Zine - Pelo Resgate Da Criatividade e Da Autoconfiança

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Zine sobre Pedagogia Libertaria.

Transcript of Zine - Pelo Resgate Da Criatividade e Da Autoconfiança

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    Contedo Introduo .........................................................................4

    Contra a Universidade........................................................6

    Introduo .................................................................6

    Centros de Estudantes ...............................................9

    ou como gerir a misria. .............................................9

    Universidade/Contra-Universidade ........................... 12

    A obsesso por ser profissional. ........................................... 12

    A misria profissional. .......................................................... 15

    Anti-universidade: um passo a mais na anti-pedagogia......... 20

    A Misria dos independentes .................................... 23

    Como defender a sociedade contra a cincia ................... 26

    Contos de fadas ....................................................... 28

    Contra o mtodo ...................................................... 31

    Contra os resultados ................................................ 35

    Educao e Mito ...................................................... 38

    Criatividade, Autoconfiana e Multidisciplinaridade ....... 44

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    Introduo No nos resta dvida de que estamos vivendo num perodo

    em que a reflexo intelectual nunca esteve to intimamente ligada ao maior fruto da institucionalizao do conhecimento: a falta de criatividade. Vemos anarquistas se formando no to vangloriado ensino superior com o ingnuo intuito de se

    aprofundar em algum tipo de conhecimento e ento fortalecer sua militncia poltica; porm, no enxergam que a principal funo das instituies de ensino moldar o aluno a uma forma limitada de se obter conhecimento, onde ser desacreditada qualquer outra fonte de estudo que no seja dentro da prpria academia ou seguindo suas rgidas regras.

    O intuito deste material no apenas criticar o processo de expanso da escolarizao e a situao atual em que se encontra o meio anarquista, mas tambm apontar para perspectivas diferentes, numa tentativa de reacender a criatividade e sua companheira inseparvel: a autoconfiana.

    Anti-capital, anti-estatal, anti-religio, anti-civilizao, anti-fascista, anti, anti .... e anti. O cultivo de negar o que no queremos se tornou um fim em si mesmo e escancara o que j

    foi dito anteriormente: a criatividade se encontra em um plano nebuloso e desconhecido. A lista das coisas de que somos contra extremamente extensa se comparada lista das coisas que propomos construir. O discurso sobre o que queremos est cheia de jarges vagos que no conseguiram at hoje serem plenamente praticados fora da esfera terica intelectual: autonomia, solidariedade, apoio mtuo, autogesto, etc. Quando dizemos vago, no queremos dizer que so sem sentido, estamos falando sobre a sua desconexo com o todo, j que estes termos sempre se encontram em esferas isoladas que no conseguem encontrar um local frtil para se manter e crescer; acabam por

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    propiciar experincias interessantes, mas que infelizmente no conseguem sair da experimentao para se firmar como uma caracterstica cultural.

    Este material constitudo de dois textos traduzidos e um texto de nossa autoria que utilizar como base algumas das perspectivas apresentadas no texto de Paul Feyerabend para formular algumas reflexes.

    No difcil notar que existem idias que podem ser radicais demais para os anarquistas, alguns podem at apontar problemticas tericas para tais idias, porm o intuito de anul-las muito mais forte do que qualquer tentativa de reflexo e auto-crtica.

    Esta publicao a primeira de outras maiores que esto por vir com o objetivo de tratar de assuntos mais amplos e desafiadores como estratgia e organizao anarquista.

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    Contra a Universidade

    Introduo1

    A compilao de textos a seguir feita por necessidade, autodeterminao, interesse e convico. Mas tambm, devemos

    reconhecer, com a inteno de mostrar que no estamos errados.

    No entanto, ressaltamos que, acima de tudo se faz por dio. dio, mas no no sentido de "Eu vos odeio, queridos alunos"2, mas o contrrio: no odeio o aluno como um ser humano. Odeio o seu papel social como tal, e com ele tudo o que produz, representa e cria3.

    Ns odiamos seu reformismo e sua conscincia juvenil rebelde, sua incapacidade de decifrar o quadro macroeconmico de toda a luta social, sua assimilao da hierarquia que se

    mostra inclusive em suas condutas cotidianas, como a leitura

    1 Adaptado do editorial de La Misria publicacin contra la universidad 2 Frase utilizada por Pier Paolo Pasolini, ao referir-se aos fatos de violncia da primeira quinzena de maio de 1968, por considerar que os policiais so filhos de proletrios e os estudantes, no. 3 "As razes nas que se baseia nosso desprezo ao estudante (...) no concernem somente a sua misria real, mas sim a sua complacncia ante todas as misrias, sua propenso doente a consumir devotamente a alienao, com a esperana, ante a falta de interesse geral, de satisfazer sua carncia particular" - Mustaf Kayat - A misria da vida estudantil. Internacional Situacionista. 1966.

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    obrigatria de um texto de 500 pginas devido ordem do professor, e ao mesmo tempo no poder ler, analisar e dar sentido a um panfleto crtico de pouco mais de 200 pginas.

    Odiamos seu elitismo e sua necessidade de insero social4, porque sabemos que quer ser um erudito licenciado em (inserir especialidade correspondente). Sabemos tambm que, consciente ou inconscientemente, deseja que haja poucos como ele, porque, obviamente, milhes de Engenheiros Eletrnicos no tm utilidade social, mas alguns milhares sim. E, quanto menos existirem, maior demanda e maior salrio: pura lgica de mercado capitalista;

    Odiamos sua falta de inquietaes concretas, e o fato de quando as tenha, no reconhece quo efmera e vazia sua

    situao5, porque realmente no tens nada a perder (se realmente no acredita na profissionalizao) e o que mais importante: tem muito a ganhar. Por que dizemos isto? Porque no se destri o sistema atacando suas unidades bsicas se no houver um ferrenho combate contra suas estruturas mais avanadas. Assim como no o destruir atacando suas conseqncias, mas sim suas causas. E o estudante se encontra nesta posio de ataque, a saber, tem sua frente uma profunda dicotomia que representa essa possibilidade: a de tomar essa posio ou, ao contrrio, seguir contribuindo a perpetuar tais estruturas.

    Isto assim porque a Universidade a instituio geradora de valor por excelncia, no sentido tanto econmico como social. A Universidade forma aproximadamente uns 5% da sociedade, a

    elite humana, durante um tempo determinado que gira em torno

    4 "Coletando migalhas de prestgio da universidade, o estudante ainda est feliz por ser um estudante. Tarde demais. A forma de ensino mecnica e especializada recebida to profundamente degradada (em relao ao antigo nvel de cultura burguesa), como seu prprio nvel intelectual no momento em que adentrar a academia, com a particularidade de que a realidade que domina tudo isso, todo o sistema econmico, reivindica uma produo em massa de estudantes incultos e incapazes de questionar." - Mustaf Kayat. Op Cit. 5 "O estudante, em sua capacidade de ser ideolgico, chega sempre atrasado para tudo. Todos os valores e iluses que constituem o orgulho de seu mundo fechado esto j condenados como iluses insustentveis, desde h muito tempo ridicularizadas pela histria". Mustaf Kayat. Op Cit.

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    de 7 anos. Por sua vez as pessoas encarregadas de transmitir esta informao tambm recorreram o mesmo caminho, pelo que esta quantidade de trabalho (horas/homem), somado a custos de construo e demais gastos, nos demonstra o quo importante esta instituio para o sistema capitalista.

    Para adicionar mais ainda a esta "fbrica de burgueses", se soma o fato de que aqui onde se resolvem todos os paradigmas que logo se implantam na vida de todos: direcionamentos polticos, artsticos, culturais, medicinais e obviamente econmicos. Por todas estas coisas que dizemos que esta instituio um pilar fundamental do capitalismo: se sobrepe at mesmo ao papel das fbricas, estigmatizadas como o ncleo econmico, e em certa medida tambm o faz com os meios de

    comunicao e instituies politizadas de todo tipo.

    Por isto e muito mais que iremos propor abertamente a necessidade de destruio da Universidade e o cessar de toda "militncia" destinada a reform-la e construir desde dentro. No queremos uma Universidade "dos trabalhadores" ou "do povo", este conceito no existe, porque quando a Universidade for mais acessvel aparecer uma nova estrutura educativa superior e o novo dilema ser como destruir esta.

    Queremos estabelecer bases tericas que permitam esclarecer nossa postura, no para cair no intelectualismo, mas sim para gerar continuidade por meio de uma ferramenta a qual podemos recorrer. Esta ferramenta ser mutvel como o a realidade e o contedo das lutas sociais, mas formar uma crtica precisa ao vanguardismo e ao dogmatismo imperante: justamente por isso

    receber o rtulo de "extremismo".

    Na presente edio inclumos:

    - "Centros de Estudantes: ou como gerir a misria" - Sobre como superar a equivocada determinao de lutar com esta ferramenta, mais uma breve introduo crtica ao Sindicalismo.

    - "Universidade/Contra Universidade" - Texto de origem espanhola que, com um vocabulrio Situacionista, apresenta uma boa crtica sociolgica ao status do profissional.

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    - "A misria dos independentes" - Texto j difundido que, entendido em um contexto particular, mostra a triste perspectiva que possuem os autodenominados independentes.

    Centros de Estudantes ou como gerir a misria.

    "O estudante, mais do que qualquer outra categoria, est contente de estar politizado. Portanto, ignora que participa atravs do mesmo

    espetculo. Deste modo se apropria dos miserveis e ridculos restos de uma esquerda que foi aniquilada h vrios anos pelo reformismo

    'socialista' e pela contra-revoluo stalinista." Mustaf Kayat

    A ideologia democrtica encontra na instituio universitria sua verso educativa. Os centros de estudantes representam a maquete do treinamento poltico, onde os partidos e as agrupaes dirigem suas juventudes para o adestramento no terreno democrtico. Por sua vez, provm certas qualidades microeconmicas que permitem a seus militantes o prprio sustento e um ganho mnimo, caracterstica que explica tambm por que geralmente estes organismos se convertem em algo to estimado.

