UMA APRESENTAÇÃO CRÍTICA DE SLAVOJ ZIZEK - parte I

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UMA APRESENTAÇÃO CRÍTICA DE SLAVOJ ZIZEK (I) Slavoj Zizek, nascido em 1949, é conhecido pelo uso que faz de Jacques Lacan, através do qual descobre Hegel, na sua abordagem do fenómeno cultural e social, exemplificando com o cinema e a literatura, e os fenómenos culturais mais pertinentes da contemporaneidade. Por Francisco José de Jesus Oliveira 1. Slavoj Zizek, nascido em 1949, é conhecido pelo uso que faz de Jacques Lacan, através do qual descobre Hegel, na sua abordagem do fenómeno cultural e social, exemplificando com o cinema e a literatura, e os fenómenos culturais mais pertinentes da contemporaneidade. A erudição de Zizek não caminha apenas sobre as pedras da filosofia, da psicanálise e da cultura erudita, mas também, e com idêntica desenvoltura, sobre o universo fabular para consumo de massas criado pela indústria do entretenimento, sobretudo Hollywood. Explorando os múltiplos pontos de contacto entre a moderna filosofia alemã e a psicanálise, que de forma muito particular e própria a realizou o ousado francês Jacques Lacan, intuindo que os legados de Hegel e de Freud se voltavam para questões chave do conhecimento, como os papéis do sujeito e da consciência. Lévi-Strauss dirá que a filosofia alemã retivera a noção de consciência humana como tendência para mentir a si mesma. Uma concepção que remonta a Hegel, passa por Marx e ecoa no pensamento pós-moderno, e ao qual dificilmente Jacques Lacan recusaria apoio. Zizek revisita Hegel e Freud pelos óculos de Jacques Lacan. “This alone should suggest that Zizek’s interest is not simply an expression of Slovenian-Catholic nationalism, but a rich play of intellectual heritages, politically, psychoanalytically, and theologically diverse” (POUND, 2008, 5). O prazer quase infantil em transgredir ostensivamente as regras da escrita académica, com o uso de anedotas e trocadilhos, e a sua atitude provocatória em relação à academia, bem como em relação à esquerda liberal e multicultural, levaram a colar-lhe o rótulo de iconoclasta radical. “This very attitude characterizes perfectly the climate of critical reaction to the philosopher Slavoj Zizek: his critics are critical in a responsible manner, offering up a quibble or dispute over particular emphases, while lacking the character of an event; i.e., failing to challenge his system as a whole” (POUND,

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UMA APRESENTAÇÃO CRÍTICA DE SLAVOJ ZIZEK (I)

Slavoj Zizek, nascido em 1949, é conhecido pelo uso que faz de Jacques Lacan, através do qual descobre Hegel, na sua abordagem do fenómeno cultural e social, exemplificando com o cinema e a literatura, e os fenómenos culturais mais pertinentes da contemporaneidade.

Por Francisco José de Jesus Oliveira

1. Slavoj Zizek, nascido em 1949, é conhecido pelo uso que faz de Jacques Lacan, através do qual descobre Hegel, na sua abordagem do fenómeno cultural e social, exemplificando com o cinema e a literatura, e os fenómenos culturais mais pertinentes da contemporaneidade. A erudição de Zizek não caminha apenas sobre as pedras da filosofia, da psicanálise e da cultura erudita, mas também, e com idêntica desenvoltura, sobre o universo fabular para consumo de massas criado pela indústria do entretenimento, sobretudo Hollywood. Explorando os múltiplos pontos de contacto entre a moderna filosofia alemã e a psicanálise, que de forma muito particular e própria a realizou o ousado francês Jacques Lacan, intuindo que os legados de Hegel e de Freud se voltavam para questões chave do conhecimento, como os papéis do sujeito e da consciência. Lévi-Strauss dirá que a filosofia alemã retivera a noção de consciência humana como tendência para mentir a si mesma. Uma concepção que remonta a Hegel, passa por Marx e ecoa no pensamento pós-moderno, e ao qual dificilmente Jacques Lacan recusaria apoio. Zizek revisita Hegel e Freud pelos óculos de Jacques Lacan. “This alone should suggest that Zizek’s interest is not simply an expression of Slovenian-Catholic nationalism, but a rich play of intellectual heritages, politically, psychoanalytically, and theologically diverse” (POUND, 2008, 5).

O prazer quase infantil em transgredir ostensivamente as regras da escrita académica, com o uso de anedotas e trocadilhos, e a sua atitude provocatória em relação à academia, bem como em relação à esquerda liberal e multicultural, levaram a colar-lhe o rótulo de iconoclasta radical. “This very attitude characterizes perfectly the climate of critical reaction to the philosopher Slavoj Zizek: his critics are critical in a responsible manner, offering up a quibble or dispute over particular emphases, while lacking the character of an event; i.e., failing to challenge his system as a whole” (POUND, 2008, 1). Zizek parece querer incorporar um aliado à sua filosofia, o cristianismo. Procurando mobilizar o potencial subversivo do cristianismo, mais propriamente o seu momento de negatividade radical, na luta contra as fantasias que sustêm a nossa realidade social, injusta e desigual, e, mais concretamente, contra as novas espiritualidades pós-modernas (os diversos budismos e taoísmos, bem como o New Age). Estas são como um suplemento de espiritualidade necessária para prosseguirem sem adversidades as suas vivências quotidianas, mantendo a ordem existente. Geram a ilusão, cumprindo o papel ideológico essencial, de convencerem as pessoas que, apesar de viverem imersas no mundo neo-liberal capitalista, onde tudo se reduz à condição de mercadoria, tem nelas um reduto do ser imune à mercantilização do capitalismo neo-liberal. Um fantasia que sustenta o funcionamento do capitalismo. Assim, o “primeiro facto a registar quanto às questões religiosas é o da referência à ‘espiritualidade profunda’, estar de novo na berra: o materialismo puro e duro está fora de moda, e somos convidados a mostrar-nos abertos a uma Alteridade radical, para lá do Deus ontoteológico. (…) Hoje, lidamos com uma forma de crença ‘suspensa’, uma crença que só existe como algo que não é completamente reconhecido (publicamente), um segredo pessoal e obsceno” (ZIZEK, 2006, 10).

A sua condição de filósofo pop é desmentida pela sua formação nas proximidades da psicanálise lacaniana, abeirando-se do mundo francês e de uma leitura estrutural da sociedade, sendo em Hegel

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que se encontra os elementos centrais da sua visão filosófica. O seu caldo cultural é o marxismo, persistindo na crítica contundente e na desconstrução das alternativas postas hodiernamente em campo pela política progressista estabelecida. Procura, no evento plenamente revolucionário, a chave para o impasse da própria sociedade capitalista, liberal e democrática, cuja forma é a reprodutora das estruturas da exploração do presente. Assim, é na volta a Lenine que descobre os meios de retomar a plena caminhada política contemporânea. Caminhos políticos revolucionários concretos. A ideologia dominante pretende convencer-nos da impossibilidade da mudança radical, da impossibilidade de abolir o capitalismo e de acreditar numa democracia que não se reduza a um jogo parlamentar corrupto e que permita a visualização do antagonismo que atravessa as sociedades hodiernas. À maneira de Lacan o impossível acontece. Este encontro entre a tradição do marxismo e as visões existenciais e radicais é bastante insólito, pois não assenta num programa de sistematização interna, mas numa necessidade processual de combate, tendo em linha de conta que só o marxismo foi a base de sementes de um futuro diferente. O socialismo é o único mote radical que olha ao futuro e como meio de transformação dos impasses do presente. Um marxista à moda antiga, que vê no cinema um campo de batalha ideológico e a tolerância ideológica do multiculturalismo um racismo invertido, pois o que é preciso são códigos de conduta e opor-se à chantagem liberal de que nos devíamos todos entender. Pretende empreender uma reabilitação do materialismo dialéctico, pois a crise do marxismo não é só o resultado das derrotas sociopolíticas, mas, sobretudo, o declínio do materialismo dialéctico como base filosófica. O marxismo e a psicanálise são, para ele, teorias de luta, uma tensão. Mas “para se tornar um verdadeiro adepto do materialismo dialéctico, devemos passar pela experiência do cristianismo” (ZIZEK, 2006, 10-11).

