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ISSN 1413-6651 São Paulo - 2007 XVII

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ISSN 1413-6651São Paulo - 2007

XVII

Editora Responsável InstitucionalMarilena de Souza Chaui

Editora ResponsávelTessa Moura Lacerda

Comissão EditorialCeli Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valéria Loturco da Silva.

Conselho EditorialAtilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAu-rélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola Nor-male Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon).

PareceristasAndré Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Luciana Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho, Sérgio Xavier Gomes de Araújo.

Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII

Universidade de São PauloReitora: Suely Vilela

Vice-Reitor: Franco Maria Lajolo

FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDiretor: Gabriel Cohn

Vice-Diretora: Sandra Margarida Nitrini

Departamento de FilosofiaChefe: Moacyr Novaes

Vice-Chefe: Caetano Ernesto PlastinoCoord. do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio de

Ávila ZinganoEndereço para correspondência:Profa. Marilena de Souza ChauiA/C Grupo de Estudos EspinosanosDepartamento de Filosofia – USPAv. Prof. Luciano Gualberto, 31505508-900 – São Paulo-SP – BrasilTelefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431e-mail: [email protected]: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos

Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// Tiragem: 1000 exemplares

A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.

N. XVII, JUL-DEZ DE 2007 – ISSN 1413-6651

Ficha Catalográfica

Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVIISão Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2007.Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651

APRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade

de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período, diversas atividades

foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa,

tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os

Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.

Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão

dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade,

expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do

período sempre estiveram presentes a cada edição.

O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos

sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e

pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.

Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos,

tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros

projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores

brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto.

Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele

período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a

comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando,

inclusive, outrosdepartamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento

deste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva

SOBRE ESTE NÚMERO

Os Cadernos Espinosanos, dedicados a publicar trabalhos sobre filósofos

seiscentistas, neste primeiro número digital amplia um pouco seu tema para acolher

artigos que discutem a idéia de “ensaio” – desde o pioneiro Montaigne até o pensamento

“pós-moderno”. A contemporaneidade comparece também em um artigo que investiga o

prolongamento das filosofias de Leibniz e Espinosa no século XX.

Os Editores

SUMÁRIO

INTERSUBJETIVIDADE E TRANSINDIVIDUALIDADE A PARTIR DE LEIBNIZ E ESPINOSA Vittorio Morfino.........................................................................11

ESTAMOS TODOS MALUCOS… O SUJEITO MODERNO E A FALHA GEOLÓGICA Eduardo Grüner......................................................................... 43

TRÊS NOTAS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E FORMA TEXTUAL NOS ENSAIOS DE BACON Homero Santiago........................................................................58

O “PRIVILÉGIO DO PENSAMENTO”: UM ENSAIO DE INTERPRETAÇÃO Mariana de Gainza.....................................................................71

O VIGOR CRÍTICO DA SAGESSE MONTAIGNIANA Silvana de Souza Ramos.............................................................80

A LIBERDADE DO SER EM LEIBNIZ Fabrício Fernandes Armond.......................................................92

NOTÍCIAS..............................................................................................112INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES.........................................................115CONTENTS............................................................................................117

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Intersubjetividade e transindividualidade a partir de Leibniz e Espinosa

Vittorio Morfino*

Resumo: Um dos mal-entendidos mais persistentes que cercam a filosofia leibniziana consiste, sem dúvida, em querer ver nela uma forma de espinosismo. Por outro lado, toda oposição que se faz entre Leibniz e Espinosa no plano teórico aparentemente não ultrapassa a visão hegeliana da relação entre os dois filósofos como oposição entre universalidade e individualidade. Pretende-se aqui, diferentemente, confrontar os dois filósofos em relação à questão da individualidade confrontando os seus prolongamentos teóricos do século XX. De um lado, a intersubjetividade husserliana como prolongamento teórico da monadologia; de outro, o conceito simondoniano de transindividualidade que, com Balibar, permite-nos prolongar o pensamento espinosano na contemporaneidade. Tentar-se-á marcar toda a distância que separa estes dois sistemas segundo uma abordagem que não se limita a repetir o velho refrão hegeliano.Palavras-chave: Espinosa, Leibniz, transindividualidade, intersubjetividade.

1. Monadologia e espinosismo

Na história dos mal-entendidos a respeito da filosofia leibniziana certamente está,

entre os mais curiosos e insistentes, aquele que nela quer ver uma forma de espinosismo;

uma incompreensão em duplo sentido, pois, para poder afirmar-se, opera uma redução

da complexidade tanto de Leibniz quanto de Espinosa. Leibniz já se expressava de

maneira inequívoca nos últimos anos de sua vida, em resposta a uma carta de Bourguet:

Eu não sei, senhor, como podeis tirar daí qualquer espinosismo; é passar um tanto rápido às conclusões. Ao contrário, é justamente graças a essas mônadas que o espinosismo é destruído, porque existem tantas substâncias verdadeiras, e, por assim dizer, espelhos vivos do universo sempre subsistentes, ou universos concentrados, quantas mônadas existem, enquanto que, segundo Espinosa, não existe nada além de uma só substância. Ele teria razão caso não

* Professor na Universitá degli studi di Milano - Bicocca Tradução de Herivelto Pereira de Souza

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existissem mônadas; então tudo, fora de Deus, seria passageiro e se esvairia como simples acidentes ou modificações, uma vez que não existiria a base das substâncias nas coisas, a qual consiste na existência das mônadas.(Leibniz 11, p.575)

Na resposta de Leibniz está presente o forte componente ideológico sublinhado

por Friedmann, que afirma que “na galeria de doutrina mobiliada pela propaganda

leibniziana dos últimos anos, o espinosismo joga cada vez mais o papel do maligno,

que a harmonia preestabelecida vem exorcizar” (Friedmann 5, p.163), uma monadologia

que se ergue como último baluarte cristão contra o ateísmo; todavia, a importância da

resposta não pode ser limitada a este aspecto: ela apresenta um ponto teórico fundamental

de afastamento progressivo das duas filosofias, aquele que Balibar, usando uma bela

expressão de Foucault, definiu como o “ponto de heresia” (Balibar 1, p.8).

Em um plano estritamente metafísico, foi Friedrich Heinrich Jacobi a colocar

em relevo a oposição entre os dois sistemas, em um apêndice à segunda edição das suas

célebres Cartas ao Sr. Moses Mendelssohn sobre a teoria de Espinosa (apêndice este feito

para corrigir a insistência, na primeira edição, sobre a identidade substancial dos dois

sistemas): a presença, em Leibniz, do conceito de forma substancial, de um principium

individuationis, torna os dois sistemas não apenas diferentes, mas opostos. (Jacobi 10,

p.114; trad. p.252) Esta oposição foi canonizada e ao mesmo tempo dialetizada por Hegel

na célebre nota ao primeiro capítulo da terceira seção da Teoria da Essência (Hegel

7, p.376-378; trad. p.604-606): aqui a oposição Espinosa-Leibniz perde os caracteres

contingentes do horizonte histórico que a viu surgir, para se tornar um jogo categorial

que a mente de Deus conduz na eternidade do elemento lógico. Nessa oposição, em

sua existência histórica, exprime-se a dialética de duas unilateralidades que deverão ser

superadas pelo desdobrar-se do processo: se, de fato, na filosofia espinosana, o sujeito

naufraga na totalidade da substância, na filosofia leibniziana o sujeito pode ser colocado

apenas se toma como própria a lei das suas relações com as outras mônadas, isto é, se

a sua atividade é entendida somente em sentido relativo. Olhando bem, Hegel repete

a opinião leibniziana1 colocando a dialética das duas unilateralidades a serviço de sua

própria filosofia: a substância sem sujeito de um lado e os sujeitos sem totalidade imanente

de outro, preparando o caminho para aquele fazer-se sujeito da substância que é o núcleo

central de seu pensamento.

Em um plano teorético, além dos contornos do esboço hegeliano nada houve além

de mera repetição.2 Todavia, se colocada em um plano puramente metafísico, a oposição

parece ser estéril: a eterna repetição da dialética Um-Muitos, que habita a tradição ocidental

desde o Parmênides de Platão, refratar-se-ia na díade Espinosa-Leibniz através da lente

metafísica da substância. Uma ou muitas substâncias: eis o dilema. Porém, se se renuncia

a um olhar panorâmico sobre a história do pensamento e se aproxima a terminologia dos

dois autores, torna-se imediatamente claro que todo esquema opositivo simplista resulta

inadequado e redutivo3, como demonstra aquele extraordinário protocolo de leitura que é

o manuscrito leibniziano Ad “Ethicam”, cujo aspecto proeminente consiste precisamente

na impossibilidade de Leibniz em traduzir a terminologia metafísica espinosana dentro de

sua própria filosofia.(Cf. Morfino 15) Buscar-se-á, então, desativar a questão através de

um duplo movimento: de um lado, situar a oposição não em nível metafísico (unicidade da

substância contra pluralidade das mônadas) mas sobre o plano do finito e de suas relações

internas (mônadas contra modos); e de outro lado, desvinculá-la do plano meramente

historiográfico para avaliar sua potência em termos de história dos efeitos, projetando-a

sobre um terreno que, em última instância, é teorético.

2. Intersubjetividade transcendental

Se há um autor na filosofia do século XX que restitui vigor ao projeto leibniziano

de uma monadologia, ele é sem dúvida alguma Edmund Husserl. Na medida em que se

avança na leitura das Meditações Cartesianas, a figura de Leibniz parece deslocar do

centro da cena teórica fundamental a de Descartes, culminando na quinta meditação,

dedicada à intersubjetividade, quando Husserl propõe, apertis verbis, a sua própria teoria

como uma monadologia.

Percorramos brevemente as passagens fundamentais desse caminho. O primeiro

e bem conhecido movimento teórico husserliano consiste na repetição da dúvida universal

cartesiana que conduz a um ego puro (ou “ego reduzido”), pura interioridade dotada do

caráter de evidência apodítica. Deste modo, o ego cogito resulta no “solo judicativo último

e apoditicamente certo sobre o qual toda filosofia radical é fundada” (Husserl 9, p.58; trad.

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p.52); diante do mundo, assim como dos outros, eu não sou mais do que uma pretensão de

existência, um Seinsanspruch, isto é, perdem-se “as inteiras formações da socialidade e da

cultura [die ganzen Gebilde der Sozialität und der Kultur]” (Husserl 9, p.58-59; trad. it. p.

52) em sua crença existencial, Seinsglauben. Esta epoché, esta “redução fenomenológico-

existencial” é, como dito, a repetição de um movimento cartesiano e, no entanto, ao

mesmo tempo, uma tentativa de atingir uma radicalidade mais profunda: a colocação do

mundo entre parênteses enquanto método, graças ao qual eu tomo a mim mesmo como eu

puro, constitui, de fato, uma tomada de distância da identificação cartesiana entre cogito

e substantia, na qual Husserl vê uma espécie de reificação do eu puro.

Esse primeiro movimento, porém, graças ao qual eu entro em contato com a

evidência do cogito, não é um fim em si mesmo. Ele me permite ter acesso à multiplicidade

das experiências de si do viver transcendental:

a mera identidade do “eu sou” não é o conteúdo absolutamente indubitável da experiência transcendental de si, antes, estende-se através de todos os dados particulares da real e possível experiência de si [...] uma universal e apodítica estrutura de experiência do eu. (Husserl 9, p.67; trad. it. p.60)

Assim, a fenomenologia transcendental resulta uma ciência absolutamente

subjetiva, enquanto o objeto, no seu ser, é independente da decisão acerca da existência ou

da não existência do mundo. Porém, segundo Husserl, apenas em aparência estamos diante

de um solipsismo transcendental, uma vez que “sua execução conseqüente, conforme

seu próprio sentido, conduz a uma fenomenologia da intersubjetividade transcendental”

(Husserl 9, p.69; trad. it. p.62): no fundo, o solipsismo seria apenas um estágio inferior,

uma consideração metodológica necessária para poder colocar em funcionamento a

problemática da intersubjetividade transcendental. Vejamos como.

O campo de trabalho do ego reduzido compreende todo o mundo e a ciência

objetiva, um ego que permanece idêntico nas multíplices cogitationes, “a vida corrente

da consciência [das strömende Bewusstseinleben] na qual vive o eu idêntico” (Husserl 9,

p.70; trad. it. p.62): a expressão mais correta da evidência apodítica é, portanto, segundo

Husserl, ego cogito + cogitatum na dupla direção noética e noemática. Este fluxo de

Erlebnisse [vivências] na consciência não é dado sem conexão, mas como síntese:

na reflexão pura vejo que este cubo é dado de maneira contínua como unidade objetiva em uma variável e multiforme multiplicidade que determina modos fenomênicos que lhe fazem parte [in einer vielgestaltigen wandelbaren Mannigfaltigkeit bestimmt zugehöriger Erscheinungsweise]. (Husserl 9, p.77; trad. it. p.69)

É a síntese da consciência que estabelece a unidade do objeto na pluralidade

das suas manifestações: “a inteira vida da consciência [...] é unificada sinteticamente”

(Husserl 9, p.80; trad. it. p.72). A tarefa do fenomenólogo não é descrever de maneira

ingênua o objeto, mas os modos pelos quais a consciência o constitui enquanto tal:

apenas deste modo o fenomenólogo pode tornar compreensível para si como na imanência da vida da consciência, e em quais modos constituídos de consciência estes fluxos ininterruptos de consciência, assim como as unidades objetivas estáveis e permanentes, podem tornar-se conscientes, e em particular, como vem a efetuar-se essa maravilhosa realização da constituição dos objetos idênticos para cada categoria de objeto. (Husserl 9, p.85; trad. it. p.77)

No fluxo heraclitiano da consciência cada objeto designa uma estrutura de

regras do eu transcendental.

Até aqui, sumariamente, as três primeiras meditações, as quais vão na direção

de uma transcendentalização do cogito cartesiano. Com a quarta se abre o percurso, por

assim dizer, leibniziano. De fato, o ego não é um pólo de identidade vazio, pois “para

cada ato que emana de si [ele] adquire um novo sentido objetivo, uma nova propriedade

durável [eine neue bleibende Eigenheit]” (Husserl 9, p.100; trad. it. p.92). E mais:

enquanto o eu, por sua própria gênese ativa, constitui-se como substrato idêntico de duráveis propriedades-do-eu [identisches Substrat bleibender Ich-Eigenheiten], constitui-se também ulteriormente como eu pessoal estável e permanente – naquele

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sentido mais amplo, que permite também se falar em pessoas infra-humanas (Husserl 9, p.101; trad. it. p.93).

O eu se constitui como estilo permanente, como caráter pessoal. Mas o eu

como pólo idêntico e como substrato de habitualidade é ainda diferente do eu na sua

plena concretude; a este, Husserl chama de mônada, o ego enquanto possui “um mundo-

ambiente contínuo” [eine fortwährend Umwelt]” (Cf. Husserl 9, p.102; trad. it. p.94)4.

Neste ponto Husserl se coloca a pergunta fundamental para o seu projeto: como

sair do “domínio da consciência [Bewusstseinsbereich]” (Husserl 9, p.116; trad. it. p.106),

da “ilha da consciência [Bewusstseinsinsel]”(Ibidem; trad. it. p.107)? Ou seja, como é

possível que a evidência tenha mais do que o caráter de dado da consciência? É aqui,

precisamente, que se abre o problema da intersubjetividade: não tem sentido colocar, como

fez Descartes, o universo do ser como externo ao universo da consciência estabelecendo

uma lei fixa de correspondência entre os dois (correspondência que necessita de uma

garantia divina); é suficiente que em mim sejam constituídos transcendentalmente outros

ego e um mundo objetivo. Trata-se, aqui, de sair de um solipsismo transcendental, da

imanência da consciência, para mover-se em direção à transcendência do outro.

Husserl aborda a questão analisando como se forma em mim o sentido do

alter ego. Trata-se, em primeiro lugar, de operar uma redução metodológica da esfera de

pertencimento, isto é, de excluir “do campo temático tudo aquilo que agora é questionável”,

isto é, de “[fazer] abstração de todos os produtos constitutivos da intencionalidade

orientada mediata ou imediatamente à subjetividade estrangeira [fremde Subjektivität]”

(Husserl 9, p.124; trad. it. p.116); Husserl considera, porém, que:

uma tal abstração não é radical, um tal ser-sozinho não muda nada no sentido de mundo natural do ser-experienciável-para-cada-um [Für-jedermann-erfahrbahr], o qual também adere ao eu entendido de maneira natural, e que não seria perdido mesmo se uma peste universal me deixasse sozinho. (Husserl 9, p.125; trad. it. p.116)

Assim, naquilo que me é próprio enquanto mônada, “[que existe] puramente em

mim mesmo e para mim mesmo, em clausura do que me é próprio [in abgeschlossener

Eigenheit]” (Husserl 9, p.125; trad. it. p.117), há a intencionalidade do estrangeiro:

“constitui-se o novo sentido do ser que ultrapassa meu eu monádico no que é próprio

de si mesmo, e se constitui um ego não como eu mesmo, mas como um que se espelha

no meu eu próprio, na minha mônada [sondern als sich in meinem eigenen Ich, meiner

Monade spiegelndes]” (Ibidem). Este segundo ego não está “presente”, não nos é dado

“autenticamente”, mas é constituído como alter ego. A questão acerca da possibilidade

de intencionar o estrangeiro permanece, porém, de difícil solução: “Deve haver

aqui – escreve Husserl – uma certa mediaticidade da intencionalidade que procede a

partir da camada inferior do mundo primordial [primordinale Welt], colocada sempre

como fundamental” (Husserl 9, p.139; trad. it. p.129). Esta mediação deveria tornar

representável o Mit-da sem que se possa sequer mostrar-se como um Selbst-da. Trata-

se do ato de tornar co-presente, de uma espécie de apresentação, de tipo diferente com

respeito àquela presente na experiência externa, segundo a qual, por exemplo, o lado visto

de um objeto me apresenta aquele posterior, escondido. A apresentação do outro é de

tipo diferente: “ego e alter ego são dados sempre e necessariamente em emparelhamento

originário [ursprüngliche Paarung]” (Husserl 9, p.142; trad. it. p.132), emparelhamento

que é um presentar-se configurante como par, grupo, multidão, uma síntese passiva de

associação segundo a qual, pelo fato de que eu sou um corpo orgânico, se aparece na

minha esfera primordial um corpo semelhante ao meu, “[um corpo] que deve entrar em

emparelhamento fenomenal [phänomenale Paarung] com o meu [corpo]” (Husserl 9,

p.143; trad. it. p.133)5, aquele corpo assume sentido de corpo orgânico através de uma

transferência de sentido.

A questão diz respeito, agora, a como esse sentido pode ter valor de ser. Segundo

Husserl,a apresentação [Appräsentation] que me dá o outro na sua inatingível originalidade é entrelaçada a uma presentação [Präsentation] original (de seu corpo como parte da natureza dada a mim singularmente [seines Körpers als Stück meiner eigenheitlich gegebenen Natur]). Mas neste entrelaçamento [Verflechtung] o corpo-orgânico estrangeiro e o eu estrangeiro que o governa são dados no modo de uma experiência transcendente unitária. (Husserl 9, p.143-144; trad. it. p.134)

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Essa experiência do estrangeiro pode ser verificada “mediante novas

apresentações decorrentes em concordância sintética” (Husserl 9, p.144; trad. it. p.134).

“Fica claro, com isso, – continua Husserl – que na modificação analógica é apresentado

tudo aquilo que pertence à concretude deste eu, em primeiro lugar como seu mundo

primordial e depois como ego inteiramente concreto” (Husserl 9, p.144; trad. it. p.135).

Assim, por apresentação, constitui-se na minha mônada uma outra mônada que, no entanto,

não posso nunca apreender originaliter, e que, por isso, tem o caráter da transcendência.

Essa experiência do estrangeiro funda a objetividade do mundo e a comunidade

das mônadas, isto é, a sua temporalidade comum:

[...] estabelece em sua complexa estrutura uma ligação semelhante, mediada através de presentificações [Vergegenwärtigung], entre a experiência de si (enquanto pura manifestação de si passiva e original), que prossegue em vivacidade ininterrupta, do eu concreto, portanto sua esfera primordial, e a esfera do estrangeiro nela presentificada [vergegenwärtigten]. Ela estabelece tal ligação mediante uma síntese identificadora do corpo-orgânico estrangeiro primordialmente dado consigo mesmo, só que apresentado em outro modo fenomênico, e, a partir daí, estende-se através da síntese identificadora da mesma natureza dada e verificada ao mesmo tempo primordial (em pura originalidade sensória) e apresentativamente. Dessa forma, é originariamente fundada a coexistência do meu eu (e do meu ego concreto, em geral) com o eu estrangeiro, da minha vida intencional com a sua, das minhas realidades com as suas; em uma palavra, [é fundada] uma forma temporal comum [eine gemeinsame Zeitform], onde cada temporalidade primordial [primordinale Zeitlichkeit] adquire por si mesma o mero significado de um original e subjetivo-individual modo fenomênico da temporalidade objetiva. Vê-se, aqui, como a comunidade temporal [zeitliche Gemeinschaft] das mônadas, mutuamente referidas de maneira constitutiva, é indissociável, porque essencialmente relacionada à constituição do mundo e do tempo do mundo [Weltzeit]. (Husserl 9, p.156; trad. it. p.146)

A contemporaneidade das mônadas, o seu ser-ao-mesmo-tempo (Husserl

9, p.166; trad. it. p.156), funda a unicidade da comunidade monádica, a unicidade e a

objetividade do mundo, a unicidade do espaço e a unicidade da temporalidade real.

Essa comunidade tem dois graus de formação: em um grau mais baixo, a

outra mônada é constituída em mim como estrangeira, as outras mônadas são realiter

separadas da minha, ou seja, não há liame real entre os momentos de consciência delas

e os meus; em um grau mais elevado, se eu dirijo minha compreensão em direção ao

outro ser humano, descubro que, como seu corpo orgânico se encontra no meu campo

perceptivo, também o meu se encontra no dele. Esta reciprocidade funda a comunidade

monádica, a intersubjetividade transcendental que “traz consigo, necessariamente,

o mesmo mundo objetivo constituído” (Husserl 9, p.158; trad. it. p.148). De maneira

extremamente sintética, poderíamos dizer que o primeiro nível é cartesiano, enquanto o

segundo é leibniziano. Como escreve o próprio Husserl:

Assim, à constituição do mundo objetivo pertence essencialmente uma harmonia das mônadas, mais precisamente, uma tal constituição harmônica particular das mônadas e, conforme a isso, também uma harmonia na gênese singular que prossegue. (Husserl 9, p.138; trad. it. p.128; itálicos meus)

A constituição da intersubjetividade transcendental necessita, assim, do conceito

de mônada como espelho sintético de um mundo-ambiente e do conceito de comunidade

monádica como reciprocidade dos espelhamentos, sincronia dos mundos. Esta harmonia

não teria, porém, uma estrutura metafísica, tampouco as mônadas seriam invenções ou

hipóteses metafísicas: a saída do solipsismo não seria tornada possível, de fato, como quis

sublinhar o próprio Husserl, “por uma metafísica inconfessa, por uma retomada oculta de

tradições lebnizianas” (Husserl 9, p.174; trad. it. p.164).

3. Intersubjetividade metafísica

A questão fundamental da teoria da intersubjetividade transcendental (que

é também a mesma questão sobre o valor da evidência vinda de fora da cercadura da

consciência) diz respeito a este conceito não metafísico de mônada e de harmonia

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que Husserl coloca como fundamento de sua teoria. O que, exatamente, Husserl

entende por conceito não metafísico de mônada e de harmonia? Parece-me que, para

ele, a teoria da intersubjetividade transcendental não necessita de alguns pressupostos

metafísicos leibnizianos que elenco sinteticamente a seguir, percorrendo os parágrafos

da Monadologia:

1) a substancialidade das mônadas;

2) que as mônadas só poderiam “começar por criação e acabar por aniquilação”

(Leibniz 12, §6, p.607; trad. it., p.453);

3) que “como todo o estado presente de uma substância simples é uma continuação

natural do seu estado passado, assim também o presente está prenhe do futuro” (Leibniz

12, §22, p.610; trad. it., p.456);

4) que “a razão última das coisas deve encontrar-se numa substância necessária,

na qual o pormenor das modificações só esteja eminentemente, como na origem. É o que

chamamos Deus” (Leibniz 12, §38, p.613; trad. it., p.458-459);

5) que o intelecto de Deus seja o fundamento ontológico da possibilidade

(Leibniz 12, §43, p.614; trad. it., p.459);

6) que tenha lugar uma influência meramente ideal “de uma Mônada sobre

outra, influência que só pode exercer-se com a intervenção de Deus” (Leibniz 12, §51,

p.615; trad. it., p.460);

7) que Deus tenha escolhido, entre uma infinidade de universos possíveis, aquele

com o maior grau de perfeição (Leibniz 12, §53-55, p.615-16; trad. it., p.461);

8) que “a alma [siga] as próprias leis, e o corpo também as suas, e ambos se

[ajustem] devido à harmonia preestabelecida entre todas as substâncias” (Leibniz 12, §78,

p.620; trad. it., p.465);

9) que haja uma harmonia “entre o reino Físico da Natureza e o reino Moral da

Graça” (Leibniz 12, §87, p.622; trad. it., p.467).

Aquilo que Husserl rechaça é o conceito de harmonia dominada pelo par

especular da onto-teologia: substância finita - substância infinita, mônada - Deus.

Trata-se, então, de compreender em que sentido a teoria da intersubjetividade

transcendental husserliana possa ser dita uma monadologia, mesmo com a recusa desse

par conceitual. Renato Cristin, na introdução à edição italiana das Meditações, dá ênfase

ao “papel relacional das mônadas” (Cristin 3, p.XV)6, acrescentando, algumas linhas

abaixo, uma reflexão um tanto pouco perspícua sobre a velocidade admitida pelo conceito

de mônada: “Como um multiplicador de velocidade, a mônada consente que se passe de

uma situação à outra, do eu ao Outro, com uma facilidade maior comparada à lentidão do

cogito cartesiano” (Cristin 3, p.XV). Convém, então, deter-se sobre a primeira indicação:

a imediata relacionalidade da mônada como aspecto central da retomada husserliana de

Leibniz. Esta imediata relacionalidade da mônada está bem expressa nesta passagem da

Monadologia, na qual retorna o tema, caro a Leibniz, da cidade observada de diferentes

perspectivas:[...] esta acomodação de todas as coisas criadas a cada uma e de cada uma a todas as outras faz cada substância simples ter relações que exprimem todas as outras e ser, portanto, um espelho vivo e perpétuo do universo. [...] E, assim como a mesma cidade parece outra e se multiplica perspectivamente sendo observada de diversos lados, o mesmo sucede quando, pela infinita quantidade das substâncias simples, parece haver outros tantos universos diferentes, que, no entanto, são apenas as perspectivas de um só, segundo os diferentes pontos de vista de cada Mônada. (Leibniz 12, §56-57, p.616; trad. it., p.461).

O mundo, a unidade do mundo na sua dimensão espaço-temporal, nada é além

de um fenômeno fundado na inter-relação das mônadas. A intersubjetividade precede e

funda a objetividade do mundo.

Todavia, Husserl nos diz que a harmonia entre as mônadas é uma harmonia não

metafísica. Nesta afirmação, aparentemente sem problemas, na realidade se esconde o

verdadeiro e próprio malogro da intersubjetividade husserliana. O que significa harmonia

não metafísica? Releiamos a passagem-chave de Husserl:

à constituição do mundo objetivo pertence essencialmente uma harmonia das mônadas, mais precisamente, uma tal constituição harmônica particular das mônadas e, conforme a isso, também

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uma harmonia na gênese singular que prossegue.

Em que consiste esta harmonia das mônadas que funda o mundo objetivo? Em

Leibniz, a resposta é conhecida: “Ora, sendo esta substância [necessária] razão suficiente

de todo aquele pormenor que, por sua vez, está [entrelaçado] em toda parte, há um só

Deus, e esse Deus é suficiente” (Leibniz 12, §39, p.613; trad. it., p.459). A unidade de

Deus funda a unidade do mundo, Deus antecipa e fecha os jogos relacionais das mônadas

no cálculo que origina o mundo. Em Husserl, não é assim: “Se [...] no cosmo leibniziano

– escreve Cristin – a atividade das mônadas era preordenada sobre a base da harmonia

universal, em Husserl o conceito de mônada é carregado de uma valência de autonomia,

de espontaneidade, de capacidade de operar no mundo” (Cristin 3, p.XV).

Em um plano teórico, essa resposta é completamente insatisfatória, ou seja, não

responde à questão fundamental sobre a harmonia das mônadas, que é aquilo que torna

possível a intersubjetividade transcendental e funda o mundo objetivo. Husserl rechaça

a solução cartesiana da veracitas divina que coloca fora de jogo a hipótese do gênio

maligno, mas também a harmonia preestabelecida leibniziana que sincroniza o tempo de

todas as mônadas, fazendo do tempo interno delas o espelho, diversamente situado, da

história do mundo. A resposta propriamente husserliana reside na idéia de comunidade

monádica como contemporaneidade essencial:

O ser em conjunto das mônadas, o seu mero ser-ao-mesmo-tempo [ihr bloßes Zugleichsein], significa, por necessidade de essência, uma simultaneidade temporal [wesensnotwendig Zeitlich-zugleichsein] e, então, também a sua realização temporal sob a forma de temporalidade real [Verzeitlicht-sein in der Form realer Zeitlichkeit] (Husserl 9, p.166; trad. it., p.156).

Mas este ser-ao-mesmo-tempo não pode nunca ser realmente percebido, dado

que uma mônada não pode nunca atingir originaliter o fluxo vital de uma outra mônada.

A temporalidade do alter ego é sempre apenas apresentada, nunca dada diretamente.

Nesse ser-ao-mesmo-tempo das mônadas, nessa harmonia sem metafísica, esconde-se

nada menos que um Deus, seja ele aquele transcendente de Berkeley ou aquele imanente

do espírito objetivo hegeliano: a contemporaneidade essencial é o nome husserliano de

Deus. A intersubjetividade só pode ser metafísica: uma vez que se repita o movimento

agostiniano da busca pela verdade in interiore homine, movimento que Husserl reivindica

na conclusão das suas Meditações (Husserl 9, p.183; trad. it., p.172), apenas um Deus

pode nos permitir de sair da interioridade e de reencontrar o mundo.

