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XIV Congresso Internacional de
Tecnologia na Educação
21 a 23 de Setembro de 2017
Olinda PE
Cognição:
teoria, avaliação dinâmica e intervenção
Vitor da Fonseca
Professor Catedrático Agregado
UNIVERSIDADE DE LISBOA
_____________________________________________________
1. – Introdução Teórica à Cognição
A cognição tem um passado aproximado de quatro biliões de anos,
mas somente cem anos de história.
Em termos filogenéticos e sociogenéticos a cognição emergiu da
acção e da motricidade ideacional exclusiva da espécie humana (Calvin, 1989
e 1988; Fonseca, 2010, 2014, 2017; Glass, 2016), permitindo pôr em jogo a sua
integração, planificação e execução, predizendo os seus efeitos e
consequências, antevendo e antecipando em que circunstâncias a acção
deveria ser regulada e controlada, com o objectivo de atingir determinados
fins, ora de sobrevivência e reprodução, ora de necessidade social e
recompensa pessoal.
A evolução da cognição começa assim com o controlo da acção,
algo com que outros animais, excepto os mais simples, nascem também, ou
seja, são portadores de um conjunto de respostas motoras automáticas
que lhes permitem interagir de forma adaptada com o mundo exterior ou com
o envolvimento. Tais respostas motoras automáticas geradas pelos seus
sistemas nervosos são denominadas por reflexos, isto é, respostas motoras
efectivas a ameaças ou a oportunidades.
Os reflexos que se observam nos animais e nos seres humanos,
podem ser simples, elaborados ou complexos, de qualquer forma para eles
serem produzidos em termos de comportamento é preciso que os estímulos
sensoriais vindos do envolvimento e do corpo sejam processados pelo seus
cérebros e que estes transmitam sinais específicos e expressem, efectivamente,
movimentos musculares, acções, gestos e múltiplos tipos de motricidade como
respostas adaptativas (macro, micro, oro, grafo e sociomotoras – (Fonseca,
2010).
A vida inteira da maioria dos animais, sejam insectos, peixes,
répteis, pássaros, mamíferos, primatas ou mesmo do ser humano, é
consequentemente guiada e executada por respostas automáticas primárias,
por respostas complexas incondicionadas ou por comportamentos instintivos,
são elas que lhes permitem como seres vivos: nascer, respirar, forragear,
alimentar, acasalar, caçar, captar, buscar, perseguir, fugir, amamentar e
proteger as crias, etc..
De facto, os reflexos e os instintos desempenham um papel
adaptativo muito relevante, na medida em que influenciam o comportamento
dos animais, embora o seu impacto seja inquestionavelmente importante em
termos de sobrevivência e de reprodução, eles são limitados e perfeitamente
previsíveis em termos de respostas motoras automáticas.
É neste contexto de respostas motoras automáticas perfeitamente
previsíveis e de respostas motoras voluntárias imprevisíveis muito mais
complexas e flexíveis, que emana a cognição, atributo evolutivo que
distingue verdadeiramente a vida dum animal da vida dum ser humano
(Fonseca, 2001; Glass, 2016).
Se os eventos da vida humana fossem perfeitamente previsíveis
como os que caracterizam a vida animal, a emergência da cognição não se
justificaria, exactamente porque as respostas automáticas inatas serviriam,
por si só, para dar cabal resposta a todas as necessidades e a todos os
problemas colocados pela sua própria vida e pela sua própria existência.
Porque a vida humana não é perfeitamente previsível, mas
pelo contrário, altamente imprevisível, o cérebro precisou de evoluir da
produção de respostas automáticas à produção de respostas voluntárias
supercontroladas cognitivamente e necessariamente aprendidas socialmente,
precisou portanto, de evoluir dos reflexos à reflexão. As respostas voluntárias supercontroladas dos seres humanos (os
vertebrados dominantes – Fonseca, 2010, 2009) adquiriram vantagem ao
longo da selecção natural sobre as respostas automáticas dos animais porque
permitiram desencadear e controlar respostas motoras a novas e imprevisíveis
situações, mas para tal, o ser humano com o seu cérebro único no reino
animal tem que: 1º - percepcionar com precisão a situação corrente; 2º - tem
que se lembrar duma situação similar no seu passado e recuperar ou rechamar
a resposta motora que foi então eficiente, para finalmente; 3º modificabilizar
a sua acção anterior para se adaptar às circunstâncias correntes. Podemos
assim compreender que a cognição começa efectivamente pelo controlo
voluntário da acção (Glass, 2016).
Nesta perspectiva a cognição é a chave para a compreensão da
extraordinária capacidade da aprendizagem humana e do pensamento
humano, por isso nascemos imaturos e imperitos com reflexos simples,
crescemos à custa de automatismos habituais, de rotinas familiares e de
emoções compostas, e por último, ascendemos aos símbolos por
aprendizagens complexas humanizadas dado exigirem um transmissão
cultural intergeracional e intersubjectiva.
Deste modo vamos compreender o legado filogenético na trajectória
neurodesenvolvimental e ontogenética da criança (Wallon, 1970, 1969),
subentendendo a organização hierarquizada do nosso sistema nervoso, por
isso, evoluímos do gatinhar ao andar, do gestualizar ao falar, do imaginar ao
simbolizar, porque evoluímos da acção à cognição primeiro, e
posteriormente, quando o cérebro matura, vamos da cognição à acção. Somos
a única espécie primata que planifica e pensa antes de decidir agir, activando
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redes neuronais e sistemas ideomotores antes de produzir gestos com os
músculos.
A cognição é consequentemente uma das componentes
fundamentais do potencial de adaptação e de aprendizagem humanas (Kolb
Whishaw, 1985; Hale e Fiorello, 2004), sem ela a evolução da espécie humana
não seria possível e a aprendizagem simbólica inacessível às gerações
imaturas e futuras.