    Cabe tambm destacar que, por uma questo de proximidade, os CE geram um vnculo estratgico vital para seu reconhecimento, j que se

    relacionam com os grmios da educao, geralmente de forma cordial. Este vnculo acaba por conformar a rede

    do governo estudantil lhe dando um toque final de sindicalismo. Sem adentrarmos na crtica ao sindicalismo, mas adiantando que formar parte do tema desta publicao, podemos brevemente comentar que a confuso de

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    acreditar que os CE so os sindicatos dos estudantes uma falcia burguesa. Os universitrios esto, em ltima instncia, afirmando o papel dos CE como tal e, portanto o ncleo que os contm no um sindicato. Isto se compreende melhor se notarmos que do estudante no se extrai nenhuma mais valia de forma direta quando realiza seu trabalho, est apenas sofrendo um processo de valorizao de si mesmo que o afetar em seu futuro ingresso ao mercado de trabalho, como empregado especializado ou como patro6.

    por esta simples razo que no est na mesma situao que os assalariados, no necessitando assim da "soluo" que os sindicatos provm dentro do marco legalista. Mas isto evita que o CE, na prtica, atue de forma semelhante aos sindicatos,

    estruturas que iro reger nossa vida durante todo nosso caminho dentro do mercado de trabalho, a favor da perpetuao da ideologia dominante7. Os CEs representam a primeira comunicao poltica direta com que muitos estudantes se encontram ligados, porm isto de nenhuma maneira quer dizer que tenham uma verdadeira influncia poltica. No CE os estudantes delegam seu poder espera que este seja seu porta-voz em conflitos e inquietudes. Claramente, como em qualquer sistema democrtico, a mesma lgica eletiva faz com que a verdadeira representatividade, considerando o nmero de foras, de candidatos e de votantes, seja nula. Isto significa que cada vez que o estudante vota est participando de uma representao, de um rito vazio que somente serve para a diverso da classe dominante e lavagem de culpas dos setores mdios e pequeno-burgueses.

    6 "A entrada em cena da coisificao sob o capitalismo moderno impe a cada

    indivduo um papel na passividade generalizada. Os estudantes no escapam a esta lei. Se trata de um papel provisional que o prepara para o papel definitivo que assumir como elemento positivo e conservador, no funcionamento do sistema mercantil. No mais que uma iniciao" - Mustaf Kayat, A misria da vida estudantil. Internacional Situacionista. 1966. 7 "A falsa conscincia poltica se encontra nele no estado puro, e o estudante constitui a base ideal para as manipulaes de burocratas fantasmas de organizaes moribundas. Estas programam totalitariamente suas opes polticas; toda marginalidade ou inteno de 'independncia' volta docilmente, depois de uma encenao de resistncia, ordem que em nenhum s instante foi posta em questo" - Mustaf Kayat. Op Cit.

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    Mas o principal problema do estudante est no fato de que ele mesmo se converte na maior vtima desta lavagem de culpas: considera que precisa modificar suas condies de vida, mas jamais far o esforo, nem dedicar uma quantidade de tempo suficiente para compreender as verdadeiras causas que o foram a continuar esta existncia miservel.

    Desta maneira, busca preencher seu vazio ideolgico recorrendo por vezes aos mortos-vivos e suas ideologias cadavricas. Est orgulhoso de opor-se aos arcasmos de Bush, mas no compreende que o faz em nome de erros do passado, de crimes j frios (reivindicando a Pern, Stalin, Mao, Trotsky, Lnin, Guevara, Castro...) e que deste modo sua juventude ainda mais arcaica que o poder.

    Mas assim, que quando se consegue superar esta fase de falsa radicalidade, no encontra sadas viveis para direcionar sua raiva: isto se deve ao fato de querer continuar vendo-se como estudante, e no como proletrio. Ningum pode negar que incontvel a quantidade de estudantes que fogem apavorados das espordicas tentativas de assemblia, ao se dar conta do grande espetculo de cooptao a que foram convidados. Apesar de serem muitas as pessoas que disputam estes grandes espaos num asqueroso ostracismo (ao sentir-se obrigados a "fazer algo enquanto se jovem e revolucionrio"), todos os demais que se retiram do recinto, com um grande sentimento de despeito, no possuem a inteno de canalizar esta luta, buscando uma forma de dedicar-se a essas sensaes em outro espao individual e coletivo.

    Somado a este fato, recebemos constantemente dos meios de comunicao (e inclusive desde as prprias agrupaes polticas) noes como violentos, revoltosos, inadaptados e tantas outras que condenam a rebeldia a um marco temporal dentro de nossas vidas. Toda tentativa de ruptura , portanto, marginalizada e considerada "deslocada" frente s alternativas legais e democrticas de consenso. Aquele que no gira em torno das mesmas formas organizativas de antigamente, chamado instantaneamente de contra-revolucionrio pelo conjunto do esquerdismo; ou em ltima instncia, como contraproducente: contraproducente ao imutvel programa poltico fica claro, que

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    no fim isso no reflete nada mais que seus prprios interesses estritamente partidrios.

    Todas estas artimanhas operam de tal maneira que lhes

    fazem no enxergar este perodo da juventude como um momento para a tomada de conscincia verdadeiramente revolucionria. Este paradigma possui um impacto importante j que condiciona terrivelmente os estudantes, que se vem como incapazes de canalizar seus impulsos na construo de um espao social que contribua destruio de seu meio opressor, dentro do colapso generalizado de seu criador, o sistema de trabalho assalariado.

    Universidade/Contra-Universidade8

    "Nossa era de tcnicos faz uso abundante do adjetivo substantivado profissional; parece acreditar que encontrou uma espcie de garantia. Evidentemente, se algum considera no a minha remunerao, mas

    sim somente minhas atitudes, no existem dvidas de que fui um bom profissional. Mas em qu? Este foi meu mistrio, olhando para um

    mundo condenvel." Guy Debord, Panegrico.

    A obsesso por ser profissional.

    A sociedade do espetculo prefere as formalidades ao invs das questes profundas, a imagem ao invs do contedo, os

    diplomas sobre a inteligncia ou atividades que tragam bem-estar social. Persegue o falso mdico no por seus maus resultados, mas sim pela sua falta de diploma. Absolve o mdico que opera e mata seu paciente devido a uma complicao inesperada, ou a uma simples dose excessiva de anestesia, sempre e quando esteja corretamente titulado e formado.

    A sociedade espetacular condena ao charlato que vende seus produtos curativos tradicionais - alguns dos quais inclusive

    8 Texto publicado em 2002 no peridico espanhol "Venganza, de orientao Anarco-Insurrecionalista.

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    funcionam - em via pblica, mas anima quele que visita mdicos para sugerir a introduo no mercado de um novo produto farmacutico de conhecidos efeitos colaterais, que sero aliviados por outros rentveis produtos j previstos pela indstria. Escuta com prazer e ateno qualquer idiotice proferida por algum que acumulou custosos doutorados, e que ser capaz de explicar, por exemplo, de que maneira os grandes laboratrios no destroem a sade, ou como permitido contaminar o ambiente at certo limite, mas lhes custa ouvir alguma simples verdade dita por um graduando ou por um campons autodidata; a sociedade do espetculo se rende ante um pacote fechado e deprecia os ofcios e atividades manuais, ainda que estas sejam geralmente mais teis e menos

    perniciosas que as profisses liberais.

    Em uma sociedade como a nossa, todos querem ser profissionais. As universidades se cobrem de prestgio e de massivos concursos de admisso, e tudo segue um curso aparentemente natural. Proliferam concorrncias, trficos de influncias, centros expedidores de diplomas de maneira legal ou ilegal, emprios educativos, campos de prtica e adestramento, concursos para cadeiras, bolsas, aulas, categorias. Fervem esperanas, dinheiro, filas, poderes, burocracias, discriminaes, cartas de recomendao, exames, viagens, esforos, enquanto a inteligncia, a vida, se escapa pela porta de trs e resta somente um monte de papis da inutilidade universitria, a vitoriosa tica monetria da sociedade.

    A especializao , por um lado, um conhecimento encontrado

    por outros que s ser transmitido e aprendido, por outro, no um momento possvel dentro de um processo complexo e difcil de separar, mas sim um final, uma meta, uma deteno, uma morte, e serve sociedade autoritria e positivista que a promove.

    Apresenta-se no ser humano como um fato que limita para sempre a direo e o alcance de seu desenvolvimento. Paul Nash disse: "O perigo da especializao crescente do homem de que o converter em um mero tcnico (por mais titulado que seja) com uma imaginao que terminar esgotada pela falta de estmulos que derivam da infertilizao das analogias

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    inesperadas e das comparaes frutferas, que so patrimnio daquele que no est especializado.

    O profissional est formado para funcionar no mundo, para

    explic-lo. , via de regra, incapaz de desenvolver uma crtica que ataque alguma veia importante do sistema de explorao e destruio que empobrece a vida sobre o planeta Terra; e muito naturalmente contribuir a perpetu-lo. Exemplar o caso referido por Eduardo Galeano, na ocasio do bombardeio da OTAN Iugoslvia: "Estourou um escndalo na Gr-Bretanha. Revelou-se que as universidades mais prestigiadas, os institutos de caridade mais piedosos e os principais hospitais investem os fundos de penso de seus empregados na indstria armamentista. Os responsveis da educao, da caridade e da

    sade explicaram que colocam seu dinheiro em empresas que rendem maiores lucros e estas so, precisamente, as empresas da indstria militar.

    Um Porta-voz da Universidade de Glasgow disse com todas as letras: "No fazemos distines morais. Preocupa-nos que os investimentos sejam rentveis, no que sejam ticos". O mundo que forma profissionais sob medida um crculo vicioso e pernicioso. As empresas fabricantes de Antivrus, ou alguma de suas secretas ramificaes, mantm um bem pago cracker ocupado em criar novos vrus, para que a ltima verso de seus produtos possa ter lugar no mercado.

    A obsesso por ser profissional profundamente negativa. A relao inversamente proporcional entre a quantidade de pessoas que querem ser profissionais e a quantidade e qualidade

    de suas leituras demonstra isso. O desejo de seguir o ensino superior pouco tem a ver com um louvvel interesse intelectual ou com um nimo de adquirir mais conhecimentos, e muito mais com um desagradvel af de vaidade - a categoria profissional como smbolo de status e com um nimo de lucro utilizando a categoria profissional como arma para subir na pirmide social. O grave que esta obsesso permanece vigente e imutvel apesar das incontestveis provas contra que a realidade (desemprego, subemprego, explorao, escassez econmica, misria, discriminao), e se converteu j praticamente em um cego dogma da existncia. Ainda que

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    somente os setores A, B e inclusive s vezes o C possam concretiz-lo, todos alimentam o mito de ter que ser profissional, seja estudando nas academias correspondentes, seja esforando-se mais para conseguir chegar academia ou para que seus filhos consigam e sejam melhores que ele prprio.

    Milhares de advogados, engenheiros, arquitetos, mdicos, contadores, administradores e afins que se vem obrigados a pendurar o diploma em algum lugar digno da casa e a buscar um subemprego, dirigindo taxis, por exemplo, so uma prova da inutilidade geral da educao superior. O sensato, agora, seria fechar para sempre todas as faculdades lotadas, como as de direito. A sociedade no necessita de mais advogados, nem sequer para seus prprios interesses de conservao. Mas a

    sociedade no sensata e, pensando no fluxo de dinheiro e na liberdade de mercado, dir que cada pessoa tem o direito de crer que faz com sua vida o que quer, dentro dos estreitos limites da lei, da moral, os bons costumes e as profisses rentveis.

