Wander Proenca Sindicato Dos Magicos

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WANDER DE LARA PROENÇA SINDICATO DE MÁGICOS: Uma história cultural da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2006) Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área: História e Sociedade) Orientador: Prof. Dr. Milton Carlos Costa ASSIS 2006

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WANDER DE LARA PROENÇA

SINDICATO DE MÁGICOS:Uma história cultural da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2006)

Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área: História e Sociedade)

Orientador: Prof. Dr. Milton Carlos Costa

ASSIS2006

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Proença, Wander de LaraSindicato de Mágicos: uma história cultural da Igreja Universal do Reino

de Deus (1977-2006). Wander de Lara Proença. Assis, 2006. 374p.Tese – Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis –

Universidade Estadual Paulista.1. Brasil – Religiosidade 2. Igreja Universal do Reino de Deus 3. História

Cultural 4. Sindicato de Mágicos 5. Roger Chartier - Representações 6. Sociologia – Pierre Bourdieu.

CDD 289.94

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WANDER DE LARA PROENÇA

SINDICATO DE MÁGICOS: UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS (1977-2006)

COMISSÃO JULGADORA

TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP / ASSIS – SP

Presidente e orientador: Dr. Milton Carlos Costa – UNESP

2º Examinadora: Drª. Maria Lucia Montes - USP

3º Examinadora: Drª. Silvia Cristina Martins de Souza - UEL

4º Examinador: Dr. Eduardo Basto de Albuquerque – UNESP

5º Examinador: Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho – UNESP

Assis, 02 de março de 2007.

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Ao meu avô, Bino Lara, o qual, durante o período em que eram redigidas as últimas páginasdeste trabalho, também concluiu sua história terrena... Partiu, mas deixou memórias de alguém fascinado por assuntos religiosos... O mistério do sagrado, que tanto o encantou, também seduz a ciência e busca explicações nas páginas desta pesquisa.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Milton Carlos Costa, que sempre soube conjugar sua notável erudição no conhecimento historiográfico com a dedicação e o zelo no trabalho de orientação de cada etapa desta pesquisa.Tornou-se para mim um grande amigo, um grande mestre, sendo um referencial seguro de rumos, delineamentos e correções a que a tese foi submetida. Sempre solícito e prestativo na disponibilização de horários para os procedimentos de orientação, muitos dos quais em finais de semanas e feriados. Quando estabeleci os primeiros contatos com a Unesp, prontamente aceitou-me como aluno especial da disciplina que ministrava. Em seguida, acreditou no projeto ainda em fase de elaboração, reprogramando, inclusive, seus compromissos de orientação a fim de disponibilizar mais uma vaga ao processo seletivo para que fosse possível meu ingresso no Programa de Doutorado. Lembro-me das desafiadoras palavras que dele ouvi após a primeira leitura que fez do meu projeto de pesquisa: “Ainda há uma lacuna na historiografia brasileira sobre a abordagem de temas relacionados ao neopentecostalismo”. Se este trabalho, agora concluído, vier a contribuir para o alcance daquele objetivo, os méritos advém das imprescindíveis orientações acadêmicas recebidas do Prof. Milton.

Ao Programa de Pós-Graduação em História da Unesp, por contemplar em suas linhas de pesquisa espaço para abordagem de temas pelo viés da História Cultural. Este trabalho é, certamente, resultado de um longo processo que envolveu diferentes contribuições do Programa de Doutorado: oferta de disciplinas voltadas à História Cultural na integralização dos créditos; avaliação e críticas ao projeto originalmente elaborado, em disciplinas especialmente ofertadas para esse fim; segura fundamentação teórico-metodológica propiciada nas aulas de Teoria e Metodologia; oportunidades de apresentações parciais da pequisa durante as Semanas de História, realizadas anualmente, ocasião em que o tema investigado pôde ser exposto para debate e reações de outros pesquisadores, sob a mediação do meu orientador; e, por fim, a participação dos membros da Banca de Qualificação, que desempenharam leitura cuidadosa do texto até àquele momento elaborado, apresentando importantes contribuições para os procedimentos finais de redação da pesquisa.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História, da Unesp, pela dedicação, capacidade e esmero na tarefa de formar novos pesquisadores.

Aos professores Dr. Eduardo Basto de Albuquerque e Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho, pelas relevantes observações e recomendações feitas à tese quando participaram do Exame de Qualificação. A presença desses docentes também na Banca de Defesa enobrece o nível que essa investigação se propôs a alcançar.

Aos professores titulares e suplentes que compõem a Banca de Defesa, cuidadosamente escolhidos e convidados, por emprestarem o seu nome e o seu prestígio acadêmico na avaliação do trabalho aqui elaborado.

Aos funcionários da Unesp/Assis, pelo modo sempre prestativo e atencioso dedicado aos alunos do Programa de Pós-Graduação. Profissionais que, além da competência, demonstram satisfação e zelo no desempenho de suas funções.

Ao Prof. André Luiz Joanilho, pelo auxílio e direcionamento na elaboração das primeiras pesquisas historiográficas que desenvolvi sobre o pentecostalismo brasileiro, ainda durante o

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Mestrado, e também por ter intermediado os primeiros contatos com o Prof. Milton para que pudesse ser meu orientador.

À Fabiana Rondon, pelo auxílio nas pesquisas de campo e no acesso às fontes documentais próprias da Igreja Universal do Reino de Deus.

À prof.ª Selma Almeida, pela revisão de língua portuguesa realizada no texto.

À prof.ª Rosalee Ewell, pela tradução do resumo desta tese para o inglês.

À Daniela Selmini, bibliotecária da Faculdade Teológica Sul Americana, pelo auxílio nas constantes pesquisas realizadas naquele local.

Ao Alfredo Oliva, pela amizade e companheirismo na travessia dos cinco anos em que fomos colegas de curso no Programa de Doutorado em História da Unesp, compartilhando os desafios e a fascinação que o estudo do campo religioso brasileiro proporciona.

À Faculdade Teológica Sul Americana, com especial menção ao Prof. Jorge Henrique Barro, pelo auxílio e apoio na disponibilização da estrutura da FTSA para o desenvolvimento de minhas pesquisas. O acervo documental sobre o pentecostalismo brasileiro, existente na Biblioteca dessa Instituição, foi de significativa importância para o aprofundamento do tema aqui abordado.

À CAPES, com especial registro, pela bolsa de estudos que subsidiou recursos imprescindíveis ao desenvolvimento deste projeto, especialmente por propiciar condições para as viagens do trabalho de campo e os constantes deslocamentos que se fizeram necessários aos acervos documentais.

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“A HISTÓRIA DOS DEUSES SEGUE AS FLUTUAÇÕES HISTÓRICAS DE SEUS SEGUIDORES”.

Pierre Bourdieu

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PROENÇA, Wander de Lara. Sindicato de Mágicos: uma história cultural da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2006). Assis: Unesp, 2006. 356 fl. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2006.

RESUMO

Em 1977, com o nome de Igreja Universal do Reino de Deus, surgiu o mais instigante movimento religioso no cenário brasileiro contemporâneo, não apenas pelo explosivo crescimento numérico, mas principalmente pela inauguração de práticas que transpõem as categorias conceituais explicativas classicamente utilizadas para a análise das manifestações de fé. Abordagens jornalísticas, religiosas e sociológicas não deram conta de compreender a abrangência e os impactos promovidos por esse segmento. O desafio foi então lançado à historiografia. Com o propósito de contribuir para o preenchimento dessa lacuna, esse trabalho se propôs a pesquisar, com profundidade, as práticas e as representações que notabilizaram o fenômeno iurdiano. Para isso, a partir de parâmetros teórico-metodológicos da História Cultural - articulados com os pensamentos de Roger Chartier e Pierre Bourdieu - realizaram-se incursões investigativas nos documentos próprios da igreja, conjugando-as com observações participantes nos cultos e ritos, cruzando-se ainda tais fontes com depoimentos de líderes e fiéis, além de gravações sistematizadas de programas midiáticos, transcritos e catalogados para análise. Constatou-se que o fenômeno iurdiano: não é dissidência e nem continuidade de outras expressões religiosas, mas é criador de algo novo a partir de apropriação e resignificação de compósitos culturais arraigados na longa duração histórica; estabeleceu um marco divisor no campo religioso quando chegou às massas e atingiu a matriz cultural brasileira, recuperando elementos liminares de crenças folclóricas, que perpassam todos os níveis sociais, tornando-os prioritários; surgiu e cresceu no contexto de uma explosão urbana, marcada por instabilidade, crise e violência, tornando-se um espaço de salvação, de socorro e ajuda. Sindicato de mágicos configura-se, pois, como um título plausível para classificar a operacionalidade da alquimia do conjunto observada nas práticas desse movimento, capaz de combinar elementos aparentemente contraditórios: denomina-se igreja, mas caracteriza-se por magia e profetismo; possui líderes carismáticos, pelas regras coletivas do campo e não pela excepcionalidade individual; desenvolve um tipo de messianismo, de configurações rurais, mas vivenciado com encanto no mundo urbano; as crenças que necessita combater são decisivas para o seu funcionamento; as benesses do paraíso apocalíptico já são antecipadas para o tempo presente, alterando inclusive a geografia do além-pós-morte; elementos encantados são habilmente conjugados com recursos ultramodernos; o biblicismo da leitura é substituído pelo emblema do rito; polêmicas estratégias de arrecadação financeira são denegadas pela economia da oferenda; no lugar da abstenção de bens materiais como preparação para a salvação, a prosperidade e o usufruto de valores do tempo presente como sinais de alcance do reino idílico; sendo instituição, possui a capacidade mágica de não permitir a magia institucionalizar-se; deu certo no contexto brasileiro por recuperar um elemento essencial e identitário do cristianismo: o mistério.

Palavras-chave: Igreja Universal do Reino de Deus; História Cultural; sindicato de mágicos; carisma; campo religioso brasileiro.

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PROENÇA, Wander de Lara. Sindicato de Mágicos: uma história cultural da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2006). Assis: Unesp, 2006. 356 fl. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2006.

ABSTRACT

In 1977 was inaugurated, with the name Universal Church of the Kingdom of God - Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) - the most provocative religious movement in contemporary Brazil, not simply due to its explosive numerical growth, but mainly because of its practices that went beyond classical conceptual categories employed in analyses of faith manifestations. Journalistic, religious, and sociological approaches were not sufficient to account for the range and impact of this segment. The challenge was then submitted to historiography. With the purpose of answering some of these lacunae, the present work proposes to research in depth the practices and representations that most mark the IURD phenomenon. For that, using theoretical-methodological parameters from cultural history, articulated in the works of Roger Chartier and Pierre Bourdieu, we shall make incursive investigations into the documents of the church, placing these alongside the observations made by participants in the church’s rites and practices, then comparing these with additional statements from the church’s leadership and faithful followers. We will also examine Transcripted and catalogued information gathered from various media programs. It was found that the IURD phenomenon was not due to dissidence nor continuity with other religious expressions, but was instead the creation of something new based on an appropriation and resignification of long-standing historical and cultural composites. It established a dividing mark in the religious field when it reached the level of the masses and hit a Brazilian cultural matrix, recovering hidden elements of popular folklore, that reach all social strata, thus making them priorities. It started and grew in a context of urban explosion, marked by instability, crises and violence, making it a place of salvation and help. “Magicians´ Union”, therefore, is a plausible title under which to classify the functionality of the group alchemy observed in the practices of this movement, capable of combining apparently contradictory elements: calling itself “church”, but characterized by magic and prophecy; having charismatic leaders determined by the collective rules of the field and not according to individual gifts; developing a type of messianism of rural configurations, but living in a charmed urban world. The beliefs against which it must fight are decisive for its functioning; the blessings of apocalyptic paradise are anticipated to the present time, altering the geography of post-beyond-death. Elements of enchantment are ably paired with ultramodern technology; literal biblicism is substituted by an emblem of rite; polemical strategies for financial gain are disallowed by an economy of offering; instead of abstaining from material goods in preparation for salvation, prosperity and the enjoyment of this present day are signs of reaching the idyllic kingdom. As an institution, it has the magical capacity of not allowing magic to institutionalize itself. It has been successful in the Brazilian context because it recovered an essential element of Christian identity: mystery.

Keywords: Universal Church of the Kingdom of God; cultural history, magicians´ union; charisma; Brazilian religious field.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................12

1 - PARÂMETROS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS ........................................37

1.1 - O lugar do sagrado na História Cultural .........................................................................37

1.2 - Um caminho metodológico a partir de Chartier e Bourdieu ...........................................49

1.2.1 - Representação, prática, habitus ...................................................................................52

1.2.2 - Campo, capital simbólico ............................................................................................60

1.3 - Fontes para pesquisa historiográfica sobre a Igreja Universal do Reino de Deus...........64

1.3.1 - Documentos próprios da Igreja Universal....................................................................65

1.3.2 – Fontes produzidas pela pesquisa de campo .................................................................71

2 – O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL EM QUE SE DESENVOLVEU O PENTECOSTALISMO BRASILEIRO ..................................................................................88

2.1 – O contexto de movimentos precursores .........................................................................89

2.2 – O contexto do surgimento do pentecostalismo ... ..........................................................94

2.3 – O contexto de projeção do pentecostalismo .................................................................110

2.4 – O contexto de desenvolvimento do neopentecostalismo ............................................126

2.5 – Um contexto de esforços do catolicismo pelo controle do campo religioso.................136

2.6 – Um contexto histórico de magia no campo religioso brasileiro ...................................141

2.7 – Um contexto de pressão folclórica camponesa no mundo urbano ...............................147

3 – UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS:

PRÁTICAS ...........................................................................................................................152

3.1 – A consagração do herético: o nascimento de um sindicato de mágicos ......................152

3.2 – A universalização do reino: o explosivo crescimento da Igreja Universal ..................156

3.3 – A multiplicação da palavra: os recursos midiáticos da Igreja Universal .....................161

3.4 – Milagres do dinheiro e dinheiro dos milagres nas práticas iurdianas ..........................163

3.5 – Interesses do gesto desinteressado: a economia de oferenda nas práticas iurdianas.....168

3.6 – O poder simbólico do carisma nas práticas iurdianas ..................................................173

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3.6.1 – O carisma do profeta .................................................................................................183

3.6.2 - O carisma do mago ....................................................................................................215

3.6.3 – O carisma messiânico-milenarista .............................................................................224

3.7 – O palimpsesto cultural das práticas iurdianas ..............................................................251

4 - UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS: REPRESENTAÇÕES ...........................................................................................................267

4.1 – Da funerária à catedral: representações do espaço sagrado iurdiano ...........................267

4.2 - Representações mágicas dos objetos litúrgicos ............................................................271

4.3 – O universo representacional dos ritos ..........................................................................278

4.3.1 - Corrente da prosperidade: o dinheiro e suas representações .................................... 284

4.3.2 - Corrente do descarrego: representações do mal nas práticas iurdianas .....................399

4.3.3 - “Pare de sofrer”: corrente de cura divina e milagres .................................................310

4.4 - O papel das práticas de leitura nas representações iurdianas ........................................316

4.5 - Representações da morte: mudanças na geografia do “Além” .....................................325

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................332

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................353

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INTRODUÇÃO

O ano é 1977. O lugar: subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. O endereço:

Av. Suburbana, 7.702, Bairro da Abolição. O local: um modesto salão alugado, anteriormente

ocupado por uma funerária. À porta, afixada uma placa com aspirações um tanto ambiciosas:

Igreja Universal do Reino de Deus. Ao púlpito: um jovem pastor sem nenhum preparo formal

em teologia ou treinamento especializado para o exercício daquela função. Os recursos de

comunicação: a voz solitária, de sotaque inconfundível, de um pregador com microfone em

mãos, auxiliado por duas caixas de som amplificadas. O público: pouco mais de uma dezena

de ouvintes.

O ano é 2006. O lugar: todas as médias e grandes cidades espalhadas em

todos os Estados brasileiros. O local: mais de cinco mil templos que, pela imponência e

extensão física, são orgulhosamente chamados de “Catedrais da Fé”, com capacidade para

abrigar milhares de pessoas. As ambições do nome: a presença em mais de cem países do

mundo. Ao púlpito: a voz de mais de dezesseis mil pastores e bispos que multiplicam o

sotaque e o estilo de seu líder-fundador. Os recursos: dezenas de emissoras de rádio, um

canal exclusivo de televisão, com mais de noventa emissoras filiadas em rede nacional. O

público: aproximadamente três milhões de adeptos.

Quem passasse em frente ao primeiro endereço da Igreja Universal, quando

do início de seu trabalho, certamente seria levado a imaginar que o destino mais provável

daquele pequeno ajuntamento de pessoas, como o de tantos outros grupos pentecostais

cismáticos, seria a obscuridade da periferia ou dos entrincheirados morros e favelas do Rio de

Janeiro. Contrariando essa perspectiva, porém, a história emblematicamente reservava, ali, na

aparição daquele movimento, a escrita de um capítulo absolutamente novo no campo

religioso brasileiro: o cenário da crença no país passaria a se dividir em antes e depois da

IURD. Diante desses aspectos, surgem inevitáveis questões: quais elementos, internos e

externos, propiciaram esse fenômeno em tão pouco espaço de tempo? Por que o movimento

iurdiano obteve êxito enquanto tantos outros, surgidos na mesma época, fracassaram? Onde

estão fincadas as raízes desse segmento religioso que lhe dão tanta sustentação diante das

inúmeras polêmicas e perseguições que sofreu em sua trajetória? Como essa igreja responde

aos anseios e às crenças de seus seguidores? Estaria-se diante de um caso que envolve a

genialidade de líderes ou de um processo de produção coletiva do campo religioso a partir de

regras que lhe são próprias?

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O fato é que, em relação à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), não

há como ignorar ou ficar indiferente à sua presença. Desde o seu surgimento, tem estado no

centro de intensas controvérsias. Métodos heterodoxos de arrecadação, vilipêndio a cultos

religiosos, agressão física contra adeptos de crenças afro-brasileiras e investimentos

empresariais milionários, são alguns dos motivos responsáveis por desencadear uma série de

críticas e acusações por parte da grande imprensa e de outros segmentos religiosos, inquéritos

policiais e processos judiciais contra a Igreja e seus líderes. Mais recentemente, um novo

episódio ganhou as páginas de jornais e revistas de circulação nacional, tornando-se também

assunto diário nos principais telejornais do país: João Batista Ramos, bispo e presidente das

organizações de comunicação da Igreja Universal, foi detido pela Polícia Federal, no

aeroporto de Brasília, quando se preparava para viajar para a cidade de São Paulo, portando

sete malas cheias de dinheiro, num montante que somava mais de dez milhões de reais. Ao

ser indagado pelas autoridades federais acerca da origem daquele valor, explicou que se

tratava de dízimos e ofertas doados pelos fiéis numa das recentes campanhas religiosas

denominadas “fogueira santa de Israel”, realizadas pela IURD, e que a quantia estava sendo

levada à administração central da Igreja, localizada na capital paulista. Mais tarde, constatou-

se que em outras regiões do país foram arrecadados, de igual modo, valores suntuosos nos

milhares de templos iurdianos e também remetidos à sede da referida Igreja.

É notória a capacidade iurdiana de operar a multiplicação de números. Em

pouco mais de duas décadas conseguiu atrair para si um grande número de seguidores que a

faz ostentar hoje o quarto lugar em membros, em relação às demais igrejas evangélicas

atuantes no país.1 Viu rapidamente seus templos se espalharem em todos os recantos do país,

ocupando imóveis anteriormente usados como lojas e tantos outros estabelecimentos

comerciais de grande porte, que fecharam as suas portas para dar lugar aos cultos iurdianos.

Nesse sentido, aliás, a IURD nasceu num contexto marcado por crises e parece encontrar

neste elemento um dos componentes externos que contribuem para a sua propagação. Sua

dinâmica e impactante atuação no campo religioso se deve não apenas ao seu rápido

crescimento, visibilidade e capacidade de arregimentação de fiéis, mas também às inovações

que promoveu: ao invés de templos convencionais para os seus cultos ou reuniões, a

transformação de locais normalmente tidos pelos evangélicos como profanos em espaços

sagrados - a exemplo de casas de shows e cinemas - inseridos em meio às aglomerações; o

uso intenso dos meios de comunicação de massa, mediante compra de horários no rádio e na

1 DOSSIÊ: Religiões no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, USP, n. 52, p. 15, 2004.

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TV, ou mesmo pela aquisição desses meios de comunicação para o anúncio de sua

mensagem; grande ênfase no dinheiro como parte da vida religiosa, promovendo enorme

visibilidade social e projeção econômica da Igreja, com altas taxas de arrecadação financeira,

posse de milhares de templos, além de diversos empreendimentos paralelos tais como,

gravadoras, editoras, livrarias, instituições bancárias e do ramo da construção civil.

A Igreja Universal, evidentemente, não consiste em um movimento isolado,

mas participa de um processo de transformação do campo religioso brasileiro ocorrido

sobretudo nas três últimas décadas. Nessas mutações, as expressões de fé genericamente

identificadas como “evangélicas”,2 têm obtido os melhores resultados em termos de

crescimento. Dados catalogados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE,

relativos aos censos demográficos realizados em tal período, constatam essa afirmativa. Em

1940, os evangélicos representavam 2,6% da população; em 1950, 3,4%. Em 1970, de uma

população composta de pouco mais de 90 milhões, os evangélicos somavam 5,17%; em

1980, eram cerca de 120 milhões de brasileiros, e os evangélicos totalizavam 6,62%. Os

dados relativos ao Censo Demográfico realizado em 1991, indicaram uma população de mais

de 146 milhões e um total de 8,98% de fiéis. No início da década de 1990, a revista Veja -

exibindo como manchete de capa “A fé que move multidões avança no país” - também

apontava para esta projeção:Cerca de 16 mi lhões de pessoas no pa í s , e specia lmente a imensa massa de descamisados co locados à margem da modern idade e progresso , j á rezam pela ca r t i lha dessas igre jas ba ru lhentas que em seus cu l tos che ios de cânt icos e emoções prometem curas , mi lagres e prosper idade instan tânea na t e r ra . 3

Em 2000, próximos dos 170 milhões de habitantes, os evangélicos

superaram as cifras dos 26 milhões, perfazendo 15,5% dessa população.4 Em números

absolutos, o crescimento desse grupo, na última década, é da ordem de 100/%, pois eles

passaram de 13 milhões em 1991 para os mais de 26 milhões atuais.5 Também se destaca

2 No campo religioso brasileiro torna-se cada vez mais difícil delimitar ou conceituar com maior precisão a categoria “evangélico”, já que engloba um número importante de igrejas com grande diversidade organizacional, teológica e litúrgica. Em geral, remete a um conjunto de características que traçam um perfil relativamente definido de um grupo que engloba um número cada vez mais significativo de pessoas, mas com muitas fragmentações e divergências internas. Assim, gozando de extraordinária autonomia, cada uma se projeta no espaço social segundo iniciativa dos pastores ou de suas comunidades locais, por não possuir um órgão institucional que as normatize ou as regularize. Cf MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). História da vida privada no Brasil 4. Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia da Letras, 2002, p. 87. 3Revista Veja, São Paulo, n. 19, p. 40-44, 16 maio 1990.4Estudos Avançados. Op. cit., p. 15, 16. 5Ver SIEPIERSKI, Carlos Tadeu. O Sagrado num mundo em transformação. São Paulo: Edições ABHR, 2003, p. 26, 27.

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que, dos números anteriormente apresentados pelas pesquisas nas duas últimas décadas, “de

cada dez crentes sete se declaram pentecostais ou neopentecostais”.6 O censo realizado pelo

ISER, em 1991, revelava que já se abria naquele momento um templo evangélico a cada dia

útil no Rio de Janeiro. Segundo dados atuais do IBGE, cerca de 600 mil brasileiros se

convertem a cada ano a alguma denominação com esse perfil religioso.

Em decorrência de tal projeção, há inclusive hoje uma assimilação cultural

da liturgia e do vocabulário evangélico, fazendo que cada vez mais nas ruas e locais públicos,

por exemplo, pessoas exibam camisetas e estampem adesivos nos seus automóveis com

dizeres que representam essa nova tendência religiosa.

Em meio a essas remodelações do campo religioso brasileiro, o fenômeno

iurdiano se apresenta, pois, um instigante desafio aos que se dedicam a compreendê-lo,

especialmente por atuar em fronteiras da liminaridade, estabelecida como flexibilidade do

que se convenciona classificar como sagrado e profano, ortodoxo e herético, erudito e

folclórico, sacerdócio e magia. E é justamente pelos aspectos emblemáticos que envolvem tal

segmento religioso que advém o título dado a essa pesquisa: “Sindicato de Mágicos”. Ainda

que à guisa de introdução, vale justificar o emprego desses termos para intitular o presente

trabalho. Em relação à “magia”, pode-se conceituá-la como tudo aquilo que, baseado na

“lógica do natural e do sobrenatural”, tenta inverter as formas naturais das coisas, ou seja, a

crença de que determinadas pessoas são capazes de controlar forças ocultas (pessoais ou

impessoais) e intervir nas leis da natureza por intermédio de procedimentos rituais. Os

adeptos da magia acreditam que por palavras ou encantamentos podem alterar o curso dos

acontecimentos. “Conectados com os mitos”,7 os ritos mágicos permitem que os seus

adeptos, através da manipulação de forças imaginárias da natureza ou apelos a espíritos

imaginários, obtenham forças para buscar seus objetivos. Essa força tem sido entendida

normalmente como “uma atividade de substituição nas situações em que faltam meios

práticos para conseguir um objetivo; e uma de suas funções é dar ao ser humano coragem,

alívio, esperança, tenacidade”:Daí a forma mimét ica dos r i tos , a conversão de a tos suger idos pe los f ins v i sados . Ass im, a magia produz o mesmo resu l tado subje t ivo que a ação empír ica te r ia conseguido , re s taura- se a conf iança , e se ja qual for o programa em que es te ja engajada , e le pode se r levado avante . 8

6Revista Eclésia, Rio de Janeiro, p. 46, abr. 2000. 7 PIERUCCI, Antônio Flávio. Magia. São Paulo: PubliFolha, 2001, p. 78.8 EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia social da religião. Rio de Janeiro: Campus, 1978, p. 53, 61.