A cognição tem sido definida como o acto de conhecimento, ou
seja, como o resultado da combinação sistémica de várias habilidades,
capacidades ou competências cognitivas. Em síntese, a cognição decorre de
processos mentais pelos quais o indivíduo adquire, trata, conserva,
explora e comunica informação, numa palavra, aprende. Tais habilidades primaciais a qualquer tipo de aprendizagem,
permitem ao ser humano: conhecer, tomar consciência, criticar, agir,
conceptualizar, utilizar abstracções, raciocinar, conjecturar, antecipar, pensar
criticamente, extrapolar, generalizar, transferir, fabricar, criar, produzir, isto
é, resolver problemas.
O ser humano é um ser cognitivo porque identifica e analisa
problemas, formula ideias, reorganiza imagens, conjectura acções, aprende
com os erros e chega a soluções, aperfeiçoando-as incessantemente . Dos reflexos à reflexão, o ser humano evoluiu ao longo de
séculos e a criança desenvolve-se cognitivamente até à adolescência, para se
apropriar e transformar a cultura, cuja origem não está nem nos seus genes,
nem nos seus neurónios, mas sim, no grupo social onde está inserido histórica
e culturalmente (Fonseca, 2017).
Cognição refere-se ao conhecimento e ao pensamento (Dewey,
1933), consequentemente, envolve receber, armazenar, recuperar,
transformar e manipular informação que é captada pelos sentidos. Envolve
igualmente percepção, consciencialização, avaliação e compreensão de
emoções (conações), e obviamente memória e aprendizagem.
Para clarificar, a cognição atravessa toda a nossa vida diária e está
em jogo quando temos de fazer actividades e tarefas simples e já
automatizadas, bem como, resolver situações problema mais complexas ou
pouco familiares e inéditas, onde centenas de decisões precisam de ser
tomadas, promulgadas e controladas pelo nosso cérebro, e
concomitantemente, influenciadas pelas nossas aprendizagens anteriores
(Luria 1966, 1973, 1990).
Os componentes básicos do nosso conhecimento são, naturalmente,
os blocos de construção da nossa aprendizagem e da nossa capacidade de
resolução de problemas. Para aprendermos, portanto, temos que juntar e
combinar de forma coerente e integrada, milhares de peças de informação
armazenadas e selecionadas na nossa cabeça (Ashman e Conway, 1977).
Planos, rotinas várias, conhecimentos declarativos ou factos,
estratégias e procedimentos performáticos, descodificações e codificações
múltiplas, etc., todos têm peso significativo nas nossas actividades do dia a dia
e são vitais para enfrentar qualquer situação, porque o que foi aprendido e
como foi aprendido, configura o que uma pessoa já conhece, não esquecendo
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aqui o papel do contexto onde a aprendizagem e a modificabilidade
comportamental ocorrem e se desenrolam.
O conhecimento, a motivação, o interesse, a vontade, a necessidade
e a pré-disposição são características da personalidade que afectam o esforço,
o entusiasmo, a energia, a conação, a dedicação e o compromisso dedicado à
realização das tarefas, dos problemas ou dos projectos que temos que
enfrentar.
Para que tudo nos conduza ao processo de aprendizagem com
sucesso, precisamos também de flexibilidade e de pragmatismo, fixando e
ajustando objectivos realistas, viáveis e fazíveis, tomando decisões em tempo
útil, mantendo perseverança nas prioridades, monitorizando estratégias e
tácticas se o problema continua a não ser resolvido.
Para aprendermos bem precisamos de muitas oportunidades de
prática deliberada e intensa, temos de agir com o nosso cérebro sobre várias
fontes de informação, internas e externas, como órgão principal da
aprendizagem tem que operar captando dados do envolvimento,
integrando-os internamente com o conhecimento já adquirido pelas
aprendizagens anteriores e posteriormente, em centésimos de segundo tem
de recuperar, reproduzir, repetir interiormente e rechamar a informação já
armazenada na memória (Kaufman, 2013).
O modo como opera uma central de telefones aproxima-se dos
processos cognitivos e do modo como o cérebro opera na aprendizagem,
imensos dados de informação circulam electricamente e quimicamente em
vários locais do cérebro por meio de cablagens inúmeras que as interligam
sequencialmente e em simultâneo. São estes processos executivos (Fonseca,
2017a, 2017b; Berthoz, 2003; Ashman e Conway, 1997; Bruner 1956) que
permitem produzir pensamentos, imaginações, interiorizações, planos,
manipulações, estratégias, e obviamente, acções.
Recorrendo a Piaget, 1965, 1954, e a Vygotsky, 1986, 1987, 1978
dois dos maiores vultos do estudo da cognição, ambos se aproximam entre si
quando evocam que ela decorre na criança de acordo com um processo
evolutivo dinâmico, centrado primeiro na acção e posteriormente no
pensamento, sendo ele produto duma organização sistémica complexa
mas sujeita a determinadas propriedades de funcionamento e composta de
múltiplas componentes. Porém ambos se distinguem entre si, quando o
primeiro centra o desenvolvimento cognitivo numa perspectiva construtivista,
egocêntrica e individual, e o segundo pelo contrário, enfoca-o numa
perspectiva co-construtivista, sócio-histórica e interactiva.
Com base em Piaget o desenvolvimento cognitivo corresponde à
construção da realidade, processo esse que envolve formas de
aprendizagem, primeiro sensoriais e motoras, e só depois, perceptivas,
linguísticas, lógicas e sociais. Nesta linha de pensamento, as crianças utilizam
portanto as habilidades cognitivas em todas as áreas do currículo escolar, não
apenas na matemática, na leitura ou na escrita mas também na arte, na
música e nos desportos, etc.. Desde os jogos, à exploração da natureza, à
expressão corporal, à música, à dança, ao teatro, ao desenho, etc., as crianças
aprendem todas estas manifestações culturais com base na integridade das
suas funções ou habilidades cognitivas.
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O que é a cognição? Quais são os seus instrumentos mentais?
Donde ela nasce? Como é que a aprendizagem ocorre?
Responder a estas questões é certamente abordar a matriz
teórica da cognição, para isso teremos que apresentar primeiro o seu
enquadramento conceptual mais amplo.
