ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo...

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1 1. A Realidade do Virtual* A medida do verdadeiro amor por um filósofo é que se reconhece traços de seus conceitos por toda parte em nossa experiência diária. Recentemente, enquanto assistia novamente a  Ivan, o terrível de Sergei Eisenstein, notei um maravilhoso detalhe na cena da coroação no início da  primeira parte: quand o os dois amigos mais próxi mos (no momento) de Ivan derramam moedas de ouro de grandes baixelas em sua cabeça recém ungida, essa verdadeira chuva não pode deixar de surpreender o espectador por seu caráter magicamente excessivo   mesmo depois de vermos as duas baixelas quase vazias, cortamos para a cabeça de Ivan na qual moedas de ouro continuam “irrealisticamente” a ser derramadas em um fluxo contínuo. Esse excesso não é extremamente “deleuziano”? Não é o excesso do puro fluxo de devir sobre sua causa corporal, do virtual sobre o efetivo? A primeira determinação que vem à mente a propósito de Deleuze é que ele é o filósofo do Virtual   e a primeira reação a isso deveria ser a de opor a noção de Deleuze do Virtual ao tópico onipresente da realidade virtual: o que importa para Deleuze não é a realidade virtual, mas a realidade do virtual (que, em termos lacanianos, é o Real. Realidade virtual é, por melhor dizer, uma ideia miserável, de imitar a realidade, de reproduzir sua experiência em um meio artificial). A realidade do Virtual, ao contrário, representa a realidade do Virtual como tal, por seus reais efeitos e consequências. Vamos usar um atrator de matemática: todos as linhas ou pontos positivos em sua esfera de atração apenas se aproximam de maneira interminável, nunca alcançando sua forma   a existência dessa forma é puramente virtual, não sendo nada além do modelo em direção ao qual as linhas e pontos tendem. Contudo, em si mesmo precisamente, o virtual é o Real desse campo: o imóvel campo focal em torno do qual todos os elementos circulam. O Virtual não é, afinal, o Simbólico como tal? Vamos considerar a autoridade simbólica: para funcionar como uma efetiva autoridade, ela tem que permanecer não inteiramente realizada, uma ameaça eterna. * Extraído de ZIZEK, Slavoj. Organs withou bodies: Deleuze and consequences. New york: Taylor & Fracis Books, 2004. Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes Pereira, disponível em http://naturezaemclose.blogspot.com/2010/09/orgaos-sem-corpos-gilles-deleuze-por.html  

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1. A Realidade do Virtual* 

A medida do verdadeiro amor por um filósofo é que se reconhece

traços de seus conceitos por toda parte em nossa experiência diária.

Recentemente, enquanto assistia novamente a Ivan, o terrível de Sergei

Eisenstein, notei um maravilhoso detalhe na cena da coroação no início da

 primeira parte: quando os dois amigos mais próximos (no momento) de Ivan

derramam moedas de ouro de grandes baixelas em sua cabeça recém ungida,

essa verdadeira chuva não pode deixar de surpreender o espectador por seu

caráter magicamente excessivo – mesmo depois de vermos as duas baixelas

quase vazias, cortamos para a cabeça de Ivan na qual moedas de ouro

continuam “irrealisticamente” a ser derramadas em um fluxo contínuo. Esse

excesso não é extremamente “deleuziano”? Não é o excesso do puro fluxo

de devir sobre sua causa corporal, do virtual sobre o efetivo?

A primeira determinação que vem à mente a propósito de Deleuze

é que ele é o filósofo do Virtual – e a primeira reação a isso deveria ser a de

opor a noção de Deleuze do Virtual ao tópico onipresente da realidade

virtual: o que importa para Deleuze não é a realidade virtual, mas a

realidade do virtual (que, em termos lacanianos, é o Real. Realidade virtual

é, por melhor dizer, uma ideia miserável, de imitar a realidade, de

reproduzir sua experiência em um meio artificial). A realidade do Virtual,

ao contrário, representa a realidade do Virtual como tal, por seus reais

efeitos e consequências. Vamos usar um atrator de matemática: todos as

linhas ou pontos positivos em sua esfera de atração apenas se aproximam de

maneira interminável, nunca alcançando sua forma  –  a existência dessa

forma é puramente virtual, não sendo nada além do modelo em direção ao

qual as linhas e pontos tendem. Contudo, em si mesmo precisamente, o

virtual é o Real desse campo: o imóvel campo focal em torno do qual todos

os elementos circulam. O Virtual não é, afinal, o Simbólico como tal?

Vamos considerar a autoridade simbólica: para funcionar como uma efetiva

autoridade, ela tem que permanecer não inteiramente realizada, uma ameaça

eterna.

*

Extraído de ZIZEK, Slavoj. Organs withou bodies: Deleuze and consequences. New york: Taylor & Fracis Books,2004. Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes Pereira, disponível emhttp://naturezaemclose.blogspot.com/2010/09/orgaos-sem-corpos-gilles-deleuze-por.html 

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Talvez a diferença ontológica entre o Virtual e o Efetivo seja mais

 bem capturada pela mudança na maneira como a física quântica concebe as

relações entre as partículas e suas interações: em um momento inicial, elas

aparecem como se primeiro (ontologicamente, ao menos) as partículas

interagissem sob a forma de ondas, oscilações, etc.; então, em um segundo

momento, somos obrigados a representar uma radical mudança de

 perspectiva  –  o fato ontológico primordial é que as próprias ondas

(trajetórias, oscilações), e partículas não são senão o ponto nodal no qual

diferentes ondas intercedem1. Isso nos introduz à ambigüidade da relação

entre o virtual e o efetivo: (1) O olho humano REDUZ a percepção da luz;

ele percebe a luz de uma determinada maneira (percebendo certas cores,

etc.), uma rosa de uma maneira, um morcego de outra... O feixe de luz “emsi mesmo” não é efetivo, mas, sobretudo, a pura virtualidade de infinitas

 possibilidades efetivadas de múltiplas maneiras; (2) por outro lado, o olho

humano EXPANDE a percepção –  ele inscreve o que ele “realmente vê” em

uma intrincada rede de memórias e antecipações (como Proust com o gosto

da madeleine), podendo desenvolver novas percepções, etc2.

O gênio de Deleuze reside em sua noção de “empirismo

transcendental”: em contraste com a noção padrão do transcendental como arede conceitual formal que estrutura o rico fluxo de dados empíricos, o

“transcendental” deleuziano é infinitamente MAIS RICO do que a realidade

 – ele é o campo potencial infinito de virtualidades fora do qual a realidade é

efetivada. O termo “transcendental” é aqui usado no estrito sentido

filosófico de condições a priori de possibilidade de nossa experiência da

realidade constituída. O acoplamento paradoxal de pontos opostos

(transcendental + empírico) em direção a um campo de experiência além da

1 A genealogia dos conceitos de Deleuze é frequentemente estranha e inesperada  – quer dizer, sua afirmação da noçãoanglo-saxã de relações externas é claramente devida à problemática religiosa da graça. A conexão que falta aqui éAlfred Hitchcock, o inglês católico, em cujos filmes uma mudança nas relações entre as pessoas, de maneira alguma

 baseada em seus personagens, totalmente externa a eles, muda tudo, afetando-as profundamente (ou seja, quando noinício de North by Northwest [Intriga Internacional], Thornhill é erroneamente identificado como Kaplan). A leituracatólica de Hitchcock feita por Chabrol e Rohmer (em seu Hitchcock, 1954) influenciou profundamente Deleuze, vistoque, na tradição jansenista, seu foco é precisamente a “graça” como uma intervenção divina contingente, que não temnada a ver com as inerentes virtudes e qualidades dos personagens afetados.

2 E essa ambigüidade não é homóloga ao paradoxo ontológico da física quântica? A mesma “realidade dura” que

emerge da flutuação através do colapso da onda-função, é o resultado da observação, i.e., da intervenção da consciência.A consciência não é, então, o domínio da potencialidade, opções múltiplas, etc., como oposta à dura simples realidade  –  a realidade PRECEDENTE à sua percepção é aberta-múltipla-fluida, e a percepção consciente reduz sua multiplicidadeespectral, pré-ontológica a uma realidade ontológica inteiramente constituída.

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(ou, até mesmo, sob a) experiência da realidade constituída/percebida.

Permanecemos aqui dentro do campo da consciência  –  Deleuze define o

campo do empirismo transcendental como “uma pura corrente a-subjetiva

de consciência, uma impessoal consciência pré-reflexiva, uma duração

qualitativa de consciência sem self ”3. Não é de admirar que (uma de) sua(s)

referência(s) aqui seja o Fitche tardio, que tentou pensar o processo absoluto

de autoposicionamento como um fluxo de vida além das oposições de

sujeito e objeto:

Uma vida é a imanência da imanência, imanência absoluta: ela é o

 puro poder, total beatitude. Na medida em que ela vence as aporias do

sujeito e do objeto, Fitche, em sua última fase, apresenta o campo

transcendental como uma vida que não é tributária de um Ser e não está

assujeitada a um Ato: uma consciência absoluta imediata cuja mesma

atividade não se refere mais de volta ao ser, mas posiciona-se

incessantemente a si mesma em uma vida4.

Talvez Jason Pollock seja o derradeiro “pintor deleuziano”:

seu action-painting não torna diretamente seu fluxo de puro devir, a vida-

energia inconsciente-impessoal, o abrangente campo da virtualidade além

do que determinadas pinturas podem elas mesmas realizar, o campo das

 puras intensidades sem significado a ser trazido à luz pela interpretação? O

culto à personalidade de Pollock (machão americano alcoólatra) é

secundário em relação a essa característica fundamental: longe de

“expressar” sua personalidade, seus trabalhos a “negam”/obliteram5.