    A misria profissional.

    Arthur Schopenhauer, no sculo 19, escrevia: "Como tudo aquilo que nas cincias est sob a tutela do Estado, as universidades acompanham de perto a filosofia seriamente cultivada. 9. Quando os ndices de rentabilidade econmica no decresceram, mas sim se acentuaram, e os grandes interesses econmicos ditam a poltica e o curso das pesquisas, no de se esperar que as palavras do pessimista alemo tenham perdido

    vigncia.

    Hoje em dia destacados cientistas que discordam da verso oficial da AIDS, das campanhas nacionais e os custosos tratamentos afirmando que no causado por um vrus e que, alm disso, no contagioso, vivem na sua prpria carne o que uma prtica comum nas democracias capitalistas: a censura,

    9NT: A la filosofa seriamente cultivada le vienen muy estrechamente las universidades, como todo aquello que en las ciencias est bajo la tutela del Estado.

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    seja ela de parte das corporaes miditicas, pressionadas pelos consrcios de patrocinadores e pelo Estado ou de parte da instituio oficial - neste caso a instituio mdica que no ir oferecer subvenes nem espao em suas revistas especializadas. A desvalorizao do conhecimento a servio do capital somente fica mascarada por trs dos jarges ou dos termos mdicos.

    Por trs das palavras que aproveitam a ignorncia inculcada para poder impressionar, se encontra um aprendizado como um manual de perguntas e respostas, um cmodo estancamento explicativo em um universo que nos exige, no tanto para ser essencialmente conhecido, mas sim para atuar de forma no alienada nele, a capacidade pessoal de relacionar dados e

    experincias, a capacidade de sentir incertezas e perguntar, a liberdade da no especializao. A especializao , por um lado, um conhecimento encontrado por outros que s ser transmitido e aprendido, por outro, no um momento possvel dentro de um processo complexo e difcil de separar, mas sim um final, uma meta, uma deteno, uma morte, e serve sociedade autoritria e positivista que a promove.

    . Apresenta-se, no ser humano, como um fato que limita para sempre a direo e o alcance de suas secretas ramificaes.

    Paralelamente, os juzes, policiais, advogados, carcereiros, os jornalistas policiais e os de espetculos, os mdicos forenses, todos os bons profissionais que vivem das causas penais precisam da existncia contnua da delinqncia para seguir cobrando seus salrios, assim como os psiclogos e psiquiatras

    necessitam do entorno social patognico, as rotinas devastadoras, o trabalho automatizado e o stress laboral para que suas vidas no caream de sentido com o consultrio vazio.

    Um graffiti que foi visto na parede exterior de um hospital espanhol esclarece a situao desta sociedade: "Enquanto a quantidade de pessoas que vivem do cncer for maior das que morrem, a cura jamais ser encontrada." Tampouco se encontrar enquanto existam cruzadas de caridade como Teleton que, mediante o desfile grotesco dos profissionais da arte e da poltica, e recorrendo a manipulao emocional, arrecada os milhes que acabaro nos laboratrios mdicos, nas grandes

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    mdias, na indstria publicitria, nos agradecimentos pelos servios prestados. Ningum perguntar nada sobre as causas do cncer, se os altos custos dos tratamentos tm sustento material ou se eles se estabelecem com discrio, aproveitando a urgncia da doena. Ningum far nunca as perguntas importantes, mas em frente aos hospitais de neoplasia os grandes painis publicitrios continuaro anunciando refrigerantes que nenhum profissional poder afirmar, com provas, que no so cancergenos, o que, na linguagem dos especialistas, significa que realmente so, mas que a lei - realizada por outros profissionais - est do seu lado e protege o segredo de certas frmulas.

    No mundo regido pela mercadoria tudo se completa com uma

    aparente perfeio. Os administradores das filiais das multinacionais de fast-food, por exemplo, so esforados profissionais dedicados a satisfazer a urgente necessidade - criada pelos profissionais da publicidade - que alguns setores sociais tm de comer hambrgueres, e ganham um bom salrio sem vir a saber que administram, tambm, a destruio das selvas do planeta que so convertidas, em um ritmo vertiginoso, em papel para as embalagens e em pastos para o gado.

    O Mundo se move profissionalmente segundo os ditames do dinheiro. Algum desenvolve o plano em nome do progresso e do bem estar social. Algum outro o legaliza. Outro mais o administra. Algum faz a contabilidade. Outro se encarrega de fazer a publicidade nos meios de comunicao. Algum capataz contrata pees enquanto os proprietrios acumulam riquezas e

    espalham cnceres, migalhas, perturbaes mentais e ambientais. Ningum capaz de ver alm de seus narizes. Todos so muito felizes, ingnuos ou resignados. A tarefa dos profissionais no produzir conhecimento, melhorar a vida, corrigir erros ou denunciar mentiras. A tarefa dos profissionais , em alguns casos, aceitar a maquinaria capitalista, e em outros, no caso dos profissionais intelectuais, convencer-nos de que a mercadoria bela e benigna.

    A misria profissional se dirige, segundo as necessidades do mercado, mais e mais at a especializao tcnica. Existem antigos institutos que obtm status universitrio graas a

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    grandes investimentos monetrios, e a construo de edifcios de dez andares de onde sairo somente apertadores de botes; inovadores centro universitrios que oferecem esperanosas carreiras do futuro, mas que, por algum tipo de pudor renascentista, obrigam seus estudantes ps-modernos j no primeiro ano a ler textos com as grandes frases da histria e resumos das biografias dos homens mais ilustres, para que assim ningum discuta seu status universitrio ou afirme que no possui uma formao integral e humanista.

    Existem ex-ministros de economia que inauguram centros universitrios tcnicos de elite com o ideal de que cada estudante ao sair seja capaz de montar seu prprio grande negcio, ou que ao menos seja capaz de administrar bem a

    herana familiar, numa sociedade ciclicamente atingida por recesses econmicas que por fim no tende a deixar de ser uma pirmide injusta. Existem antigas universidades que consideram secretamente a possibilidade de eliminar - mediante alguma discreta e prtica fuso- as escolas e faculdades menos solicitadas, e, portanto menos rentveis, como filosofia ou histria; e outras menos antigas, mas mais prestigiadas que flexibilizam o nvel acadmico exigido a seus ingressantes de maneira que possam ser ocupadas todas as vagas disponveis, permitindo o ingresso daqueles que no conseguem ser aprovados no vestibular mas que aceitam pagar custear um ano a mais, onde sero estafados estudando matrias que poderiam chamar-se Introduo introduo.

    Nas pocas em que a universidade serve s exigncias de

    eficcia e treinamento tcnico, as humanidades sem inteligncia so simples elementos decorativos que se apresentam para provocar confuso ou indulgncia. Nas aulas abundam os controles de leitura que se movem entre a capacidade de memria e a compreenso autntica, porm sero desencorajadas todas as tentativas de desenvolver concluses abertamente equivocadas, quer dizer, capazes de pr em perigo os paradigmas de um sistema que se sente to seguro que se d ao luxo de fingir que encoraja o pensamento crtico e a discusso.

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    Existem, por outro lado, departamentos da rea de Humanas que, com discursos vazios, solicitam a concesso de ttulos honoris causa segundo os ditames da poltica governamental; e faculdades de arte e literatura que continuam recebendo

    estudantes que sero impedidos de efetuar qualquer aproximao no-acadmica poesia, ou toda aplicao rigorosa da poesia de Csar Moro (que a mesma universidade editar em belas edies para o consolo geral) por suas prprias autoridades e instituies, porque sabe que terminariam sendo qualificadas como dementes e paralticas.

    As humanidades, controladas pela instituio universitria, aparecem como cortinas de fumaa destinadas a evitar que a misria geral se revele ante os olhos. Nas mos corrompidas das

    autoridades so um jogo de imagens que provocam, inclusive, aplausos de entusiasmo, ingnuos aplausos similares aos provocados pela ltima fraude idealizada por uma universidade de status mediano.

    Esta universidade resolveu obrigar seus ingressantes a estudar cursos de ingls to bsicos que roam a onomatopia, pelo que no serviro nem para fins humanistas nem comerciais - o ingls necessrio por que o idioma do imprio - mas que sero pagos em prestaes extras, como algo aparte e especial, o que permitir a universidade no somente engrossar seu patrimnio, mas tambm o gosto de vender melhor ante os olhos de novos suplicantes, anunciando nos dirios como "Universidade bilnge" em um gesto que resulta to ridculo como o provvel ingls do reitor, ou to grosseiro como o futuro

    que se acerca. Em tempos em que as novas geraes se movem, como nunca antes, na segurana de um pensamento circular e uma prtica de submisso que no sabe dos riscos, audcias, autodidatismo, investigaes autnomas ou poesia, o futuro aparece, irrefutavelmente, como uma nuvem radioativa com formato de um computador de ltima gerao.

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    Anti-universidade: um passo a mais na anti-pedagogia.

    Com freqncia se contrape prtica universitria a prtica escolar, como se aquela fora um grande avano e tivesse caractersticas qualitativamente distintas. Inclusive se apresenta a Universidade como o recinto desde o qual brotaro solues e alternativas aos grandes problemas de nosso tempo. Oculta-se assim, com um otimismo necessariamente envolvido com a mentira ardilosa ou com a idiotice, o fato de que nas universidades, como nas escolas, persiste toda uma concepo autoritria da vida, estritos horrios para cumprir, exames, notas de aprovao e desaprovao, uma verticalidade mofada que nenhuma aula moderna naturalmente iluminada pode ocultar.

    A universidade mantm intacta a funo repressiva da escola, levando-a a um estgio mais avanado. Nem sempre tem que recorrer a tanques e intervenes militares; geralmente lhes basta manter a fico do co-governo, simulacro de democracia na que participaro sempre dceis estudantes que adquiriram o

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    mau hbito da poltica representativa, e que mediante a formao de divises estudantis faro possvel no uma democracia direta e assembleria, mas sim a criao de mfias e pequenos grupos de poder, a existncia do alto segredo burocrtico e a perpetuao de um regime sob o qual necessrio at mesmo pedir permisso para colar um cartaz numa parede, e onde com a frmula legal que probem as atividades extra-acadmicas se censura ou desencoraja toda atividade independente e autnoma capaz de produzir algum conhecimento dissonante do saber oficial.

    David Cooper compara a Universidade a um hospital psiquitrico: "O design exterior bastante parecido: o bloco administrativo e outros departamentos, alojamentos,

    laboratrios e todo o resto. Algumas universidades tm cercas e porteiros para controlar quem entra e quem sai. A ironia que provavelmente ningum entra e, certamente, nunca ningum sai. As duas instituies esto repletas de preocupao fingida dos "guardies" sobre os "guardados". Os dois so boas almas de cujos peitos emanam um antigo veneno, sedantes de todos os tipos imaginveis, desde a plula certa para tal paciente at o trabalho justo para o graduado exato."

