ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo...
-
Upload
maujac13419 -
Category
Documents
-
view
220 -
download
0
Transcript of ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo...
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 1/29
1
1. A Realidade do Virtual*
A medida do verdadeiro amor por um filósofo é que se reconhece
traços de seus conceitos por toda parte em nossa experiência diária.
Recentemente, enquanto assistia novamente a Ivan, o terrível de Sergei
Eisenstein, notei um maravilhoso detalhe na cena da coroação no início da
primeira parte: quando os dois amigos mais próximos (no momento) de Ivan
derramam moedas de ouro de grandes baixelas em sua cabeça recém ungida,
essa verdadeira chuva não pode deixar de surpreender o espectador por seu
caráter magicamente excessivo – mesmo depois de vermos as duas baixelas
quase vazias, cortamos para a cabeça de Ivan na qual moedas de ouro
continuam “irrealisticamente” a ser derramadas em um fluxo contínuo. Esse
excesso não é extremamente “deleuziano”? Não é o excesso do puro fluxo
de devir sobre sua causa corporal, do virtual sobre o efetivo?
A primeira determinação que vem à mente a propósito de Deleuze
é que ele é o filósofo do Virtual – e a primeira reação a isso deveria ser a de
opor a noção de Deleuze do Virtual ao tópico onipresente da realidade
virtual: o que importa para Deleuze não é a realidade virtual, mas a
realidade do virtual (que, em termos lacanianos, é o Real. Realidade virtual
é, por melhor dizer, uma ideia miserável, de imitar a realidade, de
reproduzir sua experiência em um meio artificial). A realidade do Virtual,
ao contrário, representa a realidade do Virtual como tal, por seus reais
efeitos e consequências. Vamos usar um atrator de matemática: todos as
linhas ou pontos positivos em sua esfera de atração apenas se aproximam de
maneira interminável, nunca alcançando sua forma – a existência dessa
forma é puramente virtual, não sendo nada além do modelo em direção ao
qual as linhas e pontos tendem. Contudo, em si mesmo precisamente, o
virtual é o Real desse campo: o imóvel campo focal em torno do qual todos
os elementos circulam. O Virtual não é, afinal, o Simbólico como tal?
Vamos considerar a autoridade simbólica: para funcionar como uma efetiva
autoridade, ela tem que permanecer não inteiramente realizada, uma ameaça
eterna.
*
Extraído de ZIZEK, Slavoj. Organs withou bodies: Deleuze and consequences. New york: Taylor & Fracis Books,2004. Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes Pereira, disponível emhttp://naturezaemclose.blogspot.com/2010/09/orgaos-sem-corpos-gilles-deleuze-por.html
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 2/29
2
Talvez a diferença ontológica entre o Virtual e o Efetivo seja mais
bem capturada pela mudança na maneira como a física quântica concebe as
relações entre as partículas e suas interações: em um momento inicial, elas
aparecem como se primeiro (ontologicamente, ao menos) as partículas
interagissem sob a forma de ondas, oscilações, etc.; então, em um segundo
momento, somos obrigados a representar uma radical mudança de
perspectiva – o fato ontológico primordial é que as próprias ondas
(trajetórias, oscilações), e partículas não são senão o ponto nodal no qual
diferentes ondas intercedem1. Isso nos introduz à ambigüidade da relação
entre o virtual e o efetivo: (1) O olho humano REDUZ a percepção da luz;
ele percebe a luz de uma determinada maneira (percebendo certas cores,
etc.), uma rosa de uma maneira, um morcego de outra... O feixe de luz “emsi mesmo” não é efetivo, mas, sobretudo, a pura virtualidade de infinitas
possibilidades efetivadas de múltiplas maneiras; (2) por outro lado, o olho
humano EXPANDE a percepção – ele inscreve o que ele “realmente vê” em
uma intrincada rede de memórias e antecipações (como Proust com o gosto
da madeleine), podendo desenvolver novas percepções, etc2.
O gênio de Deleuze reside em sua noção de “empirismo
transcendental”: em contraste com a noção padrão do transcendental como arede conceitual formal que estrutura o rico fluxo de dados empíricos, o
“transcendental” deleuziano é infinitamente MAIS RICO do que a realidade
– ele é o campo potencial infinito de virtualidades fora do qual a realidade é
efetivada. O termo “transcendental” é aqui usado no estrito sentido
filosófico de condições a priori de possibilidade de nossa experiência da
realidade constituída. O acoplamento paradoxal de pontos opostos
(transcendental + empírico) em direção a um campo de experiência além da
1 A genealogia dos conceitos de Deleuze é frequentemente estranha e inesperada – quer dizer, sua afirmação da noçãoanglo-saxã de relações externas é claramente devida à problemática religiosa da graça. A conexão que falta aqui éAlfred Hitchcock, o inglês católico, em cujos filmes uma mudança nas relações entre as pessoas, de maneira alguma
baseada em seus personagens, totalmente externa a eles, muda tudo, afetando-as profundamente (ou seja, quando noinício de North by Northwest [Intriga Internacional], Thornhill é erroneamente identificado como Kaplan). A leituracatólica de Hitchcock feita por Chabrol e Rohmer (em seu Hitchcock, 1954) influenciou profundamente Deleuze, vistoque, na tradição jansenista, seu foco é precisamente a “graça” como uma intervenção divina contingente, que não temnada a ver com as inerentes virtudes e qualidades dos personagens afetados.
2 E essa ambigüidade não é homóloga ao paradoxo ontológico da física quântica? A mesma “realidade dura” que
emerge da flutuação através do colapso da onda-função, é o resultado da observação, i.e., da intervenção da consciência.A consciência não é, então, o domínio da potencialidade, opções múltiplas, etc., como oposta à dura simples realidade – a realidade PRECEDENTE à sua percepção é aberta-múltipla-fluida, e a percepção consciente reduz sua multiplicidadeespectral, pré-ontológica a uma realidade ontológica inteiramente constituída.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 3/29
3
(ou, até mesmo, sob a) experiência da realidade constituída/percebida.
Permanecemos aqui dentro do campo da consciência – Deleuze define o
campo do empirismo transcendental como “uma pura corrente a-subjetiva
de consciência, uma impessoal consciência pré-reflexiva, uma duração
qualitativa de consciência sem self ”3. Não é de admirar que (uma de) sua(s)
referência(s) aqui seja o Fitche tardio, que tentou pensar o processo absoluto
de autoposicionamento como um fluxo de vida além das oposições de
sujeito e objeto:
Uma vida é a imanência da imanência, imanência absoluta: ela é o
puro poder, total beatitude. Na medida em que ela vence as aporias do
sujeito e do objeto, Fitche, em sua última fase, apresenta o campo
transcendental como uma vida que não é tributária de um Ser e não está
assujeitada a um Ato: uma consciência absoluta imediata cuja mesma
atividade não se refere mais de volta ao ser, mas posiciona-se
incessantemente a si mesma em uma vida4.
Talvez Jason Pollock seja o derradeiro “pintor deleuziano”:
seu action-painting não torna diretamente seu fluxo de puro devir, a vida-
energia inconsciente-impessoal, o abrangente campo da virtualidade além
do que determinadas pinturas podem elas mesmas realizar, o campo das
puras intensidades sem significado a ser trazido à luz pela interpretação? O
culto à personalidade de Pollock (machão americano alcoólatra) é
secundário em relação a essa característica fundamental: longe de
“expressar” sua personalidade, seus trabalhos a “negam”/obliteram5.
O primeiro exemplo que vem à mente no campo do cinema é
Sergei Eisenstein: se seus filmes antigos mudos são lembrados
primeiramente por causa de sua prática da montagem em seus diferentes
aspectos, da “montagem de atrações” à “montagem intelectual” (i.e., se sua
ênfase é nos cortes), então seus filmes sonoros “maduros” deslocam o foco
para a proliferação contínua do que Lacan chamou sinthomes, dos traços de
intensidades afetivas. Relembremos, através de ambas as partes de Ivan, o
3 Gilles Deleuze, "Immanence: une vie...," citado por John Marks, Gilles Deleuze, London: Pluto Press 1998, p. 29.
4 Deleuze, op.cit.p.30. Fica-se tentado a opor a esta imanência absoluta do fluxo de vida deleuziana, como a
consciência pré-subjetiva, ao sujeito inconsciente freudiano-lacaniano ($) como o agenciamento da pulsão de morte.5 E a oposição Pollock-Rothko? Ela não corresponde à oposição Deleuze versus Freud-Lacan? O campo virtual das
potencialidades versus a diferença mínima, a fissura entre fundo e figura?
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 4/29
4
terrível , o motivo da estrondosa explosão de raiva que é continuamente
metamorfoseado e então assume diferentes formas, da própria trovoada até
explosões de fúria incontrolada: ainda que possa a princípio parecer uma
expressão da psique de Ivan, seu som se separa de Ivan e começa a pairar,
passando de uma pessoa à outra ou a um estado não atribuível a qualquer
pessoa diegética. Este motivo NÃO deveria ser interpretado como uma
“alegoria” com um “significado profundo” fixo, mas como uma pura
intensidade “mecânica” além do sentido (isto é o que Eisenstein almejou em
seu idiossincrático uso do termo “operacional”). Outros semelhantes
motivos ecoam e revogam um ao outro, ou, no que Eisenstein chamou de
“transferência nua”, salta de um meio expressivo a outro (quer dizer , quando
uma intensidade torna-se muito forte no meio visual de meras formas, elesalta e explode em movimento – consequentemente em som, ou em cor...).
