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Trabalhadoras Análise da Feminização das Profissões e Ocupações Silvia Cristina Yannoulas (Coordenadora)

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  • TrabalhadorasAnlise da Feminizao das Pro sses e Ocupaes

    Silvia Cristina Yannoulas(Coordenadora)

  • TrabalhadorasAnlise da Feminizao das Profisses e Ocupaes

  • Silvia Cristina Yannoulas(Organizadora)

    Lourdes Maria Bandeira | Marcia C. Barbosa e Betina S. Limangela Maria Freire de Lima e Souza e Mrcia Barbosa de Menezes

    Maria Rosa Lombardi | Talita Santos de OliveiraCludia Pereira Vianna | Marly de Jesus S Dias

    Marlene Teixeira e Maria D. Stphane R. Cerqueira | Nora GorenMariana Mazzini Marcondes | Anabelle Carrilho

    Braslia, 2013

    Anlise da Feminizao das Profisses e Ocupaes

    Trabalhadoras

    Realizaco:

    Trabalho Educao DiscriminaoUniversidade de Braslia

    Apoio:

  • Copyright: Silvia Cristina Yannoulas, 2013

    As ideias contidas e as opinies emitidas neste livro so de responsabilidade dos autores. permitida a reproduo total ou parcial dos artigos desde que citada a fonte.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1999, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Conselho EditorialAlmira Rodrigues, Cleia Schiavo Weyrauch, Evilsio Salvador,

    Francisco Incio de Almeida, Ivan Alves Filho, Ivnio Barros Nunes.

    Reviso e Edio FinalTereza Vitale

    Projeto GrficoSamuel Tabosa de Castro

    Figura da capaiStockphoto LP

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Y24t Trabalhadoras Anlise da Feminizao das Profisses e Ocupaes / Yannoulas, Silvia Cristina (Coord.) Braslia : Editorial Abar, 2013.

    304 p. 15,5 x 22,5 cm.

    ISBN: 978-85-89906-17-3

    1. Cincias sociais. Diviso sexual do trabalho; Relaes de Gnero (Feminizao). 2. Sociologia; Sociabilidade; Profisses; Ocupaes; Sociologia do trabalho. I. Universidade de Braslia. Grupo de Pesquisa TEDis, CNPq Edital Universal. II. Silvia Cristina Yannoulas.

    CDU 300301

    305.4

    Quadra 201, Lote 4, Bloco G-801guas Claras CEP 71937-540 Braslia-DF

    Fone: (61) 3879-6881 / (61) [email protected] / [email protected]

  • Sumrio

    PREFCIO .................................................................................................................................... 7Lourdes Maria Bandeira

    APRESENTAO ......................................................................................................................21Silvia Cristina Yannoulas

    INTRODUO Sobre o que ns, mulheres, fazemos ........................................................31Silvia Cristina Yannoulas

    PRIMERA PARTE ExPlORANDO TERRITRIOS MUlhERES EM TRAbAlhOS MASCUlINOS

    MULHERES NA FSICA DO BRASIL: POR QUE TO POUCAS? E POR QUE TO DEVAGAR? ..................................................................................................69Marcia C. Barbosa e Betina S. Lima

    GNERO E TRABALHO NO CAMPO DA MATEMTICA. BREVE HISTRIA E NOTAS SOBRE UM DIAGNSTICO PRELIMINAR .....................87ngela Maria Freire de Lima e Souza e Mrcia Barbosa de Menezes

    FORMAO E DOCNCIA EM ENGENHARIA, NA TICA DO GNERO: UM BALANO DE ESTUDOS RECENTES E DOS SENTIDOS DA FEMINIZAO .... 111Maria Rosa Lombardi

    A INSERO DAS MULHERES NA CONSTRUO: UM RETRATO MIDITICO SOBRE A EXPRESSO E REPRODUO DA FEMINILIDADE NO SETOR ............... 137Talita Santos de Oliveira

  • SEGUNDA PARTE REvISITANDO TERRITRIOS MUlhERES EM TRAbAlhOS FEMININOS

    A FEMINIZAO DO MAGISTRIO NA EDUCAO BSICA E OS DESAFIOS PARA A PRTICA E A IDENTIDADE COLETIVA DOCENTE ...................................... 159Cludia Pereira Vianna

    A FEMINIZAO DO TRABALHO NO CONTEXTO DA SADE PBLICA: REFLEXOS DA REESTRUTURAO PRODUTIVA NO SERVIO SOCIAL E NA MEDICINA ..................................................................................................................... 181Marly de Jesus S Dias

    O PROGRAMA BOLSA FAMLIA/VIDA MELHOR E AS MULHERES TRANSFERNCIA DE RENDA E EQUIDADE DE GNERO NO DISTRITO FEDERAL ...................................................................................................... 207Marlene Teixeira e Maria D. Stphane R. Cerqueira

    REPENSANDO EL TRABAJO DE LAS MUJERES EN LOS PROGRAMAS DE TRANSFERENCIA CONDICIONADA DE INGRESOS ................................................ 231Nora Goren

    O CUIDADO NA PERSPECTIVA DA DIVISO SEXUAL DO TRABALHO: CONTRIBUIES PARA OS ESTUDOS SOBRE A FEMINIZAO DO MUNDO DO TRABALHO ............................................................................................. 251Mariana Mazzini Marcondes

    CONClUSO A FEMINIZAO NA PRODUO CIENTFICA RECENTE: UM CONCEITO DIFUSO DE COMPREENSO NECESSRIA ...................................... 281Anabelle Carrilho

    SObRE AS AUTORAS .......................................................................................................... 299

  • 7PREFCIO

    Lourdes M. Bandeira1

    com satisfao que apresento o livro Trabalhadoras: Anlise da feminizao das profisses e ocupaes, organizado por Silvia Cristina Yannoulas que resulta da realizao do projeto de pesquisa: Trabalho e relaes de gnero: anlise da feminizao das profisses e ocupaes. Trata-se de uma pesquisa que apresenta uma abordagem bastante original ao reunir um conjunto de pesquisadoras feministas articuladas nas reas dos estudos de gnero e do trabalho, com temticas e questes contemporneas, calcadas teoricamente em recortes originais. Abordam um tema que, apesar de sua persistncia histrica, ainda carece de estudos empricos mais profundos, especialmente, no Brasil e na Amrica do Sul. A matriz de referncia das anlises realizadas centrou-se nas dissimetrias que sustentam a diviso sexual do trabalho e comparte do postulado, por um lado, de que o sexo biolgico no define o que um homem e uma mulher, uma vez que so as normas socioculturais que os(as) constroem. Nessa direo inegvel que o trabalho tem dois sexos2 embora certas atividades persistam em neg-lo, alm de demandarem uma presena feminina mais intensa. Por outro, h que se registrar o foco sobre as modalidades e as manifestaes de mudanas que vm ocorrendo no mundo do trabalho, onde emergem formas novas e peculiares em relao presena feminina de inovao e avano.

    O objetivo central desta publicao o de enfatizar e identificar as mudanas e permanncias ocorridas no campo das relaes de trabalho, no qual se evidencia cada vez mais o fenmeno da feminizao das ocupaes e das profisses, com a presena de mulheres em novos espaos ocupacionais e novas profisses, embora no se possa esquecer a manuteno de percursos

    1 Professora Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Braslia.

    2 A obra referente no campo de visibilidade do sexo do trabalho de Elisabeth Sousa Lobo: O trabalho tem dois sexos (1994).

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    sexuados associados, historicamente, aos usos do tempo e condio de naturalizao das habilidades ou capacidades femininas. A reflexo foi norteada pela anlise dos processos e das dinmicas de feminizao demarcadas por mudanas (ou no) na diviso sexual do trabalho, para a qual mais de uma dezena de pesquisadoras, reconhecidas neste campo de estudos, debruaram seus tempos para refletir sobre estas questes e qui respond-las. Como compreender as causas e razes dos movimentos que indicam a feminizao das ocupaes e das profisses? Est havendo uma tomada de conscincia das diferenas de condies de trabalho e de vida para mulheres e para homens? Em outras palavras, para alm das diferenas salariais e do tempo de trabalho, as pesquisadoras indagam sobre a qualidade das relaes entre as condies de trabalho e gnero no caminho da feminizao? Em que medida, considerar a feminizao do trabalho, no significa, simplesmente a incluso de mais mulheres nas ocupaes, mas igualmente verificar o engajamento e o(s) lugar(es) ocupado pelo(s) homen(s)?

    O livro apresenta duas partes: 1a Explorando Territrios Mulheres em trabalhos masculinos, compreendendo quatro artigos. A 2a Revisitando Territrios Mulheres em trabalhos femininos apresenta cinco artigos.

    A publicao se inicia com uma densa introduo de Silvia Cristina Yannoulas: Sobre o que ns, mulheres, fazemos. A autora realiza um recorrido histrico e bibliogrfico sobre a presena feminina no mundo do trabalho, a partir da virada do sculo XX para o XXI. Recupera os diversos momentos de mudana ocorridos na estrutura do mercado de trabalho, destacando as caractersticas e especificidades de insero da mo de obra feminina, da relao entre trabalho e famlia, isto , da participao diferenciada das mulheres na esfera da produo e na reproduo social. A anlise destaca por um lado, os polos opostos de insero das mulheres ocupaes de m qualidade e boas ocupaes; por outro, as ambiguidades presentes na transformao do ingresso destas no mercado de trabalho. Paradoxalmente, a maior presena feminina desencadeia mudanas, mas no transformaes expressivas na situao das mulheres no mundo do trabalho. Ainda, atualiza as mudanas de monta ocorridas na legislao, sobretudo, com a Constituio de 1988. Cabe destacar ainda, os dois postulados propostos pela autora para analisar a feminizao das profisses: seu significado quantitativo feminilizao , referindo-se ao aumento das mulheres na composio da mo de obra; a dimenso qualitativa feminizao , que compreenderia as transformaes ocorridas

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    no contexto de uma ocupao ou profisso, havendo com certeza uma articulao entre essas duas dimenses.

    Conclui constatando que o fenmeno da feminizao tem uma dupla dinmica: se por um lado, as mulheres transgridem, ao ingressarem em campos ou territrios profissionais, cujo ethos masculinista ainda predomina; por outro, h um nmero significativo de mulheres que permanece no mesmo campo de atividades desde as primeiras dcadas do sculo XX: por exemplo, as mulheres empregadas no setor txtil, servidoras pblicas nos setores administrativos, trabalhadoras na sade, empregadas do comrcio e da indstria alimentar, professoras primrias e secundrias, empregadas domsticas, entre outras. Todos estes empregos e profisses permanecem e continuam a empregar a maioria de mulheres,3 evidenciando, tambm, que as categorias de idade, raa e de sexo no se apresentam como simples variveis, mas esto relacionadas com as condies de precarizao do trabalho destas que tambm se articulam com os sistemas de hierarquia e de poder. Portanto, ainda a norma masculina que permanece ditando as regras de funcionamento do mundo do trabalho, obviamente, no sem conflitos e tenses.