4. Simondon e o transindividual

Se a intersubjetividade transcendental revela-se no fundo como uma

intersubjetividade metafísica, será preciso tentar percorrer uma outra estrada na tentativa

de fundar a existência de uma comunidade e de um mundo objetivo sem recorrer a um

Deus (mesmo que seu papel seja reduzido a mero garante de uma sincronia dos mundos

para além do bem e do mal). Proporei, para tanto, um détour que me permita fornecer em

termos extremamente sintéticos as coordenadas históricas da emergência do conceito de

“transindividual”, do qual pretendo servir-me em seguida para sublinhar, em toda a sua

força, a alternativa Espinosa/Leibniz.

O termo foi introduzido por Gilbert Simondon em um livro, L’individuation

psychique et collective, publicado postumamente em 1989, que constituía a última parte

de uma tese de doutorado escrita nos anos 1950, das quais as duas primeiras partes haviam

sido publicadas em 1964 com o titulo de L’Individu et sa genèse physico-biologique. O

conceito central, como aparece mesmo a um olhar apenas superficial aos dois títulos, é o de

individuação, sobre cujos processos Simondon propõe-se fixar sua atenção, em oposição

a uma tradição que concedeu um privilégio ontológico ao indivíduo já constituído. Tanto

a tradição substancialista, quanto aquela hilomórfica, de fato,

supõem que existe um princípio de individuação anterior à individuação ela mesma, suscetível de explicá-la, de produzi-la, de conduzi-la. A partir do indivíduo constituído e dado, esforça-se em remontar às condições de sua existência.(Simondon 21, p.9)

Trata-se, segundo Simondon, de conhecer o indivíduo através da individuação,

mais do que a individuação a partir do indivíduo, em outras palavras, de inverter

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radicalmente a perspectiva a partir da qual se observa o indivíduo, afirmando com força

o primado da individuação:

O indivíduo seria, então, entendido como uma realidade relativa, uma certa fase do ser que pressupõe uma realidade pré-individual, e que, mesmo após a individuação, não existe completamente só, porque a individuação não esgota de uma vez por todas os potenciais da realidade pré-individual, e, por outro lado, [porque] o que a individuação faz aparecer não é apenas o indivíduo, mas o par indivíduo-meio. O indivíduo é, assim, relativo em dois sentidos: porque ele não é todo o ser, e porque ele resulta de um estado do ser no qual ele não existia nem como indivíduo, nem como princípio de individuação. (Simondon 21, p.12)

Uma tal inversão de perspectiva foi tornada possível pelo conceito de equilíbrio

metastável, que permite de pensar o ser não em termos de substância ou matéria, mas

como um sistema teso, supersaturado. Simondon apresenta a individuação física e a

individuação no âmbito do vivente como casos de resolução de um sistema metastável,

com a diferença de que, enquanto no âmbito físico a individuação advém “de um modo

apenas instantâneo, quântico, brusco e definitivo, deixando atrás de si uma dualidade

do meio e do indivíduo”, “o vivente conserva em si uma atividade de individuação

permanente” (Simondon 21, p.16).

É exatamente esse caráter da individuação no âmbito do vivente que permite

a Simondon pensar o nível psíquico e o coletivo em termos de individuações sucessivas

com respeito à individuação vital. Todavia, a individuação psíquica e a coletiva não

devem ser pensadas elas mesmas como sucessivas uma à outra, segundo um modelo de

desenvolvimento diacrônico, mas em termos sincrônicos, como um mesmo processo que

dá lugar a um interno e a um externo. É neste nível que o conceito de individuação se

entrelaça com o tema do transindividual:

As duas individuações, psíquica e coletiva, estão em uma relação de reciprocidade; elas permitem definir uma categoria do transindividual que pretende dar conta da unidade sistemática da individuação interior (psíquica) e da individuação exterior (coletiva).

O mundo psicossocial do transindividual não é o social bruto, nem o inter-individual; ele pressupõe uma verdadeira operação de individuação a partir de uma realidade pré-individual, associada aos indivíduos e capaz de constituir uma nova problemática dotada de uma sua própria metastabilidade. (Simondon 21, p.19-20)

O transindividual é, então, o nome da complexa trama de relações que constitui

ao mesmo tempo a individuação psíquica e aquela coletiva. E, aqui, emerge o terceiro

conceito-chave da teoria de Simondon, o conceito de relação, que não é nunca relação

entre dois termos preexistentes, mas constituição dos termos colocados em jogo pela

relação. Neste sentido, trata-se, segundo Simondon, de delinear um novo método que

esteja à altura dos conceitos de individuação e de transindividual:

O método consiste em não tentar compor a essência de uma realidade em meio a uma relação conceitual entre dois termos extremos preexistentes, e em considerar cada verdadeira relação como tendo classe de ser. A relação é uma modalidade do ser; ela é simultânea com relação aos termos dos quais garante a existência. Uma relação deve ser entendida como relação no ser, relação do ser, maneira de ser e não mera relação entre dois termos que se poderia conhecer adequadamente por meio de conceitos, porque eles teriam uma existência efetivamente prévia e separada. (Simondon 21, p.23-24)

Para resumir, o conceito de transindividual é definido a partir de duas teses

filosóficas que traçam uma linha clara de demarcação com respeito à tradição metafísica

ocidental:

1) primado do processo de individuação sobre o indivíduo;

2) primado da relação sobre os termos da relação.

Transindividual é, então, o nome do sistema metastável que dá ocasião às

individuações psíquica e coletiva, trama de relações que atravessa e constitui os indivíduos

e a sociedade, interditando metodologicamente a substancialização daqueles ou desta:

“a sociedade – escreve Simondon – não surge realmente da mútua presença de muitos

indivíduos, mas tampouco é ela uma realidade substancial que deveria ser superposta aos

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seres individuais e concebida como independente deles” (Simondon 21, p.177).

Trata-se, como escreve Balibar, de “uma ambiciosa tentativa de definir

uma estrutura das ciências humanas através da crítica [às] doutrinas metafísicas da

individualidade, que conduzem ao clássico dualismo interno e externo, ao conhecimento

a priori e a posteriori, ao ‘psicologismo’ e ao ‘sociologismo’”. Tais doutrinas, continua

Balibar, “têm sempre subordinado a compreensão da individuação (ontogênese) à

definição do indivíduo entendido como forma (idealmente) imutável, [enquanto] a física

e a biologia modernas (incluídas algumas disciplinas como o estudo do desenvolvimento

das estruturas cristalinas e a biologia dos processos cognitivos, nos quais a adaptação

à mudança ambiental requer a emergência de novas estruturas) fornecem instrumentos

decisivos para projetar um novo conceito geral de ontogênese, mostrando que as formas

permanentes (que reduzem a energia potencial ao mínimo) são menos importantes nos

processos naturais com respeito aos equilíbrios metastáveis (que requerem um aumento

do potencial de energia que deve ser preservado geralmente na polaridade entre indivíduo

e ambiente)” (Balibar 2, p.112-113).

5. Espinosa e o transindividual

Trata-se, agora, de se perguntar de que modo o conceito de transindividual faz

parte do percurso até aqui proposto. Tal conceito deveria constituir o prolongamento

contemporâneo da teoria espinosana, assim como a teoria husserliana da intersubjetividade

nos forneceu o prolongamento, no século XX, da monadologia leibniziana. A conexão

Espinosa-Simondon não é, de fato, imediata: se se quisesse conduzir um trabalho de

escavação acerca das fontes filosóficas de Simondon, creio que se encontraria o

bergsonismo e a fenomenologia de Merleau-Ponty. O espinosismo não apenas não está

presente como fonte influente, mas é até mesmo explicitamente liquidado por Simondon

como uma posição panteísta, na qual a realidade individual é negada. É, assim, mais

uma vez, à história dos efeitos e a um golpe de força teórico que se deve apelar para

pensar a concepção do transindividual como prolongamento da filosofia de Espinosa,

ou melhor, e mais verossimilmente, para produzir uma reação química entre o texto de

Espinosa e o conceito de transindividual. Este golpe de força foi proposto por Étienne

Balibar, no rastro do projeto althusseriano de repensamento da filosofia marxista através

do pensamento de Espinosa7. Em um ensaio de 1997, com o eloqüente título de Espinosa.

From individuality to transindividuality, ele se propõe não tanto a adaptar a teoria de

Espinosa às formulações de Simondon, mas a “discutir o limite dentro do qual o próprio

Espinosa pode ser considerado um teórico significativo da transindividualidade, ajudando-

nos assim a conduzir esta noção da sua inicial definição negativa (uma doutrina que não é

nem individualista nem holista, assim como não é nem mecanicista nem finalista) a uma

noção mais positiva ou construtiva” (Balibar 2, p.113).

Seguindo este projeto, Balibar delineia três níveis através dos quais pode ser

sondada, na Ética, “a idéia da individualidade como transindividual, ou como processo

transindividual de individuação” (Balibar 2, p.114):

1) a transindividualidade como específico esquema de causalidade;

2) como elemento determinante na construção de sucessivos graus de

individualidade;

3) como conceito latente que articula imaginação e razão.

1) Balibar ressalta que no esquema de causalidade espinosano a complexidade

não constitui um momento derivado, mas que está presente desde a origem:

A concatenação infinita não toma a forma de séries lineares independentes, ou de genealogias de causas e efeitos (A ‘causa’ B que ‘causa’ C que ‘causa’ etc): ela assume o aspecto de uma rede infinita de modos singulares ou existências, de uma unidade dinâmica de atividades modulantes/moduladas (a ação de B sobre cada A é, por sua vez, modulada por alguns C, que são modulados por um D qualquer, etc.). (Balibar 2, p.117)

Isso significa que cada indivíduo é, ao mesmo tempo, ativo e passivo. Ademais,

a essência da causalidade seria “a unidade de atividade e passividade” ou, como sugere

ainda Balibar, “em termos quase matemáticos [...] o ‘diferencial’ entre atividade e

passividade”, uma unidade que “define o conatus individual singular e o relaciona a uma

infinita multiplicidade de outros indivíduos” (Balibar 2, p.119). A transindividualidade,

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aqui, consistiria então no infinitus nexus causarum, naquela ordem por conexão da qual

fala a proposição 7, da segunda parte da Ética.

2) Esse nível de complexidade, definido por Balibar de primeiro grau, que

estabelece uma equivalência entre o conceito de existência atual de um indivíduo e a

pluralidade de relações entre indivíduos diferentes (assim, a impossibilidade de inserir

o indivíduo dentro de uma cadeia causal pensada segundo um modelo simples e serial),

encontra em Espinosa um aprofundamento através da introdução de um segundo grau de

complexidade (justamente nas proposições que se seguem imediatamente à Ética II, 7):

segundo este conceito, o indivíduo é representado como um determinado nível de integração, na medida em que incorpora outros indivíduos (nível de integral ‘mais baixo’) e a si mesmo em formas ou níveis de integração mais altos (Balibar 2, p.119).

Uma representação do segundo grau de complexidade desse tipo comporta,

segundo Balibar, um risco, que consiste no pensar a natureza como hierarquia de formas,

ordens de inclusão dos indivíduos uns nos outros, segundo um modelo que seria, em

última instância, estático (o ponto de vista, em termos espinosanos, da natura naturata).

Ele deve ser entendido, no entanto, dinamicamente (isto é, segundo o ponto de vista da

natura naturans), pensando que os indivíduos, como formas dadas com uma estabilidade

e identidade, são na realidade o efeito “de uma contínua regeneração das partes

constituintes do indivíduo, isto é, [de] um ‘fluxo’ em direção ao interno e ao externo”

(Balibar 2, p.122):

A idéia de Espinosa é simples, mas audaz: aquilo que muda são partes do indivíduo em questão, ‘regeneração’ significa que um dado indivíduo (chamemo-lo ‘Eu’) abandona continuamente parte(s) de si, enquanto ao mesmo tempo continuamente incorpora parte(s) de outros (chamemo-los ‘esses’), mesmo que esta substituição deixe uma certa ‘proporção’ (ou essência) invariada. [...] Quanto mais um indivíduo é complexo, tanto mais relações empreenderá com o mundo externo; isto é, quanto mais intensamente trocar as próprias

‘partes’ com outros indivíduos (semelhantes ou diferentes), tanto mais estas trocas se tornarão necessárias para a preservação de sua existência. (Balibar 2, p.122-126)

Isso significa que cada indivíduo existe entre um nível inferior e um nível

superior (as partes que o constituem e o ambiente do qual faz parte):

Por essa razão – escreve Balibar – falei de um ‘segundo nível de complexidade’ na compreensão da causalidade natural, porque o modelo transindividual do qual nós nos ocupamos não é apenas entendido como uma interação horizontal ou reciprocidade ao mesmo nível, mas também como um processo de interação que, para cada tipo de indivíduo [...], regride ao nível inferior e simultaneamente progride ao nível superior. (Balibar 2, p.127)

Aqui, o sentido da transindividualidade encontrado por Balibar em Espinosa

se aproxima do conceito simondoniano segundo o qual o indivíduo é uma realidade

relativa, efeito de um processo de individuação que, de um lado, não exaure o potencial

do pré-individual, e de outro, não dá lugar ao individuo isolado, mas ao par indivíduo-

ambiente.

3) Esse segundo grau de complexidade abre espaço ao tratamento do mundo

humano e especificamente ao conceito de transindividual como mediação entre imaginação

e razão. Balibar mostra, em primeiro lugar, como tanto a estrutura da imaginação quanto

aquela da razão são essencialmente transindividuais. Sobre a imaginação Balibar

escreve:

pode-se sugerir que 1) a teoria da imaginação de Espinosa não é uma teoria sobre faculdades humanas (individuais ou genéricas, tais como a memória, a percepção, a vontade, etc.), mas sim da estrutura na qual os indivíduos ‘eles mesmos’ são constituídos primariamente (e que inclui autoconsciência, reconhecimento de si, auto-afirmação); e 2) que essa estrutura é originariamente relacional ou transindividual: isso não apenas nos coloca diante de

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uma imagem da consciência na qual cada relação que ‘eu’ posso ter ‘comigo mesmo’ é mediada pelo Outro (mais exatamente por uma imagem do Outro), mas mostra também que a vida da imaginação é um processo circular de ‘identificações’ sucessivas, no qual eu identifico o Outro a partir de mim mesmo, e eu mesmo a partir do outro (Balibar 2, p.132).

Passando a analisar o conceito espinosano de razão, Balibar nota como esta é

apresentada não como uma faculdade (muito menos uma inspiração divina ou uma essência transcendente), mas como uma estrutura ou um sistema de implicações recíprocas nas quais, para cada indivíduo, o conatus, para preservar a própria existência, comporta o conhecimento do próprio bem [...] e a instituição necessária de um commercium com outros homens(Balibar 2, p.135).

Dada a constituição relacional da imaginação e da razão, Balibar propõe

considerar a transindividualidade não como um modelo rígido (ou como dois modelos

contrapostos), mas como um processo no qual as relações entre os indivíduos “são

consideradas na transição da imaginação à razão, isto é, de um poder de agir menor a um

maior” (Balibar 2, p.139). Este terceiro nível de leitura do pensamento espinosano através

do conceito de transindividual mostra, então, como “um novo tipo de conhecimento [é],

por sua verdadeira natureza, um novo tipo de comunidade” (Balibar 2, p.139)8.

6. Mônada e modo

Uma vez mostrado o contexto de emergência do conceito de transindividual e

a ocasião do seu encontro, através de Balibar, com o pensamento espinosano, é possível

tentar enfrentar a questão da alternativa Espinosa/Leibniz lida através dos dois modelos

teóricos da intersubjetividade e da transindividualidade, e assinalar, de maneira forte, a

distância que os separa. Certamente poderia, ao contrário, ser operada – e o foi muitas

vezes na história das interpretações – uma leitura de cunho individualista, monadológico,

por assim dizer, dos modos.9 Uma vez recusada uma interpretação acosmista à la Hegel,

poder-se-ia sentir-se tentado a pensar o modo espinosano como um indivíduo que

preexiste e que funda as relações. Em particular, a essência do ser humano seria definida

pela díade mente-corpo, cujas propriedades fundamentais seriam o desejo, a alegria e a

tristeza. O modo, como a mônada, teria então uma essência que precede a existência, que

constituiria o fundamento do jogo relacional. Claro, em Espinosa, como em Husserl, não

haveria harmonia preestabelecida, o jogo relacional seria aberto, mas em todo caso entre

indivíduos que precedem logicamente a relação. Neste horizonte teórico, as paixões nada

seriam além de variações possíveis de uma essência. Argumento apenas aparentemente

contrário, mas na realidade favorável a uma interpretação deste tipo, é a ênfase colocada

por alguns intérpretes franceses (Matheron, entre outros (cf. Matheron 13, p.151-156))

sobre a teoria espinosana da imitação afetiva. De fato, Montag mostrou justamente que

esta teoria [...] não exclui, de modo algum, a noção de indivíduos originariamente dissociados que permanecem dissociados mesmo na sua imitação dos afetos dos outros. Com efeito, o texto de Espinosa fornece o fundamento para uma leitura segundo a qual a imitação dos afetos não seria outra coisa que um ato de projeção que requer apenas que eu imagine que o outro sinta prazer ou dor, de modo que eu imite aquilo que imagino que seja o sentimento do outro. Esta é precisamente a definição de simpatia dada por Adam Smith na primeira parte da Teoria dos Sentimentos Morais, capítulo I. Para Smith, não há atravessamento do limite que me separa dos outros; eu não posso nunca saber o que experimenta um outro homem, ou se experimenta alguma coisa. A simpatia permanece interna àquilo que Smith chama o ‘espectador’: este imagina aquilo que ele mesmo experimentaria ou experimentou em circunstâncias similares à do outro. Para Smith, a rigor, a simpatia não requer nem mesmo a existência do outro. É-me possível experimentar piedade com relação ao morto, dado que não há comunicação ou transferência de sentimento ou afeto através da infinita distância que me separa dos outros, mas apenas uma projeção de mim mesmo.(Montag 14, p.76)

Em outras palavras, a imitação afetiva constituiria, em um plano ontológico,

aquilo que em um plano metodológico é, em Husserl, a apresentação analógica do alter

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ego: a ponte entre os indivíduos é erguida a partir da projeção de uma interioridade em

modo analógico (não é por acaso que Husserl usa aqui, mesmo que com extrema cautela,

o termo empatia, Einfühlung).

Todavia, a leitura do modo à luz do conceito e mônada, mesmo sendo provisória,

é extremamente problemática. Tomemos, em primeiro lugar, o escólio que encerra o

pequeno tratado de física da segunda parte da Ética, o qual desvincula o conceito de

indivíduo corpóreo de qualquer forma de substancialidade, colocando o principium

individuationis em uma determinada proporção (certa ratio) de movimento e de repouso

das partes que entram no processo de sua composição e de sua regeneração na relação

com o ambiente:

Vemos, assim, em que proporção um indivíduo composto pode ser afetado de muitas maneiras, conservando, apesar disso, sua natureza. Até agora, entretanto, concebemos um indivíduo que se compõe tão-somente de corpos que se distinguem entre si apenas pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão, isto é, que se compõem de corpos mais simples [ex corporibus simplicissimis componitur]. Se, agora, concebemos um outro indivíduo, composto de vários indivíduos de natureza diferente, veremos que também ele pode ser afetado de muitas outras maneiras, conservando, apesar disso, sua natureza. Pois, como cada uma de suas partes compõe-se de vários corpos, cada uma delas poderá, portanto [...], sem qualquer mudança de sua natureza, mover-se ora mais lentamente, ora mais velozmente e, como conseqüência, transmitir seus movimentos às outras partes, ora mais lentamente, ora mais velozmente. Se concebemos, além disso, um terceiro gênero de indivíduos, compostos de indivíduos do segundo gênero, veremos que também ele pode ser afetado de muitas outras maneiras, sem qualquer mudança de forma. E se continuamos assim, até o infinito, conceberemos facilmente que a natureza inteira é um só indivíduo, cujas partes, isto é, todos os corpos, variam de infinitas maneiras, sem qualquer mudança do indivíduo inteiro.(Espinosa 4, II, lema 7, esc., p.102; trad. it., p.139; trad. bras.103-105)

O escólio atraiu a atenção da crítica pelo referimento espinosano aos corpora

simplicissima e à natureza entendida como indivíduo total. Na minha opinião, trata-se

de Holzwege, de caminhos que não levam a lugar algum: em outras palavras, trata-se

de termos-limite ou, para usar uma terminologia espinosana, de auxilia imaginationis,

aos quais, realmente, não corresponde qualquer realidade ontológica. Parece-me claro

que Espinosa não está dizendo que existem infinitos níveis de existência de indivíduos

entre os corpos simples e a natureza entendida como indivíduo no seu conjunto, mas que

existem infinitos níveis de existência de individualidades de complexidade crescente tout

court, e a natureza consiste precisamente nestes infinitos níveis de complexidade, e não

pode ser reduzida nem ao infinitamente pequeno nem ao infinitamente grande (a rigor,

com efeito, nem os corpora simplicissima nem a natureza como totalidade podem ser

entendidos como indivíduos em sentido espinosano).

A um olhar superficial, o escólio poderia remeter a alguns célebres parágrafos

da Monadologia:

64. [...] cada corpo orgânico de um vivente é uma espécie de Máquina divina ou de Autômato natural, excedendo infinitamente todos os autômatos artificiais, porquanto uma máquina feita pela arte do homem não é máquina em cada uma das suas partes. Por exemplo: o dente de uma roda de latão tem partes ou fragmentos que já não são, para nós, algo artificial, e relativamente ao seu uso nada possui de característico da máquina a que a roda se destinava. As máquinas da Natureza porém, ou seja, os corpos vivos, são ainda máquinas nas suas menores partes, até ao infinito. Eis o que distingue a Natureza e a Arte, que dizer, a Arte Divina e a nossa.65. E o Autor da Natureza pôde executar este artifício divino e infinitamente maravilhoso, por ser cada porção da matéria não só divisível até ao infinito [...], mas estar ainda atualmente subdividida sem fim, cada parte em partes, tendo cada uma delas movimento próprio. De outro modo seria impossível poder cada porção da matéria exprimir todo o universo.66. Isto revela a existência de um mundo de criaturas, de viventes, de animais, de Enteléquias e de almas na mais ínfima porção da matéria.

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67. Cada porção da matéria pode ser concebida como um jardim cheio de plantas e como um lago cheio de peixes. Mas cada ramo de planta, cada membro de animal, cada gota de seus humores é ainda um jardim ou um lago. (Leibniz 12, §64-67, p. 618; trad. it., p. 463-464).

Entretanto, se se analisam as duas passagens com atenção, não se pode deixar

de destacar que em Leibniz há uma analogia estrutural entre os diferentes níveis de

individualidade (as metáforas do lago e do jardim exprimem precisamente isto), enquanto

em Espinosa a complexidade do nível superior não guarda qualquer analogia estrutural

com a do nível inferior: ela constitui, antes, a emergência de um grau de individualidade

que não estava contida previamente nos graus de individualidade que entraram na sua

composição.

A diferença aparecerá com total evidência lendo-se este parágrafo da

Monadologia:70. Assim se vê ter cada corpo vivo uma Enteléquia dominante, que no animal é a alma, mas estarem os membros deste corpo vivo cheios de outros viventes, plantas e animais, cada qual, ainda, com a sua Enteléquia ou a sua alma dominante.(Leibniz 12, §70, p.619; trad. it., p.464).

Em Leibniz, o corpo, a vida é comandada por uma hierarquia de formas cujo

nível (isto é, a posição na escala hierárquica do ser) é dado de uma vez por todas, ainda

que o fluxo perpétuo dos corpos torne impensável que uma alma tenha uma verdadeira e

própria posse de seres viventes de ordem inferior (Leibniz 12, §71, p.619; trad. it., p.464);

em Espinosa, ao contrário, a mente não é, de fato, a forma do corpo, não é a reductio ad

unum da pluralidade da matéria, ela é o corpo mesmo, mas expresso segundo um atributo

diferente: isto significa que as mentes devem ser pensadas segundo o mesmo modelo

dos infinitos níveis de complexidade através do qual Espinosa descreveu a estrutura dos

corpos, pelo menos como impõe a proposição 7 da segunda parte da Ética. O indivíduo

mente-corpo, então, não é pensável como uma mônada fechada, mas como um composto

de indivíduos que, por sua vez, entra na composição de indivíduos de nível superior:

qualquer nível que se escolha considerar, encontrar-se-á sempre o indivíduo como

momento duplamente provisório entre dois níveis de individualidade, ou seja, para usar a

terminologia de Simondon, encontrar-se-á que o indivíduo é, na realidade, posterior com

respeito ao processo de individuação que o constitui enquanto tal.

Para retornar ao confronto com Leibniz através do tema das relações, pode-se

colocar em relevo que a teoria da harmonia preestabelecida impõe que cada determinação

extrínseca seja fundada sobre uma determinação intrínseca, ou seja, que cada relação

exterior seja fundada em uma propriedade da mônada, seja um estado interno da mônada

(e cada estado é infinitamente complexo porque deve exprimir todo o inter-individual em

nível intra-individual), em Espinosa, cada determinação intrínseca é, na realidade, fundada

sobre um complexo jogo de determinações extrínsecas (o que não significa, contudo, que

as determinações extrínsecas possam conter antecipadamente a determinação intrínseca),

ou seja, cada propriedade de um indivíduo é produzida pelo complexo jogo de relações

que constituiu sua individualidade. Neste sentido, parece-me dotada de todo o sentido a

contraposição mônada/modo, lida através das lentes contemporâneas da contraposição

entre intersubjetividade e transindividualidade.

7. Paixões: não propriedades, mas relações

Trata-se, agora, de tentar mostrar como a aplicação do modelo da

transindividualidade torna possível uma leitura nova da teoria das paixões de Espinosa,

entendendo estas últimas não como propriedades de uma natureza humana supra-histórica,

mas como trama transindividual que constitui formas de individualidade que são, em

última instância, históricas.

É verdade que em respeito ao mos geometricus da Ética e de algumas formulações

de Espinosa, poder-se-ia sentir a tentação de ler as paixões na teoria espinosana como

propriedades10, ou seja, como denominações intrínsecas, características da essentia intima

da natureza humana tomada separadamente de todo o resto. Mas se pode realmente tomar,

na ontologia espinosana, uma realidade separadamente de todo o resto? Pode-se mesmo

entender de modo técnico a paixão como proprietas, ou seja, como aquilo que é proprium

a uma essentia que precede as relações e as circunstâncias existenciais?

Em uma recente tradução do Tratado Político, Paolo Cristofolini propôs uma

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tradução extremamente densa de significados para uma locução freqüente na escrita de

Espinosa: “passionibus obnoxius”. Dever-se-ia traduzir literalmente por subjugados,

submetidos, sujeitos às paixões; Cristofolini nota que “a palavra latina obnoxius contém,

entretanto, o duplo significado particular daquilo que causa dano e daquilo que invade ou

permeia”, e então propõe, sob escolta de um modelo de tradução leopardiana de Epicteto,

traduzir tal expressão por “atravessados pelas paixões”. A partir desta tradução pode-se

tentar pensar as paixões não como proprietates de uma natureza humana genérica, dada

de uma vez por todas, mas como relações que atravessam o indivíduo, constituindo a sua

dimensão social e histórica.

Seria apenas o caso de repetir que o indivíduo para Espinosa não é nem

substância nem sujeito (nem ousia, nem hypokeimenon), é uma relação entre um exterior

e um interior que se constituem na relação (ou seja, não existe a interioridade absoluta

do cogito diante da exterioridade absoluta do mundo do qual o corpo próprio é parte).

Essa relação constitui a essência do indivíduo, que nada mais é do que a sua existência-

potência; não se trata, no entanto, de uma potência dada de uma vez por todas, mas de

uma potência variável, justamente porque a relação que constitui o interno e o externo é

instável e não dada de uma vez por todas. Ora, as paixões não são as propriedades de uma

natureza humana dada, propriedades que existem antes do encontro e que são de algum

modo ativadas por este, mas são as relações constitutivas do indivíduo social: o lugar

originário a partir do qual agem as paixões não é a interioridade, mas o espaço entre os

indivíduos, dos quais a interioridade mesma é um efeito histórico. Claro, Espinosa define

o desejo, a alegria e a tristeza os três afetos primários11: poder-se-ia, então, entender esses

afetos primários como propriedades fundamentais da essência humana, propriedades que

antecipam os encontros produzidos pelas relações indivíduo-ambiente e recebem diferentes

matizes com base nestes. Na realidade, se estes afetos são primários com respeito ao

indivíduo, não o são se se coloca do ponto de vista da causalidade imanente, que dá lugar

ao indivíduo enquanto connexio singularis, entrelaçamento singular. Em tal perspectiva,

os afetos primários nada são além de elementos abstratos antes de entrar em relação; mas

não apenas, pois eles não podem sequer existir em estado puro, elementos originários de

cuja combinação nascem todos os outros; eles existem apenas nas infinitas metamorfoses

que as relações com o exterior lhes impõem: ódio, amor, esperança (segurança / gáudio),

medo (desespero / remorso), etc. E, além disso, não se pode nem mesmo falar de um afeto

singular como relação transitiva a um objeto12, uma vez que, por efeito da causalidade

imanente, que no âmbito do finito se mostra como nexus causarum, entrecruzamento de

causas, cada afeto é sempre sobredeterminado por outros.13

Assim, as paixões não podem ser pensadas através da categoria de propriedade,

da inerência de um predicado a um sujeito, mas como complexa trama de relações. Como

escreve de maneira perfeita Montag,

a imaginação, que de certo modo faz a mediação entre o interno e o externo, entre o si mesmo e o outro, agindo como canal entre o meu corpo considerado como uma coisa singular e outros corpos igualmente singulares, dá ádito a uma imitação imediata que não é tanto uma duplicação do afeto de uma pessoa na outra, mas [...] uma perpetuação ou persistência de afeto sem a mediação da pessoa. O afeto, portanto, não resulta contido em mim ou nos outros, mas entre nós.(Montag 14, p.77).