Por exemplo, Kirstin Thompson assinala como o motivo de um olho
em Ivan é um “motivo flutuante”, rigorosamente sem sentido em si mesmo,
mas um elemento repetido que pode, de acordo com o contexto, adquirir um
alcance de implicações expressivas (alegria, suspeita, vigilância, onisciência
quase divina)6. E os momentos mais interessantes em Ivan ocorrem quando
tais motivos parecem explodir em seu espaço pré-ordenado: eles não apenasadquirem uma multidão de sentidos ambíguos não mais cobertos por uma
temática abrangente ou programa ideológico; nos momentos mais
excessivos, tal motivo parece não ter absolutamente qualquer sentido, em
lugar de apenas flutuar como uma provocação, como um desafio a encontrar
o sentido que domesticaria seu puro poder provocativo...
Entre os cineastas contemporâneos, aquele que se presta idealmente
a uma leitura deleuziana é Robert Altman, cujo universo, melhor exemplificado por sua obra prima Short Cuts, é efetivamente este dos
encontros contingentes entre uma infinidade de séries, um universo no qual
diferentes séries se comunicam e ressoam correspondendo ao que o próprio
Altman se r efere como uma “realidade subliminar” (choques mecânicos sem
sentido, encontros, e intensidades impessoais que precedem o nível do
sentido social)7. Quando, então, em Nashville, a violência explode no final
6 Kirstin Thompson, Eisenstein's "Ivan the Terrible": A Neoformalist Analysis, Princeton: Princeton University Press1981.
7 Robert T. Self, Robert Altman's Subliminal Reality, Minneapolis: Minnesota University Press 2002.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 5/29
5
(o assassinato de Barbara Jean no concerto), esta explosão, ainda que não
preparada e não explicada pelo nível da linha explícita narrativa, é, contudo,
experimentada como inteiramente justificada, na medida em que o solo para
isso foi deixado no nível dos signos circundantes na “realidade subliminar”
do filme. E, não é isso que, quando escutamos as canções em Nashville,
Altman mobiliza diretamente o que Brian Massumi chamou a “autonomia
do afeto”8? Isto é, interpretamos absolutamente mal Nashville se situamos as
canções dentro do horizonte global da descrição irônico-crítica da vacuidade
e alienação comercial ritualizada do universo da música country americana:
ao contrário, somos autorizados – até seduzidos – a desfrutar inteiramente a
música em si mesma, em sua intensidade afetiva, independentemente do
óbvio projeto crítico-ideológico de Altman. (E, aliás, o mesmo vale para asmúsicas das grandes peças de Brecht: seu prazer musical é independente de
sua mensagem ideológica.) O que isso significa é que dever-se-ia também
evitar a tentação de reduzir Altman a um poeta da alienação americana,
representando o desespero silencioso das vidas cotidianas: Há outro Altman,
aquele que se abre aos alegres encontros contingentes. Juntamente às linhas
da leitura de Deleuze e Guattari do universo de Kafka da Ausência do
inacessível e elusivo Centro transcendente (Castelo, Corte, Deus) como aPresença de múltiplas passagens e transformações, fica-se tentado a ler o
“desespero e ansiedade” altmaniano como o enganoso obverso da mais
afirmativa imersão dentro da multidão de intensidades subliminares. Este
plano subjacente, claro, pode também conter o subtexto supereuóico
obsceno da mensagem ideológica “oficial” – relembremos o notório pôster
de recrutamento para o exército do “Tio Sam”:
Esta é uma imagem cujas demandas, senão desejos, parece absolutamente claro,enfocam um determinado objeto: ele quer “você”, isto é, o jovem com a idade
apropriada para o serviço militar. O alvo imediato da imagem se assemelha a uma
ver são do efeito medusa: isto é, ele “interpela” o observador, verbalmente, e tenta
magnetiza-lo com a franqueza de sua mirada e (sua mais maravilhosa característica
pictórica) a mão que parece projetar-se do quadro com o dedo apontando que
distingue o observador, acusando, designando e comandando-o. Mas o desejo de
magnetizar é apenas um alvo transitório e momentâneo. O motivo maior é incitar e
mobilizar o observador, enviar aquele que contempla „ao posto de recrutamento
8 Brian Massumi, "The Autonomy of Affect," in Deleuze: A Critical Reader, edited by Paul Patton, Oxford: Blackwell1996.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 6/29
6
mais próximo‟, e finalmente para além-mar para combater e possivelmente morrer
pelo seu país.
(...) Aqui o contraste com os pôsteres italianos e alemães é esclarecido. Estes são
pôsteres nos quais jovens soldados saúdam seus irmãos, convocam-nos para a
fraternidade honorável da morte em batalha. Tio Sam, como seu nome indica, tem
uma relação mais tênue, indireta com o potencial recruta. Ele é um homem velho a
quem falta o vigor da juventude para o combate, e talvez ainda mais importante,
falta a conexão direta de sangue que a figura da pátria poderia evocar. Ele solicita os
jovens para irem lutar e morrer em uma guerra na qual nem eles nem seus filhos
participarão. Não há filhos de Tio Sam (...) Tio Sam é estéril, uma figura de papelão
que não tem corpo, abstrata, sem sangue, mas que se faz passar pela nação e apela
aos filhos de outros homens a doar seus corpos e seu sangue.
Então, o que esse quadro quer? Uma análise completa poderia conduzir-nos a fundo
no inconsciente político de uma nação que é nomeadamente imaginada como uma
abstração incorpórea, um regime político Iluminado de leis e não de homens, de
princípios e não de relações de sangue, e na realidade incorporado como um lugar
onde velhos homens brancos enviam jovens homens e mulheres de todas as raças
(contando com uma grande desproporção no número de pessoas de cor) para lutar
suas guerras. O que essa nação real e imaginada necessita é de carne – corpos e
sangue – e o que ela designa para obtê-los é um homem oco, um fornecedor de
carne, ou talvez apenas um artista.9
A primeira coisa a se fazer aqui é adicionar a esta série o famoso
pôster soviético “A mãe pátria está te chamando”, no qual o interpelante é
uma forte mulher madura. Nós nos deslocamos então do tio imperialista
americano para os irmãos europeus da mãe comunista... – Aqui temos a
divisão, constitutiva da interpelação, entre a lei e o superego (ou vontade e
desejo). O que uma imagem como essa quer não é equivalente ao que ela
deseja: enquanto ela nos quer para participar da nobre luta pela liberdade,
ela deseja sangue, a proverbial Pound of our flesh*(não é de admirar que oidoso estéril “Tio (não pai) Sam possa ser decifrado como uma imagem
judaica, correspondente à leitura nazista das intervenções militares
*A expressão alude à peça de W. Shakespeare O Mercador de Veneza, em que o personagem Antonio contrai umadívida com o agiota judeu Shylock, oferecendo como garantia uma libra de sua própria carne (a Pound of his proper flesh); “Credores que insistem em ter sua “libra de carne” são aqueles que cruelmente exigem o pagamento de umadívida, não importando quanto sofrimento irá custar ao devedor(...).” em The American Heritage ® New Dictionary of Cultural Literacy, Third Edition Copyright © 2005 by Houghton Mifflin Company, no sítio:
http://dictionary.reference.com/browse/pound%20of%20flesh ** Ver acima
9 Tom Mitchell, "What Do Pictures Really Want?" in October 77 (Summer 1996), p. 64-66.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 7/29
7
americanas: “a plutocracia judaica quer o sangue de americanos inocentes
para alimentar seus interesses”). Em suma, seria ridículo dizer “O Tio Sam
deseja você”: Tio Sam quer você, mas ele deseja o objeto parcial em você,
seu Pound of flesh**... Quando uma chamada do superego QUER (e
ordena) que você faça, se fortaleça e seja bem sucedido, a mensagem secreta
do DESEJO é: “Eu sei que você não será capaz de cumprir isso, então eu
desejo que você falhe e triunfe em seu fracasso!!!” Este caráter do superego,
confirmado pela associação com Yankee Doodle (lembremos o fato de que
o superego ilustra um misto de ferocidade obscena com comédia clown), é
ainda sustentada pelo caráter contraditório de seu apelo: ele primeiro quer
deter nosso movimento e fixar nosso olhar para que, surpresos, nos fixemos
nele; em um segundo momento, ele quer que atendamos seu chamado esigamos para o escritório de recrutamento mais próximo – como se, depois
de nos deter, se dirige a nós com escárnio: “Por que você me olha fixamente
assim como um idiota? Não entendeu o que eu quis dizer? Vá ao posto de
alistamento mais próximo!” No típico gesto arrogante de escárnio
característico do superego, ele ri de nosso mesmo ato de levarmos a sério
seu primeiro chamado.