    Marcia B. Barbosa e Betina S. Lima, autoras do artigo: Mulheres na Fsica do Brasil: Por que to poucas? E por que to devagar? analisam a presena feminina que ingressa nos cursos universitrios, evidenciado que a maior presena de mulheres no corresponde a um processo de equidade relativo a participao de jovens mulheres na rea das cincias exatas. Dito de outro modo, as mulheres, embora maioria, nos cursos superiores no se dirigem s carreiras cientficas. H uma desproporo entre as ingressantes e a escolha das carreiras nas reas das cincias exatas ou da natureza. As autoras perguntam a partir de um olhar histrico, eivado por valores culturais masculinistas, por que h to poucas cientistas e por que a vagarosidade no avano das mulheres nessas carreiras?

    Recuperando a histria da educao das mulheres no Brasil, a partir dos sculos XVI e XVII, destacam que em 1827 foi regulamentado o ensino feminino no Brasil, podendo as mulheres ingressar na escola, embora as classes fossem separadas por sexo. Esse poderia ser apenas um detalhe, caso no fosse o diferencial posto na grade curricular: aos meninos o ensimo de geometria e da matemtica; s meninas, prendas domsticas,

    3 A propsito consultar os Censos do IBGE, com variedades diversas, estas ocupaes esto presentes ou emergem no mundo do trabalho a partir de 1920 a 2010.

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    regras de etiqueta e noes de moral. A emergncia de reivindicaes pelas feministas j no final do sculo XIX, possibilitou que em 1879, as jovens mulheres tivessem acesso ao Ensino Superior. Muitos foram os obstculos narrados pelas autoras que impossibilitavam estas de desertarem do lar para seguirem uma carreira cientfica. O ingresso feminino foi tardio ao Ensino Superior e a condio de institucionalizao do campo cientfico feito sob uma perspectiva androcntrica, estabelecendo a diviso entre as profisses e ocupaes que deveriam ser masculinas e femininas, isto , estabeleceu-se tambm a repartio entre os espaos pblico-masculinos e privado-femininos. Esse processo foi reforado/reafirmado pelo processo de socializao domstica percebido como extenso de uma lgica dualista que reforava os valores familiares para as mulheres e os valores pblicos para os homens. A socializao diferenciada produziu alm de uma formao sexista, que deveria ser incutida aos futuros homens e mulheres, exacerbou hierarquias e processos de dominao/subordinao.

    Em sntese, esse padro lgico androcntrico da esfera privada-familiar se desloca para esferas pblicas de ensino e de pesquisa no Brasil. Nessa direo as autoras exploram a poltica de fomento na formao de pesquisadores(as) desenvolvida pelo CNPq, no Brasil, tendo como referente emprico os(as) bolsistas da rea de Fsica e de Medicina. A primeira, predominantemente frequentada por pesquisadores do sexo masculino; a segunda, cada vez mais evidencia o ingresso de mulheres. As autoras analisam os aspectos histricos e culturais de tal configurao, concluindo que se no houver mudanas culturais radicais, provavelmente a realidade no mudar com facilidade.

    Angela Maria Freire de Lima e Souza e Mrcia Barbosa de Menezes escreveram o artigo: Gnero e trabalho no campo da Matemtica breve histria e notas sobre um diagnstico preliminar. As autoras discutem o contexto histrico que articula as marcas das relaes de gnero e cincia tomando como referente anlitico-emprico o campo da Matemtica no que tange a prtica da docncia e da pesquisa. De imediato, evidenciam ainda que essa rea disciplinar se constitui, predominantemente, pela ocupao do sexo masculino. Em outras palavras, ... o fato que a presena insipiente das mulheres ainda no alterou as prticas e a inspirao epistemolgica caracterstica do pensamento matemtico afirmam as autoras. Historicamente existiu um pioneirismo no ensino da Matemtica no Brasil, mais especialmente na Bahia, uma vez que j em 1572 foi fundado o 1o Curso de Artes que introduzia o ensino da Matemtica, seguido em

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    1757 pela criao de uma Faculdade de Matemtica. Vrios outros estados brasileiros implementaram o ensino e cursos de Matemtica com vistas a preparao das artes militares as Academias de Artilharia, Fortificao e Desenho, assim como para a formao dos futuros professores da Academia Real Militar Brasileira, dos Guardas da Marinha, entre outras.

    Observa-se que o ensino da Matemtica, desde seu incio esteve atrelado a um ethos masculinista, isto , a ausncia da presena feminina. notvel a presena masculina na aprendizagem da Matemtica que servia expanso e aplicao prtica nas artes militares, lugar de completa ausncia de mulheres. Uma larga trajetria desse engajamento masculino associado a experincia profissional, de alguma maneira informa o comprometimento desse com a Matemtica e a ausncia do gnero feminino, destitudo de incorpor-la na sua formao. Prova disso destacada pelas autoras ao informar que no site da Associao Brasileira de Matemtica no h registro de nenhuma mulher entre os associados honorrios, o que refora ainda mais o esteretipo ... de que h certa incompatibilidade entre as mulheres e os nmeros .... Outra questo analisada informa sobre a predominncia de mais mulheres no campo da docncia do que no campo da pesquisa, o que reafirma, novamente, a manuteno dos espaos masculinos. Ento a pergunta se impe seria suficiente que o ingresso feminino no campo da Matemtica/das cincias exatas teria fora suficiente para assegurar mudanas, em relao presena de gnero mais equitativa?

    Convm conferir o que pensam as autoras a propsito. Por fim, reafirmo a excelncia do texto que instiga a reflexo sobre as condies e possibilidades de desestabilizar esse campo disciplinar hegemonicamente masculino, atualmente vigente no Brasil.

    Na sequncia, Maria Rosa Lombardi apresenta o artigo: Formao e docncia em Engenharia na tica do gnero: um balano dos estudos recentes e dos sentidos da feminizao. De imediato constata que ainda muito pouca a presena discente de jovens mulheres nos cursos de Engenharia no Brasil, sobretudo, se comparada a outras profisses, cuja presena feminina j est consolidada como o caso de Medicina e Direito. Pesquisas identificadas pela autora informam que, na condio de docente, as mulheres representam em torno de 10% dos quadros de discentes. Lombardi busca analisar quais tm sido as causas ou as razes que dificultam o processo de feminizao da Engenharia no Brasil. Nessa direo examina, a partir de uma pesquisa sobre a produo acadmica, o estado da arte, para a ltima dcada, sobre as razes que mobilizam e que (des)mobilizam o ingresso de jovens estudantes

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    mulheres nos cursos de Engenharia. Destaca, em especial, a produo de dissertaes e de teses sobre tal ausncia, nas quais convergem explicaes, a saber: os valores desiguais nos (...) processos de socializao de meninos e de meninas na escola e na famlia, que incentivam diferentes escolhas profissionais as prticas pedaggicas adotadas nos diferentes cursos de Engenharia (...) as diferenas que se estabelecem entre alunos(as) e professores(as) que tendem a reproduzir desigualdades de gnero ... entre outros elementos. D nfase ao olhar das discentes, assim como de docentes, que de maneira prpria, acabam por enfatizar os mecanismos de reproduo das desigualdades entre os gneros e das escassas estratgias femininas de acesso s reas de cincia e tecnologia.

    Portanto, a expectativa de feminizao do campo da cincia e tecnologia, com nfase na Engenharia, ainda, estaria condicionada a mudanas no mbito dos valores culturais, na reestruturao da educao formal e familiar, assim como no mbito das polticas pblicas, uma vez que as profisses no tm sexo, e, portanto, no pertencem ao domnio de ningum. Ao contrrio, os dados revelam que as mulheres constituem a maior parte dos estudantes de nvel superior no pas, e que a universidade deixou de ser um espao predominantemente masculino. Diante da segmentao sexual das profisses, a Engenharia caracterizou-se como profisso masculina at as ltimas duas dcadas. Porm, com as mudanas mais intensas e atuais, a perspectiva da efetiva entrada feminina nos cursos de Engenharia, historicamente considerados masculinos, influencia a construo de outros novos papis sociais e abre novas perspectivas de promoo de igualdade entre a condio de gnero. Portanto, a associao entre a insero feminina nos cursos de Engenharia como futuras docentes e pesquisadoras dever ir ao encontro dos processos de modernizao e de mudanas que vm ocorrendo na sociedade brasileira, vez que devem estruturar novas relaes mais equitativas entre os gneros.

    A 1 parte conclui-se com o artigo de Talita Santos de Oliveira: A insero das mulheres na construo civil: um retrato miditico sobre a expresso e reproduo da feminilidade no setor. A autora afirma que as mulheres j consolidaram seu lugar no mundo do trabalho, embora ainda no tenham vencido a segregao sexual em certas atividades e ocupaes. Exemplo dessa segregao se verifica nas ocupaes da construo civil, onde no representam mais de 3% dos trabalhadores do setor. Alm de serem poucas, esto localizadas nas atividades de menor prestgio, tais como auxiliares de servios gerais, serventes e limpeza. Predomina a

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    relao entre a cultura e a lgica empresarial associada tradicional diviso sexual do trabalho. Nessa direo a autora prope uma interessante anlise destacando (...) a maneira que os meios de difuso se reportam ao trabalho executado por mulheres no setor e, em ltima instncia, contribuem para a disseminao dos esteretipos em torno da mo de obra feminina.

    Utilizou como material de anlise as reportagens e matrias jornalsticas produzidas entre 2007 e fevereiro de 2013, por veculos nacionais reconhecidos. A autora destaca que o perodo escolhido se deveu ao lanamento do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC) pelo governo federal.

    A discusso centra-se no eixo terico da diviso sexual do trabalho, isto , de que h uma densa segregao sexual das ocupaes, as quais tendem a reproduzir esteretipos e desigualdades entre homens e mulheres, como elemento importante da informao. Embora a diviso sexual do trabalho seja plstica, isto , sua dinmica se altera isso no assegura que a feminizao do mercado de trabalho no possa vir a ocorrer como consequncia dos processos de precarizao, assim como da vulnerabilidade das condies de trabalho, sendo estes mais direcionados s mulheres. Dito de outra maneira, a insero de mulheres no mercado de trabalho, como tem sido no caso da construo civil, vem ocorrendo sem mudanas de natureza qualitativa; ao contrrio, as habilidades consideradas naturais ou inatas so retradicionalizadas, assim como os esteretipos so incorporados pela lgica do capital e dos empresrios, e se desloca para reproduzir-se nos diferentes contextos miditicos.

    O texto apresenta reflexes inovadoras a partir das matrias analisadas, as quais foram organizadas em trs grandes eixos temticos, a saber: 1. Programas ou cursos de qualificao profissional para mulheres na rea da construo civil; 2. Preconceito sofrido pelas mulheres numa rea de insero predominantemente masculina; e, 3. O crescimento do setor da construo civil. Estes so desagregados em outros subtemas e analisados de maneira muito instigante. Sem dvida que os veculos miditicos, respondem pela nfase na tradicional diviso sexual do trabalho sendo a rea da construo civil (...) ainda rigidamente monopolizada pela mo de obra masculina, onde as ocupaes so sexualmente demarcadas. De certa maneira, sem dvida, a mdia acaba por reforar certas habilidades e caractersticas femininas como essencializadoras de sua condio de existir.

