionria. Como muitas religies modernas, os malesidentificados por ele so ostensivamente condenados com base no conhecimento cientfico*,aquecimento global, extino das espcies, perda da biodiversidade, ervas superdaninhas.Na verdade, todas essas ameaas so criao da imaginao dos verdes. Eles pegamemprestado o vocabulrio da cincia, mas no aproveitam sua racionalidade. O mtodono novo; Marx e Engels tambm fingiram fundar sua viso de mundo na cincia dapoca, o darwinismo.Sorman, por conseguinte, aceita a afirmao de seu amigo Jos Maria Aznar de queo movimento ecolgico o "comunismo do sculo XXI:E cerro que o ecologismo uma recriao do comunismo, [a forma d]o anticapitalismoreal... No entanto, sua outra metade composta de um quarto de utopia paga, de culto natureza, muito mais antigo do que o marxismo, por isso o ecologismo to forte naAlemanha, com sua tradio pag e naturalista. Portanto, o ecologismo um movimentoanticristo*. a natureza tem precedncia sobre o homem. O ltimo quarto racional:existem problemas verdadeiros para os quais h solues tcnicas. 30. a ideologia, es cupido! / 33Observemos a expresso 'soluo tcnica: problemas racionais tm soluestcnicas. (Mais uma vez, uma afirmao redondamente enganada: para enfrentar osproblemas ecolgicos necessrio fazer escolhas e tomar decises - o que produzir, o queconsumir, com que energia contar-, que, em ltima nJise, dizem respeito ao prprioestilo de vida de um povo; como tais, alm de no serem tcnicas, so eminentementepolticas, no sentido mais radical de envolver escolhas sociais fundamentais.) Noadmira ento que o prprio capitalismo seja apresentado em termos tcnicos, nemmesmo como cincia, mas apenas como algo que funciona: no precisa de justificativaideolgica porque seu sucesso, por si s, j justificativa suficiente. Nesse aspecto, ocapitalismo o oposto do socialismo, que vem com manual: "O capitalismo umsistema que no tem pretenses filosficas, no est em busca da felicidade. A nicacoisa que diz : Ora, isso funciona. E, para quem quer viver melhor, prefervel usaresse mecanismo, porque funciona. O nico critrio a eficincia. claro que essa descrio anti-ideolgica claramente falsa: a prpria noo decapitalismo como mecanismo social neutro pura ideologia (e at ideologia utpica).Ainda assim, o momento de verdade dessa descrio que, como explicou Alain Badiou,o capitalismo no uma civilizao por si s, com um modo especfico de dar sentido vida. O capitalismo. a primeira ordem socioeconmica que destotaliza o significado:no global no nvel do significado (no h viso de mundo capitalista global nemcivilizao capitalista propriamente dita; a lio fundamental da globalizao justamente que o capitalismo pode s acomodar a todas as civilizaes, da crist hindu ou budista). A dimenso global do capitalismo s pode ser formulada nonvel da verdade-sem-significado, como o "Real do mecanismo global de mercado.O problema aqui no , como afirma Sorman, que a realidade seja sempre imperfeitae as pessoas precisem sempre alimentar sonhos de perfeio impossvel. O problema de significado, e aqui que a religio reinventa seu papel, redescobre sua misso degarantir uma vida com sentido para os que participam do funcionamento sem sentidoda mquina capitalista. por isso que a descrio da dificuldade fundamental daideologia capitalista feita por Sorman to despropositada:Do ponto de vista poltico e intelectual, a grande dificuldade na administrao de umsistema capitalista que ele no fonte de sonhos: ningum vai s ruas manifestar-se a seufavor. O capitalismo uma economia que mudou completamente a condio humana,que salvou a humanidade da misria, mas ningum est disposto a se converter em mrtirdesse sistema. Deveramos aprender a lidar com esse paradoxo de um sistema que ningumquer, e que ningum quer porque no d origem ao amor, no encantador, no sedutor.Mais uma vez, essa descrio uma inverdade patente: o sistema que maisencantou seus sujeitos com sonhos (de liberdade, de que o sucesso s depende de ns,do golpe de sorte que est ali na esquina, dos prazeres sem limites...) foi o capitalismo. 