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Essa recorrência a forças supra-sensíveis ganha normalmente maior

evidência quando os problemas concretos que se enfrenta não encontram outras soluções

mais rotineiras, mais ordinariamente “humanas”. Na experiência com o cotidiano existencial,

o ser humano se depara com o desconhecido, com o “mistério”, que se manifesta, por

exemplo, na doença, na morte, nas calamidades. Para superar essa ameaça de caos que o

mistério pode provocar é que se recorre à magia.9 Onde quer que o ser humano chegue a uma

lacuna intransponível, a um hiato em seu conhecimento e em seus poderes de controle

prático, surge o espaço de operação da magia:O pensamento mágico imagina que nes te mundo ex is tem forças ocul tas por tadoras de infor túnios e advers idades , p rovocadores de baques e ac identes imprevis íve i s ( . . . ) incêndio , seca , p ragas na l avoura , doenças e ep idemias que se abatem sobre seres humanos e animais ( . . . ) forças supra-sens íve i s que produzem acontec imentos inesperávei s , in ter fer indo negat ivamente em sua v ida e u l t r apassando as expl icações armazenadas no conhec imento técn ico que seu grupo pa r t i lha . É para se cont ro lar essas in te r ferências que se recor re à magia . 1 0

Levando a efeito seus ritos, portanto, os magos se propõem a ajudar aos

que a eles recorrem a “lidar com seus problemas e seus contra-tempos, eliminando o

desespero que inibe a ação do indivíduo, fornecendo-lhe um sentido renovado do valor da

vida e das atividades que a compõem”.11 Na Igreja Universal isto é o que também ocorre.

Com plasticidade, em seus rituais e procedimentos, estabelece uma relação de apropriação

resignificadora do mundo mágico das religiões afro-brasileiras e do catolicismo de devoção

folclórica, realizando, ali, práticas de magia que cruzam as fronteiras normalmente

estabelecidas pelo que se convencionou entender por religião. Para a satisfação das

necessidades e desejos dos que procuram os seus templos, líderes iurdianos disponibilizam

aos fiéis objetos simbólicos ou talismãs carregados de “energias benéficas”, direcionados à

solução dos casos mais difíceis, como a falta de saúde, de prosperidade e sucesso na vida.

Acredita-se que tais objetos têm eficácia mágica e, portanto, capacidade para proteger de

todos os males atribuídos e personalizados na figura do demônio. Nos discursos, nas

literaturas e nas reuniões ritualísticas, pastores e bispos falam de forças espirituais e más que

constantemente interferem na vida cotidiana das pessoas; também praticam-se curas - tal

como os antigos taumaturgos, curandeiros ou xamãs - usando-se, para isso, ritos mágicos e

exorcistas.

9 Cf. BRONOWSKI, J. Magia, ciência e civilização. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 49, 50. 10MALINOWSKI, Bronislaw. Magic, science, and religion. Em: James Needham (Ed.), Science, religion and reality. London: Free Prees, 1925. Apud PIERUCCI, A. F. Magia. Op. cit., p. 56.11 EVANS-PRITCHARD, E. E. Op. cit., p. 68.

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17

Já o emprego do termo “sindicato”, no título desta pesquisa, dá-se pelo fato

do movimento iurdiano ter surgido e obtido projeção sob o comando de líderes atuantes na

liminaridade, os quais podem ser identificados como “empresários autônomos” de salvação.

Utilizando-se da conceituação empregada por Max Weber, e retomada por Bourdieu,12 pode-

se identificar o mago como agente religioso independente que se utiliza dos bens simbólicos

produzidos no campo religioso para atender a interesses imediatos daqueles que recorrem aos

seus serviços. Os agentes mágicos normalmente exercem uma profissão sem vínculo

institucional e, por essa razão, tendem a ser combatidos ou desqualificados pelos sacerdotes

– representantes da instituição oficial - que vêem na magia uma apropriação indevida ou

manipulação de bens religiosos para finalidades “interesseiras”. À liderança de um líder

carismático de maior projeção juntam-se outros mágicos, sendo por aquele credenciados com

legitimidade para o exercício de suas funções. Forma-se, desta maneira, um “sindicato”

composto por agentes autônomos que independem, portanto, das sanções institucionais, cuja

autoridade provém diretamente do carisma que ostentam perante os adeptos. Nas práticas da

IURD, a força de organização da magia e do carisma, enquanto poder simbólico, tem origem

coletiva em formas de delegações geradas pelo próprio grupo. Com isso, a magia se organiza,

sindicaliza-se e se fortalece em uma espécie de confraria, mantendo, assim, o seu caráter de

ruptura com normas ou padrões ritualísticos estabelecidos por expressões religiosas

dominantes.

O termo “sindicato” também é plausível para representar a força

mobilizadora de um movimento de massas, que confronta, no âmbito religioso, as instuições

tradicionalmente estabelecidas, reivindicando direitos de proclamar a sua mensagem aos

moldes de uma invenção puramente nacional em termos de doutrina e rito, viabilizando

oportunidades a um contingente que tem ficado às margens para que seja sujeito de sua

própria experiência com o sagrado.

Magos, xamãs ou feiticeiros, não importa como sejam chamados, sempre

existiram nas sociedades, atuando no anonimato ou às margens de religiões oficiais. Porém,

no movimento iurdiano, sob a titulação de “bispos” ou “pastores”, tais funções se conjugam

eficazmente numa pastoral-mágica e ganham a luz do dia, assumindo identidades. Mesmo

com certos mecanismos de organização, os líderes iurdianos não se prendem jamais à rotina

religiosa que configura o papel sacerdotal no âmbito de uma igreja. É um movimento que se

institucionalizou sem perder os elementos mágicos, não se permitiu tornar-se uma religião.

12 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2000.

Page 18: Wander Proenca Sindicato Dos Magicos

18

Por isso mesmo, o culto é novidade todo dia, sem cair no formalismo litúrgico da tipologia

eclesiástica institucional ou sacerdotal. Cada reunião se torna um novo espetáculo, com

plenitude de sentido, de emoção compartilhada, comungada na mesma paixão, “ligando os

homens às potências sagradas que o animam”.13 Os ritos são criativamente renovados, numa

atualização permanente, propiciando um leque de novas opções a serem trilhadas a qualquer

momento, sem o “engessamento” cerceador encontrado nas grandes instituições religiosas.

Não estando preso à instituição, o bispo Macedo, por exemplo, tem autonomia de

mobilidade. É bispo sem deixar de ser profeta, de ser mago ou xamã. Este fator contribui para

que a história da IURD seja construída na vividez do inesperado e do desconhecido, envolta

pelo elemento do mistério que emblematicamente configura a crença em suas expressões

mais encantadas.

Outro aspecto relacionado ao título “Sindicato de Mágicos” se refere ao

poder de alquimia o qual magicamente faz que o grupo iurdiano não apenas rompa em suas

práticas coletivas com alguns conceitos ou tipologias - que classicamente têm sido utilizados

por teóricos ou pesquisadores de temas religiosos - mas também requeira novas abordagens

para a compreensão de um novo tipo de experiência envolvendo o sagrado no cenário

religioso brasileiro. Essa Igreja consegue eficazmente aglutinar vários outros elementos

configurados no campo e que aparentemente seriam opostos ou concorrentes entre si. Assim,

são vivenciados, ali, aparentes paradoxos ou contradições, mas que emblematicamente

ganham sentido e coerência a partir de regras que o campo religioso é capaz de promover:

denominando-se “igreja”, esse segmento possui práticas notadamente caracterizadas por

magia, por messianismo ou profetismo; as representações messiânicas nela configuradas

ocorrem não mais no contexto rural - como tradicionalmente se denotou nos movimentos

com tais perfis – fazendo que as fronteiras convencionalmente estabelecidas entre o que é

rural e urbano sejam rompidas, tornando assim a cidade, teoricamente definida como lugar de

“desencantamento”, local de magificação do sagrado em suas expressões mais “primitivas”.

Ao mesmo tempo em que combate as crenças afro-brasileiras, a IURD diretamente delas

depende para a constituição de suas práticas, reeditando-as, inclusive, com outros nomes. Os

líderes, denominados pastores ou bispos – como dito anteriormente - assumem para os fiéis

diferentes representações: mago, messias, profeta, fato que caracteriza um movimento

surgido com proposta profética, passando a se aproximar de uma instituição, sem permitir,

contudo, a institucionalização de suas práticas. Ao mesmo tempo em que se denomina 13 SCHMITT, Jean-Claude. Ritos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário temático do ocidente medieval. Bauru: EDUSC, 2002, p. 416.

Page 19: Wander Proenca Sindicato Dos Magicos

19

evangélica, mantendo vínculos com o protestantismo histórico14 ou com o pentecostalismo

clássico,15 na verdade, reinventa-os, configurando uma nova tipologia, a qual

provocativamente desafia os pesquisadores quanto à sua definição pelas novas figuras de

sagrado apresentadas. Ao contrário do que protestantes e católicos sempre prezaram em

relação ao cuidado de se preparar para a vida futura pós-morte, na IURD se observa a ênfase

de suas práticas recaindo exclusivamente no aqui e agora. Se por um lado acena para as

benesses de consumo da sociedade capitalista, por outro sua mensagem acaba se colocando

como uma espécie de resistência a tal sistema, quando propõe caminhos intra-históricos para

se obter a superação das mazelas geradas por esse modelo de sociedade. A IURD, para a

veiculação de sua mensagem, combina eficazmente o uso dos mais sofisticados meios de

comunicação com antigas práticas de leitura, as quais se reportam a modelos caracterizados

nos séculos XVI e XVII, numa conjugação perfeita do ultramoderno com elementos de longa

duração. Em tempos de novos e agressivos recursos de comunicação e expressão, antigas

práticas de leitura resistem e continuam desempenhando o papel de promover a sedução do

sagrado e a retradução de um fertilíssimo passado cultural no mundo contemporâneo. Uma

igreja que investe no imediato mas que, no entanto, mantém suas raízes fincadas na “longa

duração”.16 Ou ainda, o enigma de possuir a capacidade de obter os maiores êxitos de

projeção e recrutamento de novos fiéis nos momentos em que sofre grandes ataques por parte

de movimentos religiosos concorrentes ou de outros setores da sociedade. Em síntese, o

emprego do título “Sindicato de Mágicos” não significa que a IURD seja apenas magia, mas

sim, que ela opera magicamente em outros níveis que o capital cultural do campo religioso

brasileiro lhe disponibiliza; e mais: ela reinventa-o, redescobrindo a magia nele existente e

criando algo absolutamente novo.

Outra dimensão da pesquisa – pressuposto no subtítulo “uma história

cultural da Igreja Universal do Reino de Deus” – refere-se ao aspecto teórico-metodológico, 14Segmento cristão representado por diferentes denominações religiosas que surgiram a partir da Reforma Protestante liderada por Martinho Lutero, na Alemanha, no século XVI, como por exemplo, as igrejas Luterana, Presbiteriana, Batista, Anglicana e Metodista.15Movimento surgido nos Estados Unidos da América, no início do século XX, a partir da Igreja Metodista e que ganhou notoriedade por enfatizar a prática da glossolalia – vocábulo da língua grega que significa “falar outras línguas”, cujo balbuciar de sons inarticulados, em êxtase, passou a ser compreendido, por tal segmento religioso, como evidência do que se chama de “batismo com Espírito Santo”. O nome “pentecostalismo” é uma alusão ao que se entende ter sido um episódio semelhante, registrado na Bíblia, em Atos 2:1-4, ocorrido com os primeiros cristãos, no primeiro século, no dia da festa judaica denominada “pentecostes”. No Brasil, convencionou-se identificar como representantes do “pentecostalismo clássico” as primeiras igrejas que aqui se desenvolveram com tal tipologia: Assembléia de Deus e Congregação Cristã no Brasil.16 A “longa duração”, segundo Fernand Braudel, refere-se às chamadas “permanências” na história, não necessariamente um longo período cronológico: “é aquela parte da história, a das estruturas, que evolui e muda o mais lentamente (...) é um ritmo lento”. Cf. LE GOFF, Jacques. In: BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 17.

Page 20: Wander Proenca Sindicato Dos Magicos

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enquanto viés de análise a ser utilizado e, por conseguinte, propósito maior da tese ora

desenvolvida: compreender o fenômeno iurdiano a partir da historiografia, proporcionando

com isso uma nova abordagem, que vá além das análises e explicações até agora

apresentadas quase sempre sob outras perspectivas. Vale dizer que, não só pelo crescimento e

projeção, mas também pelo aspecto emblemático que a envolve desde o seu surgimento, a

IURD tem se tornado objeto de várias “explicações”, suscitando diferentes esforços por

compreendê-la enquanto expressão do sagrado produzido pelo campo religioso brasileiro, em

suas remodelações mais recentes. Podem ser destacados três setores que têm se empenhado

em descrever ou interpretar o movimento iurdiano: a mídia, outros segmentos religiosos e a

academia.

Por parte da mídia, até mesmo por perceber o crescimento da concorrência

pelo controle dos meios de comunicação, a religiosidade iurdiana quase sempre tem sido

classificada em tom de estigmatização, sob acusação de charlatanismo, mercantilização da fé

ou curandeirismo, como se fosse apenas uma forma “maquiavélica” de explorar

financeiramente a “boa fé” de pessoas humildes ou desavisadas, conforme se pode observar

no exemplo abaixo:Surgem em meio a e s ta ques tão , f a l sos l íde res que usam essas t écn icas de pregação em benef íc io do própr io bolso . Exatamente por e ssa r azão são raras as cap i ta i s bras i l e i ra s onde pe lo menos um pas tor não es te ja sendo a lvo de um processo cr iminal por cha r la tan i smo, enr iquecimento i l í c i to e a ten tado à economia popular . 1 7

À medida que o movimento continuou se propagando, a postura da

imprensa foi a de também aumentar o número de reportagens sobre o que considera “táticas

mercantilistas” dessa Igreja: “Que o bispo Edir Macedo mercadeja a fé, incitando os fiéis a

fazer apostas em dinheiro com Deus nas quais sua igreja sempre ganha, já se tornou lugar-

comum”.18 Em outra matéria jornalística recente, com manchete de capa intitulada “A nação

evangélica, o maior país católico do mundo está se tornando cada vez mais evangélico”, a

revista Veja também publicou:( . . . ) o d inhe iro , na forma de d íz imo, ao se t ransfer i r pa ra a mão de pas tores que vêem a re l ig ião como negócio , t em gerado tan to o c resc imento de mui tas denominações quanto maracuta ias , denúnc ias , inves t igações . ( . . . ) Um dos ramos evangé l icos cr iou a té um díz imo superfa turado: o f i e l deve dar an tec ipadamente 10% do valor que pre tende a lcançar como uma graça do Senhor , e não daqui lo que e fe t ivamente r ecebe ( . . . ) As acusações mais f reqüentes cont ra pas tores evangél icos t r a tam de es te l iona to e cr imes f i sca i s . O pas tor

17Revista Veja, São Paulo, p. 40, 16 maio 1990.18Revista Veja, São Paulo, 03 jan. 1996.

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Davi Miranda , fundador da Deus É Amor , por evasão de d iv i sas . A Igre ja Renasce r em Cri s to enfren ta ma is de c inqüenta processos movidos por ex-f ié i s . Seus fundadores , o após to lo Es tevam Hernandes e a b i spa Sonia Hernandes, são acusados de da r um calo te de 12 milhões de rea i s . 1 9

Outra tendência da mídia tem sido a de genericamente atribuir o êxito

dessas práticas religiosas aos problemas econômicos do país: “Pôr um terno para freqüentar o

culto, levar uma Bíblia embaixo do braço e ser visto como um modelo de honestidade, para

esses crentes pobres, é alcançar pelo menos um pedaçõ do paraíso da cidadania”.2 0

Um segundo esforço explicativo provém de outros segmentos religiosos

atuantes no contexto brasileiro. O crescente surgimento de inúmeros pequenos templos que

passaram a ganhar visibilidade social, sobretudo nas grandes cidades do país, despertou

pesquisadores pertencentes a outras tradições cristãs. Nas décadas de 1960 e 1970, por

exemplo, a Igreja Católica encomendou várias pesquisas sobre as razões da conversão de

católicos às igrejas evangélicas. Alertava-se para os perigos das “heresias modernas”,

incluindo, juntamente com o espiritismo e a maçonaria, o pentecostalismo. Por outro lado, os

“protestantes históricos” ou “clássicos” também demonstraram interesse em compreender as

razões do sucesso pentecostal. Inquietava-lhes o fato de estarem já estabelecidos no Brasil

desde o século XIX e não terem ultrapassado a condição de “minoria religiosa”, não

conseguindo constituir-se em opção de massas no país, como ocorria com esses novos

segmentos religiosos. O depoimento de um pastor presbiteriano21 retrata e ilustra bem a

interpretação feita pelo protestantismo diante das repercussões e impactos causados pela

atuação da IURD:O Bras i l é uma te r ra formidável . Dá de tudo ( . . . ) Deu pa ra dar milagre , agora , nes ta t e r ra . Alguém, an jo ou demônio , andou semeando sobre a s cabeças , a es tapa fúrd ia idé ia do mi lagre ( . . . ) formas abe rran tes do pro tes tan t i smo, num comple to repúdio à t rad ição de c r í t ica e de equi l íbr io que carac ter izou a Reforma, produzem também os seus t aumaturgos ( . . . ) O pão , o remédio , a ins t i tu ição e a d ignidade do poder públ ico são , pos i t ivamente , o maior an t ído to para a mi lagre i r i ce (s ic) desenfreada , que a r ras ta e explora nosso pobre povo” . 2 2

19Revista Veja, São Paulo, p. 93, 03 jul. 2002. 20 Ibid.21 O presbiterianismo consiste numa das ramificações do calvinismo, surgido em Genebra, na Suíça, sob a liderança de João Calvino, no período da Reforma Protestante, no século XVI. Tal segmento protestante tem como um dos seus pressupostos teológicos a acumulação de lucro pela ética do trabalho como um sinal da eleição e bênção divinas.22 BOAVENTURA, Luís Pereira. Jornal O Paraná Evangélico, Londrina – PR, p. 02, jun. 1980. Exemplar disponível no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa em História - Faculdade Teológica Sul Americana, em Londrina – PR.

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Entre os próprios segmentos pentecostais não tem sido diferente a

inquietação acerca da IURD. Diante do episódio envolvendo as “malas de dinheiro”,

anteriormente citado, o influente pastor e escritor Ricardo Gondim, líder da Igreja

Assembléia de Deus – maior igreja evangélica em número de membros no Brasil - em tom de

denúncia e protesto proferiu as seguintes palavras:As se te ma las cheias de d inhe iro apreendidas em Brasí l i a provocam minha ind ignação . Não, não es tou zangado só com a Igre ja Univer sa l do Re ino de Deus e seu pres idente , o deputado João Bat is ta Ramos . Também estou com ra iva de mim mesmo. Eu prec i sava te r a f i rmado, com todas a s le t r as , que essa igre ja é uma empulhação medonha ; seus b ispos , p ica re tas e seu fundador , um maquiavé l ico es t ra teg i s ta . Por que t ive rece ios de denunc ia r suas in te rmináveis campanhas de l iber tação? Eu não notava que eram meros a r t i f í c ios para ex torqui r o povo? Lamento não haver nomeado essa fa lsa igre ja em a r t igos . Há mui to , percebia que o d inhe iro dos c ren tes era insuf ic ien te pa ra bancar suas mega ca tedra is , redes de t e lev i são , inúmeras es tações de r ád io , av iões , he l icópteros e f inanc iamento de e le ições . A maior ia do povo bras i l e i ro ganha sa lár io mínimo e por mais que comparecesse a seus vá r ios cu l tos e fosse espol iado , não havia como f inanciar t an ta mega lomania . Não entendo porque não a lardeei que esse c le ro da Unive rsa l é compos to de lobos , que já nem se preocupam de fan tas ia r -se de cordei ros . E les representam a escór ia nac ional . Por que me embarace i com a pecha que a imprensa lhes dava de cha r la tões v igar is ta s e e s te l ionatár ios? Eu sab ia que pas tores obcecados pe lo poder , t e rminam como Lúc ifer . Eu devia te r apontado que o sucesso da Univer sa l é re su l tado da sua fa l t a de esc rúpulos . Essa empresa r e l ig iosa explora o povo que mendiga espe rança . Chegou a hora de out ras ig re jas se un i rem e af i rmarem, como f izeram os por tugueses há vá r ios anos , que a Univer sa l não é evangé l ica . E la prec i sa se r apontada como um movimento apósta ta , que não prega os va lores do Evange lho . Lá , ens ina- se a amar o que Jesus pro ib iu : d inhei ro , ganância e g lór ia humana. Seus cu l tos não buscam gerar uma esp i r i tua l idade l iv re . As pessoas são induzidas ao medo. Eles incutem sent imentos de cu lpa e geram neuró t icos r e l ig iosos , que prec i sam aplacar seus t raumas com dinhe iro . 2 3

Uma terceira dimensão explicativa engloba propriamente o campo

acadêmico. Têm-se avolumado as tentativas de compreensão dessas novas expressões

religiosas, especialmente pelo seu grande apelo às massas e pelo novo perfil por elas criado

em relação às tipologias que já demarcavam a configuração do cenário religioso do país.

Inicialmente, empenharam-se nessa tarefa alguns cientistas sociais, com destaque para o

trabalho pioneiro de Beatriz Muniz de Souza, publicado em 1969, com o título “A

experiência da salvação: Pentecostais em São Paulo”. Porém, nos anos 70 ainda eram poucos

os estudos que se propunham a explicar o significado e o crescimento de grupos pentecostais

no Brasil. E, mesmo em 1984, Rubem César Fernandez ainda afirmava: “os crentes são

23 http: // www.ricardogondim.com.br/artigos. Acesso em: 27 jul. 2005.

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minoria no país e também nos estudos sobre religião”.24 Mas foi a partir de 1980, com mais

de 13 milhões de adeptos e 80 anos no Brasil, englobando centenas de denominações de

pequeno, médio ou grande porte, que as novas expressões evangélicas se tornaram finalmente

objeto de grande interesse das pesquisas acadêmicas, rendendo a publicação de vários artigos

e livros. A seguir, são apresentados alguns desses principais trabalhos que representam

diferentes olhares ou interpretações de autores brasileiros sobre a Igreja Universal. O

propósito é observar algumas de suas contribuições, mas, principalmente, os seus limites

explicativos, para que melhor se perceba a necessidade de se avançar no alcance de análise a

partir de um outro parâmetro de investigação: o viés historiográfico.

Um detalhado mapeamento da configuração do campo religioso brasileiro,

referente ao período que delineia o advento iurdiano, é feito por Maria Lucia Montes, na obra

História da Vida Privada no Brasil, volume 4. Nesse texto , a autora aponta para um

deslocamento do público para o privado que a “economia do simbólico” tem sofrido no

contexto brasileiro. São sinais dessas mudanças e da ascensão de “novos” fenômenos

religiosos os seguintes aspectos:A evidente ampl iação e d iver s i f icação do “mercado dos bens da sa lvação” . Igre jas enf im gerenciadas como verdadei ras empresas . Os modernos me ios de comunicação de massa pos tos a serv iço da conquis ta das a lmas . Ins t i tu ições re l ig iosas que , do ponto de v i s ta organizac iona l , dout r inár io e l i tú rg ico , parec iam f rag i l izar - se ao ext remo, ma is ou menos en t regues à improvisação ad hoc sobre s is temas de crenças f lu ídos , de ixando ao encargo dos f ié is complementarem à sua manei ra a r i tua l ização das prá t i cas re l ig iosas e o conjunto de va lores e sp ir i tua is que e las supõem. Uma maior autonomia reconhec ida aos ind iv íduos que , um passo ad ian te , ser iam ju lgados em condição de escolher l iv remente sua própr ia r e l ig ião , d ian te de um mercado em expansão . ( . . . ) P ro l i feração de se i t a s , f ragmentação de c renças e prá t i cas devocionais , seu a r ran jo cons tan te ao sabor de crenças e prá t i cas pessoai s ou das v ic i ss i tudes da v ida ín t ima de cada um. 2 5

Montes registra “transformações profundas” observadas nas últimas

décadas no campo religioso brasileiro e que nos anos 90 “emergiram escancaradamente à

superfície”.26 Essa autora aponta algumas das características dessas mutações. Primeiro, há

um novo poder de dimensões inéditas do protestantismo no Brasil, país tradicionalmente

considerado católico. Segundo, uma transformação importante no próprio campo protestante,

evidenciada pelo crescimento no interior do protestantismo histórico e muitas vezes em

24FERNANDES, R. C. Religiões populares: uma visão parcial da literatura recente. Boletim Informativo de Ciências Sociais, ANPOCS/ USP, São Paulo, p. 84, 1984.25 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 63-171. 26 Id., ibid., p. 68.

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24

oposição a ele. E, por fim, a transformação em curso significava mutação interna,

demonstrada pela proximidade com os compósitos das crenças afro-brasileiras. Tais

remodelações envolveram maior fluidez, baixo grau de institucionalização das igrejas e o uso

dos modernos meios de comunicação de massa a serviço da conquista das almas.

As análises feitas por Maria Lucia Montes são de grande relevância,

especialmente por identificar um elemento decisivo: a “fragmentação de crenças e práticas

devocionais e seu rearranjo ao sabor das inclinações pessoais ou das vicissitudes da vida

íntima de cada um”.27 Porém, trata-se de um trabalho de mapeamento amplo do campo, sem

uma concentração mais específica no caso da Igreja Universal, que é o propósito do trabalho

que ora desenvolvemos. Mas a própria autora faz uma observação instigante ao lembrar a

necessidade de um aprofundamento na investigação das raízes mais profundas do recente

rearranjo global do cenário religioso do país, quando diz que seus “efeitos ainda deveriam ser

melhor explorados para que pudessem ser devidamente avaliados”. Menciona ainda dois

aspectos que justificam a importância de se trabalhar com conceitos empregados por Pierre

Bourdieu no empreendimento dessas novas pesquisas: a “economia do simbólico” e a

“gênese do campo religioso”. Argumenta Montes: “nunca a economia política do simbólico

havia parecido mais adequada à explicação do fenômeno religioso no Brasil”;28 e ainda,

“supõe-se que se compreenda em primeiro lugar (...) a gênese das transformações que

resultaram na atual configuração do campo religioso brasileiro”.29

O sociólogo Ricardo Mariano é autor de uma dissertação de Mestrado,

apresentada na Universidade de São Paulo, publicada com título Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 30 Esse trabalho se tornou referência na abordagem dessa

temática. A partir de exaustiva pesquisa de campo, tendo como universo teórico a sociologia

compreensiva de origem weberiana, descreve as mudanças ocorridas no pentecostalismo

brasileiro, apresentando a Igreja Universal como a principal representante desse novo perfil.