A tolerância liberal, o politicamente correcto, não passa de uma atitude que visa reprimir a agressividade da paixão religiosa, a qual permanece ardendo sob a superfície e, não tendo como ser extravasada, vai-se tornando mais e mais intensa. A proibição de abraçar uma crença de forma apaixonada (ex. o Islão), sem qualquer distanciamento em relação à mesma, explica a emergência da cultura enquanto categoria vida-mundo central. O arquétipo da crença moderna é uma crença objectividade a que se chama hodiernamente cultura. As pessoas podem muito bem ter a sua religião, desde que esta não se configure como um modo de vida substancial, desde que seja entendida como uma cultura particular ou simplesmente um fenómeno de estilo de vida: o que a legitima não é aquilo que lhe é imanente, a afirmação de uma verdade, mas o facto de nos permitir expressar nossos sentimentos e atitudes mais íntimos. Hoje não acreditamos a valer, apenas seguimos alguns rituais e costumes religiosos por respeito ao estilo de vida da comunidade a que pertencemos; a crença negada/deslocada é uma característica dos nossos tempos. “O modo dominante da crença repudiada/deslocada, típica da nossa época, parece ser, efectivamente: ‘Não acredito verdadeiramente nisso, mas simplesmente isso faz parte da minha cultura” (ZIZEK, 2006, 12). O repúdio dos fundamentalistas, segundo Zizek, sucede nas nossas sociedades ocidentais por eles levarem a religião a sério, a valer, e chamamos cultura àquilo que fazemos sem acreditar realmente “a sério”.

A paixão enquanto tal é politicamente incorrecta e as proibições estão meramente deslocadas, apesar de parecer que tudo é permitido. O multiculturalismo tolerante-liberal retira toda a diversidade do outro para que possamos experimentá-lo, acarretando uma religião e crença descafeinada que não ofende ninguém e com a qual não precisamos de estar totalmente comprometidos: “Não admira que exista uma homologia entre os ovos de Kinder, o ‘vazio’ de hoje, e a abundância de mercadorias que nos propõem como produto privado da sua substância: café sem cafeína, sacarina sem açúcar, cerveja sem álcool, etc. – em ambos os casos encontramos uma superfície privada do seu núcleo” (ZIZEK, 2006, 185). Ao último homem hedonista, o sujeito burguês, tudo é permitido, pode desfrutar de tudo, desde que as coisas sejam desprovidas da sua substância, daquilo que as torna tão perigosas, levando, ao fim e ao cabo, a uma vida regulada. O hedonismo actual conjuga prazer e temperança (cf. ZIZEK, 2006, 51/122), não como medida certa, mas uma espécie pseudo-hegeliana de coincidência imediata dos opostos. A regra não é - “beba café com moderação” -, mas - “beba todo o café que quiser, pois é descafeinado” (assim o sexo seguro, o ópio sem ópio, a guerra sem guerra…): “Tudo é permitido, podes fruir de tudo, mas sem a substância que torna as coisas perigosas – é

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também a revolução do ‘Último Homem’: a ‘revolução sem revolução’” (ZIZEK, 2006, 121). A falta de referências dogmáticas, a falta de um mestre inquestionável a quem enfrentar, a doce indiferença com que a cultura pós-moderna acolhe toda contestação, fazem do livre pensamento uma actividade intelectual ociosa e agradável, mas inútil. Pode-se tornar condição, não da nossa liberdade, mas da nossa servidão. Para Zizek, Chesterton (cf. CHESTERTON, 1974), mais do que Kant, facilita-lhe a verdadeira compreensão de tal fenómeno, pois o envolvimento subjectivo é o modo mais eficaz de fazer com que as pessoas colaborem com a sua dominação. Faz, claro, uma crítica à noção de liberdade privada, como reclusão à esfera da intimidade, toda ela preenchida por fórmulas de autenticidade privada propagadas pela indústria cultural, cuja expressão mais recente são os reality shows televisivos. Só uma nova colectividade rompe com este estado de coisas.

Por outro lado, em vez de tentar resgatar o núcleo estritamente ético de uma religião, salvando-o das instrumentalizações políticas, o que é preciso é lançar uma crítica implacável a esse mesmo núcleo (de todas as religiões). De forma paradoxal, hodiernamente, as religiões (desde a espiritualidade New Age ao espiritualismo hedonista e barato do Dalai Lama) parecem mais do que prontas a servir a busca pós-moderna do prazer, logo, segundo Zizek, apenas um materialismo consequente (isto é, dialéctico) é capaz de sustentar e propugnar o ascetismo de uma posição verdadeiramente ética. Assim, na época em que predominam as espiritualidades exóticas e ecléticas, não deixa de ser paradoxal que insista no carácter subversivo do cristianismo e das suas tendências perversas: “o perverso núcleo escondido do cristianismo: se é proibido provar os frutos da árvore do conhecimento no Paraíso, então por que razão Deus colocou aí uma árvore, logo no início? Isso não faria parte de uma estratégia perversa para começar por seduzir Adão e Eva, impelindo-os para a queda, a fim de os salvar? Por outras palavras, a concepção de Paulo, segundo a qual a interdição pela lei origina o pecado, não deveria também ser aplicada a essa interdição, a primeira de todas? (…) Não será Judas, por conseguinte, o supremo herói do Novo Testamento, aquele que está disposto a perder a sua alma e a ser eternamente danado para que o plano divino possa realizar-se? (…) Somos tentados a afirmar que todo o destino do cristianismo, o seu núcleo, depende da possibilidade de interpretar estes actos de um modo não perverso” (ZIZEK, 2006, 22-23). A ideia, partilhada por Freud, é que o cristianismo é uma enorme máquina repressiva, de modo particular no tocante à sexualidade. O paradoxo é que “quando a ideologia dominante nos manda gozar o sexo, não alimentar nenhum sentimento de culpa em relação a ele, pois não estamos limitados por nenhumas proibições cuja violação nos faria sentir culpados, há um preço a pagar por essa ausência de culpabilidade: a angústia” (ZIZEK, 2006, 70). E se o cristianismo, com os seus interditos, fosse não apenas um modo de nos poupar essa angústia, como, ainda por cima, constituísse um verdadeiro aparelho de gozo? “No funcionamento perverso do cristianismo, a religião é efectivamente evocada como um baluarte eficaz que nos permite gozar a vida impunemente” (ZIZEK, 2006, 62). Citando Chesterton, “ ‘o cristianismo é o único quadro possível para a liberdade pagã’, o que significa precisamente que esse quadro – o quadro das proibições – é o único no interior do qual podemos fruir dos prazeres pagãos: o sentimento de culpa é uma falsificação que nos permite entregar-nos a esses prazeres. Quando este quadro desaparece, surge a angústia” (ZIZEK, 2006, 71).