Quando Erik Santner me contou a respeito da brincadeira que seu pai fazia com ele quando era um garoto (o pai mostrava, abrindo diante dele,
sua palma, na qual havia em torno de uma dúzia de moedas diferentes; o pai
então fechava a mão depois de alguns segundos e perguntava ao menino a
quantia de dinheiro que havia – se o pequeno Erik adivinhasse a soma exata,
o pai lhe dava o dinheiro), esta anedota provoca em mim uma explosão de
profunda e incontrolável satisfação anti-semita exprimida em uma
gargalhada selvagem: “Viu só, esta é a maneira como os judeus realmenteensinam suas crianças! Não é um caso perfeito de sua própria teoria de uma
proto-história que acompanha a história simbólica explícita? No nível da
história explícita, seu pai provavelmente lhe contava histórias nobres sobre
o sofrimento dos judeus e o horizonte universal da humanidade, mas seu
verdadeiro ensinamento secreto estava contido nessas anedotas de como
fazer rapidamente transações com dinheiro”. O anti-semitismo efetivamente
É parte da base ideológica obscena de muitos de nós.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 8/29
8
E pode-se encontrar um subtexto obsceno semelhante mesmo onde
não se poderia esperar – em alguns textos que são comumente percebidos
como feministas. Com o intuito de confr ontar esta obscena “praga de
fantasias” que persiste no nível da “realidade subliminar” em seu mais
radical, é suficiente (re)ler The Handmaid's Tale de Margaret Atwood, a
distopia sobre a “República de Gilead”, um novo estado na costa leste dos
Estados Unidos que emergiu quando a Maioria Moral tomou posse. A
ambigüidade da novela é radical: seu objetivo “oficial” é, claro, apresentar
como são efetivamente percebidas as sombrias tendências conservadoras
com o intuito de nos prevenir sobre as ameaças do fundamentalismo cristão
– a visão evocada espera causar horror em nós. No entanto, o que salta aos
olhos é a fascinação absoluta com este universo imaginado e suas regrasinventadas. Mulheres férteis são distribuídas a esses membros privilegiados
da nova nomenklatura cujas esposas não podem ter filhos – proibidas de
ler, desprovidas de seus nomes (elas são nomeadas de acordo com o homem
que as possui: a heroína é Offred – “of Fred” [de Fred, pertencente a
Fred]) elas servem como receptáculos de inseminação. Quanto mais nós
lemos a novela, mais se esclarece que a fantasia que estamos lendo não é a
da maioria moral, mas a do próprio liberalismo feminista: um exatoespelho-imagem das fantasias sobre a degeneração sexual em nossas
megalópoles que assombram os membros da maioria moral. Então, o que a
novela exibe é o desejo – não o da maioria moral, mas o desejo oculto das
próprias feministas liberais.
2. Devir versus História
A oposição ontológica entre Ser e Devir que sustenta a noção de
Deleuze do virtual é uma noção radical desde que sua referência final é o
puro devir sem ser (oposta à noção metafísica do puro ser sem devir). Esse
puro devir não é um devir particular de alguma entidade corporal, uma
passagem dessa entidade de um estado a outro, mas um devir-em-si-mesmo,
completamente extraído de sua base corporal. Visto que a temporalidade
predominante do ser é a do presente (com o passado e o futuro como seus
modos deficientes), o puro devir-sem-ser significa que dever-se-ia evitar o
presente – ele nunca “ocorre efetivamente”, ele é “sempre iminente e já
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 9/29
9
passou”10. Como tal, o puro devir suspende a sequencialidade e a
direcionalidade: quer dizer, em um efetivo processo de devir, o ponto crítico
de temperatura (0 grau Celsius) sempre tem uma direção (a água ou congela
ou derrete), enquanto que, considerado como puro devir extraído de sua
corporeidade, esse ponto de passagem não é um ponto de passagem de um
estado a outro, mas uma “pura” passagem, neutra em relação a sua
direcionalidade, perfeitamente simétrica – por exemplo, uma coisa está
simultaneamente aumentando (o que ela foi) e diminuindo (em relação ao
que ele será). E os poemas Zen não são o exemplo derradeiro da poesia do
puro devir, os quais almejam meramente extrair a fragilidade do puro
evento de seu contexto causal?
O Foucault mais próximo de Deleuze é talvez o Foucault
de Arqueologia do Saber , sua subestimada obra chave que delineia a
ontologia das enunciações como puros eventos de linguagem: não elementos
de uma estrutura, não atributos de sujeitos que as proferem, mas como
eventos que emergem, funcionam dentro de um campo, e desaparecem.
Colocando em termos estóicos, a análise do discurso de Foucault estuda a
lekta, enunciações como puros eventos, enfocando as condições inerentes de
sua emergência [emergence] (como a concatenação dos próprios eventos) enão em sua inclusão no contexto da realidade histórica. Este é o motivo de o
Foucault de Arqueologia do Saber estar tão longe quanto possível de
qualquer forma de historicismo, de eventos locais em seu contexto histórico
– ao contrário, Foucault os ABSTRAI de sua realidade e de sua causalidade
histórica, e estuda as regras IMANENTES de sua emergência. O que
deveríamos ter em mente aqui é que Deleuze NÃO é um historicista
evolucionista; sua oposição do Ser e do Devir não deve nos iludir. Ele nãoestá simplesmente argumentando que todas as entidades estáveis, fixas são
apenas coagulações do abrangente fluxo de vida – Por que não? A
referência à noção de TEMPO é crucial aqui. Vamos lembrar como Deleuze
(Com Guattari) em sua descrição do devir em/da filosofia, explicitamente
opõe devir e história:
O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência que não exclui o
antes e o depois, mas os sobrepõe em uma ordem estratigráfica. Este é um infinito
10 Gilles Deleuze, The Logic of Sense, New York: Columbia University Press 1990, p. 80.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 10/29
10
devir da filosofia que atravessa sua história sem ser confundido com ela. A vida dos
filósofos, e o que é mais externo a seu trabalho, está de acordo com as leis comuns
da sucessão; mas seus nomes próprios coexistem e brilham como pontos luminosos
que nos levam através de componentes de um conceito novamente ou como pontos
cardinais de um estrato ou plano que continuamente nos retornam, como estrelas
mortas cujas luzes brilham mais do que nunca.11
O paradoxo então é que o devir transcendental inscreve-se a si
mesmo na ordem positiva do ser, da realidade constituída, sob a capa de seu
exato oposto, de uma superposição estática, de um congelamento
cristalizado do desenvolvimento histórico. Esta eternidade deleuziana está, é
claro, não simplesmente fora do tempo; por melhor dizer, na superposição
“estratigráfica”, nesse momento de estase, é o PRÓPRIO TEMPO que nós
experienciamos, tempo oposto ao fluxo evolutivo das coisas DENTRO do
tempo. Foi Schelling quem, seguindo Platão, escreveu que o tempo é a
imagem da eternidade – uma declaração mais paradoxal do que pode
parecer. O tempo, a existência temporal, não é o oposto mesmo da
eternidade, não é o domínio da deterioração, geração e corrupção? Como
pode então o tempo ser a imagem da eternidade? Isto não envolve duas
declarações contraditórias, quer dizer, que o tempo é a queda da eternidade
na corrupção E seu exato oposto, o esforço pela eternidade? A única solução
é conduzir este paradoxo a sua conclusão radical: o tempo é o esforço da
eternidade para ALCANÇAR A SI MESMA. O que isso significa é que a
eternidade não está fora do tempo, mas é a pura estrutura do tempo “como
tal”: como colocou Deleuze, o momento da superposição estratigráfica que
suspende a sucessão temporal é o tempo como tal. Em suma, dever-se-ia
aqui opor o desenvolvimento NO tempo à explosão DO PRÓPRIO TEMPO:
o próprio tempo (a virtualidade infinita do campo transcendental do Devir)aparece DENTRO da evolução intratemporal sob o disfarce da
ETERNIDADE. Os momentos de emergência [emergence] do Novo são
precisamente os momentos de Eternidade no tempo. A emergência
[emergence] do Novo ocorre quando um trabalho vence seu contexto
histórico. E, do lado oposto, se há uma imagem da imobilidade fundamental
ontológica, é a imagem evolucionista do universo como uma complexa rede
11 Gilles Deleuze and Felix Guattari,What is Philosophy?, New York: Columbia University Press 1994, p. 59.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 11/29
11
de transformações e desenvolvimentos intermináveis nos quais plus ça
change, plus ça reste le même:
Eu me tornei cada vez mais consciente da possibilidade de distinção entre devir e
história. Foi Nietzsche quem disse que nada importante está livre de um „vapor não -
histórico‟. /.../ O que a história compreende em um evento é a maneira como ele éatualizado em circunstâncias particulares; o devir do evento está além do escopo da
história./.../ O devir não é parte da história; a história apenas reúne conjuntos de
precondições, recentes contudo, que são deixados para traz enquanto „devir‟, ou seja,
como criação de algo novo.12
Para designar esse processo, fica-se tentado a usar um termo
estritamente proibido por Deleuze, que é o de TRANSCENDÊNCIA:
Deleuze não está aqui argumentando que um certo processo pode
transcender suas condições históricas ao dar origem a um Evento? Era
Sartre (um dos pontos de referência secretos de Deleuze) quem já utilizava o
termo nesse sentido, quando ele discutia como, no ato de síntese, o sujeito
pode transcender suas condições. Abundam exemplos aqui do cinema (a
referência de Deleuze ao nascimento do neo-realismo italiano: claro que ele
surgiu sem condições – o choque da IIª Guerra Mundial, etc – mas o Evento
neo-realista não pode ser reduzido a essas causas históricas) à política. Em
política (e que, de certo modo, remete a Badiou), a base da reprovação de
Deleuze aos críticos conservadores que denunciam os terríveis resultados
reais de uma sublevação revolucionária, é que eles permanecem cegos para
a dimensão do devir:
Está na moda ultimamente condenar os horrores da revolução. Isso não é nada novo;
o Romantismo Inglês é permeado por reflexões de Cromwell muito semelhantes às
reflexões de Stalin nos dias atuais. Eles dizem que as revoluções terminam mal. Mas
eles estão constantemente confundindo duas coisas diferentes, a maneira como asrevoluções se produzem historicamente e o devir revolucionário das pessoas. Estes
relacionam dois grupos diferentes de pessoas. A única esperança dos homens reside