Dessa forma, a trama da vida afetiva existe entre os indivíduos e os constitui

enquanto tais. Isso significa que não se dá qualquer espelhamento interior do outro, da

mônada do outro na minha mônada, precisamente porque o outro é aquilo do que somos

entretecidos.

8. Conclusões

Através deste longo percurso histórico e teórico, buscou-se observar a oposição

Espinosa-Leibniz segundo uma perspectiva que não se limitasse a repetir a fatigada

canção hegeliana da dialética Um-Muitos, mas, antes, que procurasse desentranhar dela

toda força e atualidade. O que parece ter emergido em termos de resultados filosóficos a

partir desse percurso é o fato de que a retomada husserliana da monadologia em termos

transcendentais se encontra diante de um definitivo malogro, o da inatingibilidade do

Outro pela consciência: a intersubjetividade ou é metafísica ou nada é (e, assim, o

modelo mais rigoroso de intersubjetividade vem a ser aquele leibniziano). De fato, a

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Vittorio Morfino

intersubjetividade transcendental introduz sub-repticiamente um conceito de harmonia

metafísica sem o qual o eu e o alter não podem pertencer ao mesmo tempo, ao mesmo

mundo. De que maneira o modelo da transindividualidade permite evitar esse malogro?

Ele o evita justamente porque o outro não está para além da cercadura fechada do ego,

mas está já e sempre no ego (e, claro, em uma tal perspectiva, a própria contraposição

ego-alter nada mais é que a substantificação de uma função gramatical), o atravessa,

o constitui enquanto tal como trama complexa de corpos, paixões, idéias, palavras,

trama complexa de temporalidade não redutível à contemporaneidade essencial de uma

comunidade.14 Como escreve Lucrécio em um esplêndido verso que me apraz pensar que

tenha inspirado Espinosa:

Inter se mortales mutua vivunt. ( De rer. Nat., II, 76)

Intersubjectivity and transindividuality from Leibniz and Spinoza

Abstract: One of the greatest persistent misunderstanding around leibnizian philosophy is to think it as a sort of spinozism. Likewise, every attempt to show Leibniz and Spinoza as opposed to each other do not surpass the hegelian interpretation, according to which both philosophies are seen as antagonism between universality and individuality. Our aim is, on the contrary, to contrast one philosopher to another in respect to the matter of individuality and their relations to the XXth Century thinking: on the one hand, the husserlian intersubjectivity as the philosophical continuation of the Monadology; on the other hand, the simondnian concept of transindividuality, which upon the developments of Balibar turns the spinozian thought possible to be continued in contemporaneity. We intend to show the distance that keep both systems away one from another by means of an interpretation that do not simply repeat the old hegelian refrain.Keywords: Spinoza, Leibniz, transindividuality, intersubjetivity.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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8. HICKS, G.D., “The ‘modes’ of Spinoza and the ‘monads’ of Leibniz”, Proceedings from Aristotelian Society, 24, 1918, pp. 329-362.

9. HUSSERL, E., Cartesianischen Meditationen, in H, Bd. I, hrsg. von S. Strasser, 1950 (trad. it. de F. Costa, Milano, Bompiani, 1994).

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11. LEIBNIZ, Die philosophischen Schriften, Bd. 3. Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols., Berlin, Halle: 1949-63; reimpressão Hildesheim, 1962.

12. ________, Monadologia, Die philosophischen Schriften, Bd. 6. Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols., Berlin, Halle: 1949-63; reimpressão Hildesheim, 1962. (trad. it. de M. Mugnai - E. Pasini, in Scritti filosofici, vol. 3, Torino, Utet, 2000).

13. MATHERON, A., Individu et communauté chez Spinoza, Paris, Les éditions du minuit, 1988.

14. MONTAG, W., “Chi ha paura della moltitudine?”, Quaderni materialisti, 2, 2003.15. MORFINO, V., “Il manoscritto leibniziano ad Ethicam”, Quaderni materialisti, 2,

2003.16. ___________, “Introduzione” a Louis Althusser, L’unica tradizione materialista:

Spinoza, Milano, CUEM, 1998, p.7-35.17. ___________, “Ontologia della relazione e materialismo della contingenza”,

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Vittorio Morfino

Oltrecorrente, 6, 2002, pp. 129-144.18. ____________, “Temporalità plurale e contingenza: l’interpretazione spinoziana di

Machiavelli”, Etica e politica, vol. VI, no. 1, 2004.19. PACI, E., Il problema della monadologia da Leibniz a Husserl. Per una concezione

scientifica e umana della società, Milano, Unicopli, 1978.20. PIRO, F., Varietas identitate compensata. Studio sulla formazione della metafisica di

Leibniz, Napoli, Bibliopolis, 1990.21. SIMONDON, G., L’individuation psychique et collective à la lumière des notions de

Forme, Information, Potentiel et Métastabilité, Paris, Editions Aubier, 1989.22. STEIN, L., Leibniz und Spinoza, Berlin, Reimer, 1890.

NOTAS:

1 Com efeito, nas Lições sobre a história da filosofia, Hegel repete quase literalmente a opinião de Leibniz: “A filosofia de Leibniz é metafísica que, em resoluto contraste com a simples substância universal de Espinosa, na qual todo determinado é apenas uma transição, coloca como fundamento a pluralidade absoluta das substâncias individuais que, seguindo o exemplo dos antigos, ele denomina mônadas, expressão já empregada pelos Pitagóricos.” (Hegel 6, p. 238-39; trad. it., p. 187).2 Cf., p. ex., Ludwig Stein que, no seu célebre livro sobre o espinosismo de Leibniz, afirma que a teoria das mônadas constitui o pólo metafísico oposto da teoria espinosana da substância única (Cf. Stein 22, p. 21-22).3 Cf., obviamente, G. Friedmann, op. cit., mas também as belas fichas de F. Piro (Piro 20).4 Trata-se de um “respectivo mundo-ambiente conhecido com seu horizonte próprio de objetos não conhecidos, que estão ainda por obter, previamente antecipados com esta estrutural formal de objeto” (Husserl 9, p.102; trad. it. p.94 ).5 É exatamente a semelhança daquele corpo – que entra no meu domínio primordial – com o meu que faz dele “um outro corpo” (Husserl 9, p.140; trad. it. p.131 ).6 Em um texto de 1978, Paci, dentro de uma tentativa conjugar fenomenologia e marxismo, propõe que se interprete a harmonia intermonádica em sentido performativo: “Em Husserl [...] há a tentativa de ver e de fazer de modo que, como eu sou claro à minha vida pessoal, que vivo em primeira pessoa, assim também deveria me ser clara a vida em primeira pessoa que o outro vive. Apenas eu vivo em primeiro pessoa aquilo que me acontece, e só tu vives em primeira pessoa aquilo que te acontece, mas eu poderia identificar-me de tal maneira contigo, que poderia sentir aquilo que você sente, e você aquilo que eu sinto, e juntos poderíamos encontrar em nós um mundo e um acordo mais rico para

ambos. Se isto fosse aplicado a todas as religiões e a todas as ciências, seria fornecido um vasto panorama enciclopédico, mas que não seria compilado e adquirido segundo esquemas exteriores e nocionais, mas que seria vivido em primeira pessoa por todos os homens” (Paci 19, p. 102-103). E além do mais: “Uma pessoa, nos seus relacionamentos com as outras, é portadora de todo aquele desenvolvimento que começou na natureza material, que prosseguiu na natureza animal e que culmina na natureza social, em uma visão histórica, positiva e teleológica, da humanidade, na qual todos realizam a própria personalidade em acordo com os outros, e sem destruí-los. Deste modo, a harmonia, que para Leibniz era preestabelecida desde o início do desenvolvimento, e que aqui se coloca como escopo ao final da evolução, liga-se ao problema do espaço, do tempo e da história” (Paci 19, p. 158). E ainda: “[...] se refazemos em nós mesmos o processo da comunhão e da compreensão intersubjetiva, e se eu em um mundo, junto com outros em outros mundos, conseguimos reconhecer algo que forma, por exemplo, a classe operária e a burguesia, e nós conseguimos entender por que elas estão uma contra a outra e conseguimos quebrar todos os elementos que impedem o recíproco reconhecimento entre os sujeitos, tendemos a um mundo que provavelmente não se alcançará nunca na sua perfeição, mas que é significativo para a vida das pessoas” (Paci 19, p. 160). Enfim: “[...] é uma harmonia que para Leibniz era preestabelecida por Deus, enquanto para nós é aquilo em direção ao qual devemos nos mover, é aquilo que devemos conquistar continuamente, porque sabemos que se trata de uma harmonia que vai sempre além daquilo que alcançamos e daquilo que queremos alcançar, para dar significado à vida e à história. E intencional quer dizer também que tem uma práxis, e que não é indiferente à associação e ao acordo, nem àquela sociedade comunista que é um guia e que está viva [...], porque todo o mundo tende a este tipo de comunismo como harmonia que é, justamente, o significado de todo o universo” (Paci 19, p. 167). É evidente o paralogismo de Paci na substituição do significado teorético-epitesmológico da harmonia por aquele ético-político.7 Sobre a importância e a presença de Espinosa na obra de Althusser, cf. minha “Introduzione” a Louis Althusser, L’unica tradizione materialista: Spinoza (Morfino 16).8 Deve-se dizer que Balibar acrescenta: “acho isso provável, mas não estou seguro de que possa ser completamente provado pelo texto da Ética” (Balibar 2, p. 139).9 Este tipo de leitura reaparece em muitas retomadas na história da crítica. A tentativa mais sistemática é, sem dúvida, aquela de Hicks, que indica fortes analogias entre o modo e a mônada com respeito à individualidade entendida como atividade (“de fato, Leibniz tem sido amplamente utilizado para tornar explícito o que está mais ou menos implícito na Ética. [...] A atividade, então, sobre a qual Leibniz coloca muita ênfase como constituindo a essência da individualidade foi igualmente reconhecida por Espinosa; e foi, de fato, não menos fortemente enfatizada por ele”; (Hicks 8, p. 345-

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Cadernos Espinosanos XVII

348)), aos estados de desenvolvimento das várias formas de individualidade (“apesar de Espinosa não ter desenvolvido em detalhe sua concepção dos diferentes estágios dos [seres] animados, só com muita ingenuidade não se veria que ele estava, na prática, distinguindo os estágios que Leibniz descreve” (Hicks 8, p. 351)), e enfim, à relação que liga o indivíduo finito a Deus (“Ao desenvolver sua teoria das mônadas, Leibniz estabeleceu como seu alvo resgatar a filosofia daquela destruição da existência individual que a ele parecia estar implicada na metafísica de Espinosa. Contrapondo-se a Espinosa, ele assumiu como sua a posição de que apenas o indivíduo enquanto tal era o verdadeiramente real. Mas se alguém escruta mais de perto a concepção de individualidade, tal como foi desenvolvida por Leibniz, terá logo razões para suspeitar que a concepção não agüentará o peso que ele gostaria de impor-lhe. A característica absolutamente essencial à individualidade, como ele a vê, é a limitação, negação, passividade. Energia ou atividade puras e ilimitadas pareciam [...] a Leibniz incompatíveis com a noção de ser real. O que quer que seja, deve ser limitado” (Hicks 8, p. 356)).10 Lidei com tal questão em “Ontologia della relazione e materialismo della contingenza” (Morfino 17).11 “(…) Afora esses três, não reconheço nenhum outro afeto primário. De fato, demonstrarei, no que se segue, que desses três provêm todos os outros.” (Espinosa 4, III, prop. 11, esc., p. 149; trad. it., p. 181; ed. bras. p. 179). 12 A relação mesma que liga um sujeito e um objeto não tem qualquer universalidade, como sublinha o próprio Espinosa: “Homens diferentes podem ser afetados diferentemente por um só e mesmo objeto, e um só e mesmo homem pode, em momentos diferentes, ser afetado diferentemente por um só e mesmo objeto.” (Espinosa 4, III, prop. 51, p. 178; trad. it., p. 208; ed. bras., p. 221).13 Para uma detalhada análise desta sobredeterminação, cf. ainda o meu “Ontologia della relazione e materialismo della contingenza” (Morfino 17, p. 140-141).14 Sobre a multidão como trama complexa de temporalidades, cf. o meu “Temporalità plurale e contingenza: l’interpretazione spinoziana di Machiavelli” (Morfino 18).

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Estamos todos malucos…O sujeito moderno e a falha geológica*

Eduardo Grüner**

Resumo: O artigo visa questionar as posições opostas do Sujeito Pleno cartesiano e do não-sujeito pós-moderno, que pretende criticar as razões do primeiro. O que se omite nessa contraposição é uma corrente de auto-crítica interna à própria modernidade e que permite pensar um Terceiro Sujeito, trágico, falho, produto da violenta história que o faz nascer.Palavras-chave: modernidade, pós-modernidade, Sujeito Pleno, sujeito trágico.

Esta mesa muito pouco redonda chama-se, segundo entendi, Filosofia e Ensaio.

O conceito de ensaio, como se sabe, é uma criação francesa. Mais especificamente, de

Michel de Montaigne, que foi o primeiro em usá-lo, em 1580. Talvez, justamente por

isso, seja praticamente um invento argentino – não achem vocês que há na Argentina

somente um “afrancesado”, são muitos; ou pelo menos, existe uma certa maneira de

praticar a relação entre o ensaio literário, a filosofia e a política que é uma tradição

apaixonadamente argentina. Mas não se preocupem: estamos em San Juan, então não

vou falar de Sarmiento. Nem tampouco, digamos, de Martinez Estrada. Nestas mesmas

jornadas tem gente muito mais capacitada do que eu para falar desse verdadeiro invento

nacional que é o ensaio filosófico-político argentino. Limito-me a constatar, isso sim,

que o ensaio filosófico argentino sempre teve clareza sobre seu irrenunciável caráter

político. Sempre teve clareza, para parafrasear um clássico, de que a filosofia é política

concentrada no pensamento e no discurso. Mas, repito, não vou falar disso. Vou falar um

pouquinho, só para começar, do criador de nosso conceito, Michel de Montaigne.

Não sei se se extraíram as conclusões filosóficas suficientes do fato de

que Montaigne fora um dos primeiros e, certamente, dos mais virulentos, críticos da

* Palestra apresentada no Congresso Internacional de Filosofia que aconteceu em San Juan, Argentina, em Julho de 2007. Tradução de Mariana de Gainza.** Professor Titular de Antropologia da Arte, na Faculdade de Filosofia e Letras (Universidade de Buenos Aires) e de Teoria Política na Faculdade de Ciências Sociais (Universidades Buenos Aires).

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Eduardo Grüner

colonização de América, e por extensão, do racismo propriamente moderno (e o

“racismo”, embora não tenhamos tempo de desenvolver esta idéia agora, é também um

invento moderno), que emergiu como efeito desse “choque de culturas”. E foi também

um dos primeiros em utilizar as sociedades “selvagens” como espelho deformador para os

muitos males que percebia nas “civilizadas”. Mas o fez de uma maneira muito diferente

daquela do muito posterior Rousseau de A Origem da Desigualdade… ou da do Voltaire

das Cartas Persas, ou da de qualquer outro dos cultores do mito do bom selvagem. Estes,

precisamente por sua idealização da sociedade “selvagem”, a tinham, por assim dizer,

despojado de sua corporalidade particular e concreta, para fazê-la entrar no equivalente

geral do paradigma ideológico, essa moeda de troca do Conceito. Com isso – e além de

suas insuperáveis intenções, que são as que pavimentam o caminho que leva aonde já

sabemos – não faziam mais do que repetir, do lado “progressista”, o gesto mais primário

do racismo. Porque é inevitável: eu posso me representar o Outro como uma besta-fera

ou como um anjo e, sem dúvida, para o Outro não será o mesmo; mas em ambos os casos,

o Outro… não é humano.

Montaigne, em sua crítica, faz algo muito diferente. Por exemplo, num dos seus

Ensaios, fala do “canibalismo”. Cristóvão Colombo – que também chegou ao que logo se

chamaria América por ensaio, mas sobretudo por erro – batizou os primeiros indígenas

que encontrou, pertencentes à cultura arawak, como caribes. Dai derivou, por similitude

fônica, a palavra canibal, como sinônimo de antropófago, ou comedor de carne humana.

Pode encontrar-se – entre parênteses – uma referência paródica sobre isto no personagem

de A Tempestade de Shakespeare chamado Caliban – um anagrama óbvio de “canibal”.

Seja como for, o que é certo é que os arawak não são canibais, pela razão simples de que

não existe uma coisa tal como o “canibalismo”: nenhuma cultura se alimenta de carne

humana; o que existe, sim, ou existia em algumas culturas, incluída a arawak, era a prática,

muito ocasional e fortemente sacralizada, da antropofagia ritual exercida com alguns

prisioneiros, e às vezes com o próprio chefe local. Mas o típico procedimento fetichista de

confundir a parte pelo todo gerou, no pensamento racista da época, a equivalência geral

entre “selvagem” e “canibal”. Ora, Montaigne, que adverte perfeitamente a mistificação,

a faz girar em cento e oitenta graus, para dizer que o verdadeiro “canibalismo” é uma

potencialidade permanente no próprio coração da chamada “civilização”, que é a que

realmente está devorando as culturas “selvagens”. As conseqüências filosóficas dessa

metáfora, dizíamos, são enormes. Para começar, o que Montaigne diz – e com isso

pareceria adiantar-se criticamente mais de quatrocentos anos a todas as discussões atuais

sobre o “multiculturalismo” e coisas do tipo – é que o que a civilização ocidental chama

de “Outro”, “alheio”, não é verdadeiramente tal, mas a parte maldita da própria cultura

ocidental, que ela não quer reconhecer como produto de sua própria “selvageria”. Quer

dizer: não uma radical alteridade, não uma espiritual transcendência, mas sim uma bem

material tensão imanente à sua própria lógica, ao seu próprio logos.

Mas, por enquanto, nos interessa outro momento da metáfora. Ao escolher

como referência dela o “canibalismo”, Montaigne – e possivelmente por isso foi sempre

considerado um ensaísta, e não um “filósofo” tradicional – não está no registro do

puro Conceito abstrato, mas no do limite que o corpo põe ao Conceito. Ainda mais: o

corpo despedaçado, pelos dentes, pelas garras, pela fauce e o estômago dos “selvagens”

colonialistas. Ou seja: algo assim como um século antes de Descartes, Montaigne está

“filosofando” sobre um sujeito “moderno” bem diferente ao da incontaminada nuvem

do cogito. E isso me permite chegar – de certo modo contra minha própria vontade – ao

que não terá outra alternativa do que ser, não digo o tema, mas o motivo central destas

notas.

Devemos voltar para o centro da questão, fazer dela a questão central: a questão

do sujeito. Alguma vez nos atrevemos a escrever que estávamos um pouco enfastiados da

obsessão moderna (e também pós-moderna, embora aparentemente pelo lado negativo)

com a subjetividade. Inclusive, em vários lugares, ensaiamos uma decidida defesa da

dignidade do objeto, que tentava – não corresponde a nós julgar com que êxito – resgatar

(quase falamos remir) a matéria objetal de seu destino fetichizado pela lógica (e a

metafísica) não somente do mundo da mercadoria, mas da mercadoria-mundo, que é nossa

“história destinal” na era da (falsa) “globalização”. Tampouco, confessemos, se tratava de

uma idéia particularmente original. De perspectivas tão diferentes quanto a de Heidegger,

advogado de um desocultamento do Ser obturado pelos excessos de uma subjetividade

onipotente que fez dele um “ente entre os entes” (operação de uma metafísica da técnica

que se remontaria às mesmas origens do logos socrático), ou a da (primeira) Escola de

Frankfurt, obcecada com a racionalidade instrumental que montou sua soberbia sobre

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Eduardo Grüner

uma dominação – e, portanto, uma alienação ou distanciamento do humano propriamente

dito – da Natureza, grande parte do pensamento crítico mais profundo do século XX

girou em torno da destruição do universo “objetal” mais primário do Homem, realizada

por esta subjetividade excessiva, esta Hybris “criminosa” do Sujeito. Nem o próprio

Freud é alheio a este impulso crítico: no final, sua célebre declaração Wo Es war, soll

Ich werden (“ali onde Isso era, o Eu deve advir”), longe de ser uma admonição a favor

da pura subjetividade consciente (só poderia entender-se assim de uma perspectiva

esquematicamente cartesiana, que a teoria de Freud desarticula), é um programa de

restabelecimento da relação do sujeito com os objetos (de desejo) do mundo. À sua

maneira e com outra inflexão “filosófica”, isto já estava presente no primeiro Marx, no

Marx chamado de “humanista” (e não é que mais tarde, pace Althusser, tenha desaparecido

plenamente: de outro modo, se fez menos visível nas dobras de outras preocupações,

inclusive “obsessões”). Por exemplo, em todas as suas reflexões a propósito do fenômeno

de uma alienação originária em que a própria “essência” do homem (sua capacidade

de transformar a Natureza para produzir e reproduzir suas próprias condições de vida)

é apropriada ou, ainda mais, seqüestrada pelo alheamento do produto e do processo de

trabalho inteiro na sociedade de classes. Não se trata mais, pois, de um “alheamento”

genérico como simples momento de objetivação do homem em seus produtos, e que

justamente por ser só um momento supõe a colaboração íntima entre homem e natureza.

E o mundo dos objetos – não importa quão opaco, denso e “nauseabundo” seja – é,

certamente, central na obra inteira de Sartre: a atividade nadificadora do sujeito está, por

isso mesmo, indefectivelmente enredada nos objetos, e é só contando com esse “enredo”

que pode acontecer uma ação para-si no mundo do em-si. De maneira semelhante, em

Merleau-Ponty é a relação entre o corpo próprio e o universo objetal que permite uma

abertura “erótica” e fenomenicamente sensível para uma autêntica alteridade. Não há

possibilidade, então, para uma filosofia crítica ativa que se assente pura e exclusivamente

numa subjetividade – não importa quão emancipacionistas sejam suas intenções – que

fique presa no deslize de um idealismo subjetivo que sempre a assedia, e que nos leve de

volta aos impasses cartesiano-kantianos.

Mas, fazer o que? Nosso cansaço pouco importa, a questão do sujeito se repete

(embora seja como farsa), insiste (retornando do reprimido?), ou como se queira dizer.

Por todos os lados, à esquerda e à direita, se procuram sujeitos: para consumir, para

dominar, para transformar o mundo, para fazer a “revolução”, seja o que for. Às vezes – e,

em certo sentido, isso é o pior – simplesmente para continuar tendo objetos de pesquisa e

justificar este ou aquele subsídio das agências acadêmico-estatais. Assim está a coisa.

Abordemos, pois, o assunto mais uma vez, de uma maneira que gostaria de

ser final – e que, previsivelmente, fracassará de novo: de que outro estofo está feita a

continuidade de um pensamento que se pretende “crítico”, a não ser do intermitente

fracasso? Procuraremos, entretanto, nesta nova abordagem, não perder de vista aquele

cansaço, nem aquela defesa de uma matéria – os mais ou menos lacanianos estão

autorizados a suspeitar aqui o assédio do real, a condição de dar-lhe seu justo lugar no nó

com o “imaginário” e o “simbólico” – que deverá voltar por seus direitos (antes de mais

nada, embora não somente, sob a forma de Natureza também redimida): o está fazendo

já – ainda que, como trataremos de mostrar, freqüentemente de maneira perversa –, para

afrontar aquela desmaterialização fetichista do universo. Por trás, ou pela frente, de toda

“busca” do Sujeito deveria estar, pois, a restituição de seu vínculo inalienado tanto com

a História quanto com a Natureza. Esse horizonte de possibilidade só se torna pensável,

entretanto, se partirmos do estado atual e material dos sujeitos “realmente existentes”.

Comecemos, então, com “a questão central” (mesmo que para nós, não essencial)

da maneira mais brutal e mais esquemática possível. O debate entre o pensamento moderno

(pelo menos o “oficial”) e o pensamento pós- (ponha o leitor o que mais lhe agrade

atrás do prefixo e do hífen: “-moderno”, “-estruturalista”, “-marxista”, “-colonial” etc.)

a propósito da questão do Sujeito – deve se escrever com maiúscula, não sem ironizar

sobre a monumentalização que se fez do tema – foi, e é, obturado por um efeito binário,

ou dicotômico, de polarização, que nos momentos mais radicalizados (e midiatizados) do

polemos adquiriu a cenografia de um round de boxe: neste canto, o Sujeito Cartesiano (ou,

pelo menos, uma certa simplificação de suas complexidades, mas cujos efeitos sobre o

pensamento moderno são indubitáveis), sujeito do cogito, sujeito “transparente” diante de

si mesmo, fonte unificada e “monádica” de todo conhecimento e razão, sujeito universal

abstrato, a-histórico, “eterno”, embora desde já, sujeito também – eis sua “modernidade”,

apesar de seu caráter a-histórico – da metódica dúvida, somente limitada pela dupla

certeza do e(r)go sum e da existência do Garante supremo, Deus (concessão à tradição?

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Eduardo Grüner

Não necessariamente: por inúmeras razões, o século XVII europeu ainda não dava espaço

a radicalidades tão extremas quanto, digamos, as de Marx ou Nietzsche, ou sequer as do

“materialismo” de alguns iluministas). Ou seja, para continuar esquematizando – mas isto

se disse tantas vezes que passou a incorporar-se ao núcleo de sua definição –, Sujeito,

por excelência, burguês. E certamente, a especificação transcendental do dito Sujeito

em Kant, junto com outra forma de limite a seu entendimento interposto pelo noumeno,

inaugura mais um “sub-momento” moderno-burguês, aquele de um criticismo que,

entretanto, não por enriquecer decisivamente a dimensão “dúbia” restrita ao máximo no

otimismo cartesiano, deixará de se inscrever na etapa de ascensão daquela subjetividade

“burguesa” – com todas as oscilações “maníaco-depressivas” que se queira no “sub-sub-

momento” Sturm-und-Drang e romântico –, até culminar no “complexo” Estado ético /

Herói histórico hegeliano – isto, sem dúvida, para além ou apesar de Kant, mas não em

outro lado.

No outro canto do ringue, contra o Sujeito “cartesiano” (ao qual podemos dar-

lhe já nosso próprio nome (im)próprio: o Sujeito Pleno), seu rival polar, o Sujeito – e aqui

não somente a maiúscula, mas o próprio significante se torna problemático: que coisa?

Acumulemos, sempre impropriamente, os (in)atributos: “fragmentado”, “disperso”,

“disseminado”, “múltiplo”, “transferido”, “não-identitário”, “rizomático”, “híbrido”,

“deslocado” e via dicendo. A própria indeterminação ou, como se diz, indecidibilidade dos

significantes que poderiam delimitá-lo, é a marca, o rastro de seu permanente deslizamento

ad infinitum, de sua diferência – para dizê-lo em jargão derridiano; inalcançável pela

Palavra, que é por sua vez inalcançada pelo (anterior) Sujeito, este Sujeito que nem sequer

é, por oposição ao pleno, um Sujeito vazio (pois isso suporia no mínimo um buraco na

expectativa de um “conteúdo” que lhe desse forma, quando do que se trata é do menos

abarcável in-forme), e que portanto deveria ser chamado – se para evocar pelo menos sua

ausência se insistir em continuar usando a linguagem (que carrega as conseqüências da

aporia irresolúvel que obriga a nomear aquilo que se pretende negar) – um Não-Sujeito;

a-Sujeito que é exatamente o negativo (e nos privamos por enquanto de brincar com a

idéia de que todo “negativo” pertence, certamente, à imagem fotográfica) do Sujeito Pleno:

pura dúvida des-metodizada, sem Garante algum pois Deus morreu (embora saibamos

que retorna fantasmaticamente e, por isso, mais forte do que nunca), impotente já para ser

fonte de conhecimento e de razão – mas, curiosamente, armado da onipotência de poder

ser qualquer coisa –, sua a-existência (onde a eleição do termo existência não é por acaso:

pelo menos na França, principal pátria adotiva deste não-Sujeito, ele não é somente o

sujeito anti-cartesiano mas também, e mais au jour, o sujeito anti-sartreano) atravessou,

deve reconhecer-se, os avatares da petite histoire : primeiro, mero “suporte de estruturas”

(lingüísticas, ideológicas, de parentesco, míticas, ou o que for), logo – até anteontem –

dissolvido junto com aquilo que supostamente devia suportar. Será este não-Sujeito filho

dileto (até onde for possível, é claro, que um não-existente tenha pai) da Destruktion

“anti-humanista” heideggeriana, transformada em palavra de ordem combativa em

O homem morreu do muito sujeito Foucault? Suspendamos – deixemos em suspense,

queremos dizer – para mais adiante a pergunta, já que neste estádio (trambiqueiramente)

descritivo não poderíamos ainda ter uma hipótese de resposta. Somente se nos permita,

por enquanto, esboçar uma suspeita completamente grosseira (e não poderia ser de outro

modo neste estádio preliminar): não será, este não-sujeito, o ápice do “humanismo” que

pretendeu deixar para trás? Não será que, agora sim, essa onipotência de um não-sujeito

que é pura potencialidade veio, finalmente, a ocupar – no puro imaginário ideológico – o

lugar de Deus? Não terá sido esta, contra seu próprio postulado, a última e mais extrema

tentativa de antropomorfização do real?

Seja como for: o ringue está pronto, os opositores em seus cantos, o sino já

tocou (faz pelo menos três décadas, mas o que é isso senão um instante na história das

idéias?). Segundos fora. Mas, justamente: queríamos falar de – ou melhor: escutar – os

“segundos”. Embora, só em virtude de uma maior claridade expositiva, procuraremos

escutar, como se verá, o que acordaremos chamar de o terceiro: mais especificamente, o

Terceiro Sujeito; aquele que não é nem o Sujeito pleno nem o não-sujeito, sem que por

isso represente uma terceira via (ou posição) entre eles, mas sim uma outra coisa. Mas

ainda não. Retrocedamos, antes, uns passos. Os oponentes, segundo se diz (mas o “se” de

“se diz” não é ninguém: é um air du temps, uma difusa Weltanschauung que, desde já,

pode alcançar impensados cimos – e abismos1 – de sofisticação filosófica), representam

ou são “patrocinados”, respectivamente, pela Modernidade e pela Pós-modernidade.