O primeiro exemplo que vem à mente no campo do cinema é

Sergei Eisenstein: se seus filmes antigos mudos são lembrados

 primeiramente por causa de sua prática da montagem em seus diferentes

aspectos, da “montagem de atrações” à “montagem intelectual” (i.e., se sua

ênfase é nos cortes), então seus filmes sonoros “maduros” deslocam o foco

 para a proliferação contínua do que Lacan chamou sinthomes, dos traços de

intensidades afetivas. Relembremos, através de ambas as partes de Ivan, o

3 Gilles Deleuze, "Immanence: une vie...," citado por John Marks, Gilles Deleuze, London: Pluto Press 1998, p. 29.

4 Deleuze, op.cit.p.30. Fica-se tentado a opor a esta imanência absoluta do fluxo de vida deleuziana, como a

consciência pré-subjetiva, ao sujeito inconsciente freudiano-lacaniano ($) como o agenciamento da pulsão de morte.5 E a oposição Pollock-Rothko? Ela não corresponde à oposição Deleuze versus Freud-Lacan? O campo virtual das

 potencialidades versus a diferença mínima, a fissura entre fundo e figura?

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terrível , o motivo da estrondosa explosão de raiva que é continuamente

metamorfoseado e então assume diferentes formas, da própria trovoada até

explosões de fúria incontrolada: ainda que possa a princípio parecer uma

expressão da psique de Ivan, seu som se separa de Ivan e começa a pairar,

 passando de uma pessoa à outra ou a um estado não atribuível a qualquer 

 pessoa diegética. Este motivo NÃO deveria ser interpretado como uma

“alegoria” com um “significado profundo” fixo, mas como uma pura

intensidade “mecânica” além do sentido (isto é o que Eisenstein almejou em

seu idiossincrático uso do termo “operacional”). Outros semelhantes

motivos ecoam e revogam um ao outro, ou, no que Eisenstein chamou de

“transferência nua”, salta de um meio expressivo a outro (quer dizer , quando

uma intensidade torna-se muito forte no meio visual de meras formas, elesalta e explode em movimento  – consequentemente em som, ou em cor...).

Por exemplo, Kirstin Thompson assinala como o motivo de um olho

em Ivan é um “motivo flutuante”, rigorosamente sem sentido em si mesmo,

mas um elemento repetido que pode, de acordo com o contexto, adquirir um

alcance de implicações expressivas (alegria, suspeita, vigilância, onisciência

quase divina)6. E os momentos mais interessantes em Ivan ocorrem quando

tais motivos parecem explodir em seu espaço pré-ordenado: eles não apenasadquirem uma multidão de sentidos ambíguos não mais cobertos por uma

temática abrangente ou programa ideológico; nos momentos mais

excessivos, tal motivo parece não ter absolutamente qualquer sentido, em

lugar de apenas flutuar como uma provocação, como um desafio a encontrar 

o sentido que domesticaria seu puro poder provocativo...

Entre os cineastas contemporâneos, aquele que se presta idealmente

a uma leitura deleuziana é Robert Altman, cujo universo, melhor exemplificado por sua obra prima Short Cuts, é efetivamente este dos

encontros contingentes entre uma infinidade de séries, um universo no qual

diferentes séries se comunicam e ressoam correspondendo ao que o próprio

Altman se r efere como uma “realidade subliminar” (choques mecânicos sem

sentido, encontros, e intensidades impessoais que precedem o nível do

sentido social)7. Quando, então, em Nashville, a violência explode no final

6 Kirstin Thompson, Eisenstein's "Ivan the Terrible": A Neoformalist Analysis, Princeton: Princeton University Press1981.

7 Robert T. Self, Robert Altman's Subliminal Reality, Minneapolis: Minnesota University Press 2002.

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(o assassinato de Barbara Jean no concerto), esta explosão, ainda que não

 preparada e não explicada pelo nível da linha explícita narrativa, é, contudo,

experimentada como inteiramente justificada, na medida em que o solo para

isso foi deixado no nível dos signos circundantes na “realidade subliminar”

do filme. E, não é isso que, quando escutamos as canções em  Nashville,

Altman mobiliza diretamente o que Brian Massumi chamou a “autonomia

do afeto”8? Isto é, interpretamos absolutamente mal Nashville se situamos as

canções dentro do horizonte global da descrição irônico-crítica da vacuidade

e alienação comercial ritualizada do universo da música country americana:

ao contrário, somos autorizados – até seduzidos – a desfrutar inteiramente a

música em si mesma, em sua intensidade afetiva, independentemente do

óbvio projeto crítico-ideológico de Altman. (E, aliás, o mesmo vale para asmúsicas das grandes peças de Brecht: seu prazer musical é independente de

sua mensagem ideológica.) O que isso significa é que dever-se-ia também

evitar a tentação de reduzir Altman a um poeta da alienação americana,

representando o desespero silencioso das vidas cotidianas: Há outro Altman,

aquele que se abre aos alegres encontros contingentes. Juntamente às linhas

da leitura de Deleuze e Guattari do universo de Kafka da Ausência do

inacessível e elusivo Centro transcendente (Castelo, Corte, Deus) como aPresença de múltiplas passagens e transformações, fica-se tentado a ler o

“desespero e ansiedade” altmaniano como o enganoso obverso da mais

afirmativa imersão dentro da multidão de intensidades subliminares. Este

 plano subjacente, claro, pode também conter o subtexto supereuóico

obsceno da mensagem ideológica “oficial” –  relembremos o notório pôster 

de recrutamento para o exército do “Tio Sam”: 

Esta é uma imagem cujas demandas, senão desejos, parece absolutamente claro,enfocam um determinado objeto: ele quer “você”, isto é, o jovem com a idade

apropriada para o serviço militar. O alvo imediato da imagem se assemelha a uma

ver são do efeito medusa: isto é, ele “interpela” o observador, verbalmente, e tenta

magnetiza-lo com a franqueza de sua mirada e (sua mais maravilhosa característica

 pictórica) a mão que parece projetar-se do quadro com o dedo apontando que

distingue o observador, acusando, designando e comandando-o. Mas o desejo de

magnetizar é apenas um alvo transitório e momentâneo. O motivo maior é incitar e

mobilizar o observador, enviar aquele que contempla „ao posto de recrutamento

8 Brian Massumi, "The Autonomy of Affect," in Deleuze: A Critical Reader, edited by Paul Patton, Oxford: Blackwell1996.

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mais próximo‟, e finalmente para além-mar para combater e possivelmente morrer 

 pelo seu país.

(...) Aqui o contraste com os pôsteres italianos e alemães é esclarecido. Estes são

 pôsteres nos quais jovens soldados saúdam seus irmãos, convocam-nos para a

fraternidade honorável da morte em batalha. Tio Sam, como seu nome indica, tem

uma relação mais tênue, indireta com o potencial recruta. Ele é um homem velho a

quem falta o vigor da juventude para o combate, e talvez ainda mais importante,

falta a conexão direta de sangue que a figura da pátria poderia evocar. Ele solicita os

 jovens para irem lutar e morrer em uma guerra na qual nem eles nem seus filhos

 participarão. Não há filhos de Tio Sam (...) Tio Sam é estéril, uma figura de papelão

que não tem corpo, abstrata, sem sangue, mas que se faz passar pela nação e apela

aos filhos de outros homens a doar seus corpos e seu sangue.

Então, o que esse quadro quer? Uma análise completa poderia conduzir-nos a fundo

no inconsciente político de uma nação que é nomeadamente imaginada como uma

abstração incorpórea, um regime político Iluminado de leis e não de homens, de

 princípios e não de relações de sangue, e na realidade incorporado como um lugar 

onde velhos homens brancos enviam jovens homens e mulheres de todas as raças

(contando com uma grande desproporção no número de pessoas de cor) para lutar 

suas guerras. O que essa nação real e imaginada necessita é de carne  –  corpos e

sangue  –  e o que ela designa para obtê-los é um homem oco, um fornecedor de

carne, ou talvez apenas um artista.9

A primeira coisa a se fazer aqui é adicionar a esta série o famoso

 pôster soviético “A mãe pátria está te chamando”, no qual o interpelante é

uma forte mulher madura. Nós nos deslocamos então do tio imperialista

americano para os irmãos europeus da mãe comunista...  –  Aqui temos a

divisão, constitutiva da interpelação, entre a lei e o superego (ou vontade e

desejo). O que uma imagem como essa quer não é equivalente ao que ela

deseja: enquanto ela nos quer para participar da nobre luta pela liberdade,

ela deseja sangue, a proverbial  Pound of our flesh*(não é de admirar que oidoso estéril “Tio (não pai) Sam possa ser decifrado como uma imagem

 judaica, correspondente à leitura nazista das intervenções militares

*A expressão alude à peça de W. Shakespeare O Mercador de Veneza, em que o personagem Antonio contrai umadívida com o agiota judeu Shylock, oferecendo como garantia uma libra de sua própria carne (a Pound of his proper flesh); “Credores que insistem em ter sua “libra de carne” são aqueles que cruelmente exigem o pagamento de umadívida, não importando quanto sofrimento irá custar ao devedor(...).” em The American Heritage ® New Dictionary of Cultural Literacy, Third Edition Copyright © 2005 by Houghton Mifflin Company, no sítio:

http://dictionary.reference.com/browse/pound%20of%20flesh ** Ver acima

9 Tom Mitchell, "What Do Pictures Really Want?" in October 77 (Summer 1996), p. 64-66.

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americanas: “a plutocracia judaica quer o sangue de americanos inocentes

 para alimentar seus interesses”). Em suma, seria ridículo dizer “O Tio Sam

deseja você”: Tio Sam quer você, mas ele deseja o objeto parcial em você,

seu  Pound of flesh**... Quando uma chamada do superego QUER (e

ordena) que você faça, se fortaleça e seja bem sucedido, a mensagem secreta

do DESEJO é: “Eu sei que você não será capaz de cumprir isso, então eu

desejo que você falhe e triunfe em seu fracasso!!!” Este caráter do superego,

confirmado pela associação com Yankee Doodle (lembremos o fato de que

o superego ilustra um misto de ferocidade obscena com comédia clown), é

ainda sustentada pelo caráter contraditório de seu apelo: ele primeiro quer 

deter nosso movimento e fixar nosso olhar para que, surpresos, nos fixemos

nele; em um segundo momento, ele quer que atendamos seu chamado esigamos para o escritório de recrutamento mais próximo  – como se, depois

de nos deter, se dirige a nós com escárnio: “Por que você me olha fixamente

assim como um idiota? Não entendeu o que eu quis dizer? Vá ao posto de

alistamento mais próximo!” No típico gesto arrogante de escárnio

característico do superego, ele ri de nosso mesmo ato de levarmos a sério

seu primeiro chamado.

Quando Erik Santner me contou a respeito da brincadeira que seu pai fazia com ele quando era um garoto (o pai mostrava, abrindo diante dele,

sua palma, na qual havia em torno de uma dúzia de moedas diferentes; o pai

então fechava a mão depois de alguns segundos e perguntava ao menino a

quantia de dinheiro que havia – se o pequeno Erik adivinhasse a soma exata,

o pai lhe dava o dinheiro), esta anedota provoca em mim uma explosão de

 profunda e incontrolável satisfação anti-semita exprimida em uma

gargalhada selvagem: “Viu só, esta é a maneira como os judeus realmenteensinam suas crianças! Não é um caso perfeito de sua própria teoria de uma

 proto-história que acompanha a história simbólica explícita? No nível da

história explícita, seu pai provavelmente lhe contava histórias nobres sobre

o sofrimento dos judeus e o horizonte universal da humanidade, mas seu

verdadeiro ensinamento secreto estava contido nessas anedotas de como

fazer rapidamente transações com dinheiro”. O anti-semitismo efetivamente

É parte da base ideológica obscena de muitos de nós.

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E pode-se encontrar um subtexto obsceno semelhante mesmo onde

não se poderia esperar  – em alguns textos que são comumente percebidos

como feministas. Com o intuito de confr ontar esta obscena “praga de

fantasias” que persiste no nível da “realidade subliminar” em seu mais

radical, é suficiente (re)ler The Handmaid's Tale de Margaret Atwood, a

distopia sobre a “República de Gilead”, um novo estado na costa leste dos

Estados Unidos que emergiu quando a Maioria Moral tomou posse. A

ambigüidade da novela é radical: seu objetivo “oficial” é, claro, apresentar 

como são efetivamente percebidas as sombrias tendências conservadoras

com o intuito de nos prevenir sobre as ameaças do fundamentalismo cristão

 – a visão evocada espera causar horror em nós. No entanto, o que salta aos

olhos é a fascinação absoluta com este universo imaginado e suas regrasinventadas. Mulheres férteis são distribuídas a esses membros privilegiados

da nova nomenklatura cujas esposas não podem ter filhos  –  proibidas de

ler, desprovidas de seus nomes (elas são nomeadas de acordo com o homem

que as possui: a heroína é Offred  –   “of Fred” [de Fred, pertencente a

 Fred]) elas servem como receptáculos de inseminação. Quanto mais nós

lemos a novela, mais se esclarece que a fantasia que estamos lendo não é a

da maioria moral, mas a do próprio liberalismo feminista: um exatoespelho-imagem das fantasias sobre a degeneração sexual em nossas

megalópoles que assombram os membros da maioria moral. Então, o que a

novela exibe é o desejo  – não o da maioria moral, mas o desejo oculto das

 próprias feministas liberais.

2. Devir versus História 

A oposição ontológica entre Ser e Devir que sustenta a noção de

Deleuze do virtual é uma noção radical desde que sua referência final é o

 puro devir sem ser (oposta à noção metafísica do puro ser sem devir). Esse

 puro devir não é um devir particular de alguma entidade corporal, uma

 passagem dessa entidade de um estado a outro, mas um devir-em-si-mesmo,

completamente extraído de sua base corporal. Visto que a temporalidade

 predominante do ser é a do presente (com o passado e o futuro como seus

modos deficientes), o puro devir-sem-ser significa que dever-se-ia evitar o

 presente  –   ele nunca “ocorre efetivamente”, ele é “sempre iminente e já

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 passou”10. Como tal, o puro devir suspende a sequencialidade e a

direcionalidade: quer dizer, em um efetivo processo de devir, o ponto crítico

de temperatura (0 grau Celsius) sempre tem uma direção (a água ou congela

ou derrete), enquanto que, considerado como puro devir extraído de sua

corporeidade, esse ponto de passagem não é um ponto de passagem de um

estado a outro, mas uma “pura” passagem, neutra em relação a sua

direcionalidade, perfeitamente simétrica  –  por exemplo, uma coisa está

simultaneamente aumentando (o que ela foi) e diminuindo (em relação ao

que ele será). E os poemas Zen não são o exemplo derradeiro da poesia do

 puro devir, os quais almejam meramente extrair a fragilidade do puro

evento de seu contexto causal?

O Foucault mais próximo de Deleuze é talvez o Foucault

de Arqueologia do Saber , sua subestimada obra chave que delineia a

ontologia das enunciações como puros eventos de linguagem: não elementos

de uma estrutura, não atributos de sujeitos que as proferem, mas como

eventos que emergem, funcionam dentro de um campo, e desaparecem.

Colocando em termos estóicos, a análise do discurso de Foucault estuda a

lekta, enunciações como puros eventos, enfocando as condições inerentes de

sua emergência [emergence] (como a concatenação dos próprios eventos) enão em sua inclusão no contexto da realidade histórica. Este é o motivo de o

Foucault de Arqueologia do Saber estar tão longe quanto possível de

qualquer forma de historicismo, de eventos locais em seu contexto histórico

 – ao contrário, Foucault os ABSTRAI de sua realidade e de sua causalidade

histórica, e estuda as regras IMANENTES de sua emergência. O que

deveríamos ter em mente aqui é que Deleuze NÃO é um historicista

evolucionista; sua oposição do Ser e do Devir não deve nos iludir. Ele nãoestá simplesmente argumentando que todas as entidades estáveis, fixas são

apenas coagulações do abrangente fluxo de vida  –  Por que não? A

referência à noção de TEMPO é crucial aqui. Vamos lembrar como Deleuze

(Com Guattari) em sua descrição do devir em/da filosofia, explicitamente

opõe devir e história:

O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência que não exclui o

antes e o depois, mas os sobrepõe em uma ordem estratigráfica. Este é um infinito

10 Gilles Deleuze, The Logic of Sense, New York: Columbia University Press 1990, p. 80.

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devir da filosofia que atravessa sua história sem ser confundido com ela. A vida dos

filósofos, e o que é mais externo a seu trabalho, está de acordo com as leis comuns

da sucessão; mas seus nomes próprios coexistem e brilham como pontos luminosos

que nos levam através de componentes de um conceito novamente ou como pontos

cardinais de um estrato ou plano que continuamente nos retornam, como estrelas

mortas cujas luzes brilham mais do que nunca.11

O paradoxo então é que o devir transcendental inscreve-se a si

mesmo na ordem positiva do ser, da realidade constituída, sob a capa de seu

exato oposto, de uma superposição estática, de um congelamento

cristalizado do desenvolvimento histórico. Esta eternidade deleuziana está, é

claro, não simplesmente fora do tempo; por melhor dizer, na superposição

“estratigráfica”, nesse momento de estase, é o PRÓPRIO TEMPO que nós

experienciamos, tempo oposto ao fluxo evolutivo das coisas DENTRO do

tempo. Foi Schelling quem, seguindo Platão, escreveu que o tempo é a

imagem da eternidade  –  uma declaração mais paradoxal do que pode

 parecer. O tempo, a existência temporal, não é o oposto mesmo da

eternidade, não é o domínio da deterioração, geração e corrupção? Como

 pode então o tempo ser a imagem da eternidade? Isto não envolve duas

declarações contraditórias, quer dizer, que o tempo é a queda da eternidade

na corrupção E seu exato oposto, o esforço pela eternidade? A única solução

é conduzir este paradoxo a sua conclusão radical: o tempo é o esforço da

eternidade para ALCANÇAR A SI MESMA. O que isso significa é que a

eternidade não está fora do tempo, mas é a pura estrutura do tempo “como

tal”: como colocou Deleuze, o momento da superposição estratigráfica que

suspende a sucessão temporal é o tempo como tal. Em suma, dever-se-ia

aqui opor o desenvolvimento NO tempo à explosão DO PRÓPRIO TEMPO:

o próprio tempo (a virtualidade infinita do campo transcendental do Devir)aparece DENTRO da evolução intratemporal sob o disfarce da