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    A 2 parte do livro aberta com o texto de Claudia Pereira Vianna: A feminizao do magistrio na Educao Bsica e os desafios para a prtica e a identidade coletiva docente. A autora faz uma reflexo sobre a feminizao do magistrio no Ensino Fundamental com o objetivo de compreender a organizao sindical dos docentes no cenrio da crise dos anos 1990. Na breve sntese sobre a construo do conceito de gnero a autora constata que a rea de educao foi uma das mais resistentes a sua incorporao neste campo disciplinar. Apesar do contraste de que o sistema educacional tinha [tem ainda] uma grande presena feminina e esteve subsumido utilizao do masculino genrico como referncia s professoras. Adotando uma anlise de relaes de gnero, a autora busca compreender como o processo de feminizao do magistrio est presente nas aes coletivas organizadas ou no por mulheres. Esta feminizao um fenmeno internacional e no Brasil foi um processo que se iniciou no sculo XIX, como um campo de atuao que se abriu para mulheres brancas escolarizadas e, nos dias atuais embora ainda permanea como um lugar de mulher, o magistrio mostra tambm uma presena cada vez mais significativa de homens, sobretudo, nos nveis e modalidades de ensino que oferecem maior remunerao e usufruem de maior prestgio, isto , o ensino de nvel superior.

    Como seu foco analtico foi o Ensino Fundamental a autora privilegia sua avaliao a partir do sistema educacional paulista para desconstruir os significados femininos que ligam o cuidado e o afeto s mulheres e estabelecem a relao entre essas caractersticas e o magistrio. E conclui afirmando que o exerccio da docncia est marcado pelas polarizaes contidas nas vises hegemnicas de masculinidade e que as relaes entre professoras e professores no magistrio indicam uma tenso permanente. Assim, sugere que a reflexo sobre identidade docente integrada perspectiva de gnero, pode levar em conta a mediao entre esses diferentes registros e tenses que caracterizam a feminizao do magistrio.

    Marly de Jesus S Dias, com o artigo: A feminizao do trabalho no contexto da sade pblica: reflexos da reestruturao produtiva no Servio Social e na Medicina, discute as transformaes do processo de desenvolvimento que na feminizao do trabalho e suas consequncias acentuou a diviso sexual do trabalho na sade pblica da cidade de So Lus, capital do Maranho. A avaliao deste processo de feminizao ocorreu tanto pelo aumento da participao das mulheres na categoria profissional como em decorrncia das mudanas suscitadas pelo movimento feminista no papel social da mulher e elegeu as profisses de Servio Social

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    e Medicina, a partir da atuao dessas profisses no Hospital Universitrio da Universidade Federal do Maranho, na dcada de 1997/2007. Conclui que a insero das mulheres foi realizada numa trajetria conflituosa de rupturas e continuidades e que a feminizao observada na Sade Pblica, em particular no Hospital Universitrio analisado no foi um fenmeno natural, mas articulado aos processos mais amplos mediados pela lgica do capital que no provocou rupturas definitivas nas relaes sociais existentes nem com as desigualdades presentes na diviso sexual do trabalho.

    Segue o artigo das autoras Marlene Teixeira e Maria D. Stphanie R. Cerqueira: O Programa Bolsa Famlia/Vida melhor e as mulheres transferncia de renda e equidade de gnero no Distrito Federal. Este analisa as repercusses do Programa Bolsa Famlia na vida cotidiana das mulheres residentes no Distrito Federal. Este Programa uma das iniciativas do governo brasileiro no enfrentamento da pobreza e o governo do Distrito Federal denominou-o de Programa Bolsa Famlia/Vida Melhor. Este est presente, em todas as 29 regies administrativas do DF. Deste conjunto foram escolhidas duas regies para a realizao da pesquisa. Assim, as informaes foram coletadas apenas no Gama e em Taguatinga, mediante entrevistas semiestruturadas com mulheres beneficirias residentes nestas localidades e com os(as) tcnicos(as) vinculados(as) ao Programa, com o objetivo de conhecer o funcionamento do PBF/VM e suas repercusses na vida das mulheres e de suas famlias.

    O artigo mostra que h um descompasso no DF na gesto do PBF e na pouca repercusso que este tem na vida feminina e aponta como talvez a razo mais importante tenha sido a implantao do embrio deste programa no DF, ento intitulado Bolsa Escola, na primeira gesto petista do governador Cristovam Buarque. Os governos subsequentes, adversrios, desmontaram o programa e optaram por implementar uma poltica social assistencialista orientada para construo de vnculos de fidelidade poltica-partidria e currais eleitorais e no pela afirmao de direitos e de cidadania que marca a poltica social atual. No formato atual o PBF financiado e parte da gesto da responsabilidade do governo federal, mas os municpios tm protagonismo na concretizao desta proposta. No Distrito Federal, o PBF componente do Programa Vida Melhor (PVM) institudo desde 2009; semelhante ao nacional, este programa tambm prioriza as mulheres na concesso do benefcio, embora tenha algumas diferenas, tais como: maior valor monetrio, participao de membros da famlia maiores de 18 anos em atividades voltadas para a qualificao e requalificao profissional,

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    pr-natal, erradicao do analfabetismo, aleitamento materno e inscrio dos desempregados no Sistema Nacional de Emprego (Sine).

    Como as aes que integram este programa se materializam e repercutem na vida das mulheres residentes em Taguatinga e Gama? As entrevistas com os profissionais que atuam nos Creas e Cras evidenciaram o grau de desconhecimento e/ou desinteresse da equipe acerca da condio das beneficirias atendidas pelo PBF/PVM. Os servios de educao e sade melhores avaliados pelas beneficirias, no o foram por causa de sua vinculao com Vida Melhor, mas sim pelo treinamento; este tambm no garante que as mulheres transformem estes conhecimentos em fonte de renda. Persiste a fratura entre assistncia e trabalho e a incapacidade das iniciativas de romperem com o crculo assistencial. Com relao s questes de gnero observou-se um enaltecimento da instituio famlia e da diluio da responsabilidade coletiva da proteo social. As funes de me e dona de casa ocupam integralmente a rotina diria das entrevistadas e as longas horas despendidas com a realizao das tarefas domsticas e dos cuidados no deixam tempo para mais nada. Ainda que o acesso renda represente um ganho inconteste o programa no produziu alteraes/mudanas estruturais em suas vidas.

    Nora Goren escreveu: Repensando el trabajo de las mujeres em los programas de transferencia condicionada de ingressos. O artigo prope estabelecer um dilogo entre os programas de transferncia condicionada de rendimentos, luz da diviso sexual do trabalho. Tendo como pano de fundo que esta relao nas sociedades latino-americanas afirma que o privado e o reprodutivo fazem parte [so] das funes femininas e o pblico e o produtivo so destinadas ao masculino. H sim uma complementaridade entre os sexos e que so as mulheres que devem conciliar trabalho produtivo e reprodutivo. Com estas proposies e de forma instigante o artigo dialoga com as situaes de pobreza e os programas de transferncia de renda sob o prisma da diviso sexual do trabalho, buscando responder: o que se entende por pobreza feminina? Quais os pressupostos com que estes programas foram desenhados? Quais as representaes e esteretipos de gnero presentes no desenho desses programas? E, quais as caractersticas do mercado de trabalho latino-americano?

    A autora afirma que o Estado por meio de suas polticas sociais define identidades sociais e laborais e que os desenhos das suas aes acabam reproduzindo iniquidades nos processos de mudana que interpelam a ordem patriarcal. A feminizao da pobreza passou a constituir-se como

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    um enfoque centralizado no segmento mais vulnervel da populao as mulheres e a excluso passou a ser discutida como um estado dado e no resultado de um processo, ao qual se tentam sua reduo, mas no modificam as regras do jogo. O pano de fundo deste processo foi a globalizao e as novas formas de estratificao social e relaes sociais. Chama ateno que a experincia das mulheres e dos homens diferente com relao pobreza e de forma original problematiza a relao pobreza e a chefia feminina da famlia.

    Discute a gnese dos programas de proteo social da Amrica Latina e que tentam aliviar a pobreza com a tese da feminizao da pobreza. Afirma que estes programas na AL tm e tiveram caractersticas comuns, ou seja, transferir rendas monetrias e estabelecer condicionalidades para este recebimento. No curto prazo aliviar a pobreza e criar investimentos em capital humano e no longo prazo reproduzir a situao de pobreza. A autora indaga sobre como o trabalho das mulheres integrado nestes programas. Se h alguma relao com a responsabilidade de promover a repartio equilibrada das responsabilidades domsticas e familiares. Estas perguntas, segundo ela, so extremamente necessrias para possibilitar s mulheres o acesso a empregos de qualidade.

    Como ltima autora da 2 parte, Mariana Mazzini Marcondes intitula o artigo: O cuidado na perspectiva da diviso sexual do trabalho: construes para os estudos sobre feminizao do mundo do trabalho. Este analisa o conceito cuidado que a partir do processo de desenvolvimento da teoria feminista, nas ltimas dcadas, ganhou relevo no campo da economia ao construir paradigmas no enfoque da economia feminista para apropriar na anlise socioeconmica a reproduo social e sustentabilidade da vida humana (CARRASCO, 2012). Um dos temas centrais deste enfoque a diviso sexual do trabalho e a distribuio na sociedade do trabalho produtivo e do reprodutivo trabalho vinculado ao mercado ou o trabalho relacionado reproduo da vida humana.

    Marcondes investiga os elementos conceituais do cuidado na perspectiva da diviso sexual do trabalho buscando relacion-lo ao conceito de feminizao do mundo do trabalho. Isto porque para a autora o cuidado opera os princpios basilares da diviso sexual do trabalho separao e hierarquia. Apresenta uma sntese sobre a genealogia do conceito na literatura socioeconmica e conclui pela convergncia do paradoxo decorrente da relao de poder que marca o padro da proviso social do cuidado: quem tem mais poder no cuida e quem cuida desvalorizado e

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    isso expressa o imprio da diviso sexual do trabalho na normatizao das relaes sociais. Esse arcabouo terico o pano de fundo para a discusso da feminizao dos cuidados: familiar, profissional e introduz a categoria semiprofissional para incluir as empregadas domsticas neste olhar. Conclui que diante das diversas possibilidades que o conceito cuidado pode ser analisado sua opo de faz-lo pela gide da diviso sexual do trabalho deve-se a que essa abordagem agrega contribuies relevantes aos estudos da feminizao do mundo do trabalho ao inserir as realidades experimentadas pelas mulheres no trabalho domstico remunerado e no no remunerado e, em todos os cenrios, o cuidado exerce importante ascendncia sobre o destino delas.

    Anabelle Carrilho escreveu a concluso do livro a qual nominou: A feminizao na produo cientfica recente: um conceito difuso de compreenso necessria. A autora discute a polissemia da categoria de feminizao, cuja amplitude terica e poltica est explicitada nos diversos artigos que compem este livro, por um lado; por outro, sua anlise se baseia em um levantamento realizado a partir do perfil das publicaes teses e dissertao publicadas na ltima dcada no Brasil sobre feminizao, cujos marcadores so feminizao e feminilizao destacados em algumas das bases eletrnicas consultadas. Muitos e diversos foram os achados, dos quais se pode destacar aqui, que independentemente da nominao todos se reconhecem de alguma maneira como parte dos estudos de gnero e/ou feminista, segundo a autora. Mesmo que a maioria dos estudos e pesquisas consultadas tenha evidenciado diferentes formas de segregao ocupacional vinculadas a condio de classe e de raa das mulheres, j conhecidas h outras tantas que nos desafiam a serem analisadas.