Mas, é tão evidente que seja uma representação tão linear? Seria ela, aliás, possível?

Não nos ensinou o pensamento pós, precisamente, a impossibilidade da “representação”,

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Eduardo Grüner

assim como a pós-política ou, num outro registro, a pós-estética, nos ensinou – e de forma

realmente mais dramática – a crise da representação? Mas –com o perdão de vocês –

temos que retroceder mais um passo: há alguma coisa que se chame “Modernidade”, à

qual possa se opor em bloco algo chamado de “Pós-modernidade”?

Que se nos entenda: não estamos perguntando mais uma vez – como se fez

com insistência tantas outras vezes – se há uma verdadeira oposição entre uma e outra,

ou se a segunda é a continuidade radicalizada da primeira – em cujo caso se propõe

chamá-la de hiper ou super-modernidade. Não. Estamos perguntando se será verdade

que a modernidade é uma. Porque, como já sabemos, a pós-modernidade é por definição

múltipla. Precisamente, se diz, esta multiplicidade não articulada, este rizoma, é o que

diferencia a pós-modernidade e a opõe à modernidade. Mas, de novo, é tão certo que só

haja uma modernidade, definida pelos grandes relatos lineares, totalizadores, evolutivos

e “progressistas”? Já expressamos em outro lugar o nosso espanto frente ao fato de que

o pensamento crítico pós se submeta com tanta presteza à própria operação ideológica

que pretende combater: quer dizer, à versão oficial de uma modernidade que, como diria

Adorno, apresenta-se a si mesma como harmônica e reconciliada. Também é verdade que

o pensamento pós já não existe, pelo menos em sua versão “forte” – quer dizer, no que

paradoxalmente se chamou de pensamento débil –; derrubou-se (somente para demarcar

taquigraficamente uma data emblemática) em 11 de setembro de 2001, arrastado por esse

fenomenal acontecimento, por esse novo e perverso grande relato que nos devolveu,

nas palavras de Zizek, ao deserto do real, ou à História em seu pior sentido. Mas os

mortos, como se sabe, nunca se vão embora por completo: deixam atrás de si uma esteira

fantasmagórica. E ainda que o pensamento pós esteja hoje esgotado, deixou suas marcas,

entre as quais não é a menor a já-não-existência de algo chamado Sujeito clássico, Sujeito

pleno; não-existência que nos acostumou a dar por descontado ou incorporar como doxa

que o Sujeito morreu. O que implica, com todo o rigor lógico, a sobrevivência (e o triunfo

por nocaute de um dos competidores) daquela confrontação dicotômica (e cósmica, por

assim dizer) entre o Sujeito pleno e o Não-sujeito.

Mas retomando: há pelo menos outra versão, outro relato da modernidade, que

é um relato crítico (e inclusive, autocrítico, pois está construído de dentro da própria

modernidade), que se coloca os antípoda daquela versão “oficial”, mas que não chega à

negação de toda pertinência “modernista”, como a que fez o pensamento pós. Poderíamos

chamá-lo, por comodidade e mais uma vez, o Terceiro Relato. Este relato crítico reconhece

numerosos antecedentes na própria história do pensamento europeu: podemos encontrá-

lo nos inícios dessa época, em Montaigne (inventor, como já dissemos, da palavra e do

conceito de Ensaio para qualificar um novo gênero que ele praticou superlativamente: o

dado, como veremos, não é menor), ou nos Pensamentos de Pascal, ou em Bartolomeu de

Las Casas, na sua maneira, ou em La Bóetie, ou no Abade Raynal, ou em certas regiões

de Espinosa. E inclusive antes – e, casualmente, fora de Europa – na inclassificável

filosofia da história do Ibn Khaldun, ou nas traduções sugestivamente intersticiais do

entre-dois das culturas, em Averroes. E nas origens da cultura ocidental (já voltaremos

abundantemente sobre isto) no pensamento e a literatura trágicos. Mas – por uma questão

de época – explode plenamente entre finais do século XIX e princípios do século XX, nos

nomes daqueles que Paul Ricoeur qualificou, de maneira célebre, como os três grandes

mestres da suspeita: Marx, Nietzsche, Freud. E que um autor que foi reputado como

tipicamente pós e como mentor da morte do Sujeito, Michel Foucault, tenha festejado

quase ditirambicamente a nova e revolucionária hermenêutica inaugurada por essas três

figuras, diz bastante sobre a necessidade de interrogar criticamente a imago apressada

que confronta nossos dois míticos opositores. Mas, seja como for: esta Terceira Versão da

modernidade é a constatação de uma realidade, para dizê-lo rapidamente, dividida contra

si mesma. A modernidade não é nenhuma monolítica unidade, nenhuma indeterminável

disseminação: é uma fratura. Pode ser chamada, simplificando até a caricatura, uma fratura

entre exploradores e explorados (Marx), entre a vontade de poder e o “riso” zaratustriano

(Nietzsche), entre a consciência e o inconsciente (Freud). E ainda haveria que acrescentar

a que é mais difícil de identificar com um nome próprio: a que, entre os séculos XVI e

XX, dividiu o mundo inteiro contra si mesmo, pelo processo de colonização. Quer dizer:

a que fez a modernidade, feitura que o pensamento dominante varreu meticulosamente

debaixo do tapete do progresso unilinear, do qual Benjamin podia dizer sem aporia que,

por ser o progresso dos vencedores da história era, portanto, uma marca de barbárie.

Comecemos por este último ponto – que é o mais antigo, a origem, a arché da

modernidade. Em seu exame se lerá, nas entrelinhas mas sem grandes dificuldades, que

o Terceiro Sujeito da modernidade – nem pleno nem disseminado, mas dividido, para

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dizê-lo á la Freud – é inclusive anterior ao cartesiano, pois está no fundamento histórico

negado deste. Pergunte-se a qualquer professor de história de escola secundária, qual data

ele considera como o início do que se chama “modernidade”. Muitos dirão: a queda de

Constantinopla nas mãos do império otomano. Alguns, mais culturalizantes, arriscarão: a

Reforma Protestante (célebre tese weberiana). Ou dirão: o Renascimento, com a invenção

da imprensa. Sem dúvida, outros muitos, aproximando-se um pouco mais a nosso

argumento, anteciparão: o “descobrimento” de América. Décadas mais, décadas menos, nos

encontramos entre finais do século XV e princípios do século XVI. De acordo. Digamos,

para arredondar: ano 1500. Mas pergunte-se agora a um professor de história da filosofia

pela data de nascimento do sujeito moderno. Quase todos responderão sem vacilação

remetendo ao cogito de Descartes, enquanto algum mais audacioso atrever-se-á a citar

Espinosa ou Hobbes. De qualquer maneira, em meados do século XVII. Digamos, para

arredondar: ano 1650. Conclusão: o sujeito moderno, aparentemente um pouco retardado,

chegou um século e meio mais tarde à modernidade da qual é sujeito: um verdadeiro

excesso de seu tempo de gestação. Sobretudo se levamos em conta que, conforme diz o

princípio individualista-liberal da filosofia moderna “oficial”, são os sujeitos que fazem

a sociedade, e não o inverso. Mas aqui, então, a teoria a que chamaremos de agregativa

(a sociedade é a soma dos indivíduos que a conformam) morde-se aporeticamente a

cauda: nesse caso, não deveria o sujeito moderno preceder à modernidade? Mas fomos

informados por nosso erudito professor de história do pensamento que ele está atrasado

cento e cinqüenta anos respeito dela. E então?

A solução não é muito difícil, desde que se suspenda, outra vez, a premissa

individualista-liberal – e, como veremos, eurocêntrica. Ou melhor, desde que se

inverta a lógica de sua causalidade, adicionando-lhe uma retorção. Como no dispositivo

do fetichismo da mercadoria de Marx, é a sociedade que produz seus sujeitos, mas a

operação ideológica dominante oculta com esmero o processo de produção, e “inventa”

um produto eterno, a-histórico. O Sujeito Pleno (“cartesiano”, “kantiano”, ou como se

prefira) teve que esperar a consolidação igualmente plena de uma nova lógica social,

econômica e política nos países chamados “centrais”, que também conseguiu ocultar a

própria história do surgimento dessa “centralidade” em 1492. E de maneira mais geral,

para ocultar que o ocidente europeu moderno não era uma construção harmônica e

racional feita pelo Sujeito Pleno, mas que o Sujeito Pleno era a alavanca do deslocamento

da emergência conflitante, dilacerada, sangrenta, de uns sujeitos sociais novos em estado

de fratura trágica e violenta. Porque – ainda mantendo as datas emblemáticas assinaladas

por nossos bem clássicos historiadores –, não teríamos uma imago muito diferente da

subjetividade moderna se, eliminando aquele desajuste de um século e meio, fizéssemos

coincidir o nascimento do sujeito moderno com os acontecimentos que sinalizam o

começo da “modernidade”? Assim, se demonstraria, por exemplo, que o sujeito moderno

é o produto de um choque de culturas e de sociedades: entre o Oriente e Ocidente na

queda de Constantinopla, ou das guerras religiosas em relação à Reforma, e do choque de

três civilizações no “descobrimento”, conquista e colonização da América (dizemos três,

porque muito freqüentemente se esquece a ligação íntima entre a exploração da América e

a destruição da África através do tráfico de força de trabalho escrava). Quero dizer, ainda

de um ponto de vista estritamente “filosófico”, não tem mais a ver com o nascimento

do sujeito moderno o debate entre Bartolomeu de Las Casas e Francisco Vitoria sobre o

estatuto da alma, da psyché dos indígenas americanos ou dos negros africanos, que com

a plenitude autônoma e monádica do cogito?

Mas, para completar nossos acontecimentos fundadores, que acontece com

o chamado “Renascimento” (e muito seria necessário discutir sobre esse maltratado

conceito)? Não se dá aí, como costuma acontecer na arte, um tipo de antecipação do

Sujeito Pleno, até mesmo do sujeito da racionalidade instrumental frankfurtiana, através

da invenção da perspectiva, que não somente faz do indivíduo o protagonista, mas que

também permite colocá-lo em primeiro plano, em posição dominante, dotando essa

posição de uma organicidade e harmonia naturais, e tirando de cena a problematicidade

histórica dessa construção? Não é o mérito principal do grande historiador da arte crítica,

Aby Warburg, nos rastros de Nietzsche e de Freud, ter mostrado que esse era um gesto de

repressão do sujeito trágico e profundamente problemático daquela cultura “arcaica” que

agora se pretendia fazer “renascer”, mas somente pelo seu lado apolíneo?

Em todo caso, tanto o Sujeito Pleno dos modernistas “oficiais” como o Não-sujeito

dos pós-modernistas eliminam – por vias opostas mas complementares – a corporeidade

de origem fraturada do sujeito coletivo da modernidade, desse que chamamos o Terceiro

Sujeito (embora seja, cronologicamente, o primeiro). É verdade que os pós-modernos ou

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Eduardo Grüner

os pós-estruturalistas recusam criticamente as pretensões onipotentes do Sujeito Pleno;

mas eles, por sua vez, perdem no caminho o caráter trágico do sujeito, pela troca de sua

plenitude por sua disseminação, dissolvendo assim sua fratura originária e, portanto, sua

violenta historicidade.

Em síntese, estamos todos malucos se acreditarmos que continuaremos nos

arranjando com essa oposição entre o Sujeito Pleno e o Não-sujeito. Escolher um ou

outro dentre eles significaria de novo tomar a parte pelo todo e, assim, imaginar uma

falsa totalidade conceitual e abstrata. O Terceiro Sujeito ou sujeito dividido (em todos

seus campos históricos, não somente no “subjetivo”), nem inteiro nem disseminado, nos

força a nos instalarmos no centro do conflito, da fratura, da falha (como quem diz “falha

geológica”) material e originária. Gostariam de pôr-lhe um nome? Sempre é possível:

seria, para começar, o sujeito dividido da própria Natureza, essa que – como hoje se vê

– foi fraturada até a mais extrema canibalização, e sobre a qual dizia Montaigne, já em

1580, que é a testemunha por excelência da insignificância do homem que, se estimando

com soberbia superior ao resto das coisas, esqueceu os vínculos que o unem à matéria;

é ainda o sujeito dividido “proletário”, claro que sim, embora se pretenda que ele está

“disseminado”, mas que foi na verdade fraturado entre seu em-si e seu para-si, entre

o que se lhe atribuía como sua “missão histórica” e seu dramático esmagamento sob

o regime do Capital; é o sujeito dividido “periférico”, ou “terceiro-mundista” ou “pós-

colonial”, fraturado entre uma “identidade originária” irrecuperável ou possivelmente

só imaginária, e sua identificação impossível com a globalizada totalidade abstrata; é o

sujeito dividido “indígena”, “negro”, “mestiço”, fraturado entre a cor bem distinguível de

seu corpo e a não-cor que é o ideal “branco” de inexistência corporal; é o sujeito dividido

“desempregado”, “marginal”, “migrante obrigado e rejeitado”, “restante”, “descartável”,

fraturado entre seu empenho por recuperar uma não se sabe qual dignidade integrada e

seu caráter de resto desprezado, quando não odiado por ser o espelho antecipador de um

futuro sempre possível da chamada “classe média”; é o sujeito dividido “mulher”, “trans”,

“sexualmente minoritário”, fraturado entre seu desejo de diferença e sua reclamação de

igualdade; é o sujeito dividido “judeu”, “muçulmano”, “ateu”, “panteísta”, e até “cristão”,

fraturado entre o sublime de sua fé ou de sua crença, e o freqüentemente monstruoso de

sua Igreja (porque até os ateus, já se sabe, têm igreja), que permanentemente lhes inculca

o ódio que o universal abstrato tem pelo particular concreto; é o sujeito dividido “cidadão

honesto e preocupado”, fraturado entre sua autêntica concernência quanto ao destino

da polis humana e seu absoluto cansaço e desespero frente à decomposição, a canalhice

assassina ou a imbecilidade que passa por ser a política mundial. Enquanto Aufhebung de

todos eles que, entretanto, não os “sintetiza”, é o sujeito trágico, o sujeito fraturado entre

sua potência heróica e seu destino histórico abjeto.

Mas é este, ainda, um sujeito “filosófico”? Certamente. Mas a condição de

que ensaiemos uma filosofia que esteja a sua altura: uma filosofia igualmente dividida,

igualmente fraturada, igualmente em tensão imanente entre o Conceito e o Corpo.

Uma filosofia, portanto, que não renuncie, como não poderia renunciar, ao Conceito,

mas tampouco a seu sempre renovado fracasso. A seu sempre reconstruído limite

levantado pelas fraturas geológicas do Corpo do sujeito; ou da natureza mesma, da

matéria lamacenta da qual o sujeito emergiu, e segue emergindo. Com essa condição,

podemos até tentar a audácia de dar seu nome a este “terceiro” sujeito: o sujeito falhado.

Sujeito daquela “falha geológica”, mas também, “falhado de fábrica”, como se diz em

espanhol para qualificar o que está constitutivamente mal feito, defeituoso. Não é, como

se vê, o sujeito inteiro, completo, do modernismo “dominante”. Não é tampouco o não-

sujeito disperso, difuso, etéreo do pós-modernismo “des(cons)trutivo”. Não é múltiplo e

indeterminável, é dividido e reconstituível em cada ocorrência histórica, sem que por isso

perca sua fratura constitutiva: a expõe de outra maneira. Não é a alegre e despreocupada

proliferação de diferenças do “multiculturalismo”: é sempre o mesmo, o sujeito da fratura

que se manifesta nas descontinuidades e solapamentos da matéria histórica. E que daí luta

contra aquela abjeção de seu destino à qual o lançou, não seu DaSein ontológico, mas o

Poder de turno. Que seja ou não seja “filosófico” é, certamente, assunto de debate. Mas,

justamente: que outra coisa poderia ser a filosofia, a que nos interessa?

Esse ensaio de debate só pode recriar-se, hoje, sobre novas bases na “periferia”

e, em particular, na América Latina, pois o que costumava chamar-se o “primeiro mundo”

está paralisado (seja por seus próprios interesses ou, no campo intelectual, pelo abandono

da discussão originária sobre o político-cultural corporizado), impedido de continuá-lo.

E, além disso, esse “primeiro mundo” já foi, desde ao menos um século e meio atrás,

bastante atravessado pelo que Aníbal Quijano chamaria a colonialidade do saber, como

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Eduardo Grüner

para estar em condições de redefinir a fundo suas próprias premissas teóricas, filosóficas,

historiográficas, e recuperar algo de sua perdida matéria. Mas certamente, isso não significa

em absoluto que os intelectuais, os “ensaístas filosóficos” latino-americanos, devamos

dar as costas ou jogar pela janela a grande tradição de pensamento crítico produzido na

modernidade européia: precisamente, pela nossa própria história, e até pelas piores razões

dessa história colonial, estamos em situação privilegiada para empreender esse diálogo, o

conflitante e ríspido que for necessário, embora sem a falsa ilusão de poder varrer embaixo

do tapete, magicamente, nossa própria e rasgada genealogia cultural, nosso próprio corpo

“canibalizado”, nossa própria falha geológica. Mas, justamente, devemos assumir essa

fenda, tomá-la como ponto de partida para pensar o mundo a partir de um outro lado,

reinscrevendo em nossa própria “escritura” o que achemos útil (exercendo, como alguma

vez propôs Haroldo de Campos, a agora sim saudável antropofagia de deglutir tudo

aquilo que sirva a nosso metabolismo cultural, vomitando o resto). E, sobretudo, embora

não possamos começar de zero, nos sacudirmos a modorra do filosoficamente correto e

inventar, quer dizer, ensaiar. Seria preciso repetir mais uma vez o canônico dictum de

Simón Rodríguez? Ou inventamos ou erramos. E o pior erro será sempre, não tanto o de

enlouquecer, mas o de perder o próprio corpo.

O sujeito desse “outro lado” – e portanto, o pensamento que possa pensá-lo

também, e sobretudo, em seu ainda-não (para dizê-lo com Ernst Bloch), é, se seguimos

conseqüentemente o esboço que acabarmos de fazer, o do “interstício”. Ou, como

propusemos em outra parte para traduzir o in-between de Homi Bhabha, o sujeito-corpo-

pensamento do linde. Nada a ver – nos apressemos a esclarecer – com a “hibridez” de

um García Canclini por exemplo. Exatamente o contrário: o linde é, acima de tudo, uma

fronteira. E sempre (apesar da insidiosa ideologia da globalização), mas com renovados

brios depois de 11 de setembro de 2001 (que terminou de liquidar o que restava da

realidade da globalização, embora persistam os farrapos de ideologia), as fronteiras não

são arranjos de amáveis síntese interculturais, mas um espaço de conflito e um campo de

batalha: pergunte-se senão aos “costas molhadas”, aos palestinos, aos turcos berlinenses,

aos marroquinos de Melilla, aos tutsies (como antes aos hutus), aos bolivianos de Buenos

Aires, aos saharauies, aos paquistaneses de Londres, aos argelinos da banlieu de Paris,

e assim por diante. Quase nenhum deles tem oportunidade de “negociar” sua identidade

ou sua cultura. Tampouco a tiveram, historicamente, os “ameríndios” nem os “afro-

americanos”. Toda “negociação”, numa situação desigual de poder, não pode ser senão

uma imposição de uma das partes sobre a outra. Outra coisa – da qual muito deveríamos

falar – é que as estratégias de defesa frente a imposição saibam, ou possam, se reapropriar,

“ressignificando-as” (como se diz agora), de fragmentos da identidade ou da cultura perdidas

para com eles produzir alguma “novidade” que permita, mesmo que imaginariamente, não

perder tudo (em termos mais teóricos, trata-se do que Ernesto de Martino teria chamado

uma certa “recuperação”, sob a forma de criação cultural, da crise da presença social).

Mas se trata, insistimos, de estratégias de defesa – e certamente emolduradas e contidas

pelo sócio-metabolismo do Capital –, e não de iniciativas autonomamente produtivas que

suponham autênticas alternativas a esse sócio-metabolismo.

O sujeito que daí surge, “produzido” por essa crise cultural (que, para voltar

para nossos exemplos, pode ter adquirido dimensões históricas apocalípticas, como foi

o caso dos “ameríndios” ou os “afro-americanos”) não pode senão ser, ele mesmo, um

sujeito fraturado. Desse reconhecimento de uma fratura estrutural se deve partir para

teorizar, para criar hipóteses, para conjeturar, e – o mais difícil – para atuar.

We are all crazy... The modern subject and the geological fissure

Abstract: This paper aims to question the opposite positions of the full cartesian subjetct and the non-subject of post-modernity, that intends to criticize the reasons of the first. What is omitted in this opposition is an internal tendency towards auto-criticism in the modernity itself that allow us to think a thid subject, that is tragic and faulty — a product of the violent history. Keywords: modernity, post-modernity, full subject, tragic subject.

NOTAS:

1 N. do T: Trata-se de um jogo de palavras que em português não é reproduzível. No original em espanhol: “impensadas cimas – y simas”; só mudando uma consonante e com idêntica pronúncia, se faz referência a topologias opostas: cumes e depressões ou precipícios.

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Homero Santiago

Três notas sobre a relação entre filosofia e forma textual nos Ensaios de Bacon*

Homero Santiago**

Resumo: Nosso propósito é tratar dos Ensaios de Francis Bacon e de sua significação filosófica a partir da consideração de alguns aspectos de sua forma textual: o inacabamento da obra, a variação de seus fins, suas construções classificatórias. Embora à primeira vista tais características possam sugerir uma fraqueza teórica, em verdade exprimem a formação de um novo ideal de filosofia.Palavras-chave: Bacon, Ensaios, Forma filosófica.

Nosso propósito é tratar dos Ensaios de Francis Bacon e de sua significação

filosófica, pensando-os em estreito vínculo com o restante da obra baconiana. Trata-se

do primeiro trabalho do filósofo e, embora bastante modificado ao longo dos anos por

acréscimos e rearranjos, quer-nos parecer que ele oferece desde a primeira edição alguns

traços que vão persistir e lhe garantir um caráter invariante. Ora, que tipo de filosofia

responde por traços do projeto baconiano dos Ensaios e, portanto, é anunciada por eles?

Para tentar dar conta disso, ainda que parcialmente, vamos nos deter no que

pode ser entendido como a forma do livro e alguns aspectos de sua elaboração. À

primeira vista, os Ensaios, como quase todas as obras de Bacon, apresentam uma série

de deficiências que podem funcionar como síntese de certas dificuldades que afligiriam

a filosofia baconiana no plano da forma.1 Dado isso, a questão que se põe é: será que

tais traços, em vez de defeitos, não poderiam ser considerados qualidades? Desde que

ponhamos o acento sobre o esforço baconiano em produzir uma nova imagem da filosofia

diversa daquela tradicional e presente desde os gregos, os próprios critérios de avaliação

não devem mudar e o que poderia ser deficiência à luz da sabedoria tradicional tornar-se,

pelo contrário, qualidade do ponto de vista da filosofia baconiana?

As três notas que se seguem buscam responder a essa indagações.

* Texto apresentado no Colóquio Humanismo do Renascimento, Departamento de Filosofia – USP, agosto de 2007.** Professor do Departamento de Filosofia da USP.

Composição e inacabamento

A composição dos Ensaios prolonga-se por toda a vida de Bacon; a obra conhece

três edições sempre diferentes: a primeira, de 1597, traz 10 ensaios; a segunda, de 1612, 38

ensaios; a terceira, por fim, de 1625, contém 58 ensaios. O longo processo de elaboração,

que podemos acompanhar com certo detalhe2, deixou suas marcas na obra: variação nos

temas, no estilo, na estrutura textual, nos pontos de vista que vão dos do jovem que dá

seus primeiros passos aos do velho calejado nos negócios do mundo; contínua revisão dos

textos antigos e inserção de novos materiais, quer citações (aparentemente, conforme o

filósofo vai lendo coisas novas daí retira frases e exemplos), quer trechos inteiros (alguns

significativamente derivados das novas condições de vida, da carreira de Bacon, de

novos acontecimentos).3 Os vários aspectos dessa transformação dos Ensaios no correr

dos anos, seu processo peculiar de composição, talvez possam nos instruir sobre o que

denominaríamos o modelo de obra baconiana ou, ao menos, acerca de uma característica a

nosso ver capital do processo compositivo de todas as obras baconianas: o inacabamento

necessário.

A primeira idéia que nós fazemos de uma obra dita “inacabada” é que ela não

foi terminada (as razões podendo variar desde o abandono puro e simples até morte do

autor). Não é esse, porém, o inacabamento que podemos assinalar aos Ensaios. Muito pelo

contrário. Se cabe falar em inacabamento, este não se deve ao abandono, mas ao trabalho

contínuo sobre o material; não se deve à morte, mas antes a uma vida que se transforma

com intensidade. O inacabamento dos Ensaios é marcado pelas revisões, pelas inserções;

o texto muda com as mudanças na própria pessoa do autor, com os fatos e os cargos,

com os estudos; acréscimos vão sendo feitos numa medida tal que, como sugerem alguns

fragmentos, caso se alongasse a existência do filósofo, novos ensaios apareceriam.4

Isso tudo pode ser afirmado dos Ensaios com certa segurança, uma vez que seu

curso e suas alterações ao longo do tempo podem ser em grande parte reconstituídos; mas

não seria o mesmo inacabamento uma característica generalizável, pertinente a todas as

obras baconianas? Ora, gostaríamos de avançar a suposição de que praticamente todos os

textos de Bacon conhecem inacabamento semelhante, não só os inéditos como também

os publicados. Justificativas para a hipótese não são difíceis. Basta observar que todos os

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Homero Santiago

temas do Avanço do saber, de 1605, são retomados e sobretudo expandidos ao longo dos

anos e principalmente na versão latina, o De augmentis scientiarum, de 1623. O volume

sobre a Sabedoria dos antigos, de 1609, deve ser encarado menos como um trabalho

terminado que um momento, apenas cristalizado pela publicação, de uma ininterrupta

atividade de interpretação alegórica dos mitos e fábulas antigos sempre praticada por

Bacon, como o demonstram os sinais esparsos no Do avanço do saber e as novas

interpretações surgidas no De augmentis. Por fim, exemplo incontornável, é o volume da

Grande instauração, vindo a lume em 1620, é um caso acabado de obra inacabada, se o

leitor permite, a que o autor dedica quase 30 anos (ver carta ao rei, 12-10-1620, Bacon 4,

v. XIV, p. 120). Encontramos ali o rearranjo de praticamente tudo que o filósofo escreveu

até 1620; para nem citar outros fatores, paradigmática é a combinação de quase todos

os estilos até então tentados: a segunda pessoa (a epístola dedicatória ou o Do avanço

do saber, dirigido diretamente ao rei), a terceira pessoa (seja na inserção de um terceiro,

como na Redargutio philosophiarum, seja no tratamento do próprio eu como um terceiro:

F.B. sic cogitavit), o aforismo, o discurso aos filhos (como no Temporis partus masculus)

etc.

Talvez muito do que alguns estudiosos identificam como mal ajambramento

dos textos baconianos — às vezes com certa razão — seja reflexo desse inacabamento

necessário de uma obra sempre a ser feita, o que, por sua vez, pensamos, remete a uma

dificuldade filosófica que o próprio lorde chanceler não deixou de tocar numa carta

de 1610: “nada está acabado até que tudo esteja acabado” (a Sir Tobie Matthew, apud

Melchionda 9, p. 32). Qual será o significado dessa confissão? Primeiramente, a certeza

da amplitude de um projeto como o de nenhum outro homem, nada mais, nada menos

que restaurar a condição adâmica (Bacon 1, II, 52); depois, ver-se forçado a um trabalho

quiçá infinito, como exprimido nas promessas de obras, nas várias histórias planejadas, na

ênfase no que está por fazer mais do que no já feito. Justamente, daí vem o inacabamento

essencial daquilo que está sempre em andamento e que é, por isso, essencialmente sem

fim. Cada obra de Bacon publicada é momento cristalizado de um processo, mas apenas

para ser logo retocado, revisto, aumentado, redirecionado. Isso não é exclusividade dos

Ensaios, como já dito, eles somente nos permitem, por sua trajetória peculiar (várias

edições, manuscritos etc.), apreendê-lo mais claramente; eles não padecem de gratuidade,

antes são expressão de um pensamento que dialoga incessantemente com a vida, com

o mundo e que jamais se aquieta, reservando apenas injúrias aos que sonham com a

perenidade. Se há ponto final, este vem só com a morte do autor, pois a obra é também

uma vida.5

Arriscaria dizer que o que Bacon descobre no trabalho com seu texto (o que não

quer dizer que ele se dê conta disso) é o inacabamento necessário de toda obra; um pouco

como a literatura moderna descobrirá a obra sempre inacabada, um universo sempre em

expansão — tenhamos em mente Em busca do tempo perdido: conhecemos o fim da obra,

nada porém nos garante que deveria ser assim; o final da obra (tanto na forma quanto no

conteúdo) corresponde ao fim da vida do autor, sendo apenas “o último estado de uma

escrita interrompida” (Robert 10, p.61). A obra é o produto de toda a vida, anotações,

esboços, versões; de uma vida dedicada à redação de uma única obra (e vem ao caso

perguntar se ao longo de toda sua vida Bacon não buscou redigir, também ele, uma única

obra: a instauratio magna — é o que pensamos).

Pode parecer um tanto abusivo e deslocado, cabe reconhecer, e por isso mesmo

não deixamos de usar o verbo “arriscar”. De qualquer modo, gostaríamos ainda de

reforçar o ponto de vista, observando que tal inacabamento essencial que descobrimos na

composição dos Ensaios encontra, parece-nos, correspondência nas concepções teóricas

de Bacon. A obra essencialmente inacabada é uma obra sem fim, sempre em progresso;

e é este progresso — verdadeira chave da filosofia baconiana — que no final das contas

determina o inacabamento.

Tomemos o ensaio “Dos estudos”, que abria a primeira edição. Os estudos,

afirma-se, “aperfeiçoam a natureza e são aperfeiçoados pela experiência, porque os

talentos naturais são como plantas naturais, por necessidade, podadas pelos estudos; e

estudos em si só dão orientações gerais, a menos que afiados pela experiência.” O vínculo

estabelecido entre estudo e experiência nos permite derivar uma situação peculiar: o

estudo aumenta, cresce conforme o tempo, por isso é natural que o fruto do estudo (a

obra) se transforme com o tempo, incessantemente. É uma idéia ainda incipiente, pouco

clara no ensaio, mas intuição de grande futuro na madureza de Bacon, especialmente na

renovada concepção de lógica apresentada no Novo órganon.