ETERNIDADE. Os momentos de emergência [emergence] do Novo são

 precisamente os momentos de Eternidade no tempo. A emergência

[emergence] do Novo ocorre quando um trabalho vence seu contexto

histórico. E, do lado oposto, se há uma imagem da imobilidade fundamental

ontológica, é a imagem evolucionista do universo como uma complexa rede

11 Gilles Deleuze and Felix Guattari,What is Philosophy?, New York: Columbia University Press 1994, p. 59.

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11

de transformações e desenvolvimentos intermináveis nos quais plus ça

change, plus ça reste le même:

Eu me tornei cada vez mais consciente da possibilidade de distinção entre devir e

história. Foi Nietzsche quem disse que nada importante está livre de um „vapor não -

histórico‟. /.../ O que a história compreende em um evento é a maneira como ele éatualizado em circunstâncias particulares; o devir do evento está além do escopo da

história./.../ O devir não é parte da história; a história apenas reúne conjuntos de

 precondições, recentes contudo, que são deixados para traz enquanto „devir‟, ou seja,

como criação de algo novo.12 

Para designar esse processo, fica-se tentado a usar um termo

estritamente proibido por Deleuze, que é o de TRANSCENDÊNCIA:

Deleuze não está aqui argumentando que um certo processo pode

transcender suas condições históricas ao dar origem a um Evento? Era

Sartre (um dos pontos de referência secretos de Deleuze) quem já utilizava o

termo nesse sentido, quando ele discutia como, no ato de síntese, o sujeito

 pode transcender suas condições. Abundam exemplos aqui do cinema (a

referência de Deleuze ao nascimento do neo-realismo italiano: claro que ele

surgiu sem condições – o choque da IIª Guerra Mundial, etc – mas o Evento

neo-realista não pode ser reduzido a essas causas históricas) à política. Em

 política (e que, de certo modo, remete a Badiou), a base da reprovação de

Deleuze aos críticos conservadores que denunciam os terríveis resultados

reais de uma sublevação revolucionária, é que eles permanecem cegos para

a dimensão do devir:

Está na moda ultimamente condenar os horrores da revolução. Isso não é nada novo;

o Romantismo Inglês é permeado por reflexões de Cromwell muito semelhantes às

reflexões de Stalin nos dias atuais. Eles dizem que as revoluções terminam mal. Mas

eles estão constantemente confundindo duas coisas diferentes, a maneira como asrevoluções se produzem historicamente e o devir revolucionário das pessoas. Estes

relacionam dois grupos diferentes de pessoas. A única esperança dos homens reside

em um devir revolucionário: a única maneira de se livrar de sua vergonha ou de

responder ao que é intolerável.13 

O devir é então estritamente correlativo ao conceito de

REPETIÇÃO: longe de se opor à emergência [emergence] do Novo, o

 próprio paradoxo deleuzianno é que algo verdadeiramente Novo só pode

12 Gilles Deleuze, Negotiations, New York: Columbia University Press 1995, p. 170-171.

13 Deleuze, op.cit., p. 171.

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12

emergir através da repetição. O que a repetição repete não é a maneira como

o passado “efetivamente se deu”, mas a virtualidade inerente ao passado e

traída por sua atualização anterior. Nesse preciso sentido, a emergência

[emergence] do Novo muda o próprio passado, quer dizer, ele muda

retroativamente (não o passado real  – isso não é ficção-científica  – mas) o

 balanço entre realidade e virtualidade no passado14. Recordemos o velho

exemplo de Walter Benjamin: a Revolução de Outubro repetiu a Revolução

Francesa, redimindo seu fracasso, desenterrando e repetindo o mesmo

impulso. Já para Kierkegaard, repetição é “memória invertida”, um

movimento para frente, a produção do Novo, e não a reprodução do Velho.

“Não há nada de novo sob o sol” é o mais forte contraste com o movimento

da repetição. Assim, não é apenas que a repetição seja (um dos modos da)emergência [emergence] do Novo  –  o Novo só pode emergir através da

repetição. A chave para esse paradoxo é, claro, o que Deleuze designa como

a diferença entre o Virtual e o Efetivo (e que pode ser  –  por que não?  –  

também determinado como a diferença entre Espírito e Letra). Tomemos um

grande filósofo como Kant – há duas maneiras de repeti-lo: fixar-se em sua

letra e ainda elaborar ou modificar seu sistema, como os neo-kantianos

(como Habermas e Luc Ferry) estão fazendo; ou, tenta-se retomar o impulsocriativo que o próprio Kant traiu na atualização de seu sistema (i.e., conectar 

o que já estava “em Kant mais do que no próprio Kant”, mais do que seu

sistema explícito, seu cerne excessivo). Há, consequentemente, dois modos

de trair o passado. A verdadeira traição é um ato ético-teórico de máxima

fidelidade: tem que se trair a letra de Kant no sentido de se permanecer fiel a

(e repetir) o “espírito” de seu pensamento. É precisamente quando se

 permanece fiel à letra de Kant que se trai realmente o cerne de seu

 pensamento, o impulso criativo motivando-o. Dever-se-ia conduzir esse

 paradoxo à sua conclusão: não se trata apenas de que se pode permanecer 

realmente fiel a um autor traindo-o (a letra efetiva de seu pensamento); em

14 Quando, em 1953, Chou Em Lai, o primeiro ministro chinês, foi a Genebra para as negociações de paz para por fimà guerra da Coréia, um jornalista francês lhe perguntou o que achava da Revolução Francesa, então Chou respondeu: “Émuito cedo ainda para dizer”. Em um certo sentido, ele estava certo: com a desintegração dos estados socialistas, a luta

 para o lugar histórico da Revolução Francesa desencadeou-se novamente. Os revisionistas direitistas liberais tentam

impor a noção de que a extinção do Comunismo em 1989 ocorreu exatamente no momento certo: ela marcou o fim daera que começou em 1789. Em suma, o que desapareceu efetivamente da história foi o modelo revolucionário queentrou em cena pela primeira vez com os jacobinos. François Furet e outros tentaram assim destituir a RevoluçãoFrancesa de seu status como o acontecimento fundador da democracia moderna, relegando-a à uma anomalia histórica.

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13

um nível mais radical, a declaração inversa comporta ainda mais  – pode-se

apenas trair verdadeiramente um autor repetindo-o, permanecendo-se fiel ao

cerne de seu pensamento. Se não se repete um autor (no autêntico sentido

kiekgaardiano do termo), mas meramente se o “critica”, deslocando-o,

contornando-o, etc., isso significa, com efeito, que se permanece

inadvertidamente dentro de seu horizonte, de seu campo conceitual15.

Quando G. K. Chesterton descreve sua conversão ao cristianismo, ele alega

que tentou “ficar uns dez minutos além da verdade. E eu acho que fiquei

dezoito anos atrás dela”16. Isso não vale especialmente para aqueles que,

hoje, tentam desesperadamente alcançar o Novo seguindo a última moda

“pós”, ficando condenados a permanecer sempre dezoito anos atrás do

verdadeiro Novo?

E isso nos introduz ao complexo tópico da relação entre Hegel e

Kierkegaard: contra a noção “oficial” de Kierkegaard como O “anti-Hegel”,

alguém poderia afirmar que Kierkegaard é talvez aquele que, através de sua

“traição” a Hegel, permaneceu fiel a ele. Ele efetivamente repetiu Hegel, em

contraste com os pupilos de Hegel, os quais “desenvolveram” seu sistema.

Para Kiekegaard, o Aufhebung hegeliano deve se opor à repetição: Hegel é o

derradeiro filósofo socrático da rememoração, do retornar reflexivamente aoque a coisa sempre-já foi, de maneira que, o que falta a Hegel é,

simultaneamente, a repetição e a emergência [emergence] do Novo  –  a

emergência do Novo como repetição. O processo/progresso da dialética

hegeliana é, neste preciso sentido kierkegaardiano, o mesmo modelo de um

 pseudodesenvolvimento  –  desenvolvimento no qual nada efetivamente

 Novo jamais emerge. Quer dizer, a reprovação kierkegaardiana padrão a

Hegel é que seu sistema é um círculo fechado de rememoração que nãoconsidera a emergência de nada Novo: tudo o que acontece é apenas uma

15 A fidelidade autêntica é a fidelidade ao próprio vazio  –  ao próprio ato mesmo de perda, de abandonar/apagar oobjeto. Por que a morte seria o objeto de apego em primeiro lugar? O nome para essa fidelidade é pulsão de morte. Emrelação a lidar com a morte, dever-se-ia, talvez,  – contra o trabalho do luto, bem como contra o apego melancólico àmorte que retorna como fantasmas  – afirmar a máxima cristã “deixe a morte enterrar seu morto”. A óbvia reprovação aessa máxima é: o que fazemos quando, precisamente, a morte não aceita ficar morta, mas continua viva em nós,assombrando-nos com sua presença espectral? Fica-se, aqui, tentado a reivindicar que, a dimensão mais radical da

 pulsão de morte freudiana fornece a chave de como lermos o “deixe a morte enterrar seu morto” cristão: o que a pulsãode morte tenta obliterar não é a vida biológica, mas a própria vida após a morte - ela tenta matar o objeto perdido uma

segunda vez, não no sentido do luto (aceitando a perda através da simbolização), mas em um sentido mais radical, deobliterar a própria textura simbólica, a letra na qual o espírito do morto sobrevive.