    As mulheres brasileiras representam atualmente 51,5% da populao. So chefes de 24,099 milhes de famlias, dedicam, em mdia, 7,5 anos aos estudos e possuem expectativa de vida de 77,7 anos. O mercado de trabalho composto por aproximadamente 50% de mo de obra feminina, um fato remarcvel associado ao avano de escolaridade, ocorrido a partir da segunda metade do sculo XX. Ou seja, as mulheres j consolidaram seu espao no mercado de trabalho, apesar de todas as desigualdades (salariais, de acesso a postos de comando e de deciso, segregaes ocupacionais, entre outras), ainda persistentes.

    A Constituio de 1988 estabeleceu o marco jurdico para uma concepo da igualdade entre homens e mulheres. o reflexo da impressionante transformao social que tomou corpo, no Brasil, a partir da

  • Prefcio | 19

    segunda metade do sculo XX. Embora no acabada, superou o paradigma jurdico que legitimava, declaradamente, a organizao patriarcal da famlia e da esfera do trabalho e a consequente preferncia do homem ante a mulher, especialmente no locus familiar, desaparecendo as preferncias e privilgios que sustentavam juridicamente a dominao masculina.

    Tal ruptura paradigmtica implica na construo de um novo conjunto de valores de gnero e de raa, de uma nova estrutura que d coerncia ao mundo do trabalho, onde as desigualdades salariais para as mesmas profisses, a segregao ocupacional, percam sua eficcia, de forma que o ingresso macio de mulheres no represente apenas a feminizao, mas a ruptura com as desigualdades e as melhores condies de trabalho, uma vez que a feminizao do mercado de trabalho est, paradoxalmente, estreitamente ligada ao avano da presena das mulheres na educao.

    Por fim, gostaria de acrescentar que o livro Trabalhadoras nos oferece para alm de uma contribuio acadmica, uma reflexo poltica muito atual que nos leva a indagar at quando teremos que lutar sobre o destino para alcanar maior igualdade entre mulheres e homens nesse nosso Brasil!

    Boa Leitura a todas e todos!

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    APRESENTAO

    Silvia Cristina Yannoulas

    Sobre o Projeto

    O Grupo de Pesquisa Trabalho, Educao e Discriminao TEDis1 (includo no Diretrio dos Grupos de Pesquisa do CNPq) foi criado em 2007, no contexto do Programa de Ps-Graduao em Poltica Social do Departamento de Servio Social da Universidade de Braslia (SER/UnB). Seu propsito promover estudos do trabalho, a partir da sua articulao com o conhecimento e a educao formal, considerando especialmente as trajetrias educacionais diferenciais e os percursos ocupacionais e profissionais desiguais entre grupos sociais (sexo/gnero, classe social e raa/etnia).

    Por que trabalhar essas trs dimenses apontadas? que elas so estruturantes das desigualdades mais profundas das sociedades latino-americanas, envolvendo no Brasil no apenas minorias, mas 70% da populao economicamente ativa PEA (ABRAMO, 2008). Isso no significa que essas desigualdades ajam de maneira idntica ou que as discriminaes decorrentes possam ser interpretadas no mesmo sentido (RODRIGUES; YANNOULAS, 1998).

    Saffioti (1992a) considera que as relaes de poder se exprimem primordialmente por meio das relaes de gnero, em mais de um sentido: porque o gnero antecedeu a emergncia das sociedades centradas na propriedade privada dos meios de produo, mas tambm porque permeia

    1 Para mais informaes sobre as pesquisas, produes, participantes e eventos promovidos ou com participao de membros do grupo TEDis, ver: e .

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    absolutamente todas as relaes sociais.2 Assim, considerando a diviso sexual do trabalho como prtica social e simblica (BANDEIRA, 1997), a mesma se entrelaa com o sistema de classes sociais e tambm com o carter tnico/racial, expressando-se os antagonismos de maneiras particulares, segundo o tipo de profisso ou ocupao considerada (ver SAFFIOTI, 1985, 1992a; 1992b; CASTRO, 1992; 1996). Em outros termos, as relaes sociais de sexo/gnero, classe social e raa/etnia so consubstanciais (KERGOAT, 2009), e a alquimia das categorias sociais est presente em toda prtica social (CASTRO, 1992). Sem cair em concepes fragmentadas e fragmentrias da realidade social ou da prxis poltica, reconhecemos a diversidade no interior da classe trabalhadora, demarcada pelas relaes de gnero e tnico-raciais.

    O Projeto Trabalho e Relaes de Gnero: Anlise da Feminizao das Profisses e Ocupaes, do Grupo TEDis foi aprovado pelo Edital MCT/CNPq N 14/2011 (Universal). Localizado no interior dos estudos de gnero e dos estudos do trabalho, o projeto pretende se referenciar nas reflexes sobre a diviso sexual do trabalho, considerada a maneira originria de organizao social da atividade humana. Conforme analisamos em publicao anterior (YANNOULAS, 1993), a diviso sexual do trabalho foi objeto de reflexo dos fundadores das cincias sociais no sculo XIX, destacando alternadamente sua funo econmica (Marx), social (Durkheim) e cultural (Simmel). Se a diviso sexual do trabalho mutvel no tempo e no espao, ela universal no sentido de que toda sociedade conhecida realiza alguma classificao das atividades em femininas e masculinas.

    Castro e Guimares (1997) sistematizaram as produes que salientam o carter socialmente construdo da assimetria nas relaes de gnero presentes na diviso sexual do trabalho, especialmente na sua redefinio no momento da emergncia do capitalismo. Outorgamos especial destaque a abordagem realizada por Kergoat (2009), que recupera dois princpios organizadores da diviso sexual do trabalho presentes em toda parte e aplicados sempre no mesmo sentido: o da separao em trabalhos de homens e de mulheres, e o da hierarquizao, sendo que os trabalhos de homens possuem mais prestgio e reconhecimento do que os realizados por mulheres. Entretanto, para a autora, o enfoque da diviso sexual do trabalho ultrapassa

    2 Saffioti (1992) desenvolveu importante ensaio sobre a utilizao da categoria gnero e dos conceitos de diviso sexual do trabalho e patriarcado. A autora, que adotou a difundida anlise da categoria de gnero promovida por Scott, considerava que as relaes de gnero constituem uma totalidade dialtica, contendo e alimentando o antagonismo e a contradio. Existe uma simbiose entre patriarcado-racismo-capitalismo, sendo formas mutuamente constitutivas de dominao e explorao.

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    a constatao e descrio das desigualdades existentes, pois significa refletir sobre os processos pelos quais as sociedades separam e hierarquizam as atividades de homens e de mulheres. Este o eixo fundamental que organiza a discusso feminista sobre a diviso sexual do trabalho, e tambm este nosso livro Trabalhadoras.

    A imbricao entre os estudos de gnero e os estudos do trabalho to significativa, que foi apontada como fundamental para o desenvolvimento dos estudos de gnero no Brasil (BRUSCHINI, 1994). Se com relao polmica em torno do trabalho inaugurada por autores da sociologia do trabalho como Offe (1989) e Gorz (2007) reafirmamos a sua centralidade na constituio da sociabilidade humana, tambm entendemos que essa atividade humana primordial uma construo social permeada e constantemente reorganizada nas bases antagnicas da diviso sexual (ver YANNOULAS, 2008). Essa sociabilidade humana estruturada em torno do trabalho definitivamente sexuada ou generificada.

    H alguns anos, realizamos uma pesquisa comparada sobre os processos de feminizao do magistrio do ensino fundamental, no perodo entre 1870 e 1930, na Argentina e no Brasil (ver YANNOULAS, 1996). As leituras oportunamente realizadas, visando construir um estado da arte sobre as relaes de gnero no trabalho, mais especificamente sobre os processos de feminizao da profisso docente, levaram a postular a existncia de ao menos duas grandes maneiras de conceituar o fenmeno da feminizao, segundo a utilizao de perspectivas quantitativas ou quanti-qualitativas. O propsito do livro Trabalhadoras o de atualizar e refletir criticamente sobre os processos de feminizao das ocupaes e das profisses, considerando suas transformaes, os vasos comunicantes entre os aspectos quantitativos e qualitativos dos processos, os movimentos das mulheres e dos homens nos seus afazeres, labores e empregos.3

    Os novos tipos e modalidades da participao das mulheres nos atuais mercados de trabalho colocam uma srie de interrogaes sobre os modos de insero nesses mercados, se as mulheres realizam algum aporte especfico, quais so os mecanismos de qualificao que utilizam ou so oferecidos para elas, por que no ocupam os mais altos postos nas suas reas, o que significa uma participao numericamente superior em termos de definio qualitativa da profisso ou ocupao, quais os rebatimentos dessa nova

    3 Desde uma perspectiva feminista, Kergoat, Picot e Lada (2009) diferenciam profisso e ocupao; Maruani (2009) define emprego; Hirata e Zarifian (2009) discorrem sobre o prprio conceito de trabalho.

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    insero para a diviso sexual dos trabalhos reprodutivos e a participao do Estado nas tarefas de cuidados, entre outros. E a interrogao maior: qual seria o balano entre transformaes e permanncias, entre novidades e deslocamentos? Quais as contradies, quais os paradoxos gerados pela atualizao ou metamorfoses da diviso sexual do trabalho?

    Bandeira et al. (2009) apontam para a persistncia de prticas sexistas no mercado e no mundo do trabalho: mesmo quando os homens se deslocam para os afazeres domsticos remunerados, eles trabalham em ocupaes diferenciadas como jardineiro, motorista, entre outras. Quando os homens ocupados realizam afazeres domsticos no remunerados, ajudam, e o fazem ocupando um nmero de horas muito inferior ao destinado pelas mulheres ocupadas. A insero de maneira significativa de mulheres no trabalho remunerado no alterou em grande medida a diferena salarial, ou a ocupao de postos de chefia, ou ainda a liberao da sobrecarga domstica para elas. Assim, a denominada feminizao do trabalho no significou a eliminao das fontes de discriminao, seja no trabalho produtivo ou no reprodutivo, mas apenas o deslocamento das fronteiras da desigualdade (parafraseando MARUANI; HIRATA, 2003).

    Mas por que estudar a feminizao? Algumas pesquisadoras manifestam incmodos com a escolha do eixo de reflexo, pois entendem que estudar a feminizao seria postular estratgias reformistas tpicas da classe mdia, que levariam as mulheres somente a desenhar maneiras de atacar os resistentes basties masculinos ou a atrair com medidas especficas (e at sexistas!) homens para as profisses e ocupaes femininas. Bem, se adotarmos uma perspectiva estritamente relacional para compreender as relaes de gnero, no podemos identificar mulheres com gnero e homens com universal. Assim, acreditamos que o estudo da feminizao e da masculinizao das profisses chave para imaginar o desmonte das polticas e micropolticas de poder que condenam homens e mulheres a determinados tipos de tripalium (origem da palavra trabalho)4 apenas por serem portadores de um determinado aparelho anatmico-fisiolgico diferente.