Já evocamos que a cognição começa com a acção e com o seu
controlo progressivo, o que de imediato sugere um processamento de
informação, um sistema de integração da mesma e, subsequentemente, um
sistema de comunicação e transformação da informação, o que no seu todo
requer um código, um conteúdo e um meio (Glass, 2016; Ashman e
Conway, 1997).
Nos seres humanos: o meio envolve obviamente o seu cérebro, os
seus neurónios e as suas vias de conectividade; o conteúdo é a representação
do mundo decorrente da experiência e das acções e interacções praticadas
pelo indivíduo; e o código emerge das representações do mundo
descodificadas pela recepção e captação de estímulos sensoriais e da
codificação de operações mentais que planificam, regulam e executam as suas
acções ou respostas motoras adaptadas.
Podemos agora compreender melhor os fundamentos teóricos da
cognição na medida em que ela se refere ao ser humano que possui uma
representação de si próprio e uma representação de si no mundo, exactamente
porque tem de criar e produzir computações que são necessárias para
executar novas acções apropriadas às situações problema que enfrenta
constantemente.
Qualquer aprendizagem humana emerge, consequentemente, de
múltiplas funções, capacidades, faculdades ou habilidades cognitivas
interligadas, quer de recepção (componente sensorial - input), quer de
integração (componentes perceptiva, conativa, mnésica e representacional),
quer de planificação (componentes antecipatória e decisória), quer
finalmente, de execução ou de expressão de informação (componente motora
– output).
Explicar a cognição e intervir na sua modificabilidade, que é um dos
objectivos cruciais da educabilidade do ser humano, a que já nos referimos
noutras obras (Fonseca, 2001, 2014), pressupõe em primeiro lugar, concebe-la
como tendo origem social (Vygotsky, 1978, 1986, 1987; Bodrova e Leong,
2007) e como sendo composta por três componentes principais do processo
total de informação em estreita conectividade, sequencialidade e
interactividade, conforme modelo simplificado abaixo apresentado.
O termo cognição é, consequentemente, sinónimo de “acto ou
processo de conhecimento”, ou “ algo que é conhecido através
dele”, o que envolve a co-activação integrada e coerente de vários
instrumentos ou ferramentas mentais, tais como: atenção; percepção;
processamento (simultâneo e sucessivo); memória (curto termo, longo termo
e de trabalho); raciocínio, visualização, planificação, resolução de problemas,
execução e expressão de informação. Naturalmente que tais processos
mentais decorrem, por um lado da transmissão cultural intergeracional, e por
outro, da interacção social entre seres humanos que a materializam
(Tomasello, 1999; Vygotsky, 1978).
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A cognição é portanto sistémica, emerge do cérebro como o resultado
da contribuição, interacção e coesão do conjunto de funções mentais acima
apontadas que operam segundo determinadas propriedades fundamentais
(Fonseca, 2001, 2014; Berthoz, 2003) a saber: totalidade (noção de
integração); interdependência (noção de coibição); hierarquia (noção
de maturidade e complexidade); auto-regulação (noção de busca de
objectivos e fins a atingir); intercâmbio (noção de reaferência e efeito da
experiência); equilíbrio (noção de homeostasia); adaptabilidade (noção
de modificabilidade); e finalmente, equifinalidade (noção de vicariedade,
ou seja, de execução e duplicação do pensamento pela acção).
Se as crianças não fizerem uso das suas funções cognitivas, e
acusarem dificuldades perceptivas, dificuldades de reconhecimento, de
discriminação, de comparação e de análise de objectos, de imagens ou de
eventos no seu envolvimento quotidiano, as dificuldades de
aprendizagem (DA) podem emergir necessariamente (Fonseca, 2016,
2000). Fracas ou vulneráveis habilidades cognitivas interferem
claramente com a comunicação, com a compreensão e com a expressão da
linguagem, assim como com os processos de aprendizagem não simbólica e
simbólica (Feuerstein, 1980; Fonseca, 2016, 2000).
Qualquer tipo de aprendizagem, seja aprender a andar de bicicleta
ou a nadar (aprendizagens ditas não simbólicas e não verbais, mais
compatíveis com o funcionamento do hemisfério direito), seja a falar, a ler ou
a resolver um problema de matemática (aprendizagens ditas simbólicas ou
verbais mais compatíveis com o funcionamento do hemisfério esquerdo),
reclamam funções e estratégias cognitivas que subjazem a qualquer acto
mental. O acto mental inerente à interacção ou à experiência do indivíduo
com o seu envolvimento, desde o mais simples ao mais complexo, envolve
sempre cinco fases ou componentes principais que operam mentalmente de
forma ordenada e interligada: 1º a recepção (input); 2º a integração
(processamento e memória); 3º a planificação; 4º a execução (output); e por
último, 5º a retroalimentação.
Aprender bem e com prazer põe em jogo sistemas mentais
operacionais, quer motores porque implicam uma resposta adaptativa, quer
cognitivos porque envolvem funções de atenção, processamento,
planificação e execução, quer emocionais porque subentendem
recompensas e processos de motivação e de gratificação.
Com disfunções cognitivas de input (recepção e captação de
informação), de integração, de elaboração e de output (expressão,
comunicação e transformação da informação), de acordo com Feuerstein
1979, 1980; Das, 1998; e Haywood e Tzuriel 1992, a formação de conceitos, a
estruturação de julgamentos, a organização do pensamento e a resolução de
problemas, tornam-se empobrecidas e tendem a provocar baixo rendimento
escolar e fraco comportamento adaptativo.
A aprendizagem na escola reclama um conjunto de funções
cognitivas, sem as quais: não há acesso nem assimilação do conhecimento;
não se verifica a capacidade de reconhecimento nem de discernimento; não se
desenvolvem conceitos; não se opera a formulação ideacional; não se acciona
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a rechamada e a recuperação de dados para nomear e identificar eventos e
experiências; não se produzem os processos de resolução de problemas; não
se desenham inferências nem se retiram conclusões de acontecimentos; não se
discriminam nem se identificam regras; não se dão generalizações nem
transferências de conhecimento para novas situações; não se realizam
avaliações e julgamentos coerentes de ocorrências ou situações problema; não
se retiram ensinamentos da experiência; numa palavra, não se dá a reflexão.
