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Dossiê Tríplice Aliança 150 anos: Voluntários da pátria

A expressão “voluntários da pátria”, elemento comum de várias narrativas sobre a guerra contra o Paraguai (1865-1870), funciona como categoria explicativa da vitória sobre o Paraguai, da unificação do exército brasileiro e, por extensão, do advento da República. Por trás do epíteto de voluntários da pátria, escondem-se indivíduos de diferentes classes sociais, e as formas pelas quais se fizeram voluntários, poderiam, ao contrário da mitificação, captar a maneira como o recrutamento para a guerra incluiu os diferentes setores sociais. Quem convocar, livres ou escravos? Que meios empregar para atender à demanda por soldados? Nesse contexto está a participação de escravos que tiveram liberdades proclamadas pelo próprio governo, pela compra de alforrias, contra o dever de “assentar praça” nos batalhões do exército e da marinha.

Procuramos aferir a participação dos negros na guerra, em termos quantitativos, através dos registros das cartas de alforrias nos cartórios do 1°, 2°, 3° e 4° ofícios da cidade do Rio de Janeiro, que permitem ainda analisar seus perfis etários, suas nacionalidades, bem como reconhecer os proprietários e procuradores que mais lucraram com a venda de escravos para a guerra.

Sempre foram grandes as dificuldades de recrutamento no Brasil colonial e imperial. O negro, livre, escravo ou liberto, em várias ocasiões foi convocado a dar sua contribuição (ressalvamos que não apenas no Brasil, mas em toda a América escravista). A historiografia a respeito da guerra contra o Paraguai – em especial nos anos que precederam a proclamação da República – não se ateve à leitura parcimoniosa dos documentos. Essa romantização deu margem a que se construísse uma história na qual o voluntário da pátria era a origem da moderna força militar brasileira, composta por abnegados e fervorosos patriotas. Mas, durante a guerra, tanto o exército quanto a marinha padeciam do antigo problema do recrutamento. Além dessas duas instituições, existia também a Guarda Nacional – corpo militar criado em 1831 para defender a Constituição, a integridade e a independência do Império.

O recrutamento para a Guarda Nacional era dificultado adicionalmente pelas disputas políticas. O partido da situação sempre listava para o recrutamento seus desafetos políticos. O Império convocou a Guarda Nacional à guerra. No entanto, a Guarda não podia ultrapassar a fronteira. Esse entrave constitucional foi contornado pelo Decreto n° 3.371, em cujo texto a Guarda ganhou a pomposa denominação de “Corpos Destacados ou Voluntários da Pátria”.

Essa mudança pôs fim à característica de corpo de elite da Guarda Nacional e permitiu aos praças de pré do exército apresentar-se em condições iguais às dessa instituição, fazendo jus

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às mesmas vantagens – situação antes inimaginável. Não é difícil imaginar o constrangimento da elite militar diante do gentio recrutado para suprir necessidades de momento. Se a elite da Guarda Nacional não era propriamente uma elite, pelo menos os soldados graduados, filhos de famílias abastadas, a tinham na conta de símbolo de status. Aprovado o decreto que legalizava a convocação da Guarda, agora Corpos de Voluntários da Pátria, reforços de todas as procedências chegaram: brancos e mestiços empobrecidos, escravos libertos, filhos e aparentados de políticos latifundiários – todos cumpridores do papel de voluntários.

Entre os reforços estava a cearense Antônia Alves Feitosa, ou “Jovita”, que, com 17 anos, cortou os cabelos, se vestiu de homem e procurou o exército para se alistar a fim de lutar na guerra. Apesar de ter sido vetada sua participação como recruta, a jovem viraria um ícone. A necessidade de um maior contingente tomava corpo em documentos com expressões como “lançar mão de todos os meios, (...) ainda mesmo os ilegais para pôr peias à execução das ordens das autoridades superiores”. Nas cidades, proprietários de escravos levavam seu protesto às autoridades policiais pelo recrutamento sem permissão. Conseguimos levantar, em ocorrências policiais de 1867, na província do Rio de Janeiro, 140 casos de escravos aprisionados e remetidos à corte para serem enviados ao front. Os proprietários municiavam-se de documentos comprobatórios da posse dos escravos para impedir que eles fossem enviados à guerra. A forma como eram recrutados e também o objetivo – assentar praça na guerra – eram severamente criticados. O recrutamento de escravos no meio urbano generalizou-se quando o governo, mediante pagamento em dinheiro ou em apólices, atendeu aos queixumes dos proprietários e passou a comprar a mão de obra necessária aos batalhões do Império.