    As universidades, apoiando esta comparao, se apresentam a si mesmas em avisos televisivos como as guardis da razo, como o exemplo decisivo e obrigatrio para uma vida completa, estancada pela esclerose de sua pretensiosa e dogmtica forma de conceber e produzir um conhecimento que se pretende universalmente vlido. Assim, ignora ou menospreza a sabedoria

    de dissidentes como Feyerabend, quem afirma que o progresso cientfico somente possvel quando certas regras "bvias" so desrespeitadas voluntria ou involuntariamente, e diz ainda que onde a razo vem ditada pela norma, que "os cientistas desenvolvero e sustentaro suas teorias irracionalmente; no existem normas gerais que estabelecem a verdade, tudo vlido."

    As Universidades, muito racionalmente, tm importantes interesses monetrios, claros objetivos de submisso social e atuam segundo as exigncias ditadas pelo mundo do trabalho assalariado. Levando em considerao isto, as universidades so

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    importantes somente pelos meios teis (bibliotecas, sales de conferncia, aulas raramente valiosas, restaurantes, salas de informtica, galerias) que, com fins contrrios a seus objetivos originais, podem ser aproveitados por no estudantes desejosos de explorar as margens do conhecimento, o subsolo da verso oficial, cientes de que "pensar sempre pensar contra".

    Sobre o pensamento, essa atividade to desalentada por toda prtica educativa, diz Viviane Forrester:

    "No existe atividade mais subversiva e mais temida que o pensamento. E tambm mais difamada, cujo fato no coincidncia j que o pensamento poltico. E no somente o pensamento poltico o . O simples fato de pensar poltico. Da vem esta luta traioeira e por isso mais eficaz e mais intensa em

    nossa poca contra o pensamento. Contra a capacidade de pensar. De que maneira provocar o pensamento, a capacidade de ler nas entrelinhas, o exerccio alegre da lucidez e da crtica? De que forma incentivar, permitir a inovao, o descobrimento, a criao de um conhecimento que sirva para viver, quando somente existe vida fora da mercadoria? Agustn Garca Calvo renuncia ao ttulo de filsofo por consider-lo desprestigiado e absolutamente assimilado pelo sistema e prefere, se que prefere algum, o ttulo menos profissional e manuseado, menos padronizado e definido, e portanto mais livre, de pensador.

    A criao de contra-universidades, lugares autnomos onde coincidam pensadores, estudantes e professores, interessados em quebrar a monotonia, as rigidezes e pobrezas acadmicas, onde o conhecimento deixe de ser "imposto" para ser uma

    criao comum ou um descobrimento individual a partir de uma possibilidade comum, a menos que o mtuo acordo solicite uma interveno magistral em alguma questo de ordem tcnica, pode ser uma alternativa vlida frente morte universitria. David Cooper diz: "O que proponho uma estrutura mvel, totalmente des-hierarquizada e em revoluo contnua, capaz assim de gerar revoluo alm dos limites de sua estrutura. A universidade (ou, o que neste estado da histria deveria se chamar anti-universidade, contra-universidade ou algo parecido) seria uma reticula muito ampla. As clulas funcionariam dentro

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    de uma universidade oficial como um antdoto do sistema, ou de forma muito independente.

    Estas estruturas informais, desprovidas por completo dos

    pesos da esquerda que se submete dinmica e lgica da poltica autoritria, quer dizer, desprezando totalmente o poder, sem nenhuma inteno de conquist-lo e com a organizao mnima para funcionar, provavelmente seriam consideradas suspeitosas, ou inclusive ilegais, pelas autoridades acadmicas, o que nos demonstra a boa sade do cadver universitrio e a necessidade destas instncias de contestao e crtica.

    Se no possvel a criao destes espaos livres, devido represso autoritria ou porque no sucederam os felizes encontros com as pessoas necessrias devido aos cada vez mais estreitos e previsveis interesses das novas geraes ingressantes; se j no viveis nem sequer as intervenes pessoais na aula com a inteno de provocar algum debate ou alguma inquietude, devido ao estupor geral e s represlias. E se a perspectiva de um horizonte de exames e aulas vulgares j insuportvel, o nico recurso para salvaguardar a integridade pessoal parece ser abandonar formalmente o antro universitrio, de maneira solitria e silenciosa, protagonizando o que aos olhos do mundo um abandono inexplicvel.

    A Misria dos independentes

    "Certamente, entre os estudantes, existem alguns com um nvel intelectual suficiente. Estes dominam sem esforo os miserveis

    controles de capacidade previstos pelos medocres, e os dominam perfeitamente porque compreenderam o sistema, porque o desprezam e

    conhecem seus inimigos. Tomam do sistema de estudos o que ele tem de melhor: as bolsas. Seu desprezo manifesto quanto ao sistema anda

    junto com a lucidez que lhes permite ser mais fortes que os serventes do sistema e principalmente, no terreno intelectual. Estes de quem falamos,

    figuram j entre os tericos do movimento revolucionrio que se aproxima. No escondem de ningum que o que tomam do "sistema de

    estudos" utilizado para sua destruio" Mustaf Kayat

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    Ano aps ano se repetem os mesmos sucessos, os estudantes mostram sua indignao por algo que acontece em seu meio10, enquanto que a meia quadra sucede o mesmo. Contudo, isto no os interessa: essa a lgica estudantil, burguesa por natureza. As crticas s agrupaes e ao meio em si mesmo j foram realizadas, agora o momento de ocupar-nos deste ser, o independente, que cada vez mais se apresenta como o ator principal do espetculo estudantil.

    O independente por excelncia o despojado ideolgico. Cai vez ou outra numa postura apoltica asquerosa, pensando que o simples fato de no estar configurado em um partido ou agrupao um fim em si mesmo, por mais que suas exposies sejam to ou mais inofensivas que a dos partidos polticos. O

    independente desconhece que a reproduo desta mentalidade a que far que todo seu potencial seja invertido pelo sistema para ser convertido em mais um escravo. Obviamente, mais tarde, j inserido no mercado de trabalho, dir que a poltica no lhe interessa, que ele se interessa por outras coisas.

    O independente se contrape ao centralismo democrtico11 no por coerncia nem por moral, e menos ainda pela praticidade com que planeja a luta de classes. Este demonstra seu anti-partidarismo somente por uma questo de simbolismos, sabe que os partidos so maus, e que no o representam. Mas no consegue arrancar de si o porqu, e nem sequer pe em xeque a questo da representao, j que seu anseio esse utpico centro de estudantes independentes.

    O independente no se imagina alm de seu entorno, a

    Universidade seu mundo e somente a ele encontra essa lavagem de culpas que tanto necessita em sua vida. sua falta de ideais tenta contrapor uma indolncia no estruturado horrio

    10 Aqui cremos necessrio realizar esta contextualizao: o presente texto foi escrito e publicado na poca em que os estudantes da faculdade de cincias humanas da UBA (Buenos Aires), mostravam seu repdio a implantao de seguranas privados nas instalaes, que haviam comeado suas tarefas em abril de 2008 por ordens do Reitor. 11 O centralismo democrtico o modelo de organizao e funcionamento dos partidos e organizaes marxista-leninistas. Supe a combinao de centralismo e democracia para potencializar a disciplina consciente e o sacrifcio voluntrio da liberdade em proveito da mxima eficincia.

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    que dedica "sua militncia, 12porque, sem dvida, fora deste horrio um cidado e no um revolucionrio.

    Somente tendo uma viso global dos fatos poderemos

    considerar-nos realmente revolucionrios. Devemos estender as boas facetas de ser independente, deixando de lado as prejudiciais. Necessitamos assim mesmo continuar afastados dos partidos, assim como de toda hierarquia, e compreender finalmente que a universidade no pertence aos explorados: somente uma estrutura mais do sistema dominante, orquestrada para nos anular, sendo necessria sua destruio.

    12 Chegar um momento em que ns, os revolucionrios, no nos chamaremos mais militantes e comearemos a ser pessoas responsveis. Ser nesse mesmo momento histrico, quando este infame termo somente encontrar aplicao nos crculos dos "profissionais da revoluo", que com seu vocabulrio e aes putrefatas estaro em via de extino

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    Como defender a sociedade contra a cincia13

    Paul Feyerabend14

    Praticantes de uma profisso estranha, amigos, inimigos, senhoras e senhores: antes de iniciar minha palestra, deixem-me explicar como ela passou a existir.

    H um ano, aproximadamente, eu estava com pouco dinheiro. Aceitei, ento, um convite para contribuir para um livro sobre a relao entre cincia e religio. Para fazer o livro vender, pensei que deveria fazer da

    minha contribuio algo provocativo; e a declarao mais provocante que pode ser feita sobre a relao entre cincia e

    13 How to Defend Society against Science, artigo publicado em Scientific Revolutions, Hacking, 1987, uma reimpresso de Radical Philosophy no. 11, 1975. Com correes nossas, a traduo de Paulo Luiz Durigan e est disponvel no site: http://www.apriori.com.br/cgi/for/como-defender-a-sociedade-diante-da-ciencia-feyerabend-t9749.html 14 NT: Paul Feyerabend (1924-1994), austraco, professor de filosofia das Universidades de Berkeley, Auckland, Sussex, Yale, Londres e Berlim. Entre seus estudos esto Against Method, Knowledge Without Foundation, Science in a Free Society, Farewell to Reason, Conquest of Abundance: A Tale of Abstraction versus the Richness of Being, entre outros. Seria o filsofo da epistemologia anrquica.

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    religio que a cincia uma religio. Tendo elaborado a declarao central de meu artigo, descobri que muitas razes, muitas razes excelentes, poderiam ser encontradas para mant-la. Enumerei as razes, terminei o meu artigo, e fui pago. Essa foi a primeira fase.

    Em seguida fui convidado para a Conferncia para a Defesa da Cultura. Aceitei o convite porque pagaram meu vo para a Europa. Eu tambm devo admitir que estava bastante curioso. Quando cheguei a Nice, no tinha idia do que iria dizer. Enquanto a conferncia prosseguia, descobri que todos esperavam muito da cincia e que todos estavam muito srios. Ento resolvi explicar como algum poderia defender a cultura da cincia. Todas as razes recolhidas no meu artigo se

    aplicariam bem aqui tambm e no houve necessidade de inventar coisas novas. Eu dei minha palestra, fui recompensado com um protesto sobre as minhas "perigosas e irrefletidas idias", peguei minha passagem e vim para Viena. Essa foi a fase dois.