O comportamento resultante de disfunções cognitivas, vai ser
impulsivo, desplanificado, episódico, frustracional, incoerente, fragmentado,
numa palavra, inadaptado, os seus efeitos emocionais na personalidade dos
sujeitos aprendentes em qualquer idade vão ser devastadores (Mentis et al.
2008).
Todas estas condições podem comprometer a aprendizagem na
escola e na vida, com fracos recursos cognitivos, as crianças e os jovens
possuem menos instrumentos mentais (“mental tools”) para superarem os
desafios e descobrirem as soluções dos problemas com que se deparam
(Bodrova e Leong, 2007).
A cognição é assim um termo que atravessa todas as áreas de
aprendizagem – comportamento adaptativo, auto-suficiência,
psicomotricidade, linguagem, comunicação, artes e ofícios, desportos,
reconhecimento perceptivo, leitura, escrita, matemática, relações sociais,
resolução de problemas, planificação e tomada de decisão, etc. - ela deve
interessar todas as educadoras e todos os professores (Bruer, 2000; Spitz,
1986).
Sem funções cognitivas treinadas e empoderadas os estudantes vão
encarar as tarefas escolares com mais vulnerabilidade, desconforto e
insegurança quer na pré-escola, quer ao longo de toda a sua escolaridade, o
risco de abandono e de insucesso escolar é maior, e os custos sociais vão ser
mais avultados.
Em termos de síntese, portanto, o propósito e o processo da
educação têm tudo a ver com a optimização e a maximização do potencial
cognitivo, para isso é preciso saber avaliá-lo dinamicamente e depois saber
intervir individualmente respeitando obviamente a neurodiversidade que
caracteriza a população escolar (Willis, 2010; Ward, 2006).
O mito do cérebro saudável ou típico com funções cognitivas
operacionais e performantes escolares médias já não serve para todos os
estudantes, pois o que os caracteriza não é a sua homogeneidade
cognitiva onde todos aprenderem da mesma maneira, mas a sua
heterogeneidade porque não há dois cérebros exactamente iguais e que
processem a informação do mesmo modo.
É o conjunto das funções cognitivas e a sua dinâmica interactiva
que permitem à criança e ao jovem atingir uma performance de rendimento
satisfatório, sem o qual a sua aprendizagem e o seu comportamento podem
ser desencadeados adaptativamente, mas para isso precisamos de adoptar
uma avaliação dinâmica e pedagógica mais compatível e amiga da
cognição e do seu órgão central.
Imensas pesquisas reforçam os benefícios da intervenção
cognitiva precoce para a aprendizagem. Revendo vários programas
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cognitivos, todos eles apontam, ganhos e melhorias nos testes de inteligência
e nas avaliações escolares (Feuerstein, 1980; Fonseca, 2014).
A intervenção precoce com base nos princípios e pressupostos
cognitivos que acabámos de expôr conduz a efeitos positivos no
desenvolvimento cognitivo das crianças pré-escolares e fornece-lhes os
pré-requisitos de processamento de informação que lhes permitem
performances mais rentáveis, ao mesmo tempo que as impede de serem mal
encaminhadas para enquadramentos escolares de exclusão, ao mesmo tempo
que evita e minimiza a emergência de DA mais tarde ao longo da escolaridade
primária e secundária.
O papel da escola é, para além de ensinar a ler, a escrever e a
contar, também ensinar a pensar, a aprender a aprender, a dar suporte,
orientar, expandir e mediatizar as funções cognitivas das crianças e dos jovens
(Fonseca, 2017; Bodrova e Leong, 2007; Bruer, 2000; Spitz, 1986), razão de
enorme importância para proporcionarmos oportunidades activas, prazerosas
e envolventes para lhes desenvolvermos ao máximo os seus potenciais
cognitivos, mas antes temos que saber observar e avaliar dinamicamente o
potencial cognitivo de cada ser aprendente.
2. Avaliação Dinâmica da Cognição
A Avaliação Dinâmica da Cognição (ADC) compreende uma nova
metodologia de identificação da modificabilidade cognitiva ou da
Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) do indivíduo aprendente
(criança, jovem ou adulto, etc.), trata-se portanto duma nova metodologia de
diagnóstico, radicalmente diferente da que tem sido produzida pela
psicometria tradicional (Feuerstein, 1979; Lidz, 1987; Das, 1994; Fonseca,
2001; Bodrova e Leong, 2007).
A sua finalidade prioritária centra-se no estudo do potencial
prospectivo de aprendizibilidade do indivíduo, isto é, no encorajamento
e incitamento dele para novos processos de aprendizagem, e não meramente
na avaliação, pura, nua e crua, das suas características intelectuais
quantificáveis, imutáveis e estáveis, ou do seu nível funcional intelectual
actual.
Ao contrário, na nossa óptica e ética clínica, a ADC visa observar,
apreciar, estimar, identificar e modificar dinamicamente e interactivamente o
potencial de modificabilidade e de flexibilidade cognitiva do indivíduo
observado, isto é, a sua finalidade é apurar a qualidade dos processos
cognitivos, e não simplesmente, a quantidade mensurável ou
estandardizada dos seus produtos intelectuais finais.
A ADC que preconizamos procura medir a plasticidade e a
modificabilidade do funcionamento cognitivo do indivíduo, numa palavra,
procura empoderar o seu potencial de aprendizagem ou de adaptabilidade,
visando a exploração de condições e de estratégias pedagógicas de interacção,
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segundo as quais o seu repertório cognitivo pode ampliar-se, potenciar-se e
expandir-se, ou mesmo, transformar-se em termos de funcionamento
cognitivo mais eficiente.
Trata-se de perspectivar, para cada indivíduo, a sua
propensibilidade adaptativa para uma aprendizagem futura, ou seja,
para uma capacidade de aprender a aprender, o que exige da parte do
indivíduo a utilização de processos de aprendizagem que necessitam de novas
ferramentas cognitivas (Fonseca, 2001, 2014).