A lógica é instrumento do intelecto como o martelo é instrumento das mãos,

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Cadernos Espinosanos XVII

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Homero Santiago

e ambos podem progredir. Eis um dos traços mais fascinantes da filosofia baconiana. A

lógica tradicional trata do que é necessário, universal e eterno; pode assim enunciar regras

do pensamento correto que não admitem progresso nenhum — como observará Kant ao

abrir a Crítica da razão pura, no essencial, a lógica desde Aristóteles nunca deu “um

passo atrás”, e ainda mais digno de nota é que “não conseguiu dar um passo adiante e,

por conseguinte, segundo todos os indícios, parece estar concluída e acabada” (Kant 7, p.

28). É contra esse tipo de acabamento que se ergue a lógica baconiana. Na medida em que

nos reconduz às coisas e faz nossas noções comungarem com elas, podendo mesmo ser

dita uma lógica do real ou concreta, a nova lógica baconiana se abre para o novo e renega

a perenidade; é uma lógica histórica, pois pode e deve progredir conforme mudam nossas

relações com as coisas, a maior ou menor amplidão do mundo a que nos lançamos. Se

antes os estudos comungavam com a experiência numa relação de recíproca implicação,

no Novo órganon, com mais clareza, são a mente e as coisas que estão nessa relação.

Leiamos o final do aforismo I, 130: “nós que consideramos a mente não só nas suas

faculdades, mas na sua união com as coisas, devemos afirmar que a arte de descobrir pode

crescer com o crescer das descobertas.” (Bacon 1; grifos nossos) Assim, por exemplo, a

descoberta do Novo Mundo pode determinar um novo patamar para o pensamento: não

se pensa da mesma forma antes e depois da América, e a lógica deve transformar-se.

Ou seja, também ela pode ser dita inacabável, pois falamos de um processo também ele

inacabável.

Em conclusão, a verdadeira obra de pensamento é essencialmente inacabada

porque o pensamento se transforma, cresce conforme as suas condições (a descoberta da

América, as experiências, os cargos, os conhecimentos etc.) e, principalmente, muda seus

objetivos, seus fins. É destes que, agora, queremos tratar.

Os objetivos da obra

Cada homem tem suas questões, suas ambições, e ao preparar uma obra é

natural que tais questões e ambições determinem certos objetivos à obra. Porém, sendo

tal obra necessariamente inacabada, de forma que sua composição estenda-se pela vida

do autor, não é menos natural que as questões, os problemas, os objetivos que a animam

passem por mudanças; no limite, cada fase da vida de um homem tem seus problemas,

suas ambições, e estes podem determinar objetivos diferentes, a cada momento, para

suas obras — algo que se pode refletir até em pormenores.6 É claro que isso pode dar a

impressão de certa fraqueza de um pensamento que simplesmente padeceria de incessante

variação, vítima das modas, das intempéries; uma espécie de raciocínio que não se

demora antes de ajuizar. É verdade, mas temos de convir que, se há aí uma debilidade,

pode-se igualmente reconhecer uma força tanto maior, expressa na tese baconiana, cedo

exposta, de que o fim do saber nunca é ele próprio. A consideração desse ponto nos ajuda

a entender as variações dos Ensaios, ao longo de seu curso, também como uma variação

dos fins que lhe são assinalados; noutros termos, uma resposta diferente à interrogação:

para quê serve isso?

Tomemos ainda o mesmo exemplo antigo do ensaio “Dos estudos”. O texto

se abre tratando da serventia dos estudos, a partir de uma classificação: servem para

o deleite, para o ornamento, para os negócios. Neste último caso, identificamos dois

tipos de pessoas que se servem dos estudos para os negócios e entre eles se estabelece

uma contraposição: o especialista (expert) e o instruído (learned). O primeiro é aquele

que ajuíza o particular, é dotado de certo pontilhismo que descamba para o pedantismo,

possui o “humor de um escolástico (scholler)”; o instruído, diferentemente, para lá da

particularidade trata das “deliberações (counsels) gerais, e os planos e organização de

negócios”; é aquele que, podemos dizer, sabe conferir um fim, uma direção, aos próprios

estudos. Com efeito, a tese fundamental de todo o ensaio é que os estudos não trazem em

si o seu próprio fim, portanto é preciso dirigi-lo.

Acompanhemos esta nova classificação: “homens audaciosos desprezam os

estudos, os homens simples os admiram e os sábios (wise men) os usam, porque não

ensinam seu próprio uso; mas há uma sabedoria (wisdome) sem eles, e acima deles, ganha

na observação.” Os estudos não são o fim último de nada, muito menos constituem um fim

em si mesmos. Sábio (e podemos assimilar-lhe aqui o instruído) é aquele justamente que,

de posse de uma sabedoria que independe dos estudos, sabe aplicá-la a estes conferindo-

lhes uma direção; aquele que em vez de desprezar ou admirar-se sabe servir-se dos

estudos, e para isso impõe-lhes um fim, uma utilidade.

No caso do próprio ensaio, a utilidade imediata, a serventia do estudo é

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Cadernos Espinosanos XVII

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Homero Santiago

a transformação de si próprio, certa arquitetura de si: “os estudos moldam o caráter”

(abeunt studia in mores) — tese igualmente presente no Do avanço do saber (Bacon 2, p.

38). Como eles são capazes de tanto, é preciso saber usá-los, direcioná-los para o que se

quer. E sabiamente, porque aí — como em tudo o mais — caminha-se para o sucesso ou

para a ruína. Não por acaso, o “Dos estudos” nos sugerem que, aplicados aos negócios,

os estudos e a sabedoria tomam por critério o êxito, pois “o que é falso em sabedoria é

a ruína de negócios”. Ora, não podemos senão apreciar a longevidade desse ponto de

vista de 1597 que atravessa a obra de Bacon e ganhará a forma de um enunciado tético

claríssimo: os frutos são garantia da verdade das filosofias; a mesma coisa é a verdade e a

utilidade; o que é útil no operar, é verdadeiro no saber (Bacon 1, I, 73, 121; II, 4).

Tomados os Ensaios sob essa perspectiva, muitas das mudanças de tema e

tratamento, as várias dedicatórias, tornam-se compreensíveis e, sobretudo, conseqüentes.

Como mostram as análises de Michel Kiernan, de maneira muito convincente, não se

deve conceber o trabalho à guisa de mera contribuição à psicologia e à arte política ou

então espelho da classe dominante da época. Antes, eles respondem a certas inquietações

próprias de seu autor, a sua condição, as quais mudam com o passar do tempo, e levam os

Ensaios, a reboque, a também mudar.

Os 10 ensaios mais antigos, da primeira edição, exprimem o ponto de vista

de um “pretendente” (suitor), de alguém que quer e persegue um poder que ainda não

tem; a obra surge então como uma espécie de vademécum do homem ambicioso. Bacon

ensina a não questionar muito ou saber quando e como perguntar, a calar sobre si a menos

que seja oportuno (“Do discurso”), ensina quando ser cerimonioso (“De cerimônias e

homenagens”), e assim por diante (cf. Kiernan 8, p. XX e seg.). Na primeira edição dos

Ensaios, impera o ponto de vista de alguém que está de fora do poder, em contraste

patente com os ensaios da segunda edição, próprios de alguém que já está dentro, que

teve acesso ao poder, e os da terceira, que não por acaso vão ganhar um subtítulo: Ensaios

ou conselhos civis e morais. Com o processo de 1621, caído em desgraça, impedido de

assumir cargos públicos, Bacon tenta de tudo para ser admitido como conselheiro, aquele

que pode dar direção aos poderosos oferecendo-lhes um saber adquirido pela experiência

e que não se encontra nos livros. É uma hipótese que ganha força por uma carta enviada

pelo filósofo ao embaixador espanhol dois meses após o processo que sofreu: Bacon

anuncia sua intenção de continuar como conselheiro, mas agora com a pena; vai retirar-se

do teatro das coisas civis e dedicar-se às letras, como alguém que quer “instruir os atores”

e assim servir à posteridade (cf. Bacon 4, v. XIV, p. 285).

Aqui, novamente, os Ensaios vêm ilustrar à perfeição uma tese fundamental de

Bacon e recobrir de coerência o que, a olhos apressados, poderia sugerir indecisão dos

objetivos. A obra exprime um saber voltado para um fim que não é o próprio saber; nela o

saber ganha uma utilidade, está em busca de um poder e esforça-se mesmo por coincidir

com ele, na medida em que possa responder às ambições do sábio. No plano moral ou

ético, tem-se a mesma expressão daquilo que a grande instauração vai afirmar, noutro

plano, como a identidade entre o saber e a potência. Apreciamos um saber que tenta

coincidir com um poder de transformar-se: o conhecimento é um conhecimento de si e

esse si está em busca de êxito; saber de um si em expansão, que quer e busca alcançar o

que quer sabendo guiar-se. A pura contemplação deve então tornar-se uma “contemplação

ativa”, ou seja, um saber transformador, um saber próprio para a vida ativa e que possa

responder aos anseios e desejos humanos. Trata-se de impor-se um objetivo e alcançá-lo,

pois, como dissera Sêneca, “a vida sem um propósito é lânguida e errante, vaga” (vita sine

proposito languida et vaga est); e nosso filósofo acrescenta que é “com prazer” que, nas

empresas, ocupações e propósitos da vida, os observamos “em seus começos, progressos,

retrocessos, renovações, aproximações e consecuções” (Bacon 2, p. 237).

A partir disso, é cabível ainda nos perguntarmos seriamente: todo o projeto

de grande instauração não busca realizar o mesmo, só que tomando sob o mencionado

“si” a humanidade em vez de um indivíduo? Cremos que sim.7 Os Ensaios não surgem

como peça ocasional, mas exemplar de uma nova concepção de filosofia que se afasta

da canônica (filosofia = contemplação = fim em si) na medida que se oferece ao homem

como instrutora no combate que é o da existência, concedendo-lhe armas, orientando-lhe

por caminhos incertos e perigosos sempre em direção à realização de seus desejos.8

A frase classificatória

No que se refere à estrutura argumentativa dos Ensaios, vamos de textos curtos

que têm a aparência de mera conexão de frases (lembremos o quanto Bacon gostava de

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Cadernos Espinosanos XVII

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Homero Santiago

recolher máximas, aforismos, apotegmas), nem sempre com transição lógica clara, até

textos mais alongados e que apresentam uma estruturação firme; nos dois casos, é comum

a abertura (um ditado, uma citação, um enunciado geral) assumir um papel determinante

ao fornecer o foco a partir do qual o ensaio se desdobra. De qualquer modo, o componente

básico do texto é quase sempre um tipo particular de frase que denominaríamos a frase

classificatória. A presença ostensiva dessa fraseologia é uma característica marcante do

livro: tudo é catalogado, dividido em graus, tem seus resultados analisados. Por exemplo:

“Há três graus com que se oculta e veda o íntimo de um homem. O primeiro, silêncio,

reserva e segredo... O segundo, dissimulação... O terceiro, a simulação...” (“Da simulação

e dissimulação”). No ensaio “Da amizade”, classificação e análise dos frutos da amizade:

1) desabafo, 2) relacionar-se, ajuda na compreensão; 3) o amigo continua o que não

fizemos. As ilustrações poderiam ser numerosas, já que parte substantiva da obra, da

primeira à última edição, serve-se do mesmo expediente.

O arranjo, ao que parece, tende a dar má impressão nos leitores e chegou a

merecer críticas severas, que não pouparam sequer o caráter do filósofo. “Bacon

aparece antes de tudo preocupado em fazer distinções judiciosas, reduzir a matéria em

classificações nítidas. (...) Esses perpétuos cálculos, essas receitas demasiado engenhosas,

dão a impressão de um homem que não nasceu para a ação, que se fez da humanidade

uma concepção teórica e livresca, que medita e vigia seus menores gestos (...). Assim, a

variedade da vida, a diversidade dos homens, não lhe inspiram senão uma curiosidade

secamente intelectual; ele as considera friamente como um sábio que examina plantas ou

insetos, e os classifica em seu catálogo” (Castelain 5, p. XXXVIII e seg.).

Porventura seja verdade que os Ensaios deixam a impressão de certa mania

classificatória e calculista (que para piorar é associada por Bacon, no próprio livro, ao

espírito escolástico). Porém, devemos desconfiar que o exercício tenha um significado

maior, distante da mera idiossincrasia. Primeiro, ele permanece nas outras obras,

notadamente no Novo órganon (gêneros de filósofos, de ídolos, de esperanças, classificação

extensa de prerrogativas etc.), e funciona como o resultado de uma grande perscrutação

do mundo, um grande exercício histórico que dá o substrato do pensamento. Segundo,

e mais importante, esses cálculos classificatórios dos Ensaios são o exato oposto do

exercício contemplativo; o filósofo ali nunca cede à admiração que deixa em estagnação;

a filosofia não nasce da admiração (coisa de “pessoas simples”, como dá a entender o

“Dos estudos”), mas da ambição. O cálculo e a classificação merecem ser compreendidos

como resultado da meticulosidade; uma observação meticulosa que põe em movimento

o sujeito dotando-lhe de armas, de estratégias. Àquele, por exemplo, que persegue um

poder, como Bacon nos primeiros ensaios, o saber bem direcionado pode tornar-se uma

arma valiosa, a orientar os seus passos. Tal meticulosidade é um método — termo que em

sua amplitude encontra sentido tanto no plano individual quanto nas empresas científicas,

pois nada nos sugere cogitar uma descontinuidade entre a instauração de uma nova vida e

a grande instauração de uma nova humanidade. As classificações têm para o pensamento

ético um papel semelhante ao da história natural para a lógica, ou seja, de fundamento.

Nesse sentido, o tradutor francês teria razão na análise da atitude baconiana;

peca apenas ao ajuizar o valor dessa atitude. A frase classificatória, entendida como

expressão de meticulosidade analítica, está longe de revelar incapacidade para a ação;

é bem o contrário, ela exprime um saber que descobriu sua coincidência necessária com

a ação e que deve unir a via contemplativa e a via ativa, aprender com as coisas, sob o

risco da irrelevância. Não se há de negar certa secura e frieza desse saber, mas tampouco

se poderão negar os trunfos que ele traz, sobretudo na capacidade de discernimento. É

precisamente tal saber que responde por alguns dos melhores momentos dos Ensaios,

por uma argúcia incomparável, sobretudo quando o autor se volta para a análise de

certos assuntos inusitados e, pelo menos em aparência, irrelevantes. Assim, no ensaio

“De jardins” poderíamos esperar uma contemplação respeitosa e sábia da magnitude da

natureza; o que encontramos, todavia, é a observação meticulosa de como deve ser o

jardim de um monarca, que plantas deve conter, o que significa cada uma; ou seja, a

compreensão exata de que o jardim de um rei pode ser o próprio espelho de seu poder, o

seu domínio em exercício. O mesmo ocorre num dos mais saborosos e instigantes ensaios

do livro, intitulado “De mascaradas ou triunfos”. O início é fantástico e dá o tom do texto:

“estas coisas são meros brinquedos que vêm entre observações sérias”. Considerando as

representações teatrais luxuosas organizadas na corte, típicas dos séculos XVI e XVII e

que tinham o nome de masques (cf. Houaiss & Avery 6), Bacon se põe a analisar as danças,

a roupa dos atores, a música e o modo acertado de cantar. Trivialidades, decerto, mas

que revelam toda sua importância para uma compreensão acurada do poder: o “triunfo”

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Cadernos Espinosanos XVII

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Homero Santiago

posto no título dá o lado sério, contrabalança a brincadeira mostrando sua seriedade; o

espetáculo é o espetáculo do poder, poder ornado, por assim dizer, que faz do baile uma

demonstração de unidade, força e organização; em suma, um triunfo.

Saibamos apreciar essa capacidade analítica, que se faz possível justamente

pelo caráter meticuloso dessa filosofia — digna aqui do Barthes das Mitologias falando

de detergentes e saponáceos, do bife com fritas, da Volta da França. Longe de consistir

num defeito, a frase classificatória meticulosa é expressão de uma observação rigorosa; o

tipo de pensamento que lhe subjaz constitui a própria essência do procedimento teórico,

primeiro, de uma ética baconiana, segundo, de toda a sua filosofia (pois não será demais

repetir que o mesmo olhar agudo para os fatos e a capacidade de aprender com eles se

encontra também nos textos da Instauração).

Bacon seria frio e calculista, pouco propenso à curiosidade genuína? Talvez

o seja — mas como o florentino que ele tanto apreciava. Nesse caso, fazendo coro com

Kiernan, tal como o Do avanço do saber elogia Maquiavel por ensinar “o que os homens

fazem, não o que deveriam fazer” (Bacon 2, p. 245), poder-se-ia elogiar Bacon por

ensinar os homens a investir toda a sabedoria no que eles querem ser, a alcançar seus fins

e, sobretudo, por fornecer armas para um combate, a vida, em que o que importa é vencer

. É bem a tarefa que Bacon assinala ao que ele chama de doutrina do avanço na vida

(doctrina de ambitu vitae) ou faber fortunae: deve-se “ensinar aos homens a elevar-se e

fazer fortuna” (Idem, p. 279). No fundo, esta é uma síntese de toda a filosofia de Bacon; a

única peculiaridade dos Ensaios, ainda aqui, é nos dar a vê-lo com mais nitidez por meio

de sua construção peculiar.

Three notes on the relationship between Philosophy and textual form in the Bacon’s Essays

Abstract: The aim of this article is to consider the philosophical relevance of the Francis Bacon’s Essays, taking into account some aspects of its textual form: the unfinishing of the work, the change of its objectives and its classicatory constructions. Although at the first glance these aspects could suggest a theoretical weakness, indeed they express the elaboration of a new ideal of Philosophy.Keywords: Bacon, The Essays, Philosophical Form.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1. BACON, F. Novum organum. Tradução e notas de José Aluysio Reis de Andrade. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

2. _____. O progresso do conhecimento. Tradução, apresentação e notas de Raul Fiker. São Paulo: Edunesp, 2007.

3. _____. The Essayes or Counsels, Civill and Morall. Edited with introduction, notes, and commentary by Michel Kiernan. Oxford: Oxford University Press, 2000. Trad.: Ensaios de Francis Bacon. Tradução de Alan Neil Ditchfield. Petrópolis: Vozes, 2007.

4. _____. The Works of Francis Bacon. Collected and edited by J. Spedding, R. L. Ellis e D. D. Heath. Stuttgart: Friedrich Frommann, 1966, 14 v. (edição disponível em: http://gallica.bnf.fr/)

5. CASTELAIN, M. “Introduction”. In: BACON, F. Essais. Traduits, avec une introduction par Maurice Castelain. Paris: Aubier, 1979.

6. HOUAISS, A.; AVERy, C. B. Dicionário Exitus das línguas inglesa e portuguesa. Nova Jersey: Prentice-Hall, 1981.

7. KANT, I. Textos seletos. Tradução de Raimundo Vier e Floriano de Sousa Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985.

8. KIERNAN, M. “General introduction”. In: BACON, F. The Essayes or Counsels, Civill and Morall. Edited with introduction, notes, and commentary by Michel Kiernan. Oxford: Oxford University Press, 2000.

9. MELCHIONDA, M. Gli “Essayes” di Francis Bacon. Studio introduttivo, testo critico e commento. Florença: Olschki, 1979.

10. ROBERT, Pierre-Edmond. “Des manuscrits par milliers”. Magazine littéraire, hors-série no 2, 4o trimestre de 2000.

NOTAS:

1 - Frise-se que desde o XVII já se via na escrita baconiana uma fraqueza filosófica. Limitemo-nos a recordar o ajuizamento irônico de Harvey: Bacon é, sim, homem de “engenho e estilo” dignos de estima, não porém um “grande filósofo”, pois “escreve filosofia como um lorde chanceler” (apud Spedding, Bacon 4, v. III, p. 515; grifo nosso).2 - Quanto a este trabalho de reconstituição, ver Melchionda 9 e, sobretudo, a edição dos Ensaios por Michel Kiernan (Bacon 3).3 - Por exemplo, o ensaio “Dos conselhos”, da segunda edição, ganha um longo trecho

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Cadernos Espinosanos XVII

na terceira que, a partir de casos contemporâneos, faz recomendações dignas de alguém que já passou pela chancelaria (o que não era o caso no momento da primeira redação).4 - Hoje, normalmente as edições do livro trazem o fragmento de um 59o ensaio intitulado “Da fama”; ademais, o estudo de Melchionda 9 traz em apêndice fragmentos que possivelmente viriam a constituir novos ensaios.5 - Seria o caso de ir além e afirmar ainda que a obra possui também uma vida própria que independe da vida do autor e, mesmo depois da morte deste, eventualmente lhe garante uma imortalidade ativa, que não é como a de uma estátua, inerte, mas que pode “engendrar e lançar infinitas ações e opiniões nas épocas sucessivas” (Bacon 2, p. 95). Por sua vida própria, a obra pode responder por uma sorte de ideal laico de imortalidade ou eternidade.6 - Como em uma dedicatória. No caso dos Ensaios, conhecemos quatro, uma para cada edição e uma que restou inédita. Estando no mundo, Bacon precisa da proteção dos grandes do mundo; como em todos seus trabalhos, é a eles que os Ensaios são dedicados, variando a direção, como o indica de Kiernan 8, conforme variam os interesses imediatos do autor. É exemplar o caso da dedicatória inédita, dirigida ao príncipe herdeiro Henrique, que porém morreu de repente no meio do preparo da segunda edição do livro; Bacon rapidamente a substituiu.7 - Para tanto, é preciso considerar o repetido tratamento que o filósofo empreende do tema da ambição, em várias obras e destacadamente no Novo órganon (Bacon 1, I, 129). Ora, das ambições individuais à ambição de servir ao gênero humano, há graus, não descontinuidade.8 - É impossível não mencionar a genial reversão do ideal grego de filosofia que Bacon promove no Do avanço do saber (Bacon 2, 240 seg.). Tendo em mente o Górgias, o filósofo fecha com o sofista e não com Sócrates; com o ideal ativo de melhora, progressão e resposta aos desejos humanos, em vez de um bem — o socrático-platônico — harmonioso e contemplativo, e que aos seus olhos redunda em estagnação e numa virtude que é “mais útil para aquietar perturbações do que para urdir desejos”. Nesse sentido, se Bacon oferece uma filosofia para a vida, a filosofia tradicional só resta tornar-se um saber para a morte, “uma disciplina ou preparação para morrer”.

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O “privilégio do pensamento”: um ensaio de interpretação

Mariana de Gainza*

Resumo: Consideramos neste artigo uma forma particular da “batalha de idéias” que diferenciamos de outras formas de confrontação aberta, como a refutação. Trata-se de uma modalidade mais sutil, que procura incidir nos pesos relativos dos componentes teóricos de certas concepções. Associamos esta forma da produção teórica com a crítica materialista, o que nos permite conectar os esforços teóricos de Espinosa e de Marx, e também arriscar uma interpretação de uma tese polêmica – relativa ao privilégio do atributo pensamento – que Deleuze elabora na sua leitura da Ética. Palavras-chave: crítica, materialismo, marxismo, entendimento infinito, estrutura

A filosofia, além de um espaço de diálogos e intercâmbios variados, pode

ser considerada como um campo de batalha. Embora essa dimensão confrontadora –

que se apóia em uma disposição essencial do pensar filosófico – não receba hoje um

reconhecimento universal, até não faz muito tempo a teoria era explicitamente considerada

um espaço de lutas, pois a tendência estendida era a de aceitar que os discursos tinham,

direta ou indiretamente, conseqüências. Noutros tempos, séculos atrás, além de concordar,

os filósofos lutavam apaixonadamente entre si, com as armas teóricas de que dispunham,

e de maneiras muito diferentes. Certas filosofias que, como a de Espinosa, por tomar

bastante a sério a face subversiva da palavra suscitaram diversas tentativas de contestação

teórica, servem especialmente para refletir sobre essa dimensão da crítica como refutação

ou impugnação, uma das formas do combate filosófico: ela pode ser total ou parcial quanto

aos conteúdos, externa ou interna segundo a posição do refutador em relação ao objeto;

pode pretender subordinar ou absorver o ponto de vista do adversário, ou tentar destruir

por completo suas razões; pode ser mais ou menos explícita, mais ou menos agressiva,

mais ambígua ou mais decidida. E claro, pode ser efetiva, ou impotente, e até produzir os

efeitos contrários aos perseguidos pelo crítico.

Mas além das refutações, existem outras formas de confrontação filosófica.

* Doutoranda do Departamento de Filosofia da USP e bolsista da Fapesp.

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Cadernos Espinosanos XVII

73

Mariana de Gainza

Nesta oportunidade – valendo-nos também da perspectiva espinosana –, queremos

considerar uma delas em particular, uma modalidade da crítica cuja imagem tentaremos

primeiro esboçar, para logo associá-la com uma problemática concreta que surge de certa

leitura da obra de Espinosa.

Comecemos então por nos aproximar de nossa questão servindo-nos de uma

citação de P-F. Moreau:

Podemos falar de um materialismo de Espinosa, sob a condição de não entender por isso uma determinação da mente pelo corpo. A quem objetar que Espinosa (...) mantém o equilíbrio entre a mente e o corpo, sendo então tão espiritualista ou idealista quanto materialista, temos que responder que, precisamente, a tradição não mantém esse equilíbrio e que o simples fato de dar ao corpo tanta importância quanto à mente já constitui um enorme esforço de reequilíbrio materialista. (Moreau 3, p.65)

O que nos interessa reter aqui é o que Moreau chama de “esforço de

reequilíbrio”, quer dizer, uma espécie de empenho “compensatório” que atua com os

mesmos elementos conceituais com que a tradição trabalha, mas operando um balanço de

seus pesos relativos. E quando se trata de um reequilíbrio que, como no caso de Espinosa,

atua resgatando o corpo de sua tradicional subordinação à mente, tal esforço pode ser

legitimamente considerado materialista.

Conservando esta idéia, devemos, entretanto, dar uma maior precisão aos

termos. A imagem de um equilíbrio que deve ser restabelecido, de uma compensação

que atua nivelando um desajuste, a imagem de um contrapeso não é adequada ao que

pretendemos referir. Tal imagem supõe, de certa maneira, que os elementos cujos pesos

relativos devem ser igualados se encontram já constituídos, previamente formados, sendo

necessário somente modificar os pesos na balança para que esta se estabilize em seu

justo meio. Mas as coisas, quando se trata de um “reequilíbrio” materialista, acontecem

de outra maneira. A valoração espinosana do corpo, mais do que funcionar como a

compensação de uma injustiça, constitui uma inovação teórica que transforma a idéia

do corpo, fazendo verdadeira justiça a seu objeto – uma justiça, neste caso, inteiramente

diferente da que só deve saldar uma falta (uma falta de justiça), uma justiça teórica

positiva que o pensamento faz à realidade irredutível com a qual se defronta. Assim, o

corpo é apreendido em seu próprio ser corpóreo, graças à referência direta à qualidade

ou atributo absoluto que o explica – e não o remetendo a uma mente. E, no entanto, as

relatividades ou “relações” tampouco são subestimadas, mas ressignificadas. O esforço

de compreensão de uma coisa particular se realiza sobre a base do reconhecimento de sua

irredutibilidade, isto é, da impossibilidade de identificá-la a outras coisas ou realidades.

O que nos permite definir novamente os termos da afirmação de Moreau: o enorme

esforço de “reequilíbrio” materialista de Espinosa consiste em realizar uma igualação

ontológica anti-hierárquica de realidades essencialmente desiguais, um “ajuste” que se

alcança partindo do reconhecimento de um desajuste essencial: uma verdadeira justiça

feita às realidades heterogêneas. Neste sentido, podemos dizer: esse esforço espinosano

é materialista não porque o corpo seja seu eixo (pois, como é claro, é possível elaborar

uma compreensão materialista das idéias, que só às idéias tenha como objeto, assim

como também uma teoria idealista do corpo), senão porque constrói, precisamente, essa

perspectiva justa que toma cada realidade por conta própria, em sua autonomia (não

isolada, mas vinculada) que é sua irredutibilidade.

A partir da consideração desta forma de intervenção filosófica, desta justiça

materialista propriamente espinosana, queríamos ensaiar uma hipótese interpretativa de

uma questão que Deleuze coloca e cujo sentido não é imediatamente transparente.

Em certo momento do livro Espinosa e o problema da expressão, avançando

em sua leitura da Ética, Deleuze faz referência a algo que denomina o “privilégio do

atributo pensamento”. Obviamente, o leitor espinosano pode surpreender-se frente a

essa denominação, pois nada há na obra de Espinosa que permita supor um privilégio de

algum dos infinitos atributos frente aos outros. Daí que nossa primeira tendência possa

ser a de pensar que, em consonância com uma larga tradição de leituras idealistas da

filosofia espinosana, Deleuze descobriria nela uma hipóstase da realidade mental bem

sintonizada com o intelectualismo seiscentista, e assinalaria essa hipóstase através de

um forçamento da letra do sistema que mostraria sua contradição interna: existiria na

Ética, apesar da insistente afirmação da igualdade de todos os atributos divinos como

expressões da mesma essência absolutamente infinita, um privilégio da realidade pensante.

Outra possível leitura dessa estranha qualificação poderia associar, já não a ontologia

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Mariana de Gainza

de Espinosa, mas a do próprio Deleuze, com um idealismo filosófico – em cujo caso o

forçamento do sistema espinosano se realizaria, então, para torná-lo compatível com o

pensamento do intérprete. Entretanto, a certeza – ou a séria crença – de que entendemos

o sentido das filosofias de ambos os autores, a de Espinosa e a de Deleuze, nos conduz

rapidamente a descartar as duas soluções, persistindo assim o enigma: o que pode querer

significar realmente esse privilégio do pensamento que o materialismo deleuziano lê no

materialismo espinosano?