16 G.K.Chesterton, Orthodoxy, San Francisco: Ignatius Press 1995, p. 16.

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14

 passagem do em-si ao para-si, isto é, ao longo do processo dialético, as

coisas apenas atualizam seu potencial, colocar explicitamente seu conteúdo

explícito, tornar-se o que (em si mesmos) eles sempre-já são. O primeiro

enigma a respeito dessa reprovação é que ela é comumente acompanhada

 pela reprovação OPOSTA: Hegel mostra como “o Um se divide em Dois”, a

explosão de uma divisão, perda, negatividade, antagonismo, que afeta uma

unidade orgânica; mas, então, o reverso do Aufhebung intervém como um

tipo de deus ex machina, sempre garantindo que o antagonismo será

magicamente resolvido, os opostos reconciliados em uma síntese mais

elevada, a perda recuperada sem um resto, a ferida cicatrizada sem deixar 

cicatriz... As duas reprovações, então, assinalam direções opostas: a

 primeira reivindica que nada de novo emerge sob o sol hegeliano, enquantoque a segunda reivindica que o impasse é resolvido por uma questão

imposta que emerge como deus ex machina, de fora, não como o resultado

da dinâmica inerente da tensão precedente.

O erro da segunda reprovação é que ela perde a questão  – ou , até

mesmo, a temporalidade – da conciliação hegeliana. Não é que a tensão seja

magicamente resolvida e os opostos reconciliados. O único deslocamento

que efetivamente ocorre é subjetivo, o deslocamento de nossa perspectiva(i.e., subitamente, nos tornamos cientes de que o que anteriormente

apareceu como conflito JÁ É a reconciliação). Este movimento temporal

 para trás é crucial: a contradição não é resolvida; nós apenas estabelecemos

que ela sempre-já FOI resolvida. (Em termos teológicos, a Redenção não

segue a queda; ela ocorre quando nos tornamos conscientes de como o que

anteriormente percebemos (mal) como a Queda “em si” já era a

Redenção.)17

E, paradoxalmente, mesmo que esta temporalidade pareçaconfirmar a primeira reprovação (a de que nada de novo emerge no processo

hegeliano), ela, efetivamente, nos permite refuta-la: o verdadeiro Novo não

é simplesmente um novo conteúdo, mas o próprio deslocamento de

 perspectiva através do qual o Velho aparece sob nova luz.

Deleuze está certo em seu magnífico ataque à “contextualização”

historicista: devir significa transcender o contexto das condições históricas

17 Para uma descrição mais detalhada desse movimento, ver capítulo 3 de Slavoj Zizek, The Puppet and the Dwarf,Cambridge: MIT Press 2003.

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15

fora das quais um fenômeno emerge. Isto é o que se perde no

multiculturalismo antiuniversalista historicista: a explosão do

 perpetuamente Novo em/como o processo do devir. A oposição padrão entre

Universal abstrato (ou seja, Direitos Humanos) e as identidades particulares

deve ser substituída por uma nova tensão entre Singular e Universal: o

acontecimento do Novo como uma singularidade universal18. O que Deleuze

fornece aqui é a ligação (propriamente hegeliana) entre historicidade factual

e eternidade: um verdadeiramente Novo emerge como eternidade no tempo,

transcendendo suas condições materiais. Para perceber um fenômeno

 passado em devir (como Kierkegaard poderia ter formulado) é perceber o

 potencial virtual nele, a centelha de eternidade, a potencialidade virtual que

sempre está aí. Um verdadeiramente novo trabalho sempre fica novo  – suanovidade não é esgotada quando passa sua “capacidade de chocar”. Por 

exemplo, em filosofia, as grandes rupturas (do transcendental de Kant até a

invenção de Kripke do “designador rígido”) sempre mantêm seu caráter 

“surpreendente” de invenção.

Ouve-se frequentemente que para se entender uma obra de arte é

 preciso conhecer seu contexto histórico. Contra esse lugar-comum

historicista, um contra-argumento deleuziano seria que, não apenasdemasiado contexto histórico pode ofuscar o próprio contato com a obra de

arte (i.e., que, para realizar esse contato, dever-se-ia abstrair o contexto

histórico); mas, até mesmo, que a própria obra de arte fornece um contexto,

 permitindo-nos propriamente entender uma situação histórica dada. Se hoje

alguém for visitar a Sérvia, o contato direto com dados brutos poderia

confundir. Se, contudo, a pessoa ler algumas obras literárias e assistir a

alguns filmes representativos, eles poderiam definitivamente fornecer ocontexto para situar os dados brutos de sua experiência. Há, então, uma

inesperada verdade na velha cínica sabedoria da União Soviética stalinista:

“ele mente como uma testemunha ocular!”. 

3. Devir-máquina 

18 Isto serve mesmo se nós reformularmos o Universal no sentido laclauniano do significante vazio tomado na luta pelahegemonia: a singularidade universal não é o significante universal vazio preenchido  – homogeneizado por  – algumconteúdo particular. Ele é quase seu obverso: uma singularidade que explode o contorno dado da universalidade emquestão abrindo-o para um conteúdo radicalmente novo.

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16

Talvez o cerne do conceito de repetição de Deleuze seja a idéia de

que, em contraste com a repetição mecânica (não maquínica!) da

causalidade linear, em uma instância própria de repetição, o evento repetido

seja recriado em um sentido radical: ele (re)surge a cada momento como

 Novo (ou seja, “repetir” Kant é redescobrir a novidade radical de sua

ruptura, de sua problemática, não repetir os enunciados que oferecem suas

soluções). Fica-se tentado aqui a estabelecer uma conexão com a ontologia

cristã de Chesterton, na qual a repetição do mesmo é o grande milagre: não

há nada “mecânico” no fato de que o sol nasça de novo todas as manhãs;

este fato, ao contrário, mostra o mais alto milagre da criatividade de

Deus19. O que Deleuze chama de “máquinas desejantes” concerne apenas a

algo completamente deferente do mecânico: o “devir -máquina”. Em queconsiste esse devir? Para muitos neuróticos obsessivos, o medo de voar tem

uma imagem bastante concreta: fica-se assombrado pelo pensamento de

quantas partes de tal máquina tão imensamente complicada como o avião

moderno tem que funcionar tranquilamente para que o avião se mantenha no

ar  – uma pequena peça quebra em algum lugar, e o avião pode muito bem

cair em espiral... Frequentemente fala-se da mesma maneira a respeito do

 próprio corpo: quantas pequenas coisas têm que funcionar tranquilamente para me manter vivo? – um minúsculo coágulo de sangue em uma veia, e eu

morro. Quando se começa a pensar em quantas coisas podem dar errado,

não se pode experimentar senão um pânico total e aterrador. A “esquizo”

deleuziana, por outro lado, meramente se identifica com essa máquina

infinitamente complexa que é o nosso corpo: ela experimenta essa máquina

impessoal como sua afirmação máxima, regozijando-se em seu constante

estímulo. Como Deleuze enfatiza, o que temos aqui não está relacionado a

uma metáfora (o velho e tedioso tema das “máquinas substituindo

humanos”), mas à metamorfose, ao “devir -máquina” do homem. É aqui que

o projeto “reducionista” dá errado: o problema não é reduzir a mente ao

 processo “material” neuronal (substituir a linguagem da mente pela

linguagem dos processos cerebrais, traduzir o primeiro no segundo), mas,

sobretudo, compreender como a mente pode emergir apenas sendo

encaixada na rede de relações sociais e complementos materiais. Em outras

19 G.K.Chesterton, Orthodoxy, San Francisco: Ignatius Press 1995, p. 65.

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17

 palavras, o verdadeiro problema não é “Como, de qualquer maneira, as

máquinas podem IMITAR a mente humana?”, mas “Como a própria

identidade da mente humana depende de suplementos mecânicos externos?

Como ela incorpora as máquinas?”. 

Em vez de lamentar a maneira como a externação progressiva de

nossas capacidades mentais em instrumentos “objetivos” (desde escrever em

um papel até depender de um computador) nos priva de potenciais humanos,

 poder-se-ia, portanto enfocar a dimensão libertadora dessa externação:

quanto mais nossas capacidades são transpostas para máquinas externas,

mais nós emergimos como sujeitos “puros”, na medida em que este

esvaziamento corresponde ao surgimento da subjetividade

dessubstancializada. Apenas quando nós pudermos contar inteiramente com

“máquinas pensantes” é que nos confrontaremos com o vazio da

subjetividade. Em março de 2002, a mídia noticiou que, em Londres, Kevin

Warwick se tornou o primeiro homem cibernético. Em um hospital em

Oxford, seu sistema neuronal foi conectado diretamente a uma rede de

computadores; ele é assim o primeiro homem cujas informações serão

alimentados diretamente, contornando os cinco sentidos. ESTE é o futuro: a

combinação da mente humana com o computador (em vez da substituiçãodo antigo pelo novo).