Visto estarmos em presença de uma sociedade com mutações
tecnológicas novas, muito rápidas e mais complexas, torna-se urgente
preparar o indivíduo para ser mais modificável e adaptável a situações novas,
inéditas e imprevisíveis, daí a razão de uma ADC dinâmica.
Porque vivemos numa nova cultura tecnológica que se instala
progressivamente e a uma grande velocidade, e porque a escola não prepara a
maioria dos indivíduos para os tais desafios, torna-se necessário perspectivar
uma nova metodologia de avaliação cognitiva, e concomitantemente, uma
nova metodologia de intervenção e de enriquecimento do potencial cognitivo
do indivíduo aprendente.
A ADC procura assim, identificar alguns dos indicadores de
proficiência cognitiva dos indivíduos observados aos quais se sublinham
as suas áreas cognitivas fortes primeiro, as suas áreas de
desenvolvimento cognitivo proximal que solicitam apoios específicos
em seguida, e finalmente, as suas áreas cognitivas fracas, onde o
indivíduo se encontra em sofrimento emocional e vulnerabilidade
motivacional, que por si só, e devido ao funcionamento integrado e sistémico
do cérebro, bloqueia o potencial cognitivo do indivíduo (Fonseca, 2001, 2014;
Bodrova e Leong, 2007).
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Em termos de sensibilidade clínica, a finalidade da ADC procura captar
alguns traços do perfil cognitivo intraindividual (PCI) do observado,
traços esses que deverão ser intervencionados e compensados com um
programa individualizado de intervenção cognitiva (PIIC)
subsequente, tendo como objectivo principal, a melhoria e o aperfeiçoamento
do seu potencial cognitivo manifestado num momento dado de avaliação.
Para simplificar diremos que a ADC espelha o acto mental nas suas
funções cognitivas básicas (Fonseca, 2001, 2014, 2017a, 2017b), funções essas
que são transversais a qualquer aprendizagem, sendo descritas como uma
sequência de operações mentais que compreendem uma tríade de funções e
subfunções cognitivas, a destacar:
- funções de input, de recepção ou de captação (atenção
sustentada; percepção analítica; sistematização na exploração de dados;
discriminação e ampliação de instrumentos verbais; orientação espacial com
sistemas de referência automatizados; priorização de dados; conservação e
agilização de constâncias (tamanho, forma, quantidade, profundidade,
movimento, cor, orientação, dados intrínsecos e extrínsecos, etc.); precisão e
perfeição na apreensão de dados; filtragem, fixação, focagem e flexibilização
enfocada de fontes de informação simultânea; etc.;
- funções de integração, retenção e de planificação (definição
detalhada de situações-problema; selecção de dados relevantes; minimização
e eliminação de dados irrelevantes; comparação, classificação e escrutínio de
propriedades comuns e incomuns de dados; estabelecimento de comparações,
ligações, semelhanças, dissemelhanças, analogias; memorização, retenção,
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localização, manipulação e recuperação da informação; ampliação do campo
mental em jogo; integração sistemática da realidade; estabelecimento de
relações e de sistemas de relações; organização e monitorização dos meios
necessários; supervisão das situações e dos problemas; elaboração conceptual;
formulação ideacional; utilização de comportamentos quantitativos;
exploração da evidência lógica; utilização do pensamento dedutivo,
inferencial, crítico e criativo; desenho de estratégias para testagem de
hipóteses; planificação, antecipação e pragmatização de objectivos, fins e
resultados; visualização e interiorização da informação; flexibilização de
procedimentos; etc.; e finalmente,
- funções de output, de execução ou de expressão (comunicação
clara, conveniente, compreensível, desbloqueada e contextualizada; projecção
de relações virtuais; transposição psicomotora (transporte ideatório,
ideomotor e visuográfico); expressão verbal fluente e melódica; regulação,
inibição, iniciação, persistência, perfeição, verificação, conclusão e precisão de
respostas adaptativas; enriquecimento de instrumentos não verbais e verbais
de expressão; avaliação e retroacção das soluções criadas; etc.);
A ADC implica, deste modo, uma avaliação cuidada e dinâmica do ser
aprendente na tríade cognitiva acima apresentada, isto é, nas funções de
captação, de processamento e comunicação da informação, avaliação essa que
deve induzir uma decisão rápida sobre o seu perfil cognitivo em funções
fortes, proximais e hesitantes, e obviamente, em funções fracas que
normalmente desencadeiam bloqueios, frustrações e sentimentos de
auto-subestimação e auto-ineficácia.
A ADC subentende a aplicação dos critérios duma experiência de
aprendizagem humanizada, mediada e pedagogizada, e também, dos
princípios da transmissão cultural intergeracional entre um ser maturo e
um ser imaturo, não se resume apenas a uma exposição directa a perguntas, a
tarefas ou a problemas a resolver que caracterizam os testes psicométricos
tradicionais.
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Na ADC a exposição de situações envolve o sujeito observador num
diálogo e numa interacção intencional e recíproca, explorando as funções de
significação do sujeito observado, mobilizando os seus sentimentos de
competência e favorecendo o uso de processos executivos de processamento,
planificação, auto-regulação, auto-monitorização e auto-controlo.
Na ADC o sujeito observador não cria situações de ameaça, mas sim
situações que provocam curiosidade, interesse e motivação num ambiente e
numa atmosfera de optimismo, pois só assim o observador se pode inteirar do
potencial cognitivo intrínseco do observado.
É bom não esquecer que a ADC (ou qualquer outra avaliação clínica ou
educacional na nossa perspectiva) decorre num contexto de
intersubjectividade, onde coexistem dois sujeitos: o sujeito observador ou
avaliador e o sujeito observado ou avaliado, no sentido de despertar nele a
emergência de funções cognitivas adormecidas, empobrecidas ou pouco
estimuladas ou praticadas no seu dia a dia escolar, familiar ou cultural
(Fonseca, 2017, 2014, 2001).
Não podemos esquecer que muitos indivíduos, crianças e jovens, por
múltiplas razões culturais (diferenças ou privações) não são expostos
frequentemente a experiências de aprendizagem humanizadas, pedagógicas
ou cognitivamente mediadas, isto é, a experiências de interacção confiáveis e
enquadradas em climas emocionais de conforto, de segurança e de cuidado
relacional.