O cristianismo é a única religião onde Deus pede aos seus seguidores que o traiam para cumprir a sua missão [“a traição fazia parte do desígnio divino e, nesse intuito, Cristo ordenou a Judas que o traísse para realizar esse desígnio, o que significa que a traição perpetrada por Judas é o sacrifício supremo, o supremo acto de fidelidade” (ZIZEK, 2006,24)] e Deus morre não para os homens mas para si mesmo. O ponto principal do cristianismo é o ataque ao núcleo religioso duro que sobrevive mesmo no humanismo e até no estalinismo (cf. ZIZEK, 2006, 132). Só é possível redimir esse núcleo do cristianismo pelo gesto de abandono do escudo de segurança da instituição/organização eclesial. Cristo é o supremo louco divino, privado de qualquer majestade e dignidade. “Não nos fará isto pensar num rei-mendigo posterior, o próprio Cristo, que, pela sua morte como um ser nulo, um excluído abandonado pelos seus próprios discípulos, funda uma nova comunidade de crentes?” (ZIZEK, 2008, 118). Só fazemos um com Deus a partir do momento em que Deus deixou de fazer um consigo próprio, se auto-abandonou, interiorizou a distância radical que nos separa d’Ele.

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A verdadeira liberdade não é um estado de harmonia e equilíbrio, mas um acto de violência que perturba esse mesmo equilíbrio. O salmo 22 não é a afirmação da distância entre Deus e o humano, mas uma cisão interna ao próprio Deus. “Deus abandonado por si mesmo. Assim não basta alcançarmos a identidade de acontecimento de Deus e do homem no abismo da Divindade; deste ponto zero, temos de regressar a Cristo, ou seja, o abismo da Divindade tinha de fazer nascer Cristo na sua humanidade singular” (ZIZEK, 2008, 28). Se o cristianismo é a religião da Revelação é porque nele tudo é revelado, mas o que é revelado no cristianismo não é só todo o conteúdo, mais precisamente o facto de não haver nada, nenhum segredo a revelar para lá do conteúdo: o que Deus revela não é o seu poder escondido, mas simplesmente a sua impotência como tal - “Cristo como Deus fraco, um Deus reduzido a observar compadecido a miséria humana, incapaz de intervir e de socorrer (devemos simplesmente ter o cuidado de distinguir rigorosamente esta ideia da noção de ‘pensamento fraco’). (…) Job permaneceu silencioso não por ser esmagado pela presença avassaladora de Deus, nem por querer continuar a marcar uma resistência mantida, ou seja, o facto de Deus evitar responder à pergunta de Job, mas porque este, assumindo uma atitude de solidariedade silenciosa, se ter dado conta da impotência divina. Deus não é justo nem injusto, mas simplesmente impotente. (… mas) regressemos agora a Cristo: não será o ‘Pai, porque me abandonaste?’ de Cristo a versão cristã do ‘Pai, não vês que estou a arder?’ de Freud? E não se dirigirá esta interpelação precisamente ao Pai-Deus que manobra os cordelinhos por trás do palco e justifica teleologicamente (garante o sentido) de todas as nossas vicissitudes terrenas? Assumindo por sua conta (não os pecados, mas) o sofrimento de humanidade, confronta o Pai com a falta de sentido de tudo” (ZIZEK, 2008, 49-51). “For Zizek the Christian God is a God who risks madness in creation and self-dereliction on the cross. In contrast to the Platonic legacy of Greek philosophy, which tended to privilege the eternal realm of ideas at the expense of the material universe – a Gnostic heresy – Christianity privileges precisely these moments of material ‘imperfection’: Christianity makes incompleteness higher than completion (OB, 147)” (POUND, 2008, 32).

Segundo o nosso autor o real é um termo enigmático, que não se deve equiparar com a realidade, pois esta está construída simbolicamente, e o real, como núcleo duro, é algo traumático que não se pode simbolizar, pois não tem existência positiva. Só existe como abstracto. “O Real lacaniano não é outro Centro, um ponto central mais ‘profundo’, mais ‘verdadeiro’, ou um ‘buraco negro’ em torno do qual flutuam formações simbólicas; é antes o obstáculo devido ao qual cada Centro é sempre deslocado, falhado. (…): o Real não é o abismo da Coisa que escapa para sempre à nossa apreensão e que faz com que toda a simbolização do Real seja parcial e inapropriada; é antes aquele obstáculo invisível, aquele ecrã deformador que ‘falsifica’ sempre o nosso acesso à realidade exterior, (…), devido ao qual toda a simbolização falha o seu objecto” (ZIZEK, 2006, 84). A realidade pode ser desmascarada como uma ficção, de sobremaneira em aspectos como o antagonismo social, a vida e a morte, bem como a sexualidade. Porém, estes aspectos se enfrentados podem ser simbolizados, pois o real não é nenhuma espécie de realidade atrás da realidade, mas o vazio deixado pela própria realidade incompleta e inconsistente: o espectro do fantasma, que distorce a nossa percepção da realidade. As três modalidades do real: o real simbólico, onde o significante é reduzido a uma fórmula sem sentido (por exemplo, a física quântica); o real real, coisa horrível, que transmite o sentido do terror (como os filmes de terror); e o real imaginário, algo insondável que permeia as coisas como um fio do sublime (exemplo do filme de Full Monty). À maneira da psicanálise que proclama que a realidade não deve ser vista como uma narrativa, mas como o sujeito o há-de reconhecer, suportar e ficcionar o núcleo duro do real dentro da sua própria ficção.

O simbólico inaugura-se com a aquisição da linguagem, mutuamente relacional mas permanecendo, sempre, uma certa distância no que diz respeito ao real (excluindo a paranóia). O imaginário simbólico, como os símbolos de Jung, e o simbólico simbólico, o falar e a linguagem como sentido em si. O “visor do monitor” como forma de comunicação no ciberespaço, um abismo entre quem seja que fala e a posição de falar em si. Eu nunca de facto coincido exactamente com o significante (não me invento a mim mesmo), mas a minha existência virtual foi, em certo sentido, confundida com o surgimento do ciberespaço, gerando uma certa insegurança. As redes simbólicas, que circulam à volta

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dos núcleos duros do real, são a nossa realidade social. O imaginário encontra-se situado ao nível da relação do sujeito consigo mesmo, como o olhar do Outro na etapa do espelho, e na falta em reconhecimento ilusório, leva a concluir, à maneira de Lacan, Je suis un autre. Esta é a fantasia fundamental que é inacessível à nossa experiência psíquica e se eleva do espectro fantasmático que se encontra nos objectos de desejo. O imaginário nunca pode ser agarrado, já que todo discurso sobre ele sempre estará localizado no simbólico [imaginário real (o fantasma que assume o lugar do real), imaginário imaginário (a imagem em si que serve como isco) e o simbólico imaginário (os arquétipos de Jung e o pensamento New Age)].

“Em termos religiosos, esta passagem da (Coisa) Una Real-Impossível, refractada/reflectida na multitude das suas aparências, para a Dualidade é a própria passagem do judaísmo ao cristianismo: o Deus judeu é a Coisa Real do Além, ao passo que a dimensão divina de Cristo não passa de um pequeno trejeito, um sombra imperceptível, que o diferencia dos outros humanos (comuns). Cristo não é ‘sublime’ no sentido de um ‘objecto elevado à dignidade de uma Coisa’, não é um representante do Deus-Coisa impossível; é antes a ‘própria coisa’ ou, mais precisamente, a ‘própria coisa’ não é senão a ruptura/distância que faz com que Cristo não seja plenamente humano” (ZIZEK, 2006, 99). É mais que homem, é um universal singular. Uma diferença minimal entre homem e super-homem.

(Continua no próximo número)

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ZIZEK, HEGEL E LACAN*

Uma Apresentação Crítica de Slavoj Zizek (II)

Ao aproximar Hegel e Lacan, elabora uma ontologia e uma teoria do sujeito fundada na ideia de negatividade: o real é impossível de ser totalizado ou plenamente simbolizado, e o sujeito é constituído por uma falta estrutural, que decorre da sua inscrição na linguagem.