 Nós tivemos outra prova deste futuro em maio de 2002 quando foi

noticiado que cientistas da Universidade de Nova York tinham conectado

um chip de computador pronto para receber sinais diretamente no cérebro de

um rato, com o intuito de se poder controlá-lo (determinando-se a direção

em que ele irá correr) por meio de um mecanismo de navegação (da mesma

maneira que se faz correr um carro de brinquedo por controle remoto). Este

não é o primeiro caso de conexão direta entre o cérebro humano e um

sistema de computadores: já existem semelhantes mecanismos que

 permitem que pessoas cegas tenham informações visuais elementares sobre

o ambiente circundante, os quais alimentam diretamente o cérebro,

contornando o aparato de percepção visual (olhos, etc.). O que é novo no

caso do rato é que, pela primeira vez, a “vontade” de um agente animal

vivo, suas decisões “espontâneas” sobre os movimentos que ele irá fazer sãotomadas por uma máquina externa. A grande questão filosófica aqui, claro,

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é: como o desafortunado rato “experimenta” seu movimento, o qual foi,

efetivamente, decidido de fora? Ele continua a experimenta-lo como algo

espontâneo (i.e., ele é totalmente inconsciente de que seus movimentos são

manipulados?), ou ele esta ciente de que “algo está errado”, de que outro

 poder externo está comandando seus movimentos? Ainda mais crucial é

aplicar o mesmo raciocínio a um experimento idêntico realizado com

humanos (que, apesar de questões éticas, não seria muito mais complicado,

tecnicamente falando, do que em relação ao rato). No caso do rato, pode-se

argumentar, não se poderia aplicar a essa experiência a categoria humana de

“experiência”, como seria o caso se ela fosse feita com um ser humano.

Então, mais uma vez, um ser humano cujos movimentos são comandados de

fora continua a vivenciar seus movimentos como algo espontâneo? Ele permanecerá totalmente inconsciente de que seus movimentos são

manipulados, ou estará ciente de que “alguma coisa está errada”, de que um

 poder exterior está comandando seus movimentos? E como, precisamente,

este “poder externo” aparecerá –  como algo “dentro de mim”, uma

inexorável pulsão interna, ou como uma simples coerção externa?20 Talvez a

situação seja aquela descrita no famoso experimento de Benjamin Libet21; o

ser humano comandado continuará a vivenciar o impulso para se mover como sua decisão “espontânea”, mas – devido ao famoso meio segundo de

defasagem  – ele conservará a liberdade mínima para bloquear essa decisão.

É também interessante que aplicações desse mecanismo foram mencionadas

 pelos cientistas e repórteres: os primeiros artigos concerniam ao par ajuda

humanitária e campanha antiterrorista (alguém poderia usar os ratos ou

outros animais manipulados para contactar vítimas de um terremoto sob os

escombros, bem como para aproximar-se de terroristas sem arriscar vidas

humanas). E o crucial que se deve ter em mente aqui é que essa estranha

experiência da mente humana diretamente integrada a uma máquina não é a

visão de um futuro ou de algo novo, mas o vislumbre de algo que sempre

20 Cognitivistas diversas vezes nos advertiram para levar em conta uma evidência de senso comum: claro que podemosnos entregar a especulações sobre como nós não somos os agentes causais de nossos atos, de como nossos movimentoscorporais são comandados por um misterioso espírito mau, no sentido em que apenas aparentemente decidimoslivremente o que nossos movimentos fazem. Na falta de boas razões, tal cinismo é, no entanto, simplesmenteinjustificado. Não obstante, o experimento com o rato não oferece uma razão pertinente para considerar tal hipótese?

21 Benjamin Libet, "Unconscious Cerebral Initiative and the Role of Conscious Will in Voluntary Action," in TheBehavioral and Brain Sciences, 1985, Vol. 8, p. 529- 539, and Benjamin Libet, "Do We Have Free Will?", in Journal of Consciousness Studies, 1999, Vol. 1, p. 47-57.

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esteve em curso, que está aqui desde o começo, na medida em que é co-

substancial à ordem simbólica. O que muda é que, confrontada com a

materialização direta da máquina, sua integração direta à rede neuronal, não

se pode mais sustentar a ilusão da autonomia da personalidade. É notório

que os pacientes que necessitam de diálise no início experimentam um

devastador sentimento de desamparo: é difícil aceitar o fato de que a própria

sobrevivência depende de um dispositivo mecânico que eu vejo aí fora,

diante de mim. Todavia, o mesmo vale para todos nós: em termos um tanto

exagerados, todos nós estamos na dependência de um aparato simbólico-

mental de diálise.

A tendência no desenvolvimento dos computadores é em direção à

sua invisibilidade. As grandes máquinas ruidosas com misteriosas luzes que

 piscam serão cada vez mais substituídas por minúsculos bits encaixando-se

imperceptivelmente em nossos ambientes “normais”, permitindo que eles

funcionem mais facilmente. Os computadores se tornarão tão pequenos que

eles serão invisíveis, em todos os lugares e em parte alguma – tão poderosos

que irão sumir da vista. Poderíamos tão somente relembrar como são os

carros de hoje, onde muitas funções ocorrem facilmente por causa dos

 pequenos computadores que nós frequentemente ignoramos (abertura de janelas, aquecimento...). Em um futuro próximo, teremos cozinhas

computadorizadas, roupas, óculos e sapatos. Longe de ser uma questão para

um futuro distante, essa invisibilidade já está aqui: a Phillips planeja em

 breve colocar no mercado um fone e tocador de música integrado a uma

 jaqueta de tal maneira que não apenas será possível vesti-la normalmente

(sem preocupação com o que poderá acontecer com o mecanismo digital),

mas até mesmo lavá-la sem dano ao equipamento eletrônico. Estadesaparição do campo de nossa experiência sensória (visual) não é tão

inocente quanto pode parecer: a mesma característica que fará a jaqueta da

Phillips algo fácil de se lidar (não mais uma máquina frágil e incômoda, mas

uma prótese quase orgânica de nosso corpo) irá conferir-lhe a qualidade de

uma espécie de fantasma de um Mestre invisível e onipotente. A prótese

maquínica será menos um aparato externo com quem interagimos, e mais

 parte de nossa direta experiência de nós mesmos como organismos vivos  –  consequentemente, descentrando-nos a partir de dentro. Por essa razão, o

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20

 paralelo entre o crescimento da invisibilidade dos computadores e o fato

notório de que quando as pessoas aprendem algo suficientemente bem elas

deixam de ser conscientes disso, é enganoso. O sinal de que aprendemos

uma língua é que nós não precisamos mais enfocar suas regras: nós não

apenas falamos-na “espontaneamente”, mas uma atenção ativa em suas

regras até mesmo nos impede de falarmos fluentemente. Contudo, no caso

da língua, nós anteriormente temos que aprendê-la (“tê-la em nossa mente”), 

enquanto que computadores invisíveis em nossos ambientes estão aí fora,

não atuando “espontaneamente”, mas simplesmente cegamente. 

Poder-se-ia aqui dar um passo a mais: Bo Dahlbom está certo, em

sua crítica de Dennett22, onde ele insiste no caráter social da “mente” – não

apenas as teorias da mente são obviamente condicionadas por seu contexto

social, histórico (a teoria de Dennett de múltiplos esquemas rivais não se

mostra enraizada no capitalismo tardio “pós-industrial”, com seus motivos

de competição, descentralização, etc.?  – uma noção também desenvolvida

 por Fredric Jameson, que propôs uma leitura de Consciência

 Explicada como uma alegoria do capitalismo atual). De maneira muito mais

importante, a insistência de Dennett em como ferramentas  –  inteligência

externalizada com as quais os humanos contam  –  são parte inerente daidentidade humana (é sem sentido imaginar como uma entidade biológica

SEM a complexa rede de suas ferramentas  –  tal noção seria como, por 

exemplo, um ganso sem suas penas), abre uma via que poderia ir muito mais

longe do que vai o próprio Dennett. Dado que, para colocar nos bons e

velhos termos marxistas, o homem é a totalidade de suas relações sociais,

 por que Dennett não dá o próximo passo lógico e analisa diretamente esta

rede de relações sociais? Este domínio da “inteligência externalizada”, dasferramentas até a própria linguagem, especialmente, forma um domínio

 próprio, que é o que Hegel chamou de “espírito objetivo”, o domínio da

substância artificial como oposta à substância natural. A fórmula proposta

 por Dahlbom então é: da “Sociedade de Mentes” (noção desenvolvida por 

Minsky, Dennett e outros) para “Mentes da Sociedade” (i.e., a mente

humana como algo que pode emergir e funcionar apenas dentro de uma

22 Bo Dahlbom, "Mind is Artificial," in Dennett and His Critics, ed. by Bo Dahlbom, Oxford: Blackwell 1993.

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21

complexa rede de relações sociais e suplementos artificiais mecânicos que

“objetivam” a inteligência). 

4. Un jour , peut-être, le siècle sera empi r iomoniste?  

As coordenadas elementares da ontologia de Deleuze são assimfornecidas pela oposição “schellingiana” entre o Virtual e o efetivo: o

espaço do efetivo (atos reais no presente, realidade experienciada, e sujeitos

como pessoas qua indivíduos formados) acompanhado por sua sombra

virtual (o campo da proto-realidade, de singularidades múltiplas, elementos

impessoais posteriormente sintetizados dentro de nossa experiência da

realidade). Este é o Deleuze do “empirismo transcendental”, o Deleuze que

dá ao transcendental de Kant sua única virada: o próprio espaço

transcendental é o espaço virtual de potencialidades múltiplas singulares, de

“puros” gestos impessoais singulares, afetos, e percepções que não são

ainda os gestos-afetos-percepções DE um sujeito pré-existente, estável, e

auto-idêntico. Este é o motivo de que, por exemplo, Deleuze celebre a arte

do cinema: ele “liberta” o olhar, imagens, movimentos, e, afinal, o próprio

tempo de sua atribuição a um dado sujeito  – quando assistimos um filme,

nós vemos o fluxo de imagens a partir da perspectiva da câmera

“mecânica”, uma perspectiva que não pertence a nenhum sujeito; através da

arte da montagem, o movimento também é abstraído/libertado de sua

atribuição a um sujeito ou objeto dado  – é um movimento impessoal que é

apenas secundariamente, posteriormente, atribuído a algumas entidades

 positivas.