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A ADC é um procedimento clínico ou educacional que implica
um julgamento clínico qualitativo e individualizado, onde os observadores
não se comportam da mesma maneira como nos testes tradicionais.
A sua finalidade primacial é produzir modificabilidade
cognitiva, caso contrário, a mediatização, a interacção e a pedagogia não
foram apropriadas ou o tempo de interacção não foi o suficiente.
Na ADC o observador deve aproximar-se da criança e não o contrário,
pois nenhuma criança é inavaliável, inanalisável ou ineducável, na medida em
que não se presume que todas as crianças ascendam a um rendimento
cognitivo dito normal ou médio, assume-se antes que toda a criança é capaz de
algum grau de modificabilidade cognitiva.
Que tipo de informação nos pode dar a ADC?
Em primeiro lugar, a qualidade da resposta do observado à
transmissão, à interacção e à intervenção cognitiva criadas pelo observador
(resposta à intervenção - RAI). Em segundo lugar, qual o grau de intensidade
deve ter a interacção observador-observado para produzir mudanças nas
funções cognitivas do sujeito observado. Em terceiro, qual o desenho e a
descrição do perfil cognitivo do observado em áreas fortes, áreas da ZDP e em
áreas fracas. Por último, a formulação de hipóteses de intervenção que
promovam o sucesso na aprendizagem do sujeito observado (Fonseca, 2016,
2001).
A ADC estabelece, portanto, uma ponte entre a avaliação
psicoeducacional e a intervenção (re)educacional ou reabilitacional, o que não
ocorre na psicometria, porque os seus propósitos são diferentes, dado que
tradicionalmente visam mais apurar os níveis de normalização ou de desvio
cognitivo.
Em suma a ADC resgata a informação sobre como a criança ou
jovem aprende a aprender, em resumo, enfoca-se na ecologia do sujeito
aprendente (Mentis et al. 2008).
A AD em comparação com a avaliação psicométrica, está mais
orientada para um processo cognitivo, é mais vocacionada para o
desenvolvimento de habilidades cognitivas de: auto-regulação,
auto-determinação, auto-avaliação, auto-monitorização, ou seja, para a
aplicação de estratégias cognitivas relevantes, para a metacognição, para a
meta-aprendizagem e para o meta-ensino.
A ADC visa portanto, induzir as manifestações cognitivas mais
básicas da aprendizagem, como: a atenção, a organização perceptiva, a
descodificação, a codificação, a análise, a síntese, a significação, os vários tipos
de memória (trabalho, curto e longo termo), a planificação, o pensamento
estratégico, a imaginação, a ideação, a regulação, a execução, a verificação, etc.
Como é sabido, todas estes processos cognitivos são menos considerados
na avaliação psicométrica.
O modelo básico de ADC deverá colocar em jogo três componentes
interactivos chave: 1º os processos cognitivos do observado; 2º os processos
de mediatização e interacção cognitiva do observador; e finalmente, 3º os
componentes das tarefas de avaliação e ou de intervenção;
Os processos cognitivos do observado devem ter em consideração: a
sua base de conhecimento; o seu estilo de atenção; os tipos de processamento
13
simultâneo e sucessivo da informação (percepção e memória); a sua
capacidade de planificação e as suas funções de execução, isto é, o seu
potencial de modificabilidade cognitiva ou a sua meta-aprendizagem
(Mentis et al. 2008).
Os processos de intervenção, de mediação e de interacção do
observador devem sublinhar as suas estratégias de transmissão cultural, de
transmissão de conhecimentos, de competências, de valores, de atitudes, de
objectivos e de meios para atingir fins, tais como: intencionalidade;
significação; transcendência; partilha; pertença; reciprocidade afectiva e
busca de alternativas optimistas; reforço de sentimentos de competência,
auto-estima, auto-regulação, auto-controlo e auto-eficácia ampliando e
incentivando as áreas fortes do observado e a sua consciencialização da
modificabilidade que deve ocorrer na sua aprendizagem; individualização e
consideração pelo estilo de aprendizagem do observado; diferenciação da sua
ZDP e empoderamento, e não, evitamento das suas áreas fracas; etc., ou seja,
tudo o que pode caber num meta-ensino.
E por último, a selecção e a análise detalhada dos componentes das
tarefas ou propostas, situações-problema, actividades, projectos ou práticas
a serem vivenciadas e experimentadas pelo observado, tendo em vista a
variação ou até mesmo a mudança da experiência de aprendizagem,
identificando o porquê e quando ele evidencia dificuldades cognitivas.
Analisar uma tarefa (de avaliação dinâmica ou de intervenção
reeducativa), exige um pensamento de metatarefa, ou seja, sugere um foco
mais intenso nos aspectos mais específicos da mesma:
- no seu conteúdo ou matéria, o que pressupõe o conhecimento
prévio, a escolaridade, as experiências passadas e o nível de conforto cultural
do observado;
- na sua modalidade preferencial de apresentação (figurativa, gráfica,
não verbal, simbólica, escrita, numérica, etc., ou seja, na modalidade e na
combinação de modalidades que sejam mais compatíveis com estilo de
aprendizagem do observado, ou mais visual, ou mais auditivo, ou mais táctil e
mais cinestésico);
- no nível de abstracção, no grau de familiarização ou novidade, ou
no parâmetro da sua simplicidade ou complexidade, pois as tarefas podem ser
mediadas do simples para o composto antes de se saltar para um nível de
complexidade que bloqueia todo o funcionamento do acto mental do
observado, algo que tem a ver com oportunidades de prática para deixar
emergir a automaticidade e a fluência dos instrumentos cognitivos; e por
último,
- as operações cognitivas ou as competências cognitivas que são
reclamadas pelas tarefas de observação, sejam elas simples como a
identificação do problema ou a comparação e classificação de dados, sejam
complexas como o raciocínio indutivo ou o pensamento transitivo.