Por Francisco José de Jesus Oliveira

2. Alguns descrevem a filosofia de Hegel como um monismo absoluto, mostrando-o como um herdeiro de Espinosa, e não deixa de ser verdade que, na esteira deste, Hegel crítica todas as metafísicas da transcendência que pressupõem a possibilidade de um absoluto fora ou antes da reflexão. “Contudo, Hegel, reconhece a necessidade da religião apesar de ela fundar-se no conceito de um Deus que não é deste mundo” (GABRIEL, 2008, 1209), insistindo que tende a exprimir um conteúdo imanente que é o próprio conteúdo do pensamento metafísico: “não de Deus para a Divindade, mas da Divindade para Deus, quer dizer, o modo como, a partir do abismo da Divindade, emerge Deus enquanto Pessoa, como nasce nela um Verbo” (ZIZEK, 2008, 29). Assim, para Hegel, a história da religião desagua na religião absoluta “que se transforma num monismo do espírito na esteira do idealismo alemão” (GABRIEL, 2008, 1209). Nesta religião absoluta destaca dois momentos principais: a morte de Deus e a Trindade. A morte de Deus é a morte da transcendência, do “Deus do Além”, característica da modernidade que se define pela perda do mundo transcendente e o surgir de uma época caracterizada pelo monismo. Encontramos “um deus que abandona a sua posição transcendente e se precipita na sua própria criação, comprometendo-se com ela até à morte, o que faz com que nós, seres humanos, fiquemos sem qualquer Poder superior que olhe por nós, sem outra coisa que não seja o terrível fardo da liberdade e da responsabilidade pelo destino da criação divina e, portanto, do próprio deus” (ZIZEK, 2008, 8). A imanência de Deus mostra-se como manifestação pura/reflexiva que apenas expressa a actividade de revelar a totalidade dos conteúdos ao pensamento que “não transcende os limites da finitude, mas, sim, que corrobora estes limites ao conceber Deus como o espírito da comunidade. Deus não existe fora deste espírito o que, entretanto, não implica que Deus não exista. Deus significa a dimensão da comunidade na qual se realiza o processo de uma revelação absoluta, revelação essa que mostra que o ser resulta da actividade do pensamento. Esta actividade manifesta-se na linguagem da comunidade. (…) A finitude do espírito absoluto consiste no facto da sua expressão, isto é da sua manifestação se realizar no meio envolvente da linguagem da comunidade. Por isso, Hegel não reclama uma ‘intuição intelectual’ do absoluto sob o nome do ‘espírito absoluto’, mas tenta explicar, na maneira bem conhecida da Fenomenologia do Espírito, a totalidade das definições fracassadas do absoluto pela consciência. Assim, a consciência não realiza a não-existência de uma substância transcendente (do ‘em si’), ela não se apercebe do seu papel na constituição do absoluto ‘para si’. Não há, pois, nada em si que não seja em si para nós. Para Hegel, todas as variações do tema ‘em si’ de Platão a Kant, isto é todas as ‘definições do absoluto’ falham precisamente por serem definições de um processo de pensamento no qual se revela a manifestação da manifestação” (GABRIEL, 2008, 1209).

Assim, diferentemente de Espinosa, o conceito de Deus é apresentado como princípio e fundamento de todos os seres limitados, assinalando que todas as unidades metafísicas só podem ser pressuposições do pensamento metafísico [“Deus não só não é a ‘unidade dos contrários’ no sentido (pagão) de manter o equilíbrio entre princípios cósmicos opostos, deslocando o peso de um dos pólos, quando este se torna demasiado forte, no sentido oposto; Deus não só não é a ‘unidade dos contrários’ no sentido de um dos pólos (o Uno bom) integrar o seu oposto, usando o mal, o conflito, a diferença em geral como meios de realçar a harmonia e a riqueza do Todo; e também não basta dizermos que é a ‘unidade dos contrários’ no sentido de estar ele próprio ‘dilacerado’ entre forças opostas. Hegel está a

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falar de qualquer coisa de muito mais radical: a ‘unidade dos contrários’ significa que Deus, num curto-circuito auto-reflexivo, Deus se inclui na sua própria criação, que, como a proverbial serpente, de certo modo se devora/come a si mesmo pela sua própria cauda” (ZIZEK, 2008, 41-42]. Se Espinosa concebe Deus como substância, unidade real dos atributos da extensão e do pensamento, para Hegel não há uma unidade substancial, mas uma série de sistemas metafísicos que definem o absoluto de maneiras diferentes. A sua proposta é “deduzir a totalidade das pressuposições metafísicas em vez de descobrir uma unidade substancial, um absoluto determinado” (GABRIEL, 2008, 1210). É uma reconstrução da história do Pensamento Absoluto, ou, como mais tarde Heidegger, do Ser, e não a redução do absoluto a uma das suas manifestações. Aqui surge a ideia, preferencial, de sujeito em vez do conceito de substância, que é substituída por aquela. Em Espinosa Deus é o infinito e nos seus pressupostos conceptuais a substância exclui todas as negações, sendo, então, a substância absoluta uma positividade pura. Mas “como uma positividade pura pode ser determinada como tal sem implicar negações. Segundo Hegel, a negação de todas as negações, isto é o próprio conceito de substância, já implica uma negação de segunda ordem e é, portanto incoerente” (GABRIEL, 2008, 1210). Uma positividade pura é inconcebível logo é idêntico a nada (cf. ZIZEK, 2008, 71-72). O absoluto tem que englobar, precisa da negação em si mesmo por não ser nada. É a atitude/estrutura metafísica necessária para se tornar Deus, a que chama sujeito ou personalidade pura: “a subjectividade do absoluto consiste no facto de o absoluto ser pensado pelo pensamento finito” (GABRIEL, 2008, 1210). A religião cristã, no seu dogma da Ressurreição, é paradigmática disto mesmo – “Deus NÃO é uma pessoa, ainda que lhe possamos atribuir sentimentos e desejos. Não há liberdade nele, nem escolha, somente necessidade – Deus enquanto Criador faz o que tem de fazer. Portanto é Deus, e não a Divindade, que/quem é a substância impessoal. E Deus só alcança a Divindade, só a actualiza, no homem e através do homem” (ZIZEK, 2008, 22).

A leitura do sacrifício de Cristo (cf. ZIZEK, 2006, 126-130), a morte de Cristo, se é entendida como um gesto de sacrifício entre Deus e o homem, onde Deus sacrifica o que lhe é mais querido, o Seu filho, redimindo a humanidade, comprando os seus pecados, então em última instância há duas maneiras de explicar este acto: ou o próprio Deus demanda essa retaliação onde Cristo se sacrifica como o representante da humanidade para satisfazer a necessidade de retribuição a Deus, Seu pai, ou Deus não é omnipotente, mas é como um herói trágico grego, que traz consequências terríveis e inesperadas, sendo a única maneira para restabelecer o equilíbrio da justiça, sacrificando o que lhe é mais precioso (como o derradeiro Abraão). Este é, segundo Zizek, o problema fundamental da cristologia procurando evitar estas duas leituras que se impõem como óbvias. A questão que se deve por é – quem exigiu esse preço? A quem foi pago esse resgate? Ora se Cristo é oferecido em sacrifício ao próprio Deus, surge a questão - porque é exigido tal sacrifício? Era ainda um Deus cruel e ciumento que exige um preço tão alto para se reconciliar com a humanidade que o traiu? Mas se foi oferecido ao diabo temos um estranho espectáculo de Deus e o diabo como parceiros de uma troca. A tremenda força psicológica deste acto de Cristo, muitas vezes lida na armadilha legalista – uma satisfação – leva Karl Barth, como Abelardo, a apresentar que Deus se tornou homem e se sacrificou para estabelecer o exemplo derradeiro que evoca a simpatia e a conversão a Deus. Zizek não se deixa convencer pelo edificante efeito religioso-moral da morte de Cristo em nós, pecadores. Se Deus nos perdoasse directamente não nos transformaria em homens novos e melhores, somente a compaixão e o sentimento de gratidão e dívida tem o poder de nos transformar. Mas não é este um Deus estranho, que nos quer só impressionar? O que está em jogo não é só o Seu amor por nós, mas o Seu desejo narcisista de ser amado por nós. “A premissa subjacente de Hegel é que na Cruz não morre apenas a representação-encarnada terrena de Deus, mas o próprio Deus do Além: Cristo é o ‘mediador que desaparece’ entre o Deus-em-Si-mesmo transcendente e substancial e Deus enquanto comunidade espiritual virtual. Esta ‘passagem do sujeito para o predicado’ é evitada pela ortodoxia na qual Deus-Pai continua a ser quem move os cordéis, não se integrando efectivamente no processo” (ZIZEK, 2008, 13).