Ensaiemos então uma hipótese que nos permita “abrir” o problema e escapar

da imediata incompreensão que nos deixa espantados. Poderíamos tentar relacionar esse

privilégio do pensamento com o que chamamos um reequilíbrio ou justiça materialista

realizada pela leitura. Assim, esse privilégio atuaria no sentido de fazer uma apresentação

do atributo pensamento e dos modos de pensar (as idéias, os afetos, o desejo) que esteja à

altura de sua importância efetiva. Ou para dizê-lo de outra forma, usando como exemplo

os esforços de reequilíbrio teórico que se deram durante o século XX no interior do

marxismo: o privilégio do pensamento poderia funcionar de maneira análoga à valorização

das superestruturas, quer dizer, da ideologia, do conhecimento, das formas diversas

da política, que algumas heterodoxias marxistas ensaiaram para tentar compensar as

interpretações muito unilaterais que a tradição fez do pensamento de Marx. Um esforço

teórico, então, que procurou fazer justiça às idéias, subordinadas ou menosprezadas devido

a uma hierarquização abusiva das forças produtivas (isto é, devido a um protagonismo

excessivo da base material ou estrutura de suas “derivadas” superestruturas). Assim, o

privilégio do pensamento poderia assinalar obliquamente essa batalha teórica, a tentativa

de confrontar o reducionismo (o “materialismo vulgar”) do marxismo economicista.

Estamos estabelecendo, desta maneira, um parentesco entre certas formas da

reflexão teórica que podem considerar-se análogas: a valorização espinosana do corpo,

a valorização marxista das superestruturas, e a valorização deleuziana do pensamento. E

para insistir no fato de que os três esforços são materialistas, podemos agregar o seguinte:

a valorização deleuziana do pensamento se sustenta na valorização espinosana do corpo,

assim como a valorização marxista das superestruturas se sustenta na valoração marxiana

das estruturas da produção (isto é, na justiça teórica feita por Marx à determinação

material da existência). Isso nos permite especificar melhor o que antes dissemos a

propósito do materialismo; embora seja certo que é possível tratar tanto do corpo quanto

das idéias, ou de qualquer assunto, sob uma perspectiva materialista – não sendo então o

objeto de conhecimento o que qualifica o trabalho que o pensamento realiza –, existe uma

instância que está na base desse trabalho: uma crítica. Desta maneira, a justiça teórica

que outorga ou devolve toda sua potência às idéias se sustenta sobre um esforço prévio

do pensamento: a crítica do movimento “independentista” das idéias. É nesse sentido que

a importância dada por Espinosa ao corpo, e a forte relevância das relações de produção

na teoria marxiana são fundadoras: são inovações teóricas de grande poder subversivo,

modos da batalha teórica que confrontaram a hegemonia histórica dos elementos ideais

no campo filosófico; confrontação de uma hegemonia que se realizou compreendendo

as razões dessa hegemonia (a tendência espontânea do pensamento a imaginar-se livre,

incondicionado). Pelo que, diferentemente das formas da confrontação filosófica que no

início deste texto identificamos com a refutação, os modos da luta teórica que Espinosa

e Marx inauguraram não podem ser consideradas como estratégias de guerra ou formas

da discussão destinadas, para dizê-lo de maneira gráfica, a “acabar com o adversário”.

Não se trata de destruir toda pretensão de validez daquilo que se confronta ou, neste caso,

a questão não passa por negar sua importância às idéias, às imaginações e ilusões dos

homens, e às filosofias idealistas que se construíram reproduzindo tais ilusões: trata-se

de entendê-las. Quer dizer, trata-se de dar toda sua relevância ao fato de que as idéias

não vivem uma vida independente, separada do resto das dimensões da existência social,

mas são parte constitutiva de uma realidade absolutamente múltipla e multifacetada. E

essa compreensão não implica nenhuma desvalorização nem subordinação das idéias (o

que certo marxismo fez, por exemplo, ao transformá-las em reflexos ou epifenômenos

de outra realidade considerada primeira ou essencial); mas acontece, certamente, justo

o contrário: a crítica das idealizações envolve o forte reconhecimento do valor e da

potência própria das idéias, de sua realidade irredutível. Reconhecimento que se opera

a partir da própria atividade ou práxis crítica como real exercício de um pensamento

potente: a valorização crítica das idéias se realiza em e mediante o pensamento, que põe

em jogo todas suas forças. Assim, as idéias são as armas contra as idéias, e é no mesmo

terreno do pensamento onde se opera sua crítica e sua redenção. Desta maneira, não é

precisamente um pensamento débil, ou seja, um pensamento que se assume como puro

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Mariana de Gainza

reflexo reprodutor de certas condições dadas de antemão, aquele que vemos surgir a

partir dos escritos surpreendentemente lúcidos de Espinosa ou de Marx (e a partir disso

podemos, adicionalmente, assinalar o absurdo que subjaz às opiniões que pretendem que

seus respectivos materialismos estariam subordinando ou desqualificando as formas da

atividade ligadas ao pensamento ou às superestruturas).

Mas voltemos rapidamente para o “privilégio do pensamento”, só

para tentar discernir a forma do problema, e identificar certas linhas que teremos que

prosseguir em outra oportunidade.

E digamos, em primeiro lugar, que há certa dimensão metafórica

na idéia de “privilégio” que não se deve passar por alto. Da mesma maneira que, no

marxismo, as expressões base estrutural e superestruturas constroem uma metáfora

– uma metáfora arquitetônica –, a noção de “privilégio” também abre um espaço de

significação diferente do conceito. Neste espaço, um problema é aludido sem que se

pretenda estabelecer uma relação unívoca entre um nome e um significado. Esse nome

funciona, então, como um sinal que orienta nossa atenção para um conjunto de conteúdos,

entre os quais pode encontrar-se o núcleo visado pelo conceito. Devido a essa remissão

equívoca ou ambígua, tais expressões – que requerem o exercício de nossa imaginação,

e a ela apelam – podem conduzir-nos, apesar de suas intenções, a constituir uma idéia

do objeto que conserve em seu centro esse excesso imaginativo. Nesse caso, pode dar-

se uma leitura literal da metáfora que, em vez de interpretá-la, mantenha sua conotação

mais imediata: imaginamos, por exemplo, a sociedade como um bloco material que tem

diferentes andares, e cujos alicerces, ancorados na terra, são as atividades econômicas,

enquanto as idéias, espacialmente localizadas mais perto do céu (ou seja, mais perto de

“Deus” – o que denuncia o necessário parentesco entre idealismo e teologia), ignoram que

sem essa base que as sustentam e cuja ação elas reproduzem, nada seriam. Ou imaginamos,

no caso do privilégio do pensamento, que existe um atributo ou um tipo de realidade que

é verdadeiramente superior, por reunir direitos ou vantagens adicionais frente ao resto;

o que implica, novamente, o estabelecimento de uma hierarquia, em virtude da qual a

suposição de que o pensamento ou as idéias “estão mais perto de Deus” envolve agora a

afirmação de que devem ter mais realidade ou perfeição – inversamente ao caso anterior,

onde essa proximidade sugeria uma grande distância da realidade material e, justamente

por isso, o risco de sua mistificação.

Ora, se a imaginação não representa nenhum obstáculo para o verdadeiro

conhecimento se quem imagina sabe ao mesmo tempo que está imaginando1; da mesma

maneira, se quem metaforiza sabe que está metaforizando – quer dizer, tentando dar força

expressiva a outra coisa que encontra na metáfora somente seu meio – ou se quem ler

uma metáfora souber reconhecer que se trata, precisamente, de uma metáfora, então se

torna claro que se trata de escolha de um caminho indireto, alusivo, onde a imagem não

reivindica para si uma centralidade explicativa nem pretende expressar essência alguma,

mas é tão só um veículo que pode ser frutífero para uma aproximação ao entendimento

adequado daquilo que se procura construir como conceito.

Enfim, a que se refere concretamente Deleuze com essa idéia do privilégio do

atributo pensamento? As condições textuais espinosanas que fazem possível uma tal idéia

são, numa síntese rápida, as seguintes: Deus é o ser cuja essência absolutamente infinita

– isto é, constituída de uma infinidade de atributos infinitos, entre eles a extensão e o

pensamento – existe necessariamente. Além disso, dessa necessidade da existência da

essência divina, seguem-se infinitas coisas de infinitos modos, ou seja, tudo o que pode

cair sob um entendimento infinito. Daí que se deve conceber a potência de pensar de

Deus igual a sua potência atual de existir e agir (o que significa que tudo aquilo que se

segue formalmente da infinita natureza de Deus, segue-se nele objetivamente, a partir

da idéia de Deus, na mesma ordem e com a mesma conexão). Um ser que pode pensar

uma infinidade de coisas numa infinidade de modos é, então, necessariamente infinito

pela virtude de pensar; quer dizer, um ser que tem uma potência absoluta de pensar

tem necessariamente um atributo infinito que é o pensamento, condição necessária da

possibilidade de todo e qualquer pensamento. Desta maneira, como o diz agora Deleuze:

“o atributo pensamento é suficiente para condicionar uma potência de pensar igual à

potência de existir, a qual está, entretanto, condicionada por todos os atributos (incluindo

o pensamento)”; daí seu privilégio: somente ele condiciona uma potência igual a que

condicionam todos os atributos. Podem existir e atuar uma infinidade de coisas que não

sejam nem extensas nem pensantes (pois que só conheçamos dois atributos divinos não

cancela o fato de que a substância está constituída por uma infinidade), mas nada pode ser

pensado senão pelo pensamento.

Isto quer simplesmente dizer que na substância divina se dá o pensamento

do conjunto das coisas que sua produtividade absolutamente infinita determina. Essa

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capacidade abarcadora (compreensiva em profundidade e em extensão) do pensamento

do ser absoluto que, mediante a produção de modos de pensar e idéias de todo tipo – pois

também o pensamento é uma força produtiva – acompanha a produção infinitamente

diversificada do real – pois se dão de todas as coisas (não só das coisas extensas, nem

das coisas atualmente existentes, mas de todas as coisas) idéias que as explicam no

entendimento infinito –, constitui o que metaforicamente pode ser chamado de um

privilégio, e que na verdade é a qualificação exclusiva do que faz com que, precisamente,

o pensamento seja pensamento.

Mas tentemos dizer isto ainda de outra maneira. Que a substância

absolutamente infinita compreende tudo o que produz ao compreender-se a si mesma e à

sua produção, quer dizer também que produz a forma ou o modo em que esse conhecimento

de si existe. Um entendimento infinito que se segue imediatamente (como modo infinito)

de uma potência absoluta de pensar é um efeito necessário ou um produto que conserva

como própria essa mesma potência infinita. Assim, o entendimento infinito compreende

tudo o que existe em sua absoluta necessidade: contém as idéias dos infinitos atributos de

Deus e de tudo aquilo que se segue necessariamente deles, incluindo o próprio pensamento

e a suas produções. Pois bem, que o entendimento compreende a substância, seus infinitos

atributos e a infinidade de modos infinitos e finitos que constituem a natureza inteira, quer

dizer que entende suas diferenças irredutíveis, pois o conhecimento do que é em si mesmo

realmente distinto (nada têm em comum entre si os infinitos atributos) não pode realizar-

se por comparação. Assim, o entendimento infinito é o espaço em que todas as diferenças

e distinções que constituem a realidade são pensadas. “Não existe vazio na natureza”,

diz Espinosa, e entretanto, em algum lugar são compreendidas suas infinitas diferenças

como distâncias estritamente internas ao existente. Poderíamos então arriscar, a modo de

conclusão: a compreensão das infinitas distinções em sua conexão necessária constitui o

que em diversas oportunidades se concebeu como estrutura. Só que o contexto espinosano

de uma tentativa de pensar, outra vez, o que com essa noção se procurou referir, tem que

transformar, sem dúvida, toda a questão. Uma compreensão espinosana das estruturas terá

que implicar, certamente, uma crítica do “estruturalismo”; uma crítica do seu formalismo

e de sua tendência, presente em várias de suas versões, a isolar, idealizando-a, uma

suposta estrutura invariável, válida para explicar toda e qualquer realidade. Como seria

o estruturalismo de novo tipo que, a partir da obra de Espinosa, realizasse um diálogo

crítico com as versões mais lúcidas do pensamento estrutural? Enfim, aqui só podemos

nos colocar isso como pergunta. Terminemos, então, explicitando melhor a conexão que

sugerimos. A articulação estrutural da diversidade de realidades que constituem uma

única realidade infinita existente, como forma de ser de um conhecimento necessário, se

dá no entendimento infinito de Deus; de tal maneira que este, enquanto compreensão de

todas as diferenças da existência em sua irredutibilidade, seria o espaço das estruturas.

Assim, acolher as estruturas constituiria o privilégio do pensamento; o que também se

poderia expressar com esta fórmula: o privilégio do pensamento é ser materialista.

The “privilege of thinking”: an essay to interpret

Abstract: We consider in this article a particular form of the “battle of ideas” which we differentiate from other ways of open confrontation, as the refutation. It has to do with a subtler modality that tries to meddle in the relative weights of the theoretical components of certain conceptions. We associate this form of the theoretical production with the materialistic critic; this allows us to connect Espinosa’s and Marx’s theoretical efforts, and also to essay an interpretation of a controversial theory – relative to the privilege of the attribute of thought – that Deleuze elaborates in his reading of the Ethics. Keywords: critic, materialism, marxism, infinite understanding, structure.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1. DELEUZE, G.: Spinoza et le problème de l’expression, Paris, Éditions de Minuit, 1968.

2. ESPINOSA, B. : Ética Demonstrada em Ordem Geométrica, tradução em andamento feita pelo Grupo de Estudos Espinosanos, USP, São Paulo.

3. MOREAU, P-F. : Problèmes du spinozisme, Paris, Vrin, 2006.

NOTAS: 1 - Como o deixa claro Espinosa na Ética: “se a Mente, enquanto imagina coisas não existentes como presentes a si, simultaneamente soubesse que tais coisas não existem verdadeiramente, decerto atribuiria esta potência de imaginar à virtude de sua natureza, e não ao vício; sobretudo se esta faculdade de imaginar dependesse de sua só natureza, isto é (pela def. 7 da parte I), se esta faculdade de imaginar da mente fosse livre.” (Espinosa 2, II, P17, esc.).

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Silvana de Souza Ramos

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O vigor crítico da sagesse montaigniana

Silvana de Souza Ramos*

Resumo: O pensamento renascentista foi responsável por uma vigorosa reflexão sobre a posição metafísica do homem no cosmos e sobre o papel da ação no interior da vida social. Tendo em vista este contexto, nosso artigo pretende discutir o pensamento de Montaigne, tanto no que se refere a sua filiação às pretensões humanistas, quanto no que diz respeito às divergências que o separam dessa vertente (em suas diversas nuances), especialmente aquelas que permitiram o engendramento da manière peculiar ao filósofo – a forma ensaio. Isto nos permitirá, ademais, refletir sobre o potencial crítico do ensaísmo frente a alguns valores da Modernidade.Palavras-chaves: Montaigne, humanismo, Renascimento, ensaio, crítica.

A tarefa de decifrar qual o significado do humanismo na filosofia de

Montaigne é bastante ingrata. A começar pelo fato de que não há consenso nem mesmo

a respeito do que seja – num sentido mais amplo – o humanismo renascentista. Seguindo

P. O. Kristeller, a expressão humanismo foi cunhada no início do século XIX, embora o

termo humanista (humanista) remonte ao século XV tardio, tendo sido de uso corrente no

século XVI. O humanista era um mestre ou representante profissional das humanidades –

os studia humanitatis – que compreendiam cinco disciplinas: gramática, retórica, poética,

história e filosofia moral (Kristeller 11, p. 194-5). Neste sentido, Montaigne estaria longe

de ser um humanista, visto que se recusava a caracterizar os Ensaios como uma obra de

especialista, e insistia em dizer que nunca projeto semelhante, o de “pintar a si mesmo”,

fora levado a cabo anteriormente.

Na contracorrente da perspectiva de P. O. Kristeller, Eugenio Garin

se nega a reduzir o humanismo ao trabalho dos profissionais das humanidades, pois

isto significaria, por um lado, minimizar a ruptura que o Renascimento representou em

relação aos valores da Idade Média, e, por outro, reduzir o trabalho dos humanistas a um

“mero fato escolar ou literário” (Garin 6, p. 83-4). Mas, a despeito desta discordância, * Doutoranda em Filosofia pelo Depto. de Filosofia da USP.

os autores aceitam que o pensamento produzido na Renascença foi responsável por uma

vigorosa reflexão sobre a posição metafísica do homem no cosmos, e por uma avaliação

do papel da ação do homem na sociedade, o que nos permite encontrar, ainda que em

chave diversa, as preocupações de Montaigne em consonância com as investigações

do humanismo. Segundo P. O. Kristeller, o saber humanista, se não produziu um corpo

de idéias sistemáticas, “teve um efeito fermentador no campo do pensamento moral, e

proporcionou um grande conjunto de idéias seculares que haveriam de influir nos séculos

seguintes, e que de nenhuma maneira foram eliminadas pela Reforma” (Kristeller 11, p.

202). E, de acordo com as análises de Eugenio Garin, foi no Renascimento que entramos

em contado com o momento em que se afirmaram as exigências mais vivas de nossa

cultura, isto é, “a preocupação de nos definirmos através do ‘outro’, a aquisição do sentido

da história, que se confunde com o sentido do tempo, e o fato de considerar a história e o

tempo como dimensões próprias da condição humana” (Garin 6, p. 87).

Neste sentido mais amplo, os homens da Renascença se relacionavam

com os autores do passado – se quisermos sintetizar numa palavra – de maneira

crítica. Ao mesmo tempo em que as categorias medievais lhes pareciam insuficientes e

insustentáveis, o encontro com o passado clássico, do qual se reivindicavam herdeiros

legítimos, possibilitava a emergência de uma nova maneira de conceber o homem:

Descoberta e restauração do pensamento antigo, esta nova reflexão aparece não como uma confusão com seu objeto mas como um colocar-se à distância. Ela se aplica em definir, por uma démarche que lhe é própria, a verdadeira relação, novamente descoberta, entre o eu e o objeto, entre o homem e o mundo histórico que o modela, ao qual ele se opõe, e no contato com o qual se descobre ou se forma (Idem, p. 86-7).

A reflexão sobre a natureza do homem se insere, portanto, nessa lógica. Quer

dizer, embora ela não seja propriamente original (visto que suas fontes são a Bíblia, a

patrística e, evidentemente, os clássicos gregos e romanos), o Renascimento, ao retomá-la,

“caracterizou-se por um incremento e intensificação na pesquisa da natureza do homem”

(Kraye 10, p. 306).

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Silvana de Souza Ramos

Exemplo disso é o pensamento de Marsílio Ficino no qual a glorificação

do homem assume um significado filosófico definido. A partir de uma revisão do esquema

plotiniano, Ficino enfatiza dois aspectos principais: a universalidade do homem e sua

posição central no universo. Nesse intuito, o autor formula que “a alma é verdadeiramente

o meio de todas as coisas criadas por Deus (...). Está no centro entre os seres mais altos

e os mais baixos” (Kristeller 11, p. 63-4.). Em outros termos, o neoplatonismo de Ficino

entendia o homem como ligação ontológica – vinculum mundi – entre os mundos material

e inteligível. Na esteira desta formulação, surge o pensamento de Pico della Mirandola.

O autor compartilha com Ficino a idéia de que o homem é um microcosmo onde todas as

formas de vida estão contidas. Todavia, em seu Discurso sobre a Dignidade do Homem,

o autor “remove o homem do centro da hierarquia Neoplatônica e lhe dá um estatuto

ontológico indeterminado” (Kraye 10, p.313). Segundo Pico della Mirandola, Deus, após

construir o universo e estabelecer os atributos e o lugar devido a cada criatura, precisava

ainda definir os dons do homem – “sua última obra”. Naquele que estava destinado “a

louvar nos outros a liberalidade divina”, e que não poderia receber nenhum dos bens

particulares já distribuídos à criação, foram concedidos todos os dons. Posto no “meio do

mundo”, o homem, segundo seu “grau de arbítrio”, deveria conquistar um determinado

estatuto ontológico. No exercício de sua liberdade, cultivando as “sementes de toda espécie

e germes de toda vida” (Mirandolla 17, p. 51-3), ele realizaria sua humanidade através da

cultura, “no esforço de humanização que enreda a natureza em seu movimento” (Cardoso

3, p. 47). O Discurso de Pico sintetiza, no seu radical elogio da dignitas hominis, os ideais

de uma época: “A celebração das prerrogativas do homem é para tantos renascentistas

chamamento para a realização de sua verdadeira essência, para a instauração de uma

humanitas que subtrai à barbárie por meio do estudo e do cultivo” (Idem, p. 47).

Ora, o adiantamento crítico de Montaigne em relação a tais ideais

é notado por muitos de seus leitores. É certo que compartilha com seus antecessores

renascentistas a paixão pelas letras clássicas atada à reflexão em torno da vida moral. É

certo também que o ensaísta coloca o homem no centro de suas investigações. Entretanto,

à “fé de seus contemporâneos no poder infinito do espírito e na progressão constante do

conhecimento, ele opõe a instabilidade, caducidade e incerteza de todo saber” (Idem,

p. 48). Para Montaigne, o homem não ocupa um lugar privilegiado na criação. Afinal,

como indica Hugo Friedrich, “a idéia de humanidade de tipo romano e humanista, que

cerca a dignidade essencial do homem com precisão e firmeza para fazer a sua educação,

desapareceu dos Ensaios” (Friedrich 4, p. 105). Quer dizer, a perspectiva humanista não

dá conta do projeto intelectual montaigniano, o que poderia nos levar a questionar se no

limite Montaigne pode ser considerado um filósofo humanista.

Outra perspectiva possível é a de considerá-lo como um precursor da

filosofia vindoura uma vez que sua influência sobre Descartes e Pascal, por exemplo,

é incontestável. Deste ponto de vista, Montaigne seria um elo entre a crise dos anseios

renascentistas e o surgimento do homem e do pensamento modernos. Não foram poucos

os que seguiram esta via. Entretanto, fazer isto significaria transformar Montaigne num

mero filósofo de transição, responsável pelo desfraldar das cortinas para que a grande

filosofia pudesse entrar em cena. Significaria, portanto, negar-lhe originalidade e decidir

que sua posição filosófica não teria força suficiente para se sustentar. Montaigne teria,

simplesmente, limpado o terreno da tradição para que Descartes pudesse, no século XVII,

refundar o saber, salvaguardando o pensamento da tirania da dúvida.

Tais dificuldades de enquadramento da filosofia montaigniana não

impediram, contudo, que uma leitura forte de sua obra se cristalizasse. Pós-humanista ou

pré-moderno, Montaigne marcou história como um representante legítimo do ceticismo.

Não é por acaso que a imagem de Montaigne como um filósofo refugiado em seu castelo,

entretido com a intimidade de seus pensamentos, suspenso na dúvida cética e apoiado no

passado literário clássico, sintetiza uma leitura recorrente de seu projeto intelectual. A

retirada consciente e decidida da vida pública marcaria sua entrada na vida do espírito, já

que a dolorosa perda do amigo La Boétie obrigara o filósofo a buscar abrigo na cidadela

interior, arduamente apaziguada pelo trabalho da escrita. Longe das aparências, a salvo

do baile de máscaras da vida social, Montaigne aceitaria dividir sua intimidade apenas

com a companhia segura e sincera dos livros que o ajudariam, enfim, a reconstruir a

identidade perdida. Evidentemente, esse movimento de reclusão e de reconstrução de

si estaria garantido por sua posição social. Afinal, “não há intimismo sem privilégio de

classe” (Arantes 2, p. 69-73). Os Ensaios seriam, pois, o testemunho do nascimento do

intelectual moderno, por um lado, incapaz de engajar-se na vida concreta e mesquinha

dos homens e, por outro, comprometido com o cuidado de si e com a manutenção da paz

interior que só o desapego a qualquer dogma pode trazer.

Alguns dados da biografia de Montaigne corroboram para essa leitura.

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Afinal, muitos eventos produzem no filósofo uma aversão confessada à instabilidade da

vida pública e o amor pelo prazer da intimidade e do ócio. Seu casamento se devera

às conveniências; não há indícios de que tenha sido um pai muito presente; seu lugar

no parlamento fora comprado pela família; o título de nobreza, pelo avô. Consta ainda

que, provavelmente, seus ancestrais tenham sido judeus refugiados da Espanha, e que

buscaram asilo na França. Nenhum terreno fixo, nenhuma tradição forte, nada que possa

lhe fornecer estabilidade social ou de crença. Em suma, ninguém mais do que Montaigne

poderia representar a figura do “homem dinâmico”, descrita por Agnes Heller. Ninguém

menos apto para sustentar os ideais renascentistas, tais como os formulados pela pena de

Pico della Mirandola.

Cabe perguntar, entretanto, se essa areia movediça não constituiu

o solo fértil de uma filosofia potente, cuja força crítica fora capaz de alterar os signos

do humanismo em suas principais referências colhidas da antiguidade clássica. Nestes

termos, nem mesmo o ceticismo – traço decisivo da imagem que herdamos de Montaigne

– estaria a salvo de uma elaboração pessoal. Em suma, nas três correntes filosóficas

importantes que cercam a formação intelectual de Montaigne – o estoicismo, o ceticismo e

o epicurismo – perceberíamos o quanto a apropriação de tais elementos está sujeita a uma

crítica refinada que propiciou a formulação de um humanismo próprio a Montaigne.

É preciso apagar da imagem tradicional de Montaigne a idéia de

que o refúgio buscado na escrita encontra como amparo a segurança de uma cidadela

interior. Ora, para desfazer tal imagem, ou pelo menos nuançar os detalhes ocultos pela

simplificação que ela representa, é necessário compreender com mais profundidade

os passos que levaram à formulação daquilo que realmente constitui a originalidade

filosófica de Montaigne: a forma ensaio. É preciso, pois, rememorar a gênese da retirada

ao castelo e mostrar que a solidão não garante inicialmente qualquer tipo de estabilidade.

Conseqüentemente, é preciso mostrar que o ideal estóico de sabedoria é a primeira ilusão

abandonada por Montaigne. A ataraxia estóica se sustenta na compreensão segundo a qual

é possível circunscrever sabiamente um universo interior, um “eu”, ou, como formulara

Marco Aurélio, uma “cidadela interior” alheia aos apelos das paixões e indiferente aos

caprichos da Fortuna: Circunscrever-se, delimitar-se a si próprio, é praticar este triplo exercício: é, na ordem do assentimento, não aprovar os juízos de

valor que sejam influenciados pelo corpo ou pelo sopro vital (que não nos concernem); é, na ordem do desejo, reconhecer que tudo o que não depende de minha escolha moral me é indiferente; é, na ordem da ação, ultrapassar a inquietação egoísta do corpo e do sopro vital, para se elevar ao ponto de vista da Razão, comum a todos os homens, e, portanto, querer o que é útil ao bem comum (Hadot 7, p. 136).

Ora, nenhum destes exercícios é admitido por Montaigne. Em primeiro lugar,

porque o eu descrito nos Ensaios é encarnado. Mais que isso. A idéia de indiferença

aos apelos do corpo só se sustenta no estoicismo devido uma concepção precisa de

transcendência, inaceitável para Montaigne. Michael Screech, em seu importante estudo

sobre a formulação da sagesse montaigniana como recusa das vias da transcendência

(platônica, estóica ou religiosa), mostra que o êxtase pressupõe a aceitação de uma alma

substancial, livre e soberana em relação ao corpo, capaz de ultrapassá-lo pelo trabalho

do pensamento, da arte e da contemplação. Ora, basta dar uma olhada nos principais

capítulos dos ensaios – mesmo naqueles em que o estoicismo comparece com mais vigor

– para notarmos que o “eu” de Montaigne é mistura de corpo e alma, cuja costura é

impossível desatar sem que se desfaça nossa humanidade.

Isto traz conseqüências importantes. No que concerne à sagesse

propagada pelos Ensaios, a correção moral não poderá fazer apelo às vias da transcendência

nem, muito menos, adotar como modelo a recusa das paixões como característica dominante

do sábio. O estoicismo crê que, na ordem do assentimento, ou seja, na formulação de

nossas idéias verdadeiras, o sábio é capaz de aceitar apenas as representações que o

tocam de maneira evidente. A sabedoria pressupõe, portanto, a representação objetiva

ou adequada da realidade e impede que juízos provenientes das perturbações do corpo e

das paixões obscureçam o assentimento. Quer dizer, é na cidadela interior – onde reside

a parte diretriz da alma e a liberdade de assentir e dar valor ao que nos é externo – que

se configura o que está em nosso poder e conseqüentemente nos define. Portanto, é a

partir de sua soberania e liberdade que o homem pode elevar-se à Razão universal (fonte

do bem comum) e recolher-se ao ponto de vista do presente, evitando assim as inúteis

preocupações com o passado e o futuro, que não estão em nosso poder e, portanto, não nos

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concernem. Jean Starobinski foi o responsável por mostrar como se deu o abandono desse

ideal de vida regrada e apática, sustentado pela reclusão à vida interior e pela indiferença

em relação ao exterior. O autor pondera que, em Montaigne, há um processo que vai da

tentativa frustrada de seguir os exempla estóicos à formulação de uma manière própria de

correção. Assim, a sagesse montaigniana aceitará o desafio de lidar com as mazelas do

corpo (que inevitavelmente atingem a alma) e com o desregramento imposto pela Fortuna

e pelas paixões.

Além disso, é preciso salientar que a solidão jamais se configura

plenamente nos Ensaios. Lembremos que, já na abertura do livro, Montaigne delimita o

alcance inusitado de sua empreitada: “sou eu mesmo a matéria de meu livro” (Montaigne

14, p.4). Trata-se de uma busca voraz da própria identidade. Entretanto, paradoxalmente,

essa dissecação de si exige a figura de um outro a espreitá-la e a conferir-lhe solidez. A

retirada ao castelo anunciava evidentemente que o amigo (encarnado na emblemática

figura de La Boétie) era o paradigma de associação virtuosa reivindicado pelos Ensaios.

No entanto, essa figura, desde o início da escrita da obra, anunciava-se como ausência.