Com base nestes pressupostos, a ADC pode ser perfeitamente
considerada uma ferramenta de ensino ou de intervenção cognitiva
assistida, onde o observador dá suportes (“scaffoldings”), ajudas,
explicações, dicas, estratégias para o observado evoluir na sua ZDP e revelar
14
efectivamente uma mudança de comportamento, isto é, evoluir duma
aprendizagem inicial assistida a uma aprendizagem final independente
(Bodrova e Leong 2007). Todas as aprendizagens humanas das mais simples
como as autossuficiências, às mais complexas como aprender a ler, todas elas
decorrem duma interacção social consequente entre seres maturos e imaturos.
Nascemos imperitos por alguma razão, não nascemos ensinados,
nascemos sim com propensão para aprender. Convém lembrar que
todas as aprendizagens que caracterizam o neurodesenvolvimento humano
começam sempre por uma inaptidão inicial, como no caso do bebé ou da
criança de tenra idade que ainda não dominam as tarefas de autossuficiência
de alimentação, de higiéne ou do vestuário. Neste exemplo, é a mãe que
assume o papel de mediadora, ela recorre a um conjunto de processos de
facilitação, de interacção afectiva e intersubjectiva onde presta a máxima
assistência para progressivamente permitir, de forma muito lenta e
microgenética, que o seu filho venha a aprender tais competências e atinja
uma performance com assistência mínima.
Quando se verifica portanto o domínio das tarefas, a perfeição máxima
e a verdadeira autonomia por parte dos seres aprendentes, já não é necessário
ensinar ou assistir, a mestria e a perfectibilidade foi atingida pelo sujeito e a
sua ZDP abriu-se para outros patamares de aperfeiçoamento e a excelência.
É com base nestes pressupostos da ADC que se deve colocar a questão
da intervenção na cognição, a ADC é apenas o ponto de partida, o processo
deve continuar com a intervenção individualizada, pois entre a avaliação e a
intervenção deve-se construir uma ponte permanente de dois sentidos.
Como? Pergunta-se.
Com base no perfil cognitivo já evocado atrás, que deve apresentar a
caracterização dinâmica das áreas fortes ou independentes do observado, das
suas áreas da ZDP ou hesitantes, e das áreas fracas ou vulneráveis, o
planeamento das tarefas de intervenção, deverá ser implementado a partir de
tarefas onde criança ou o jovem têm autonomia e motivação intrínseca para
reforçar a auto-estima, a concentração e a recompensa motivacional. De
seguida o planeamento deve entrar na ZDP e explorar e ampliar o reportório
de funções cognitivas, e só posteriormente, deve abordar o campo das suas
disfunções cognitivas.
A intervenção na cognição deve iniciar-se a partir do que a criança ou
jovem aprendente sabe fazer e não concentrar-se naquilo que não sabe fazer,
pois é importante reconhecer as suas áreas fortes e fazer uso delas para
determinar o plano individualizado de intervenção cognitiva.
3. Intervenção na Cognição
Um dos princípios importantes da intervenção na cognição humana é a
necessidade duma interligação contínua e recíproca entre a avaliação e a
intervenção, um processo cíclico que envolva, igualmente: planificação,
implementação, monitorização e reavaliação. É óbvio que a intervenção na
cognição deve seguir os pressupostos de mediação e de interacção pedagógica
15
acima apontados na avaliação dinâmica, neste capítulo particular,
limitar-nos-emos a apontar alguns dos métodos mais conhecidos na literatura
da especialidade.
Os métodos e programas de intervenção cognitiva ou treino cognitivo,
são numerosos e de diversas origens culturais, quase todos eles foram
concebidos para potenciar os vários estádios piagetianos da inteligência
(sensório-motor, préoperacional, operacional e lógico e formal ou abstracto), e
para ampliar, aperfeiçoar e enriquecer o conjunto da tríade das funções
cognitivas já evocada (input-integração/planificação-output).
Tais métodos e programas de intervenção ou educação cognitiva que
em baixo listaremos didacticamente, para além de promoverem as funções
cognitivas, paralelamente induzem, à capacidade de aprender a aprender, à
resolução de problemas e à busca de generalizações (ou de transferência de
competências para outros domínios de conhecimento), respondendo assim a
uma preocupação pedagógica que não é nova e que se enfoca numa ideia base,
isto é, que a inteligência é educável, contrariando as visões tradicionais e
passadistas que ela é fixa, finita ou imutável, quando ela como característica
humana é, efectivamente, plástica, flexível e neurodiversa como
comprovam hoje muitas investigações nas neurociências (Sousa, 2010; Willis,
2010; Posner, 2010).
Desde Montaigne no século XVI que preconizava já uma “cabeça bem
feita” em vez duma “cabeça muito cheia”, da procura do milagre da educação
defendido por Itard (1775-1838) em transformar a criança selvagem Victor de
l´Aveyron numa criança civilizada e alfabetizada, passando por Binet
(1857-1911) o pai da medição e quantificação da inteligência que se insurgiu
contra a classificação e categorização de crianças escolarizáveis, até a outros
pioneiros e a novos messias da cognição que o entusiasmo e o fascínio por
programas de educação cognitiva é forte e apetecível (Coulet, 1999).
A criação, a divulgação, a edição e o treino prolongado, e caro, de
especialistas em intervenção cognitiva está na moda em muitos países que
querem resolver as questões quentes da educação: do insucesso e do
abandono escolar; do baixo rendimento ou aproveitamento escolar; da
inclusão de estudantes com privação ou diferenciação cultural; das
dificuldades de aprendizagem específicas (as famigeradas “dis”); das fracas
avaliações em exames internacionais (exº: PISA); etc.; etc..
De uma maneira geral as abordagens cognitivas intervêm
educacionalmente no sentido dos estudantes incorporarem estratégias
cognitivas e metacognitivas, ora para serem aplicadas no contexto das várias
disciplinas curriculares, ora para serem implementadas como intervenção
cognitiva específica ou simultânea em várias funções cognitivas já
mencionadas (Perraudeau, 1996).