Mariano discute as tipologias das formações pentecostais, faz relato da história e da

organização das denominações que classifica como representantes do neopentecostalismo:

Universal do Reino de Deus, Internacional a Graça de Deus, Renascer em Cristo e

Comunidade Evangélica Sara a Nossa Terra; e, por fim, analisa as características distintivas

desse novo segmento evangélico, a saber: a guerra contra o Diabo, a liberação dos usos e

27 Id., ibid., p. 69.28 Id., ibid.29 Id., ibid., p. 71.30 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.

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costumes e, principalmente, a “Teologia da Prosperidade”. Analisa o papel de sedução que

esse modelo de teologia exerce sobre os adeptos ao propor que os cristãos se tornam sócios

de Deus à medida que financiam a obra divina, o que lhes outorga o direito de usufruírem os

melhores produtos oferecidos pelo mercado, serem felizes, saudáveis e vitoriosos em todos os

seus empreendimentos – aspectos esses que põem em xeque o velho ascetismo pentecostal.

Não obstante a relevância do trabalho de Mariano, especialmente pelo

pioneirismo da abordagem de um fenômeno religioso que cada vez mais marcava presença

no país, a pesquisa apresenta limites: fica restrita à abordagem de cunho sociológico, não

trabalhando por isso com os elementos históricos mais profundos de longa duração que

propiciaram o surgimento das práticas como as que se observam no movimento iurdiano;

enfatiza-se bastante o “estrangeirismo” de algumas práticas, como a Teologia da

Prosperidade, como se o campo religioso brasileiro fosse mais um receptáculo de reprodução

de experiências externas, sem que seja diretamente produtor desses bens simbólicos; essas

novas expressões se projetam por um processo de adaptação ou acomodação aos novos

valores da sociedade, como uma “religião de mercado”, em que há “produtores” e

“consumidores”.

O trabalho do sociólogo Leonildo Silveira Campos, intitulado Teatro, Templo e Mercado,31 originalmente uma tese de doutorado, posteriormente publicado,

consiste numa análise minuciosa da Igreja Universal do Reino de Deus em que se destacam –

a partir das figuras empregadas no título – a maneira como o sagrado é ritualisticamente

vivenciado nas práticas desse segmento religioso e, principalmente, as estratégicas de

mercado empregadas por essa igreja. Não obstante os valores da pesquisa, sobretudo pelo

trabalho de campo realizado, a IURD é descrita mais como um empreendimento que lança

mão de estratégias de propaganda e marketing, gerenciamento empresarial e investimento

pesado no uso dos meios de comunicação de massa para obtenção de seus resultados,

principalmente em relação às camadas mais periféricas da sociedade brasileira. A Universal,

inserida num mercado de bens simbólicos, é apresentada como tendo seu foco voltado às

necessidades do cliente, demonstrando agilidade no lançamento de novos produtos. O

trabalho de Campos, portanto, não se propõe a investigar os elementos culturais de longa

duração que configuram as expressões religiosas do país e que possibilitaram o êxito e a

sustentação das práticas que hoje se observam no movimento iurdiano.

31 CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. Petrópolis: Vozes, 1997.

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26

O trabalho Igreja Universal do Reino de Deus, os novos conquistadores da fé,32 apresenta uma coletânea de artigos sobre a expansão internacional da IURD, hoje

presente em mais de 100 países. Destaca que essa expansão “efetuou-se graças a um

verdadeiro império financeiro, midiático e, às vezes, político”, mas também graças à sua

grande capacidade de adaptação às diversidades locais. Rapidamente ela superou

numericamente outras igrejas multinacionais, mantendo brasileiros nos postos de comando na

maioria dos países. Destaca-se, na presente obra, que a IURD procura mobilizar um

imaginário globalizado em diferentes lugares, porém, flexível para encontrar outras

representações do Diabo e seus demônios visando a obtenção de ressonância de sua

mensagem. Assim, internacionalmente, a fórmula “made in Brazil” iurdiana se apresenta sob

cores de mestiçagem, fazendo que os pastores se adaptem às condições locais de cultos

carismáticos. Naturalmente, analisar como a IURD consegue êxito em outros contextos

culturais, diferentes daquele que lhe deu origem em solo brasileiro, apresenta-se uma

temática instigante para pesquisas. Porém, no trabalho aqui proposto, a meta é investigar o

espaço e as circunstâncias que lhe propiciaram originalmente surgimento e projeção, ou seja,

estabelecer como recorte ao campo religioso-cultural brasileiro.

Hélide Maria S. Campos, em dissertação de mestrado de Comunicação

Social, posteriormente publicada com o título Catedral Eletrônica, analisa a Igreja Universal

do Reino de Deus como “igreja eletrônica”, ou seja, a nova tendência de mudança da igreja

para o interior dos lares. A autora se propõe a compreender como interagem comunicadores e

destinatários frente às câmeras de TV, “pois muitas pessoas trocaram os bancos das igrejas

pelo confortável aconchego de seus sofás”.33 Entretanto, não obstante ao recorrente uso da

TV para a veiculação de sua mensagem, a IURD não deve ser classificada como “igreja

eletrônica”, pois o próprio bispo Edir Macedo faz questão de posicionar-se contrário a essa

idéia. Em entrevista concedida à revista Veja, o bispo afirmou que os “televangelistas

eletrônicos” oferecem espetáculos, que geram pessoas acomodadas em casa e por comodismo

deixam de ir aos templos: “Sou contra a igreja eletrônica do tipo das existentes nos Estados

Unidos, em que o pastor fica no vídeo e as pessoas o assistem em casa, distraindo-se com a

campainha da porta ou com o gato que mia. Na minha igreja preferimos o contato direto com

o povo”.34

32 CORTEN, André; DOZON, Jean-Pierre; ORO, Ari Pedro (Orgs.). Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 23.33 CAMPOS, Hélide Maria Santos. Catedral eletrônica. Itu – SP: Ottoni Editora, 2002, p. 14.34 Revista Veja, São Paulo, p. 30, 14 nov. 1990.

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27

Outra obra publicada, Conversão ou Adesão: uma reflexão sobre o neopentecostalismo no Brasil, de Estevam Fernandes de Oliveira,35 consiste numa dissertação

de mestrado em Sociologia, que se propõe a mostrar como o neopentecostalismo,

especialmente a IURD, caracteriza-se pela identificação com a cultura religiosa brasileira a

qual combina elementos do catolicismo, religiões dos escravos africanos e crenças indígenas,

que formaram um “sincretismo”, dando origem a uma matriz simbólica, um núcleo comum.

Nesse caso, segundo o autor, não haveria nas propostas da IURD uma “conversão”, e sim,

uma “adesão” continuada, sem rupturas com aquele universo cultural matriz, facilitada pelo

sincretismo. Dois principais limites podem ser observados nessa perspectiva adotada pelo

autor: primeiro, o emprego do termo “sincretismo”; segundo, a idéia de uma “continuidade”

das práticas iurdianas. É preciso ir além destes aspectos, pois a IURD, mesmo sendo

combinação de elementos, não é “continuidade”, não é simples cisão, ela se apropria de

elementos do campo e cria algo absolutamente novo. De igual modo é preciso haver cuidado

com o emprego do termo “sincretismo”, pois, no caso do campo religioso brasileiro,

“aculturação” ou “hibridismo” se tornam conceitos mais plausíveis para análise, como o

veremos mais adiante nesta pesquisa.

Ronaldo Almeida, em artigo intitulado A Universalização do Reino de Deus,36 analisa o discurso religioso elaborado pela IURD assim como o seu expressivo

crescimento. Destaca os conflitos com a Rede Globo de televisão e com a Igreja Católica

durante o segundo semestre de 1995; a partir do que são apresentados os elementos internos

da IURD e de que maneira rege sua relação com a sociedade. Falando mais especificamente

sobre o perfil dessa igreja, afirma-se queSobre o t r ipé cura , exorc ismo e prosper idade f inancei ra , e t endo o d iabo como a or igem de todos os males , a Igre ja Universa l demarcou o seu espaço no cenár io da re l ig ios idade popular brasi l e i ra . Sem maiores e laborações t eo lógicas , es ta ig re ja , mais do que qualquer ou t ra denominação evangél ica , e laborou uma mensagem para a tender às demandas mundanas imedia tas . 3 7

Esse autor comete um equívoco ao afirmar que a IURD não “elabora

teologia”. Pois há, sim, em suas práticas, uma formulação teológica – diferente, é verdade, do

modelo clássico – mas que se caracteriza pelo “vivido”, pela teologia “prática”, que nasce de

35 OLIVEIRA, Estevam Fernandes. Conversão ou adesão. Uma reflexão sobre o neopentecostalismo no Brasil. João Pessoa: Proclama Editora, 2004. 36 ALMEIDA, Ronaldo R. M. A Universalização do Reino de Deus. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 44, p. 12-23, 1996.37 Id., ibid, p.16.

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28

um imaginário filtrado pela leitura bíblica sem os crivos exegéticos dos dogmas

institucionais.

Anders Ruuth, em tese de doutorado sobre da Igreja Universal do Reino de

Deus, destaca que, dentre outros fatores, a expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759, gerou

grande falta de sacerdotes e religiosos oficiais a serviço da Igreja Católica, fato este que

contribuiu ainda mais para o desenvolvimento de expressões de crenças sem maior controle

institucional, as quais teriam estabelecido o solo no qual movimentos contemporâneos, como

a Igreja Universal, fincam suas raízes. As práticas vivenciadas pela IURD poderiam ser assim

descritas revitalizações do modo( . . . ) como uma pessoa , l iv re das regras e r i tua i s das igre jas of ic ia i s , par t i cu la rmente da ins t i tu ição re l ig iosa dominante , expressa e r ea l iza os seus anse ios re l ig iosos , aprove i tando d i feren tes modelos , ant igos ou contemporâneos , c r i s tãos e não-c r i s tãos pa ra busca r a Deus . A pessoa é l iv re pa ra so l ic i ta r a juda de representan tes r e l ig iosos , p referencia lmente , para presentear seus deuses como também para ofe recer a lgo em t roca . 3 8

O limite de abordagem desse trabalho reside, principalmente, na

perspectiva quase apologética adotado pelo autor em determinados momentos da pesquisa:

submete as práticas iurdianas a dogmas preconizados pelo protestantismo clássico, deixando

transparecer certa defesa pessoal em relação aos mesmos. Soma-se a essa dificuldade

metodológica, o distanciamento que o autor mantém de seu objeto de análise, o que dificulta

uma observação mais “densa”, isto é, maior inserção no universo vivenciado pelo próprio

grupo, com o propósito de melhor se perceber os elementos que são plausíveis para os seus

agentes.

O trabalho de Clara Mafra, Os Evangélicos, também relaciona o

neopentecostalismo às transformações ocorridas na configuração religiosa do Brasil nas

últimas décadas, afirmando que quando do surgimento da IURD,O Rio de Jane iro já e ra um ce le i ro de produção de novas r e l ig ios idades . Ent re as camadas popula res , as vas tas ondas migra tór ias que chegaram à c idade , e specia lmente do nordes te , in tens i f icaram o conjunto de exper imentos cu l tura i s , se ja com o ca to l ic i smo popula r que se mis turava à umbanda e ao candomblé car iocas; se ja com o pentecos ta l ismo c láss ico que se tornava mais d iger íve l para uma c lasse média a t r avés de uma maior ace i tação dos r eferen tes do “mundo” ( . . . ) . P rofe tas de todas as ordens c i rcu lavam nos ma is d ive rsos meios ( . . . ) . 3 9

38 RUUTH, Anders. Igreja Universal do Reino de Deus. Estudos de Religião. São Bernardo do Campo, UMESP, ano XV, n. 20, p. 85, jun. 2001. Artigo extraído da tese de doutorado em Teologia sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, defendida no ISEDT, Buenos Aires, maio 1995.39 MAFRA, Clara. Os evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 37.

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Mafra desenvolve, em seu texto, mais propriamente um mapeamento geral

do campo religioso, sem maior aprofundamento em casos específicos, como o da Igreja

Universal do Reino de Deus.

Outra análise da configuração religiosa brasileira atual é apresentada pelos

Novos Estudos CEBRAP. Nesses trabalhos, Pierucci e Prandi, afirmam que “no Brasil do

último triênio, a vida religiosa mudou e tem mudado em um grau, uma extensão e uma

velocidade nunca vistos em nossa história”. Ressaltam ainda que este processo, do qual

participam o pentecostalismo, o kardecismo e a umbanda, “é a contraface do declínio e da

erosão da religião dominante tradicional, o catolicismo”, e acrescentam:O panorama re l ig ioso bras i le i ro t em mudado não só porque há pessoas que dese r tam de seus deuses t rad ic ionai s l a ic izando suas v idas e seus va lores , mas também porque há outras que em número c rescente ade rem a “novos” deuses , ou en tão redescobrem seus ve lhos deuses em novas mane iras . 4 0

O antropólogo Ari Pedro Oro, da Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, na obra Avanço Pentecostal e Reação Católica, considera três ordens de fatores

responsáveis pelo crescimento evangélico no Brasil, nos últimos anos. O primeiro fato se

deve à ação evangelizadora das próprias igrejas evangélicas que “se atualizaram, tornaram-se

empreendedoras, aproveitando os recursos da técnica e da modernidade para uso evangélico.

Na seqüência vem o momento histórico favorável, e o que o que Oro descreve como

“esgotamento de modelo religioso”. “Num país historicamente católico a existência de um

ambiente social de tolerância religiosa favoreceu a expansão dos evangélicos, bem como de

outras expressões religiosas” – declara. E, em terceiro lugar, “um certo esgotamento de um

modelo religioso histórico implantado no Brasil que abriu espaços para outras possibilidades

de modos de ser religioso que as igrejas evangélicas souberam ocupar.41 O trabalho de Oro

contribui para análise do crescimento do pentecostalismo, sobretudo pelo viés antropológico

adotado o qual valoriza a apropriação pelas novas expressões evangélicas do que chama de

“repertório simbólico”. Porém, a obra não apresenta uma observação mais ampla do

movimento iurdiano, pois prioriza um estudo de caso: o Estado do Rio Grande do Sul.

Outras abordagens de cunho mais acadêmico, que primam bastante pelo

viés sociológico, tendem a associar o advento de tal religiosidade a questões de ordem mais

econômica ou social, apontando para a miséria, a falta de educação, saúde e o não

atendimento satisfatório por parte do Estado das necessidades do ser humano – crises que se 40 PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo. Religião popular e ruptura na obra de Procópio Camargo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 17, p. 30, 1987.41 ORO, Ari Pedro. O avanço pentecostal e reação católica. Petrópolis: Vozes, 1996.

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30

agravaram sobre o país nas últimas décadas - como responsáveis pela recorrência a tais

práticas. Assim, a antinomia “riqueza-pobreza” continua a ser recorrentemente utilizada para

análise do pentecostalismo em suas diferentes tipologias como forma de se conviver ou se

combater a pobreza, como o demonstram os trabalhos de Cecília Loreto Mariz e de Maria das

Dores Campos Machado. Afirmam essas autoras que a extrema privação gera uma sensação

de baixa estima, exclusão, insegurança e que as religiões pentecostais oferecem experiências

que ajudam a superar esses sentimentos e a restabelecer a dignidade do pobre de diferentes

maneiras.42

Os sociólogos Richard Shaull e Waldo César igualmente representam bem

tal perspectiva, quando afirmam que o neopentecostalismo se apresentou como uma forma

encontrada pela grande massa populacional para superar suas contingências do dia-a-dia:

O aglomerado humano presente nos t emplos , se jam membros ou s imples agregados , é cons t i tu ído de homens e mulheres par t íc ipes da grande mul t idão que c i rcu la nas ruas da c idade , dos pobres que formam o grosso da população bras i l e i r a . 4 3

Segundo o antropólogo Otávio Velho, “o crescimento tanto do poder de

influência como de prestígio da IURD” são provenientes da forma como ela conseguiu estar

presente no dia-a-dia das pessoas além de ajudá-las a organizar suas vidas em família. Outro

fator determinante é que a igreja deixou de ser, para a sociedade, local apenas para os pobres

ou problemáticos, tendo alcançado também outras camadas sociais. Ela consegue auxiliar a

população na resolução de seus problemas, principalmente nesses anos de tantas mudanças

no país. Esses locais têm servido de referência para o indivíduo não apenas na vida espiritual,

mas também na área social.44 Em entrevista ao jornal Folha Universal, o autor afirma que,

“no momento, as pessoas não estão mais dispostas a dar jeitinhos através da dependência de

santos e promessas. Querem é ser respondidas por Deus”.45

Contudo, há de se ressaltar que o neopentecostalismo representado pela

IURD agrega hoje entre seus adeptos pessoas dos mais variados níveis econômicos e sociais:

desde um contingente que se concentra nas grandes periferias até artistas famosos e

empresários bem sucedidos. Isso deixa evidente que nas práticas ali desenvolvidas “a

42 MACHADO, Maria das Dores Campos; MARIZ, Cecília Loreto. Sincretismo e trânsito religioso: comparando carismáticos e pentecostais. Comunicações do ISER, Rio de Janeiro, n. 45, ano 13, 1994.43 SHAULL, Richard; CESAR, Waldo. O pentecostalismo e o futuro das igrejas cristãs. Petrópolis: Vozes: São Leopoldo: Sinodal, 1999, p. 45.44 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 106, p. 70, 2004.45 Folha Universal, Rio de Janeiro, n. 631, 09 maio 2004.

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clivagem cultural não coincide com a estratificação social”.46 Nesse sentido, Paulo Bonfatti,

psicólogo, acredita que um dos pontos favoráveis ao crescimento da aceitação da Universal

na sociedade foi sua facilidade de adaptação com a linguagem e os costumes do país. Além

disso, afirma que a presença dela na mídia também pode ser apontada como de grande

organização, pois gera um efeito positivo. A igreja mudou sua própria linguagem e ficou

mais sintonizada com a classe média. A própria estética da programação em suas mídias

passou a abordar discussões mais elaboradas, com a presença de especialistas. Acredita que

esteja ocorrendo um fenômeno bilateral em relação a Universal. As classes mais altas estão

tendo maior simpatia pela Igreja Universal porque ela está mudando seu discurso e por sua

vez, o discurso da IURD está mudando pela demanda das classes mais altas.47

As incursões feitas por diferentes autores, anteriormente destacadas,

apontam elementos importantes que marcam a atual configuração do sagrado no campo

religioso brasileiro. Porém, não obstante as contribuições de análise para os propósitos mais

específicos de suas respectivas áreas de conhecimento, esses trabalhos apresentam dois

principais limites: primeiro, não avançam no âmbito cultural, e isso impossibilita uma

compreensão mais profunda do que ocorre nas práticas da Igreja Universal do Reino de

Deus;48 segundo, não utilizam parâmetros teórico-metodológicos mais propriamente

historiográficos para investigação das fontes disponíveis para análise deste objeto. Em outras

palavras, há uma lacuna de pesquisas com perspectivas mais propriamente historiográficas,

sobretudo pelo viés da cultura, na abordagem de tal temática. Nesse sentido, vale citar

Ronaldo Vainfas quando observa que “nossos historiadores” quase não se dedicaram ao

estudo das “religiosidades”, “traço essencial da história e da vida do Brasil”, deixando assim

uma “lacuna que prejudica a compreensão histórica de nossa sociedade”: Não de ixa de se r in t r igante e ssa l acuna , sendo o Bras i l a té ho je embebido de re l ig ião , pa í s ca tó l ico onde se mul t ip l icam se i ta s pro tes tan tes e onde o s incre t i smo re l ig ioso es tá em toda par te , como na Umbanda ca r ioca . I sso sem fa lar nas a f r ican idades , como o candomblé ba iano , e nout ros r i tos de mor fo logia complexa , como os ca t imbós t rad ic iona is ou o “moderno” Santo Daime. É ev idente o

46 LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1980, p. 210.47 BONFATTI, Paulo. A expressão popular do sagrado. São Paulo: Paulinas, 2000.48 Algumas abordagens que têm acenado, neste sentido, para um viés mais antropológico, podem ser observadas nos seguintes trabalhos: no levantamento feito por Luiz Eduardo Soares, no artigo “A guerra dos pentecostais contra o afro-brasileiro; dimensões democráticas de conflitos religiosos no Brasil”. Cadernos do ISER, Rio de Janeiro, n. 44, ano 12, 1992; na análise feita por Pierre Sanchis “O repto pentecostal à cultura católico-brasileira”. In: ANTONIAZZI, A. et al. Nem anjos nem demônios. Interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1996; no artigo de Otávio VELHO, “Globalização: antropologia e religião”. Mana, vol. 3, n. 1, 1997. Nesses trabalhos pode-se observar um processo de “pentecostalização” do campo religioso brasileiro.

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32

cont ras te en tre a força de nossa r e l ig ios idade e a desa tenção de nossa h i s tor iograf ia . 4 9

É preponderante, portanto, uma investigação de âmbito histórico-cultural50

em relação às práticas e representações que são vivenciadas pelo segmento iurdiano a partir

do compósito de tradições configuradas em capital simbólico, no campo, para compreender

os elementos culturais que dão sustentação a tais práticas e que orientam o comportamento

coletivo; analisar o universo da crença que possibilita tais representações e entender como se

acredita nas práticas ali vivenciadas; compreender o campo social dos objetos simbólicos

utilizados pela IURD, estabelecendo os referentes sociais dos símbolos presentes, a fim de

perceber a sua eficácia no âmbito do grupo e a coesão dada às práticas que ali ocorrem.51

Pensando-se então em avançar nesse alcance explicativo, através de

criterioso exame da documentação disponível, é imprescindível estar atento às manifestações

que tornam a IURD distintiva: sua relação profunda com a matriz cultural-religiosa brasileira,

com práticas que demonstram coerência com as regras do campo, em um processo de

apropriação com criativa resignificação de fertilíssimos elementos de um passado de longa

duração. Em outras palavras, suas práticas estão fincadas nos substratos de elementos

trazidos pelo catolicismo português, pelas religiões dos escravos africanos e pelas crenças

indígenas estabelecidos no campo desde os tempos do Brasil colonial. Essa combinação deu

origem a um pluralismo com intercâmbios, formando uma matriz simbólica, um núcleo

comum. O eixo principal consiste, portanto, no fato de que existe uma matriz simbólica

representativa da religiosidade folclórica brasileira, que foi historicamente formada a partir

das interpenetrações dessas três grandes culturas responsáveis pela formação do ethos

brasileiro. Dessa forma, em sua fluidez de reelaborações, a IURD assume positivamente as

religiosidades folclóricas, ao contrário do catolicismo institucional desenvolvido no país, que

trabalhou tais expressões como um fundo rebelde; diferentemente do protestantismo clássico,

que optou pelo combate ou rejeição de tais elementos; e, até mesmo, do próprio

pentecostalismo tradicional que, não obstante apresentar algumas aproximações com a

49 Folha de S. Paulo, São Paulo, 02 abr. 2000. 50 Um exemplo disto pode ser observado no trabalho de Natalie Z. Davis, quando analisa os ritos religiosos de violência praticados na França no século XVI e supera a compreensão de âmbito econômico-social que havia sido predominante até os anos de 1960, ao considerar tais fenômenos pelo viés da cultura, afirmando que os mesmos estavam relacionados a um “estoque de tradições” que configurava o imaginário daquele período. Eram ações carregadas de simbolismo e de representação. Cf. DAVIS, Natalie Z. Ritos de violência. In: Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França noturna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 129-172.51Evitando aqui o longo debate sobre as possíveis diferenças entre os conceitos de símbolo, signo e sinal, ao empregarmos aqui os termos “ritos e símbolos” referindo-se a todo objeto usado, todo gesto realizado, todo canto ou prece, toda unidade de espaço e de tempo que representa alguma coisa diferente de si mesma. Cf. TURNER, Victor W. O processo ritual. Estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 29.

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33

experiência de possessão existente no campo, mediante “batismo com o Espírito Santo”,

ainda assim busca assegurar “o fim da dispersão identitária” quanto às expressões culturais

de religiosidades presentes no referido do campo.52

Em conformidade com as palavras de Jacques Le Goff, de que “o

historiador tem o dever de colocar questões como eixo do seu trabalho e, em seguida, ver

como respondê-las - apoiando-se naquilo que é e continua sendo o seu material específico,

que são os documentos”53 - cabe, então, perguntar: Que elementos culturais, relacionados ao

imaginário social, têm possibilitado a construção e a recepção das práticas e das

representações desse modelo religioso, tornando-o um mecanismo tão eficiente? Em que

contexto histórico se deu o surgimento e a projeção dessa Igreja? De que maneira e em quais

dimensões as práticas e representações vivenciadas pela IURD têm poder de orientar o

comportamento coletivo e atribuir sentido ao grupo? Ou ainda, como as práticas da IURD

promovem mutações no campo religioso brasileiro?

Buscando compreender mais profundamente algumas dessas questões, o

conteúdo da pesquisa aqui desenvolvida está distribuído em quatro capítulos. O primeiro tem

um caráter teórico-metodológico, no qual se procura estabelecer o lugar e a importância do

sagrado como objeto da Nova História Cultural. Depois de terem sido localizados os núcleos

explicativos de trabalhos que também discutem e analisam o fenômeno iurdiano, são

apontados novos parâmetros conceituais, de viés historiográfico, para a abordagem desse

tema. Os pensamentos de Roger Chartier e Pierre Bourdieu se constituem âncora do caminho

metodológico que se procura seguir. Porém, são estabelecidas interfaces com outros autores à

medida que apresentam contribuições para a investigação do tema proposto, havendo para

isto o devido cuidado acadêmico de se manter, ao longo de todo o trabalho, os parâmetros

teórico-metodológicos norteadores propostos pelos dois autores referenciais. Além disso,

nesse capítulo é feita a identificação das fontes que fundamentam a pesquisa, sendo

apresentados os procedimentos metodológicos de como serão utilizados tais documentos,

procurando-se perceber seus limites, possibilidades e problematizações para a investigação

do tema proposto.

O segundo capítulo está voltado à análise do contexto histórico-social

brasileiro, no período correspondente ao desenvolvimento do pentecostalismo. Pesquisa-se a

cultura e a sociedade brasileira, procurando mostrar quais ambientes e elementos contribuem 52SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à cultura católico-brasileira. In: ANTONIAZZI, A. et al. Op. cit., p. 47.53CASTRO, Celso; FERREIRA, Marieta de M.; OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Conversando com Jacques Le Goff. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 115.