Aqui, contudo, aparece a primeira rachadura nesse edifício: em um

movimento longe de ser evidente, Deleuze liga seu espaço conceitual à

tradicional oposição entre produção e representação. O campo virtual é

(re)interpretado como o espaço das forças produtoras, geradoras, oposto ao

espaço das representações. Aqui temos todos os tópicos padrão dos campos

moleculares múltiplos de produção constrangidos pelas organizações

molares totalizadoras, e assim por diante. Sob a rubrica da oposição entre

devir e ser, Deleuze então parece identificar essas duas lógicas, ainda que

elas sejam fundamentalmente incompatíveis (fica-se tentado a atribuir a

“má” influência que o teria empurrado em direção à segunda lógica a Félix

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Guattari)23. O campo próprio da produção NÃO é o espaço virtual como tal,

mas, melhor dizendo, a passagem mesma desse campo para a realidade

constituída, o colapso da multidão e suas oscilações dentro de uma realidade

 –  produção é fundamentalmente uma limitação do espaço aberto de

virtualidades, a determinação/negação da multidão virtual (é assim que

Deleuze lê o omni determinatio est negatio de Spinoza contra Hegel).

A linha de Deleuze propriamente é a das primeiras grandes

monografias (as obras chave seriam Diferença e Repetição e A Lógica do

Sentido) bem como os pequenos escritos introdutórios (como Proust e os

Signos e a introdução a Sacher-Masoch). Em seu trabalho mais recente, são

dois livros de cinema que marcam o retorno aos tópicos de  A lógica do

Sentido. Esta série deve ser distinguida dos livros de Deleuze e Guattari

 juntos, e pode-se apenas lamentar que a recepção anglo-saxã de Deleuze (e,

também, o impacto político de Deleuze) seja predominantemente a do

Deleuze “guattarizado”. É crucial notar que NENHUM TEXTO QUE SEJA

APENAS DE Deleuze é, em qualquer sentido, diretamente político; Deleuze

é “em si mesmo” um autor altamente elitista, indiferente em relação à

 política. A única questão séria filosófica, consequentemente, é: que impasse

inerente fez com que Deleuze se voltasse para Guattari? Anti-Édipo, possivelmente o pior trabalho de Deleuze, não é o resultado da fuga da total

confrontação com um impasse através de uma solução simplificada

“frouxa”, homóloga à escapada de Schelling do impasse de seu projeto

Weltalter atr avés de sua mudança para a dualidade da filosofia “positiva” e

“negativa”, ou Habermas escapando do impasse da “Dialética do

Esclarecimento” através de sua mudança para a dualidade da razão

instrumental e comunicacional? Nossa tarefa é confrontar novamente esseimpasse. Deleuze, então, não foi em direção a Guattari porque este último

apresentava um álibi, uma saída fácil do impasse de sua posição anterior? O

edifício conceitual de Deleuze não se apóia em DUAS lógicas, em DUAS

oposições conceituais, as quais coexistem em seu trabalho? Esta percepção

 parece tão óbvia, essa declaração assemelha-se tanto ao que os franceses

23 Eu sigo aqui Alain Badiou, em cuja leitura de Deleuze eu me apoio extensivamente; Badiou, Deleuze: The Clamour of Being, Minneapolis: University of Minnesota Press 2000.

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chamam de lapalissade, que é de surpreender que ela ainda não tenha sido

amplamente percebida:

(1) por um lado, a lógica do sentido, do devir imaterial como o

evento-sentido, como o EFEITO dos processos-causas corporais-materiais, a

lógica da lacuna radical entre processo gerador e seu imaterial efeito-

sentido: “multiplicidades, enquanto efeitos incorpóreos de causas materiais,

são impassíveis ou entidades de causalidade estéril. O tempo do puro devir,

sempre já passado e eternamente ainda por vir, forma a dimensão temporal

desta impassibilidade ou esterilidade de multiplicidades.”24 E não é o

cinema o caso derradeiro do fluxo estéril do devir superficial? A imagem do

cinema é inerentemente estéril e impassível, o puro efeito de causas

corpóreas, ainda que, contudo, adquirindo sua pseudo-autonomia.

(2) por outro lado, a lógica do devir como PRODUÇÃO de seres:

“a emergência [emergence] de propr iedades métricas ou extensivas

deveriam ser tratadas como um processo único no qual um espaço-tempo

virtual contínuo progressivamente diferencia-se dentro das estruturas

espaço-temporais descontínuas efetivas25.

Quer dizer, em suas análises de filmes e literatura, Deleuze enfatiza

a dessubstanciação de afetos: em uma obra de arte, um afeto (tédio, por 

exemplo) não é mais atribuível a pessoas efetivas, tornando-se um evento de

livre flutuação. Como, então, essa intensidade impessoal de um afeto-evento

relaciona-se a corpos ou pessoas? Encontramos aqui a mesma ambiguidade:

ou este afeto imaterial é gerado por corpos interagindo como uma superfície

estéril de puro devir, ou ele é parte de intensidades virtuais fora das quais os

corpos emergem através da atualização (a passagem do Devir ao Ser).

E essa oposição não é, mais uma vez, aquela do materialismo

versus idealismo? Em Deleuze, isso significa: A lógica do

Sentidoversus Anti-Édipo. OU o Sentido-Evento, o fluxo do puro Devir, é o

efeito imaterial (neutro, nem ativo nem passivo) da intricação das causas

materiais-corpóreas, OU as entidades positivas corpóreas são elas próprias o

 produto do puro fluxo de Devir. Ou o campo infinito de virtualidade é um

24 Manuel DeLanda, Intensive Science and Virtual Philosophy, New York: Continuum 2002, pp. 107-108.

25 Manuel DeLanda, op.cit., p. 102.

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efeito imaterial da interação de corpos interagindo, ou os próprios corpos

emergem, se atualizam a partir desse campo de virtualidade. Em A lógica do

Sentido, o próprio Deleuze desenvolve esta oposição sob a forma de dois

 possíveis modos de gênese da realidade: a gênese formal (a emergência

[emergence] da realidade fora da imanência da consciência impessoal como

o puro fluxo de Devir) é suplementada pela gênese real, a última explicação

 para a emergência [emergence] do próprio evento-superfície imaterial fora

da interação corporal. Às vezes, quando seguimos o primeiro caminho,

Deleuze aproxima-se perigosamente das fórmulas “empiriocriticistas”: o

fato primordial é que o puro fluxo da experiência, que não pode ser 

atribuído a nenhum sujeito, não é nem subjetivo nem objetivo  –  sujeito e

objeto, como todas as entidades fixas, são simplesmente “coagulações”deste fluxo. Esta é a descrição típica da posição filosófica básica de

Bogdanov, o principal representante do “empiriocriticismo” russo, mais

conhecido como o alvo da crítica de Lênin em seu  Materialismo e

 Empiriocriticismo de 1908:

Se (...) nós assumimos que os elementos últimos da experiência são as sensações, é

óbvio que o que nós comumente pensamos como o mundo da experiência não teria

surgido sem um processo de organização. (...) o que nós consideramos como o

mundo material, natureza, o mundo comum, é o produto da experiência

coletivamente organizada, tendo uma base social. Quer dizer, o mundo comum

enquanto vivenciado tem sido progressivamente formado no curso da história

humana fora do curso da sensação material crua. (...) além do mundo que é

 basicamente o mesmo para todos, existem, por assim dizer, mundos privados. Quer 

dizer, além da experiência coletivamente organizada, há organização na forma de

idéias ou conceitos que diferem de pessoa para pessoa, ou de um grupo para outro.

Existem diferentes pontos de vista, diferentes teorias, diferentes ideologias26.

Bogdanov enfatizou que o fluxo de sensações precede o sujeito:

não é um fluxo subjetivo, mas neutro em relação à oposição entre sujeito e

realidade objetiva  –  ambos emergem fora deste fluxo (i.e.,

“empiriomonismo”, uma das auto-designações dos empiriocriticistas  – esse

termo não é uma designação adequada também do “empirismo

transcendental” de Deleuze?... sem mencionar o “mecanismo” de

Bogdanov, sua noção de desenvolvimento “maquínica”...). Lacan versus

26 Frederick Copleston, Philosophy In Russia, Notre Dame: University of Notre Dame Press 1986, p. 286.

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Deleuze: mais uma vez materialismo dialético versus

empiriocriticismo? Deleuze  –  um novo Bogdanov? De uma maneira

 protodeleuziana, Bogdanov acusou os defensores da Matéria como uma

Coisa-em-si existindo objetivamente de cometer o pecado capital metafísico

de explicar o conhecido em termos do desconhecido, o experimentado em

termos do não-experimentado – exatamente como a rejeição de Deleuze de

toda forma de transcendência. Além disso, Bogdanov foi também um

esquerdista radical, adepto de experimentos maquínicos: sua atitude básica

foi precisamente a de unir o “vitalismo” do fluxo de sensações com a

combinatória maquínica. Ainda que Bogdanov apoiasse os Bolcheviques

contra o reformismo oportunista, sua postura política foi a de um

esquerdista radical lutando pelas organizações que se formam “de baixo”, enão impostas de cima por alguma autoridade central27.