em um devir revolucionário: a única maneira de se livrar de sua vergonha ou de
responder ao que é intolerável.13
O devir é então estritamente correlativo ao conceito de
REPETIÇÃO: longe de se opor à emergência [emergence] do Novo, o
próprio paradoxo deleuzianno é que algo verdadeiramente Novo só pode
12 Gilles Deleuze, Negotiations, New York: Columbia University Press 1995, p. 170-171.
13 Deleuze, op.cit., p. 171.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 12/29
12
emergir através da repetição. O que a repetição repete não é a maneira como
o passado “efetivamente se deu”, mas a virtualidade inerente ao passado e
traída por sua atualização anterior. Nesse preciso sentido, a emergência
[emergence] do Novo muda o próprio passado, quer dizer, ele muda
retroativamente (não o passado real – isso não é ficção-científica – mas) o
balanço entre realidade e virtualidade no passado14. Recordemos o velho
exemplo de Walter Benjamin: a Revolução de Outubro repetiu a Revolução
Francesa, redimindo seu fracasso, desenterrando e repetindo o mesmo
impulso. Já para Kierkegaard, repetição é “memória invertida”, um
movimento para frente, a produção do Novo, e não a reprodução do Velho.
“Não há nada de novo sob o sol” é o mais forte contraste com o movimento
da repetição. Assim, não é apenas que a repetição seja (um dos modos da)emergência [emergence] do Novo – o Novo só pode emergir através da
repetição. A chave para esse paradoxo é, claro, o que Deleuze designa como
a diferença entre o Virtual e o Efetivo (e que pode ser – por que não? –
também determinado como a diferença entre Espírito e Letra). Tomemos um
grande filósofo como Kant – há duas maneiras de repeti-lo: fixar-se em sua
letra e ainda elaborar ou modificar seu sistema, como os neo-kantianos
(como Habermas e Luc Ferry) estão fazendo; ou, tenta-se retomar o impulsocriativo que o próprio Kant traiu na atualização de seu sistema (i.e., conectar
o que já estava “em Kant mais do que no próprio Kant”, mais do que seu
sistema explícito, seu cerne excessivo). Há, consequentemente, dois modos
de trair o passado. A verdadeira traição é um ato ético-teórico de máxima
fidelidade: tem que se trair a letra de Kant no sentido de se permanecer fiel a
(e repetir) o “espírito” de seu pensamento. É precisamente quando se
permanece fiel à letra de Kant que se trai realmente o cerne de seu
pensamento, o impulso criativo motivando-o. Dever-se-ia conduzir esse
paradoxo à sua conclusão: não se trata apenas de que se pode permanecer
realmente fiel a um autor traindo-o (a letra efetiva de seu pensamento); em
14 Quando, em 1953, Chou Em Lai, o primeiro ministro chinês, foi a Genebra para as negociações de paz para por fimà guerra da Coréia, um jornalista francês lhe perguntou o que achava da Revolução Francesa, então Chou respondeu: “Émuito cedo ainda para dizer”. Em um certo sentido, ele estava certo: com a desintegração dos estados socialistas, a luta
para o lugar histórico da Revolução Francesa desencadeou-se novamente. Os revisionistas direitistas liberais tentam
impor a noção de que a extinção do Comunismo em 1989 ocorreu exatamente no momento certo: ela marcou o fim daera que começou em 1789. Em suma, o que desapareceu efetivamente da história foi o modelo revolucionário queentrou em cena pela primeira vez com os jacobinos. François Furet e outros tentaram assim destituir a RevoluçãoFrancesa de seu status como o acontecimento fundador da democracia moderna, relegando-a à uma anomalia histórica.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 13/29
13
um nível mais radical, a declaração inversa comporta ainda mais – pode-se
apenas trair verdadeiramente um autor repetindo-o, permanecendo-se fiel ao
cerne de seu pensamento. Se não se repete um autor (no autêntico sentido
kiekgaardiano do termo), mas meramente se o “critica”, deslocando-o,
contornando-o, etc., isso significa, com efeito, que se permanece
inadvertidamente dentro de seu horizonte, de seu campo conceitual15.
Quando G. K. Chesterton descreve sua conversão ao cristianismo, ele alega
que tentou “ficar uns dez minutos além da verdade. E eu acho que fiquei
dezoito anos atrás dela”16. Isso não vale especialmente para aqueles que,
hoje, tentam desesperadamente alcançar o Novo seguindo a última moda
“pós”, ficando condenados a permanecer sempre dezoito anos atrás do
verdadeiro Novo?
E isso nos introduz ao complexo tópico da relação entre Hegel e
Kierkegaard: contra a noção “oficial” de Kierkegaard como O “anti-Hegel”,
alguém poderia afirmar que Kierkegaard é talvez aquele que, através de sua
“traição” a Hegel, permaneceu fiel a ele. Ele efetivamente repetiu Hegel, em
contraste com os pupilos de Hegel, os quais “desenvolveram” seu sistema.
Para Kiekegaard, o Aufhebung hegeliano deve se opor à repetição: Hegel é o
derradeiro filósofo socrático da rememoração, do retornar reflexivamente aoque a coisa sempre-já foi, de maneira que, o que falta a Hegel é,
simultaneamente, a repetição e a emergência [emergence] do Novo – a
emergência do Novo como repetição. O processo/progresso da dialética
hegeliana é, neste preciso sentido kierkegaardiano, o mesmo modelo de um
pseudodesenvolvimento – desenvolvimento no qual nada efetivamente
Novo jamais emerge. Quer dizer, a reprovação kierkegaardiana padrão a
Hegel é que seu sistema é um círculo fechado de rememoração que nãoconsidera a emergência de nada Novo: tudo o que acontece é apenas uma
15 A fidelidade autêntica é a fidelidade ao próprio vazio – ao próprio ato mesmo de perda, de abandonar/apagar oobjeto. Por que a morte seria o objeto de apego em primeiro lugar? O nome para essa fidelidade é pulsão de morte. Emrelação a lidar com a morte, dever-se-ia, talvez, – contra o trabalho do luto, bem como contra o apego melancólico àmorte que retorna como fantasmas – afirmar a máxima cristã “deixe a morte enterrar seu morto”. A óbvia reprovação aessa máxima é: o que fazemos quando, precisamente, a morte não aceita ficar morta, mas continua viva em nós,assombrando-nos com sua presença espectral? Fica-se, aqui, tentado a reivindicar que, a dimensão mais radical da
pulsão de morte freudiana fornece a chave de como lermos o “deixe a morte enterrar seu morto” cristão: o que a pulsãode morte tenta obliterar não é a vida biológica, mas a própria vida após a morte - ela tenta matar o objeto perdido uma
segunda vez, não no sentido do luto (aceitando a perda através da simbolização), mas em um sentido mais radical, deobliterar a própria textura simbólica, a letra na qual o espírito do morto sobrevive.
16 G.K.Chesterton, Orthodoxy, San Francisco: Ignatius Press 1995, p. 16.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 14/29
14
passagem do em-si ao para-si, isto é, ao longo do processo dialético, as
coisas apenas atualizam seu potencial, colocar explicitamente seu conteúdo
explícito, tornar-se o que (em si mesmos) eles sempre-já são. O primeiro
enigma a respeito dessa reprovação é que ela é comumente acompanhada
pela reprovação OPOSTA: Hegel mostra como “o Um se divide em Dois”, a
explosão de uma divisão, perda, negatividade, antagonismo, que afeta uma
unidade orgânica; mas, então, o reverso do Aufhebung intervém como um
tipo de deus ex machina, sempre garantindo que o antagonismo será
magicamente resolvido, os opostos reconciliados em uma síntese mais
elevada, a perda recuperada sem um resto, a ferida cicatrizada sem deixar
cicatriz... As duas reprovações, então, assinalam direções opostas: a
primeira reivindica que nada de novo emerge sob o sol hegeliano, enquantoque a segunda reivindica que o impasse é resolvido por uma questão
imposta que emerge como deus ex machina, de fora, não como o resultado
da dinâmica inerente da tensão precedente.