Para já, todos os métodos ou programas, são conhecidos cerca de vinte
e três, apresentam vantagens e inconvenientes e a sua arquitectura teórica tem
uma influência e um vínculo conceptual diferente, mesmo um
desenvolvimento histórico e uma filiação evolutiva distintos, daí a necessidade
de os agrupar em três categorias básicas:
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1) Métodos centrados no desenvolvimento de funções
cognitivas (influência piagetiana);
2) Métodos enfocados nos processos de mediação e interacção
(influência vygostskiana);
3) Métodos compatíveis com o funcionamento do cérebro
(influência luriana).
Por limitações de espaço não é possível fazer uma análise crítica de
todos os métodos de intervenção cognitiva abaixo designados, tentaremos
apenas listá-los e apontar o seu nome e o seu criador ou conceptor:
1) Métodos centrados no desenvolvimento de funções
cognitivas: - ARL ou Ateliers de Raciocínio Lógico de P. Higelé;
- LOGO de S. Pappert;
- RM ou Reconstrução Matemática de H. Planchon;
- Cubos Lógico-matemáticos de P. Mialet;
- O Método de Mobilidade Mental de Ramain;
- PEI ou Programa de Enriquecimento Instrumental de R.
Feuerstein;
- Partida Inteligente (“Bright Start”) de C. Haywood;
2) Métodos enfocados nos processos de mediação e
interacção; - Treino Mental de J. Dumazedier;
- SPPA e SPPE ou Sistemas Pessoais de Pilotagem da Aprendizagem e
do Ensino de G. Lerbet e J. L. Gouzien;
- PADeCA ou Programa de Ajuda ao Desenvolvimento da Capacidade
de Aprendizagem de J. Berbaum;
- Pedagogia Diferenciada de P. Meirieu;
- Gestão Mental de A. De La Garanderie;
- Aprendizagem da Abstracção de B. Barth;
3) Métodos compatíveis com o funcionamento do cérebro
- Pensamento Lateral de E. de Bono;
- Abordagem Sistémica de G. Evéquoz;
- PNL ou Programação Neurolinguística de J. Grinder e R. Bandler;
- Pedagogia Interactiva de G. Racle;
- Mapas Mentais de T. Buzan;
- Dois Cérebros para Aprender de L. Williams;
- O Método Tanagra ou Técnica de ANÁlise GRÁfica de Y. Pimor e H.
Cottin;
- Análise Transaccional de E. Berne;
- PAD ou Programação de Acções Didáctias de M. Roger;
- PREP ou Programa de Rabilitação PASS (Planificação, Atenção,
processamento Simultâneo e Sucessivo de informação) de J. P. Das.
17
Por esta listagem verificamos que não há um método único ou
milagroso, mesmo que os seus criadores e seus promotores o defendam com
argumentos teóricos convincentes e com estudos empíricos. A intervenção
cognitiva não cabe, portanto, num conceito de unanimidade universal, pois
todos eles têm vantagens e limitações visto pertencerem a várias escolas de
pensamento, umas piagetianas, outras vygotskianas e outras ainda
neuropsicopedagógicas.
Está por criar um método que integre as três abordagens, uma vez que
estamos intervindo num dom muito especial da natureza humana, isto é,
provocar processos de modificabilidade cognitiva numa dinâmica de
transmissão cultural intergeracional e sociocognitiva.
Temos que aumentar o nosso conhecimento sobre a cognição, a
aprendizagem, a aquisição do conhecimento e o funcionamento do cérebro,
apesar dos enormes avanços nas neurociências educacionais.
É ilusório postular que um determinado método ou programa de
intervenção cognitiva vai actuar favoravelmente no processo de aprendizagem
dum sujeito ou induzir mudanças nos seus instrumentos cognitivos centrais
que processam, integram e comunicam o conhecimento, porque tais processos
não são aplicáveis a todas as circunstâncias, nem a todos os domínios de
conhecimento. Não há métodos de intervenção cognitiva únicos ou infalíveis
(Mcguiness, 2005; Fonseca, 2001, 2014, 2017).
Nenhum método ou programa de intervenção cognitiva pode garantir,
com toda a certeza, que no fim da sua aplicação criteriosa, todos os sujeitos
envolvidos vão superar todas as suas dificuldades e ultrapassar todos os seus
bloqueios. Como sabemos todos os processos cognitivos estão intimamente
relacionados a conteúdos distintos, não é possível atingir ganhos
generalizados em todas as disciplinas escolares somente com a intervenção
cognitiva.
O objectivo da intervenção cognitiva é educar a cognição, visa abranger
um conjunto de funções cognitivas que captam, processam, elaboram e
comunicam competências e conhecimentos, é por analogia, lapidar um
diamante da natureza e acrescentar-lhe valor cultural no seu sentido mais
lato e transcendente.
A intervenção cognitiva não visa apenas a aquisição e manipulação
mental de conhecimentos específicos como os que são consagrados nas
diversas disciplinas curriculares (Português, Literatura, Poesia, Matemática,
Ciências, Geografia, Filosofia, Línguas Estrangeiras, etc.).
Como método pedagógico inovador e mediatizador de interacções
sociocognitivas ela vai mais longe, ela pretende abranger, não só o conjunto
sistémico das funções cognitivas, como a aprendizagem de estratégias de
estudo, de processamento de informação, de resolução de problemas, de
apropriação e reorganização de instrumentos mentais críticos e criativos de
elaboração e utilização do conhecimento, e igualmente, de capacidades para
aprender a aprender, ou sejam, funções cognitivas que são transversais a
todas as matérias e conteúdos e a todas as situações de adaptabilidade da sua
vida quotidiana (Perraudeau, 1996; Fonseca, 2001, 2014, 2017).
A intervenção cognitiva continuada, deliberada e praticada num tempo
prolongado pode, efectivamente, gerar muitos benefícios pessoais e sociais e
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provocar a emergência, a optimização e a modificabilidade de habilidades
cognitivas em todos os estudantes independentemente das suas diferenças
culturais e da sua neurodiversidade, algo de grande relevância cultural que,
quanto a nós, não pode continuar a ser negligenciável pelas escolas.
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