    Agora eu gostaria de me dirigir a vocs. Tenho um palpite de que em algum aspecto vocs so muito diferentes do meu pblico de Nice. Para comear, vocs parecem muito mais jovens. Minha audincia em Nice estava repleta de professores, empresrios e executivos de televiso, e a idade mdia girava em torno de 58,5 anos. Ento tenho certeza que a maioria de vocs consideravelmente mais esquerda do que algumas pessoas que estavam em Nice. De fato, falando um pouco superficialmente, eu poderia dizer que vocs so um pblico de

    esquerda, enquanto o meu pblico-alvo em Nice era um pblico de direita. No entanto, apesar de todas essas diferenas, vocs tm coisas em comum. Ambos, eu assumo, tm interesse em cincia e conhecimento. A cincia, claro, precisa ser mudada e deve ser feita de forma menos autoritria. Mas uma vez que as reformas sejam feitas, a cincia constitui-se em uma valiosa fonte de conhecimento que no deve ser contaminada por ideologias de natureza diferente. Em segundo lugar, os dois pblicos so de pessoas srias. O conhecimento um assunto srio, tanto para a direita como para a esquerda, e deve ser perseguido atravs de um esprito srio. A frivolidade est fora; a dedicao e a aplicao sria esto dentro. Essas semelhanas

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    so tudo que eu preciso para repetir minha palestra de Nice a vocs com quase nenhuma mudana. Ento, aqui est.

    Contos de fadas

    Eu quero defender a sociedade e os seus habitantes de todas as ideologias, inclusive da cincia. Todas as ideologias devem ser vistas em perspectiva. No se deve lev-las to a srio. preciso l-las como contos de fadas, os quais tm muitas coisas interessantes para dizer, mas tambm contm mentiras maliciosas, ou como prescries ticas, as quais podem ser teis regras prticas, mas que so mortais quando seguidas risca.

    Agora, essa no uma atitude estranha e ridcula? A cincia, certamente, esteve sempre na vanguarda da luta contra o autoritarismo e a superstio. cincia que devemos o incremento de nossa liberdade intelectual frente s crenas religiosas; cincia que devemos a libertao da humanidade de formas de pensamento antigas e rgidas. Hoje, essas formas de pensar so apenas pesadelos - e isso aprendemos com a cincia. Cincia e iluminao so uma e a mesma coisa - at mesmo os crticos mais radicais da sociedade acreditam nisso. Kropotkin queria derrubar todas as instituies tradicionais e as formas de crena, exceo da cincia. Ibsen critica as mais ntimas ramificaes da ideologia burguesa do sculo XIX, mas deixa intocada a cincia. Lvi-Strauss nos fez perceber que o pensamento ocidental no o pice solitrio da realizao

    humana, como freqentemente se acreditava, mas exclui a cincia de sua relativizao das ideologias. Marx e Engels estavam convencidos de que a cincia auxiliaria os trabalhadores na sua busca pela libertao mental e social. Todas essas pessoas estavam enganadas? Estavam todos equivocados sobre o papel da cincia? So todos vtimas de uma quimera?

    Para essas perguntas a minha resposta um firme: Sim e No.

    Deixem-me explicar a resposta.

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    Minha explicao composta de duas partes, uma mais geral e outra mais especfica.

    A explicao geral simples. Qualquer ideologia que rompe o

    controle que um sistema abrangente de pensamento exerce sobre as mentes dos homens, contribui para a libertao destes. Qualquer ideologia que faz o homem questionar crenas herdadas um auxlio para a iluminao. Uma verdade que reina sem freios e contrapesos como um tirano que deve ser deposto, e qualquer mentira que possa nos ajudar a jogar longe esse tirano deve ser bem-vinda. Disso segue que a cincia dos sculos XVII e XVIII, na verdade foi um instrumento de libertao e de iluminao. Disso no segue que a cincia seja compelida a permanecer como tal. No h nada inerente na

    cincia ou em qualquer outra ideologia que as tornem essencialmente libertadoras. Ideologias podem deteriorar-se e tornarem-se religies estpidas. Veja o Marxismo. E que a cincia de hoje muito diferente da cincia de 1650 evidente ao olhar mais superficial.

    Por exemplo, considere o papel que a cincia desempenha agora na educao. Os "fatos" cientficos so ensinados em uma idade muito precoce e da mesma maneira como os "fatos" religiosos eram ensinados a apenas um sculo atrs. No h nenhuma tentativa de despertar as capacidades crticas do aluno para que ele possa ser capaz de ver as coisas em perspectiva. Nas universidades a situao ainda pior, a doutrinao aqui realizada de forma muito mais sistemtica. A crtica no est totalmente ausente. A sociedade, por exemplo, e

    as suas instituies, so criticadas severamente e muitas vezes injustamente, e isso j ao nvel do ensino fundamental. Mas a cincia excluda dessas crticas. Na sociedade em geral, o juzo de um cientista recebido com a mesma reverncia como o pensamento de bispos e cardeais era aceito no muito tempo atrs. O movimento em direo "desmitologizao"15,[2] por exemplo, em grande parte motivado pelo desejo de evitar

    15 NT: Desmitologizao" um mtodo de interpretao religiosa, principalmente do Novo testamento, levada a cabo por Rudolf Bultmann (1884-1976) e que consistia em eliminar conceitos tidos como pr-cientficos, tais como os milagres bblicos, substituindo-os por explicaes cientficas atuais.

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    qualquer conflito entre o cristianismo e as idias cientficas. Se tal conflito ocorre, ento, certamente, a cincia estar certa e o cristianismo, equivocado. Aprofundem a investigao e vocs notaro que a cincia tornou-se to opressiva quanto as ideologias, contra quem um dia combateu. No se deixe enganar pelo fato de que hoje dificilmente algum morto por unir-se a uma heresia cientfica. Isso no tem nada a ver com cincia. Tem algo a ver com a qualidade geral de nossa civilizao. Os hereges em cincia ainda sofrem as sanes mais severas que esta civilizao relativamente tolerante tem para oferecer.

    Mas - esta descrio no completamente injusta? Eu no coloquei a questo de forma bastante distorcida, usando terminologia tendenciosa e distorcida? No devemos descrever a

    situao de maneira muito diferente? Eu disse que a cincia se tornou rgida, que deixou de ser um instrumento de mudana e libertao, sem acrescentar que ela encontrou a verdade ou grande parte desta. Considerando este fato adicional percebemos - ento a oposio cessa - que a rigidez da cincia no se deve obstinao humana. Encontra-se na natureza das coisas. Porque, uma vez descoberta a verdade - o que mais podemos fazer, seno segui-la?

    Esta resposta trivial qualquer coisa, menos original. usada toda vez que uma ideologia tenciona reforar a f de seus seguidores. A "Verdade" uma palavra to agradavelmente neutra. Ningum negar que louvvel falar a verdade e inadequado dizer mentiras. Ningum negar isso e, todavia, ningum sabe o que tal atitude implica. Assim fcil torcer as

    questes e pular da fidelidade verdade em assuntos do cotidiano para a fidelidade Verdade de uma ideologia, o que no nada mais que a defesa dogmtica desta ideologia. E claro, no verdadeiro que necessitamos seguir a verdade. A vida humana guiada por muitas idias. A verdade uma delas. A liberdade e independncia intelectual so outras. Se a Verdade, tal como concebida por alguns idelogos, conflita com a liberdade, ento ns podemos escolher. Podemos abandonar a liberdade. Mas tambm podemos abandonar a Verdade (alternativamente, pode-se adotar uma idia mais sofisticada de que a verdade no contradiz a liberdade, que foi a soluo de Hegel). A minha crtica cincia moderna que ela inibe a

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    liberdade de pensamento. Se o motivo que ela tenha encontrado a verdade e agora a segue, ento eu diria que h coisas melhores que essa primeira descoberta e depois seguir o monstro.

    Isso finaliza a parte geral da minha explicao.

    H um argumento mais especfico com vias a defender a posio excepcional que a cincia tem na sociedade atual. Em resumo o argumento diz (1) que a cincia encontrou finalmente o mtodo correto para alcanar resultados e (2) que h muitos resultados para provar a excelncia do mtodo. O argumento equivocado - mas a maioria das tentativas para provar isso acabam caindo em um beco sem sada. A metodologia tem hoje se tornado to abarrotada de sofisticao vazia que

    extremamente difcil perceber os erros simples na base. como lutar contra a Hidra corta-se uma cabea feia e oito figuras tomam seu lugar. Desse jeito a nica resposta a superficialidade: quando a sofisticao perde o contedo, ento a nica maneira de manter contato com a realidade tornar-se grosseiro e superficial. o que pretendo ser.

    Contra o mtodo

    H um mtodo, diz a parte (1) do argumento. Qual ? Como funciona? Uma resposta que j no to popular como costumava ser que a cincia funciona atravs da coleta de fatos e infere teorias a partir deles. A resposta no satisfatria

    porque as teorias nunca seguem de fatos, no estrito sentido lgico. Dizer que elas ainda podem ser apoiadas em fatos pressupe uma noo de suporte que (a) no mostre esse defeito e (b) seja suficientemente sofisticada para nos permitir afirmar em que medida, por exemplo, a teoria da relatividade apia-se em fatos. Tal noo no existe hoje, nem provvel que venha a ser encontrada (um dos problemas que necessitamos uma noo de apoio que afirma que os corvos so cinzentos para sustentar "todos os corvos so negros").16 o que foi levado a

    16 NT: o texto original diz No such notion exists today, nor is it likely that it will ever be found (one of the problems is that we need a notion of support in

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    cabo pelos convencionalistas e pelos idealistas transcendentais, os quais assinalaram que as teorias do forma e ordem aos fatos e podem, por conseguinte, serem conservados acontea o que acontecer. Eles podem ser mantidos porque a mente humana, consciente ou inconscientemente, exerce sua funo de ordenao. O problema com esses pontos de vista que eles assumem para a mente o que pretendem explicar para o mundo, isto , que funciona de forma regular. H apenas uma viso que supera todas essas dificuldades. Foi inventada duas vezes no sculo XIX, por Mill, em seu imortal ensaio A Liberdade, e por alguns darwinistas que levaram o darwinismo para a batalha de idias. Esse ponto de vista pega o touro pelos chifres: teorias no podem ser justificadas e a sua excelncia no pode ser

    demonstrada sem referncia a outras teorias. Ns podemos explicar o sucesso de uma teoria em funo de uma teoria mais abrangente (podemos explicar o sucesso da teoria de Newton usando a teoria da relatividade geral); e podemos explicar nossa preferncia por ela comparando-a com outras teorias.