O erro da segunda reprovação é que ela perde a questão – ou , até
mesmo, a temporalidade – da conciliação hegeliana. Não é que a tensão seja
magicamente resolvida e os opostos reconciliados. O único deslocamento
que efetivamente ocorre é subjetivo, o deslocamento de nossa perspectiva(i.e., subitamente, nos tornamos cientes de que o que anteriormente
apareceu como conflito JÁ É a reconciliação). Este movimento temporal
para trás é crucial: a contradição não é resolvida; nós apenas estabelecemos
que ela sempre-já FOI resolvida. (Em termos teológicos, a Redenção não
segue a queda; ela ocorre quando nos tornamos conscientes de como o que
anteriormente percebemos (mal) como a Queda “em si” já era a
Redenção.)17
E, paradoxalmente, mesmo que esta temporalidade pareçaconfirmar a primeira reprovação (a de que nada de novo emerge no processo
hegeliano), ela, efetivamente, nos permite refuta-la: o verdadeiro Novo não
é simplesmente um novo conteúdo, mas o próprio deslocamento de
perspectiva através do qual o Velho aparece sob nova luz.
Deleuze está certo em seu magnífico ataque à “contextualização”
historicista: devir significa transcender o contexto das condições históricas
17 Para uma descrição mais detalhada desse movimento, ver capítulo 3 de Slavoj Zizek, The Puppet and the Dwarf,Cambridge: MIT Press 2003.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 15/29
15
fora das quais um fenômeno emerge. Isto é o que se perde no
multiculturalismo antiuniversalista historicista: a explosão do
perpetuamente Novo em/como o processo do devir. A oposição padrão entre
Universal abstrato (ou seja, Direitos Humanos) e as identidades particulares
deve ser substituída por uma nova tensão entre Singular e Universal: o
acontecimento do Novo como uma singularidade universal18. O que Deleuze
fornece aqui é a ligação (propriamente hegeliana) entre historicidade factual
e eternidade: um verdadeiramente Novo emerge como eternidade no tempo,
transcendendo suas condições materiais. Para perceber um fenômeno
passado em devir (como Kierkegaard poderia ter formulado) é perceber o
potencial virtual nele, a centelha de eternidade, a potencialidade virtual que
sempre está aí. Um verdadeiramente novo trabalho sempre fica novo – suanovidade não é esgotada quando passa sua “capacidade de chocar”. Por
exemplo, em filosofia, as grandes rupturas (do transcendental de Kant até a
invenção de Kripke do “designador rígido”) sempre mantêm seu caráter
“surpreendente” de invenção.
Ouve-se frequentemente que para se entender uma obra de arte é
preciso conhecer seu contexto histórico. Contra esse lugar-comum
historicista, um contra-argumento deleuziano seria que, não apenasdemasiado contexto histórico pode ofuscar o próprio contato com a obra de
arte (i.e., que, para realizar esse contato, dever-se-ia abstrair o contexto
histórico); mas, até mesmo, que a própria obra de arte fornece um contexto,
permitindo-nos propriamente entender uma situação histórica dada. Se hoje
alguém for visitar a Sérvia, o contato direto com dados brutos poderia
confundir. Se, contudo, a pessoa ler algumas obras literárias e assistir a
alguns filmes representativos, eles poderiam definitivamente fornecer ocontexto para situar os dados brutos de sua experiência. Há, então, uma
inesperada verdade na velha cínica sabedoria da União Soviética stalinista:
“ele mente como uma testemunha ocular!”.
3. Devir-máquina
18 Isto serve mesmo se nós reformularmos o Universal no sentido laclauniano do significante vazio tomado na luta pelahegemonia: a singularidade universal não é o significante universal vazio preenchido – homogeneizado por – algumconteúdo particular. Ele é quase seu obverso: uma singularidade que explode o contorno dado da universalidade emquestão abrindo-o para um conteúdo radicalmente novo.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 16/29
16
Talvez o cerne do conceito de repetição de Deleuze seja a idéia de
que, em contraste com a repetição mecânica (não maquínica!) da
causalidade linear, em uma instância própria de repetição, o evento repetido
seja recriado em um sentido radical: ele (re)surge a cada momento como
Novo (ou seja, “repetir” Kant é redescobrir a novidade radical de sua
ruptura, de sua problemática, não repetir os enunciados que oferecem suas
soluções). Fica-se tentado aqui a estabelecer uma conexão com a ontologia
cristã de Chesterton, na qual a repetição do mesmo é o grande milagre: não
há nada “mecânico” no fato de que o sol nasça de novo todas as manhãs;
este fato, ao contrário, mostra o mais alto milagre da criatividade de
Deus19. O que Deleuze chama de “máquinas desejantes” concerne apenas a
algo completamente deferente do mecânico: o “devir -máquina”. Em queconsiste esse devir? Para muitos neuróticos obsessivos, o medo de voar tem
uma imagem bastante concreta: fica-se assombrado pelo pensamento de
quantas partes de tal máquina tão imensamente complicada como o avião
moderno tem que funcionar tranquilamente para que o avião se mantenha no
ar – uma pequena peça quebra em algum lugar, e o avião pode muito bem
cair em espiral... Frequentemente fala-se da mesma maneira a respeito do
próprio corpo: quantas pequenas coisas têm que funcionar tranquilamente para me manter vivo? – um minúsculo coágulo de sangue em uma veia, e eu
morro. Quando se começa a pensar em quantas coisas podem dar errado,
não se pode experimentar senão um pânico total e aterrador. A “esquizo”
deleuziana, por outro lado, meramente se identifica com essa máquina
infinitamente complexa que é o nosso corpo: ela experimenta essa máquina
impessoal como sua afirmação máxima, regozijando-se em seu constante
estímulo. Como Deleuze enfatiza, o que temos aqui não está relacionado a
uma metáfora (o velho e tedioso tema das “máquinas substituindo
humanos”), mas à metamorfose, ao “devir -máquina” do homem. É aqui que
o projeto “reducionista” dá errado: o problema não é reduzir a mente ao
processo “material” neuronal (substituir a linguagem da mente pela
linguagem dos processos cerebrais, traduzir o primeiro no segundo), mas,
sobretudo, compreender como a mente pode emergir apenas sendo
encaixada na rede de relações sociais e complementos materiais. Em outras
19 G.K.Chesterton, Orthodoxy, San Francisco: Ignatius Press 1995, p. 65.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 17/29
17
palavras, o verdadeiro problema não é “Como, de qualquer maneira, as
máquinas podem IMITAR a mente humana?”, mas “Como a própria
identidade da mente humana depende de suplementos mecânicos externos?
Como ela incorpora as máquinas?”.
Em vez de lamentar a maneira como a externação progressiva de
nossas capacidades mentais em instrumentos “objetivos” (desde escrever em
um papel até depender de um computador) nos priva de potenciais humanos,
poder-se-ia, portanto enfocar a dimensão libertadora dessa externação:
quanto mais nossas capacidades são transpostas para máquinas externas,
mais nós emergimos como sujeitos “puros”, na medida em que este
esvaziamento corresponde ao surgimento da subjetividade
dessubstancializada. Apenas quando nós pudermos contar inteiramente com
“máquinas pensantes” é que nos confrontaremos com o vazio da
subjetividade. Em março de 2002, a mídia noticiou que, em Londres, Kevin
Warwick se tornou o primeiro homem cibernético. Em um hospital em
Oxford, seu sistema neuronal foi conectado diretamente a uma rede de
computadores; ele é assim o primeiro homem cujas informações serão
alimentados diretamente, contornando os cinco sentidos. ESTE é o futuro: a
combinação da mente humana com o computador (em vez da substituiçãodo antigo pelo novo).
Nós tivemos outra prova deste futuro em maio de 2002 quando foi
noticiado que cientistas da Universidade de Nova York tinham conectado
um chip de computador pronto para receber sinais diretamente no cérebro de
um rato, com o intuito de se poder controlá-lo (determinando-se a direção
em que ele irá correr) por meio de um mecanismo de navegação (da mesma
maneira que se faz correr um carro de brinquedo por controle remoto). Este
não é o primeiro caso de conexão direta entre o cérebro humano e um
sistema de computadores: já existem semelhantes mecanismos que
permitem que pessoas cegas tenham informações visuais elementares sobre
o ambiente circundante, os quais alimentam diretamente o cérebro,
contornando o aparato de percepção visual (olhos, etc.). O que é novo no
caso do rato é que, pela primeira vez, a “vontade” de um agente animal
vivo, suas decisões “espontâneas” sobre os movimentos que ele irá fazer sãotomadas por uma máquina externa. A grande questão filosófica aqui, claro,
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 18/29
18
é: como o desafortunado rato “experimenta” seu movimento, o qual foi,
efetivamente, decidido de fora? Ele continua a experimenta-lo como algo
espontâneo (i.e., ele é totalmente inconsciente de que seus movimentos são
manipulados?), ou ele esta ciente de que “algo está errado”, de que outro
poder externo está comandando seus movimentos? Ainda mais crucial é
aplicar o mesmo raciocínio a um experimento idêntico realizado com
humanos (que, apesar de questões éticas, não seria muito mais complicado,
tecnicamente falando, do que em relação ao rato). No caso do rato, pode-se
argumentar, não se poderia aplicar a essa experiência a categoria humana de
“experiência”, como seria o caso se ela fosse feita com um ser humano.