Em termos hegelianos, no silogismo cristão há duas premissas, Filho de Deus (divino) e filho do homem (humano), e para unir os dois pólos opostos, chegar à conclusão (a humanidade está totalmente unida com Deus no Espírito Santo), o mediador deve apagar-se. A morte de Cristo não é parte do ciclo

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eterno de encarnação e morte divinas, no qual Deus aparece e retira-se para si mesmo, no Seu além. O que morre na Cruz não é uma encarnação humana do Deus transcendente, mas o próprio Deus do Além. Através do sacrifício de Cristo, o próprio Deus não é mais Além, mas passa para o Espírito Santo (a comunidade dos crentes). Deus não é senão o Espírito Santo da comunidade dos crentes. O sacrifício de Cristo é, num sentido radical, sem sentido, um gesto supérfluo, excessivo, injustificável, destinado a demonstrar o Seu amor por nós, a humanidade decaída. Cristo não paga pelos nossos pecados, mas, seguindo Paulo, é a própria lógica do pagamento, de certa forma, da cadeia de trocas que pode ser interrompida. “A verdadeira ‘síntese’ hegeliana é a síntese destas duas opções: as boas notícias são precisamente as más notícias – mas para o vermos, temos de considerar um agente diferente (do pássaro que morre para o outro que o substitui: do paciente canceroso para o feliz médico, de Cristo como indivíduo para a comunidade dos crentes). Por outras palavras, o pássaro morto continua morto; morre REALMENTE, como no caso de Cristo que renasceu enquanto OUTRA pessoa, como Espírito Santo. (…) a religião de um Deus que morre. (…) o cristianismo inclui em si a sua própria superação – quer dizer: a sua superação (negação) no quadro do ateísmo moderno está inscrita no seu próprio núcleo enquanto necessidade interna” (ZIZEK, 2008, 115-116).

A Ressurreição pressupõe a morte de Deus, que se manifesta modernamente através do niilismo, e é a subjectividade moderna, emancipada da ideia de um Deus transcendente, que o substituiu pela ideia de comunidade. A disjunção sujeito-objecto da modernidade apela, segundo Hegel, a uma reversão que tem lugar na reflexão que desvela as representações religiosas, dando a descobrir a sua racionalidade ou o metafísico da religião. O divórcio filosofia/teologia ou religião é muito bem diagnosticado na modernidade por Hegel, que procura desenvolver um novo conceito de religião. A filosofia e a religião/teologia têm o mesmo conteúdo, o espírito absoluto, mas distintas formas de expressão: a filosofia reflecte sobre a constituição da forma chamada absoluta, a religião representa o conteúdo absoluto na forma de imagens, metáforas… Sendo a filosofia essencialmente pensamento do pensamento, a auto-consciência do pensador, desenvolve-se na forma de auto-reflexão que assim mesmo descobre a sua própria actividade. No dogma da Trindade Hegel descobre o facto de um sujeito absoluto, referindo-se a si mesmo (cf. ZIZEK, 2006, 32-34). Se por Deus se entende um espírito transcendente, que transcende o mundo e existente independentemente do pensamento finito, este não se identifica com a estrutura de reflexão. O espírito absoluto, Deus, apenas designa a dimensão da reconciliação do espírito finito com a totalidade. Deus é a unidade activa, criadora de sujeito e objecto, origem da disjunção.

O conceito, espaço lógico, torna-se ideia absoluta quando percebemos que nada pode haver que fique totalmente indeterminado, pois até o indeterminado é determinado como indeterminado. Tudo o que existe faz parte do conceito, da verdade, que se abre ao entendimento porque este ocorre no seio da própria totalidade. Ao contrário de Kant, e da epistemologia moderna, não crê que o sujeito se opõe ao mundo, mas a disjunção deve-se a uma separação interna da própria totalidade, que apelida de juízo (separação originária). “A ênfase dessa crítica hegeliana refere-se a algo totalmente diverso do que aborda a crítica kantiana com sua exibição do papel constitutivo da subjetividade transcendental. Em Kant, o sujeito dá a forma universal a um conteúdo substancial de proveniência transcendente (a ‘coisa em si’); ficamos, portanto, no contexto da oposição entre o sujeito (a rede transcendental das formas possíveis da experiência) e a substância (a ‘coisa em si’ transcendente), ao passo que, para Hegel, trata-se justamente de captar a substância como sujeito. O conhecimento não é uma incursão ao conteúdo substantivo, que em si seria indiferente ao processo do conhecimento, mas antes, o ato de conhecimento subjetivo está antecipadamente incluído em seu ‘objeto’ substancial, o caminho para a verdade faz parte da própria verdade” (ZIZEK, 1991, 31). É o espírito que torna possível a constituição do mundo no contexto de uma comunidade linguística. Utiliza “o termo ‘espírito’ em duplo sentido: tanto para referir-se ao significado de Deus em geral, quanto para expressar o que há de específico na ‘terceira’ pessoa da Trindade. Isto é ambivalente, pois, se por um lado dá motivo para pensar que tudo na Trindade fica absorvido pela noção de espírito comum às três pessoas, também pode tanto ser interpretado como a noção de Trindade sendo essencial a Deus, o que só é possível conceber sendo Deus unitrino, quanto sendo a pessoa do Espírito aquela em que o conceito de Deus culmina e aquela que, por este motivo, faz que Deus só possa ser pensado e concebido como espírito.

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(…) O que o Espírito expressa rigorosamente não é, pois, senão a unidade do pensar e do pensado, do saber e do sabido, do conhecer e do conhecido, do Pai e do Filho. O Espírito não teria, por conseguinte, em sentido estrito, dois significados: o correspondente à terceira pessoa é o correspondente à própria essência de Deus, porém ficaria circunscrito a este segundo. Com outras palavras, manter-se-ia a afirmação de que Deus é essencialmente unitrino, mas unicamente do ponto de vista de que o Espírito representa a unidade dos momentos de universalidade e particularidade” (GÓMEZ, 1998, 393). O absoluto não é nada mais do que um processo de manifestação, sendo a religião uma das formas diversas de expressão do absoluto, que são manifestações da estrutura do ser enquanto tal. O que se manifesta, manifesta-se a alguém, diz-se a um outro que é a comunidade. “Em última análise, Deus reduz-se à manifestação da totalidade na comunidade dos fiéis” (GABRIEL, 2008, 1212), que sem o saberem só celebram a manifestação da manifestação e não a manifestação de algo transcendente. Logo, Deus não é uma substância que exista independentemente da comunidade, mas só como uma representação da comunidade.