    Essa comparao no prova a excelncia intrnseca da teoria que escolhemos. De fato, a teoria que elegemos pode ser bem tosca. Pode conter contradies, pode entrar em conflito com fatos conhecidos, pode ser incmoda, pouco clara, ad hoc em situaes decisivas, e assim por diante. Mas ela ainda pode ser melhor do que qualquer outra teoria disponvel no momento.17 Tampouco os padres18 de julgamento so escolhidos de forma

    which grey ravens can be said to support "all ravens are black"). Talvez tenha pretendido dizer de que de alguns corvos so negros segue todos os corvos so negros. Em Against Method diz: Com efeito, para mostrar que a generalizao todos os corvos so negros sustentada com questionvel fundamento, basta apresentar um corvo branco e revelar as tentativas feitas

    no sentido de escond-lo, de transform-lo em um corvo preto ou de levar as pessoas a acreditarem que ele , na verdade, preto; e perfeitamente razovel ignorar os muitos corvos pretos que indubitavelmente existem. A meno tem a ver com o chamado paradoxo dos corvos, de Hempel. Diz o paradoxo que se todos os corvos so pretos a derivao lgica necessria seria tudo que no preto no corvo. Isso levaria a que asseres tais como a mesa azul justificariam que tudo que no preto no corvo. 17 NT: Em algumas publicaes h, a seguir, uma frase, suprimida neste texto: It may in fact the best lousy theory there is, isto , ela, de fato, pode ser a melhor teoria tosca que h. 18 NT: standarts.

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    absoluta. Nossa sofisticao incrementada a cada escolha que fazemos, e o mesmo ocorre com nossos padres. Os padres rivalizam da mesma maneira como as teorias competem e ns escolhemos os padres mais adequados situao histrica na qual a escolha ocorre. As alternativas rejeitadas (teorias, normas, "fatos") no so eliminadas. Elas servem como corretivos (afinal de contas, ns podemos ter feito a escolha errada) e tambm servem para explicar o contedo das posies preferenciais (ns entendemos relativamente melhor quando compreendemos a estrutura das suas concorrentes; conhecemos o sentido pleno de liberdade somente quando temos idia da vida em um estado totalitrio, de suas vantagens - e h muitas vantagens - assim como das suas desvantagens). O

    conhecimento assim concebido um oceano de alternativas canalizadas e subdivididas por um oceano de padres. Isso fora a nossa mente a fazer escolhas imaginativas e, portanto, a faz crescer. Faz nossa mente ser capaz de escolher, imaginar, criticar.

    Hoje esse ponto de vista frequentemente associado ao nome de Karl Popper. Mas h algumas diferenas decisivas entre Popper e Mill. Para comear, Popper desenvolveu sua viso para resolver um problema especfico da epistemologia - procurava resolver o "problema de Hume".19 Mill, por outro lado, est interessado nas condies favorveis para o desenvolvimento humano. Sua epistemologia o resultado de uma determinada teoria do homem, e no o contrrio. Popper, tambm, sob influncia do Crculo de Viena, melhora a forma lgica de uma teoria antes de passar a discuti-la, enquanto Mill usa cada

    teoria na forma em que ela ocorre na cincia. Em terceiro lugar, os padres de comparao de Popper so rgidos e fixos, enquanto os padres de Mill so passveis de mudana com a situao histrica. Finalmente, os padres de Popper eliminam os concorrentes de uma vez por todas: as teorias que apresentam ou no falsificabilidade ou falsidade no tm lugar na cincia. Os critrios de Popper so claros, inequvocos, precisamente formulados; os critrios de Mill no o so. Essa

    19 NT: para melhor entendimento, veja A crtica de Popper a Hume: o problema da induo, por Osvaldino Marra Rodrigues, disponvel em http://serbal.pntic.mec.es/~cmunoz11/marra66.pdf.

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    seria uma vantagem se a prpria cincia fosse clara, inequvoca e precisamente formulada. Felizmente, no .

    Para comear, nenhuma teoria cientfica nova e

    revolucionria sempre formulada de maneira que nos permita dizer em quais circunstncias devemos consider-la como perigosa: muitas teorias revolucionrias so irrefutveis. Verses falsificveis existem, mas elas quase nunca esto de acordo com as declaraes de princpio aceitas: toda teoria moderadamente interessante falsificada. Alm disso, as teorias tm falhas formais, muitas delas contm contradies, ajustes ad hoc, e assim por diante, etc. Aplicados com determinao, os critrios de Popper eliminariam a cincia sem substitu-la por nada comparvel. Eles so inteis como ajuda para a cincia. Na

    ltima dcada, isso foi realizado por vrios pensadores, entre eles Kuhn e Lakatos. As idias de Kuhn so interessantes, mas, infelizmente, so demasiado vagas para dar origem a nada mais do que falsas novidades.20 Se vocs no acreditam em mim, vejam a literatura. Nunca antes a literatura sobre a filosofia da cincia foi invadida por tantos puxa-sacos e incompetentes. Kuhn incentiva pessoas que no sabem nem por que uma pedra cai no cho a falar com segurana sobre mtodo cientfico. No tenho qualquer objeo incompetncia, mas me oponho quando a incompetncia acompanhada de tdio e pedantismo. E exatamente isso que acontece. Ns no selecionamos interessantes idias falsas, pegamos idias chatas ou palavras no relacionadas com idia alguma. Em segundo lugar, sempre que algum tenta definir melhor as idias de Kuhn, acaba achando que so falsas. J houve um perodo de cincia normal

    na histria do pensamento? No - e eu desafio qualquer um a provar o contrrio.

    Lakatos muito mais sofisticado do que Kuhn. Em vez de teorias, ele considera programas de investigao, os quais so seqncias de teorias ligadas por mtodos de modificao, a chamada heurstica. Cada teoria na seqncia pode estar cheia de falhas. Pode estar assolada por anomalias, contradies, ambigidades. O que conta no a forma das teorias individuais, mas a tendncia exibida pela seqncia. Julgamos a

    20 NT: lots of hot air.

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    evoluo histrica e as conquistas ao longo de um perodo de tempo em vez da situao em um determinado momento. Histria e metodologia so combinadas em uma nica empreitada. Um programa de investigao dito que progride se a seqncia de teorias leva a novas predies. Diz-se que degenera, se ficar reduzido absoro de fatos que foram descobertos sem a sua ajuda. Uma caracterstica determinante da metodologia de Lakatos que essas avaliaes j no esto mais ligadas a regras metodolgicas que determinam se o cientista deve manter ou abandonar um programa de investigao. Os cientistas podem aderir a um programa degenerado, eles podem at ter sucesso em fazer o programa ultrapassar seus rivais e, por conseguinte, prosseguir

    racionalmente o que esto fazendo (desde que continuem chamando de degenerados os programa degenerados e de progressivos os programas progressivos). Isso significa que Lakatos oferece palavras que soam como os elementos de uma

    metodologia; ele no oferece uma metodologia. No h mtodo de acordo com a metodologia mais avanada e sofisticada que hoje existe. Com isso finalizo a minha resposta parte (1) do argumento

    especfico.

    Contra os resultados

    De acordo com a parte (2), a cincia merece uma posio especial porque tem produzido resultados. Esse argumento s pode ser dado como vlido se nada mais produziu resultados. Pode-se admitir que quase todo mundo que discute o assunto faz tal suposio. Tambm se pode admitir que no fcil

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    demonstrar que essa hiptese falsa. As formas de vida diferentes da cincia ou desapareceram ou se degeneraram em uma medida que se tornou impossvel uma comparao justa. Ainda assim, a situao no to desesperada como era h apenas uma dcada. Tornamo-nos familiarizados com mtodos de diagnstico mdico e de tratamento que so eficazes (e talvez at mais eficazes que parcelas correspondentes da medicina ocidental), e que ainda esto baseados em uma ideologia que radicalmente diferente da ideologia da cincia ocidental. Aprendemos que existem fenmenos como a telepatia e a telecinese, que so eliminados da abordagem cientfica e que poderiam ser utilizados para fazer a pesquisa de uma forma totalmente nova (pensadores anteriores, como Agrippa von

    Nettesheim, John Dee,21 e mesmo Bacon estavam conscientes desses fenmenos). E ento - no que a Igreja salvou almas enquanto a cincia muitas vezes faz o contrrio? Evidentemente, ningum acredita agora na ontologia que fundamenta esse entendimento. Por qu? Devido s presses ideolgicas idnticas s que hoje nos fazem ouvir a cincia com a excluso de todo o resto. Tambm verdade que fenmenos como a telecinese e a acupuntura podem eventualmente ser absorvidos pelo corpo da cincia e, portanto, podem ser chamados de "cientficos". Mas note que isso s acontece depois de um longo perodo de resistncia durante o qual a cincia, ainda que no contendo tais fenmenos, quer ter a supremacia sobre as formas de vida que os contm. E isso leva a uma outra objeo contra a parte (2) do argumento especfico. O fato de que a cincia tem resultados conta a seu favor somente se esses resultados foram

    alcanados pela cincia por si s, e sem qualquer ajuda exterior. Um olhar sobre a histria mostra que a cincia quase nunca obtm seus resultados dessa forma. Quando Coprnico introduziu uma nova viso do universo, ele no consultou antecessores cientficos, ele consultou um louco pitagrico, Filolau.22 Adotou suas idias e ele manteve-as frente a todas as

    21 NT: Para Kuhn, os perodos de cincia normal ocorrem entre as revolues cientficas. 22 NT: Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim (1486-1535), mago, escritor de ocultismo, astrlogo e alquimista. John Dee (1527-1609), matemtico, astrnomo, astrlogo, gegrafo, alquimista, estudioso do ocultismo e da magia.

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    regras do mtodo cientfico. Mecnica e tica devem muito aos artesos; a medicina s parteiras e bruxas. E em nossos dias temos visto como a interferncia do Estado pode fazer avanar a cincia: quando os comunistas chineses no se deixaram intimidar pelo julgamento de especialistas e ordenaram a volta da medicina tradicional s universidades e hospitais, houve uma gritaria em todo o mundo de que a cincia estaria em runas na China. Muito ao contrrio ocorreu: a cincia chinesa avanou e a ocidental aprendeu com ela. Para onde quer que olhemos vemos que grandes avanos cientficos so devidos interferncia externa a qual prevalece em face das mais bsicas e "racionais" regras metodolgicas. A lio clara: no existe um nico argumento que poderia ser usado para apoiar o papel

    invulgar que a cincia hoje interpreta na sociedade. A cincia tem produzido muitas coisas, mas tambm assim o fizeram outras ideologias. A cincia frequentemente procede sistematicamente, mas o mesmo acontece com outras ideologias (basta consultar os registros dos muitos debates doutrinrios que tiveram lugar na Igreja) e, alm disso, no h regras preponderantes que sejam respeitadas em quaisquer circunstncias; no h uma metodologia cientfica" que possa ser usada para separar a cincia do restante. A cincia apenas uma das muitas ideologias que impulsionam a sociedade e deveria ser tratada como tal (esse preceito se aplica at mesmo s mais progressistas e mais dialticas sees da cincia). Que conseqncias podemos tirar dessa concluso?