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para a “explosão” do pentecostalismo ocorrida no movimento iurdiano. Com isso, pretende-

se perceber melhor as dimensões de tempo, lugar e circunstâncias em que a IURD estabelece

suas raízes e seu alicerce histórico; compreender-se mais profundamente as latências sociais

que possibilitaram a configuração das práticas e representações vivenciadas com tanta

fertilidade no âmbito dessa Igreja. Nota-se a eficiente capacidade iurdiana, em articular o

universo simbólico, com condições objetivas de um período profundamente marcado por

crises, que se expressam, por exemplo, na urbanização e formação de grandes periferias,

globalização promotora de individualismo e dura competitividade, acelerado processo de

violência e desagregação social. Será observado que tal contexto contribuiu como um

componente externo para o surgimento e a operosidade das práticas iurdianas. Nesse capítulo,

ainda, apresenta-se um mapeamento histórico de expressões do sagrado que marcadamente

configuram o campo religioso brasileiro. Busca-se fazer um “trabalho de classificação e

delimitação” através do qual a realidade do campo foi “contraditoriamente construída pelos

diferentes grupos” que o compõem e que, de modo direto ou direto, preparam o caminho para

o advento iurdiano.54 Com isso se pode também melhor compreender o processo de

apropriação e resignificação feito pela IURD desses compósitos culturais em relação ao

universo simbólico-ritualístico que marca as suas práticas e representações.

O terceiro capítulo investiga propriamente o surgimento da IURD e seu

impacto no país. Busca analisar as práticas que lhe deram origem, possibilitaram-lhe

desenvolvimento, projeção e grande visibilidade social. Seguindo uma das formulações

postuladas por Chartier para a História Cultural, quer-se observar as “formas

institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns ‘representantes’ (instâncias coletivas ou

pessoas singulares) marcaram de forma visível e perpetuadas a existência do grupo ou da

comunidade”55 iurdiana. Serão procuradas respostas a perguntas como: que “sistemas de

disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita, que funcionam como um

sistema de esquemas geradores de comportamento...”,56 promoveram transformações na

configuração religiosa do Brasil? Quais dinamismos da história possibilitaram tais mutações?

Procura-se mostrar ainda o lado objetivo da IURD: sua estrutura, organização, crescimento;

sua força no campo: impactos, mutações, conflitos, novidades, modificações; a sua

originalidade, sua teologia inovadora e promotora de disputas; as dimensões de rompimento

com o protestantismo e mesmo com pentecostalismo clássico. O fato é que, ao se apropriar

54 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Difel: Lisboa, 1990, p. 22.55 Ibid.56 BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 94.

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35

de elementos de uma matriz cultural-religiosa, a IURD realiza um eficaz rearranjo do campo

religioso brasileiro, ao passo que também promove uma evolução interna do protestantismo,

através da formação de um habitus pentecostal específico.

O quarto capítulo é dedicado ao elemento das “representações” vivenciadas

por esse segmento religioso. Quer-se compreender o seu dinamismo interno, os mecanismos

representacionais e o universo simbólico que orientam o comportamento coletivo no âmbito

da IURD. Busca-se entender o conjunto de “disposições adquiridas” o qual faz que “os

agentes que as possuam, comportem-se de uma determinada maneira, em determinadas

circunstâncias”,57 e como esse foi interiorizado pelos adeptos da IURD, tornando-se gerador

de suas ações. A partir de densa pesquisa de campo, quer se aprofundar nos bastidores desse

movimento, as vivências internas do seu funcionamento: suas especificidades, crenças e

comportamentos; seu universo simbólico, a resignificação dos ritos e símbolos, magia, a

teatralização, os exorcismos, os dízimos. Assim, o capítulo investiga os mecanismos culturais

de produção, consagração e circulação dos bens simbólicos no âmbito dessa Igreja; os ritos e

os símbolos como linguagem incorporada na vivência diária de líderes e fiéis. Destaca-se

ainda, em tal processo, que o carisma, por exemplo, transforma-se ali em poder simbólico,

ganhando projeção nas representações que envolvem os líderes.

Em síntese, a pesquisa desenvolvida percorre o seguinte caminho

metodológico na composição de seus capítulos: no primeiro, são construídos os referenciais

teórico-metodológicos para análise do objeto em estudo; no segundo, a localização do objeto

no seu devido tempo e espaço social, com o mapeamento do campo religioso em que se

constituiu todo o compósito cultural em que a IURD finca suas raízes e do qual se apropria

para desenvolver suas práticas; no terceiro capítulo, a descrição e análise do surgimento da

IURD, sua organização, crescimento, originalidade e impactos modificadores no campo

religioso; e, por fim, a investigações das vivências e especificidades internas, os carismas, as

crenças e o universo simbólico resignificado que orienta o comportamento coletivo de seus

adeptos. Em linhas gerais, mediante intensivo trabalho de campo, com observações

participantes nos cultos e reuniões promovidos pela Igreja, além de uso de outras fontes

primárias, analisa-se o eficiente processo de apropriação e resignificação, ou até mesmo de

desnaturação, que a IURD faz em suas práticas de elementos simbólicos culturalmente

dispostos no campo religioso. Tornando-se linguagem, tais sistemas simbólicos são capazes

de orientar comportamento, atribuir sentido e coletivamente conferir identidade aos que

57 Id., Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 21, 98.

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36

integram esse segmento religioso, ou seja, investigam-se “as práticas que visam fazer

conhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar

simbolicamente um estatuto e uma posição”.58

Observa-se que a investigação aqui desenvolvida procura manter o devido

cuidado quanto a um possível juízo de valor, a partir de qualquer referencial de ortodoxia ou

concepção teológica, em relação às práticas e representações vivenciadas pela Igreja

Universal do Reino de Deus. Até porque, segundo Durkheim, não há “religiões que sejam

falsas. Todas são verdadeiras à sua maneira. Todas respondem, ainda que de maneiras

diferentes, a determinadas condições da vida humana”.59 O que se objetiva, portanto, é

compreender como na IURD, através de uma história cultural, “o presente pode adquirir

sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço, decifrado”.60 Assim, ao pesquisador de temas

religiosos cabe não a preocupação com a “verdade” ou “falsidade” dos elementos que

envolvem seu objeto de pesquisa, mas, ao contrário, a compreensão de que as crenças e as

experiências com o sagrado consistem em práticas culturais e sociais, devendo ser, por isso

mesmo, historicamente investigadas.

58 CHARTIER, R. Op. cit., p. 22.59 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 31.60 Id., ibid., p. 17.

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1 – PARÂMETROS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

1.1 - O lugar do sagrado na História Cultural

O desenvolvimento da Igreja Universal do Reino de Deus coincide com um

período de significativas transformações no campo da pesquisa historiográfica. Assim, a

localização desse objeto em tal contexto se torna oportuna, pois, devido a seu alcance social e

cultural, representa oportunidade do emprego de novas perspectivas conceituais e

metodológicas conquistadas pela historiografia para a abordagem do sagrado.

Foi mais especificamente a partir dos anos 1960 e 1970 que a História

Social adquiriu grande projeção, levando historiadores a optativamente recorrer ou então

estabelecer interfaces com conceitos e métodos de outras áreas do conhecimento, como a

Sociologia e a Antropologia. Esses novos rumos da História, tributários de trocas

interdisciplinares, vieram a se consolidar na década de 1980, com o surgimento da Nova

História Cultural, fazendo que abordagens de temas voltados à religiosidade com maior

alcance popular ganhassem evidência nessa área de conhecimento, com estreitas

aproximações dos elementos da cultura.61 Essa dimensão simbólica e suas interpretações

passaram a constituir, portanto, um terreno comum sobre o qual se debruçam historiadores,

multiplicando-se assim os possíveis objetos de estudo:O ter reno comum dos h i s tor iadores da cu l tura pode se r desc r i to como a preocupação com o s imból ico e suas in te rpre tações . S ímbolos , consc ien tes ou não , podem ser encontrados em todos os lugares , da ar te à v ida co t id iana ( . . . ) . 6 2

Roger Chartier, ao se referir às mudanças temáticas na historiografia, nesse

período, destaca que a religião ganhou evidência para pesquisa nesse campo do

conhecimento:O desaf io l ançado à h i s tór ia pe las novas d isc ip l inas (de um for te cap i ta l soc ia l ) assumiu d iver sas formas ( . . . ) desv iando a a tenção das h iera rquias para a s re lações , das pos ições para as representações ( . . . ) . Da í a emergênc ia de novos objec tos no se io das ques tões h i s tór icas : ( . . . ) a s c renças e os compor tamentos re l ig iosos ( . . . ) . O que representou a cons t i tu ição de novos te r r i tó r ios do h i s tor iador ( . . . ) fa to es te que representou um “ re torno a uma das insp i rações fundadoras dos pr imei ros Annales dos anos 30 . 6 3

61Peter Burke afirma que desde o “final do século XIX alguns historiadores profissionais estavam descontentes com o domínio do político”. Cf. BURKE, Peter. Sociologia e História. Porto: Edições Afrontamento, 1980, p. 19.62 BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge ZAHAR Editor, 2004, p. 10.63 CHARTIER, R. Op. cit., p. 14.

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Definindo ainda mais detalhadamente esses novos alcances temáticos da

historiografia, a partir de uma “história cultural ancorada em uma sociologia histórica da

cultura (...)”,64 Chartier apresenta como parte de suas proposições “compreender as práticas,

complexas, múltiplas, diferenciadas, que constroem o mundo como representação”:Por um lado é prec i so pensá- la como a aná l i se do t rabalho de representação , i s to é , das c lass i f i cações e das exclusões que cons t i tuem, na sua d i ferença rad ica l , as conf igurações soc ia i s e concei tua i s própr ias de um tempo e de um espaço . ( . . . ) Por ou t ro l ado , es ta h i s tór ia deve se r en tendida como es tudo dos processos com os quai s se cons t ró i um sent ido . ( . . . ) Di r ige- se às prá t icas que , p lura lmente , cont rad i tor iamente , dão s ign if icado ao mundo. ( . . . ) Compreender es tes enra izamentos tendo em conta as especi f ic idades do espaço própr io das prá t i cas cu l tura i s . ( . . . ) . 6 5

A investigação historiográfica também passou a enfocar dimensões mais

amplas de poder:Poder e po l í t i ca passam ass im ao domínio das representações socia i s , co loca- se como pr ior i t á r ia a problemát ica do s imból ico – s imbol i smo, formas s imból icas , mas sobre tudo o poder s imból ico , ( . . . ) . O es tudo do pol í t i co va i compreender a par t i r da í não mais apenas a po l í t ica em seu sen t ido t r ad ic ional , mas em nível das representações soc ia is ou co let ivas , as menta l idades , bem como as d iversas prá t i cas d iscurs ivas assoc iadas ao poder . 6 6 [g r i fo nosso]

Comentando essas novas dimensões de poder, presente nos novos temas e

abordagens investigativas suscitadas pela Nova História, Francisco Falcon comenta:Restar ia , por ú l t imo, t en ta r pe rceber a presença do poder em obras sobre bruxar ia , magia , sexual idade , co t id iano e outros tóp icos per tencentes a esse conjunto gener icamente ro tu lado de h i s tór ia das menta l idades . 6 7

Observa ainda Chartier que os mecanismos reguladores do funcionamento

social e as práticas que promovem as relações e tecem os vínculos entre os indivíduos, “são

todos ao mesmo tempo ‘culturais’”, já que traduzem em atos as maneiras plurais como os

homens dão significação ao mundo que é o seu. Portanto, “toda história, quer se diga

econômica, social ou religiosa, exige o estudo dos sistemas de representação e dos atos que

eles geram. Por isso ela é cultural”.68 Destaca-se, também, como vocação desse campo do

saber:

64FALCON, Francisco. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 76.65 Id., ibid, p. 27, 28.66 CHARTIER, R. Op. cit., p. 14.67 FALCON, F. Op. cit., p. 89.68 CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Edunesp, 2003, p. 18.

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A his tór ia cu l tura l é a que f ixa o e s tudo das formas de representação do mundo no se io de um grupo humano cu ja na tureza pode var ia r – nac ional ou reg iona l , soc ia l ou pol í t i ca – e de que ana l i sa a ges tação , a expressão e a t ransmissão . Como é que os grupos humanos representam ou imaginam o mundo que os rodeia? Um mundo f igurado , codi f icado , contornado, expl icado e parc ia lmente dominado, do tado de sen t ido (pe las c renças e os s is temas re l ig iosos ou profanos , e mesmo mi tos) , um mundo legado, f ina lmente , pe las t ransmissões devidas ao meio , à educação , à ins t rução . 6 9

Em sua obra Variedades de História Cultural,70 Peter Burke ressalta que,

mesmo não havendo “concordância sobre o que se constitui história cultural, menos ainda

sobre o que constitui cultura”, tem ocorrido atualmente uma ascensão dos “estudos culturais”

em diferentes abordagens que envolvem as áreas de humanidade e sociedade, com

abrangência hoje de um “enorme campo”.71 Esse mesmo autor chama de “virada cultural” a

emergência dos aspectos culturais do comportamento humano como centro privilegiado do

conhecimento histórico: uma guinada sofrida pelos estudos históricos, abandonando um

esquema teórico generalizante e movendo-se em direção aos valores de grupos particulares,

em locais e períodos específicos. Observa ele que esse modo de compreender a história

resultou em um certo abandono dos esquemas teóricos generalizantes com valorização de

grupos particulares, em locais e períodos específicos: “assim, surgiram trabalhos sobre

gênero, minorias étnicas e religiosas, hábitos e costumes, incorporando metodologias e

conceitos de outras disciplinas”.72

Afirma ainda que o termo “cultura” continua sendo de difícil definição ou

conceituação, tanto quanto o é, também, prescindi-lo. Comenta que em meados do século

XIX, ou ainda na segunda década do XX, a idéia de cultura parecia dispensar maiores

explicações, era entendida como arte, literatura, figuras, motivos, temas, sentimentos,

elementos esses encontrados na tradição ocidental a partir dos gregos. Assim a definiam

historiadores como Mattheu Arnold, Jacob Burkchardt e Johan Huizinga. Em suma, cultura

era algo que alguns grupos em algumas sociedades tinham, embora faltasse a outros.

Para Burke, a conceituação cultural clássica não deve ser o modelo para a

História Cultural de hoje pelo fato de não lidar de maneira satisfatória com algumas

dificuldades, sendo possível apontar-lhe pelo menos cinco objeções. Primeiro, tende a ignorar

69RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Orgs.) Para uma História Cultural. Rio de Janeiro: Editorial Estampa, 1998, p. 20.70 BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.11-37; 231-267.71 Id., ibid., p. 234.72BURKE, P. O que é História Cultural?, p. 10.

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a sociedade ou dar pouca ênfase a ela, demonstrando uma ausência de fundamentos quanto à

infra-estrutura econômica, estrutura política e social na maneira como é postulada. Segundo,

apresenta dependência do conceito de unidade ou consenso cultural. Argumenta-se que não é

possível falar em consenso e homogeneidade culturais, pois tanto no que se convencionou

chamar de cultura elitizada como na chamada cultura popular, há variações e divisões, como

por exemplo, de uma região para outra, entre homens e mulheres, entre ricos e pobres etc.

Terceiro, havia a idéia de herança ou legado cultural pela tradição, pressupondo que a

recepção do que fora dado não sofria variações. Pondera-se que a cultura é marcada por

variações, transformações, modificações. Quarto, adota a idéia de cultura implícita,

convencionando-se estabelecer como cultura a “alta cultura”; por isso, atualmente, os

historiadores devem, segundo ele, buscar recuperar a história da cultura das pessoas

chamadas comuns. E por último, a História Cultural clássica foi escrita pelas elites européias

a respeito de si mesmas. Não pode haver uma única grande tradição, um monopólio de

legitimidade cultural. Ressalta ainda que é preciso que os historiadores reconheçam cada vez

mais o valor de outras tradições culturais em vez de encará-las como barbarismo ou ausência

de cultura. Hoje, o apelo da História Cultural é mais amplo e diversificado em termos

geográficos e sociais. A história precisa ser reescrita a cada geração a fim de que o passado

continue a ser inteligível para um presente modificado.

Peter Burke considera cinco aspectos que marcam este novo viés

historiográfico da cultura. Primeiro, ao se tornar bastante tributária da Antropologia, a Nova

História Cultural promove uma redescoberta da importância dos símbolos na história, o que

costuma ser chamado de “antropologia simbólica”. Assim, a história pode se tornar uma

tradução da linguagem cultural do passado para o presente, dos conceitos da época estudada

para os de historiadores e seus leitores contemporâneos. Segundo, possibilita uma redefinição

de cultura em relação ao modelo clássico, ampliando o seu sentido: não apenas o escrito, mas

o oral; não apenas o drama, mas o ritual; não apenas a filosofia, mas as mentalidades das

pessoas chamadas comuns. Burke cita Pierre Bourdieu ao ressaltar que “A vida cotidiana ou

a ‘cultura cotidiana’ é fundamental para essa abordagem, sobretudo as ‘regras’ ou

convenções subjacentes à vida cotidiana”, e acrescenta: “Como sugere Bourdieu, o processo

de aprendizagem inclui um padrão mais flexível de respostas a situações que ele chama de

‘habitus’”.73 Em terceiro lugar, compreende que as tradições não persistem automaticamente.

Citando o conceito de “reprodução cultural”, empregado por Pierre Bourdieu, Burke destaca

73BURKE, P. Variedades de História Cultural, p. 247.

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que as tradições não persistem automaticamente, havendo, pois, necessidade de um grande

esforço para transmiti-la. A recepção se dá de forma criativa: tudo o que se transmite, muda.

Assim, é melhor falar em apropriação criativa, ao invés de transmissão. Com isso, a ênfase

deve estar no receptor, mais do que no doador. Os receptores, de maneira consciente ou

inconsciente, interpretam ou adaptam idéias, costumes, imagens e tudo o que lhes é

oferecido. Um quarto aspecto é que passa a haver um interesse cada vez maior pela história

das “representações”, da construção, invenção e imaginação coletiva, desenvolvida a partir da

história das mentalidades. E, finalmente, aponta para o fato de que é preciso que se tenha o

devido cuidado no emprego do termo “sincretismo”, o qual tem sido bastante utilizado por

especialistas da religião, pressupondo hibridismo ou fusão cultural, em mão dupla. No caso

do Brasil, por exemplo, “pluralismo” ou “hibridismo” talvez seja melhor que sincretismo,

pois “as mesmas pessoas podem participar das práticas de mais de um culto religioso” –

lembra esse autor. Ressalta ainda Peter Burke74 ser uma das vocações da História Cultural

voltar-se para a investigação das crenças e práticas religiosas cotidianas, dos rituais e das

orações dos “leigos”, dos desvios à ortodoxia, dos aspectos não-oficiais e informais.

Ronaldo Vainfas reconhece esse novo espaço ocupado pelo sagrado,

afirmando que a Nova História Cultural “revela especial apreço, tal como a história das

mentalidades, pelas manifestações das massas anônimas (...) e sobretudo pelo popular (...) as

crenças heterodoxas”.75 Acrescenta esse autor:Múlt ip la , densa e ins t igante , a t e ia que l iga a s d ive rsas r e l ig iões às d i feren tes e poss íve is formas de re l ig ios idades t em demons t rado se r um campo fé r t i l pa ra cont inuadas r ef lexões t eór ico-metodológicas e inves t igações h is tor iográ f icas . 7 6

Rioux e Sirinelli também destacam esse “recomeço dos trabalhos no âmbito

cultural” com interfaces do religioso na história contemporânea: Latênc ias e h ia tos do presente passaram a asp i ra r pe lo cu l tura l . São cont r ibu ições que se conf lu í ram em pro l da h i s tór ia cu l tura l : a h i s tór ia re l ig iosa passou a v ive r mais in tensamente a “ tensão” que a l iga ao cu l tura l ; a h is tór ia dos s ignos , das marcas e dos s ímbolos , a das sens ib i l idades e dos desv ios ganhou impulso ( . . . ) . 7 7

Esse novo viés investigativo passou a contemplar a “história das práticas culturais”, que apresenta a dens idade de um sócio-cu l tura l f i rmemente f ixado no hor izonte da inves t igação , revis i tando a re l ig ião v iv ida , a s

74Id., ibid., p. 109 - 128.75Id., ibid., p. 148, 149.76 Id., ibid., p. 352.77RIOUX, J. - P. ; SIRINELLI, J. - F. (Orgs.). Op. cit., p. 19, 20.

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sociab i l idades , as memórias pa r t i cu lares , a s promoções ident i t á r ias ou os usos e cos tumes dos grupos humanos . 7 8 [gr i fo nosso]

O fenômeno religioso passou a ganhar, assim, espaço privilegiado para a

investigação historiográfica pelo viés cultural. Parafraseando o título de uma obra organizada

por Jacques Le Goff, pode-se dizer que tais historiadores se voltam a “novos objetos, novos

problemas e novas abordagens”.79 Em capítulo produzido nessa mesma obra, Dominique

Julia observa que todo objeto histórico é construído pelo historiador e que por isso não mais

se atribui um domínio diferente e específico para o objeto “religião”, entre os historiadores.80

E, ainda em relação às conexões e proximidades dos elementos cultural e religioso, é possível

afirmar que o historiadordeve compreender o s ign i f icado , quer d ize r que deve ident i f i ca r e i luminar as s i tuações e as pos ições que induz iram ou tornaram poss íve l o aparec imento ou o t r iunfo des ta forma re l ig iosa num momento pa r t i cu lar da h i s tór ia . I s so const i tu i a verdadei ra função cul tura l do h i s tor iador das re l ig iões . 8 1

Utilizando como exemplo de análise o que chama de “o modelo de

encontro”, Burke afirma que nos últimos anos os historiadores culturais têm se interessado

cada vez mais por encontros e também por choques, conflitos, competições e “invasões”

culturais, sem minimizar os aspectos destrutivos desses contatos. O que se tem enfatizado é a

maneira como as partes envolvidas em um determinado encontro cultural percebem,

entendem, ou não, umas às outras. Desse modo, torna-se necessário considerar o processo de

assimilação em via de mão dupla, mediante conflitos, circularidades e empréstimos culturais.

O emprego do termo “cultural”, pois, em seu viés historiográfico, dever

abarcar de forma ampla e abrangente o contexto de uma determinada sociedade, como afirma

L. Hunt:As re lações econômicas e soc ia is não são an ter iores à s cu l tura i s , nem as de te rminam; e la s própr ias são os campos de prá t i ca cu l tura l e produção cu l tura l – o que não pode ser dedut ivamente expl icado por re fe rênc ia a uma d imensão ex t racul tura l da exper iência . 8 2

Conforme Roger Chartier propõe, as configurações culturais e produções

sociais – que têm dimensão histórica - devem ser concretamente investigadas, sem que haja a

78Id., ibid., p. 21, 22.79LE GOFF, Jacques (Org.) História, novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.80Id., ibid., p. 106 - 136.81 ELIADE, Mircea. La nostalgie es origines: méthodologie et histoire des religions. Paris: Gallimard, 1978, p. 18.82 HUNT, Lynn (Org.) A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 9.

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designação do cultural como um domínio particular de produções e de práticas, supostamente

distinto de outros níveis, do econômico do social ou político:A cul tura não es tá ac ima ou ao lado das r e lações econômicas e soc ia i s , e não ex is te prá t ica que não se a r t i cu le sobre as r epresentações pe las quai s os ind iv íduos cons troem o sen t ido de sua exi s tência – um sent ido inscr i to nas pa lavras , nos ges tos , nos r i tos . 8 3

A cultura, ressalta Chartier, “não está acima nem ao lado das relações

econômicas e sociais”, e não existe prática que não se articule sobre as representações pelas

quais “os indivíduos constroem o sentido de sua existência”: Todas as re lações e percepções do mundo soc ia l são ao mesmo tempo “cul tura i s” , j á que t r aduzem em a tos a s mane iras p lura i s como os homens dão s igni f icação ao mundo que é o seu . Por tan to , toda h i s tór ia , quer se d iga econômica , soc ia l ou re l ig iosa , ex ige o e s tudo dos s is temas de representação e dos a tos que e les ge ram. Por i sso e la é cu l tura l . 8 4

Peter Burke destaca que, de 30 anos para cá, ocorreu um deslocamento

gradual no uso do termo cultura pelos historiadores. Antes empregado para se referir à alta

cultura, ele agora inclui também a cultura cotidiana, ou seja, costumes, valores, modo de

vida. Em outras palavras, os historiadores se aproximaram da visão de cultura dos

antropólogos.85 Lembra que o antropólogo inspirador da maioria dos historiadores culturais

da última geração foi Clifford Geertz, com a “teoria interpretativa da cultura”. Nesse aspecto,

é importante estudar a cultura interrogando-se o sistema social no qual ela se desenrola, sem

se ver o conjunto em que os diferentes elementos se transformam. Segundo Geertz, o

comportamento humano precisa ser visto como uma ação simbólica e, por isso, o que se deve

indagar não é o seu status ontológico e sim o que está sendo transmitido com a sua

ocorrência. Afirma esse autor que “a cultura é pública porque o significado o é”.86 Entende-a

como “sistema entrelaçado de signos (símbolos) interpretáveis (...) um contexto, algo dentro

do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade”, 87 e

especifica ainda mais o seu conceito ao afirmar que eladenota um padrão de s ign i f icados t r ansmit ido h i s tor icamente , incorporado em s ímbolos , um s i s tema de concepções he rdadas expressas em formas s imból icas por me io dos qua i s os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhec imento e suas a t iv idades em re lação à v ida . 8 8

83 CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 18.84 Id., ibid.85 BURKE, P. Variedades de História Cultural, p. 48.86 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 22. 87 Id., ibid., p. 24.88 Id., ibid., p. 22.