31. 34 / Primeiro como tragdia, depois como farsaO verdadeiro problema outro, ou seja, como manter a f do povo no capitalismoquando a realidade inexorvel da crise esmagou com violncia esses sonhos? Aqui entraa necessidade de um pragmatismo realista maduro: preciso resistir heroicamenteaos sonhos de perfeio e felicidade e aceitar a amarga realidade capitalista como omelhor (ou o menos ruim) dos mundos possveis. E necessria certa acomodao,uma combinao de combate s expectativas utpicas ilusrias com seguranasuficiente para o povo aceitar o sistema. Sorman no , portanto, nenhum extremistaou fundamentalista d livre mercado; conta com orgulho que alguns seguidores ortodoxosde Milton Friedman o acusaram de ser comunista por causa de seu apoio(moderado) ao Estado de bem-estar social.No h contradio entre o Estado e o liberalismo econmico; ao contrrio, h uma alianacomplexa entre os dois. Acho que a sociedade liberal precisa do Estado de bem-estar social,primeiro com relao legitimidade intelectual: o povo aceitar a aventura capitalistase houver um mnimo indispensvel de segurana social. Acima disso, num nvel maismecnico, se quisermos que a criatividade destrutiva do capitalismo funcione, precisoadministr-la.Raras vezes a funo da ideologia foi descrita em termos to claros: defender osistema existente contra qualquer crtica sria, legitimando-o como expresso diretada natureza humana:Uma tarefa essencial dos governos democrticos e dos formadores de opinio quandoconfrontados com os ciclos econmicos e a presso poltica garantir e proteger o sistemaque serviu to bem humanidade, e no mud-lo para pior tendo como pretexto suaimperfeio. [...] Ainda assim, essa , sem dvida, uma das lies mais difceis de traduzirnuma linguagem que a opinio pblica aceite. O melhor de todos os sistemas econmicospossveis mesmo imperfeito. Sejam quais forem as verdades reveladas pela cinciaeconmica, o livre mercado , afinal, apenas o reflexo da natureza humana, dificilmenteaperfeiovel.A estrutura, da propaganda inimigaEssa legitimao ideolgica tambm exemplifica com perfeio a frmula precisade Badiou para o paradoxo bsico da propaganda inimiga: ela combate algo do qualno tem conscincia, algo para o qual estruturalmente cega - no as verdadeirasforas contrrias (adversrios polticos), mas a possibilidade (o potencial emancipatrio--revolucionrio utpico) imanente situao:O objetivo de qualquer propaganda inimiga no aniquilar uma fora existente (em geral,essa funo deixada para as foras policiais), mas aniquilar uma possibilidade despercebida 32. a ideologia, estpido! / 35da situao. Essa possibilidade passa despercebida tambm para os que fazem a propaganda,pois suas caractersticas tm de ser imanentes situao e, ao mesmo tempo, no aparecernela.12 por isso que, por definio, a propaganda inimiga contra a poltica emancipatriaradical cnica, no no sentido simples de no acreditar em suas prprias palavras, masnum nvel muito mais bsico: ela cnica exatamente na medida em que acredita defato em suas prprias palavras, j que sua mensagem a convico resignada de que omundo em que vivemos, ainda que no seja o melhor dos mundos possveis, o menosruim, de modo que qualquer mudana radical s pode piorar a situao. (Como sempreacontece com propagandas eficazes, essa normalizao pode ser facilmente combinadacom seu oposto, lendo-se a crise econmica em termos religiosos; Bento XVI, sempreastuto quando se trata de manobras oportunistas, no demorou a capitalizar a crisefinanceira: Isso prova que tudo vaidade e que s a palavra de Deus se sustenta!.)Portanto, no deveria causar