    A conseqncia mais importante que deve haver uma separao formal entre Estado e cincia tal como atualmente

    existe uma separao formal entre Estado e Igreja. A cincia pode influenciar a sociedade, mas apenas na mesma medida em que a qualquer grupo poltico ou de presso permitido influenciar. Os cientistas podem ser consultados sobre projetos importantes, mas a deciso final deve ser deixada para os rgos de consultoria democraticamente eleitos. Estes rgos sero formados principalmente de leigos. Ser que os leigos sero capazes de chegar a uma deciso correta? Certamente, porque a competncia, as complicaes e os sucessos da cincia so muito exagerados. Uma das experincias mais emocionantes ver como um advogado, que um leigo, capaz de encontrar

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    falhas no testemunho, no testemunho tcnico do perito mais avanado e, assim, preparar o jri para o veredicto. A cincia no um livro fechado, que compreendida somente depois de anos de treinamento. uma disciplina intelectual que pode ser examinada e criticada por qualquer interessado e que parece ser difcil e profunda somente por causa de uma campanha sistemtica de ofuscamento realizada por muitos cientistas (embora, estou feliz em dizer, no por todos). Os rgos do Estado nunca deveriam hesitar em rejeitar a deciso dos cientistas quando eles tm razo para faz-lo. Essa rejeio vai educar o pblico em geral, ir torn-lo mais confiante, e pode mesmo conduzir a melhoramentos. Considerando o aprecivel chauvinismo da comunidade cientfica, podemos dizer: quantos

    mais casos Lysenko,23 melhor (no a interferncia do Estado que desagradvel no caso Lysenko, mas a interferncia totalitria que mata o oponente e no apenas negligencia os seus conselhos). Trs vivas para os fundamentalistas da Califrnia, que conseguiram que uma formulao dogmtica da teoria da evoluo e tambm um relato do Gnesis fossem retirados dos livros didticos (mas sei que eles se tornaro chauvinistas e totalitrios como os cientistas de hoje, se lhes for dada a oportunidade de dirigir a sociedade por si mesmos. As ideologias so maravilhosas quando operadas na companhia de outras ideologias. Elas tornam-se aborrecidas e dogmticas quando seus mritos conduzem remoo de seus adversrios). A mudana mais importante, no entanto, ter de ocorrer no campo da educao.

    Educao e Mito

    A finalidade da educao, assim se poderia pensar, preparar os jovens para a vida, o que significa: na sociedade onde nascem e dentro do universo fsico que rodeia a sociedade. O mtodo de ensinamento muitas vezes consiste no ensino de algum mito basilar. O mito est disponvel em vrias verses. As verses

    23 NT: Filolau de Crotona (sc. V, a.C), para quem o centro do universo seria o fogo, e a Terra apenas um dos astros, a circular ao redor dele, produzindo os dias e as noites.

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    mais avanadas podem ser ensinadas atravs de ritos de iniciao os quais os implantam firmemente na mente. Conhecendo o mito, o adulto pode explicar quase tudo (ou ento ele pode recorrer a especialistas para obter informaes mais detalhadas). Ele o mestre da Natureza e da Sociedade. Ele compreende a ambos e ele sabe como interagir com eles. No entanto, ele no o mestre do mito que orienta a sua compreenso.

    Esse era o domnio mais visado e foi obtido em parte pelos pr-socrticos. Os pr-socrticos, no s tentaram compreender o mundo. Eles tambm tentaram, para se tornar mestres, entender os meios de compreender o mundo. Em vez de contentarem-se com um nico mito, desenvolveram muitos

    outros, e assim diminuram o poder que uma histria bem contada tem sobre as mentes dos homens. Os sofistas expuseram ainda mais mtodos para reduzir os efeitos debilitantes de narrativas interessantes, coerentes, "empiricamente adequadas", etc, etc. As conquistas desses pensadores no foram apreciadas e sequer so entendidas hoje. Ao ensinar um mito, pretendemos aumentar a chance de que ele ser compreendido (ou seja, sem nenhuma surpresa quanto a qualquer caracterstica do mito), acreditado e aceito. Isso no faz nenhum mal quando o mito contrabalanado por outros mitos: mesmo os mais dedicados (isto , totalitrios) instrutores de uma determinada verso do cristianismo no podiam impedir seus alunos de entrar em contato com os budistas, judeus e outras pessoas de m reputao. Isto muito diferente no caso da cincia, ou do racionalismo, no qual o campo quase

    totalmente dominado por crentes. Neste caso, de suma importncia fortalecer a mente dos jovens, e "fortalecer as mentes dos jovens" significa fortalec-las contra toda aceitao fcil de pontos de vista abrangentes. O que ns precisamos aqui uma educao que leve as pessoas a discutir, contra-sugestiva, sem torn-las incapazes de se dedicarem elaborao de qualquer ponto de vista original. Como esse objetivo pode ser alcanado?

    Ele pode ser alcanado mediante a proteo da tremenda imaginao que as crianas possuem e desenvolvendo todo o esprito da contradio que existe nelas. Em geral as crianas

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    so muito mais inteligentes do que os seus professores. Elas sucumbem, e desistem da sua inteligncia porque so intimidadas, ou porque seus professores tiram o melhor delas por meios emocionais. As crianas podem aprender, entender e manter separados dois a trs idiomas diferentes (por "crianas" quero dizer de trs a cinco anos de idade, e no as de oito anos de idade, as quais foram testadas recentemente e no saram to bem, porque? porque elas j estavam comprometidas pelo ensino incompetente em idade precoce). Naturalmente, os idiomas devem ser introduzidos de maneira mais interessante do que normalmente feito. H escritores maravilhosos em todas as lnguas que contam histrias maravilhosas - Vamos comear o nosso ensino de idiomas com eles e no com "der Hund hat

    einen Schwanz"24 e tolices semelhantes. Usando histrias que podem, evidentemente, introduzir coisas "cientficas", como, por exemplo, a origem do mundo e, assim fazer as crianas familiarizarem-se com a cincia tambm. Mas cincia no deve ser dada qualquer posio especial, exceto para sinalizar que existem muitas pessoas que acreditam nela. Posteriormente, as histrias contadas sero completadas com "razes", onde razes significam valores do tipo encontrado na tradio a que pertence histria. E, claro, tambm haver razes contrrias. Ambas as razes e motivos contrrios sero descritas por peritos do campo e assim a gerao mais jovem torna-se- familiarizada com todos os tipos de sermes e todos os tipos de viajantes. Torna-se- familiarizada com eles, torna-se- familiarizada com suas histrias, e cada indivduo poder dispor em sua mente o caminho a percorrer. At agora todos sabem que voc pode

    ganhar muito dinheiro e respeito e talvez at um prmio Nobel por se tornar um cientista, pelo que muitos se tornaro cientistas. Eles se tornaro cientistas sem terem sido tomados pela ideologia da cincia, eles sero cientistas porque fizeram uma escolha livre. Mas no tero perdido muito tempo em assuntos no-cientficos e no estar em causa a sua competncia, uma vez que se tornaro cientistas? Em absoluto!

    24 NT: Trofim Denisovich Lysenko (1898-1976), bilogo, patrocinou sob as bnos de Stlin, entendimento fraudado, mas sustentado ideologicamente, que anulava as conquistas da gentica e que acabou por suspender todas as pesquisas na rea, atrasando por dcadas a cincia na URSS.

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    O progresso da cincia, da boa cincia, depende de idias inovadoras e da liberdade intelectual: a cincia avanou muitas vezes atravs de estranhos (lembre-se que Bohr e Einstein se viam como outsiders). Ser que muitas pessoas no fizeram a escolha errada e acabaram em um beco sem sada? Bem, isso depende do que voc entende por um "beco sem sada". A maioria dos cientistas de hoje so desprovidos de idias, cheios de medo, tencionam produzir algum resultado insignificante que possam acrescentar inundao de papis tolos que agora constituem o "progresso cientfico" em muitas reas. E, alm disso, o que mais importante? Levar a vida escolhida com olhos abertos, ou gastar seu tempo nervoso na tentativa de superar o que algumas pessoas no to inteligentes chamam de

    "becos sem sada"? Ser que o nmero de cientistas no ir diminuir de modo que, no final, no haver ningum para cuidar de nossos preciosos laboratrios? Eu no penso assim. Concedida oportunidade, muitas pessoas podem escolher a cincia, uma cincia que seja executada por agentes livres parece muito mais atraente do que a cincia de hoje, que executada por escravos e escravas das instituies da "razo". E se houver escassez temporria de cientistas, a situao pode sempre ser sanada por vrios tipos de incentivos. Naturalmente, prevejo que os cientistas no iro desempenhar nenhum papel predominante na sociedade. Eles sero mais que compensados pelos magos, ou padres, ou astrlogos. Tal situao insuportvel para muitas pessoas, jovens e velhos, da direita e da esquerda. Quase todos tm a firme convico de que pelo menos algum tipo de verdade foi encontrada, que deve ser

    preservada, e que o mtodo de ensino que defendo e sob a forma de sociedade que defendo ir dilu-la e finalmente faz-la desaparecer.

    Vocs tm essa firme convico, muitos de vocs podem at ter razo. Mas o que vocs tm que considerar que a ausncia de boas razes contrrias devida a um acidente histrico; que isto no reside na natureza das coisas. Desenvolvidos o tipo de sociedade que eu recomendo e os pontos de vista que agora so desprezados (sem conhec-los, com certeza) ir surgir um tal esplendor que vocs tero que trabalhar duro para manter sua prpria posio e, talvez sejam inteiramente incapazes de faz-

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    lo. Vocs no acreditam em mim? Ento olhem para a histria. A astronomia cientfica foi firmemente fundada em Ptolomeu e Aristteles, duas das maiores mentes da histria do Pensamento Ocidental. Quem ultrapassaria seu sistema bem-argumentado, empiricamente adequado e precisamente formulado? Filolau, o pitagrico louco e antediluviano. Como Filolau poderia fazer tal reaparecimento? Porque ele encontrou um hbil defensor: Coprnico. Claro, vocs podem seguir a sua intuio como eu estou seguindo a minha. Mas lembre-se que suas intuies so o resultado de seu treinamento "cientfico", sendo que por cincia eu tambm me refiro cincia de Karl Marx. A minha formao, ou melhor, a minha no-formao a de um jornalista que est interessado em acontecimentos estranhos e

    bizarros. Finalmente, no absolutamente irresponsvel, na situao atual do mundo, com milhes de pessoas passando fome, outros escravizados, oprimidos, na misria absoluta do corpo e da mente, algum tratar de pensamentos de luxo como estes? No a liberdade de escolha um luxo sob tais circunstncias? No a irreverncia e o humor que eu quero ver combinados com a liberdade de escolha, um luxo sob tais circunstncias? No devemos desistir de todas as auto-indulgncias e agir? Irmos juntos e agir? Esta a objeo mais importante que hoje desfechada contra a abordagem recomendada por mim. Ela tem um tremendo apelo, ela tem a atrao da dedicao altrusta. Dedicao altrusta - para qu? Vamos ver!