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Assim, percebe-se que - inscrevendo-se profundamente na cultura

brasileira, e apoiando-se nos signos e na simbologia dos objetos - a IURD descobriu maneiras

de puxar os fios invisíveis da memória, tornando-se um “sistema simbólico”. Isso também

está em consonância com as considerações ainda feitas por Geertz:os s ímbolos sagrados func ionam para s in te t i za r o e thos de um povo e sua v isão de mundo ( . . . ) Demons t ram representa r um t ipo de v ida idea lmente adaptado ao es tado de co i sas a tua l que a v i são de mundo desc reve , enquanto es ta v i são de mundo torna -se emoc ionalmente convincente por se r apresentada como uma imagem de um es tado de coi sas ve rdade i ro , especia lmente bem-ar rumado para acomodar ta l t ipo de v ida ( . . . ) A re l ig ião a jus ta as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada , e pro je ta imagens des ta ordem no p lano da exper iênc ia humana. 8 9

Isso se constitui importante objeto da História Cultural, pois, há, como

afirma Peter Burke:

( . . . ) o desenvolv imento de uma consciênc ia cada vez maior en t re os h i s tor iadores , da forma como aqui lo a que chamam “rea l idade” se encontrar media t izado por cons t ruções ou representações cu l tura i s , ou se ja , uma consciênc ia cada vez maior da impor tância e da d i fusão do s imbol i smo. 9 0

Descrever uma cultura seria então compreender as relações que nela se

encontram entrelaçadas, o conjunto das práticas que nela exprimem as representações do

mundo, do social ou do sagrado. Daniel Roche afirma que o conceito de cultura continua a

ser um vocábulo bastante ambíguo e ressalta que o emprego desse termo nada resolve se não

for relacionado “com os grupos sociais, com as dinâmicas identitárias das sociedades, em

territórios e conjuntos geográficos historicamente construídos”. E que, para uns, a cultura

molda-se imediatamente nas perspectivas da antropologia, enquanto que para outros é a

“aposta-meio para medir exclusões ou traçar fronteiras, trajetórias, hábitos adquiridos,

transmitidos, divulgados, objetos de luta e de imitação”.91

É preciso então conceder atenção às condições e aos processos que muito

concretamente “orientam as operações de construção do sentido”, ressaltando que as

inteligências não são desencarnadas, e que as categorias aparentemente mais invariáveis

devem ser “constituídas na descontinuidade das trajetórias históricas”:A his tór ia cu l tura l t a l como a en tendemos , t em por pr inc ipa l ob je to ident i f i car o modo como em di feren tes lugares e momentos uma determinada rea l idade soc ia l é cons t ru ída , pensada , dada a l e r . A

89 Id., ibid., p. 104.90 BURKE, Peter. O mundo como teatro. Estudos de Antropologia Histórica. Lisboa: DIFEL, 1992, p. 26.91ROCHE, Daniel. Uma declinação da luzes. In: RIOUX, J. - P. ; SIRINELLI, J. - F. (Orgs.). Op. cit., p. 2.

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apropr iação como a en tendemos , t em por obje t ivo uma h i s tór ia soc ia l das in terpre tações , r emet idas para a s suas de terminações fundamenta i s (que são socia i s , ins t i tuc ionais , cu l tura is ) e inser idas nas prá t icas e specí f icas que as produzem. 9 2

Evidentemente, o Brasil é um país multicultural e, como tal, não possui

uma, mas várias culturas, realidade essa decorrente de um processo histórico ainda em

permanente movimento, o qual será analisado na abordagem do tema proposto neste trabalho.

“O melhor é seguir o exemplo de vários historiadores e teóricos recentes e pensar culturas

populares no plural”.93 Porém, entendendo que essa cultura “é plural, mas não caótica”,94

cabe então investigar o papel que o fenômeno religioso desempenha nesse processo de

atribuição de sentido e promoção de coerência às práticas e comportamento através de

organizações religiosas. Uma história cultural em busca de crenças e gestos aptos a

caracterizar suas expressões em um período temporal que se recorta, sobretudo, nas três

últimas décadas no Brasil. Tal delimitação é necessária para o desenvolvimento de “uma

história cultural que esteja preocupada antes de tudo em compreender usos e práticas. (...) que

esteja sensível à análise de funcionamentos culturais concretos e localizados”, como observa

Chartier, o qual também acrescenta:É “tarefa imposs íve l” descrever uma cul tura na to ta l idade de re lações que ne la se encontram ent re laçadas , no conjunto das prá t i cas que ne la expr imem as representações do mundo, do soc ia l ou do sagrado . Por i sso , abordá- la s supõe uma a t i tude d i fe ren te , que focal ize a a tenção sobre as prá t icas pa r t icu lares , ob je tos e specí f icos , usos de te rminados . 9 5

Em suas pesquisas sobre a leitura na França, esse autor argumenta que era

praticamente impossível rotular objetos ou práticas culturais como “populares”. As elites da

Europa Ocidental, no começo dos tempos modernos, eram “biculturais”. Afirma que o

popular era ali normalmente definido por sua diferença com aquilo que ele não era: a

literatura erudita de um lado, catolicismo dos clérigos do outro. Mas “é justamente esse

postulado, e a distinção popular/erudito que o fundamenta, que parece ser necessário

questionar” – ressalta Chartier, pois, “onde se acreditava descobrir correspondências estritas

entre clivagens culturais e oposições sociais, existem antes circulações fluídas, práticas

compartilhadas, diferenças indistintas”.96 Logo, não se deve “sobrepor clivagens sociais e

diferenças culturais”:

92 Id., ibid., p. 16, 17.93 BURKE, P. Variedades de História Cultural, p. 41.94 BOSI, Alfredo (Org.). Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1987, p. 7.95CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 18, 19.96Id., ibid., p. 8.

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Todas as formas e prá t i cas nas quai s os h i s tor iadores ju lga ram detec tar a cu l tura do povo, na sua rad ica l o r ig ina l idade , apa recem como l igando e lementos d iver sos , compós i tos , mis turados . É o que ocor re com a re l ig ião “popula r” . Por um lado , é bem c la ro que a cul tura fo lc lór ica que lhe se rve de base foi p rofundamente t raba lhada pe la ins t i tu ição ec les iás t ica , que não apenas r egulamentou , depurou , censurou , mas também ten tou impor à soc iedade in te i ra a mane ira como os c lé r igos pensavam e v iv iam a f é comum. A re l ig ião da maior ia fo i , por tan to , moldada por esse in tenso esforço pedagógico v isando faze r cada um in ter ior izar a s def in ições e a s normas produz idas pe la ins t i tu ição ec les iás t ica . 9 7

Assim, é necessário superar o postulado que pressupõe “detectar a cultura

do povo, na sua radical originalidade”, para que se percebam práticas que ligam “elementos

diversos, compósitos, misturados”.98 A religião “popular” – ressalta Chartier, é, ao mesmo

tempo, aculturada e aculturante: ela não é nem radicalmente distinta da religião dos clérigos

nem totalmente modelada por ela.99 E, nesse sentido, configura o campo religioso brasileiro uma complexa in te ração de crenças e idé ias re l ig iosas que se amalgamaram num processo que teve , como desdobramento , a ges tação de uma menta l idade re l ig iosa média dos bras i l e i ros em gera l , independentemente da s i tuação soc ia l em que se encont rem ( . . . ) Essa menta l idade expandiu sua base socia l num de te rminado momento h i s tór ico , sendo incorporada ao inconscien te e ao consc ien te co le t ivos . 1 0 0

Por isso, uma compreensão da circulação dos objetos e dos modelos

culturais “não se reduz a uma simples difusão, geralmente pensada como descendo de cima

para baixo no corpo social”.101 Robert Darnton, por exemplo, em sua obra O Grande Massacre de Gatos, aponta para o fato de que é preciso superar as fronteiras estanques que

convencionalmente se estabeleceram entre cultura erudita e cultura popular, uma vez que

ambas lidam com “o mesmo tipo de problema”, aproximando “intelectuais e pessoas do

povo”.102 Roger Chartier, no comentário feito a esse trabalho de Darnton, destaca de maneira

bastante elucidativa as contribuições da Antropologia para a História Cultural, apontando tal

abordagem como um “modo antropológico da história”:A ant ropologia t em muito a oferece r ao h is tor iador : uma abordagem (ganhar a en t rada em out ra cu l tura a pa r t i r de um r i to , t ex to ou a to , apa rentemente incompreens íve l ou opaco) ; um programa (“ ten ta r ver a s co isas a par t i r do ponto de v is ta do na t ivo , en tender o que e le quer d ize r e buscar d imensões socia i s do s ign i f icado”) ; e um concei to de cu l tura (como o “mundo s imból ico” no qual s ímbolos compar t i lhados se rvem ao pensamento e à ação , moldam

97Id., ibid., p. 9.98 CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 9.99 Id., ibid.100 BITTENCOURT FILHO, José. Sociologia da religião no Brasil. São Paulo: PUC, 1998, p. 99.101 CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 17.102DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da História Cultural Francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. XVIII.

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c lass i f i cação e ju lgamento , e fornecem avisos e acusações) . Entender uma cul tura , en tão , é ac ima de tudo redescobr i r as s ign i f icações invest idas nas formas s imból icas das quai s a cu l tura se u t i l i za . 1 0 3

Não se deve, por conseguinte, estabelecer uma correlação simples e

imediata entre cultura e classe social, como se todos os que são pertencentes a uma

determinada categoria social tivessem uma mesma apreensão ou atribuição de sentido a um

bem cultural. É preciso salientar que “as clivagens culturais nem sempre coincidem com as

clivagens de classe”,104 como também o observa Chartier: Antes de ma is , de ixou de se r susten tável pre tender es tabe lece r cor respondências e s t r i t as en t re c l ivagens cu l tura is e h ie ra rquias soc ia i s ( . . . ) Pe lo cont rá r io , o que é necessár io reconhecer são as c irculações f lu ídas , as prá t i cas pa r t i lhadas que atravessam os hor izontes soc ia i s . 1 0 5 [gr i fo nosso]

Essa “travessia” dos horizontes sociais pode ser exemplificada nas palavras

de Victor Turner: “As pessoas da floresta, do deserto e da tundra reagem aos mesmos

processos como as pessoas das cidades, das cortes e dos mercados”.106 A essa compreensão se

aplicam ainda as palavras de Chartier, quando destaca os desafios que se apresentam ao

trabalho historiográfico:Enfim, ao renunciar ao pr imado t i rân ico do recor te soc ia l para dar conta dos desv ios cu l tura i s , a h i s tór ia em seus ú l t imos desenvolv imentos mos t rou , de vez , que é imposs íve l qua l i f icar os mot ivos , os ob je tos , ou as prá t i cas cu l tura is em te rmos imedia tamente soc io lógicos e que sua d i s t r ibu ição e seus usos numa dada sociedade não se organizam necessa r iamente segundo d iv isões socia i s prév ias , ident i f i cadas a pa r t i r de d i fe renças de es tado e de for tuna . Donde as novas per spect ivas abe r tas para pensar ou t ros modos de ar t i cu lação en t re a s obras ou as prá t i cas e o mundo socia l , sens íve i s ao mesmo tempo à p lura l idade das c l ivagens que a t ravessam uma soc iedade e à d ive rs idade dos empregos de mater ia is ou de códigos par t i lhados . 1 0 7

Outro aspecto a ser considerado é que as instituições eclesiásticas se

propõem, normalmente, não apenas a regulamentar, depurar, censurar, mas também impor à

sociedade inteira a maneira como os clérigos pensam e vivem a fé comum. Propondo sempre

ser a religião da maioria, tais instituições dedicam “intenso esforço pedagógico visando fazer

cada um interiorizar as definições e as normas” por elas produzidas.108 Mas as tentativas de

103CHARTIER, Roger. Textos, símbolos e o espírito francês. História: questões e debates. Curitiba, Associação Paranaense de História – APAH, p. 7, jul./dez., 1996.104Afirmação do Prof. Dr. Milton Carlos Costa, em aula da disciplina História e Cultura, ministrada em 29 de novembro de 2002 – UNESP/campus de Assis – SP. 105CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 134.106TURNER, V. W. Op. cit., p. 6.107CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, USP, n. 11, p. 177, 1991.108Id. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 9.

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controle a partir de exigências reguladoras se deparam com hábitos arraigados, com

interpretações próprias por parte do povo que recebe tais prescrições. Por isso, como ressalta

Chartier, é preciso substituir uma caracterização global, unitária, das formas culturais por

uma apreensão mais complexa que busca descobrir os cruzamentos e tensões que a

constituem, buscando-se investigar o inventário de modalidades múltiplas bem como a

pluralidade das práticas culturais que atravessam o corpo social.109 A História Cultural

possibilita instrumentais e parâmetros para se investigar tal articulação:Esta h i s tór ia (His tór ia Cul tura l ) deve ser en tendida como o es tudo dos processos com os quai s se const ró i um sent ido ( . . . ) d i r ige -se à s prá t i cas que , p lura lmente , contrad i tor iamente , dão s ign if icado ao mundo. Daí a carac te r ização das prá t i cas d iscurs ivas como produtoras de ordenamento , de a f i rmação de d is tâncias , de d iv isões . 1 1 0

Isso significa, no caso do campo religioso brasileiro, desenvolver uma

investigação sobre o inventário constituído em “capital simbólico” que possibilitou as

representações e práticas vivenciadas pela IURD, levando em consideração o pluralismo

religioso que evidencia, por exemplo, a ineficácia dos esforços empreendidos pelas

instituições sacerdotais no sentido de moldar os pensamentos e as condutas da maioria. Tal

aspecto está em consonância com o pensamento de Roger Chartier, quando afirma que “o

destino historiográfico da cultura popular, portanto, é ser sempre sufocada, reprimida,

destruída, e ao mesmo tempo sempre renascer de suas cinzas”.111 Por isso, essas práticas são

“criadoras de usos ou de representações que não são absolutamente redutíveis às vontades

dos produtores de discursos e de normas”, fazendo que a aceitação dos modelos e das

mensagens propostas “opere-se por meio dos arranjos, dos desvios, às vezes das resistências,

que manifestam a singularidade de cada apropriação”.112 Daí o surgimento de um caminho

metodologicamente plausível que focalize “a atenção sobre práticas particulares, objetos

específicos, usos determinados”,113 como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus,

objeto de investigação desse trabalho. Em dado momento e circunstâncias históricas, essa

Igreja surgiu tecendo a sua teia de sentidos, configurada por discursos, ritos e práticas,

fazendo convergir eficazmente para si a diversidade cultural e religiosa do contexto

brasileiro.

109 Id., ibid., p. 10.110 Id., ibid., 28.111 CHARTIER, Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 15. 112 Id., ibid., p. 13.113 Id. Ibid., p. 18.

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Finalizando esse item, há de se observar que, tendo como ponto de partida o

princípio de que os elementos culturais perpassam a todas as categorizações sociais – como

descrito anteriormente – serão empregados nessa pesquisa os termos “cultura folclórica” e

“cultura clerical” como referência ao que às vezes se convenciona chamar de “cultura

popular” e “cultura erudita”. Esse é o procedimento adotado por Jacques Le Goff, quando

analisa, no contexto medieval, tradições culturais bastante populares em oposições e conflitos

com práticas adotadas pelas instituições mais clericalizadas. Le Goff observa em tal processo

um dinamismo cultural de influências eficazmente mútuas, sem unilateralidades, com

permeabilidades, “não havendo restrição à estratificação social”.114

1.2 - Um caminho metodológico a partir de Chartier e Bourdieu

Considerando as estreitas aproximações que a Nova História Cultural faz da

Antropologia e Sociologia, como dito anteriormente, a análise aqui desenvolvida é bastante

tributária de conceitos empregados por Pierre Bourdieu. As contribuições desse autor para a

História Cultural têm sido destacadas por pesquisadores desse viés historiográfico:Os conce i tos e teor ias que [Bourdieu] produz iu em seus e s tudos , p r imei ro sobre os berbe res e depois sobre os f ranceses , são de grande re levância para os h i s tor iadores cu l tura is . Inc luem o concei to de “campo”, a t eor ia da prá t i ca , a idé ia de reprodução cul tura l e a noção de “d i s t inção” . ( . . . ) Suas expressões “capi ta l cul tura l” e “capi ta l s imból ico” en t ra ram na l inguagem cot id iana de soció logos , an t ropólogos e de pe lo menos a lguns h i s tor iadores . 1 1 5

Tem-se considerado Bourdieu como um dos teóricos que “levaram os

historiadores culturais a se preocuparem com as representações e as práticas, os dois aspectos

característicos da Nova História Cultural segundo um de seus líderes, Roger Chartier”.116

Destaca-se a referência feita por esse autor às contribuições de Bourdieu para essa

perspectiva historiográfica: “Gostaria de sublinhar a importância do trabalho de Bourdieu (...)

para a prática da história cultural. (...) Para a definição de uma dimensão histórica de todas as

ciências sociais (...)”.117 Acrescenta também esse autor: Bourdieu a judou os h i s tor iadores a se d i s tanc ia rem da herança da h i s tór ia das menta l idades para re f le t i rem de uma manei ra ma is complexa , ou mais su t i l , sobre a re lação en t re a s de te rminações externas , a incorporação des tas de te rminações e , f ina lmente , as ações . 1 1 8

114 LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente, p. 214-216.115 BURKE, P. O que é História Cultural?, p. 76, 77.116 Ibid., p. 78.117 CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a história. Topoi, Rio de Janeiro, URFJ, n. 4, p. 139, 2002.118 Id., ibid., p. 152.

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Chartier comenta ainda detalhes sobre o percurso de um caminho

metodológico a partir do pensamento de Bourdieu:Mas o mais impor tan te é t raba lhar com Bourdieu ( . . . ) Traba lha r os seus conce i tos , mas i r a lém, t r aba lha r com as suas per spect ivas , com a idé ia de um pensamento re lac ional e a repulsa à pro jeção universa l de ca tegor ias h is tor icamente def in idas . ( . . . ) Exis te a poss ib i l idade de um t raba lho com Bourdieu que não é s implesmente a reprodução de sua teor ia , mas a capacidade de uma inovação propos ta por seus ins t rumentos t eór icos , ana l í t i cos e cr í t i cos . 1 1 9

Chartier destaca, por exemplo, a contribuição da obra As Regras de Arte, de

Bourdieu, para a transformação das práticas de historiadores culturais. Primeiramente, porque

esse trabalho se contrapõe aos postulados clássicos da literatura e da arte calcados na “figura

do criador incriado – ou seja, na idéia de que cada obra possui uma singularidade irredutível

(...) na idéia de que há uma disposição universal ao juízo estético”.120 Sublinha a necessidade

de se reintroduzir a dimensão histórica às categorias que, muitas vezes, são tomadas como

universais e invariáveis. É preciso situar as expressões culturais em cada momento histórico

particular, definindo o seu contexto, “por quais razões foram estabelecidas e marcar a

impossibilidade de utilizá-las retrospectivamente sem precaução e sem risco de

anacronismo”.121 Outra contribuição, nesta obra, reside na inserção dos agentes culturais em

uma rede de relações visíveis ou invisíveis presentes nos respectivos campos em que estão

inseridos. Essas relações se manifestam em formas de coexistência, de sociabilidade, ou de

relações entre indivíduos ou de relações mais abstratas ou estruturais que organizam o

campo. A idéia do pensamento relacional permite, assim, “repelir a idéia do indivíduo

isolado, do gênio singular e também a idéia de uma universalidade das categorias” de

atribuição de sentido.122

Bourdieu não tem como metodologia pensar a teoria de forma separada de

sua pesquisa empírica. Os conceitos empregados por esse autor não são construídos para

depois serem testados na prática, como se a teoria precedesse a prática de uma forma

mecânica. Os conceitos são construídos na medida em que a análise empírica vai criando

necessidade desses. Nessa proposição, em sua obra Esboço de Auto-Análise,123 apresenta a

sua própria experiência como objeto de análise e procura entender sua inserção e trajetória no

campo intelectual. Procurando deixar claro que não elabora uma autobiografia, busca refletir

119 Id., ibid., p. 146, 147.120 Id., ibid.121 Id., ibid., p. 140.122 Id., ibid.123BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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sobre o passado “por meio do inquérito que ele mesmo fora refinando como método de

trabalho”.124 Ao analisar sua carreira acadêmica, o autor descreve um método de trabalho

tendo como referenciais os conceitos que nortearam as suas pesquisas. Primeiro, a formação

de seu habitus, marcada pela origem social humilde, pela vivência familiar e pelos ritos de

passagem na adolescência; segundo, a sua inserção no campo acadêmico e a relação com as

respectivas regras nele existentes, marcadas pelo êxito escolar, pela experiência como

sociólogo na Argélia e, principalmente, pelos conflitos causados no campo, tanto pelo espaço

que conquista, quanto pela forma com que o modifica; terceiro, a disputa pela consagração e

pela constituição de um capital simbólico envolvendo as disciplinas e os pensadores nas

ciências humanas no campo intelectual de que faz parte.

Vale dizer que elementos da Antropologia125 consistem em fonte de

reflexão eminente para Bourdieu, principalmente em relação à importância dos sistemas de

relação entre indivíduos e grupos sociais para compreender os fenômenos sociais. Em tal

perspectiva, postula-se que é fundamental considerar dois elementos: primeiro, o sentido que

os agentes conferem às suas ações; segundo, a noção de estratégia, segundo a qual os agentes

sociais têm a capacidade de enfrentar situações imprevistas e constantemente renovadas,

sabendo estabelecer, nos diversos campos sociais, relações entre os meios e os fins para

adquirir bens raros. Nesse sentido, cabe ainda observar que, em termos de filiação teórica,

Bourdieu tem como uma de suas importantes matizes Max Weber, de quem adota

principalmente o papel das representações na análise da sociedade assim como o conceito de

legitimidade. Postulando que o conhecimento da ação social passa pelo sentido que o

indivíduo lhe confere, a posição de Weber se opõe à explicação puramente naturalista,

objetivista, fundando assim a sociologia compreensiva. Em tal perspectiva, a ação humana se

orienta de acordo com um sentido que se deve compreender, para torná-la inteligível. Os

comportamentos humanos têm a especificidade de se deixarem interpretar de modo

compreensivo.

Outra importante contribuição do pensamento de Bourdieu para a pesquisa

historiográfica – e, de modo particular, para a investigação do objeto aqui em análise - reside

na aproximação que consegue promover de aspectos conceituais-metodológicos normalmente

conflitivos na elaboração da pesquisa científica. Segundo ele, essas oposições artificiais não 124Id., ibid., contra-capa.125Pierre Bourdieu desenvolveu trabalho de campo na Argélia. Em 1972, publicou Esquisse d’une théorie de la pratique, obra em que analisa refinadamente fatos sociais como o desafio, o parentesco e a casa cabila. O próprio Bourdieu destaca a importância desta experiência como etnólogo: “Eu me pensava como filósofo e levei muito tempo para confessar a mim mesmo que me tornara etnólogo”, apud BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 14.

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derivam de operações lógicas ou epistemológicas constitutivas da prática que desenvolve o

conhecimento, mas de disputas entre escolas e tradições de pensamento no interior dos

respectivos campos do saber, que promovem suas concepções particulares como se fossem

verdade científica total:Ao longo de sua obra , Bourdieu procurou superar de te rminadas opos ições canônicas que minam a c iência soc ia l por dent ro , como a separação en t re aná l ise do s imból ico e do mater ia l , en t re ind iv íduo e soc iedade , o emba te en tre mé todos quant i t a t ivos e qual i t a t ivos , dual i smos que comprometem uma adequada compreensão da prá t ica humana. ( . . . ) Ass im, inves t iu contra a d iv i são a r t i f i c ia l en t re t eor ia e pesquisa empí r ica , mediante a qual a lguns pesquisadores cu l t ivam a t eor ia por s i mesma, sem mante r uma re lação com obje tos empí r icos prec i sos , enquanto out ros , inve rsamente , desenvolvem uma pesquisa empír ica sem refe rência a ques tões t eór icas . 1 2 6

Desse modo, o caminho metodológico proposto por Bourdieu se torna

referencial para pesquisa historiográfica sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, pelas

razões que seguem: possibilita aproximações de áreas afins do conhecimento e inter-relação

entre teoria e trabalho empírico; permite entender como se deu a formação do habitus de

líderes e fiéis que compõem esse movimento; indica a existência de regras que possibilitaram

a inserção e a atuação dos agentes iurdianos no campo religioso; informa a existência de

conflitos e embates por conquista de capital simbólico; aponta para impactos e mutações

promovidos pelos agentes no referido campo na busca de consagração do poder simbólico;

postula a vivência de práticas que só se tornam funcionais na medida em que atendem ao

“conjunto”, ao elemento coletivo, e não a fatores isolados ou a genialidades individuais.

Assim, considerando que o movimento iurdiano articula uma complexidade de elementos

culturais que envolvem habitus, regras, disputas e poder de consagração - possibilitados pelo

dinamismo do campo em que o referido objeto está inserido - a ênfase dessa pesquisa recai

sobre o conjunto das práticas e das representações.

1.2.1- Representações, prática, habitus

Um dos conceitos fundamentais para a análise e compreensão do universo

religioso é o de “representação”. Roger Chartier refere-se à “representação” como “a pedra

angular de uma abordagem em nível da história cultural”.127 Michel Vovelle afirma que a

“história das representações coletivas” adquiriu atualmente uma importância considerável e

126 MARTINS, Carlos Benedito. Notas sobre a noção de prática em Pierre Bourdieu. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 62, p.165, mar. 2002.127 CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 23.

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constitui, sem dúvida, “uma das transformações mais marcantes da nova historiografia”,

consistindo “uma espécie de mutação de uma história ontem focalizada numa abordagem que

se pretendia objetiva sobre realidades percebidas como tal”.128

Afirma Chartier que as representações consistem em “configurações sociais

próprias de um tempo e de um espaço”, e assim como “as estruturas do mundo social não são

um dado objetivo” - tradicionalmente postuladas como “um real bem real”, existindo por si

mesmo - as representações também não são simples reflexos daquelas”.129 Por isso, há a

necessidade de superação da dúvida cartesiana que pressupõe a idéia do homem sendo

exterior ao seu mundo, de onde decorre a concepção de que a representação é o produto

artificial ou abstrato de seu intelecto. Ponto central na teoria simbólica de Norbert Elias, e

que supera a armadilha da “verdade absoluta” e de sua “impossível” representação, é que os

símbolos, de que compõem a linguagem, por exemplo, possuem certo grau de congruência

com a realidade, com os dados que eles pretendem representar.130 Acrescentam-se a isso as

palavras de Bourdieu:O mundo socia l também é representação e vontade ( . . . ) O que nós cons ideramos como rea l idade soc ia l é em grande pa r te r epresentação ou produto da representação , em todos os sen t idos do te rmo. ( . . . ) (O d i scurso) produz um novo senso comum e ne le in t roduz as prá t i cas e a s exper iências a té en tão tác i ta s ou reca lcadas de todo um grupo, agora inves t ido de l eg i t imidade confe r ida pe la mani fes tação públ ica e pe lo r econhecimento co le t ivo . 1 3 1

Ao falar sobre “pontos de conflitos de classificações” ou de

“afrontamentos”, Chartier afirma apoiar suas escolhas metodológicas em grande medida no

trabalho de Pierre Bourdieu, em particular na sua obra La distinction.132 O emprego desse

conceito fundamenta-se na idéia de que as representações do mundo social, ou seja, a

representação que o indivíduo ou o grupo tem de si mesmo e a representação que tem dos

outros, traduzem-se por meio dos “estilos de vida”; e ainda: a identidade social que se

percebe naquilo que cada grupo mostra de si mesmo e que remete à incorporação mental

coletiva de esquemas de percepção, desemboca na encarnação dessa identidade social nos

elementos que representam esse grupo de uma maneira individual ou coletiva. A definição do

ser social, da identidade social, é dada, portanto, não unicamente a partir de condições

128 VOVELLE, Michel. In: D’Alessio, Márcia Mansor. Reflexões sobre o saber histórico. São Paulo: UNESP, 1998, p. 83.129 CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 23. 130 CARDOSO, C. Flamarion; MALERBA, Jurandir (Orgs.). Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p. 208.131 BOURDIEU, P. Coisas ditas, p. 70, 71, 119.132CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 17.