surpresa que a crise financeira de 2008 tambm levasseJacques-Alain Miller a intervir, de maneira to construtiva, para impedir o pnico:O significante monetrio de aparncia, baseia-se em convenes sociais. O universo financeiro uma arquitetura feita de fices e sua pedra fundamental o que Lacan chamoude "sujeito suposto saber, saber por que e como. Quem representa esse papel? Oconcerto de autoridades, de onde s vezs uma voz se destaca, Alan Greenspan, por exemplo,em sua poca. Os atores financeiros baseiam seu comportamento nisso. A unidade fictcia ehiper-reflexiva sustenta-se na crena nas autoridades, isto , na transferncia para o sujeitosuposto saber. Se esse sujeito tropea, h uma crise, um desmoronar dos alicerces, o que,naturalmente, envolve efeitos de pnico. Entretanto, o sujeito financeiro suposto saber jestava bastante subjugado devido desregulamentao. E isso aconteceu porque o mundofinanceiro acreditou em si mesmo, em sua iluso apaixonada, que seria capaz de resolvertudo sem a funo do sujeito suposto saber. Em primeiro lugar, o patrimnio imobiliriose torna lixo. Em segundo lugar, a merda aos poucos penetra tudo. Em terceiro lugar, huma gigantesca transferncia negativa diante das autoridades: o choque do plano Paulson--Bernanke enfurece o pblico: a crise de confiana, e durar at qe o sujeito supostosaber seja reconstrudo. Isso acontecer a longo prazo por meio de um novo conjunto deacordos de Bretton Woods, um conselho obrigado a dizer a verdade sobre a verdade.13Aqui, a referncia de Miller Alan Greenspan, o sujeito suposto saber apartidriodo longo perodo de crescimento econmico desde a era Reagan at a recente dbcle.Em 23 de outubro de 2008, quando foi submetido a uma arguio no Congresso12 Alain Badiou, seminrio sobre Plato na cole Normale Suprieure, em 13 de fevereiro de 2008 (nopublicado).13 Jacques-Alain Miller, The Financial Crisis*. Disponvel em: . 33. 36 / Primeiro como tragdia, depois como Gusanorte-americano, Greenspan reconheceu certos pontos interessantes em resposta aoscrticos que afirmavam que ele havia encorajado a bolha imobiliria mantendo jurosbaixos demais por tempo demais e no havia reprimido o crescimento explosivo dosemprstimos com garantias arriscadas e muitas vezes fraudulentas14. Este o pontoalto da arguio, quando o deputado Henry A. Waxman, da Califrnia, presidente doComit de Superviso, interveio:Vou interromper o senhor. A pergunta que tenho a lhe fazer ... O senhor tinha umaideologia. Esta declarao sua: Tenho de fato uma ideologia. Minha avaliao queo mercado livre e competitivo , de longe, uma maneira sem rival de organizao daseconomias. Tentamos as regulamentaes, nenhuma funcionou de maneira significativa. uma citao sua. O senhor teve autoridade para impedir as prticas irresponsveis deemprstimos que levaram crise das hipotecas subprime15. O senhor foi aconselhado a agirnesse sentido por muitos outros. E agora toda a nossa economia est pagando por isso. Osenhor acha que a sua ideologia o levou a tomar decises que preferiria no rer tomado?16Greenspan respondeu: Encontrei uma falha no modelo que eu via comoa estrutura crtica de funcionamento que define como o mundo funciona. Emoutras palavras, Greenspan admitiu que, quando o mercado financeiro foi inundadopor um tsunami de crdito que s ocorre uma vez a cada sculo, a ideologia deno regulamentao do livre mercado mostrou-se falha. Mais tarde, Greenspanreiterou sua incredulidade chocada de que as empresas financeiras no haviammantido vigilncia suficiente sobre seus parceiros comerciais para evitar a ondade prejuzos: Aqueles que zelam pelo interesse das instituies de emprstimo afim de proteger o patrimnio dos acionistas, inclusive,eu, ficaram num estado deincredulidade chocada*. Essa ltima declarao revela mais do que parece primeira vista: indica queo erro