De fato, enquanto a Fortuna o permitiu, Montaigne vivera uma amizade plena ao lado de

La Boétie. Sem temer a hipérbole, afirma-nos o filósofo: “Desde o dia em que o perdi (...)

não faço senão me arrastar languescente; e os próprios prazeres que se me oferecem, em

vez de consolar-me, redobram a tristeza de sua perda” (Montaigne 14, p.288). O primeiro

passo para vencer a dor foi o “gesto teatral”1 de retirada para o castelo. Montaigne afasta-

se dos afazeres públicos, da vita activa, e encontra apoio na terapia do otium cum literis.

E, no intuito de vencer a melancolia, busca recuperar a identidade perdida – a constância

virtuosa que a amizade de La Boétie incitava – através da escrita. Entretanto, a relação

passada há de ser presentificada pela obra, ou seja, a associação virtuosa será encarnada

no e pelo livro.

Ora, a reivindicação da presença do amigo como alteridade ideal

confere um escopo preciso à sagesse buscada pelo ensaio – a sagesse montaigniana se

realizará na associação e na comunicação:

requerendo a comunicação, pedindo a aquiescência da testemunha (leitor, espectador do retrato), a exigência estética abre a possibilidade de uma nova ética – ética que não encerra o indivíduo

no dever da silenciosa autarcia, mas que o destina à exigência da veracidade na representação que faz de si a um destinatário exterior e que o obriga a buscar em outrem a garantia de sua presença para si mesmo (Starobinski 19, p. 36).

Quer dizer, embora o conhecimento de si arraste o filósofo para a solidão, em

nenhum momento a investigação priva-o do convívio, já que a alteridade é essencial

para a construção da identidade e da sagesse buscadas pelos Ensaios. Conseqüentemente,

é preciso salientar que a afirmação da fraqueza do espírito humano para alcançar uma

verdade absoluta (o famoso ceticismo de Montaigne) não o impele à renúncia do saber, na

medida em que os Ensaios pretendem construir uma sagesse que não mais se consolida pela

fé, pela sabedoria divina ou pelo pressuposto de uma ordem racional universal acessível

ao sábio. É neste ponto que surge o empreendimento ensaístico como construção positiva

de um saber mediado pela constante referência à alteridade.

Em linhas gerais, “essai” significa exame, tentativa, esboço, esforço,

procura. Nos termos de uma ciência experimental, o ensaísta seria, grosso modo, aquele

que submete os dados naturais à experimentação e mede os efeitos obtidos. Porém,

transposta para as realidades morais e espirituais, e suas possíveis pesquisas, a palavra

ganha uma diferente gama de sentidos em Montaigne e em Bacon. O último, no Novum

Organon (II, 10 e anexo final), propõe a passagem da experiência – vaga ou errante

– ao experimento – ou ensaio lucífero e frutífero – e para isso apresenta a idéia de

uma “História Natural e Experimental” que sirva de base à “verdadeira filosofia”. Em

outras palavras, introduz a idéia de método ou de tratamento metódico da experiência (o

experimento) como condição da indução adequada ao conhecimento verdadeiro. Mais

tarde, no Ensaiador, Galileu apresenta a idéia do ensaio como passagem da experiência

imediata (sensorial, espontânea, aleatória) ao experimento ou à experiência dirigida e

controlada pela razão e auxiliada pelos instrumentos técnicos (luneta, balança, plano

inclinado etc.). Tanto para Bacon como para Galileu, a experiência dirigida e controlada

deve ser longa e circunstanciada para que dela provenha uma ciência da natureza.

Embora, como estes últimos, Montaigne também pratique a idéia de experiência longa e

circunstanciada, em Bacon e Galileu as circunstâncias são controladas. Já para Montaigne

elas constituem, de um lado, o campo da Fortuna e, de outro, saberes que procuraram

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cercar a própria Fortuna, isto é, a tradição, cuja diaphonia repõe a Fortuna. Quer dizer, em

Bacon e Galileu, o ensaio é controle metódico sobre a natureza; em Montaigne, encontro,

embate, percurso que pesa opiniões próprias e alheias. Em Bacon e Galileu, o outro, isto

é, a natureza, deve ser subjugada pelo conhecimento; em Montaigne, o outro é a mediação

para acercar-se de si mesmo. Em Bacon e Galileu, a alteridade é o objeto do ensaio; em

Montaigne, o ensaio é reflexivo e seu objeto é o próprio ensaiador ou ensaísta. Mais do

que encontro com um eu pressuposto, o ensaio é experiência de nossa própria mobilidade

e da mobilidade de tudo que nos cerca e atinge. Assim, a investigação deve oscilar de

acordo com as mudanças no olhar do ensaísta e de acordo com a fluidez da experiência.

Daí que Montaigne se recuse a caracterizar seu trabalho como método, dada a rigidez que

o termo implicaria.

Cabe lembrar aqui o artigo de Adorno “O ensaio como forma”, pois

este salienta que a dúvida sobre o direito absoluto do método só se realizou no ensaísmo.

Segundo o filósofo alemão, o ensaio não entende as condições do conhecimento como

estáveis e controláveis. Neste sentido, o ensaísta tem consciência da “não-identidade”

do sujeito e do objeto. Essa consciência imprime ao ensaísmo um ilimitado esforço de

exposição. Então, o aspecto assistemático, fragmentado, fortuito, ametódico do ensaio se

converte num rigor de outra ordem, já que o como da exposição tem de salvar, enquanto

precisão, o que é sacrificado pela renúncia às definições rígidas, para que não se submeta

o objeto à arbitrariedade de significações conceituais decretadas de uma vez para sempre.

O ensaio exige, mais do que o procedimento de definição ou de conceitualização, a

interação dos conceitos no processo da experiência espiritual. Nele, os conceitos não

constituem um contínuo operativo e metódico; ao contrário, eles se apresentam como

momentos que se entretecem como os fios de uma tapeçaria. A fecundidade do pensamento

– afirma Adorno – depende da densidade desse tecido. Ora, esta preocupação aparece em

Montaigne através de formulações como: “À medida que meus devaneios se apresentam,

vou amontoando-os; ora eles se precipitam em bando, ora se arrastam em fila. Quero que

vejam meu andamento natural e habitual, tão desencontrado quanto é” (Montaigne 15, p.

116). Isto significa que Montaigne escreve porque quer conhecer-se e fazer-se conhecer.

Para tanto, não é necessário que fale somente de si, porquanto os Ensaios “o representam,

ainda que nada digam dele mesmo” (Tournon 20, p.79). Quer dizer, o alvo da empreita –

Michel de Montaigne – não se revela apenas naquilo que diz de si mesmo:

A reflexão que se inscreve na obra inspeciona os relevos e marcas da identidade do escritor enredados no seu movimento mesmo de abertura para o mundo, na aplicação de seu pensamento às mais diversas matérias, nas múltiplas modalidades de sua atuação: quer descreva, aprecie ou especule, quer deseje, rejeite ou delibere, em vista de qualquer assunto ou objeto, o autor observa-se e testemunha a si mesmo, pois manifesta nestes atos algum traço de sua constituição (...) qualquer ação é apropriada para dá-lo a conhecer (Cardoso 3, p.52-3).

Ora, é nessas e noutras “aberturas para o mundo” que o papel da alteridade surge

como o que possibilita a elaboração reflexiva dos Ensaios.

Quer dizer, ao mesmo tempo em que nega, por um lado, a via da

transcendência, e, por outro, a rigidez do método, Montaigne estabelece uma relação

lúdica com o exterior, aceitando a perturbação constante causada pelas aparências.

Neste sentido, longe de se conceber como um especialista das humanidades, Montaigne

representa a figura do intelectual que nega a divisão de trabalho, que defende a livre

investigação e a liberdade nas relações sociais pautadas pelo paradigma da amizade e

do encontro. Sendo assim, ele não se conforma à leitura de Horkheimer que encontra

em Montaigne o representante da nova nobreza, os burgueses adaptados, incapazes

de utopia e inimigos da revolução. Assim como Adorno, Horkheimer é um crítico do

intelectual profissional, fruto da separação social entre teoria e prática. Entretanto, porque

frisa o aspecto cético e desinteressado do pensamento montaigniano, o filósofo não pode

encontrar nos Ensaios o potencial crítico reconhecido por Adorno. Quando o último fala

em degeneração da forma, indica que, no seu início, o ensaio guardava um poder crítico

exatamente porque seu procedimento impedia a separação entre teoria e prática, uma

vez que o ensaio mantinha constante a relação entre conceito e objeto, impossibilitando

assim a hipóstase do conceito. O ensaio esforça-se por dar voz à natureza e à alteridade na

medida em que não assevera a identidade entre conceito e objeto, ou a dominação de um

pelo outro. Conseqüentemente, segundo Adorno, a forma ensaio, por um lado, não admite

a figura do intelectual indiferente ao exterior e, por outro, exige que se considere o caráter

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histórico imanente ao conceito. Para Horkheimer, entretanto, Montaigne – o aristocrata

cético – é uma espécie de intelectual Sancho Pança alheio aos problemas de seu tempo.

Evidentemente, Montaigne não é um revolucionário (e exigir dele tal

postura não passa de puro anacronismo). Entretanto, visto o que dissemos até aqui, cabe-

nos reconhecer que o “eu” de Montaigne e seu estilo de apresentação não podem ser

lidos nem como adesão imediata ao real, nem como puro conformismo sustentado pelo

gozo de uma liberdade interior. Horkheimer, porque nega tais características do ensaísmo

montaigniano, parece exigir de Montaigne o que Sartre exigia de Merleau-Ponty: definir-

se ou como um filósofo que se engaja e livremente toma partido, ou como um mero

profissional da academia ou um diletante. Contra essa exigência, Merleau-Ponty pondera:

“Há ocasiões (...) em que a vida em parte dupla cessa de ser possível, em que o interior

e o exterior não se distinguem” (Merleau-Ponty 13, p. 229). Somente uma concepção da

subjetividade pautada no dualismo entre corpo e alma e na liberdade de um ego centrado

pode conceber a ação humana como incondicionada e, conseqüentemente, indiferente

aos apelos do corpo e da Fortuna. Ora, o ensaísmo é, tal como define Adorno e como

pratica Montaigne, a recusa desta concepção. Neste sentido, Montaigne não é apenas um

herdeiro crítico do humanismo renascentista mas – podemos dizê-lo retrospectivamente,

de acordo com o diagnóstico merleau-pontiano – um crítico da longa tradição moderna,

nascida com Descartes, que concebe o sujeito como um ser desencarnado cuja ação não

envolve qualquer ambigüidade. Conceber a força crítica do ensaísmo exige, portanto, que

sejam revistos não apenas o contexto no qual surge o pensamento de Montaigne (ou seja,

o Renascimento e a figura do humanista) mas também os paradigmas dualistas segundo

os quais a Modernidade concebeu a experiência de pensamento.

Montaigne´s sagesse as critical apropriation of humanist heritage

Abstract: The Renaissance’s thought was responsible for a vigorous reflection on the metaphysical man’s standing in the cosmos and on the action’s role in the social life. Taking into account this context, this paper intends to debate on Montaigne’s thought, regarding its link as well its divergences from humanist thought, especially these divergences that made possible the development of the peculiar philosopher’s manière: the essay form. Keywords: Montaigne, humanism, Renaissance, essay.

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NOTAS:1 - A expressão é de G. Nakan.

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Fabrício Fernandes Armond

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A liberdade do ser em Leibniz

Fabrício Fernandes Armond*

Resumo: Neste artigo examinaremos como Leibniz estabelece uma noção de liberdade capaz de não entrar em contradição com a concepção de um mundo em que todos os acontecimentos sejam pré-determinados. Para tanto, veremos como Leibniz é capaz de dissolver a oposição entre a determinação e a contingência dos acontecimentos apoiando-se na noção de ser, sobretudo ao sublinhar o seu caráter ativo. Veremos ainda alguns aspectos em que esta proposta leibniziana contrapõe-se ao dualismo substancial cartesiano e visa superar impasses que daí resultam tanto para a física, pela total passividade da substância extensa, como para a metafísica, sobretudo nos aspectos em que a substância pensante adquire feições de mera negação da substância extensa, o que levará a uma concepção da vontade como pura arbitrariedade, incapaz de ser regulada por qualquer princípio, e do entendimento como mero instrumento a serviço dessa arbitrariedade. Palavras-chave: contingência, vontade, ser, onipotência, forma.

Na idade moderna os pensadores deparam-se com a perspectiva da

matematização do universo. A possibilidade de explicar o real pelo recurso exclusivo à

causalidade eficiente, que desponta com a nova mecânica, aponta para a concepção de

um mundo regulado por necessidade geométrica, o que traz à tona o que chamaremos de

problema da liberdade: como pode haver liberdade em uma natureza que funciona por

causas necessárias? Neste texto, examinaremos como Leibniz confronta este problema.

Procuraremos ver como ele, por meio da noção de ser, elimina a validade da noção de

indeterminação e, ao mesmo tempo, defende a existência da liberdade em Deus e no

homem. Concomitantemente, procuraremos estabelecer uma relação dessa operação com

as bases da metafísica moderna em Descartes, referência e alvo constante das formulações

de Leibniz em seu Discurso de Metafísica, de 1686.

Nosso percurso começará pela física. Por um lado, esse começo nos permitirá

partir daquele solo de onde brota a formulação moderna do problema da liberdade. Mas,

* Aluno de graduação do Departamento de Filosofia da USP.

por outro, e mais fundamentalmente aqui, o objeto da física, tal como considerado por

Leibniz, nos mostrará que a substância, ou, de forma mais geral, o ser, deve manifestar-

se como uma forma de ação, que deixa transparecer um princípio que o unifica e torna

idêntico. Este ponto será retomado posteriormente ao discutirmos a noção de vontade

em Leibniz, e será ele o “elo” que permitirá conciliar a contingência e a determinação

dos acontecimentos. Se tal formulação também se encontra em enunciados puramente

metafísicos de Leibniz, a exposição a partir da física tem a vantagem de nos deixar ver

mais claramente a insustentabilidade da noção de substância como mera passividade,

como no caso da substância extensa de Descartes, além de aludir à dissolução das

dicotomias cartesianas por Leibniz, ponto que, no entanto, não aprofundaremos. A partir

daí, já de posse da noção de forma de ação, passaremos a uma descrição esquemática

da mônada e de sua gênese em Deus, que nos levará ao problema da incompatibilidade

entre um mundo que deve exprimir a bondade de Deus e onde, ao mesmo tempo, não

deve haver contingência. Passando pela polêmica com Arnauld, chegaremos então ao

verdadeiro núcleo do problema da liberdade, que é o problema da existência ou não da

vontade autônoma e, conseqüentemente, de um espírito ontologicamente autônomo,

que não se reduza a mero fenômeno resultante da causalidade física. Assim, tendo em

vista o problema da liberdade como o problema da existência do espírito, abordaremos

relações entre a vontade e o entendimento que são suscitadas pelas diferentes concepções

de vontade dos dois filósofos, e poderemos rapidamente explorá-las tanto em relação

ao homem quanto a Deus. Isso nos permitirá abordar criticamente alguns pontos da

metafísica cartesiana a partir das colocações de Leibniz, notadamente: a maneira como

a concepção de vontade em Descartes leva a um choque entre a arbitrariedade divina e

a possibilidade de garantir a correspondência entre as idéias do sujeito e os objetos que

elas representam; a arbitrariedade como uma vontade “descolada” do ser do agente; a

subordinação da onisciência à onipotência de Deus. No fim desse percurso procuraremos

ter mostrado que o principal resultado da operação com que Leibniz dissolve a oposição

entre a contingência e a determinação é o desmantelamento da noção de vontade como

arbitrariedade pura, que não se orienta por um princípio racional.

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Contingência e liberdade

A ação livre é a ação voluntária. A noção de ação voluntária supõe a de

contingência, ou de um “espaço de indeterminação” em dois pólos: no mundo e no

agente. Se o mundo é completamente determinado por leis necessárias, não há “espaço de

ação” para o agente. E se o agente é a fonte de onde brota a ação voluntária, ele não pode

estar submetido à necessidade deste regime de causalidade, não podendo dissolver-se no

mundo.

A subjetividade como concebida por Descartes pôde, até certo ponto, contornar

este problema. A irredutibilidade da consciência, demonstrada em suas duas primeiras

meditações, indicaria a autonomia do sujeito em relação ao mundo físico e, portanto,

a existência de duas substâncias: a extensa e a pensante (Descartes 1). Se os estados da

substância pensante não são determinados por nada exterior, a substância extensa, por

outro lado, é passiva e submetida à necessidade geométrica, constituindo o campo da

objetividade.

Essa solução levantará dois problemas que Leibniz pretenderá ter superado com

uma concepção de substância que rejeita a dualidade substancial cartesiana. Primeiro:

como se dá a interação entre essas duas substâncias? Segundo: como se explica que a

modificação dos estados de algo não tenham uma causa exterior?

Ação: forma de ser e forma do ser

Em seus escritos, Leibniz proporciona mais de uma via para se chegar a essa

sua concepção de substância. Um acesso a partir de sua física pode ser encontrado entre

os parágrafos 17 e 22 de seu Discurso de Metafísica. No parágrafo 21 ele conclui que, “se

no corpo nada houvesse além de massa extensa, e no movimento senão mudança de lugar,

e se tudo devesse e pudesse deduzir-se exclusivamente dessas definições por necessidade

geométrica [...] o corpo menor daria ao maior, que encontrasse e que estivesse em repouso,

a mesma velocidade que tem, sem qualquer perda da sua própria” (Leibniz 3, §21, p.138).

Descartes estabelece que a substância do mundo físico é a extensão. Esvaziada de qualquer

qualidade adicional, essa substância extensa só admite dois estados: o movimento e o

repouso. Como o vácuo não é possível, já que entre dois corpos quaisquer sempre é

possível mensurar a extensão que os separa, esse movimento é o movimento da própria

extensão. Daí que Leibniz conclua que quando um intervalo extenso muda sua posição,

ele necessariamente tem que deslocar ao mesmo tempo uma extensão equivalente a essa

mudança. Se a velocidade é a medida deste deslocamento num tempo determinado,

consideremos dois intervalos extensos contíguos, corpo 1 e corpo 2. Se o corpo 1 desloca

determinado espaço num determinado intervalo de tempo, o corpo 2, a ele contíguo, não

importando o seu tamanho, será deslocado na mesma distância que o corpo 1, dentro do

mesmo intervalo de tempo, ou seja, o corpo 2 adquirirá a mesma velocidade do corpo 1.

Daí que se o mundo físico for composto somente de extensão, um corpo menor deverá

transmitir a um maior a mesma velocidade que tem, sem qualquer perda de sua própria.

Também por isso Leibniz, no mesmo parágrafo, afirma que a partir da física de

Descartes somos obrigados a admitir regras “absolutamente contrárias à formação dum

sistema” (Leibniz 3, §21, p.138), já que a própria noção de corpo torna-se um problema a

partir da conclusão acima. Se a velocidade é igualmente transmitida independentemente

das características dos corpos, o movimento nesse universo é uma reação em cadeia,

e todo o universo move-se uniformemente. Em outras palavras, se o universo é uma

massa extensa, suas partes não diferem de sua totalidade e umas das outras a não ser pelo

seu tamanho. Ao não possuírem nenhuma propriedade que possa delimitá-las dentro do

todo, já que são somente extensão, como todo o resto, essas partes não podem apresentar

um comportamento definido, sendo completamente passivas e indiferenciadas. Sendo

indiferenciadas, elas dissolvem-se na totalidade, já que não possuem dentro de si um

princípio de unificação que as delimite de tudo o mais. Assim, neste universo as próprias

noções de todo e partes tornam-se inviáveis e, com isso, a noção de sistema, que se define

justamente pela interdependência entre o todo e suas partes: partes que aqui não podem

ser isoladas, sendo infinitamente divisíveis. Desaparecendo as noções de todo, partes e

sistema, desaparece a de corpo, que não designa nada de definido, a não ser uma parcela

arbitrária de extensão. O que nos leva a duas questões: se a palavra corpo não designa

nada de definido, qual a validade de definir relações entre corpos?; e se nem mesmo é

possível delimitar um corpo, ou uma unidade qualquer dentro da totalidade do universo

físico, como determinar que há movimento ou qualquer comportamento, tanto das partes

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como do todo, se não é possível observar qualquer relação entre partes, já que não há

partes em sentido estrito? Em um universo completamente homogêneo, nem os corpos

nem os movimentos seriam possíveis.

Daí a importância da força na física leibniziana, contraposta à quantidade

de movimento, cuja distinção é demonstrada por Leibniz no parágrafo 17 do Discurso

de Metafísica (Leibniz 3, p.132-134). A força determina, no duplo sentido de que é

um princípio de ação e de que delimita o agente, que, como princípio de ação, não se

perde na total indistinção com todas as outras coisas. Por isso a identificação da força,

na física, com a substância: ela define o ente físico ao unificá-lo. É seu comportamento

padronizado, com um sentido, que torna o ente idêntico a si mesmo e o recorta do restante

do mundo. É então a unidade com esse comportamento padronizado que será a verdadeira

substância, e a força, na verdade, será a manifestação física de uma realidade metafísica

– a substância. Qualquer comportamento com um sentido manifesta uma unidade mais

íntima, o que permitirá a Leibniz concluir pela existência de finalidades na própria

natureza no parágrafo 18 do mesmo Discurso de Metafísica (Leibniz 3, p. 134 –135). O

que nos interessará na continuação da discussão sobre a liberdade é que o princípio que

unifica os seres e permite sua identidade – que eles permaneçam sendo eles mesmos – é

um determinado modo de ação, ou seja, um comportamento padronizado, passível de

delimitação: a forma de agir manifesta a forma de ser.

A Mônada: a história como desdobramento de um princípio

Mônada é a designação de Leibniz para essa substância. Pelo exposto acima,

ela é uma entidade formal. Desde os antigos a forma designa o que é idêntico nos entes.

Entre elas, portanto, não resta espaço para a ação voluntária – elas não podem receber de

um agente uma outra determinação além da que já as caracteriza como formas. A ação

voluntária só é possível devido à matéria, que, sendo o princípio caótico nos entes, é

unificada pela forma, mas nunca completamente: sempre resta uma inadequação dela com

a forma, por onde se insinua o movimento e a contingência, da qual depende a ação livre.

Disso concluiríamos que na natureza deve haver algo, diverso das mônadas, que possa

cumprir um papel análogo ao da matéria. Leibniz, no entanto, não reabilita tal concepção

e defende que o mundo é composto somente pelas mônadas, sendo completamente

determinado. Isso nos levaria a concluir que no mundo não deve haver liberdade, já

que ela pressupõe a contingência. Mas, para Leibniz, determinação não é sinônimo de

necessidade e, por isso, é possível conciliar contingência e determinação. Essa operação,

por sua vez, será possível devido à maneira com que Leibniz, diferentemente de Descartes,

concebe a onisciência de Deus.

Para Leibniz “as Mônadas são os verdadeiros Átomos da Natureza” (Leibniz 4,

§3, p.105). Isso implica que elas não têm extensão nem partes (a extensão é infinitamente

divisível), não podendo ser formadas por composição, nem destruídas por desagregação

(Leibniz 4, §§4-5, p.105). Por isso, mesmo que atuem como princípios de ação, precisam

ter vindo à existência por uma causa exterior a elas. Essa causa, por outro lado, sendo

a origem de todo o ser, deve concentrá-lo em si de forma totalmente incondicionada,

de modo a ter em si mesma o princípio de sua própria existência – do contrário teria de

haver uma cadeia causal infinita (Leibniz 4, §§37-38, p.109). Conforme Leibniz, “Esta

suprema substância única, universal e necessária, sem nada de externo independente dela,

e simples resultado de sua possibilidade, pode também julgar-se que não é suscetível

de limites e que contém o máximo possível de realidade” (Leibniz 4, §40, p.109). Essa

substância é Deus.

A perfeição absoluta de Deus deve conter todas as formas do ser em grau

último, como o poder, a ciência e a bondade (Leibniz 3, §§1-2, p.119), cujos contrários

designam formas do não ser. Como o mundo é criação de Deus, ele deve conter essas

formas do ser de Deus, embora de modo limitado. Assim, se consideramos que no mundo

existe o mal, o que há na verdade é a limitação do bem. Por outro lado, Deus não cria

arbitrariamente o mal porque, sendo infinitamente bom, deve necessariamente criar o

melhor dos mundos possíveis. Aqui está a raiz da mônada. Se o mal é o não ser, tanto

melhor será o mundo quanto maior o grau de realidade que ele contiver1. A fórmula dessa

diretriz é o maior número de efeitos para o menor número de princípios (Leibniz 3, §5,

p.122), de modo que este mundo deverá concentrar o maior grau de realidade possível

em suas menores unidades. No melhor dos mundos, então, se equaciona o maior grau de

ser pelas vias mais simples. O ser mais simples, por sua vez, é o espiritual, que em sua

unidade e simplicidade é capaz de conter uma multiplicidade infinita de percepções. O

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melhor dos mundos contém infinitas unidades espirituais – as mônadas – que se percebem

mutuamente. Dentro de cada uma delas espelha-se o infinito das demais mônadas, com o

infinito de suas percepções – infinito vezes infinito vezes infinito...– tendo-se o máximo

possível de realidade desdobrando-se de dentro das substâncias mais simples, que não

deixam, entretanto, de ser unidades reais:

“toda substância é como um mundo completo e como um espelho de Deus, ou melhor, de todo universo, expresso por cada uma à sua maneira, pouco mais ou menos como uma mesma cidade é representada diversamente conforme as diferentes situações daquele que olha. Assim, de certo modo, o universo é multiplicado tantas vezes quantas substâncias houver, e a glória de Deus igualmente multiplicada por todas essas representações de sua obra completamente diferentes” (Leibniz 3, §9, p.125).

Mas, se as mônadas são princípios de percepção, temos dois problemas: 1) o

que é o espaço e como as mônadas se manifestam nele como força? ; 2) como as mônadas

afetam umas às outras e têm acesso às percepções umas das outras?

Não seria possível desenvolver aqui todas essas respostas. Para nosso intento,

importa saber que as mônadas não interagem diretamente. Todas as percepções de cada

uma delas desdobram-se delas mesmas e nenhuma mônada é diretamente afetada por

outra. A harmonia entre todas elas é estabelecida por Deus (Leibniz 3, §14, p.129-131).

Por outro lado, para Leibniz o espaço não tem autonomia substancial alguma. A percepção

das relações espaciais não passa de uma percepção confusa das verdadeiras relações entre

as substâncias individuais, confusão implicada pela limitação de seu “ponto de vista”

(Leibniz 3, §12, p.127), e o princípio interno que induz à mudança nas percepções é o

que se manifesta na percepção do mundo físico como força, e que não deixa de ser o

princípio que unifica, dá sentido e caracteriza os entes, como a própria força em relação

à extensão.

As mônadas não são constantemente reguladas e munidas de percepções por

Deus. O ser delas é o princípio de sua ação, ou seja, suas percepções desdobram-se de

dentro delas mesmas (Leibniz 4, §11, p.106), já tendo sido efetivadas por Deus desde

sempre com a finalidade de estabelecer o melhor dos mundos. Assim, cada mônada, como

substância individual, já traz dentro de si tudo que lhe acontecerá (Leibniz 3, §9, p.125).

Pensemos em um homem: Adão, por exemplo. Ele é constituído de infinitas mônadas, uma

das quais sobressairá em nitidez de percepção entre todas, constituindo o que entendemos

por seu espírito. Desde sempre, tudo que acontecerá a Adão já está inscrito em sua noção

individual. E, com isso, todos acontecimentos de todo universo também estão inscritos

nessa mônada.

A partir daqui se assinalaria o fim da contingência e também da liberdade, que

pode ser sublinhado em dois pontos gerais: porque suas ações já estão predeterminadas,

o homem não é livre; e porque necessariamente deve criar o melhor dos mundos, Deus

não é livre (Leibniz 3, §3, p.120). Se a ausência da liberdade no homem contradiz

nossa experiência e traz impasses éticos pelo fim da noção de responsabilidade, além

de estabelecer uma dificuldade lógica para se conceber a conciliação de um universo

sem liberdade e a infinita bondade de Deus, a ausência de liberdade em Deus leva a um

absurdo lógico pela eliminação da Sua onipotência.

Vontade e possibilidades: crítica à mônada a partir de uma perspectiva cartesiana

Tais dificuldades demonstrariam a impossibilidade de a substância individual

de Leibniz superar a metafísica de Descartes (onde Deus também figura como o ser

perfeito). Ao discutir com Leibniz o Discurso de Metafísica, Arnauld, que compartilha

das posições cartesianas, constrói seus argumentos a partir da proposição: “que a noção

individual de cada pessoa encerra de uma vez por todas o que lhe acontecerá em qualquer

tempo” (Arnauld in Leibniz 6, p.88), donde ele conclui: “tudo o que aconteceu ao gênero

humano, e para sempre lhe acontecerá, deveu e deve acontecer com uma necessidade mais

do que fatal” (Arnauld in Leibniz 6, p.88). Os desdobramentos iniciais dessa observação

de Arnauld são: 1) Deus é livre para criar, mas não é livre (não tem poder) para interferir

no curso do que foi criado; 2) o homem não é livre.

O primeiro desdobramento não oferece dificuldade: sendo Deus onisciente,

previu todas as conseqüências do ato da criação. Interferir em seu curso só poderia depor

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contra Sua onisciência (Leibniz 6, p.76). Mas é a partir daqui que Arnauld aprofundará a

discussão e atacará uma das noções chave da metafísica leibniziana: a de possibilidades.

Ela é implicada pela de melhor dos mundos, donde se pressupõe uma escolha de Deus

entre outro ou outros mundos possíveis.