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objetivas que definem as categorias sociais, mas “do ser percebido por si mesmo ou pelos

outros”, daí a luta constante de classificações: o t rabalho de c lass i f i cação e de l imi tação produz as conf igurações in te lec tua i s múl t ip las , das quai s a rea l idade é cont rad i tor iamente cons t ru ída pe los d i feren tes grupos , seguidamente , a s prá t icas que v i sam faze r reconhecer uma ident idade soc ia l , ex ib i r uma manei ra própr ia de es ta r no mundo, s ign i f icar s imbol icamente um esta tu to e uma pos ição ( . . . ) . 1 3 3

Observa Chartier que as representações do mundo social são historicamente

construídas, “são sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forjam”,134 daí as

dimensões de conflito que envolvem seu espectro de operosidade:Por is so es ta inves t igação sobre a s representações supõe-nas como estando sempre co locadas num campo de concorrênc ias e de compet ições cu jos desaf ios se enunc iam em te rmos de poder e de dominação . As lu tas de representações t êm tan ta impor tânc ia como as lu tas econômicas para compreender os mecanismos pe los quai s um grupo impõe , ou ten ta impor , a sua concepção do mundo soc ia l , os va lores que são seus , e o seu domínio . 1 3 5

Um dos princípios da História Cultural consiste em não separar

artificialmente realidades e representações:A tensão en t re prá t i cas e r epresentações a t ravessa a “nova h i s tór ia soc ia l tan to quanto a nova h i s tór ia cu l tura l” e const i tu i - se num dos e ixos centra i s do deba te a r espei to dos l imi tes do conhecimento h i s tór ico nessas duas áreas . 1 3 6

As representações também têm fortes imbricações com o conceito de

“imaginário” - o qual pode ser identificado como “a teia de sentidos que propicia a

construção dos referentes sociais”137 - ou ainda, como propõe Hilário Franco Júnior: Por “ imaginá r io” en tendemos um conjunto de imagens v i suai s e verbai s gerado por uma soc iedade (ou parce la des ta) na sua re lação cons igo mesma, com out ros grupos humanos e com o univer so em gera l . Todo imaginá r io é , por tan to , co le t ivo , não podendo se r confundido com imaginação , a t iv idade ps íquica ind iv idual . Tampouco pode-se reduz ir o imaginá r io à somatór ia de imaginações . ( . . . ) Porém, por englobar o denominador comum das imaginações , o imaginá r io as supera , in ter fere nos mecanismos da rea l idade pa lpáve l (po l í t i ca , econômica , soc ia l , cu l tura l ) que a l imenta a própr ia imaginação . 1 3 8

133Id., ibid., p. 23.134 Id., ibid., p. 26.135 Id., ibid., p. 17.136 LARA, Silvia H. História Cultural e História Social. Diálogos. Maringá, UEM, n.1, p. 26, 1997.137DUBOIS, Claude Gilbert. O Imaginário da Renascença. Brasília: UNB, 1985, (contra-capa).138JÚNIOR, Hilário Franco. Cocanha: a história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 16, 17.

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Segundo esse mesmo historiador, toda sociedade é ao mesmo tempo

“produtora e produto de seus imaginários”, sendo eles responsáveis por estabelecer “pontes

entre tempos diferentes”, ou seja, promover um trânsito circular entre os elementos de longa

duração - de um ritmo histórico muito lento que compõem a realidade psíquica profunda da

sociedade - com a realidade material externa, a cultura, sendo que “desta, o imaginário leva

para a primeira os elementos que na longa duração histórica podem transformá-la; daquela,

leva para a segunda as formas possíveis de leitura da sociedade sobre ela mesma”.139 Para

Chartier, o imaginário possui modalidades,140 sendo movediços os limites entre essas formas.

E da articulação entre a realidade vivida externamente e a “realidade vivida oniricamente” é

que se dá o suceder dos eventos históricos, sendo também daí construídos conjuntamente os

comportamentos coletivos. Finaliza ressaltando que “um fenômeno imaginário (...) possui

uma trajetória e uma função que devem ser estudadas historicamente”.141

Jacques Le Goff também considera que: De uns t r in ta anos para cá , a h is tór ia do imaginá r io ganha com razão um lugar cada vez ma ior no domínio do saber h i s tór ico . E um c rescente número de h i s tor iadores r econhece que as imagens , as r epresentações , as soc iedades imaginár ia s são tão rea i s quanto as ou t ras , a inda que de manei ra d i feren te , seguindo, uma out ra lóg ica , uma out ra cons i s tência , uma out ra evolução . O imaginár io soc ia l t em, por tan to , uma h is tór ia que faz par te da h i s tór ia g loba l das soc iedades , mas com sua or ig ina l idade e sua especi f ic idade . 1 4 2

Outras considerações sobre o mesmo conceito podem ser observadas na

obra de Laplantine e Trindade.143 Segundo tais autores “a construção da divindade é realizada

a partir do imaginário coletivo”: Uti l i zando como matér ia -pr ima representações s imból icas , os homens cons troem no processo do imaginár io os deuses que consubs tanc ia l izam, que passam a ex is t i r no co t id iano de suas exper iênc ias soc ia is . Ass im, par t indo do rea l , os deuses t ransformam-se e rees t ru turam a rea l idade soc ia l . 1 4 4

Baczko145 empreende análise sobre o imaginário e destaca que no século XIX

se procurou separar o “verdadeiro” e “real” do “ilusório” (crenças mitos etc.), sendo a

139 Id., ibid.140As modalidades de imaginário, segundo Hilário Franco Júnior, podem ser compreendidas da seguinte maneira: a que foca sua atenção em um passado independente para explicar o presente é o que se chama de mito; a que projeta no futuro as experiências históricas - concretas e idealizadas, passadas e presentes - é ideologia; a que parte do presente na tentativa de antecipar ou preparar um futuro que é recuperação de um passado idealizado, é utopia. Cf. Id., ibid., p. 17.141 Id., ibid.142 LE GOFF, J. História, novas abordagens, p. 7, 8.143 LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1996. 144 Id., ibid., p. 16.145 BACZKO, B. Imaginário social. In: Enciclopédia Einaudi. V. 5. Lisboa: Imprensa Nacional, 1985, p. 297.

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operação científica uma operação de “desvendamento e desmitificação”, processo esse

classificador das representações como incongruentes em relação ao que se denominava

realidade. No âmbito das ciências humanas, lembra esse autor, o imaginário gradativamente

passou a ser associado aos adjetivos “social” e “coletivo” para, finalmente, fazer parte da

realidade. Sobretudo a partir do discurso contestatório de maio de 1968, profissionais de

diferentes áreas das ciências humanas, assim como os historiadores, “começaram a

reconhecer, senão a descobrir, as funções múltiplas e complexas que competem ao

imaginário na vida coletiva e, em especial, no exercício do poder” percebendo que “nas

mentalidades, a mitologia que nasce a partir de determinado acontecimento sobreleva em

importância o próprio acontecimento”, quando a imaginação se torna carregada de

simbolismo: “As ciências humanas põem em destaque o fato de qualquer poder (...) se rodear

de representações coletivas. Para tal poder, o domínio do imaginário e do simbólico é um

importante lugar estratégico”.146

Nesse sentido, Baczko pergunta: “não são as ações efetivamente guiadas

por estas representações; não modelam elas os comportamentos; não mobilizam elas as

energias?” E argumenta:O imaginá r io soc ia l é , des te modo, uma das forças reguladoras da v ida co le t iva . As referências s imból icas não se l imi tam a ind icar os ind iv íduos que pe r tencem à mesma soc iedade , mas def inem também de forma mais ou menos prec i sa os meios in te l ig íve is das suas r e lações com ela , com as d iv i sões in ternas e a s ins t i tu ições soc ia is . O imaginá r io soc ia l é , po i s , uma peça e fe t iva e ef icaz do d ispos i t ivo de cont ro lo da v ida co le t iva e , em espec ia l , do exe rc íc io da autor idade e do poder . Ao mesmo tempo, e le to rna-se o lugar e o obje to dos conf l i tos soc ia i s . 1 4 7

Um outro conceito diretamente relacionado ao de “representação” é o de

“prática”, uma vez que as representações são “construídas a partir de práticas plurais e

contraditoriamente complexas, múltiplas e diferenciadas”, afirma Chartier, acrescentando ser

necessário “articular a relação entre representações das práticas e práticas de representação”: Const i tu i r como representações os ves t íg ios ( . . . ) que ind icam as prá t i cas cons t i tu t ivas de qualquer ob je t ivação h i s tór ica ; e e s tabe lece r h ipote t icamente uma re lação en t re a s sér ie s de r epresentações , cons t ru ídas e t r abalhadas enquanto ta is , e as prá t i cas que cons t i tuem o seu refe ren te ex terno . 1 4 8

Chartier associa “práticas” a um outro conceito que pode lhe servir como

fundamento: o habitus - que Bourdieu conceitua nos seguintes termos:

146 Id., ibid.147 Id., ibid., p. 310.148 CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 86, 87.

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Por sua própr ia e t imologia – habi tus é o que fo i adquir ido , do ve rbo habeo - , dev ia s ign i f ica r mui to concre tamente que o pr inc íp io das ações ou das r epresentações e das operações da const rução da rea l idade soc ia l , p ressupos tas por e las , não é um su je i to t ranscendenta l ( . . . ) É o habi tus , como es t ru tura e s t ru turada e e s t ru turan te , que engaja , nas prá t i cas e nas idé ias , esquemas prá t icos de cons t rução or iundos da incorporação de es t ru turas soc ia i s or iundas , e las própr ias , do t rabalho h i s tór ico de gerações sucess ivas ( . . . ) . 1 4 9

A partir desse elemento são identificados os esquemas geradores das

práticas, os quais podem ser chamados de cultura, competência cultural, ou seja, habitus. Tais

sistemas de esquemas de percepção, apreciação e ação, permitem tanto operar atos de

reconhecimento prático como também engendrar estratégias adaptadas e incessantemente

renovadas, situadas nos limites estruturais de que são o produto e também que as definem,

chamadas, por isso, de “estruturas estruturadas e estruturantes” que viabilizam a própria vida

social.150 Dentro de tal perspectiva, o habitus se constitui matriz e “condição de toda

objetivação”, a partir do que os códigos de comportamento e as estruturas sociais são

internalizadas pelo indivíduo, tornando-se então um sistema de estruturas interiorizadas.151

Analisando o emprego desse conceito, Chartier afirma:O conce i to de representação que Bourdieu u t i l i za , o conce i to de c lass i f i cação – de lu ta de representação , de lu ta de c lass i f i cação – se tornou uma ca tegor ia essencia l , porque permi te ins ta lar a aná l i se dent ro da herança da socio logia e da an t ropologia fundadora de Mauss e Durkheim. E a ca tegor ia de representações co le t ivas , t a l como fo i def in ida por Durkheim e Mauss , aponta para a incorporação , dent ro do ind iv íduo , do mundo soc ia l a par t i r de sua própr ia pos ição dentro deste mundo, como se as ca tegor ias menta i s fossem resu l tado da incorporação das d iv i sões soc ia i s e def in i ssem para cada ind iv íduo a manei ra de c lass i f i car , fa la r ou a tua r . 1 5 2

Chartier apresenta ainda outra definição para “representação” que muito se

aproxima do conceito de habitus: A noção de “representação co le t iva” ( . . . ) pe rmite conc i l i a r a s imagens menta i s c la ras ( . . . ) com esquemas in te r ior izados , as ca tegor ias incorporadas , que as geram e a es t ru turam. ( . . . ) Des ta forma , pode pensa r-se uma h i s tór ia cu l tura l do socia l que tome por obje to a compreensão das formas e dos mot ivos – ou , por ou t ras pa lavras , das r epresentações do mundo soc ia l – que , à r eve l ia dos a tores soc ia i s , t raduzem as suas pos ições e in teresses obje t ivamente conf rontados e que , pa ra le lamente , descrevem a sociedade ta l como pensam que e la é , ou como gos tar iam que fosse . 1 5 3

149BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 158.150 Id. Meditações pascalianas, p. 169.151Id. A economia das trocas simbólicas, p. XLVII.152CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a história, p. 152.153Id. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 19

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Como referenciais de análise mais especificamente sobre o objeto de estudo

desta pesquisa, podem ser apontados alguns aspectos fundamentais do uso dos conceitos

anteriormente identificados para uma compreensão das práticas e representações que

envolvem a Igreja Universal do Reino de Deus. Em primeiro lugar, por esses conceitos

indicarem os mecanismos internos mediantes os quais se produz a filiação dos indivíduos ao

movimento iurdiano. Nesse sentido, pode se tomar como ponto de partida que a adesão dos

fiéis ocorre mediante uma socialização engendrada por um habitus, através do qual se

assimilam as normas, os valores e as crenças. Logo, criam-se relações sociais comuns

envolvendo pessoas que compartilham do mesmo habitus.154 Nasce, conseqüentemente, a

noção de uma comunidade religiosa, em que são produzidas e objetivadas práticas, revestidas

de sagrado, que respondem às necessidades e anseios daquele grupo social. Assim,

orquestradas por um habitus, as práticas e as representações iurdianas, enquanto produção

social dos agentes, líderes e fiéis, assumem plausibilidade, coerência e sentido para os que

estão inseridos ou fazem parte do respectivo grupo.

Em segundo lugar, o habitus é responsável por estabelecer um “certo grau

de coincidência e acordo entre as disposições dos agentes mobilizadores e as disposições dos

grupos aos quais aqueles se dirigem”, ou seja, as aspirações, reivindicações e interesses dos

adeptos iurdianos acabaram por encontrar na mensagem de seus líderes uma “conduta

exemplar ajustada às exigências do habitus mediante um discurso novo que reelabora o

código comum que cimenta tal aliança”.155 Dessa forma, a ação dos fiéis iurdianos não

decorre, por exemplo, “da obediência a regras” estabelecidas pela coação ou imposição do

líder; as práticas, ali, são coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora

de um único “maestro”.156 O habitus, pois, dirige as práticas e os pensamentos à maneira de

uma força, mas sem constranger mecanicamente; ele também guia a ação ao modo de uma

necessidade lógica, “sem se impor como se aplicasse uma regra ou se submetesse ao veredito

de uma espécie de cálculo racional”.157 Verifica-se que “os agentes põem em prática

estruturas históricas”,158 por meio do habitus, a partir das quais criam-se “as disposições” -

que estão em tensão com o campo que as solicita, estimula e justifica – que lhes dão razões

para crer e pensar, reunindo, assim, os que participam dos mesmos desafios e anseios. As

práticas iurdianas, portanto, dão-se mediante uma “relação ontológica”, uma “cumplicidade

154Cf. BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 75.155 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 91.156Id., Le sens pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980, p. 88, 89, apud BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 77.157BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 213.158Id., ibid., p. 160.

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infraconsciente, infralingüística”, entre líderes e fiéis, desmistificando as pressuposições de

“enganador e enganado”. 159

Terceiro, esses conceitos ajudam a entender as mobilidades da história. Isto

se constitui importante parâmetro de análise para as transformações, impactos e mutações

promovidos pelo movimento iurdiano no campo religioso brasileiro. Constituindo-se pela

socialização das práticas, o habitus conjuga, simultaneamente, ações que promovem

transformações no respectivo campo, ao mesmo tempo em que é transformado por ele,

tornando-se desse modo “produto da história, fundamento das práticas e das ações”.160 Por

isso, a “práxis está na raiz do conceito de habitus”.161 A história se torna corpo, instituição

incorporada, atividade prática, engendrada por um habitus diretamente ajustado às tendências

imanentes do campo: “É um ato de temporalização através do qual o agente transcende o

presente imediato pela mobilização prática do passado (...) O habitus temporaliza-se no

próprio ato pelo qual se realiza”.162 Essa flexibilidade de reestruturação é capaz de adaptar-se

ou ajustar-se em função das necessidades inerentes às situações novas criadas pelo próprio

dinamismo da história. Bourdieu classifica essa prática cotidiana em termos de

“improvisação sustentada” – com certos princípios que regulam - numa estrutura de

esquemas inculcados pela cultura tanto na mente como no corpo, em forma de habitus,163 o

qual, como produto da história, é um sistema de disposição aberto, que está incessantemente

diante de experiências novas e, logo, incessantemente afetado por elas: É duradouro , mas não imutáve l . Di to i s so , devo ac rescenta r imedia tamente que a ma ior ia das pessoas es tá es ta t i s t i camente des t inada a encontrar c i r cuns tâncias af inadas com aquelas que modelaram or ig inar iamente o seu habi tus e , por conseguin te , a te r exper iênc ias que v i rão reforça r a s suas d ispos ições . 1 6 4

De acordo com tal perspectiva, pode-se observar o que Bourdieu chama de

“reprodução cultural”, entendida como transmissão cultural em um processo contínuo de

criação, mediante uma apropriação ou recepção criativa. Essa reconstrução permanente é

impulsionada, em parte, pela necessidade de adaptar tradições a novas circunstâncias, “pela

busca de encontrar soluções para os problemas humanos e as necessidades da situação”.165

159 Id., ibid., p. 171.160 Id., ibid., p. 160.161 BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 19.162 Id. Razões práticas, p. 160, 161.163BURKE, P. O que é História Cultural?, p. 77.164BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, L. J. D. Réponses... Pour une anthropologie réflexive. Paris: Le Seuil, 1992, p. 108, 109. Tradução de Lucy Magalhães. 165BURKE, P. O que é História Cultural? , p. 130.

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Em quarto lugar, o habitus promove processos de “apropriação”, decorrente

de práticas que, por sua vez, passam a configurar novas práticas, num processo mútuo que se

alimenta continuamente. Esse processo consiste num elemento importante para a produção de

uma história cultural da Igreja Universal, por apontar as raízes mais profundas ou

temporalmente mais expansivas de suas práticas. Desse modo, o movimento iurdiano pode

ser melhor situado como parte de um processo histórico que se estende na longa duração do

campo religioso brasileiro.A noção de apropr iação pode se r , desde logo , re formulada e colocada no cent ro de uma abordagem de h i s tór ia cu l tura l que se prende com prá t icas d i fe renc iadas . ( . . . ) A apropr iação , t a l como a entendemos, t em por obje t ivo uma h is tór ia soc ia l das in terpre tações , r emet idas para as suas de te rminações fundamenta i s (que são socia i s , ins t i tuc ionais , cu l tura i s ) e insc r i ta s nas prá t icas espec í f icas que as produzem. 1 6 6

Vale dizer que esse processo de “apropriação” ocorre mediante “práticas

diferenciadas, com utilizações contrastadas, pondo em relevo a pluralidade dos modos de

emprego e a diversidade” de elementos que estão constituídos no “campo” em que os agentes

sociais estão inseridos,167 como o veremos a seguir.

1.2.2 - Campo, capital simbólico

As sociedades contemporâneas, segundo Pierre Bourdieu, são constituídas e

organizadas por diversos “campos”, os quais têm “leis próprias” e são relativamente

“autônomos”:168 Chamo campo, o univer so no qual es tão inser idos os agentes e as ins t i tu ições que produzem, reproduzem ou d ifundem a a r te , a l i t e ra tura , a c iência , os bens s imból icos . Esse unive rso é um mundo socia l como os out ros , mas que obedece a le i s soc ia i s ma is ou menos especí f icas . ( . . . ) A noção de campo es tá a í para des ignar esse e spaço re la t ivamente au tônomo, esse mic rocosmo dotado de suas l e i s própr ias . 1 6 9

De modo geral, todo campo exerce pedagogicamente sobre seus agentes um

processo de socialização que tem como efeito fazê-los adquirir os saberes necessários a uma

inserção correta nas relações sociais.

166 CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 26, 27.167 Id., ibid.168 BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 147, 148.169 Id. Os usos sociais da ciência. Por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Edunesp, 2004, p. 20.

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O campo es t ru tura o habi tus , que é o produto da incorporação da necess idade imanente desse campo ( . . . ) Mas é também uma re lação de conhecimento ou de cons t rução cogni t iva : o habi tus contr ibu i para cons t i tu i r o campo como mundo s igni f ican te , do tado de sen t ido e de va lor ( . . . ) E , quando o habi tus en t ra em re lação com um mundo socia l do qual e le é produto , sen te -se como um pe ixe dent ro d’água e o mundo lhe pa rece na tura l . 1 7 0

Os campos não são estáticos, sendo por isso transformados pelo dinamismo

da história, mediante as práticas dos agentes que nele se enfrentam, promovendo relações de

força e conseqüentes mutações:Todo campo é um campo de forças e um campo de lu tas para conse rvar ou t r ansformar e sse campo de forças . ( . . . ) São lugares de r e lações de forças que impl icam tendências imanentes e probabi l idades obje t ivas . 1 7 1

O conceito de campo contrapõe as determinações “socioeconômicas na

definição mais tradicional da sociologia, da história social e a produção simbólica de idéias

ou de obras”, como afirma Chartier,172 que acrescenta:Há em Bourdieu ( . . . ) uma repulsa de uma mane ira s imples de pensa r o de terminismo socia l , como se houvesse uma adequação imedia ta ent re a e scolha de uma esté t i ca ou um enunciado ideológico e a pos ição socia l do ar t is ta , do escr i tor , do pensador ou do ind iv íduo . ( . . . ) Porque , como demons t ra Bourdieu , há em cada campo pr inc íp ios de organização que são própr ias des te campo. 1 7 3

As práticas dos agentes produzem, pois, bens simbólicos, ou capital

simbólico, que por sua vez passam a constituir os referenciais das “representações”

vivenciadas pelos respectivos integrantes de um dado campo:Chamo de capi ta l s imból ico qualquer t ipo de capi ta l , pe rcebido de acordo com as ca tegor ias de percepção , os pr inc íp ios de v i são e de d iv isão , os s i s temas de c lass i f i cação ( . . . ) p roduto da incorporação das e s t ru turas ob je t ivas do campo cons iderado . O capi ta l s imból ico é que faz com que reverenciemos Luís XIV, que lhe façamos cor te , com que e le passe a dar ordens e que essas ordens se jam obedecidas , com que e le possa desc lass i f i car , r ebaixa r , consagrar , e tc . Só ex i s te na medida em que todas as pequenas d i fe renças , a s marcas su t is de d i s t inção na e t ique ta e nos n íve i s soc ia i s , nas prá t i cas e nas ves t imentas , tudo o que compõe a v ida na cor te , se jam percebidas pe las pessoas que conhecem e reconhecem, na prá t i ca (que incorporam), um pr inc íp io de d i fe renc iação que lhes permi te r econhecer todas essas d i ferenças e a t r ibu i - lhes va lor ( . . . ) O capi ta l s imból ico é um capi ta l com base cogni t iva , apoiado sobre o conhecimento e reconhecimento . 1 7 4

170 BOURDIEU, P. ; WACQUANT. L. J. D. Op. cit., p. 175, 176. 171 BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência. Por uma sociologia clínica do campo científico, p. 22.172 CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a história, p. 141.173 Id., ibid.174BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 149, 150.

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Ao retomar Weber, Bourdieu amplia assim a importância dessa dimensão

simbólica na explicação dos fenômenos sociais, aprofundando a análise sobre a legitimidade

para mostrar como os agentes sociais de um dado campo a produzem, para fazer com que

sejam reconhecidos a sua competência, o seu status e o poder ostentado. Os conceitos de

campo e capital simbólico, anteriormente identificados, consistem em fundamentais

parâmetros para se desenvolver uma história cultural da Igreja Universal pelas razões que

agora passamos a analisar.

Em primeiro lugar, o campo se apresenta como lugar de produção coletiva

da imagem de poder do líder perante os fiéis. Através de uma legitimidade delegada pelos

membros do grupo estabelecidos no próprio campo, a autoridade se perpetua sem recorrer à

coação. Tal legitimidade se define, assim, em sentido geral, como a qualidade daquilo que é

aceito e reconhecido pelos membros do respectivo grupo social, no caso, o movimento

iurdiano. Ocorre ali, pois, a produção da crença a partir do que a própria crença é capaz de

produzir. Nesse sentido, durante longo tempo se fez “uma sociologia da cultura” que se

fixava no seguinte ponto: “como é produzida a necessidade do produto?” Ou seja,

“procurava-se estabelecer relações entre um produto e as características sociais dos

consumidores”.175 Bourdieu propõe um avanço nesse viés de análise compreendendo que o

“próprio das produções culturais é que é preciso produzir a crença no valor do produto”,

processo este coletivo:se , que rendo produzi r um obje to cu l tura l , qua lquer que se ja , eu não produzo s imul taneamente o univer so de crença que faz com que se ja r econhec ido como um obje to cu l tura l como um quadro , como uma natureza mor ta , se não produzo i sso , não produzi nada , apenas uma coisa . Di to de out ra mane ira , o que ca rac ter iza o bem cul tura l é que e le é um produto como os outros , mas com uma c rença que e la própr ia deve se r produz ida . 1 7 6

Cabe citar, a título de comparação, a obra Os Reis Taumaturgos, de Marc

Bloch,177 na qual se afirma, em relação à crença do milagre régio, que o “verdadeiro

problema é entender como se pôde acreditar em seu poder taumatúrgico”.178 Ao estudar o

elemento das representações coletivas, Bloch examina a história do surgimento e da longa

permanência, na França e na Inglaterra, da fé de amplas camadas da população na força

175CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 238.176BOURDIEU, P. A leitura: uma prática cultural. Debate com Roger Chartier. In: CHARTIER, R. (Org.). Práticas da leitura, p. 240.177 A esta obra se atribui certo pioneirismo na elaboração de uma história com interface antropológica. Cf. BLOCH, Marc. Op. cit, p. 9.178Id., ibid., p. 274.