    Entendemos que se h antagonismo nas relaes de gnero, este se decide a cada etapa ou perodo histrico, em cada sociedade, sem

    4 Tripalium (literalmente, trs paus) era um instrumento feito de trs paus aguados no qual os agricultores batiam as espigas de milho e trigo, para rasg-los, esfiap-los. Foi um instrumento de tortura utilizado pelos romanos, uma espcie de trip formado por trs estacas cravadas no cho na forma de uma pirmide na qual eram supliciados os escravos. Ver Lautier (1999).

  • Apresentao | 25

    que seja possvel estabelecer a priori sua demarcao. Da nossa misso como estudiosas da feminizao: apontar as maneiras que assume essa demarcao. Entretanto, somos conscientes de que as reflexes aqui contidas constituem apenas um ponto num longo processo de reflexo e movimento, reconhecendo as vozes que nos precederam e estimulando novas pesquisadoras a se debruarem sobre essa instigante e fulcral problemtica para a construo de um mundo melhor.

    Sobre nossas parcerias

    Para atingir os objetivos do Projeto, estabelecemos e/ou consolidamos parceria com outros Grupos de Pesquisa nacionais e internacionais. Assim, Trabalhadoras surge da necessidade de compartilhar as reflexes sobre a diviso sexual do trabalho e os processos de feminizao, bem como do desejo de conectar contribuies de pesquisadoras distantes geograficamente, porm prximas nos seus objetivos polticos e acadmicos feministas.

    Em primeiro lugar, com as lderes do Grupo Gnero, Poltica Social e Servios Sociais Laboratrio de ensino, pesquisa e extenso (Genposs)5 da Universidade de Braslia (UnB, Brasil): Marlene Teixeira, do Departamento de Servio Social, e Lourdes Maria Bandeira, do Departamento de Sociologia da UnB.

    Fora da nossa Universidade, mantemos intercmbio com o Ncleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim),6 da Universidade Federal da Bahia (UFBa, Brasil), especialmente com ngela Maria Freire de Lima e Souza; e tambm com o Grupo de Pesquisa e Extenso sobre Relaes de Gnero, tnico-Raciais, Geracional, Mulheres e Feminismos (Geramus),7 da Universidade Federal do Maranho (UFMa, Brasil), especialmente com Marly de Jesus S Dias.

    Nossos contatos tambm incluram as seguintes pesquisadoras (ordem alfabtica): Claudia Pereira Vianna, da Universidade de So Paulo (USP,

    5 Informaes sobre Genposs, disponvel em: . 6 Informaes sobre Neim, disponvel em: . 7 Informaes sobre Geramus, disponvel em: .

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    Brasil); Mrcia Cristina Bernardes Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, Brasil); Maria Rosa Lombardi, da Fundao Carlos Chagas (FCC, Brasil); e Nora Goren, da Universidad Nacional Arturo Jauretche (Unaj, Argentina).

    Participaram tambm alguns(mas) orientand@s das professoras parceiras: Betina Stefanello Lima, doutoranda da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, Brasil); Mrcia Barbosa de Menezes, professora e doutoranda da Universidade Federal da Bahia (UFBa, Brasil); e Maria D. Stphane R. Cerqueira, graduanda em Servio Social da Universidade de Braslia (UnB, Brasil).

    Inspiradas por Kohen (1994), organizamos Trabalhadoras em dois grandes blocos: mulheres explorando profisses e ocupaes masculinas/masculinizadas; e releituras sobre profisses e ocupaes feminizadas. A coletnea est estruturada sob um eixo comum: todas as contribuies objetivam pensar a feminizao/masculinizao luz de experincias concretas em determinadas profisses e ocupaes. A partir desse eixo comum, cada captulo abordou uma profisso ou ocupao de maneira singular, escolhendo aqueles aspectos que lhe resultaram de maior interesse quanto profisso ou ocupao por ela analisada e a metodologia mais adequada para sua interpretao. Assim, inclumos relatos de experincias, resultados de pesquisas recentes e revises de leitura, preservando a diversidade de olhares e estilos das autoras.

    Agradecimentos

    A todas as companheiras dessa aventura de escrever, amigas antigas e novas, que aceitaram com alegria e compromisso fazer parte da arte de (re)pensar a diviso sexual do trabalho, debatendo os processos de feminizao. E especialmente, a Lourdes M. Bandeira, pelas mltiplas aprendizagens e a profunda amizade desenvolvidas de maneira coerente e consistente, nas ltimas duas dcadas.

    s integrantes do Grupo TEDis participantes do Projeto: Anabelle Carrilho, doutoranda em Poltica Social; Mariana Mazzini Marcondes, mestre em Poltica Social; Talita Santos de Oliveira, mestranda em Poltica Social, porque nossas peridicas reunies, trocas e debates possibilitaram um projeto coletivo e uma publicao comum. Tambm s graduandas em Servio Social Amanda Fontenelli Costa, Vanessa de Sousa Arajo e gatha

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    Marina Murari Azzolin, que colaboraram dando o necessrio suporte em diversas etapas do projeto.

    E finalmente, porm no menos importante, ao Comit Assessor PS Psicologia e Servio Social do CNPq, que nos apoiou nessa aventura da pesquisa e reflexo sobre o que ns mulheres fazemos, onde, quando, quanto, como aprendemos a fazer, com que fazemos e para quem fazemos.

    Silvia Cristina YannoulasBraslia, 02 de junho de 2013

    Referncias

    ABRAMO, Las. Trabajo, gnero y raza. Un tema presente en la agenda brasilea. Nueva Sociedad, n. 218, 2008. Disponvel em: .

    BANDEIRA, Lourdes M. Diviso sexual do trabalho, prticas simblicas e prticas sociais. In: SIQUIERA, Deis E. et al. Relaes de trabalho, relaes de poder. Braslia/DF: UnB, 1997, p. 155-176.______ . et al. Mulheres em dados: o que informa a Pnad/IBGE, 2008. In: BRASIL, Presidncia da Repblica. Edio Especial Revista do Observatrio Brasil da Igualdade de Gnero: Autonomia Econmica, Empoderamento e Insero das Mulheres no Mercado de Trabalho. Braslia/DF: SPM, 2009, p. 107-128. Disponvel em: .

    BRUSCHINI, Cristina. Trabalho feminino: trajetria de um tema, perspectivas para o futuro. Estudos Feministas. Ano 2, n. 3, 1994, p. 17-32. Disponvel em: .

    CASTRO, Mary G. Alquimia de categorias sociais na produo dos sujeitos polticos. Estudos Feministas. Ano 0, n. 0, 1992, p. 57-73. Disponvel em: .

    ______ . Gnero, raa/etnicidade, trabalho e sindicalismo no Brasil. Cadernos da rea. Estudos de Gnero, n. 4, 1996, p. 15-46.CASTRO, Nadya A.; GUIMARES, Iracema B. Diviso sexual do trabalho, produo e reproduo. In: SIQUIERA, Deis E. et al. Relaes de trabalho, relaes de poder. Braslia/DF: UnB, 1997, p. 177-211.

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    GORZ, Andr. Metamorfoses do trabalho. Crtica da razo econmica. 2. ed. So Paulo: Annablume, 2007. HIRATA, Helena; ZARIFIAN, Philippe. Trabalho (conceito de). In: HIRATA, Helena et al. (Org.) Dicionrio crtico do feminismo. So Paulo: Unesp, 2009, p. 251-256.KERGOAT, Daniele. Diviso sexual do trabalho e relaes sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et al. (Org.) Dicionrio crtico do feminismo. So Paulo: Unesp, 2009, p. 67-75.KERGOAT, Prisca; PICOT, Genevieve; LADA, Emmanuelle. Ofcio, profisso, bico. In: HIRATA, Helena et al. (Org.) Dicionrio crtico do feminismo. So Paulo: Unesp, 2009, p.159-166.KOHEN, Beatriz (Comp.) ...De mujeres y Profesiones.... Buenos Aires: Buena Letra, 1994.LAUTIER, Bruno. Trabalho ou Labor? Dimenses histricas e culturais. Ser Social, n. 5, 1999, p. 09-21.MARUANI, Margaret. Emprego. In: HIRATA, Helena et al. (Org.) Dicionrio crtico do feminismo. So Paulo: Unesp, 2009, p. 85-90.MARUANI, Margaret; HIRATA, Helena (Org.) As novas fronteiras da desigualdade. homens e mulheres no mercado de trabalho. So Paulo/SP: Senac, 2003.OFFE, Claus, Trabalho e sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da Sociedade do Trabalho. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 23-41.RODRIGUES, Almira; YANNOULAS, Silvia C. Gener-idade Primeiras aproximaes ao estudo do gnero na infncia In: Cadernos de rea. Estudos de Gnero. Goinia/GO: UCG, n. 7, 1998, p. 61-77.SAFFIOTI, Heleith. Fora de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras. Perspectivas, n. 8, p. 95-141, 1985. Disponvel em: .______ . Rearticulando gnero e classe social. In: COSTA, Albertina; BRUSCHINI, Cristina (Org.). Uma questo de gnero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; So Paulo: Fundao Carlos Chagas, 1992a, p. 183-215.______ . Reminiscncias, Releituras, Reconceituaes. Estudos Feministas. Ano 0, n. 0, 1992b, p. 97-103. Disponvel em: .

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    YANNOULAS, Silvia C. Trabalho feminino: discursos e realidades In: FREITAG, Brbara; PINHEIRO, M Francisca (Org.) Marx morreu: viva Marx! Campinas/SP: Papirus, 1993, p. 147-167.

    ______ . Educar: uma profesin de mujeres? Buenos Aires: Kapelusz, 1996.______ . O trabalho sem fim. In: DAL ROSSO, Sadi; FORTES, Jos A. A. S (Org.) Condies de trabalho no limiar do sculo XXI. V. 1, p. 89-96. Braslia/DF: Epocca, 2008.

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    INTRODUO

    Sobre o que ns, mulheres, fazemos1

    Silvia Cristina Yannoulas

    Estudos de Gnero e Estudos do Trabalho

    E, quando eu estava escrevendo aquela resenha, descobri que, se fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor, dei a ela o nome da herona de um famoso poema, O Anjo do Lar. Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. (...) Ela era extremamente simptica. Imensamente encantadora. Totalmente altrusta. Excelente nas difceis artes do convvio familiar. Sacrificava-se todos os dias. (...) seu feitio era nunca ter opinio ou vontade prpria, e preferia sempre concordar com as opinies e vontades dos outros. E acima de tudo nem preciso dizer ela era pura.