Mas, e ao contrário de Feuerbach, Deus é projecção de si mesmo, o sujeito absoluto, que se constitui “através da consciência humana que se auto-posiciona” (GABRIEL, 2008, 1212): a ideia absoluta. O espírito absoluto, que se realiza na comunidade dos fiéis, Hegel identifica com o Espírito Santo: Deus é Espírito e na verdade o Espírito da sua comunidade. “Este espaço da universalidade singular é o que, dentro do cristianismo, aparece com ‘Espírito Santo’, o espaço de um colectivo de crentes subtraídos do campo das comunidades orgânicas, dos mundos da vida particulares (‘nem gregos, nem judeus’). Por conseguinte, (…) o colectivo paulino dos crentes é um protomodelo de ‘sociedade civil mundial’ kantiana” (ZIZEK, 2008, 125). Deus manifesta-se na consciência finita, manifestando que não há um conteúdo transcendente para manifestar, mas a manifestação enquanto tal, que na esteira da morte de Cristo desagua na afirmação de que Deus se torna homem. Mas, mesmo quando “a comunidade não se apercebe do seu próprio fundamento que não a transcende, mas que se incarna nas decisões desta ao aceitar um leque de tradições como fundamento ético sobre o qual se baseia uma forma da vida. Ao deificar-se a comunidade religiosa, na realidade, reifica-se” (GABRIEL, 2008, 1214). Nesta crítica da religião não esquece Hegel a mediação que promove entre os membros da comunidade e o universal, no qual os membros da comunidade determinam-se numa estrutura diferencial do conceito. Por outro lado, é uma fase necessária no processo da destruição da metafísica da substância. “A ideia de Deus enquanto garantia transcendente do sentido deste mundo tem que morrer antes que o espírito da comunidade se possa aperceber disso” (GABRIEL, 2008, 1214).

3. O universo categorial trazido pela psicanálise de Sigmund Freud e Jacques Lacan carrega consigo o estranho efeito de produzir um desconforto conceptual no campo do discurso filosófico, uma vez que o saber produzido pela psicanálise implica a impossibilidade da produção de um saber sobre a totalidade, por compreender o sujeito-humano como um ser produzido por uma falta, por uma fractura. Lacan crítica a psicanálise do seu tempo por ter esquecido a ordem simbólica e ter reduzido tudo ao registo do imaginário, ao terreno do auto-evidente. Isto representa para Lacan uma traição a um dos insigths mais básicos de Freud. O gesto lacaniano produz e introduz uma nova concepção de sujeito, de cultura, de sociedade e de história. Por outro lado, a sua linguagem hermética, fecundada em vários registos científicos, com um inusitado recurso a termos novos, torna a sua leitura difícil e árdua a tradução. “Lacan pretendeu demonstrar que Freud não foi herdeiro da filosofia, nem da psicologia clássica, nem mesmo da biologia, mas sim que é ele o inaugurador de um domínio teórico totalmente novo que revolveu toda a geografia das antigas ‘ciências do homem’: o domínio do inconsciente” (GANQUELIN, 1987, 329). O paradoxo é que Lacan reintroduziu na psicanálise o pensamento filosófico alemão do qual Freud se tinha voluntariamente afastado.

“Recusa uma visão simplista do psiquismo, ou a concepção do inconsciente como zona profunda – qual secreto refúgio de recuperação do eu; categorias linguísticas e filosóficas, gráficos e figuras topológicas – tudo se ordena para preservar o valor de enigma que é próprio do inconsciente” (ROCHA, 1999, 218). É uma nova leitura de Freud, de cunho estruturalista, mostrando que Freud fundou uma ciência nova e com um novo objectivo: o inconsciente. Afirmando que a linguagem é a condição do inconsciente. O pensamento lacaniano visa uma interpretação linguística do simbolismo

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enquanto condição da possibilidade de conhecer, renunciando à visão naturalista do mundo e do pensamento do mundo, operando uma reviravolta antropológica que obriga o homem a prestar atenção às condições de todo o pensamento e de todo o conteúdo mental que ele possui, portanto, a levar em conta a especificidade da linguagem filosófica e as condições particulares que permitem filosofar. Não identifica linguagem e inconsciente, mas estabelece que o domínio do inconsciente obedece a leis formais, análogas às que o linguista elabora sobre significantes puramente linguísticos. É na linguagem e pela linguagem que a unidade do sujeito se vai estabilizar, pois esta é mediadora entre duas estruturas, onde o eu do discurso e o Outro do sujeito (inconsciente) estão separados mas não incomunicáveis. “Tandis que le langage informe, la parole évoque” (KREMER-MARIETTI, 1993, 1627).

A psicanálise não é nem pretende ser uma ciência nomotética, mas um tipo de ciência hermenêutica, um modelo de interpretação, tal como sucede em história ou em crítica literária. Esta posição, adoptada por Lacan, é feita por uma reinterpretação de Freud e um regresso às origens. “A tese de Lacan é que o inconsciente tem uma estrutura duma linguagem, com as suas regras, e onde predominam as metáforas e as metonímias. A análise consiste em descodificar essa linguagem, exteriorizada através dos sintomas, tal como um crítico literário lê um texto a fim de captar o seu significado, que pode inclusivamente passar despercebido ao autor que o criou” (JESUINO, 1994, 63). O ponto de ruptura entre Lacan e a linguística dá-se na metamorfose lacaniana imposta à noção de significante, implicando a sua consideração uma autonomia em relação ao significado. Transforma a linguística, fazendo da língua lacaniana uma “alíngua, que distinguir-se-á da língua enquanto abordada pela gramática” (SANTUÁRIO, 2003, 284). O significante é aquilo que representa o sujeito por um outro significante.

O inconsciente não é um cúmulo de instintos e impulsos biológicos, mas, sobretudo, um sistema de significantes linguísticos. A linguagem inconsciente é um discurso formado por uma teia de significantes, que, em virtude das leis de combinação e substituição, elabora um texto fragmentado e descontínuo, cujo sentido se decifra na sua dimensão sincrónica. A história do sujeito é uma história radicalmente negativa, de separações sucessivas onde a falta, ausência, moverá todo o seu universo, que é, essencialmente, o Universo Simbólico, que é o próprio inconsciente, o “discurso do outro” ou ainda a cadeia significante que é constituinte do sujeito. O complexo de Édipo representa o momento mesmo da introdução do significante no sujeito, determinando o acesso ao simbolismo cultural e o acesso à linguagem. O seu grau de elaboração é fundamental à normalização sexual, pois introduz o funcionamento do significante como tal na conquista do dito homem ou mulher. Representa o momento da passagem do imaginário ao simbólico, como uma estrutura na qual o sujeito tem de se introduzir. A instauração da ordem simbólica opera-se na passagem da existência meramente natural para a cultural. A fase pré-edípica corresponde à ordem imaginária e a fase edípica, na sua resolução, concerne já a linguagem simbólica, e como Lévi-Strauss, sobrepõe à ordem do real e à ordem do imaginário a ordem do simbólico.