Então, mais uma vez, um ser humano cujos movimentos são comandados de
fora continua a vivenciar seus movimentos como algo espontâneo? Ele permanecerá totalmente inconsciente de que seus movimentos são
manipulados, ou estará ciente de que “alguma coisa está errada”, de que um
poder exterior está comandando seus movimentos? E como, precisamente,
este “poder externo” aparecerá – como algo “dentro de mim”, uma
inexorável pulsão interna, ou como uma simples coerção externa?20 Talvez a
situação seja aquela descrita no famoso experimento de Benjamin Libet21; o
ser humano comandado continuará a vivenciar o impulso para se mover como sua decisão “espontânea”, mas – devido ao famoso meio segundo de
defasagem – ele conservará a liberdade mínima para bloquear essa decisão.
É também interessante que aplicações desse mecanismo foram mencionadas
pelos cientistas e repórteres: os primeiros artigos concerniam ao par ajuda
humanitária e campanha antiterrorista (alguém poderia usar os ratos ou
outros animais manipulados para contactar vítimas de um terremoto sob os
escombros, bem como para aproximar-se de terroristas sem arriscar vidas
humanas). E o crucial que se deve ter em mente aqui é que essa estranha
experiência da mente humana diretamente integrada a uma máquina não é a
visão de um futuro ou de algo novo, mas o vislumbre de algo que sempre
20 Cognitivistas diversas vezes nos advertiram para levar em conta uma evidência de senso comum: claro que podemosnos entregar a especulações sobre como nós não somos os agentes causais de nossos atos, de como nossos movimentoscorporais são comandados por um misterioso espírito mau, no sentido em que apenas aparentemente decidimoslivremente o que nossos movimentos fazem. Na falta de boas razões, tal cinismo é, no entanto, simplesmenteinjustificado. Não obstante, o experimento com o rato não oferece uma razão pertinente para considerar tal hipótese?
21 Benjamin Libet, "Unconscious Cerebral Initiative and the Role of Conscious Will in Voluntary Action," in TheBehavioral and Brain Sciences, 1985, Vol. 8, p. 529- 539, and Benjamin Libet, "Do We Have Free Will?", in Journal of Consciousness Studies, 1999, Vol. 1, p. 47-57.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 19/29
19
esteve em curso, que está aqui desde o começo, na medida em que é co-
substancial à ordem simbólica. O que muda é que, confrontada com a
materialização direta da máquina, sua integração direta à rede neuronal, não
se pode mais sustentar a ilusão da autonomia da personalidade. É notório
que os pacientes que necessitam de diálise no início experimentam um
devastador sentimento de desamparo: é difícil aceitar o fato de que a própria
sobrevivência depende de um dispositivo mecânico que eu vejo aí fora,
diante de mim. Todavia, o mesmo vale para todos nós: em termos um tanto
exagerados, todos nós estamos na dependência de um aparato simbólico-
mental de diálise.
A tendência no desenvolvimento dos computadores é em direção à
sua invisibilidade. As grandes máquinas ruidosas com misteriosas luzes que
piscam serão cada vez mais substituídas por minúsculos bits encaixando-se
imperceptivelmente em nossos ambientes “normais”, permitindo que eles
funcionem mais facilmente. Os computadores se tornarão tão pequenos que
eles serão invisíveis, em todos os lugares e em parte alguma – tão poderosos
que irão sumir da vista. Poderíamos tão somente relembrar como são os
carros de hoje, onde muitas funções ocorrem facilmente por causa dos
pequenos computadores que nós frequentemente ignoramos (abertura de janelas, aquecimento...). Em um futuro próximo, teremos cozinhas
computadorizadas, roupas, óculos e sapatos. Longe de ser uma questão para
um futuro distante, essa invisibilidade já está aqui: a Phillips planeja em
breve colocar no mercado um fone e tocador de música integrado a uma
jaqueta de tal maneira que não apenas será possível vesti-la normalmente
(sem preocupação com o que poderá acontecer com o mecanismo digital),
mas até mesmo lavá-la sem dano ao equipamento eletrônico. Estadesaparição do campo de nossa experiência sensória (visual) não é tão
inocente quanto pode parecer: a mesma característica que fará a jaqueta da
Phillips algo fácil de se lidar (não mais uma máquina frágil e incômoda, mas
uma prótese quase orgânica de nosso corpo) irá conferir-lhe a qualidade de
uma espécie de fantasma de um Mestre invisível e onipotente. A prótese
maquínica será menos um aparato externo com quem interagimos, e mais
parte de nossa direta experiência de nós mesmos como organismos vivos – consequentemente, descentrando-nos a partir de dentro. Por essa razão, o
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 20/29
20
paralelo entre o crescimento da invisibilidade dos computadores e o fato
notório de que quando as pessoas aprendem algo suficientemente bem elas
deixam de ser conscientes disso, é enganoso. O sinal de que aprendemos
uma língua é que nós não precisamos mais enfocar suas regras: nós não
apenas falamos-na “espontaneamente”, mas uma atenção ativa em suas
regras até mesmo nos impede de falarmos fluentemente. Contudo, no caso
da língua, nós anteriormente temos que aprendê-la (“tê-la em nossa mente”),
enquanto que computadores invisíveis em nossos ambientes estão aí fora,
não atuando “espontaneamente”, mas simplesmente cegamente.
Poder-se-ia aqui dar um passo a mais: Bo Dahlbom está certo, em
sua crítica de Dennett22, onde ele insiste no caráter social da “mente” – não
apenas as teorias da mente são obviamente condicionadas por seu contexto
social, histórico (a teoria de Dennett de múltiplos esquemas rivais não se
mostra enraizada no capitalismo tardio “pós-industrial”, com seus motivos
de competição, descentralização, etc.? – uma noção também desenvolvida
por Fredric Jameson, que propôs uma leitura de Consciência
Explicada como uma alegoria do capitalismo atual). De maneira muito mais
importante, a insistência de Dennett em como ferramentas – inteligência
externalizada com as quais os humanos contam – são parte inerente daidentidade humana (é sem sentido imaginar como uma entidade biológica
SEM a complexa rede de suas ferramentas – tal noção seria como, por
exemplo, um ganso sem suas penas), abre uma via que poderia ir muito mais
longe do que vai o próprio Dennett. Dado que, para colocar nos bons e
velhos termos marxistas, o homem é a totalidade de suas relações sociais,
por que Dennett não dá o próximo passo lógico e analisa diretamente esta
rede de relações sociais? Este domínio da “inteligência externalizada”, dasferramentas até a própria linguagem, especialmente, forma um domínio
próprio, que é o que Hegel chamou de “espírito objetivo”, o domínio da
substância artificial como oposta à substância natural. A fórmula proposta
por Dahlbom então é: da “Sociedade de Mentes” (noção desenvolvida por
Minsky, Dennett e outros) para “Mentes da Sociedade” (i.e., a mente
humana como algo que pode emergir e funcionar apenas dentro de uma
22 Bo Dahlbom, "Mind is Artificial," in Dennett and His Critics, ed. by Bo Dahlbom, Oxford: Blackwell 1993.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 21/29
21
complexa rede de relações sociais e suplementos artificiais mecânicos que
“objetivam” a inteligência).
4. Un jour , peut-être, le siècle sera empi r iomoniste?
As coordenadas elementares da ontologia de Deleuze são assimfornecidas pela oposição “schellingiana” entre o Virtual e o efetivo: o
espaço do efetivo (atos reais no presente, realidade experienciada, e sujeitos
como pessoas qua indivíduos formados) acompanhado por sua sombra
virtual (o campo da proto-realidade, de singularidades múltiplas, elementos
impessoais posteriormente sintetizados dentro de nossa experiência da
realidade). Este é o Deleuze do “empirismo transcendental”, o Deleuze que
dá ao transcendental de Kant sua única virada: o próprio espaço
transcendental é o espaço virtual de potencialidades múltiplas singulares, de
“puros” gestos impessoais singulares, afetos, e percepções que não são
ainda os gestos-afetos-percepções DE um sujeito pré-existente, estável, e
auto-idêntico. Este é o motivo de que, por exemplo, Deleuze celebre a arte
do cinema: ele “liberta” o olhar, imagens, movimentos, e, afinal, o próprio
tempo de sua atribuição a um dado sujeito – quando assistimos um filme,
nós vemos o fluxo de imagens a partir da perspectiva da câmera
“mecânica”, uma perspectiva que não pertence a nenhum sujeito; através da
arte da montagem, o movimento também é abstraído/libertado de sua
atribuição a um sujeito ou objeto dado – é um movimento impessoal que é
apenas secundariamente, posteriormente, atribuído a algumas entidades
positivas.
Aqui, contudo, aparece a primeira rachadura nesse edifício: em um
movimento longe de ser evidente, Deleuze liga seu espaço conceitual à
tradicional oposição entre produção e representação. O campo virtual é
(re)interpretado como o espaço das forças produtoras, geradoras, oposto ao
espaço das representações. Aqui temos todos os tópicos padrão dos campos
moleculares múltiplos de produção constrangidos pelas organizações
molares totalizadoras, e assim por diante. Sob a rubrica da oposição entre
devir e ser, Deleuze então parece identificar essas duas lógicas, ainda que
elas sejam fundamentalmente incompatíveis (fica-se tentado a atribuir a
“má” influência que o teria empurrado em direção à segunda lógica a Félix
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 22/29
22
Guattari)23. O campo próprio da produção NÃO é o espaço virtual como tal,
mas, melhor dizendo, a passagem mesma desse campo para a realidade
constituída, o colapso da multidão e suas oscilações dentro de uma realidade
– produção é fundamentalmente uma limitação do espaço aberto de
virtualidades, a determinação/negação da multidão virtual (é assim que
Deleuze lê o omni determinatio est negatio de Spinoza contra Hegel).