    (Virginia Wolf)2

    Na virada do sculo XX para o XXI houve uma marcada convergncia entre os estudos de gnero e os estudos do trabalho, com a emergncia

    1 As ideias estruturantes dessa introduo foram publicadas na revista Temporalis (YANNOULAS, 2011), e posteriormente debatidas com diversidade de pblicos em eventos internacionais e nacional: Seminrio Internacional da Rede sobre Trabalho Docente (Redestrado), realizado em julho de 2012, em Santiago de Chile; Congresso Latino-Americano de Histria das Mulheres, realizado em setembro de 2012, em Buenos Aires; e Seminrio sobre Feminizao do Trabalho Docente, organizado em novembro de 2012 pelo Gestrado/UFMG, em Belo Horizonte. Agradecemos a tod@s interlocutor@s, includas Maria Lucia Teixeira Garcia (Ufes) e Jussara Maria Rosa Mendes (UFRGS) na poca da publicao editoras de Temporalis, a Iris Maria de Oliveira (UFRN), atual editora da revista que gestionou a autorizao para utilizao do mencionado artigo nessa introduo, e aos annimos pareceristas da publicao e dos eventos, que com seus questionamentos e sugestes nos incentivaram a melhorar as reflexes sobre os processos de feminizao. Finalmente, os minuciosos comentrios de Cludia Vianna (USP) e ngela M. F. L. e Souza (UFBA), e o olhar atento e generoso de Almira Rodrigues (CFemea), contriburam em grande medida para desenhar a verso final desta introduo.2 WOLF, Virginia. Profisses para Mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre/RS: L&PM, 2012, p. 11-12.

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    de anlises sobre o emprego e o desemprego femininos no contexto da passagem do sistema taylorista-fordista de produo para o sistema de produo flexvel ou toyotista (a denominada reestruturao produtiva), marcada tambm pelo gradativo desmonte dos sistemas de bem-estar social (ver BORDERAS; CARRASCO, 1994; HIRATA, 2002; TORNS, 2003; CATTNEO; HIRATA, 2009).3

    Essa convergncia entre os estudos de gnero e os estudos do trabalho outorgou maior visibilidade acadmica ao espao reduzido e desprestigiado ocupado pelas mulheres nos mercados de trabalho. As pesquisas ento demonstraram de maneira contundente aspectos da dupla segmentao do mercado de trabalho, que j haviam sido apontados por trabalhos pioneiros (p.ex., SULLEROT, 1971): a segmentao horizontal (poucas profisses e ocupaes absorvem a maioria das trabalhadoras) e a segmentao vertical (poucas mulheres em altos cargos, inclusive em setores de atividade com participao feminina predominante como so a educao formal, a enfermagem e o servio social).4 Essa situao de dupla segmentao produz uma pirmide organizacional, com teto e paredes de cristal, que impede s mulheres transitar livremente pelas organizaes e pelo mercado de trabalho, pois as oportunidades abertas a elas sempre so restritas horizontal e verticalmente (WIRTH, 2001; CAPPELLIN, 2008).

    As pesquisas tambm apontaram para os mecanismos sociais que produziram a transformao dos comportamentos de atividade econmica das mulheres, evidenciando transformaes profundas nos trabalhos e nas famlias bem como suas ntimas inter-relaes, e enfatizando a necessidade de visualizar o todo (produo e reproduo).5 A prpria categoria de trabalho foi questionada, pois as disciplinas cientficas envolvidas (dentre elas a sociologia, a economia e a histria) privilegiaram a atividade produtiva e assalariada, estudando de maneira predominante o emprego e no o

    3 Blay (1978), Saffioti (1985), Souza-Lobo (2011), Bruschini (1994, 1998) so autoras fundamentais para se compreender a construo de pontes intelectuais profcuas entre os estudos de gnero e os estudos do trabalho no Brasil no perodo apontado. Um relato interessante da estruturao do campo de reflexo sobre estes estudos no pas pode ser consultado em Castro e Lavinas (1992).4 Kergoat, Picot e Lada (2009) diferenciam profisso e ocupao: a sociologia das profisses de razes anglo-saxnicas ope as verdadeiras profisses s outras atividades de trabalho designadas como ocupaes, pois as primeiras so dotadas de direitos especficos reconhecidos pelo Estado e por uma legislao especfica que organiza sua formao de longa durao e controla seu exerccio.5 Saffioti (1992) alerta sobre a necessidade de entender a reproduo em sentido amplo, e no apenas restrita instituio familiar e de carter privado. No se trata apenas da reproduo biolgica, mas tambm da social na qual participam outras instituies para alm da famlia.

    UsuarioRealce

    UsuarioRealce

    UsuarioRealce

  • Sobre o que ns, mulheres, fazemos | 33

    trabalho (ver BORDERAS; CARRASCO, 1994; HIRATA, 2002; HIRATA; ZARIFIAN, 2009).6

    Gradativamente, o foco das anlises foi mudando, e se inicialmente estava dado pelo enfoque da segregao horizontal e vertical dos mercados de trabalho, a nfase passou progressivamente a estar colocada na especificidade e revalorizao das experincias de trabalho produtivo e reprodutivo realizadas pelas mulheres. Alguns estudos estabeleceram relaes entre as qualificaes, prticas e valores femininos nos mbitos familiar e profissional; outros focalizaram o olhar nas contradies e ambivalncias vivenciadas pelas mulheres com base na dupla presena.7 Ficou claro que no era possvel compreender as caractersticas da presena e a ausncia femininas nos mercados de trabalho sem entender a responsabilizao das mulheres pelas atividades produtivas (BORDERAS; CARRASCO, 1994; TORNS, 2003).

    A feminizao do assalariamento ganhou destaque nas pesquisas, pois foi uma das maiores mutaes sociais da segunda metade do sculo XX: em poucas dcadas e a despeito da crise do emprego, elas se tornaram quase a metade do mundo do trabalho remunerado (MARUANI, 2009). O aumento quantitativo da condio salarial termo acunhado por Castel (2010) foi mais rpido e mais importante para as mulheres do que para os homens, acompanhado de algumas mudanas qualitativas no tipo de insero das mulheres nos mercados de trabalho. A feminizao do assalariamento, em parte decorrncia da transformao das famlias e tambm da reestruturao produtiva e da transformao dos paradigmas tecnolgicos que eliminaram antigas barreiras ao ingresso das mulheres aos mercados de trabalho teve consequncias importantes em termos da cidadania e da seguridade social para as mulheres.

    A outra mutao importante foi a emergncia de uma nova tendncia: a estabilidade no mercado de trabalho e nas trajetrias profissionais/

    6 Adotamos a diferenciao comentada por Maruani (2009), que distingue trabalho (atividade de produo de bens e servios) de emprego (modalidades de entrada e sada do mercado de trabalho). O emprego um dos elementos estruturantes do funcionamento das sociedades atuais, pois ter emprego significa ter trabalho, aceder a um salrio e ter um espao na sociedade.7 O conceito de doble presencia (dupla presena) foi utilizado pela primeira vez em 1978, pela sociloga italiana Laura Balbo. A dupla presena significa grande dificuldade enfrentada pelas mulheres, pois so responsabilizadas duplamente: na famlia e no trabalho. Implica na dupla ausncia tambm, pois provoca a sensao de estarem sempre em dvida com os dois ambientes (familiar e laboral), conduzindo ao estresse e outras doenas. Consultar Carrasquer Oto (2009).

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    ocupacionais das mulheres, que no presente acumulam de maneira contnua uma atividade profissional e a vida familiar. A maioria das mulheres atualmente no para de trabalhar quando vm os filhos, no h uma pronunciada descontinuidade da trajetria profissional, mesmo que o custo pessoal e familiar seja muito alto. Assim, a maioria das trabalhadoras no responde mais ao antigo perfil de participao das mulheres nos mercados de trabalho, detectado pelos primeiros estudos feministas de sociologia do trabalho (p.ex., WAINERMAN; GELDSTEIN, 1989; 1990 para Argentina; BRUSCHINI, 1994; 1998 para Brasil). Entretanto, antes e agora, diversos grupos de mulheres participam de maneiras diferenciadas nos mercados de trabalho e nos afazeres domsticos, sendo particularmente sensveis aos condicionantes familiares as mulheres chefas de famlia (atualmente quase 35% das famlias so chefiadas por mulheres, ver BANDEIRA et al., 2009).

    Como destaca Maruani (2009), paradoxalmente essas transformaes pouco afetaram e, em alguns casos, at aumentaram a hierarquia das desigualdades profissionais e ocupacionais em termos de remuneraes, condies de trabalho, prestgio e outras qualidades dos empregos. Isso porque no alteraram em profundidade as representaes sobre o emprego feminino ou a prpria diviso sexual do trabalho domstico. Inmeros estudos corroboram a afirmao anterior. Ao dizer de Hirata e Kergoat (2007): tudo muda, mas nada muda!

    Por exemplo, Abramo (2007) resume as principais tendncias positivas e negativas dos mercados de trabalho latino-americanos. A autora explora a hiptese de que a ideia das mulheres como fora de trabalho secundria, mesmo sendo desmentida pelos dados empricos sobre a participao das mulheres, estrutura o imaginrio dos empresrios e dos agentes polticos, determinando a discriminao de gnero nos mercados de trabalho.

    Bruschini e Lombardi (2000; 2007) analisam o mercado de trabalho brasileiro, destacando a constituio de dois polos opostos de atividade (bipolaridade): ocupaes de m qualidade (em guetos femininos como o emprego domstico) e boas ocupaes (em reas profissionais prestigiosas masculinas como a Engenharia, Arquitetura, Medicina e Direito), mas a persistncia de ganhos femininos inferiores aos masculinos independentemente de setor de atividade econmica, nmero de horas trabalhadas, nmero de anos de estudo, posio na ocupao, confirmando o diferente valor atribudo socialmente aos trabalhos de homens e mulheres. Inclusive Cappellin (2008) aponta que a brecha salarial entre mulheres e

    UsuarioRealce

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    homens com diploma universitrio seria maior do que entre os trabalhadores e trabalhadoras menos escolarizadas (56% e 81% respectivamente, com base na Relao Anual de Informaes Sociais (Rais), do Ministrio do Trabalho e Emprego, e para o ano de 2005).

    Finalmente, Rizek e Leite (1998), estudando o contexto fabril, afirmam que o crescente lugar ocupado pelo trabalho feminino nos processos de reestruturao produtiva significou trs movimentos paralelos e articulados: a (re)construo de mecanismos de confinamento das mulheres ao domstico, a identificao do uso das sensibilidades corporais como trabalho feminino naturalizado e consequentemente desqualificado, e, finalmente, a estruturao de um simblico feminino dcil e conciliador do privado e do pblico. Como afirmam as autoras, desigualdades importantes e suas formas de legitimao se reforam e/ou recriam no contexto da reestruturao produtiva.

    A ambiguidade das transformaes na insero das mulheres nos mercados de trabalho foi ressaltada desde o prprio ttulo da obra por Maruani e Hirata (2003): As novas fronteiras da desigualdade. Tambm foi uma constante na anlise desenvolvida durante o seminrio Trabalho e gnero: mudanas, permanncias e desafios, realizado em Campinas em 1998 (e relatado por ROCHA, 2000). H novidade sim, mas tambm h permanncia de fronteiras que impedem a igualdade de gnero no mundo do trabalho (produtivo e reprodutivo). O principal problema reside na constituio da dupla presena (ou ausncia) no trabalho no caso das mulheres, pois se elas ingressaram de maneira contundente nos mercados de trabalho, as tarefas de reproduo domstica continuam sendo uma atribuio quase que exclusivamente feminina (o anjo do lar quase sempre uma anja!).