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milagrosa dos seus monarcas.179 Tal pesquisa tem como ponto de partida e inspiração as

experiências pessoais vividas por Bloch, durante a Guerra de 1914-18. No campo de batalha,

inicialmente, sua atenção foi despertada para investigar como a propagação de “notícias

falsas” entre os soldados - sob o filtro e a manipulação dos escritos pelo exame repressivo -

exercia influência sobre eles antes e depois de serem confrontadas com a “realidade” dos

acontecimentos. Assim, compreendendo o passado pelo presente, esse autor reporta-se ao

milagre régio constatando que a força da lenda e do mito, legada por substratos da tradição

oral, sobrepõe-se ao que se convenciona chamar de verdadeiro, racional ou cientificamente

comprovável. Dessa forma, mesmo que o poder taumatúrgico do rei fosse uma “gigantesca

notícia falsa” - uma vez que “apenas uma parcela dos doentes recuperava a saúde”; ou ainda

que as feridas, na verdade, desaparecessem de “forma espontânea”, para reaparecerem mais

tarde, a idéia da realeza santa e do milagre régio continuava a ser propagada com a força de

um testemunho acumulado em várias gerações, cujo imaginário não pressupunha o juízo da

dúvida. Além do que, ocorria aí uma plausibilidade que lhes conferia sentido à vida. Em

suma, a existência do milagre se dava na mesma proporção em que se acreditava nele. Assim

entendido, o poder sacro e curativo dos reis era elemento que representava “um tesouro de

legendas, de ritos curativos, de crenças meio eruditas, meio populares”, ancorado em fatos

que adquiriram identidade histórica em determinada época, circunstâncias e contexto.180

Em segundo lugar, o campo religioso é espaço onde alguns agentes

disputam e adquirem maior capital simbólico do que outros. Notadamente se observa como

um dos elementos característicos presentes nas práticas da Igreja Universal a existência de

uma “grife do nome” de seu líder-fundador e as representações de poder que dele se acercam:

o nome “Igreja Universal” quase que automaticamente remete à expressão “igreja do bispo

Macedo”. Edir Macedo ganhou capital e poder simbólicos não somente no âmbito do grupo,

mas também como referência das novas expressões religiosas no Brasil contemporâneo. Os

demais que ostentam titulação diferenciada, na IURD - obreiros, pastores e bispos – tornam-

se igualmente agentes admirados perante o grupo, ostentando posições de destaque,

adquirindo maior capital simbólico, à semelhança do que analisa Bourdieu quando elabora

179 Ruy de Oliveira Andrade Filho analisa, com profundidade, como a partir de origens vétero-testamentárias, acrescido por diferentes influências históricas, o rito da unção régia foi incorporado por monarcas medievais, através do qual reforçavam perante o povo o caráter divino da sua autoridade. Ver ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e reflexo: religiosidade e monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séc. VI – VII). São Paulo: USP, 1997. 250 fl. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de São Paulo, 1997.180 BLOCH, M. Op. cit., p. 23, 187.

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uma síntese original da clássica tipologia weberiana181 sobre os agentes religiosos: sacerdote,

profeta, mago/feiticeiro – aspectos esses que serão detalhadamente abordados mais adiante

nesta pesquisa. Ainda dentro desse item, é preciso fazer uma observação: ao se pensar sobre a

trajetória de vida de um dado personagem deve-se estabelecer a articulação entre essa

trajetória e o campo em que está inserido, ou seja, “a sua trajetória social, a sua condição, o

seu estado, a sua profissão, as suas produções durante toda a sua vida”:Não se pode pensar a v ida de um indiv íduo sem s i tuá- la de forma re lac ional , dent ro do espaço g loba l ou espec í f ico no qual se encontra . E ve r que e le pode mudar , porque e le mesmo muda ou porque muda o espaço . A t ra je tór ia ind iv idua l e s tá v inculada a um mundo soc ia l in te i ro . O indiv íduo es tá em re lação com os out ros . Des ta manei ra , a b iogra f ia sempre impl ica em cole t iv idade . 1 8 2

Assim, para se entender a atuação cultural-religiosa do líder iurdiano, que

demonstra “levar a cabo um projeto criativo original”, é preciso, antes, “recriar o

enovelamento de experiências que estão na raiz de disposições conducentes”, historicamente

situadas.183 Ou seja, é necessário ter como ponto de partida não a “genialidade pessoal” do

líder como fator de êxito do segmento que fundou e comanda, mas sim, a capacidade de

criação coletiva do campo, cujas regras permitiram construções inovadoras de um capital e de

um poder simbólicos desses agentes que adquiriram maior projeção e visibilidade social.

1.3 - Fontes para pesquisa historiográfica sobre a Igreja Universal do Reino de Deus

O método do historiador está diretamente relacionado à seleção das fontes e

ao modo de interpretá-las. Enquanto investigador, “não deve se apoiar apenas em enunciados

diretos das fontes, situadas na superfície”, mas com “espírito escrutador” deve fazer

renovadas perguntas, a partir de um ou mais problemas “formulados com precisão”. 184

Em relação ao uso de fontes para investigação da Igreja Universal do Reino

de Deus, cabe inicialmente dizer que as práticas iurdianas caracterizam a passagem de um

pentecostalismo de oralidade para um tipo de religião que faz do rádio e da televisão, ao lado

da escrita, suas principais formas de expressão. Em vista disso, a IURD se apresenta ao

pesquisador com um amplo leque de possibilidades de fontes para análise e investigação.

181Tem-se procurado estabelecer o devido limite dos conceitos de Weber, tirados da tradição judaico-cristã (mago, sacerdote, profeta, leigo, igreja, seita, carisma), uma vez que são elementos atribuídos por Weber ao modelo de campo religioso da cristandade européia. Mas, vale dizer também, que este limite não é somente de Weber e sim da sociologia da religião de um modo geral.182 CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 175.183 BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 9.184 GURIÊVITCH, Aaron. A síntese histórica e a escola dos anais. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 61.

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Conseqüentemente, essa nova realidade exige que o historiador desenvolva novas e

cuidadosas maneiras de coletar dados e utilizá-los como documentos investigativos, de modo

que o princípio em relação às fontes continue mantendo algumas de suas diretrizes básicas: Todo documento deve se r ana l i sado a par t i r de uma c r í t ica s is temát ica que dê conta de seu es tabelec imento como fonte h i s tór ica (da tação , au tor ia , condições de e laboração , coe rência h i s tór ica do seu “ tes temunho”) e do seu conteúdo (potenc ia l in format ivo sobre um evento ou um processo h is tór ico) . 1 8 5

As fontes de investigação utilizadas nesta pesquisa se compõem de duas

principais modalidades: documentos próprios da Igreja Universal e pesquisa de campo.

1.3.1 - Documentos próprios da Igreja Universal

Podem ser considerados documentos próprios para a pesquisa sobre a IURD

os livros do bispo Macedo, assim como de outros pastores sob seu comando; o site oficial da

igreja na rede mundial de computadores; o jornal Folha Universal; as revistas Plenitude186 e

Mão Amiga187 - ambas com tiragem bimestral; material recolhido durante a observação

participante nos cultos, tais como panfletos ou objetos com dizeres gravados; além de

gravação de programas de rádio e TV.

Em relação à primeira modalidade de fontes, destaca-se que Edir Macedo

possui várias obras publicadas, as quais contemplam temáticas que demonstram não apenas a

perspectiva de ação da IURD, mas também a visão desse líder sobre a sociedade assim como

a produção teológica dela decorrente. Identificam-se as seguintes publicações

disponibilizadas como fontes para esta pesquisa:

MACEDO, Edir. Caráter de Deus. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1986.

____. Pecado e arrependimento. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1986.

____. O avivamento do Espírito de Deus. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1986.

____. As obras da carne & os frutos do Espírito. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal,

1986.

____. Nos passos de Jesus. 8 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1986.

____. O diabo e seus anjos. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1995.

185NAPOLITANO, Marcos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 266.186 Destaca os cultos e grandes eventos realizados pela IURD, com ênfase nas atividades do bispo Macedo.187 Considerada o braço de divulgação do trabalho assistencial da IURD.

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66

____. Mensagens. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1995.

____. O perfeito sacrifício. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1996.

____. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? 14 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e

Editora Universal, 1990.

____. O despertar da fé. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1997.

____. O poder sobrenatural da fé. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1997.

____. Vida com abundância. 10 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1990.

____. Apocalipse hoje. 3 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1990.

____. A libertação da teologia. 7 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1990.

____. O Espírito Santo. 4 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1992.

____. Aliança com Deus. 2 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1993.

Também são utilizados:

ESTATUTO E REGIMENTO INTERNO DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE

DEUS. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, s.d.

UNIVERSAL: IGREJA DO REINO DE DEUS. Louvores do reino. Rio de Janeiro: Gráfica e

Editora Universal, 1998.

CABRAL, J. Entre o vale e o monte. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1998.

HELDE, Sérgio von. Um chute na idolatria. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal,

1999.

Quanto ao site da IURD cabe observar que são atualizadas diariamente as

principais atividades que envolvem a igreja, destacando-se a palavra do bispo Macedo, o

depoimento de fiéis, informações sobre as ênfases dadas aos cultos e “campanhas de fé”.

Assim, o procedimento metodológico consistiu em fazer download dessas informações,

catalogando-as em forma de texto para a devida análise e investigação.

Em relação ao jornal Folha Universal, órgão oficial da Igreja, destaca-se a

qualidade com que é confeccionado - em quatro cores, no mesmo formato dos jornais

tradicionais do eixo Rio-São Paulo - assim como a sua qualidade e circulação: chega a cada

templo da Igreja sempre aos sábados, para ser gratuitamente distribuído, com uma tiragem

semanal de aproximadamente dois milhões de exemplares. Vários são os assuntos ali

abordados: economia, política, saúde, cultura, esportes e, evidentemente, religião. Nesse

item, destaca-se a coluna inicial reservada à “palavra do bispo Macedo”, na qual esse líder

informa e comenta o principal tema ou “campanha de fé” que a igreja desenvolverá na

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respectiva semana. Também se destaca a coluna dos “testemunhos de fé”, dedicada aos

depoimentos dos fiéis, em que se relatam os “milagres” recebidos nas diferentes

programações da igreja. O jornal é bastante acessível ao pesquisador, fica diariamente

disponível ao público à entrada de seus templos, podendo também ser acessado pelo site oficial.188 Além do que, há um acervo atualizado do mencionado jornal no Centro de

Documentação e Pesquisa em História - CDPH, da Faculdade Teológica Sul Americana, em

Londrina – PR.189

A utilização das fontes, até aqui mencionadas, para estudo da IURD coloca

o pesquisador frente a aspectos que envolvem a história da leitura, no desenvolvimento de

“uma história cultural em busca de textos, de crenças e de gestos aptos a caracterizar a

cultura (...).190 Entendendo que “a leitura e sua compreensão permitem o acesso à

inteligibilidade do passado”, o historiador Cláudio DeNipoti destaca a “circulação de idéias”

advindas dessa prática: A le i tura passa a se r v i s ta como um obje to poss íve l da h i s tór ia , em par t i cu la r da h i s tór ia cu l tura l ( . . . ) A le i tura tem s ido t ra tada como obje to de pesquisa e aná l ise , u t i l i zando-se de d iver sas abordagens ( . . . ) confrontando os d ive rsos momentos h is tór icos e soc iedades com as d i fe ren tes formas de l e i tura que foram desenvolv idas ( . . . ) Marcadamente inf luenciada por concei tos an tropológicos , de cu l tura (no caso de R. Darn ton , pa r t icu larmente a an tropologia in te rpre ta t iva de r ivada de Cl i f ford Geer tz) a h i s tór ia da l e i tura busca apreender a c i r cu lação das idé ias ( . . . ) . 1 9 1

Considerando como a história do livro tem se desenvolvido nestes últimos

vinte anos, Chartier avalia que é preciso avançar e propõe que a história da leitura seja

entendida como “história de uma prática cultural”, o que pode representar “um novo avanço”

na investigação dessa temática. Para isso, é necessário que se investiguem os “usos dos

manuseios, das formas de apropriação e leitura dos materiais impressos”, entendendo que

esse conjunto de atos dá aos textos significados plurais e móveis. Por isso, a utilização de tais

fontes para o trabalho historiográfico deve ser pensada no encontro de maneiras de ler -

coletivas ou individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas ou públicas - com protocolos

inseridos no objeto lido; ou ainda, numa imbricação triangular estabelecida entre “três pólos:

o texto, o objetivo que lhe serve de suporte e a prática que dele se apodera”.192

188http:// www.arcauniversal.com.br .189 Rua Martinho Lutero, 277 – Londrina – PR.190 CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 7.191 DENIPOTI, Cláudio. A sedução da leitura: livros, leitores e história cultural – Paraná (1880 – 1930). Curitiba: UFPR, 1998, p. 14, 15. 300 fl. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná, 1998.192 CHARTIER, R. Práticas da leitura, p. 78.

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É preciso entender, então, que as significações dos textos, quaisquer que

sejam, são constituídas diferencialmente pelas leituras que se apoderam deles, dando assim

ao ato de ler “o estatuto de uma prática criadora, inventiva, produtora”, não devendo por isso

ser anulada no texto lido, “como se o sentido desejado por seu autor devesse inscrever-se

com toda imediatez e transparência, sem resistência nem desvio, no espírito de seus

leitores”.193

A leitura, representando “o esforço eterno do homem para encontrar

significado no mundo que o cerca e no interior de si mesmo”,194 carrega consigo um

fertilíssimo substrato cultural que se desenvolve no processo histórico:A le i tura t em uma h is tór ia . Não fo i sempre e em toda pa r te a mesma. Podemos pensar ne la como um processo d i re to de se ex tra i r in formações de uma página ; mas se cons idera rmos um pouco mais , concordar íamos que a in formação deve ser e squadr inhada , r e t i rada e in te rpre tada . Os esquemas in terpre ta t ivos per tencem a conf igurações cu l tura i s , que têm var iado enormemente a t ravés dos t empos . Como nossos ances t ra i s v iv iam em mundos menta i s d i feren tes , devem te r l ido de forma d i feren te , e a h i s tór ia da le i tura pode se r t ão complexa , de f a to , quanto a h i s tór ia do pensamento . 1 9 5

Pierre Bourdieu considera que t em s ido unive rsa l izado o conce i to da le i tura es t ru tura l , que pensa o t ex to por e le mesmo, au to-suf ic ien te e procura ne le mesmo sua verdade , o que o cons t i tu i como auto- suf ic ien te e procura ne le mesmo encont rar sua verdade . 1 9 6

Acrescenta esse autor que é preciso “historicizar nossa relação com a

leitura” como uma “forma de nos desembaraçarmos daquilo que a história pode nos impor

como pressuposto inconsciente”.197 Na obra Práticas da Leitura, sob organização de Chartier,

ressalta-se que devido à “crença no poder do livro”, “num primeiro momento, a leitura pode

parecer um ato tão somente mecânico”, no entanto, é um ato que requer aprendizagem:A esc r i t a e a l e i tu ra não são obje tos de um procedimento espontâneo de aquis ição: t r a ta- se a í necessa r iamente de prá t i cas soc ia i s ins t i tu ídas em que o s imples o conta to com os e scr i tos e a observação das l e i turas , s i l enc iosas ou não , não são suf ic ien tes pa ra t ransmi t i r . 1 9 8

Tal prática consiste, pois, num “fenômeno cultural” que tem sintonia com o

enraizamento dos grupos sociais que a desenvolvem. Ao aprender a ler, a pessoa reinveste,

193 Id., ibid.194 DARNTON, Robert. A história da leitura. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 219.195 Id., ibid., p. 234.196CHARTIER, R. Práticas da leitura, p. 233.197 Id., ibid.198 Id., ibid., p. 26.

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no domínio do escrito, as práticas culturais mais gerais do seu meio imediato. Portanto, o ato

de ler é, em grande parte, “um processo de produção de sentido, fazendo uma capitalização

cultural específica de cada leitor”, o qual reativa suas aquisições culturais anteriores.

Portanto, deve ser pensada como processo de confirmação cultural.199 Assim, cabe analisar o

papel que a leitura desempenha sobre as práticas e as representações dos fiéis da IURD, ou

ainda, como estes se apropriam e interagem com as mensagens contidas nos textos. Para isto,

devem ser observados alguns passos metodológicos.

Primeiro, a relação imbricada entre textos e gestos. Compreender o ato de

ler significa perceber que tal prática não requer necessariamente a alfabetização: “Pelas

sociabilidades diversas da leitura em voz alta, existe uma cultura do escrito mesmo entre

aqueles que não sabem nem produzir nem ler um texto” – afirma Chartier, no estudo que

realiza sobre as práticas de leitura no Antigo Regime:As re lações tec idas en t re os escr i tos e os ges tos , longe de cons t i tu i r duas cu l turas separadas , e la s se encontram, de f a to for temente a r t i cu ladas . Por um lado , numerosos t ex tos t êm por função anular - se como d i scurso e produzi r , no es tado prá t ico , a s condutas e compor tamentos t idos como leg í t imos pe las normas socia i s ou re l ig iosas . ( . . . ) Por ou t ro , o e scr i to e s tá no própr io centro das formas mais ges tua i s e ora l i zadas das cu l turas ( . . . ) . É o que ocorre nos r i tua i s f reqüentemente apoiados na presença f í s ica e na l e i tura e fe t iva de um tex to cent ra l na cer imônia . Ent re t ex tos e gestos , a s r e lações são , por tan to , es t re i ta s e múl t ip las , obr igando a conside rar em toda a sua d ivers idade as prá t icas do escr i to . 2 0 0

Segundo, a apropriação feita pelos leitores iurdianos dos textos bíblicos.

Nesse sentido, deve-se buscar uma história cultural caracterizadora das práticas que se

apropriam diferencialmente dos materiais circulantes numa determinada sociedade, ou seja,

“que concentre sua atenção nos empregos diferenciados, nas apropriações plurais dos

mesmos bens, das mesmas idéias, dos mesmos gestos”.201 Para entender como ocorrem essas

apropriações, Chartier elabora uma inquietante questão observada a partir da obra Celestina,

publicada em 1507: Como é que um tex to , que é o mesmo para todos os que lêem, pode t ransformar- se em “ ins t rumento de d iscórd ia e de br igas , en t re seus l e i tores , c r iando d ivergências en t re e les e l evando cada um, dependendo de seu gos to pessoal , a t e r uma opin ião d i feren te? 2 0 2

199 Id., ibid., p. 39.200 CHARTIER, R. Leituras e leitores e leitores na França do Antigo Regime, p. 11, 12.201 Id., ibid., p. 12.202CHARTIER, Roger. Textos, Impressão, Leituras. In: HUNT, L. Op. cit., p. 211. Chartier refere-se aqui às indagações feitas por Fernando Rojas no “Prólogo” que escreve para a “Celestina”, quanto às razões da sua obra “ter sido entendida, apreciada e utilizada de modos tão diversos”.

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Ao apontar para as variações que a história da leitura assume em tempos e

lugares, Robert Darnton sublinha que as informações contidas numa página ganham sentido

quando ocorre a interpretação, sendo aí decisivas as configurações culturais a que pertence o

leitor. Assim, “compreender a maneira como se tem lido, possibilita o entendimento de como

se compreende a vida”, pois “a leitura não é simplesmente uma habilidade, mas uma maneira

de estabelecer significado”.203

Não sendo o ato de ler apenas uma decodificação da palavra escrita, uma

vez que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”,204 a tensão entre tal prática e as

representações se dá motivada pelo desejo de captação dos signos ligados ao ambiente que

configura a ação existencial do leitor, fato esse que atribui à leitura “uma finalidade, um

objetivo, um propósito”:205

O ato de le r pode se r compreendido como uma prá t ica socia l , a lgo que se insc reve na d imensão s imból ica das a t iv idades humanas. Ao produz ir a l e i tu ra , o su je i to engaja au tomat icamente na d inâmica do processo h i s tór ico-socia l de produção de imagens cons t ru ído sobre o lugar soc ia l que ocupa e do lugar ocupado pelo outro . Es tes lugares , por sua vez , são compreendidos em uma d imensão h i s tór ica . 2 0 6

Terceiro, observar os protocolos de leitura utilizados nas práticas iurdianas.

É também tarefa do pesquisador observar os suportes editoriais utilizados na confecção das

literaturas, pois um texto, aparentemente “estável”, sofre mutações de sentidos ao “ser dado a

ler em formas impressas que se alteram”.207 Todo texto é lido a partir de suportes ou veículos,

ou seja, o texto não existe em si mesmo, “fora das materialidades, quaisquer que sejam” -

afirma Chartier, que argumenta:Cont ra essa “abs t ração” , é prec iso l embrar que as formas que fazem com que os t ex tos se jam l idos , ouvidos ou v i s tos pa r t i c ipam também da cons t rução de sua s ign i f icação . O mesmo tex to , f ixado pe la l e t r a , não é o “mesmo”, se mudam os d i spos i t ivos de sua inscr ição ou de sua comunicação . 2 0 8

As análises feitas por Darnton também apontam para este aspecto:Mas os t ex tos moldam a recepção dos l e i tores por mais a t ivos que possam se r ( . . . ) c r iam um arcabouço e dão um papel ao le i tor ao qual e le não pode se esquivar . ( . . . ) A h i s tór ia da l e i tura t e rá de l evar em conta a coe rção do tex to sobre o l e i tor , bem como a

203 DARNTON, R. História da leitura, p. 218-234.204 FREIRE, Paulo. Apud BARZOTTO, Valdir Heitor (Org.). Estudo de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999, p. 73.205 Id., ibid., p. 74.206 ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998, p. 111, 112.207 Id., ibid., p. 20.208 CHARTIER, Roger. Crítica textual e História Cultural: o texto e a voz – século XVI e XVII. Leitura: teoria e prática. Campinas: Associação de Leitura no Brasil - ALB, n. 30, p. 67-75, 1997.

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l ibe rdade do le i tor com o tex to . A tensão en t re e ssas t endências exi s te sempre que as pessoas e s tão d ian te de l iv ros ( . . . ) . 2 0 9

Esta primeira composição de fontes, portanto, possibilita ao pesquisador um

escopo mais amplo do que envolve esse segmento religioso em âmbito nacional. Assim,

mesmo existindo obviamente as variações regionais, por meio dos materiais veiculados,

torna-se possível estabelecer um olhar mais panorâmico sobre as práticas da IURD em sua

ressonância cultural.

1.3.2 - Fontes produzidas pela pesquisa de campo

Um dos recursos que compõem este segundo grupo de fontes é a

observação participante. Esse procedimento pode ser conceituado nos seguintes termos:O processo no qual um inves t igador e s tabelece um re lac ionamento mul t i l a tera l e de prazo re la t ivamente longo com uma assoc iação humana na sua s i tuação natura l com o propós i to de desenvolve r um entendimento c ien t í f i co daquele grupo. 2 1 0

Tal recurso de pesquisa representa uma excelente oportunidade para uma

inserção mais densa nas práticas e representações vivenciadas pelos fiéis da IURD, pois

permite uma análise mais delimitada e específica, devido a incursões mais constantes que se

pode fazer no dia-a-dia de tais experiências. Havendo maior proximidade do contexto ou

ambiente do grupo a ser pesquisado, o pesquisador poderá afirmar ou fazer interpretações

sobre o seu objeto de estudo com maior correspondência ao modo como as práticas ali se

apresentam. As afirmações referentes às crenças religiosas de um povo devem ter sempre o

devido cuidado de apreensão das concepções, imagens mentais, palavras, válidas e coerentes

para o respectivo grupo, com conhecimento amplo do sistema de idéias de que tais crenças

participam ou pertencem. 211

O uso desse método também possibilita maior inserção no universo cultural

vivenciado pelo segmento religioso aqui pesquisado. Segundo Clifford Geertz, a cultura

consiste num “sistema entrelaçado de signos interpretáveis”, que podem ser descritos de

forma inteligível, isto é, descritos com densidade.212 Esse autor apresenta importantes

procedimentos para a observação participante ou trabalho etnográfico, como recursos de

acesso ao universo cultural do grupo em pesquisa, ressaltando que durante a coleta de dados,

209 DARNTON, História da leitura, p. 128.210 MAY, Tim. Pesquisa social: questões, métodos e processos. Porto Alegre: Artemed, 2001, p.177.211 EVANS-PRITCHARD, E. E. Op. cit., p. 18. 212 GEERTZ, C. Op. cit., p. 24.

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a multiplicidade das estruturas de significação pode parecer muito complexa, estranha,

irregular e inexplícita ao pesquisador. Mas, à medida que ocorrem as entrevistas, observação

de rituais, dedução de termos específicos e escrita do diário de campo, tal universo se torna

mais acessível à interpretação.

Buscando decodificar esse sistema de signos, alguns passos práticos são

apontados por Geertz. Primeiramente, o pesquisador precisa se situar dentro do universo

imaginativo em que os atos do grupo em pesquisa são marcos determinados. “Situar-nos, eis

no que consiste a pesquisa etnográfica como experiência pessoal” – ressalta esse autor.213

Também, não deve o pesquisador procurar “tornar-se um nativo” ou “copiá-lo”. O que deve

fazer é conversar com eles, “o que é algo muito mais difícil”. Visto desta maneira, a pesquisa

etnográfica apresenta como um dos seus objetivos o alargamento do universo do discurso

humano.214 Outro aspecto: para compreender a cultura de um dado grupo, o etnógrafo deve

desenvolver formulações e interpretações dos sistemas simbólicos dos atos apresentados pelo

respectivo grupo, sabendo que, quanto se segue o que fazem e como se comportam os

membros de tal coletividade, “mais lógicos e singulares eles [os sistemas] se parecerão”.215

Outro elemento importante é que a lógica – a partir de referenciais do pesquisador - não pode

ser o principal teste de validade de uma construção cultural. Os sistemas culturais têm

coerência própria, do contrário não seriam chamados de sistemas, por isso a força das

interpretações não pode repousar na rigidez.216 Ainda observa Geertz que a compreensão de

que a vida social não é fixa, mas dinâmica e mutável. Dessa forma, os procedimentos

anteriormente identificados possibilitarão meios para que o pesquisador se insira mais

profundamente nas atividades do dia-a-dia das pessoas que busca entender, tornando-se parte

do seu universo, registrando as experiências e seus efeitos sobre o comportamento do

respectivo grupo social.

Diferentemente da entrevista, na observação participante o pesquisador

vivencia pessoalmente o evento de sua pesquisa para melhor analisá-lo ou entendê-lo,

percebendo e agindo diligentemente de acordo com as suas interpretações daquele mundo;

participa nas relações sociais e procura entender as ações no contexto de uma situação

observada. As pessoas agem e dão sentido ao seu mundo apropriando-se de significados a

partir do seu ambiente. Desse modo, na observação participante, o pesquisador deve tornar

213 Id., ibid., p. 23.214 Id., ibid., p. 24.215 Id., ibid., p. 27.216 Id., ibid., p. 28.

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parte daquele ambiente para melhor entender as ações daqueles que ocupam e produzem

culturas, apreender seus aspectos simbólicos, os quais incluem costumes e linguagem.