O eu constrói-se à imagem do semelhante e primeiramente da imagem que me é devolvida pelo espelho. O investimento libidinal desta forma primordial, “boa”, supre a carência do meu ser e torna-se matriz das futuras identificações, instalando-se o desconhecimento na minha intimidade e, ao querer forçá-la, irei encontrar um Outro. Uma tensão ciumenta com esse intruso que, por seu desejo, constitui os seus objectos e ao mesmo tempo esconde-os em mim mesmo, pelo próprio movimento pelo qual ele me esconde de mim próprio. É como Outro que sou levado a conhecer o mundo: o olhar do Outro devolve a imagem do que eu sou. O meu desejo é o desejo do Outro. Não sei nada do meu desejo, a não ser o que o Outro me revela. De modo que o objecto do meu desejo é o objecto do desejo do Outro. O desejo é uma sequela dessa constituição do eu no Outro. Para Lacan, “o estatuto do desejo é intrinsecamente ético: ‘Não cedas sobre o teu desejo’ equivale finalmente a ‘cumpre o teu dever’. E é isso que a versão perversa do cristianismo nos incita a fazer: traí o vosso desejo, cedei no essencial, naquilo que conta verdadeiramente, e podereis ter todos os pequenos prazeres com que sonhais no fundo do coração!” (ZIZEK, 2006, 62). O inconsciente é o lugar onde se encontra a dívida, na medida em que substituímos um Outro que a contraiu por mim. É o discurso do Outro, na medida que o sujeito

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humano é efeito da linguagem, isto é, efeito de uma dívida constitutiva. O inconsciente é o lugar onde o desejo adquire voz, e é no reconhecimento de tal que o sujeito escapa à psicose. A linguagem é o pacto daquilo a que o sujeito renuncia, ou talvez como dizia Heraclito, fragmento 199: “Dando ouvidos não a mim, mas ao Logos…”.

A ideia de uma ordem simbólica que estrutura a realidade inter-humana foi salientada nas ciências sociais designadamente por Claude Lévi-Strauss a partir do modelo da linguística estrutural saída do ensino de F. de Saussure. A tese do Curso de Linguística Geral, de 1995, é que o significante linguístico tomado isoladamente não possui qualquer ligação interna com o significado; não remete para uma significação senão por estar integrado num sistema significante caracterizado por oposições diferenciais. Segundo Lacan, a relação intersubjectiva, enquanto marcada pelos efeitos da fase do espelho, é uma relação imaginária, dual, votada à tensão agressiva em que o ego é constituído como um Outro, e o Outro como alter ego. “O imaginário é composto por tudo o que é imagem, fantasmas, relação de ‘dualidade’ imediata de si a si, de si ao outro, oposição imediata entre a consciência e o outro eu, onde cada termo passa de um ao outro e se perde no jogo de reflexos. Segundo Lacan o imaginário é um desdobramento em espelho” (MOUSSEAU/MOREAU, 1984, 306). Mas não se deve esquecer que o homem fala porque o símbolo fez o homem.

No centro da teoria lacaniana há uma crítica ao mal-estar na sociedade de consumo. A sociedade regida pelo discurso capitalista nutre-se da fabricação da falta de gozo, produzindo no lugar de sujeitos, insaciáveis consumidores, Estas relações sociais não estão centradas nos laços com outros homens, mas com objectos. Oferece ao sujeito tão-somente um gadget, um objecto de consumo curto, rápido e descartável. Contra, a psicanálise propõe essa falta que chama desejo, sempre singular e plural, e a gestão não do capital financeiro, mas do capital da libido que por definição está sempre no negativo, trazendo a ética da diferença contra a segregação que dele deriva. “O desejo nasce do afastamento entre a necessidade e a exigência; é irredutível à necessidade, porque não é fundamentalmente relação com um objecto real, independente do indivíduo, mas com o fantasma (fantasia); é irredutível à exigência na medida em que procura impor-se sem ter em conta a linguagem nem o inconsciente do outro, e exige ser reconhecido em absoluto por ele” (LAPLANCHE/PONTALIS, 1990, 111). O desejo como limite da fruição absoluta (jouissance).

Heidegger ensinou a Lacan a condição excêntrica da existência [“Na experiência mística, não saímos (em ékstasis) da nossa experiência normal da realidade: é essa própria experiência ‘normal’ que é ‘ekstatikós’ (Heidegger), é nela que somos projectados para o exterior como entidade, e a experiência mística assinala o afastamento desse êxtase” (ZIZEK, 2006, 28)], permitindo pensar na porosidade constitutiva do inconsciente, na alternância existente entre dentro e fora, delineando assim a dialéctica infinita entre o sujeito e o outro. E Kant indicou a impossibilidade de apreensão da coisa, desenhando um destino inexorável para o sujeito falante no qual a perda fundamental do gozo seria a condição fundamental para as incertezas do desejo. Com isso, o imperativo da lei fundaria a ética do desejo, impondo ao sujeito a não abrir mão das exigências desse para não ser condenado à culpa. “Não há também um sujeito único, que permanece através do processo, como em Hegel; segundo o filósofo alemão, a carência insere-se no horizonte da verdade total; para se efectuar ela deve negar-se a si mesma: em Hegel, tudo se inscreve numa lógica dialéctica; aqui, afasta-se de Hegel: a nível do inconsciente não há saber absoluto; não se pode superar a situação de desejo, pois apenas há verdade parcial” (ROCHA, 1999, 221).

Lacan afirma que a verdadeira fórmula do materialismo não é Deus não existe, mas Deus é inconsciente. Assim, “a verdadeira fórmula do ateísmo não é ‘Não creio’, mas ‘Já não tenho de confiar num Grande Outro que acredita por mim’: a verdadeira fórmula do ateísmo é ‘não há Grande Outro” (ZIZEK, 2008, 129). Mas não deve ser confundido com a tese New Age de Jung, o inconsciente é Deus (a verdade divina reside na profundeza inexplorada do nossa personalidade) pois a inversão de sujeito e predicado postula a oposição entre verdade e mentira. O Deus inconsciente de Lacan aponta para a falsidade fundamental que fornece a unidade fantasmática de uma pessoa, aquilo que encontramos quando buscamos o núcleo mais profundo da nossa personalidade não é nosso verdadeiro

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self, mas a falsidade primordial que todos nós, em segredo, acreditamos no Grande Outro. “Christ was the first to ‘end metaphysics’, signaled by both his cry of abandonment and his ultimate death, hence ‘in the experience of the death of God, we stumble upon the fact that the big Other doesn’t exist [l’Autre n’existe pas]’ (ME, 42)” (POUND, 2008, 26).

Segundo Lacan a noção de sacrifício é a de um gesto que representa o repúdio à impotência do Grande Outro, para preencher a falta no Outro, sustentando a sua aparência de omnipotência ou, pelo menos, a sua consistência. Assim, a ilusão de que o Outro possuía o que lhe foi roubado é mantida. Sacrificamo-nos (nosso futuro e a nossa honra em respeito à sociedade) para manter a aparência de honra do Outro, para salvar o Outro amado da vergonha. Contudo, a rejeição do sacrifício, em Lacan, como inautêntico situa a falsidade do gesto sacrificial noutra dimensão, muito mais estranha. Finge-se uma falta, um querer, para se ocultar do Outro que já se possui o segredo mais íntimo do Outro. A castração simbólica é trazida aqui à coacção, pois como perda de algo que nunca se possuiu, onde o objecto-causa do desejo é um objecto que emerge através do mesmo gesto da sua perda/retirada. Porém, aqui é o avesso da estrutura de fingir uma perda – “Neste sentido preciso, sacrifício e castração devem ser colocados em oposição: longe de implicar a aceitação voluntária da castração, o sacrifício é a maneira mais requintada de a negar, isto é, de agir como se possuíssemos realmente o tesouro escondido que faz de mim um objecto digno de amor…” (ZIZEK, 2006, 64-65). Na medida em que o Outro da lei simbólica proíbe a jouissance, a única maneira para o sujeito fruir é fingir que lhe falta o objecto que lhe permite tal, ocultar sua posse do olhar do Outro através da encenação do espectáculo da busca desesperada por ele. “In other words, to affirm the death of God is to affirm the slippage of meaning and the role of unconscious desire in shaping our actions; it is to affirm that we find our gods too easily in wholesome answers” (POUND, 2008, 14).