de Greenspan foi esperar que o autointeresse esclarecido das instituies deemprstimo as levasse a agir de modo mais responsvel, mais tico, de modo a evitaros breves ciclos autoimpelidos de especulao desenfreada, que, mais cedo ou maistarde, estouram como bolhas. Em outras palavras, seu erro no dizia respeito aos fatos,dados e mecanismos econmicos objetivos, mas s atitudes ticas provocadas pelaespeculao de mercado, em particular premissa de que os processos de mercado14 Ver Elizabeth Olson, Greenspan Under Fire. Disponvel em: .15 Termo cunhado pelos meios de comunicao durante a crise de crdito de 2007 para se referir sinstituies financeiras que do crdito a tomadores considerados "subprime" [abaixo do timo],tambm chamados de Munder-banked' f subfinanciados*] isto , os que apresentam risco elevadode inadimplncia, como os que tm histrico de no pagamenco de emprstimos, j faliram ou tmpouca experincia de endividamento.16 Ver Online NewsHourt Greenspan Admits Flaw* to Congress, Predicts More Economic Problems,23 out. 2008, transcrio. Disponvel em: . 34. a ideologia, estpido! / 37geram espontaneamente responsabilidade e confiana, porque, em longo prazo, dointeresse dos prprios participantes agir assim. Est claro que o erro de Greenspan nofoi apenas e simplesmente ter superestimado a racionalidade dos agentes de mercado,isto , sua capacidade de resistir tentao de ter ganhos especulativos extraordinrios.O que ele esqueceu de incluir na equao foi a perspectiva bastante racional dosespeculadores de que valia a pena correr o risco, porque, no caso de um colapsofinanceiro, poderiam contar com o Estado para cobrir o prejuzo.Entre parnteses, uma das estranhas consequncias da crise financeira e dasmedidas tomadas para combat-la foi o ressurgimento do interesse pela obra de AyrxRand, o mais perto que se pode chegar de uma ideloga do capitalismo radical do tipo"ganncia bom. As vendas da obra magna de Rand, Quem John Galt?*, voltaram aexplodir. Uma das razes aventadas para esse sucesso que:[o apoio do governo Obama aos bancos com problemas] cheira a socialismo tirnico,forando os fortes e bem-sucedidos a apoiar os fracos, preguiosos e incompetentes. Aatual estratgia econmica saiu diretamente de Quem John Galt? escreveu recentementeo comentarista Stephen Moore no Wall Street Journal. Quanto mais incompetente voc fornos negcios, mais esmolas os polticos lhe concedero.17Segundo alguns relatos, j h sinais de que a situao descrita em Quem JohnGalt? - os prprios capitalistas criativos entram em greve est para acontecer. Deacordo com John Campbell, parlamentar republicano: Os realizadores vo entrar emgreve. Estou vendo, em nvel baixo, uma espcie de protesto dos que geram emprego(...] que vm refreando suas ambies porque veem como esto sendo punidos porelas18. O absurdo dessa reao est na leitura totalmente errada da situao: a maiorparte do dinheiro do plano de salvamento vai em somas gigantescas justamentepara esses "tits randianos** desregulados cujos esquemas criativos fracassaram e,com isso, provocaram uma runa em espiral. E ho so os grandes gnios criativosque esto ajudando as pessoas comuns e preguiosas, mas os contribuintes comuns que esto ajudando os gnios criativos fracassados. Basta lembrar que o pai poltico--ideolgico do longo processo econmico que resultou na crise o supramencionadoAlan Greenspan, objetivista randiano de carteirinha.Mas voltemos a Miller, pois a mensagem de seu estranho texto clara: vamosesperar com pacincia que surja o novo sujeito suposto saberAqui, a posio deMiller de puro cinismo liberal: todos sabemos que o "sujeito suposto saber umailuso criada pelo processo de transferncia; mas sabemos disso em particular, como* Rio de Janeiro, Expresso e Cultura, 1999. (N- E.)17 Oliver Burkeman, Look out for number one, Guardian, 10 mar. 2009, p. 3.18 Idem.