Para os anos de 1865-1869 levantamos 7.752 registros de cartas de libertos nos cartórios da capital do Império. Desses, 37% obtiveram alforria sob a explícita condição de marcharem para a guerra, enquanto 63% ganharam a liberdade por outras razões – serviços prestados, apadrinhamento, compra etc. Para o biênio 1867-1868 as alforrias para a guerra foram predominantes. O recrutamento influenciou o movimento de alforrias na cidade do Rio de Janeiro.

Era clara a preferência por escravos nacionais – representam 85%, enquanto os africanos participam com apenas 4%. A diferença é também consequência da suspensão do tráfico atlântico em 1850, com a paulatina diminuição da população escrava africana. Em 1867-1868, os africanos e nacionais libertos eram 5% e 77%, respectivamente. Uma vez mais nota-se que, no biênio de maior necessidade, o Império lançou mão de todos os recursos disponíveis – inclusive a convocação da escravaria africana em idade avançada.

À primeira vista, somente escravos entre 15 e 40 anos foram libertos para compor batalhões de voluntários da pátria – justamente a mão de obra em plena capacidade produtiva. Na

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distribuição etária, 56% dos libertos estavam entre 20 e 29 anos. Chama atenção o fato de não haver registro em cartório de crianças abaixo dos 15 anos alistadas para serviços militares, ao contrário do que apontam documentos de recrutamento. É possível que esses menores não tenham sido registrados por não serem objeto de compra: geralmente eram doados ou, o que era comum, enviados pelos chefes de polícia sem o consentimento dos senhores ou de seus pais.

Quanto à procedência dos libertos (nacionais ou africanos), foi impossível averiguar suas regiões de origem – com a pesquisa, soubemos apenas a de 20% dos africanos listados: sete nasceram na África ocidental, 23 eram da África centro-ocidental, cinco da oriental. De 89, não foi possível identificar a procedência.

O recrutamento na praça comercial da cidade do Rio de Janeiro intensificou-se durante a guerra. Os preços por que foram comerciados, todavia, merece especial atenção. Entre o maior e o menor preço pago pelo governo, do início ao fim do conflito, houve elevação de nada menos de 224%. Do total dos libertos nacionais pesquisados, as cartas de alforria de 38% continham os preços e as condições de pagamento especificadas. A média de preço de um escravo corresponde a 1.985$000 (um conto e novecentos e oitenta e cinco mil réis). O gasto total do governo com os 1.111 escravos totalizou 2.746,950$000 (dois mil e setecentos e quarenta e seis contos e novecentos e cinquenta mil réis). O menor valor pago por um alforriado para a guerra foi, em 1865, 1.250$000 (um conto e duzentos e cinquenta mil réis), e o maior preço foi 2.800$000 (dois contos e oitocentos mil réis), em 1868 – ano crítico da guerra.

O movimento de compra e venda de escravos favoreceu, em especial, alguns comerciantes da praça do Rio de Janeiro. Nos registros, a reincidência comprova esse fato: no biênio 1867-1868, constatamos que apenas dez deles detinham 38% do total do comércio de escravos alforriados. A atuação desses proprietários e procuradores deixa sérias suspeitas de que compravam escravos e os revendiam ao governo, faturando um bom ágio.

O exame das cartas de alforrias registradas durante a guerra nos cartórios do Rio de Janeiro comprova que os registros dos ministérios são evasivos e irregulares, assim como o dos únicos autores que se deram o trabalho de apresentar números para os escravos convocados: o senador João Nogueira Jaguaribe e o historiador Paulo Duarte de Queiroz. Pelos dados apresentados por Nogueira Jaguaribe, seis províncias (Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Ceará, Rio de Janeiro) e a capital do Império contribuíram com 55.935 soldados, 61% dos recrutados durante toda a guerra. Essas províncias esperam por um levantamento em suas fontes cartoriais. O levantamento dos registros de cartas de alforrias registradas nos cartórios notariais nos dá a certeza de que estudos de âmbito nacional, que afiancem a real presença do liberto na guerra, ainda estão para ser feitos.

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Jorge Prata de Sousa, Pós-doutor na ENSP/FIOCRUZ, é professor da Universo e autor do livro Escravidão ou morte – Os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai (Mauad, 1996)