A linha de Deleuze propriamente é a das primeiras grandes
monografias (as obras chave seriam Diferença e Repetição e A Lógica do
Sentido) bem como os pequenos escritos introdutórios (como Proust e os
Signos e a introdução a Sacher-Masoch). Em seu trabalho mais recente, são
dois livros de cinema que marcam o retorno aos tópicos de A lógica do
Sentido. Esta série deve ser distinguida dos livros de Deleuze e Guattari
juntos, e pode-se apenas lamentar que a recepção anglo-saxã de Deleuze (e,
também, o impacto político de Deleuze) seja predominantemente a do
Deleuze “guattarizado”. É crucial notar que NENHUM TEXTO QUE SEJA
APENAS DE Deleuze é, em qualquer sentido, diretamente político; Deleuze
é “em si mesmo” um autor altamente elitista, indiferente em relação à
política. A única questão séria filosófica, consequentemente, é: que impasse
inerente fez com que Deleuze se voltasse para Guattari? Anti-Édipo, possivelmente o pior trabalho de Deleuze, não é o resultado da fuga da total
confrontação com um impasse através de uma solução simplificada
“frouxa”, homóloga à escapada de Schelling do impasse de seu projeto
Weltalter atr avés de sua mudança para a dualidade da filosofia “positiva” e
“negativa”, ou Habermas escapando do impasse da “Dialética do
Esclarecimento” através de sua mudança para a dualidade da razão
instrumental e comunicacional? Nossa tarefa é confrontar novamente esseimpasse. Deleuze, então, não foi em direção a Guattari porque este último
apresentava um álibi, uma saída fácil do impasse de sua posição anterior? O
edifício conceitual de Deleuze não se apóia em DUAS lógicas, em DUAS
oposições conceituais, as quais coexistem em seu trabalho? Esta percepção
parece tão óbvia, essa declaração assemelha-se tanto ao que os franceses
23 Eu sigo aqui Alain Badiou, em cuja leitura de Deleuze eu me apoio extensivamente; Badiou, Deleuze: The Clamour of Being, Minneapolis: University of Minnesota Press 2000.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 23/29
23
chamam de lapalissade, que é de surpreender que ela ainda não tenha sido
amplamente percebida:
(1) por um lado, a lógica do sentido, do devir imaterial como o
evento-sentido, como o EFEITO dos processos-causas corporais-materiais, a
lógica da lacuna radical entre processo gerador e seu imaterial efeito-
sentido: “multiplicidades, enquanto efeitos incorpóreos de causas materiais,
são impassíveis ou entidades de causalidade estéril. O tempo do puro devir,
sempre já passado e eternamente ainda por vir, forma a dimensão temporal
desta impassibilidade ou esterilidade de multiplicidades.”24 E não é o
cinema o caso derradeiro do fluxo estéril do devir superficial? A imagem do
cinema é inerentemente estéril e impassível, o puro efeito de causas
corpóreas, ainda que, contudo, adquirindo sua pseudo-autonomia.
(2) por outro lado, a lógica do devir como PRODUÇÃO de seres:
“a emergência [emergence] de propr iedades métricas ou extensivas
deveriam ser tratadas como um processo único no qual um espaço-tempo
virtual contínuo progressivamente diferencia-se dentro das estruturas
espaço-temporais descontínuas efetivas25.
Quer dizer, em suas análises de filmes e literatura, Deleuze enfatiza
a dessubstanciação de afetos: em uma obra de arte, um afeto (tédio, por
exemplo) não é mais atribuível a pessoas efetivas, tornando-se um evento de
livre flutuação. Como, então, essa intensidade impessoal de um afeto-evento
relaciona-se a corpos ou pessoas? Encontramos aqui a mesma ambiguidade:
ou este afeto imaterial é gerado por corpos interagindo como uma superfície
estéril de puro devir, ou ele é parte de intensidades virtuais fora das quais os
corpos emergem através da atualização (a passagem do Devir ao Ser).
E essa oposição não é, mais uma vez, aquela do materialismo
versus idealismo? Em Deleuze, isso significa: A lógica do
Sentidoversus Anti-Édipo. OU o Sentido-Evento, o fluxo do puro Devir, é o
efeito imaterial (neutro, nem ativo nem passivo) da intricação das causas
materiais-corpóreas, OU as entidades positivas corpóreas são elas próprias o
produto do puro fluxo de Devir. Ou o campo infinito de virtualidade é um
24 Manuel DeLanda, Intensive Science and Virtual Philosophy, New York: Continuum 2002, pp. 107-108.
25 Manuel DeLanda, op.cit., p. 102.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 24/29
24
efeito imaterial da interação de corpos interagindo, ou os próprios corpos
emergem, se atualizam a partir desse campo de virtualidade. Em A lógica do
Sentido, o próprio Deleuze desenvolve esta oposição sob a forma de dois
possíveis modos de gênese da realidade: a gênese formal (a emergência
[emergence] da realidade fora da imanência da consciência impessoal como
o puro fluxo de Devir) é suplementada pela gênese real, a última explicação
para a emergência [emergence] do próprio evento-superfície imaterial fora
da interação corporal. Às vezes, quando seguimos o primeiro caminho,
Deleuze aproxima-se perigosamente das fórmulas “empiriocriticistas”: o
fato primordial é que o puro fluxo da experiência, que não pode ser
atribuído a nenhum sujeito, não é nem subjetivo nem objetivo – sujeito e
objeto, como todas as entidades fixas, são simplesmente “coagulações”deste fluxo. Esta é a descrição típica da posição filosófica básica de
Bogdanov, o principal representante do “empiriocriticismo” russo, mais
conhecido como o alvo da crítica de Lênin em seu Materialismo e
Empiriocriticismo de 1908:
Se (...) nós assumimos que os elementos últimos da experiência são as sensações, é
óbvio que o que nós comumente pensamos como o mundo da experiência não teria
surgido sem um processo de organização. (...) o que nós consideramos como o
mundo material, natureza, o mundo comum, é o produto da experiência
coletivamente organizada, tendo uma base social. Quer dizer, o mundo comum
enquanto vivenciado tem sido progressivamente formado no curso da história
humana fora do curso da sensação material crua. (...) além do mundo que é
basicamente o mesmo para todos, existem, por assim dizer, mundos privados. Quer
dizer, além da experiência coletivamente organizada, há organização na forma de
idéias ou conceitos que diferem de pessoa para pessoa, ou de um grupo para outro.
Existem diferentes pontos de vista, diferentes teorias, diferentes ideologias26.
Bogdanov enfatizou que o fluxo de sensações precede o sujeito:
não é um fluxo subjetivo, mas neutro em relação à oposição entre sujeito e
realidade objetiva – ambos emergem fora deste fluxo (i.e.,
“empiriomonismo”, uma das auto-designações dos empiriocriticistas – esse
termo não é uma designação adequada também do “empirismo
transcendental” de Deleuze?... sem mencionar o “mecanismo” de
Bogdanov, sua noção de desenvolvimento “maquínica”...). Lacan versus
26 Frederick Copleston, Philosophy In Russia, Notre Dame: University of Notre Dame Press 1986, p. 286.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 25/29
25
Deleuze: mais uma vez materialismo dialético versus
empiriocriticismo? Deleuze – um novo Bogdanov? De uma maneira
protodeleuziana, Bogdanov acusou os defensores da Matéria como uma
Coisa-em-si existindo objetivamente de cometer o pecado capital metafísico
de explicar o conhecido em termos do desconhecido, o experimentado em
termos do não-experimentado – exatamente como a rejeição de Deleuze de
toda forma de transcendência. Além disso, Bogdanov foi também um
esquerdista radical, adepto de experimentos maquínicos: sua atitude básica
foi precisamente a de unir o “vitalismo” do fluxo de sensações com a
combinatória maquínica. Ainda que Bogdanov apoiasse os Bolcheviques
contra o reformismo oportunista, sua postura política foi a de um
esquerdista radical lutando pelas organizações que se formam “de baixo”, enão impostas de cima por alguma autoridade central27.