    Por exemplo, para o contexto brasileiro: em 2009, a taxa de participao dos homens atingia o 72,3%, e a das mulheres era de 52,7%. Entretanto, apenas 49,1% dos homens declararam cuidar destes afazeres, enquanto 88,2% das mulheres o fizeram (DIEESE, 2011, Tabela 6). O tempo mdio dedicado aos afazeres domsticos em 2009 foi de 21,6 horas semanais entre as mulheres ocupadas, e de 9,5 horas semanais entre os homens ocupados (Ibidem, Tabela 85). Os dados de outras fontes, mesmo diferentes porque a metodologia de coleta e processamento da informao diferem, corroboram as mesmas tendncias apontadas (ver IPEA, 2011; BANDEIRA et al., 2009). Observe-se, ainda, que surveys especficos indicam uma distncia

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    considervel entre a declarao de realizao e sua efetiva realizao (ARAJO; SCALON, 2005).8

    Se o contedo da legislao anterior a 1988 estava baseado em princpios como a fragilidade feminina, a defesa da moralidade, a proteo prole e a exaltao da famlia, importante registrar as conquistas das mulheres com a sano da Constituio de 1988 especialmente o art. 7 do Captulo II (Dos Direitos Sociais) (ver BRUSCHINI, 1994). Conforme Rodrigues e Cortes (2010), no perodo 1988-2010 houve aprovao de 42 novas normativas que dizem respeito aos direitos das trabalhadoras, algumas com interfaces com as reas de sade, violncia e direitos humanos. Essas normativas consolidaram mudanas quanto diviso sexual do trabalho no Brasil. As autoras consideram quatro grandes vertentes da legislao: a que suspende a discriminao ou as condicionalidades de segmentos especficos dos trabalhadores (13 leis); a que protege os direitos de determinados segmentos especficos (22 leis); a que promove a ampliao de direitos anteriormente adquiridos (2 leis) e a promotora da flexibilizao (5 leis). 9

    Pode ser observada a predominncia das duas primeiras vertentes legislativas, que dizem apenas respeito a grupos de trabalhadoras formais em segmentos especficos, contando com menos resistncias para serem aprovadas. J no caso das duas ltimas vertentes Rodrigues e Cortes (2010) apontam confrontos entre diferentes perspectivas poltico-ideolgicas, pois tratam diretamente dos interesses encontrados do capital e do trabalho: contrato temporrio, estatuto nacional da microempresa, trabalho aos domingos e feriados, entre outras questes. Reconhecendo os pontos positivos das ltimas dcadas em matria de legislao, h tambm algumas questes crticas apontadas no balano realizado pelas autoras e publicado pela Secretaria de Polticas para Mulheres (SPM): falta de fiscalizao no cumprimento da legislao aprovada, tratamento do trabalho como um todo (produtivo e reprodutivo) e valorizao da noo de funo social da maternidade/paternidade (com o apoio da sociedade e do Estado).

    As transformaes na insero das mulheres nos mercados de trabalho so muito significativas, porm no alteraram de maneira expressiva o tipo

    8 Estudiosas espanholas como Durn (1988; 2010) e Torns et al. (2006) pesquisaram e propuseram modificaes sobre a contabilidade do tempo de trabalho. No Brasil, desde 2001 a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios) do IBGE investiga o nmero de horas na execuo de afazeres domsticos dispendidos por homens e mulheres. Como possvel atualmente estimar o valor deste trabalho reprodutivo: o PIB brasileiro de 2008 aumentaria 10,3% com ele (ver BANDEIRA et al., 2009).9 A questo das negociaes coletivas por categorias especficas foi estudada por Vera Soares (1998b), Dieese (2003) e Abramo e Rangel (2005).

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    de carreira profissional ou ocupacional, pautado geralmente pelo modelo do profissional masculino ou, dito em outros termos, pelas possibilidades concretas dos homens no exerccio das respectivas profisses ou ocupaes (YANNOULAS, 2001; 2003). Alm disso, o trabalho da reproduo humana continua sendo invisvel e fundamentalmente desenvolvido pelas mulheres, o que preserva o modelo profissional masculino (livre dos afazeres da reproduo, ajudante na melhor das hipteses) e mantm, com altssimo custo para as mulheres, um modelo domstico feminino (conciliador, dividido e subjugado entre as mltiplas jornadas de trabalho) (ver TORNS et al., 2006; DURN, 2010).

    Feminizao e femilizao

    Como Mr. Brimley Johnson nota vrias vezes, a escrita de uma mulher sempre feminina; no pode deixar de ser feminina; nos melhores casos, extremamente feminina: o nico problema definir o que queremos dizer com feminina. Ele se mostra sensato no s ao apresentar inmeras sugestes, mas tambm ao aceitar o fato, por desconcertante que seja, de que as mulheres podem variar. (...) Ningum h de concordar com essas tentativas de definio sem querer tirar ou acrescentar alguma coisa a elas, e, no entanto, ningum h de admitir que possa se enganar e tomar um romance de autoria masculina como se fosse de uma mulher.

    (Virginia Wolf)10

    Postulamos a existncia de dois significados diferentes de feminizao das profisses, observveis com estratgias metodolgicas diferentes (ver YANNOULAS, 1996a; 2011):

    a) Significado quantitativo (feminilizao): refere-se ao aumento de mulheres (pessoas de sexo feminino) na composio da mo de obra em uma determinada ocupao ou profisso.

    b) Significado qualitativo (feminizao propriamente dita): refere-se s transformaes num determinado tipo de ocupao ou profisso, vinculadas s prticas sociais e simblicas

    10 WOLF, Virginia. Mulheres Romancistas in: Profisses para Mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre/RS: L&PM, 2012, p. 29-30.

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    (ver BANDEIRA, 1997), predominantes na poca ou na cultura especificamente analisadas, e que rebatem numa mudana no significado da profisso ou ocupao.

    Quatro observaes adicionais se fazem necessrias:

    1) O segundo significado (feminizao) inclui e expande o primeiro significado, sendo ambos diferentes, porm, complementares. O segundo alude a uma compreenso mais ampla e sofisticada dos processos de incorporao de mulheres em uma determinada profisso ou ocupao, porque alm de descrever a entrada delas no campo profissional ou ocupacional (feminilizao), tenta explicar as razes que permitiram essa entrada e os impactos em consequncia da mesma.

    2) Inclusive na literatura especializada, a palavra feminizao utilizada sem ser definida especificamente, ou seja: a feminizao usualmente naturalizada, at mesmo nos estudos feministas. Poucos estudos apresentam uma reflexo em torno da definio do processo de feminizao para alm da aluso ao nmero expressivo de mulheres no exerccio de uma categoria profissional especfica (ver YANNOULAS, 1996a; 2011; CARVALHO, 1999; TAMBARA, 2002; VIANNA, 2001; WERLE, 2005).

    3) Alguns poucos estudos realizam a diferenciao explcita entre os dois processos (quantitativo e qualitativo), porm utilizando os termos exatamente ao contrrio (ver TAMBARA, 2002; MOLINIER; WELZER-LANG, 2009). O fundamento para essa compreenso diferenciada estaria nas caractersticas psicolgicas exigidas para o desempenho das atividades em pauta.

    4) Conforme citao inicial de Virginia Wolf, o qualitativo da feminizao historicamente mutvel e tambm varia dependendo do sujeito da definio. De alguma maneira: os trabalhos so considerados femininos quando realizados por mulheres, e, na sua definio, recuperam caractersticas enunciadas em determinada poca como de domnio das mulheres (ver YANNOULAS, 1996a; CARVALHO, 1999). Voltaremos a esse assunto.

    No h uma avaliao homognea sobre os significados e sentidos dos processos de feminizao. Algumas especialistas lhe outorgam um

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    carter subversivo, no sentido do desregramento do sistema social. Outras a consideram uma vitria das mulheres na luta pela igualdade (em direitos e em nmero) quando se verifica entrada massiva delas num grupo profissional. Finalmente, h quem interprete o processo de feminizao nos seus aspectos negativos, referidos desvalorizao e perda de prestgio associadas feminizao de uma profisso ou ocupao (ver KERGOAT; PICOT; LADA, 2009). Nos nossos levantamentos, encontramos predomnio da terceira posio, aquela com destaque para as consequncias negativas dos processos de feminizao das profisses e ocupaes (ver COSTA neste livro Trabalhadoras).

    As especialistas constataram que existe uma intensa relao entre o acesso massivo de mulheres em uma determinada profisso ou ocupao (feminilizao, contabilidade de pessoas de sexo feminino ou fmeas) e a progressiva transformao qualitativa da mesma (feminizao, caracterizao e tipificao de uma ocupao ou profisso). Com o ingresso massivo de mulheres, diminuem as remuneraes, a qualificao profissional sofre um processo de desqualificao, e a atividade perde prestgio social. Alm disso, quando as profisses e ocupaes se feminilizam, passam a ser entendidas como extenso no espao pblico da funo privada de reproduo social. Assim, ao analisar a mudana na existncia objetiva de uma profisso ou ocupao (feminilizao), necessrio questionar como e por que aconteceu a mudana (feminizao de atributos, caractersticas descritivas que determinam e regulam o exerccio da profisso ou ocupao), e verificar o impacto qualitativo dessa feminilizao para o conjunto do mercado de trabalho e na prpria profisso, bem como suas consequncias para a realizao do trabalho domstico. 11

    Le Feuvre (2008) aponta que as pesquisas sobre feminizao de ocupaes e profisses chamam a ateno para os avanos das mulheres nas ltimas duas dcadas, mas no necessariamente apontam para o carter ambguo e contraditrio dessa penetrao, particularmente pelos postos especficos que elas ocupam na hierarquia profissional interna. A maioria desses estudos mostra a chegada progressiva das mulheres

    11 Segundo Heinen (2009) as polticas sociais ganharam um impulso especial com a feminizao do emprego e a atividade remunerada contnua das mulheres, atravs do desenvolvimento de instituies socializadas destinadas aos cuidados (creches, pr-escolas, residncias para idosos, estabelecimentos para o cuidado de deficientes, entre outras). Sobre os cuidados na poltica social brasileira atual, ver Marcondes (2012; 2013). Sobre os cuidados e a educao infantil, ver Carvalho (1999; 2011) e Sayo (2005).

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    nos antigos basties masculinos e sustentam o postulado, mais ou menos explicitamente, segundo o qual o carter quantitativamente misto dessas profisses constitui um indicador emprico confivel do nvel de igualdade atingido.

    Para Le Feuvre (2008), o custo da transgresso pago pelas mulheres que ingressam em territrios profissionais femininos ou masculinos no idntico, e esse custo tambm varia segundo a cultura analisada (no caso, comparao entre Frana e Gr-Bretanha). O ingresso em territrios masculinos est caracterizado pelo alinhamento das mulheres norma masculina, isto , pela aproximao das profissionais disponibilidade permanente e pelo distanciamento das mesmas da sua destinao prioritria esfera domstica e s atividades de cuidado.

    Trabalho docente feminizado

    Ento, quando comecei a escrever, eram pouqussimos os obstculos concretos em meu caminho. Escrever era uma atividade respeitvel e inofensiva. O riscar da caneta no perturbava a paz do lar. No se retirava nada do oramento familiar. (...) claro que foi por causa do preo baixo do papel que as mulheres deram certo como escritoras, antes de dar certo nas outras profisses.