Quando, em A Lógica do Sentido, Deleuze desdobra as duas

gêneses, transcendental e real, ele não segue, nesse sentido, os passos de

Fitche e Schelling? O ponto de partida de Fitche é que se pode praticar 

filosofia de duas maneiras básicas, idealista e espinoziana: pode-se ou partir 

de uma realidade objetiva e tentar desenvolver a partir dela a gênese da

subjetividade livre, ou partir da pura espontaneidade do Sujeito absoluto etentar desenvolver a totalidade da realidade como o resultado do

autoposicionamento do Sujeito. O Schelling dos primeiros trabalhos,

do Sistema do Idealismo Transcendental dá um passo além reivindicando

que, nesta alternativa, nós não estamos lidando com uma escolha: as duas

opções são complementares, não exclusivas. O idealismo absoluto, sua

reivindicação da identidade entre Sujeito e Objeto (Espírito e Natureza)

 pode ser demonstrada de duas maneiras: ou se desenvolve a Natureza forado Espírito (idealismo transcendental, à maneira de Kant e Fitche), ou se

desenvolve a emergência [emergence] gradual fora do movimento imanente

da Natureza (a própria Naturphllosophle de Schelling). Contudo, e o crucial

novo avanço alcançado por Schelling em seus fragmentos Weltalter , onde

27 É fácil ridicularizar Materialismo e Empiriocriticismode Lênin, sua total irrelevância filosófica, ainda que o “instinto político” do livro para a luta de classes teoricamente seja inequívoco e 100% correta. Todos nós lembramos asobservações de Lênin no que tange a Lógica de Hegel, a propósito dos enunciados de Hegel tais como “o

desdobramento imanente da riqueza concreta do universal como o autodesenvolvimento da Idéia eterna divina”, noestilo de “a primeira linha, profunda e verdadeira, a segunda linha, lixo teológico!” –  fica-se tentado a anotar umaobservação similar na crítica aMaterialismo e Empiriocriticismo: “o desdobramento da sobredeterminação política dafilosofia – profunda e verdadeira, o inerente valor filosófico do livro –  lixo!”. 

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ele introduz um TERCEIRO termo dentro dessa alternativa, nomeadamente,

o da gênese do Espírito (logos) não como tal fora da natureza  – como um

domínio constituído de realidade natural – mas fora da natureza de/em Deus

ele mesmo como aquele que está “no próprio Deus não mais Deus”, o

abismo pré-ontológico do Real em Deus, o movimento rotatório cego das

 paixões “irracionais”? Como Schelling torna claro, este domínio não é ainda

ontológico, mas, em um sentido, mais “espiritual” do que a realidade

natural: um domínio obscuro de fantasmas obscenos que retornam

repetidamente como “mortos vivos” porque eles FALHARAM em atualizar-

se inteiramente na realidade28. Para arriscar um paralelo anacrônico, esta

gênese, como a pré-história do que se passou em Deus antes que ele se

tornasse Deus inteiramente (o logos divino), não está, com efeito, próximada noção da física quântica do estado da oscilação quântica virtual

 precedendo a realidade constituída?

E, efetivamente, os resultados da física quântica? E se o que

importa FOR apenas uma reificada oscilação de onda? E se, no lugar de

conceber ondas como oscilações entre elementos, os elementos forem

apenas nós, pontos de contato, entre diferentes ondas e suas oscilações? Isto

não oferece um tipo de credibilidade científica ao projeto “idealista” de arealidade corpórea ser gerada a partir das intensidades virtuais? Há uma

maneira de conceituar a emergência [emergence] de Algo fora de Nada de

uma maneira materialista: quando somos bem sucedidos em conceber esta

emergência [emergence] não como um excesso misterioso, mas como uma

DESCARGA – uma PERDA – de energia. O notório “Campo de Higgs” na

física contemporânea não aponta precisamente nesta direção? Geralmente,

quando removemos alguma coisa de um dado sistema, nós diminuímos suaenergia. No entanto, a hipótese é a de que há alguma substância, “alguma

coisa” que nós não podemos retirar de um dado sistema sem AUMENTAR 

essa energia do sistema: quando o “campo de Higgs” aparece em um espaço

vazio sua energia diminui mais29. A percepção biológica de que esses

sistemas vivos são talvez melhor caracterizados como sistemas que

28 F.W.J. Schelling, The Ages of the World, Albany: SUNY Press 2000.

29 Para uma referência mais detalhada ao “Campo de Higgs”, ver o capítulo 3 de meu livro The Puppet and the Dwarf,Cambridge. MIT Press 2003. Para uma popular explanação científica, Gordon Kane, 5upersymmetry, Cambridge: HelixBooks 2001.

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dinamicamente evitam atratores (i.e., de que processos de vida são mantidos

em ou próximos de estágios de transição) não aponta na mesma direção, no

sentido da pulsão de morte freudiana em sua oposição radical a toda noção

de que a tendência de toda vida é em direção ao nirvana? Pulsão de morte

significa precisamente que a mais radical tendência de um organismo vivo é

manter um estado de tensão, evitar o “relaxamento” final na obtenção de um

estado de total homeostase. “Pulsão de morte” como “além do princípio do

 prazer” é esta mesma insistência de um organismo em repetir 

incessantemente o estado de tensão.

Deveríamos então livrar-nos do medo de que, uma vez que

constatemos que a realidade é o infinitamente divisível, vazio

dessubstanciado dentro de um vazio, a “matéria desaparecerá”. O que a

revolução digital informacional, a revolução biogenética, e a revolução

quântica na física compartilham e que todas elas marcam é o ressurgimento

do que, por falta de um termo melhor, poderíamos chamar de um idealismo

 pós-metafísico. Isto é como se a percepção de Chesterton de como a luta

materialista pela total afirmação da realidade, contra sua subordinação a

qualquer ordem metafísica “elevada”, culminando em uma perda da própria

realidade: o que começou como a afirmação da realidade material terminacomo o domínio das puras fórmulas de física quântica. No entanto, esta

realidade é uma forma de idealismo? Desde que a posição materialista

afirma que não há Mundo, que o Mundo em sua totalidade é Nada, o

materialismo não tem nada a fazer com a presença da matéria densa, úmida

 – suas próprias imagens são, antes, constelações nas quais a matéria parece

“desaparecer”, como as puras oscilações de super -cordas ou vibrações

quânticas. Em contraste, se vemos na matéria inerte, crua, mais que uma telaimaginária, nós sempre secretamente aprovamos algum tipo de

espiritualismo, como em Solaris de Tarkovsky, no qual a densa matéria

 plástica do planeta incorpora diretamente a Mente. Este “materialismo

espectral” tem três formas diferentes: na revolução informacional, a matéria

é reduzida ao meio da informação puramente digitalizada; em biogenética, o

corpo biológico é reduzido ao meio de reprodução do código genético; em

física quântica, a própria realidade, a densidade da matéria, é reduzida aocolapso da virtualidade das oscilações de onda (ou, na teoria geral da

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relatividade, a matéria é reduzida a um efeito da curvatura do espaço). Aqui

encontramos OUTRO aspecto crucial da oposição idealismo/materialismo: o

materialismo não é a afirmação da densidade material inerte em seu peso

úmido  – TAL materialismo pode sempre servir como um suporte para um

obscurantismo espiritualista gnóstico. Em contraste com este último, um

verdadeiro materialismo assume alegremente a “desaparição da matéria”, o 

fato de que há apenas vazio.

Com a biogenética, o programa nietzschiano de afirmação enfática

e extática do corpo está, então, concluído. Longe de servir como a referência

verdadeira, o corpo perde sua densidade impenetrável misteriosa e torna-se

algo tecnologicamente manejável, algo que podemos gerar e transformar 

através da intervenção em sua fórmula genética  – em suma, alguma coisa

cuja verdade está nesta fórmula genética abstrata. E é crucial conceber as

duas aparentemente opostas “reduções” discerníveis na ciência atual (a

redução “materialista” de nossa experiência aos processos neurais nas

neurociências, e a virtualização da própria realidade em física quântica)

como dois lados da mesma moeda, como duas reduções ao mesmo terceiro

nível. A velha idéia popperiana do “Terceiro Mundo” é aqui levada ao seu

extremo: o que temos no final não é nem o materialismo “objetivo” nem aexperiência “subjetiva”, mas a redução de AMBOS ao Real científico do

 processo matematizado “imaterial”. 

A consequência do materialismo versus idealismo torna-se então

mais complexa. Se aceitarmos a reivindicação da física quântica de que a

realidade que vivenciamos como constituída emerge fora de um campo

 precedente de intensidades virtuais as quais são, em certo sentido,

“imateriais” (oscilação quântica), então a realidade corporificada é o

resultado da atualização do puro evento-como virtualidades. E se, neste

caso, tivermos aqui um duplo movimento?: primeiro, a própria realidade

 positiva é constituída através da atualização do campo virtual de

 potencialidades “imateriais”; então, em um segundo movimento, a

emergência [emergence] do pensamento e do sentido sinalizam o

momento em que a realidade constituída, pode-se dizer, reconecta-se com

sua gênese virtual. Schelling não perseguia algo similar quando elereivindicou que, na explosão da consciência, do pensamento humano, o

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abismo primordial de pura potencialidade explode, adquire existência, em

meio a realidade positiva criada  –  o homem é a única criatura que está

diretamente (re)conectada com o abismo primordial fora do qual todas as

coisas emergem?30 Talvez Roger Penrose esteja certo: há uma ligação entre

as oscilações quânticas e o pensamento humano.31

30 F.W.J. Schelling, op.cit.