** De Ayn Rand. (N. E.) 35. 38 / Primeiro como tragdia, depois como farsapsicanalistas* Em pblico, devemos promover o surgimento do novo sujeito supostosaber para controlar as reaes de pnico...Recentemente, Miller se envolveu na briga contra a tentativa europeia de imporregulamentao estatal psicanlise, o que de fato levaria sua absoro pelo vastocampo das terapias cognitivas e bioqumicas cientficas. Infelizmente, ele registraessa briga nos termos da insistncia da direita-liberal na liberdade dos indivduos emrelao ao controle e regulamentao estatal socialista e paternalista, referindo-sediretamente obra de Willem H. Buiter, neoliberal pr-thatcherista19. Miller ignoraque a regulamentao estatal que ele combate com tanta ferocidade encenadaem nome da proteo da autonomia e da liberdade dos indivduos; ele combate,portanto, as consequncias da prpria ideologia em que se baseia. O paradoxo que, na sociedade informatizada de hoje, em que no s o Estado como tambm asgrandes empresas so capazes de penetrar na vida dos indivduos e control-la em grauinaudito, a regulamentao estatal necessria para manter a prpria autonomia qual supostamente ameaa.Em meados de abril de 2009, num quarto de hotel em Siracusa, eu pulava entredois programas de TV: um documentrio sobre Pete Seeger, grande cantor folclrico eesquerdista norte-americano, e uma reportagem da Fox News sobre a tea part/* emAustin, no Texas, com um cantor country apresentando uma cano anti-Obama quedizia que Washington tributa pessoas comuns e trabalhadoras para financiar os ricosfinancistas de Wall Street. O curto-circuito entre os dois programas causou em mim umefeito eletrizante com duas caractersticas especialmente notveis. Em primeiro lugar,havia a estranha semelhana entre os dois msicos, ambos fazendo uma crtica populistacontra o establishment dos ricos exploradores e de seu Estado, ambos clamando pormedidas radicais, inclusive a desobedincia civil outro lembrete doloroso de que, emrelao s formas de organizao, a direita populista radical contempornea lembraestranhamente a antiga esquerda populista radical. Em segundo lugar, era impossvelnao notar a irracionalidade fundamental dos protestos da tea party: na verdade,Obama planeja baixar os impostos de mais de 95% dos trabalhadores comuns e propeaument-los apenas para os 2% mais altos, isto , para os ricos exploradores. Ento,como que essas pessoas agem literalmente contra seus interesses?Thomas Frank descreveu com competncia esse paradoxo do conservadorismopopulista contemporneo nos Estados Unidos20; a oposio econmica de classe19 Ver Willem H. Buiter, Le nouveau paternalisme: attention, danger!, Le Nouvel Ane, 9 set. 2008,p. 34-5.* Literalmente, a festa do cha Movimento poltico contrrio cobrana de impostos e a favor de umEstado menor; inspira-se na revolta histrica de Boston, ocorrida em 1773. (N. E.)20 Ver Thomas Frank, Whts the Matter with Kansas? How Conservatives Won the Heart of America (NovaYork, Metropolitan, 2004). 36. a ideologia, estpido! / 39(operrios e fezendeiros pobres contra advogados, banqueiros e grandes empresas) transposta ou recodifcada na oposio entre os norte-americanos cristos, hones-tose trabalhadores, e os liberais decadentes que tomam' latte e dirigem carrosestrangeiros, defendem o aborto e a homossexualidade, zombam do sacrifciopatritico e do estilo de vida simples e provinciano etc. Assim, o inimigo visto comoa elite liberal que, por meio da interveno federal do Estado (dos nibus escolaress leis que obrigam o ensino em sala de aula da teoria darwinista e de prticas sexuaispervertidas), quer minar o autntico estilo de vida norte-americano. A principalexigncia econmica dos conservadores , por conseguinte, livrar-se do Estado forteque tributa a populao para financiar suas intervenes reg