    (Virginia Wolf)12

    O contedo da legislao laboral aprovada na virada do sculo XIX para o XX expressou ideias especficas sobre as mulheres, suas caractersticas espirituais, emocionais e fsicas, e contribuiu para a determinao de funes especficas nas atividades de produo e reproduo (YANNOULAS, 1993; 1996a; 1996b).13 Essas ideias foram historicamente construdas, demarcadas por aspectos emocionais e biolgicos e associadas s tarefas de reproduo, contribuindo para a determinao de funes especficas na sociedade. O trabalho feminino remunerado (em particular, o fabril) era considerado danoso para a sade biolgico-reprodutiva das mulheres (o que se compreende quando pensamos nas condies de trabalho nas fbricas da poca e no trabalho domiciliar para unidades de produo). O trabalho

    12 WOLF, Virginia. Profisses para Mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre/RS: L&PM, 2012, p. 10.13 Para uma descrio da configurao das relaes de gnero na virada do sculo, ver para Europa e USA, Anderson; Zinsser (1992) e Duby; Perrot (1991-1993); para Argentina, ver Gil Lozano, Pita, Ini (2000); para o Brasil, Del Priore (2004).

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    feminino fabril era considerado prejudicial para as famlias e naes, pois a famlia dependia do cuidado das mulheres. Sua participao nos mercados de trabalho foi tolerada (como desgraa inevitvel para as mulheres pobres), porm desaconselhada e muito controlada, pois sua principal funo era a maternidade e a preservao do novo ncleo familiar.14

    Entretanto, por meio de processos mais sutis, algumas profisses e ocupaes foram oferecidas para as mulheres como alternativas possveis no espao pblico urbano, especialmente aquelas vinculadas reproduo social. Por exemplo, os estudos normalistas e o exerccio do magistrio pelas mulheres se configuraram como uma grande exceo na Amrica Latina: no apenas foi tolerado para que os desempenhassem como professoras, mas promovidos explicitamente pelas autoridades pblicas (MORGADE, 1992; 1997; YANNOULAS, 1996a) e pelas teorias pedaggicas da poca (CARVALHO, 1999).

    Durante a elaborao da tese de doutorado sobre feminizao do magistrio na Amrica Latina fomos fortemente inspiradas pelos pioneiros trabalhos de Capalbo, Canda (1982), Morgade (1992) e Fernndez (1992) na Argentina, e de Gouveia (1970), Novaes (1984), Nunes (1985), Louro (1987) e Reis (1993), no Brasil. Esses trabalhos traaram um percurso muito frutfero quanto problematizao dos processos de feminizao do magistrio, posicionando-se no campo dos estudos da mulher e posteriormente dos estudos de gnero, abrindo as portas para interpretaes que lanavam mo de diversidade de disciplinas cientficas (Sociologia, Pedagogia, Psicologia, Cincia Poltica, Economia, entre outras) para entender as causas e no apenas constatar o aumento numrico da participao feminina na composio da profisso. Ento como hoje, e conforme constatado durante a apresentao dos resultados da nossa pesquisa em diversos eventos de cunho acadmico no feminista, as pesquisas sobre trabalho docente raramente utilizam o referencial analtico dos estudos de gnero, e mormente se localizam apenas na leitura dos estudos do trabalho, ou ainda dos estudos pedaggicos.

    Morgade (1992 e 1997) destaca que a feminizao da profisso docente marcou um importante momento na histria das mulheres latino-americanas. H outras profisses que se feminizaram, mas apenas o magistrio foi to

    14 Cappellin (2004) apresenta o desenvolvimento histrico dos embates de valores em torno da igualdade de oportunidades e de remunerao para as mulheres, surgidos no sculo XIX. A autora destaca a dificuldade na assimilao desse princpio nas relaes contratuais e de trabalho, apontando a persistncia da desigualdade de tratamento e de oportunidades nos mercados de trabalho.

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    importante desde o ponto de vista simblico e poltico: os Estados nacionais latino-americanos, recm-constitudos, depositaram nas mos do corpo docente feminino a tarefa de difundir os fundamentos da nova identidade nacional. Na dissertao de mestrado, Morgade (1992) diferencia duas maneiras ou tipos de feminizao do magistrio: uma remete a um processo prolongado e sutil (exemplificado pela autora com pases como Canad, Estados Unidos, Reino Unido) e outra considera a relao direta estabelecida entre a incorporao de mulheres no corpo docente e o estabelecimento da obrigatoriedade escolar e a universalizao da escola de 1 grau (Argentina).

    Os estudos de Yannoulas (1996a) comprovaram parcialmente e reorganizaram essa classificao. De um lado, Frana e Alemanha constituem exemplos de outra ordem do primeiro tipo, j que a feminizao do magistrio foi tardia, porm no foi um processo sutil e sim atrelado sada dos homens das escolas por causa das guerras mundiais: Frana feminiza o corpo docente entre as guerras mundiais, e Alemanha depois da segunda guerra mundial. De outro lado, a histria do magistrio nos Estados Unidos e no Brasil apoiaria o segundo tipo apontado por Morgade (1992), no sentido de educar o soberano, sem necessariamente corresponder fora da construo da nao observada na Argentina devido ao peso da tendncia descentralizadora no Brasil.

    Assim, ns (re)classificamos os tipos de processo de feminizao do magistrio da seguinte maneira (YANNOULAS, 1996a):15

    1) Processo basicamente conflitivo: quando a obrigatoriedade escolar, a profissionalizao da tarefa de educar e a formao de um corpo docente (masculino) antecederam o processo de feminizao. A exigncia de celibato apenas para as mulheres constituiu uma das chaves mestras para impedir a permanncia delas no magistrio; a insero apenas em escolas de meninas foi outra daquelas chaves. Nesses casos, o processo de feminizao do magistrio aconteceu mais tardiamente, associado sada dos homens da profisso por causas externas como as grandes guerras na Europa e tambm aos

    15 Sobre o processo histrico de feminizao da profisso docente nos Estados Unidos, ver Apple (1989). Sobre as modificaes na profisso docente na Europa, ver Jacobi (1990), Lagrave (1993), Acker (1995) e Garcia (2008). Sobre as modificaes na profisso docente na Argentina, ver Capalbo; Canda (1982), Morgade (1992; 1997; 2007); Yannoulas (1992; 1996a); e Di Liscia; Maristany (1997). Sobre as modificaes na profisso docente no Brasil, ver Novaes (1984); Reis (1993); Yannoulas (1992; 1996a); Hypolito (2012), Louro (1997 e 2004). Sobre feminizao, proletarizao e sindicalismo docente ver Hypolito (2012); Vianna (1999; 2001); e Ferreira (2004; 2008).

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    processos gradativos de instaurao da educao mista entre as crianas pequenas (ensino de meninos e meninas conjuntamente), para a qual se dava preferncia s professoras.16 Nos pases europeus, a construo dos sistemas escolares aconteceu com a excluso material e simblica das mulheres, em uma concepo pedaggica que no autorizava a incluso de caractersticas femininas e apelava fora dos castigos fsicos e disciplina como tcnicas fundamentais para o ensino-aprendizagem;

    2) Processo sem conflitos: quando a obrigatoriedade escolar, a profissionalizao da tarefa educativa e a formao do corpo docente (feminino) aconteceram em paralelo ou incluso, posteriormente, criao de instituies especficas para a formao docente. A necessidade de expandir o ensino das primeiras letras e de repassar os valores cvicos em contexto de recursos escassos foi a chave mestra que permitiu criar consenso em torno do acesso massivo de mulheres ao magistrio na Amrica Latina ps-colonial, inclusive em alguns casos, pensou-se a profisso para as rfs, como educao profissional para as jovens que no possuam dependncia financeira de homem algum (pai ou marido).17 Nesses casos, o processo de feminizao foi mais rpido e estimulado, porm controlado por autoridades pblicas masculinas (supervisores, professores de escolas normais, ministros de educao, conselheiros de educao, entre outros).

    Nos processos de feminizao sem conflitos aparentes, as mulheres no precisaram batalhar ou esperar a sada dos homens do magistrio. Elas foram chamadas a participar ativamente dos processos de construo das bases dos sistemas educacionais em pases nos quais o peso da tradio de

    16 Fortino (2009) traz interessante definio de coeducao e sua diferenciao com a educao mista, questionando a falta de transformaes sociais como efeito ou resultado da coeducao, no sentido de uma maior insero igualitria das mulheres e dos homens em espaos profissionais e ocupacionais. Seguindo a Fortino, os estudos sobre coexistncia dos sexos integram essa noo aos processos histricos de mudanas na diviso sexual do trabalho. A autora ressalta que a coexistncia dos sexos denota tambm um processo que indica a passagem de um espao social sexualmente segregado para outro que registra a coexistncia.17 Sobre a relao entre orfandade, caridade e origens da feminizao da docncia, ver Luiggi (1959); Yannoulas (1996a); e Werle (2005). Werle visualiza no fato das rfs que buscavam profissionalizao ao sair do asilo ocuparem as vagas remanescentes nos primrdios da escola normal no Rio Grande do Sul, um possvel fundamento para os baixos salrios docentes: as professoras assim formadas marcadas pela gratido e a dvida para com a sociedade, retribuam os favores recebidos ministrando ensino nas escolas pblicas.

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    magistrio masculino no existia e estava presente o desejo de expandir a populao includa na instituio escolar (novas classes sociais ou grupos tnicos participando da escola).

    Segundo Yannoulas (1996a) e Hahner (2011), a expanso da educao feminina e a implementao da coeducao sob influncia do positivismo educativo foi tambm determinante para a decisiva incorporao das mulheres nas escolas normais de final do sculo XIX, pois era mais aceitvel que as mulheres consideradas inferiores nos seus dotes intelectuais, porm superiores nos seus dotes morais ficassem responsveis por crianas de ambos os sexos. Destarte, no seria o contedo da educao formal republicana e sim a idade, o sexo e o volume dos potenciais sujeitos a ser inseridos no sistema o elemento constitutivo do processo de feminizao sem resistncias aparentes.

    De outro lado, importante reter a distino analtica realizada antecipadamente por Saffioti (1969) e Gouveia (1970), quanto feminizao da matrcula nas escolas normais e a feminizao no exerccio efetivo do magistrio, pois em muitos casos as moas de classes abastadas matriculavam-se nas escolas normais por ser a nica opo de continuidade dos estudos ou pelo interesse de obter qualificao para o exerccio das tarefas reprodutivas, sem por isso pretender o exerccio profissional. Jacobi (1990) coloca que a luta feminista travada na Alemanha para ter acesso ao exerccio da profisso docente foi propriamente uma ao estratgica, com dois objetivos bsicos: ampliar os estudos (pois a universidade era vedada para as mulheres) e ter uma profisso.

    Para alm da constituio e consolidao dos Estados nacionais, a mudana na composio sexual do magistrio deve ser compreendida no conjunto de fatores associados crescente urbanizao e industrializao. Carvalho (1999) realiza esse movimento e interpreta a feminizao da docncia como interpenetrao entre espao pblico e privado, entre educar e cuidar. Para ela, a feminizao do magistri