    Supe-se que devemos desistir de nossas inclinaes egostas e dedicar-nos libertao dos oprimidos. E inclinaes egostas

    so o que? Elas so o nosso desejo de mxima liberdade de pensamento na sociedade na qual agora vivemos, a mxima liberdade, no s de um tipo abstrato, mas expressa em instituies adequadas e em mtodos de ensino-aprendizagem. Este desejo concreto de liberdade intelectual e fsica em nosso meio, deve ser posta de lado, por enquanto. Isso pressupe, primeiro, que no precisamos dessa liberdade para a nossa tarefa. Assume-se que podemos realizar nossa tarefa com mente bem fechada para algumas alternativas. Assume-se que a correta forma libertadora j foi encontrada e que tudo o que preciso oper-la. Lamento, no posso aceitar a segurana da

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    autodoutrinao em tais assuntos extremamente importantes. Quer isso dizer que, absolutamente, no podemos agir? No assim. Mas significa que, ao agir, temos de tentar realizar o mximo de liberdade que recomendei tanto que nossas aes possam ser corrigidas luz das idias que capturamos enquanto incrementamos a nossa liberdade. Isto vai nos atrasar, sem dvida, mas devemos seguir em frente simplesmente porque algumas pessoas nos dizem que eles encontraram uma explicao para toda a misria e uma excelente maneira de sair dela? Tambm queremos libertar as pessoas, mas no para faz-las sucumbir a um novo tipo de escravido, mas para faz-las perceber os seus prprios desejos, por mais diferentes que esses desejos possam ser dos nossos. Libertadores hipcritas e

    intolerantes no podem agir assim. Como regra logo vo impor uma escravido que pior, porque mais sistemtica que a escravido que removeram. E no que diz respeito ao humor e irreverncia, a resposta deveria ser bvia. Por que algum iria querer liberar a algum mais? Certamente no por causa de alguma vantagem abstrata de liberdade, mas porque a liberdade o melhor caminho para o livre desenvolvimento e, portanto, para a felicidade. Queremos libertar as pessoas para que possam sorrir. Seremos capazes de fazer isso ns mesmos se nos esquecemos de como sorrir e ficamos carrancudos com aqueles que ainda se lembram disso? No teremos espalhado outra doena, comparvel que se pretende remover, a doena auto-puritana da justia? No me oponho a que a dedicao e o humor no andam juntos - Scrates um excelente exemplo do contrrio. As tarefas mais difceis necessitam do mais claro

    controle, ou, ento, a concluso no ser a conduo para a liberdade mas para uma tirania muito pior do que a substituda.

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    Criatividade, Autoconfiana e Multidisciplinaridade

    Ainda nos parece estranho a capacidade de alguns anarquistas de se adaptarem to bem a um dos maiores sistema de represso que a humanidade j criou: a escola. Talvez uma das poucas frentes que anarquistas poderiam ocupar dentro de uma universidade seria na construo da multidisciplinaridade,

    que por fim geraria um conflito de grandes propores com a prpria instituio de ensino; ao invs disso os vemos em lutas por reformas ou melhorias dos prprios crceres em que foram criados. No bastasse o tempo e energia gastos demandando reformas e melhorias, alguns ainda lutam pela sua expanso.

    No negamos que a escola seja a porta de entrada para o mercado de trabalho, o problema enxerg-la como algo que seja muito mais do que isso. Tambm no vemos problemas na insero de anarquistas na luta por reformas e melhorias no ensino, contanto que saibam as conseqncias de mdio e longo prazo do que esto fazendo e entendam que os muros que esto ajudando a construir devero ser derrubados num futuro prximo caso realmente almejem construir uma sociedade dentro da perspectiva anarquista. Porm, jamais vimos tal reflexo acontecer, e a escola segue sendo a grande vaca sagrada da sociedade ocidental. Feyerabend diz que tanto a esquerda quanto a direita defendem com unhas e dentes a toda poderosa cincia, acreditamos que o mesmo pode ser dito quando o assunto a escola.

    Alguns podem questionar: E quanto pedagogia libertria?. Anarquistas em geral limitam a pedagogia libertria ao curso de graduao em pedagogia e a projetos de escolas libertrias; dificilmente existe uma integrao decente das reflexes trazidas pela pedagogia libertria com a militncia poltica. Mesmo quando a encontramos em tal esfera, sempre apresentada de

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    maneira isolada para fins especficos. Dificilmente ganha propores maiores ao ponto de influenciar a construo de aspectos organizacionais e estratgicos. A prpria especializao do militante anarquista dentro da universidade j impede de ter uma percepo mais ampla dos passos que toma dentro da militncia poltica.

    Para ns existe uma grande possibilidade de dilogo entre as idias de Paul Feyerabend e a pedagogia libertria. A sua proposta de inverter a lgica entre verdade e liberdade, trazendo a segunda para o primeiro plano para que a primeira seja constantemente mudada, algo muito prximo da perspectiva da pedagogia libertria. Se tomarmos como exemplo as escolas libertrias e suas prticas, notaremos que a liberdade vem

    sempre em primeiro plano e as verdades sero sempre moldadas no processo de aprendizado; por isso a maioria das escolas que seguem tal princpio no visam ter professores, mas sim facilitadores. Por no existir uma verdade pr-estabelecida, tais facilitadores estaro sempre em processo de aprendizado juntamente com as crianas, cada projeto decidido pelas crianas dificilmente ter um molde pronto e isso far com que as crianas e os adultos facilitadores sempre enfrentem novos desafios e consequentemente novas maneiras de aprender. s perguntar para qualquer adulto que j teve experincias com este tipo de escola o quanto aprendeu com as crianas e se em algum momento se sentiu em situao superior a elas. Portanto, a proposta apresentada por Feyerabend pode ser encontrada em funcionamento em escolas libertrias, e a pedagogia libertria pode se utilizar da Filosofia da Cincia assim como o mesmo

    pode funcionar no sentido inverso.

    Talvez o maior desafio no esteja em trazer a pedagogia libertria e o anarquismo epistemolgico para o universo das crianas, mas sim para o universo dos adultos j escolarizados. A proposta de uma escola libertria simples: formar adultos confiantes de si mesmos, de forma que consigam buscar o que querem dentro de uma diversidade de situaes. A proposta de uma escola comum completamente o inverso disso: formar adultos sem autoconfiana, que tenham medo de errar e que sigam as possibilidades j dadas. Se a maioria dos anarquistas so adultos devidamente educados em instituies comuns, no

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    surpresa enfrentarem dificuldades ao idealizarem uma sociedade diferente. Esta problemtica melhor explorada por Ivan Illich, nos livros Sociedade Desescolarizada e A Expropriao da Sade, ao apresentar uma anlise aprofundada de como a escola no s forma indivduos inseguros e frgeis como tambm prepara todos para uma dependncia de uma gama completa de instituies abrindo mo de sua prpria autonomia.

    Mas se as idias de Paul Feyerabend e Ivan Illich so to fortes, por que nunca se destacaram no universo poltico?

    Boa parte dos cursos universitrios possui na grade curricular a matria Filosofia da Cincia, mas quando as leituras chegam no anarquismo epistemolgico de Feyerabend, o

    desconforto to grande e as crticas to certeiras, que o prprio professor da matria tem pouco a dizer, e a esquiva seguida de fuga inevitvel frente a crticas que por fim resultam no s no questionamento da prpria instituio mas tambm em sua ridicularizao. O mesmo acontece com Illich dentro da pedagogia libertria, que acaba sendo sempre direcionada para crianas (projetos de escolas libertrias), onde as crticas sobre a escola tradicional so muito bem vindas, mas a sua anlise poltica de todas outras instituies que mantm a sociedade atual parece ser demais para uma digesto tranqila de um indivduo formado em pedagogia ou que simplesmente quer uma educao diferente para o seu filho.25

    Chegamos a concluso que a prpria conformidade com o processo de especializao faz com que as idias radicais aqui

    expostas no saiam do campo terico para influenciar coletivos e grupos anarquistas na prtica. Assim como alunos escolhem sua especializao, coletivos anarquistas fazem o mesmo sem pensar duas vezes, e se apegaro a suas verdades com unhas e dentes e sua liberdade ser sempre moldada pela verdade

    25 No nos entendam mal, achamos as experincias de escolas libertrias riqussimas, tanto que as utilizamos para fundamentar as perspectivas de Feyerabend, PORM sero sempre insuficientes enquanto no fizerem parte de uma estratgia poltica maior. Temos o intuito de fazer com que a pedagogia libertria seja entendida como uma ferramenta poltica muito maior do que apenas projetos de escolas diferenciadas.

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    escolhida. No precisa de muito para entender que tal dinmica no gera uma gama muito ampla de conhecimento e ser sempre incapaz de construir algo distinto do sistema em que vivemos hoje, o processo criativo fica limitado s verdades j estabelecidas. Arriscamos dizer que a tentativa de construo de uma sociedade anarquista utilizando como base as estruturas epistemolgicas de uma sociedade cuja caracterstica principal a cooptao ou eliminao do diferente, um delrio.

    A lgica da especializao criada a partir do pressuposto de que a soma das partes faro com que o todo seja cada vez mais profundamente entendido, esta a lgica do desenvolvimento cientifico predominante. Tal premissa deixar de fazer sentido nos primeiros cinco minutos de uma conversa entre dois

    especialistas de duas reas diferentes. A especializao agrada muito o sistema, impossibilita no s o entendimento do todo, mas tambm o dilogo entre indivduos. Especialistas de uma determinada rea se sentem muito a vontade para conversar com especialistas da mesma rea, mas sentem dificuldade ao dialogarem com um outro de formao diferente e encontraro um muro gigantesco a sua frente ao tentar dialogar com um individuo sem qualquer especializao.

    Por mais que militantes anarquistas, devidamente formados, tentem uma interao direta com o povo ou integrantes de movimentos sociais, sempre existir uma barreira de dilogo e uma vontade por parte do militante que tal parcela da populao seja devidamente escolarizada at chegar ao mesmo patamar de conhecimentos que eles mesmos conseguiram estudando numa

    universidade. Como j dissemos anteriormente, no h problema em pensar o ensino formal como um acesso ao mercado de trabalho, porm ver as instituies de ensino como fonte de conhecimento para a construo da autonomia algo ex