O que resta do outro além das promessas de felicidade encarnada em bens de consumo? No conceito de acto [“o acto, tal como Lacan o concebe, não tem nada a ver com uma suspensão mística dos laços que nos ligam à realidade vulgar, com o acesso à beatitude de uma indiferença radical em que a vida, a morte e as outras categorias mundanas deixam de contar, em que sujeito e objecto, pensamento e acto, coincidem plenamente. Para dizê-lo em termos místicos, o acto lacaniano é mais o exacto oposto deste ‘retorno à inocência’; é próprio Pecado Original” (ZIZEK, 2006, 30)], ao contrário das acções correntes, situa-se sempre além do bem e do mal, melhor, reconfigura aquilo que se entende por bem e mal. Não se restringe a aplicar os parâmetros éticos dados, redefini-os. Assim, a escolha torna-se um acto quando a sua efectivação modifica os valores dos seus termos. Um acto só ocorre quando um sujeito aceita perder-se a si mesmo e põe em questão aquilo que a seu ver o define, experimentando uma destituição subjectiva. O acto revela a inexistência do grande Outro, de toda a instância capaz de garantir os nossos actos e de fundar a nossa vida. O resultado é um salto no abismo, único sentido válido da palavra liberdade. Felicidade, gozo, democracia e tolerância são os valores que operam como um axioma constituindo o fundamento da nossa identidade e da nossa fantasia e é este mesmo axioma que deve ser posto em questão, e devemos estar dispostos a perder. Para Zizek é preciso “deitar fora o bebé e ficar com a água suja do banho”. Não se trata de uma escolha entre o bem e o mal, mas da escolha entre o mal e o pior, opondo de um lado a crença num grande Outro capaz de legitimar as nossas acções e viabilizar o nosso gozo, e do outro lado a renúncia a essa crença que nos leva a uma vida sem fundamento e a uma existência sem garantias.

Zizek procura explicar a teoria lacaniana do desejo pela análise da cultura moderna, e a sociedade de consumo oferece prazeres tolos que nos privam dos verdadeiros desejos. Os Ovos de Kinder Surprise, o vaso grego do nosso tempo, é uma lógica do desejo e não de consumo, “o modelo de todos esses produtos que nos prometem ‘mais’ qualquer coisa (…) consiste em preencher qualquer coisa que falta, um ‘menos’, compensar o facto de que uma mercadoria nunca realiza, por definição, as suas promessas (fantasmáticas) ” (ZIZEK, 2006, 182), sendo necessário resguardar-se diante de uma mitologia que opõem os verdadeiros desejos e uma sociedade de consumo, ocupada em aliená-los [“quando o comemos, de certo modo não comemos nada” (ZIZEK, 2006, 183)]. É a mentalidade descafeinada. Este é o tempo em que queremos consumir mas sem pagar o preço. “Não admira que exista uma homologia entre os ovos de Kinder, o ‘vazio’ de hoje, e a abundância de mercadorias que

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nos propõem como produto privado da sua substância: café sem cafeína, sacarina sem açúcar, cerveja sem álcool, etc. – em ambos os casos, encontramos uma superfície privada do seu núcleo. Mas, mais fundamentalmente, como indica a referência ao ‘void’ isabelino, não haverá uma clara homologia estrutural mais profunda entre esta estrutura da mercadoria e a estrutura do sujeito burguês? O sujeito, enquanto sujeito dos direitos do homem universais, não funcionará como uma espécie de ovo de Kinder?” (ZIZEK, 2006, 185). O desejo é transcendência, falta, abertura, enquanto prazer, ou a felicidade, é equilíbrio. O desejo último é aquele da não-satisfação do desejo, que deve permanecer aberto. A felicidade é a traição do desejo, “é, portanto, intrinsecamente hipócrita: ela consiste em sonharmos com coisas que não desejamos verdadeiramente” (ZIZEK, 2006, 55).

A decisão realmente subversiva não está em insistir em reivindicações infinitas, como fazem os intelectuais descafeinados, que não podem ser atendidas pelos detentores do poder, e, como muito bem sabem, as demandas infinitas não representam a menor ameaça para os mesmos. Estas são entendidas como lembranças das utopias do mundo em que gostaríamos de viver, mas o mundo real só nos permite contentar com o que é possível. Zizek lembra, então, em desacordo com estas demandas infinitas, que o que é preciso é demandas estrategicamente bem escolhidas e pensadas, precisas e finitas, que não possam ter como resposta este tipo de desculpas. O horizonte derradeiro da Sabedoria pagã é a melancolia – em última instância tudo retorna ao pó, deve-se aprender o desapego e renunciar ao desejo – enquanto, se alguma vez houve uma religião que não é melancólica, é o cristianismo, apesar da falsa aparência de apego melancólico a Cristo como objecto perdido. A própria esquerda não quer efectivamente que os desejos sejam atendidos e brinca com o fogo desta impossibilidade só para dar satisfação à alma. No conforto da rebeldia com causa, pede o impossível (os académicos radicais). Esse só pensar, de que se ocupa a sociedade pós-moderna, criticando, questionando e desconstruindo convicções que sustentam estratégias do poder, pode-se tornar não condição da nossa liberdade, mas da nossa servidão. O livre pensamento é um exercício agradável, mas inútil. A nova esquerda tem em comum a desconfiança do fetichismo do partido, a crítica do economicismo marxista clássico e a recusa da concepção ingénua da ideologia considerada como uma espécie de erro cognitivo da consciência. Mas preocupa-se em mostrar a precariedade da noção de política em Marx e a ligação instável com políticas claras e definidas que deveriam ser seguidas em obediência silenciosa, pretende reescrever a noção de classe, levando em conta o género, a cultura e o consumo e não apenas o paradigma da produção. Coloca as complexas estratégias de desconstrução, crítica e resistência discursiva, no lugar da ideologia, ao lado do reconhecimento de que faltaria ao marxismo clássico uma boa teoria sobre a subjectividade.

Neste contexto surge Zizek, dando voz a essa renovação do marxismo, relendo Hegel aliada a uma potente junção de conceitos psicanalíticos de Jacques Lacan, apresentando a sua tese que é mais hegeliana que marxista, indo de Marx a Hegel e não o contrário. Ao aproximar Hegel e Lacan, elabora uma ontologia (ZIZEK, 2008, 96-98) e uma teoria do sujeito fundada na ideia de negatividade: o real é impossível de ser totalizado ou plenamente simbolizado, e o sujeito é constituído por uma falta estrutural, que decorre da sua inscrição na linguagem. A ausência radical de fundamento situa-nos na impossibilidade de atingir uma plenitude ontológica ou subjectiva, representada pelo conceito de gozo. A ideologia (no campo social) e a fantasia (no campo subjectivo) têm a função de cobrir essa falha, sustentando uma ilusão de totalidade, actuando como a estrutura sem a qual não haveria real (não como véu que oculta a realidade). Desenvolvendo uma crítica da ideologia e uma clínica da fantasia voltadas para a análise dos fenómenos contemporâneos. O diagnóstico lacaniano da inversão do super-ego, [“o superego divide qualquer mandamento determinado em duas partes complementares, apenas de simétricas. A fórmula ‘Não deves matar’ é dividida entre a proibição indeterminada (‘Não deves’) e um injunção directa obscena (‘Mata!’) ” (ZIZEK, 2006, 131)], é um dos elementos fundamentais desta análise, pois ao instaurar um prazer compulsivo dissolve, em última instância, a própria oposição entre prazer e dever (ex. a celebração contemporânea do sexo).

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