Quando, em A Lógica do Sentido, Deleuze desdobra as duas
gêneses, transcendental e real, ele não segue, nesse sentido, os passos de
Fitche e Schelling? O ponto de partida de Fitche é que se pode praticar
filosofia de duas maneiras básicas, idealista e espinoziana: pode-se ou partir
de uma realidade objetiva e tentar desenvolver a partir dela a gênese da
subjetividade livre, ou partir da pura espontaneidade do Sujeito absoluto etentar desenvolver a totalidade da realidade como o resultado do
autoposicionamento do Sujeito. O Schelling dos primeiros trabalhos,
do Sistema do Idealismo Transcendental dá um passo além reivindicando
que, nesta alternativa, nós não estamos lidando com uma escolha: as duas
opções são complementares, não exclusivas. O idealismo absoluto, sua
reivindicação da identidade entre Sujeito e Objeto (Espírito e Natureza)
pode ser demonstrada de duas maneiras: ou se desenvolve a Natureza forado Espírito (idealismo transcendental, à maneira de Kant e Fitche), ou se
desenvolve a emergência [emergence] gradual fora do movimento imanente
da Natureza (a própria Naturphllosophle de Schelling). Contudo, e o crucial
novo avanço alcançado por Schelling em seus fragmentos Weltalter , onde
27 É fácil ridicularizar Materialismo e Empiriocriticismode Lênin, sua total irrelevância filosófica, ainda que o “instinto político” do livro para a luta de classes teoricamente seja inequívoco e 100% correta. Todos nós lembramos asobservações de Lênin no que tange a Lógica de Hegel, a propósito dos enunciados de Hegel tais como “o
desdobramento imanente da riqueza concreta do universal como o autodesenvolvimento da Idéia eterna divina”, noestilo de “a primeira linha, profunda e verdadeira, a segunda linha, lixo teológico!” – fica-se tentado a anotar umaobservação similar na crítica aMaterialismo e Empiriocriticismo: “o desdobramento da sobredeterminação política dafilosofia – profunda e verdadeira, o inerente valor filosófico do livro – lixo!”.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 26/29
26
ele introduz um TERCEIRO termo dentro dessa alternativa, nomeadamente,
o da gênese do Espírito (logos) não como tal fora da natureza – como um
domínio constituído de realidade natural – mas fora da natureza de/em Deus
ele mesmo como aquele que está “no próprio Deus não mais Deus”, o
abismo pré-ontológico do Real em Deus, o movimento rotatório cego das
paixões “irracionais”? Como Schelling torna claro, este domínio não é ainda
ontológico, mas, em um sentido, mais “espiritual” do que a realidade
natural: um domínio obscuro de fantasmas obscenos que retornam
repetidamente como “mortos vivos” porque eles FALHARAM em atualizar-
se inteiramente na realidade28. Para arriscar um paralelo anacrônico, esta
gênese, como a pré-história do que se passou em Deus antes que ele se
tornasse Deus inteiramente (o logos divino), não está, com efeito, próximada noção da física quântica do estado da oscilação quântica virtual
precedendo a realidade constituída?
E, efetivamente, os resultados da física quântica? E se o que
importa FOR apenas uma reificada oscilação de onda? E se, no lugar de
conceber ondas como oscilações entre elementos, os elementos forem
apenas nós, pontos de contato, entre diferentes ondas e suas oscilações? Isto
não oferece um tipo de credibilidade científica ao projeto “idealista” de arealidade corpórea ser gerada a partir das intensidades virtuais? Há uma
maneira de conceituar a emergência [emergence] de Algo fora de Nada de
uma maneira materialista: quando somos bem sucedidos em conceber esta
emergência [emergence] não como um excesso misterioso, mas como uma
DESCARGA – uma PERDA – de energia. O notório “Campo de Higgs” na
física contemporânea não aponta precisamente nesta direção? Geralmente,
quando removemos alguma coisa de um dado sistema, nós diminuímos suaenergia. No entanto, a hipótese é a de que há alguma substância, “alguma
coisa” que nós não podemos retirar de um dado sistema sem AUMENTAR
essa energia do sistema: quando o “campo de Higgs” aparece em um espaço
vazio sua energia diminui mais29. A percepção biológica de que esses
sistemas vivos são talvez melhor caracterizados como sistemas que
28 F.W.J. Schelling, The Ages of the World, Albany: SUNY Press 2000.
29 Para uma referência mais detalhada ao “Campo de Higgs”, ver o capítulo 3 de meu livro The Puppet and the Dwarf,Cambridge. MIT Press 2003. Para uma popular explanação científica, Gordon Kane, 5upersymmetry, Cambridge: HelixBooks 2001.
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 27/29
27
dinamicamente evitam atratores (i.e., de que processos de vida são mantidos
em ou próximos de estágios de transição) não aponta na mesma direção, no
sentido da pulsão de morte freudiana em sua oposição radical a toda noção
de que a tendência de toda vida é em direção ao nirvana? Pulsão de morte
significa precisamente que a mais radical tendência de um organismo vivo é
manter um estado de tensão, evitar o “relaxamento” final na obtenção de um
estado de total homeostase. “Pulsão de morte” como “além do princípio do
prazer” é esta mesma insistência de um organismo em repetir
incessantemente o estado de tensão.
Deveríamos então livrar-nos do medo de que, uma vez que
constatemos que a realidade é o infinitamente divisível, vazio
dessubstanciado dentro de um vazio, a “matéria desaparecerá”. O que a
revolução digital informacional, a revolução biogenética, e a revolução
quântica na física compartilham e que todas elas marcam é o ressurgimento
do que, por falta de um termo melhor, poderíamos chamar de um idealismo
pós-metafísico. Isto é como se a percepção de Chesterton de como a luta
materialista pela total afirmação da realidade, contra sua subordinação a
qualquer ordem metafísica “elevada”, culminando em uma perda da própria
realidade: o que começou como a afirmação da realidade material terminacomo o domínio das puras fórmulas de física quântica. No entanto, esta
realidade é uma forma de idealismo? Desde que a posição materialista
afirma que não há Mundo, que o Mundo em sua totalidade é Nada, o
materialismo não tem nada a fazer com a presença da matéria densa, úmida
– suas próprias imagens são, antes, constelações nas quais a matéria parece
“desaparecer”, como as puras oscilações de super -cordas ou vibrações
quânticas. Em contraste, se vemos na matéria inerte, crua, mais que uma telaimaginária, nós sempre secretamente aprovamos algum tipo de
espiritualismo, como em Solaris de Tarkovsky, no qual a densa matéria
plástica do planeta incorpora diretamente a Mente. Este “materialismo
espectral” tem três formas diferentes: na revolução informacional, a matéria
é reduzida ao meio da informação puramente digitalizada; em biogenética, o
corpo biológico é reduzido ao meio de reprodução do código genético; em
física quântica, a própria realidade, a densidade da matéria, é reduzida aocolapso da virtualidade das oscilações de onda (ou, na teoria geral da
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 28/29
28
relatividade, a matéria é reduzida a um efeito da curvatura do espaço). Aqui
encontramos OUTRO aspecto crucial da oposição idealismo/materialismo: o
materialismo não é a afirmação da densidade material inerte em seu peso
úmido – TAL materialismo pode sempre servir como um suporte para um
obscurantismo espiritualista gnóstico. Em contraste com este último, um
verdadeiro materialismo assume alegremente a “desaparição da matéria”, o
fato de que há apenas vazio.
Com a biogenética, o programa nietzschiano de afirmação enfática
e extática do corpo está, então, concluído. Longe de servir como a referência
verdadeira, o corpo perde sua densidade impenetrável misteriosa e torna-se
algo tecnologicamente manejável, algo que podemos gerar e transformar
através da intervenção em sua fórmula genética – em suma, alguma coisa
cuja verdade está nesta fórmula genética abstrata. E é crucial conceber as
duas aparentemente opostas “reduções” discerníveis na ciência atual (a
redução “materialista” de nossa experiência aos processos neurais nas
neurociências, e a virtualização da própria realidade em física quântica)
como dois lados da mesma moeda, como duas reduções ao mesmo terceiro
nível. A velha idéia popperiana do “Terceiro Mundo” é aqui levada ao seu
extremo: o que temos no final não é nem o materialismo “objetivo” nem aexperiência “subjetiva”, mas a redução de AMBOS ao Real científico do
processo matematizado “imaterial”.
A consequência do materialismo versus idealismo torna-se então
mais complexa. Se aceitarmos a reivindicação da física quântica de que a
realidade que vivenciamos como constituída emerge fora de um campo
precedente de intensidades virtuais as quais são, em certo sentido,
“imateriais” (oscilação quântica), então a realidade corporificada é o
resultado da atualização do puro evento-como virtualidades. E se, neste
caso, tivermos aqui um duplo movimento?: primeiro, a própria realidade
positiva é constituída através da atualização do campo virtual de
potencialidades “imateriais”; então, em um segundo movimento, a
emergência [emergence] do pensamento e do sentido sinalizam o
momento em que a realidade constituída, pode-se dizer, reconecta-se com
sua gênese virtual. Schelling não perseguia algo similar quando elereivindicou que, na explosão da consciência, do pensamento humano, o
7/28/2019 ZIZEK, Slavoj. Orgãos sem corpos - Deleuze e conseauencias. (Não Publicado) Traduzido por Rodrigo Nunes Lopes …
http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-orgaos-sem-corpos-deleuze-e-conseauencias-nao-publicado 29/29
29
abismo primordial de pura potencialidade explode, adquire existência, em
meio a realidade positiva criada – o homem é a única criatura que está
diretamente (re)conectada com o abismo primordial fora do qual todas as
coisas emergem?30 Talvez Roger Penrose esteja certo: há uma ligação entre
as oscilações quânticas e o pensamento humano.31
30 F.W.J. Schelling, op.cit.