Arnauld inicia sua argumentação questionando “se não é senão em conseqüência

dos Decretos livres, pelos quais Deus ordenou tudo o que aconteceria a Adão e a sua

posteridade, que Deus conheceu tudo isto, ou se há (independentemente destes decretos)

entre Adão, por um lado, e o que aconteceu e acontecerá a si e a sua posteridade, por outro,

uma conexão intrínseca e necessária” (Arnauld in Leibniz 6, p.90). Ou seja, Arnauld

põe em questão se, antes da criação por Deus, haveria uma noção lógica de Adão que

contivesse tudo que aconteceria tanto a ele como a toda a sua descendência. Considerando

que essa é a posição de Leibniz, continua: “creio que supondes [...] que as coisas possíveis

são possíveis antes de todos os Decretos livres de Deus: donde se segue que aquilo que

está encerrado na noção das coisas possíveis, aí se encerra independentemente de todos

os Decretos livres de Deus. [...] Segundo vós há, portanto, uma ligação por assim dizer

intrínseca e independente de todos Decretos livres de Deus entre este Adão possível e

todas pessoas individuais e toda sua posteridade – e não só as pessoas, mas tudo que deve

acontecer-lhes de modo geral” (Arnauld in Leibniz 6, p.90). O que Arnauld questiona,

portanto, é a independência da possibilidade em relação a Deus, o criador de tudo. Tal

existência, no final, acabaria por contradizer a onipotência divina.

Para Arnauld, a possibilidade de existência supõe a vontade de Deus. E assim

não há ciência possível de algo que não possa existir:

“Acaso podemos conceber [...] que embora a ciência de Deus seja sua própria essência [...], que ele tenha, porém, a ciência de uma infinidade de coisas que poderia não ter, se não pudessem existir tais coisas? O mesmo se dá com sua vontade, que é também sua própria essência, onde tudo é necessário. Entretanto Deus quer e quis desde toda a eternidade coisas que poderia não querer. Vejo muita incerteza na maneira pela qual comumente representamos as ações de Deus. Imaginamos que antes de querer criar o mundo encarou uma infinidade de coisas possíveis, escolheu algumas e

rejeitou outras [...]. Sou forçado a crer que não passam de quimeras que nós formamos, e as chamadas substâncias possíveis, puramente possíveis, não podem ser outra coisa senão a onipotência de Deus, que, como ato puro, não tolera em si nenhuma possibilidade. Todavia podemos concebê-la nas naturezas que criou, pois, não sendo em essência o próprio ser, são necessariamente compostas de potência e ato [...]. Quanto a mim estou convencido de que, embora falemos tanto destas substâncias puramente possíveis, jamais concebemos qualquer uma que não derive da idéia de outra criada por Deus” (Arnauld in Leibniz 6, p.90).

Dentro da perspectiva cartesiana, Arnauld defende que, antes da criação, Deus

é tudo o que há. Seu poder é infinito. Por isso, Ele não tem necessidade ou obrigação

alguma e por nada é afetado, sendo puramente ativo. Absolutamente livre, Sua ação é

idêntica à Sua vontade (o atributo fundamental da substância pensante em Descartes,

juntamente com o entendimento). Assim, a criação é um ato absolutamente original, no

sentido mais forte desta expressão: Deus não cria somente tudo o que é, mas inaugura

também a própria forma do ser, e tudo isso de acordo com a Sua vontade, já que o nada

não tem potencial algum. Daí a total anterioridade, para Arnauld, dos Decretos livres de

Deus em relação a qualquer possibilidade: uma possibilidade só pode se oferecer após a

criação, e dentro dos limites estabelecidos por Deus.

Ao fim da argumentação de Arnauld temos, então, três problemas: 1) a noção

de possibilidades contradiz a onipotência de Deus, pois postula que há noções lógicas

independentes Dele; 2) Deus não é livre (portanto não é onipotente) porque é constrangido

a criar o melhor mundo possível; 3) as decisões humanas estão pré-definidas, portanto o

homem não é livre. Ou seja, além de forjar uma noção de possibilidades incompatível

com uma perspectiva criacionista, Leibniz destruiria a contingência, submetendo Deus e

o homem ao jugo das causas necessárias.

Arbitrariedade divina e solipsismo

Mas também no posicionamento cartesiano algo fica em aberto. A absoluta

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liberdade de Deus, que se manifesta pela completa insubmissão da vontade divina, é um

ponto obscuro no pensamento de Descartes: os desígnios de Deus são incompreensíveis,

neles se rejeita qualquer pretensão de conhecimento, entra-se no domínio do infinito, do

que é incapaz de ser apreendido pela finitude humana. Em Descartes, com efeito, a lógica

está constantemente sob ameaça: o gênio maligno é a imagem daquela desconfiança da

razão que opera sob a forma da dúvida metódica, capaz de deixar a própria razão em

suspensão até que a idéia de Deus possibilite a saída do círculo de ter que garantir a

razão pelos mesmos conteúdos postos em dúvida pela impossibilidade de assegurá-la.

Mas a questão é: até que ponto Descartes pôde livrar-se do gênio maligno admitindo

tal concepção da vontade de Deus? Quando dissemos acima que a criação do mundo

significa não só a criação dos seres, mas da própria forma do ser, dissemos que ali Deus

estabelece todas as verdades, como Leibniz lembra a Arnauld: “Vejo que o Sr. Arnauld

[...] não se preocupou com a opinião dos cartesianos, que sustentam que Deus estabelece

por sua vontade as verdades eternas, como aquelas tocantes às propriedades da esfera”

(Lebniz 6, p.100). Assim, por sua vontade, Deus poderia ter criado um universo em que

o triângulo tivesse ângulos internos com soma diferente de 180º, assim como diferentes

formas para o que é justo ou injusto, feio ou bonito, bom ou mau.

Na terceira meditação, após o exame de suas próprias idéias, Descartes conclui

que a idéia de Deus leva à constatação de que Deus existe e é perfeito. Sendo perfeito, não

poderia se preocupar em enganar o sujeito, já que a preocupação expressa uma carência,

e Deus seria imperfeito. Disso ele conclui que a correspondência entre objetos e razões é

possível e está garantida (Descartes 1, p.288-289). Mas o que permite a Descartes fazer

essa ponte? Nesta linha de raciocínio, Deus também manifestaria uma preocupação e uma

carência se procurasse garantir que os raciocínios humanos não fossem inerentemente

falhos e correspondessem a objetos reais. A garantia, então, estaria numa constatação

positiva: a clareza e distinção de certas verdades, como as matemáticas, por exemplo

(Descartes 1, p.269-270). Assim, Deus poderia ter criado qualquer mundo, mas de fato

criou um em que são possíveis a clareza e a distinção, o que constatamos empiricamente.

Se a clareza e a distinção são dadas, o sujeito só poderia se enganar através de uma

intenção de Deus, que manifestaria, então, uma carência. Deus, portanto, não é enganador

e a objetividade é possível.

Examinando de perto este argumento, vemos que após concluir pela

indestrutibilidade do cogito, Descartes deduz que se ele manifesta uma certeza, possuímos

necessariamente os critérios da verdade, que são a clareza e a distinção (Descartes 1,

p.269-270). Daí a possibilidade de Descartes manejar as idéias que apresentam clareza e

distinção, entre elas a de Deus, e concluir seu raciocínio a fim de garantir a possibilidade

da objetividade. Mas aqui fica uma questão: dentro da argumentação de Descartes é

realmente possível transplantar a indestrutibilidade do cogito para os mesmos critérios

de clareza e distinção que encontramos na matemática ou em outras idéias? Ora, se fosse

realmente possível identificar a resistência do cogito com a das verdades matemáticas,

por exemplo, qual seria a necessidade de se duvidar das matemáticas e de outras verdades

equivalentes? Se a investigação de Descartes nas Meditações teve que prosseguir até o

ponto de o cogito se apresentar como uma verdade primeira, é porque ele apresenta um

grau certeza que as outras idéias não possuem, e as conclusões tiradas a partir delas,

inclusive sobre o ser de Deus, continuam tão duvidosas quanto antes era duvidoso que a

soma de 2 e 3 fosse 5, de modo que o raciocínio deve permanecer paralisado e não pode

concluir se é razoável supor qualquer coisa sobre Deus ou coisa alguma.

Assim, com a impossibilidade de se transplantar a certeza do cogito para

outras razões, mesmo que admitíssemos que o raciocínio de Descartes acerca de Deus

estivesse correto e considerássemos que Deus manifestaria uma carência ao se preocupar

em enganar o sujeito, deveríamos novamente considerar que Deus manifestaria uma

preocupação e, portanto uma carência, se ao criar o mundo se preocupasse em garantir

que as representações do sujeito fossem corretas. Se a vontade de Deus é absolutamente

livre, a nada se submetendo, e a forma do ser é totalmente delineada no momento da

criação, nada impede que estejamos em um universo em que somente a certeza de si

do sujeito possa ser garantida, já que, pelo que dissemos, nenhuma idéia ou raciocínio

dispõe do mesmo grau de certeza que o cogito. Ou seja, se Deus é indiferente e pode

criar qualquer mundo, por mais absurdo que se represente para nossa razão, a própria

razão não pode ter critérios para avaliar a correspondência das idéias com objetos, já que

nem mesmo a coerência interna do raciocínio estaria garantida. Assim, nas conclusões de

Descartes, o círculo é deslocado, não dissipado: por um lado, a razão é garantida por Deus

que, por outro, tira-lhe a potência.

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A liberdade como exercício do ser: a vontade em Leibniz e sua oposição à arbitrariedade

Entretanto, se com a permanência do cogito cartesiano nos está assegurada

ao menos a validade do princípio de identidade, talvez possamos conceber a vontade

divina de outra forma. Já dissemos que tanto para Leibniz como para Descartes Deus

é absolutamente perfeito. Tem-se aqui uma definição. Mas essa fórmula até aqui não é

suficiente para determinar o ser de Deus de forma a nos indicar qual partido tomar, ao

menos aparentemente. Em Leibniz a vontade é determinada por um princípio fundado

no ser de Deus, o que a torna eterna. Em Descartes a vontade não se submete a princípio

algum e Deus pode mudar ou permanecer em seu desígnio. O que é, então, a vontade?

Até aqui ela se evidencia como um princípio ou causa de movimento: é de acordo com ela

que o poder de Deus tem o “impulso” para criar o mundo. Mas, tomada em si, a própria

vontade é uma espécie de movimento: ela é uma disposição para algo, uma tendência que

dirige um ser para algo. Ela é tender para algo. Essa tendência pode ser motivada por um

objeto exterior, o que denota uma passividade. É o que conhecemos tradicionalmente por

desejo. No desejo o ser é dividido: existe em si mesmo, mas se concentra em um outro,

de modo que não está totalmente em si mesmo. Mas, se não está em si mesmo, tampouco

está no outro; daí a necessidade de se dirigir a esse outro para tomar posse dele e, ao

mesmo tempo, tomar posse de si mesmo, concentrado nesse outro. Em parte em si mesmo

e em parte em direção a outro, o ser que deseja é um ser cindido. E assim, de certa forma,

o ser que deseja se perde de si mesmo no objeto do desejo, o que acontece de uma forma

tão radical que dirige seu ser para o outro como ato, que não se efetiva somente mediante

alguma forma de resistência. Mais radical que uma passividade mecânica, que move algo

“de fora”, o desejo o move “por dentro”, ao cindi-lo mesmo que momentaneamente2.

Tal concepção naturalmente não pode ser aplicada a Deus, que não pode ser cindido

em função de algo exterior para o qual ele tenha a necessidade de se dirigir para se

completar. Haveria uma alternativa para se conceber a vontade? Uma vontade que não

for desencadeada por algo exterior só pode provir do próprio ser. O que provém de um

ser só pode concordar absolutamente com a sua natureza, ou seja, por um lado deve ser

idêntico a essa natureza de modo a não poder contradizê-la, e, por outro, deve exprimi-la.

Uma vontade que não for dirigida por um objeto deve, então, exprimir o ser do sujeito, a

sua natureza. Ou seja, ela deve obedecer a um princípio, e não porque ela é constrangida a

isso, mas porque ela é manifestação desse princípio e porque não pode ser nada diferente dele.

Ora, se essa vontade só pode ser a manifestação do ser, a genuína manifestação

do ser é a própria vontade. Ela é a tendência natural que emana do próprio ser, e é idêntica

a ele, não sendo nada mais que a afirmação desse ser em ato, o que é muito diferente

de qualquer coisa que precise ser saciada por meio de um objeto qualquer, seja ele

“real” ou “espiritual”. Enquanto que no desejo algo é assimilado, na vontade ocorre o

desdobramento de si; enquanto que no desejo é o objeto exterior que ressoa dentro de um

sujeito, a vontade é nada menos que o ressoar desse ser no exterior. Se consideramos que

o ser de Deus é idêntico (ou seja: que Deus não deixa de ser Deus), temos que considerar

que sua vontade deve permanecer sempre a mesma, obedecendo ao princípio de Sua

natureza. Se Deus é infinitamente bom, essa vontade deve exprimir essa bondade. Com

efeito, conceber a vontade de outra forma – da forma cartesiana –, como algo que não

precisa obedecer a qualquer padrão, só pode apontar para uma cisão dentro de Deus: de

seu interior brotaria uma vontade que tem autonomia em relação a Ele (em relação à sua

natureza), e Deus perderia sua perfeita unidade e identidade. De nada adiantaria dizer que

essa vontade cartesiana é fundada na onipotência divina, pois se a onipotência é um poder

tudo, essa vontade teria de ser uma vontade de tudo e assim uma efetivação de tudo – e

poderíamos até incluir aí a vontade de nada, de modo a cair no absurdo de uma vontade

de tudo e nada ao mesmo tempo. Dizer, por outro lado, com base na onipotência, que ela

é uma espécie de autocontrole absoluto só remeteria infinitamente à questão: autocontrole

para fazer o quê?, que demandaria novamente a vontade para fundamentar esse fazer.

Aplicando sobre a concepção cartesiana de vontade uma interpretação já

clássica sobre a sua concepção de substância, poderíamos dizer que, da mesma forma

que a substância pensante de Descartes é forjada pela negação dos atributos da substância

extensa, a vontade cartesiana é uma espécie de negação do desejo. Entretanto, no fim

das contas essa negação acaba por conduzir ao mesmo resultado do desejo, a quebra da

unidade do ser, não passando de um desejo fantasmagórico. Por outro lado, a crença de

que Deus, por seguir um princípio para sua ação (a bondade para a criação do melhor

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dos mundos), é constrangido e por isso não é livre, se mostra auto-contraditória, pois

leva à conclusão de que Deus é obrigado por si mesmo, ou seja, de que é absolutamente

livre. Tal equívoco parece se fundar numa confusão lingüística: na proposição “Deus

deve criar o melhor dos mundos”, tomar o verbo dever no sentido de imposição e não

de desdobramento de si mesmo, ou seja, identidade. Prosseguir em tal equívoco levaria

a considerar que são contraditórias proposições como “Deus deve ser onipotente”, ou

“Deus deve ser Ele mesmo”.

Como na física, em que o princípio do movimento aponta para uma determinada

forma de ser e à sua unidade, o que nos leva à conclusão de que sem um padrão de

comportamento definido algo não manifesta um ser, a vontade deve ser idêntica, ou seja,

ter um padrão determinado, obedecendo a um princípio. Do contrário, ela seria aleatória,

não obedeceria a um padrão de comportamento, não manifestando uma forma de ser.

Assim, ou ela mudaria sempre, não apresentando uma forma definida ou, se ela não

mudasse, permaneceria a mesma por mero acaso.

Por isso, da definição de Deus como ser perfeito, que deve ser onipotente,

acabamos por admitir que sua vontade deve regular-se por um princípio, como defende

Leibniz. Princípio que deve ser a própria perfeição de Deus, que encerra a sua infinita

bondade. Mas, dos três problemas que enunciamos, só o segundo parece estar resolvido:

Deus não deixa de ser livre ao ter que criar o melhor dos mundos. O problema relacionado

à liberdade do homem persiste, pois os caminhos humanos ainda são pré-determinados

com a destruição de toda contingência, e o ataque de Arnauld à noção de possibilidades

também permanece sem resposta.

Contemplação, possibilidades e forma do ser

Voltemos por isso a Descartes. Nele, como já dissemos, o mundo é criado a

partir da vontade de Deus, que efetiva a criação por meio de sua onipotência. De acordo

com Arnauld, só a partir de então algo pode se dar a conhecer à onisciência divina. Se

olharmos para essa onisciência de Deus no ato da criação (Deus só contempla o mundo

depois da criação), veremos que, por um lado, ela está confusamente misturada à vontade

quando a Deus aparece o mundo que Ele deseja criar, e, por outro, ela é o conhecimento,

a técnica pela qual Deus coloca seu poder em ação para efetivar o mundo: um saber fazer.

Dessa forma a onisciência divina dilui-se na onipotência: num primeiro momento ela é

um aspecto da vontade; e num segundo momento ela é uma etapa da onipotência. Deus é

onipotente: essa é a fórmula condensada da essência de Deus em Descartes: a onisciência

é esvaziada de qualquer positividade e submetida à onipotência.

A tal concepção da onisciência de Deus podemos chamar de instrumental, para

contrapô-la à concepção mobilizada por Leibniz que chamaremos de contemplativa.

Voltando ao ato da criação, nos perguntamos: o que pode ser a onisciência de

Deus diante do nada? Só pode ser consciência de si. Quando Arnauld, fiel às conclusões

cartesianas, nega a Leibniz a existência de possibilidades antes da criação, ele baseia-se

na absoluta esterilidade do nada, que não pode apresentar objeto algum a ser conhecido e

muito menos variações sobre esse vazio. Mas, ao focar a atenção nessa anti-substância e

seus atributos, Arnauld esquece-se de que, diante do nada, Deus é tudo. E esquece-se com

isso do movimento fundamental da metafísica cartesiana: a reflexividade. Assim vemos

a noção de possibilidades e a concepção contemplativa da onisciência de Deus brotarem

de dentro dessa perspectiva que chamamos de instrumental: se a onisciência é um saber

fazer, ela deve conhecer o poder infinito de Deus, ou seja, conhecer a extensão desse

poder, tudo que Ele pode fazer. Se Deus pode criar infinitos mundos, Ele os contempla

desde sempre diante de Si, donde Ele pode escolher – escolha que não foge à Sua natureza,

à Sua vontade. Assim, se é absurdo que possam existir possibilidades independentes de

Deus, como queria Arnauld, isso não implica que seja uma contradição a existência de

possibilidades em absoluto, pois estas são fundadas no poder de Deus, na Sua onisciência

e na Sua liberdade de escolha.

Também a forma do ser já é dada a Deus em si mesmo e a definição Dele como

o ser onipotente, onisciente e infinitamente bom é desdobramento de uma outra: Deus é o

ser que contém em grau último todos os atributos passíveis de um grau último (Leibniz 3,

§1, p.119). Se o modo do ser é simultâneo a Deus, aqui o raciocínio de Arnauld se mostra

correto: as possibilidades se desenham como variações de um ser dado. Considerar que

Deus inventa o modo do ser a partir do nada é cair no absurdo de esquecer que Deus

é o Ser, e algo diferente disso só pode ser um não ser. Deve ser descartada por isso a

possibilidade de outros parâmetros lógicos, como aqueles que admitiriam triângulos de

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ângulos internos com soma diferente de 180º, por exemplo. O que chamamos de lógico

é o próprio regime do ser, e a impossibilidade lógica indica uma impossibilidade de fato,

um não ser, algo que só tem expressão na linguagem, e não na realidade.

Se uma contradição lógica manifesta uma impossibilidade de fato, a razão

humana não está apartada das coisas. Ela é análoga ao entendimento divino, embora

limitada. Em Leibniz a razão dá acesso direto à verdade, e só sofre a restrição relativa ao

seu ponto de vista finito. Como ser, o homem é análogo a Deus (Leibniz 3, §9, p.125).

Contingência e determinação

Tal como Deus, então, o homem é livre. Mas o livre arbítrio humano não

se chocaria com a vontade de Deus? Pelo que vimos até agora, não. No parágrafo 13

do Discurso de Metafísica, Leibniz frisa que a partir de suas conclusões “Parece [...]

destruir-se a diferença entre as verdades contingentes e necessárias, não haver lugar para a

liberdade humana, e reinar sobre todas as nossas ações bem como sobre todos os restantes

acontecimentos do mundo uma fatalidade absoluta. Contestarei isto pela afirmação da

necessidade de distinguir o certo do necessário” (Leibniz 3, §13, p.124). Quando Deus

estabelece o melhor dos mundos, o destino do mundo é certo e cada mônada já teve seu

percurso previsto por Deus (Leibniz 3, §13, p.124). E essa certeza do percurso da mônada

se deve à mesma razão de Deus ter que criar o melhor dos mundos: seu destino é nada mais

que o desdobramento de seu ser. O que é diferente de uma necessidade lógica: o homem

poderia agir de uma forma ou de outra, mas age manifestando seu ser. Por isso Leibniz

afirma que “é absolutamente necessária só aquela [verdade] cujo contrário implique

contradição; a outra é só necessária ex hypothesi, ou, por assim dizer, por acidente, mas é

contingente em si mesma, quando o contrário não implique contradição” (Leibniz 3, §13,

p.128-129). Um triângulo necessariamente tem ângulos internos que somam 180º, mas se

Descartes usou um robe amarelo ou violeta ao escrever as Meditações é contingente, e só

se funda na sua noção individual.

Conclusão

Desse modo, não há indeterminação no mundo. Mas isso não significa a

eliminação da contingência e com ela a da liberdade. Como seres, tanto os homens como

Deus agem de uma forma determinada, que é a forma com que eles são. O ser é: essa

tautologia fica soterrada quando não nos damos conta de que o ser não é uma unidade

estática e morta, de que há uma correspondência necessária entre o ser como substantivo

e o ser como verbo. Sob outro ponto de vista, como formas, os seres não se reduzem a

agregados de elementos mais simples e desprovidos de qualidades. É pela forma que

Leibniz pode tomar partido da irredutibilidade da consciência (Leibniz 4, §13, p.106) sem

tomá-la, no entanto, como uma simples negação de uma efetividade física que carregaria,

assim, o status de maior evidência e, portanto, uma potencial precedência no processo

do conhecimento. A realização completa da conclusão cartesiana de que o espiritual é

mais fácil de conhecer que o corpóreo não poderia prescindir do tratamento desse espírito

como absoluta positividade, em todos os seus aspectos. A forma como mônada propicia

este tratamento, exorcizando seu caráter fantasmagórico de negação do corpóreo. Antes,

é a própria efetividade física que não pode prescindir da unificação sob uma forma e

leva à necessidade de considerar os indivíduos como substâncias, sob o perigo de o

próprio corpóreo não se sustentar. Daí a grande necessidade que Leibniz vê em destacar a

existência das causas finais, nos já referidos parágrafos 17 a 22 do Discurso de Metafísica,

que nos levam a ver que a insistência num “paradigma” da causalidade eficiente como

método suficiente de explicação do universo leva a uma explicação insuficiente tanto do

objeto da física, como do objeto da metafísica, o que acaba por levar à oposição entre o

que os sentidos captam e o que o pensamento na intuição de si mesmo estabelece. Sem

a ponte entre esses dois domínios possibilitada pela noção de substância individual, essa

oposição leva ao aparecimento de um como negação do outro, e a autonomia do espírito,

pré-requisito para o conhecimento e a ação, perde a sua base em um ser positivo, detentor

uma determinação precisa, para ser eternamente afiançada por um Deus que aprisiona a

razão em um círculo.

Sob o ponto de vista da insubmissão da consciência à determinação do

corpóreo, a recuperação de elementos das metafísicas pré-modernas não expressa um

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distanciamento de Leibniz do projeto da metafísica moderna anunciado em Descartes,

mas sim uma afirmação. De acordo com o que examinamos, o distanciamento mais

profundo de Leibniz em relação aos potenciais resultados da metafísica cartesiana é a

respeito daquela submissão da bondade e onisciência divinas à onipotência, e à concepção

cartesiana da vontade; ou seja, quanto aos resultados, a discordância de Leibniz em

relação a Descartes se refletirá principalmente no terreno da ética. A própria maneira com

que Leibniz frisa o papel da bondade na perfeição divina, contrastando com a definição

de perfeição cartesiana que dá relevo à onipotência, onisciência e eternidade sem menção

direta à bondade3 já aponta para essa preocupação, e todas as operações que afirmam a

racionalidade das decisões divinas mostram que essa racionalidade não está desvinculada

do imperativo ético.

Leibniz on freedom of the being

Abstract: In this paper we intend to verify the way in which Leibniz establishes a notion of liberty able to do not contradict the conception of a world in which all events are previously determined. Therefore, we are going to examine the way in which Leibniz can dissolve the opposition between determination and contingency of the events by means of notion of being as action. Furthermore, we are going to indicate aspects in which the Leibnizian project is opposed to the Cartesian dualism of substances and intends to overcome its dilemmas related both to Physics, in consequence of the complete passivity of res extensa, and to Metaphysics, above all in the aspects that res cogitans appears as a kind of denial of res extensa. Such a denial will imply the notion of will as pure arbitrariness, which rejects its regulation by any principle, and it will establish reason as an instrument of arbitrary will.Keywords: contingency, will, being, omnipotence, form.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1. DESCARTES – Meditações. In: Descartes, Col. “Os Pensadores”, trad. Enrico Corvisieri, São Paulo: Nova Cultural, 1999

2. LACERDA, T. M. – A política da Metafísica: Teoria e Prática em Leibniz. São Paulo: Humanitas, 2005.

3. LEIBNIZ, G.W. – Discurso de Metafísica. In: Newton/Leibniz I, Col. “Os Pensadores”,

trad. Marilena Chaui, São Paulo, Abril Cultural, 1979. 4. ___________ - Princípios da filosofia ou Monadologia. In: Newton/Leibniz I, Col. “Os

Pensadores”, trad. Marilena Chaui, São Paulo, Abril Cultural, 1979. 5. ___________ – Escritos Filosóficos. trad. R. Torretti, T. E. Zwanck, E. Olaso. Buenos

Aires: Editorial Charcas, 1982. 6. ___________ – A correspondência entre Leibniz e Arnauld. trad. G. Müller Ayrosa,

Dissertação de Mestrado: Universidade de São Paulo, 1993.7. SANTOS, L. H. L. – “Leibniz e os futuros contingentes” in Analytica, Rio de Janeiro:

vol. 3, nº 1, 1998.

NOTAS:

1 - Cf. Leibniz - Sobre la originación radical de las cosas Leibniz 5.2 - A própria concepção da percepção em Leibniz blindaria o ser a qualquer forma de direção para outro. Perceber é simplesmente desdobrar-se, não envolvendo nenhuma concentração do ser em algo fora de si mesmo. O ser é identidade, tudo devendo ocorrer internamente a ele. Por fim, o ser deve realizar ontologicamente a forma perfeita de uma tautologia. 3 - “Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente [...].”(Descartes 1, p.228).

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NOTÍCIAS

DEFESAS DE DOUTORADO

Sérgio Luís PerschOrientadora: Marilena de Souza ChauíData da defesa: 10/09/2007

Título: Imaginação e profecias no Tratado Teológico-político de Espinosa

Resumo: O foco principal da pesquisa é o capítulo I do Tratado teológico-político, no qual Espinosa discorre sobre as profecias. A exposição dos diferentes tipos de imagens proféticas mostra como, de maneira geral, a imaginação se constitui nos homens e como dela segue o conhecimento imaginativo. Os traços constitutivos da imaginação são idênticos em todo o gênero humano. Por conseguinte, Espinosa descreve a origem natural das imagens proféticas, negando a realidade do milagre ou de qualquer interferência divina extraordinária na natureza, já que a ordem natural segue leis necessárias que são, elas próprias, os decretos eternos de Deus. Tendo por exigência básica do método interpretativo prestar fidelidade à Escritura, o autor do Teológico-político a examina como uma coisa particular da natureza, elabora a história crítica dela com base na determinação natural de sua existência. À descrição histórica das profecias corresponde a dedução genética da imaginação efetuada na Parte II da Ética. Com base na estreita relação entre as duas obras, esta pesquisa consiste numa tentativa de provar que o ordenamento metódico dos diferentes tipos de profecias se funda e, ao mesmo tempo, explica a teoria espinosana da imaginação. A tipologia das imagens proféticas é um fator importante para se compreender a composição textual do Tratado e sua dimensão crítica frente à Escritura e aos intérpretes que, direta ou indiretamente, aparecem como interlocutores de Espinosa.Palavras-chave: Espinosa, natureza, profecias, imaginação, conhecimento.

Moysés Floriano Machado FilhoOrientador: Prof. Dr. Luiz Henrique Lopes dos Santos Data da defesa: 15/10/2007

Título: Narrações da Natureza - a concepção espinosista da verdade no Tractatus de Intellecus Emendatione

Resumo: O objetivo deste trabalho é o exame da concepção espinosista da verdade, com ênfase no Tractatus de intellectus emendatione (TIE). Para tanto, empreendemos a análise da teoria das idéias, presente nesse texto, em um cotejo com as demais obras do autor. Apesar disso, privilegiamos o TIE dentre as demais, com o propósito de mostrar que essa obra não é uma fase superada. Com efeito, já se considerou o TIE como um fracasso de Espinosa pelo fato de o filósofo não ter conseguido nele elaborar a definição do intelecto. Entretanto, o que pretendemos mostrar é que, mesmo se nao inteiramente explicitada, a definição do intelecto pode ser ali encontrada. De fato, com base num determinado viés interpretativo, chegou-se a supor que o TIE não possuiria uma densa articulação com o sistema espinosista. Mostraremos, ao contrário, que ela não apenas existe, mas pode ser perfeitamente comprovada.Palavras-chave: Espinosa, idéias, verdade, método, intelecto, mente.

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(Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10).

CONTENTS

INTERSUBJECTIVITY AND TRANSINDIVIDUALITY FROM LEIBNIZ AND SPINOZA Vittorio Morfino.........................................................................11

WE ARE ALL CRAZY... THE MODERN SUBJECT AND THE GEOLOGICAL FISSURE Eduardo Grüner......................................................................... 43

THREE NOTES ON THE RELATIONSHIP BETWEEN PHILOSOPHY AND TEXTUAL FORM IN THE BACON’S ESSAYS Homero Santiago........................................................................58

THE “PRIVILEGE OF THINKING”: AN ESSAY TO INTERPRET Mariana de Gainza.....................................................................71

MONTAIGNE´S SAGESSE AS CRITICAL APROPRIATION OF HUMANIST HERITAGE Silvana de Souza Ramos.............................................................80

LEIBNIZ ON FREEDOM OF THE BEING Fabrício Fernandes Armond.......................................................92

NEWS....................................................................................................112