Victor Turner emprega as expressões “exegese nativa dos símbolos” ou

“perspectiva de dentro” para se referir à compreensão dos símbolos rituais, procurando

entender como os próprios membros do grupo explicam e interpretam-nos. Destaca que “não

há incongruência com a realidade para os membros do grupo” e que “cada elemento

simbólico relaciona-se com algum elemento empírico de experiência”. Os referentes são

“tirados de muitos campos da experiência social”. 217 Conforme esse autor, para se conhecer

mais profundamente um ritual “é preciso vencer qualquer tipo de preconceito e investigá-lo”,

e destaca a importância da inserção no grupo em estudo: “Uma coisa é observar as pessoas

executando gestos estilizados e cantando canções enigmáticas que fazem parte da prática dos

rituais, outra coisa é tentar alcançar a adequada compreensão do que os movimentos e a

palavras significam para elas”.218 Nesse sentido, vale destacar também as observações

metodológicas de Jacques Le Goff, quando afirma que os ritos e os símbolos consistem num

“sistema de gestos” que “permite uma “recuperação para a documentação histórica, para

além do escrito e da palavra (...) este terceiro dado fundamental, que na maioria das vezes é,

aliás, o seu complemento”. 219 Assim, “a história faz-se com documentos e idéias, com fontes

e com imaginação”.220 O mesmo autor, em capítulo intitulado “o historiador e o homem

quotidiano”, mostra que a visão etnográfica propõe à investigação historiográfica uma nova

documentação: “sem desprezar o documento escrito, o historiador é chamado a pôr-se ao lado

do homem quotidiano, num universo sem textos”. Assim, nos ritos e nos símbolos, o

pesquisador pode investigar a história dos gestos, das mentalidades, das crenças, dos

comportamentos. 221

Evidentemente, tem havido críticas ao método da observação participante.

Afirma-se, por exemplo, que quem o utiliza supõe já saber o que é importante a ser anotado

ou observado, ou seja, como se o pesquisador buscasse tão somente a testagem ou

comprovação de idéias ou aspectos teóricos previamente elaborados. Para não incorrer em tal

erro metodológico, deve o historiador construir o conhecimento de seu objeto a partir das

experiências e da realização das investigações detalhadas e meticulosas que a observação

participante possibilita em termos de recursos. Dessa forma, no caso específico da IURD, é

217 TURNER, V. W. Op. cit., p. 60.218 Id., ibid., p. 20.219 LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1983, p. 64.220 Id., Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente, p. 9.221 Id., ibid., p. 321.

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preciso que se tenha o devido cuidado quanto à interpretação a partir do que, a priori, se

conhece sobre tal segmento religioso através de informações que advém, por exemplo, da

imprensa, que, grosso modo, costuma referir-se às práticas iurdianas quase sempre em tom de

denúncia ou julgamento, como se “maquiavelicamente” só existissem ali pessoas de “boa fé”

sendo financeiramente lesadas por práticas de charlatanismo.

Uma outra crítica suscitada refere-se ao risco de envolvimento demasiado

do pesquisador com o seu objeto, o que poderia comprometer um olhar mais crítico que a

investigação requer, pois “o contato direto do pesquisador com o fenômeno observado” deve

ocorrer sem que haja um demasiado envolvimento daquele.222 Tendo tal consciência, o

trabalho de campo deve então ocorrer na tensão entre uma “descrição densa” do fenômeno e

o cuidado com o necessário distanciamento do objeto, de modo a garantir maior

plausibilidade em termos de parâmetros epistemológicos que envolvem a investigação

historiográfica.

Considerando mais especificamente o caso da Igreja Universal, a

observação e a interpretação participantes podem possibilitar diferentes perspectivas de

análise e composição de fontes. Primeiramente, permitem a visualização das imagens e a

estética dos rituais desenvolvidos nos cultos. Significa “descrever o rito na própria

consumação do rito”.223 No culto e nos ritos iurdianos denotam-se códigos emissores e

receptores de comunicação. Há, neles, um universo mítico que se dá a representar. Os ritos,

ali,to rnam-se um reve lador ma ior das c l ivagens , t ensões e r epresentações que a t ravessam uma soc iedade . ( . . . ) o luga r de um conf l i to em que se confrontam, ao v ivo , lóg icas cu l tura i s cont rad i tór ia s ; por is so , au tor izam uma apreensão das cu l turas “popular” e erudi ta nos seus cruzamentos . ( . . . ) Os r i tos são uma das formas socia is em que é poss íve l obse rva r t an to a res i s tênc ia popular à s in junções normat ivas quanto a remode lagem segundo os modelos cu l tura i s dominantes dos compor tamentos da maior ia . 2 2 4

Tais práticas ritualísticas “fincam raízes em existências particulares”,

reunindo em si os “diferentes traços que desqualificam as práticas lícitas, contrárias à crença

verdadeira”,225 muitas vezes postulada pelo protestantismo clássico. Na magia dos ritos e na

riqueza simbólica, adotadas por essa Igreja, percebe-se a apropriação de um substrato cultural

legado das crenças afro e da religiosidade popular católica – substrato esse que é sincrético

ou pluralmente re-significado a partir de elementos da tradição evangélica. 222 MINAYO, Maria C. S. (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1999. 223 BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 131.224 CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 22.225 Id., ibid., p. 27.

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Além disso, a observação participante viabiliza um contato mais próximo

com a riqueza simbólica dos templos iurdianos, presente não apenas como ornamentação,

mas principalmente como elementos fundamentais no desenvolvimento dos cultos e ritos.

Também permite também melhor constatação e análise do desempenho e performance do

carisma ostentado pelos líderes perante o grupo. “Fazer história etnológica é também

reapreciar, na história, os elementos mágicos, os carismas” – afirma Le Goff.226 É marcante

nos cultos da IURD a “guerra espiritual” contra o Demônio, considerado o grande

responsável por todos os males, o que torna imprescindível a figura do líder taumaturgo,

capaz de sobrepujar-lhe as ações, por meio de um carisma que é estrategicamente

demonstrado, por exemplo, nos procedimentos de cura e de exorcismo. Nesses momentos, o

templo se transforma em palco da luta do bem contra o mal e o líder pode, então, demonstrar

ao público extasiado, a sua autoridade e legitimidade, numa representação de algo que lhe

teria sido divinamente concedido, pois nessa Igreja:Na dramaturg ia , a lém do cenár io e dos obje tos , é fundamenta l a a tuação do a tor que com presença , voz , gestos e dramat ic idade provoca a t i tudes , reações e mudanças no compor tamento da p la té ia . ( . . . ) O pas tor -a tor , por meio de suas pa lavras e ges tos , p rocura in tegrar todos os presentes no processo de ex te r ior ização–in te r ior ização co le t iva da f é . 2 2 7

Finalmente, esse método de pesquisa possibilita maior acesso ao

comportamento de líderes e fiéis iurdianos e seu modo de ver o mundo e orientar suas ações

em sociedade. Nesse sentido, em um artigo intitulado “O morto se apodera do vivo”,228

Bourdieu propõe certas categorias para se pensar o material histórico em termos do que seria

uma história incorporada pelos indivíduos, que se apresenta com suas práticas, suas ações,

seus testemunhos, sua história oral, ao lado de uma história objetivada ou reificada ou

institucionalizada, “que aparece em arquivos, em estátuas com construções, na arquitetura e

numa série de coisas”.229

Em termos de procedimentos práticos, é preciso considerar que a

observação participante envolve aspectos de tempo, lugar e circunstâncias. Nota-se que

quanto mais tempo o observador gasta com o grupo em análise, maior adequação e

possibilidade de interpretação serão alcançadas, pois quanto mais familiarizado estiver com a

linguagem empregada na respectiva situação social vivenciada pelo grupo em pesquisa, por

226 LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média, p. 318.227CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 94.228BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989, p. 75-106.229 CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 157.

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exemplo, mais próxima da realidade poderão ser as suas interpretações. Além do que, o

tempo pode gerar uma relação de maior intimidade e confiabilidade entre os envolvidos no

processo. Um maior envolvimento pessoal permitirá que o pesquisador seja capaz de não

apenas entender melhor os significados e as ações que o grupo realiza, como também obter

acesso a um mundo mais privado ou “de bastidores”. Em relação ao lugar, o pesquisador

deve considerar também que há influência das condições físicas sobre as ações. Por isso cabe

registrar não apenas as interações observadas, mas também o ambiente físico no qual elas

acontecem.

Nesse aspecto, tomando como referência a IURD, o “onde” deve ser

bastante considerado no processo de crença e comportamento ali vivenciados. Robert

Darnton,230 quando analisa a história das práticas da leitura, afirma que o “onde” pode exercer

influência sobre o leitor por colocá-lo num ambiente que lhe propicia sugestões sobre a

natureza da sua experiência. Nos templos também há exposição de fotos, quadros ou objetos

testificando os milagres alcançados pelos fiéis, tendo sempre ao lado versículos bíblicos os

quais procuram fomentar a compreensão sobre o significado do que está exposto. Em uma

das observações participantes realizadas no templo da IURD, em Londrina,231 notou-se

visivelmente exposto à entrada do templo, um grande mural com fotos, atestados médicos

comprovando curas recebidas; fotocópia da carteira de trabalho, provando o emprego

alcançado e escrituras de imóveis, atestando a aquisição de bens materiais obtidos a partir das

campanhas ou “correntes de oração” feitas na Igreja. Em relação às circunstâncias sociais,

quanto mais variadas as oportunidades do observador relacionar-se com o grupo, tanto em

termos de status, de papel e de atividades, maior poderá ser o entendimento dele. Inserindo-

se nas diferentes atividades vivenciadas pelo grupo em pesquisa, os pesquisadores terão

maior domínio da linguagem no seu sentido mais amplo, incluindo não apenas as palavras e

os significados que elas transmitem, mas também as comunicações não-verbais como as

expressões faciais e corporais em geral. Por conseguinte, familiarizam-se com esse aspecto

do contexto social, aprendem a linguagem da cultura e registram as suas impressões e

quaisquer mudanças de comportamento do grupo em análise. Nesse ponto, o observador

deverá ser capaz de indicar como os significados são empregados na cultura e compartilhados

entre as pessoas, ou seja, sob quais condições e situações são transmitidos.

230 DARNTON, R. História da leitura, p. 203. 231 Templo situado à rua Benjamin Constant, 1649 – centro. Observação participante realizada em 16 maio de 2003, no culto das 15 horas.

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É preciso ainda acrescentar que a utilização de recursos metodológicos da

observação participante, assim como da História Oral232 - não obstante seus aspectos

positivos, por propiciar uma aproximação maior do cotidiano de líderes e fiéis - cria algumas

dificuldades para o trabalho de campo quando isto envolve a IURD como objeto de

investigação. Dentre elas destacam-se a “desconfiança” que os fiéis têm para conceder

entrevistas; a “fiscalização” ou cerceamento233 a quem visita os templos munido de máquinas

fotográficas, gravadores, filmadoras e até mesmo de bloco de anotações, pois a IURD vê com

bastante desconfiança a presença de “intrusos” pesquisadores em seus cultos e reuniões, fato

que exige maior habilidade ainda daquele que deseja fazer observação participante ou

entrevistas com líderes e fiéis, como o veremos mais adiante. Inevitavelmente, precisará

manter discrição e anonimato. E, por último, a “quase impossibilidade” de acesso à cúpula

iurdiana para entrevistas. Tal realidade bem se descreve nas palavras de um influente pastor

da IURD, quando procurado para entrevista por um outro pesquisador: Sinto mui to por não poder faze r nada quanto ao seu pedido de ent rev is ta s na Igre ja Universa l . Es tamos pro ib idos de da r ent rev is ta s ou informações sobre o nosso t rabalho . Essa pro ib ição vem de c ima . O b i spo Macedo pro ib iu te rminantemente quai squer ent rev is ta s e e le t em os seus mot ivos . Temos recebido mui tas pessoas com so l ic i t ações idênt icas ; todos vêm com a mesma “conversa” , p rometendo que va i se r um t raba lho “neut ro” , “hones to” , porém, você e todos sabem, não ex i s te neutra l idade . Por exemplo , uma vez recebi em casa uma repór ter da Folha de S . Paulo; gas te i horas conversando com e la , e tudo o que sa iu publ icado não condiz ia com a rea l idade . Nós , na Univer sa l , es tamos cansados desse t ipo de t r a tamento . Por i s so , in fe l i zmente , não poderemos dar ou au tor izar en t rev is ta s . Hoje , a té a presença de pesquisadores em nossos t emplos , os tens ivamente anotando, gravando ou fo togra fando, poderá ser enca rada como provocação , e não serão bem recebidos pe los obre i ros . Não posso garant i r como pessoas nessas c i rcuns tâncias se rão t r a tadas . 2 3 4

Como delimitação do espaço de investigação, neste trabalho, optou-se pelo

desenvolvimento de observações participantes nos templos da cidade de Londrina e no

templo-sede, localizado à Av. João Dias, bairro de Santo Amaro, São Paulo. A escolha desse 232No desenvolvimento da pesquisa, procurou-se conhecer e utilizar melhor as técnicas desenvolvidas por especialistas em história oral, especialmente as que são recomendadas por THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 233 Outros pesquisadores têm mencionado certas hostilidades, fiscalização e constrangimentos sofridos em trabalho de campo realizado no âmbito da IURD. É o caso, por exemplo, de Mônica do Nascimento Barros, como o descreve em sua dissertação de mestrado em sociologia, A batalha do Armagedom: uma análise do repertório mágico-religioso proposto pela Igreja Universal do Reino de Deus. Belo Horizonte: UFMG, 1995. 200 fl. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Minas Gerais, 1995. 234José Vasconcelos Cabral é diretor-presidente da Gráfica Universal, com sede na cidade do Rio de Janeiro. Entrevista concedida a Leonildo Silveira Campos, jul. 2002. (Cópia em CD-ROM, disponível no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica – CDPH, da Faculdade Teológica Sul Americana, à Rua Martinho Lutero, 277, Londrina – PR.).

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espaço é estratégica, pois é, hoje, o mais utilizado pela IURD, para a transmissão dos cultos

em rede nacional, pela TV Record e outras emissoras nas quais a igreja mantém programas

diários. Também é nele que o bispo Macedo comparece mais regularmente para participar de

reuniões, especialmente aos finais de semana.

No caso de Londrina, a escolha é igualmente estratégica pelo fato de ter

essa cidade, ao longo de sua formação histórica, desenvolvido um contexto favorável para a

operosidade iurdiana: formação de imaginários milenaristas;235 abruptos e intensos processos

de urbanização, formadores de grandes periferias, decorrentes de crises instauradas no

campo. A escolha dessas duas cidades para observação e análise representa importante

estratégia também pelas suas diferenças ou contrastes como, por exemplo, em termos de

números de habitantes - Londrina, com cerca de 500 mil e São Paulo com mais de 20

milhões; ou ainda, quanto ao de tempo de existência - Londrina, com 71 anos e São Paulo

com quase meio milênio. Não obstante os contrastes ou disparidades, o movimento iurdiano

tem obtido expressivo êxito em ambos os contextos, isto por encontrar elementos comuns que

se tornam favoráveis à sua operosidade, sobretudo, no âmbito cultural.

Obviamente, o recorte espacial estabelecido para as observações significa

uma amostra de um segmento que atualmente se faz representar nas mais diferentes regiões

do país. Entretanto, ao menos dois aspectos favorecem a abrangência de tal amostragem.

Nota-se, inicialmente, uma certa padronização dos cultos e rituais realizados diariamente. As

dramaturgias seguem um mesmo modelo para todos os templos, sendo devidamente

planejadas pelas autoridades centrais, o colégio de bispos, em reuniões comandadas,

pessoalmente ou por telefone, por Edir Macedo. Essa sensação de unidade é partilhada pelos

fiéis, ao que se aplica bem a frase de Pierre Bourdieu: “pertencer ao grupo significa ter no

mesmo momento do dia e do ano o mesmo comportamento de todos os outros membros do

grupo”.236 Somado a esse fato, há a veiculação em rede nacional de seus programas religiosos,

tanto através da televisão, pela Rede Record, quanto pelo rádio, mediante a cadeia 235 A Companhia inglesa responsável pela colonização do Norte do Paraná, a partir da década de 1930, empreendeu forte apelo propagandístico que apontava para o aspecto paradisíaco dessa região. Esse imaginário de Terra da Promissão, da Nova Canaã e do Novo Eldorado, pode ser observado nos termos empregados nas matérias publicadas pelo jornal da Companhia colonizadora: “A cadeia é lugar de descanso (...) O paraíso perdido pode ser encontrado nos domínios da Companhia de Terras Norte do Paraná, onde não há ladrões, os crimes são raros, conflitos de certa gravidade raramente acontecem (...); todos os que habitam este pedaço dadivoso, da grande zona que é o Norte do Paraná, e onde o jornal vai agir no sentido de propagar-lhe a riqueza, concretizada na fertilidade inigualável do seu solo (...) neste pedaço de terra americana, onde várias raças se misturam na mais comovedora das harmonias”. Cf. Jornal Paraná-Norte, Londrina, n. 1, 9 de out. 1934. (Material disponível no Centro de Documentação e Pesquisa Histórica - CDPH, da Universidade Estadual de Londrina).236BOURDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 48.

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radiofônica denominada “Rede Aleluia”. Muitos desses programas são transmitidos

diretamente de templos ou locais em que, principalmente Edir Macedo ou demais bispos que

o auxiliam, atuam.

Também compondo este segundo grupo de fontes aqui utilizadas, estão os

programas da Igreja veiculados pelo rádio e pela TV. Nas grandes cidades do país,

normalmente a IURD adquire concessões ou então aluga horários em emissoras de grande

alcance para diariamente veicular sua programação religiosa. Vale considerar que o uso de

tais recursos midiáticos tem sido um eficiente mecanismo de propagação da mensagem

religiosa iurdiana. A agressividade, nesse setor, tem sido um dos elementos responsáveis

pelos números expressivos do uso da mídia por igrejas evangélicas brasileiras: “atualmente,

os evangélicos controlam mais de 300 emissoras de rádio e canais de TV no país, com

faturamento global acima de meio bilhão de reais por ano. Mais de 80% da programação

religiosa na TV brasileira é evangélica”.237

O uso desses programas como fontes de pesquisa deve considerar que “a

TV não é igual a um rádio com figuras”, pois se o próprio rádio não é simples, “os meios

áudio-visuais são um amálgama complexo de sentidos, imagens, técnicas, composição e

seqüência de cenas, etc.”.238 Na estrutura e conteúdos desses mecanismos há intencionais e

sofisticados usos de técnicas visando a modulações de fala, imagens, etc., recursos de

especialistas que podem instigar o afloramento de sentidos de que compõe o imaginário

coletivo. Assim, o produto final transcrito a ser usado pelo pesquisador será normalmente

uma condensação de toda essa complexidade. A pesquisa com imagem e/ou som envolve,

assim, alguns dos procedimentos que também ocorrem em relação às fontes escritas: escolha

ou seleção, anotações ou transcrição e análise. Primeiramente, há uma seleção de programas

a serem observados. Nesse sentido, no caso da IURD, é preciso considerar a diversidade de

programação. Há programas diferentes em horários também diferentes: entrevistas, em que

os fiéis dão testemunho de milagres alcançados ou sucesso financeiro obtido através da ajuda

da igreja; mensagens dos pastores, em especial do bispo Macedo; musicais; transmissão ao

vivo de cultos realizados nos templos etc. Portanto, é plausível escolher para observação e

análise programas em diferente horários para que se tenha uma amostragem mais ampla do

que a IURD propaga e realiza.

237 Revista Veja, São Paulo, p. 91, 03 jul. 2002.238BAUER, Martin; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 343.

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Em vista disso, sendo disponibilizados diariamente tais programas pelo

rádio e TV, foram feitas gravações, as quais, depois de transcritas, datadas, catalogadas e

arquivadas, passaram a ser usadas como fontes para a devida pesquisa e a investigação

historiográficas. Obviamente, a finalidade da transcrição é gerar um conjunto de dados que

possibilite uma análise mais cuidadosa do objeto em questão. É preciso também estar ciente

de que a transcrição inevitavelmente simplifica a imagem complexa da tela, com tendência a

se evidenciar mais o verbal do que o visual. Isso também envolve escolha: o que transcrever?

No caso da IURD é importante que se leve em conta a riqueza simbólica disponibilizada na

tela durante os programas, na qual costumam aparecer elementos como: a Bíblia, lida

repetidamente pelos pastores para reforçar ou fundamentar os seus argumentos e apelos,

havendo muitas vezes, inclusive projeção de textos bíblicos, tendo ao fundo imagens que

ilustram o que se está lendo, como por exemplo, as do Monte Sinai, da Terra Santa, lugar

para onde os bispos costumam viajar com o propósito de levar pedidos e súplicas dos fiéis;

carros, casas e empresas, quando se quer falar de prosperidade; cenas de rituais afro e de

sessões de exorcismo, quando se quer falar sobre a maneira como o demônio age na vida das

pessoas etc; grandes aglomerações de fiéis nos templos ou espaços mais amplos, para se

ressaltar como milhares de pessoas estão recorrendo à IURD.

Cabe também observar o “milagre da multiplicação da imagem”, o que se

constitui importante mecanismo para análise do comportamento social do grupo. De maneira

intencionalmente, ou não, nessa Igreja se adota uma padronização quanto ao comportamento

de seus pastores e bispos. Isso pode ser observado nos programas na mídia e na performance

desempenhada nos templos: mesmo timbre de voz, sotaque, gestos, vestimentas, modelo que

segue o perfil do líder maior, o bispo Macedo. Tal procedimento acaba por transmitir aos

fiéis a sensação de que qualquer templo que freqüentarem, em qualquer cidade do país,

encontrarão sempre a “figura” de Macedo em milhares de pastores que “multiplicam” essa

presença em todos os lugares ao mesmo tempo. Em outras palavras, não só nos programas de

rádio e TV, mas em qualquer templo da IURD, há a sensação de se estar ouvindo e vendo o

bispo Macedo. Nesse sentido, entendendo “representação” também como “tomar o lugar de

alguém”,239 pode-se dizer que o carisma ostentado por Macedo perante o grupo é quantitativo

e estrategicamente ampliado, graças às inúmeras igrejas e aos diversos programas midiáticos

nos quais é representado pelos pastores sob o seu comando.

239BURKE, Peter. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 20.

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Nesse aspecto, cabe estabelecer um paralelo metodológico em relação ao

uso das fontes de pesquisa feito por Peter Burke ao escrever a obra A Fabricação do Rei. Ao

analisar a construção da imagem de Luís XIV, Burke afirma que ela tornou-se referência de

imitação por parte de outros monarcas. Ressalta também que a grande ressonância de

identificação entre o rei o povo se dava mediante a multiplicação e popularização da imagem

do rei. Para isto eram utilizadas literaturas, peças teatrais e rituais, sendo esses dois últimos

bastante valorizados: “entre a gente do povo (...) impressões físicas têm um impacto muito

maior que a linguagem (...)”.240 Usavam-se também os retratos da sua imagem, os discursos e

as aparições públicas: “Luís sabia como vender suas palavras, seu sorriso, até seus

olhares”.241 Burke observa no caso de Luís XIV “a ritualização ou mesmo a teatralização de

boa parte da sua vida cotidiana”.242 As encenações ocorriam nos espetáculos, na intimidade e

nas aparições públicas do rei: “Não é forçar demais o termo descrever essas ocasiões como

‘rituais’, pois tinham o propósito de comunicar uma mensagem”, mas “pode ser mais

esclarecedor referir-se às atividades como mais ou menos ritualizadas (mais ou menos

simbólicas)”.243 Burke ressalta ter procurado enfatizar “que o rei era continuamente criado ou

recriado” por meio das performances em que desempenhava seu papel, sendo que tais

representações se configuravam em práticas: “Essas representações tornavam-se realidade, no

sentido de que afetavam a situação política”.244

O rei também contava com uma equipe de assessores a qual elaborava

estratégias e meios para a fabricação da sua imagem: “ministros e conselheiros tinham grande

preocupação com a imagem real” procurando “dar atenção a todo sistema de

comunicação”;245 cuidavavam para que o rei “aparecesse erguendo o bastão, não apoiado

nele”.246 Logo, a analogia feita às práticas iurdianas são quase inevitáveis. Em 1995, quando

emissoras de TV exibiram um vídeo que teria sido gravado por um pastor dissidente da

IURD, no qual Macedo aparecia dando um treinamento aos seus pastores em relação à

maneira com que deveriam se comportar perante o público:

Vocês não devem aparece r peran te o públ ico com aque la conversa mansa , parecendo um padre , como um coi tad inho ( . . . ) o públ ico quer ver em vocês agress iv idade , bravura . . . a lguém que é capaz de

240 Id., ibid., p. 19.241 Id., ibid., p. 16.242 Id., O que é História Cultural?, p. 114.243 Id., ibid.244 Id., ibid., p. 116.245 Id., ibid.246 Id., ibid., p. 14.

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enf ren tar o Diabo; o povo quer ser provocado, chamado para um desa f io cont ra o demônio pa ra vencê- lo ( . . . ) . 2 4 7

Sintetizando, pode-se dizer que a IURD vivencia habilmente uma “cultura

do impresso com uma cultura ainda amplamente oral, gestual e imagética”.248 Palavra e

imagem são nela essenciais, mas o escrito impresso continua a desempenhar um papel de

primeira importância na circulação de modelos culturais. A IURD mantém uma cultura do

escrito, mesmo entre os que são pouco afetos à leitura, a qual é a apreendida através dos

rituais inspirados nos escritos bíblicos.

Os recursos da História Oral são também elementos importantes na

pesquisa de campo sobre a Igreja Universal: “Permite o registro de testemunhos e o acesso a

“histórias dentro da História” e, dessa forma, amplia as possibilidades de interpretação do

passado”.249 E mais:Uma das pr inc ipa i s r iquezas da His tór ia Ora l es tá em permi t i r o e s tudo das formas como pessoas ou grupos e fe tua ram e e laboraram exper iênc ias ( . . . ) en tender como exper imentaram o passado torna poss íve l ques t ionar in terpre tações genera l izan tes de de te rminados acontec imentos e conjunturas . 2 5 0

Assim, ao se procurar compreender o universo cultural e a situação

histórica em que surgiu e continua a se desenvolver a IURD, é fundamental ouvir

prioritariamente as personagens mais concretas que vivenciam as práticas dessa Igreja em

seus cultos e rituais: seus líderes e fiéis. Entretanto, como já observado anteriormente, a

entrevista direta com Edir Macedo ou mesmo com pastores que estão sob o seu comando é

algo bastante difícil, uma vez que se negam a concedê-las. Tal desconfiança em relação aos

pesquisadores se acirrou principalmente quando houve o episódio conhecido como “chute na

santa”.251 A partir dos desdobramentos desse fato, envolvendo uma série de denúncias feitas

pela TV Globo em relação às práticas da IURD, a igreja adotou postura de não permitir

filmagens dos seus cultos, sendo os pastores também proibidos de conceder qualquer

informação sobre a igreja. Evidentemente, essa recusa dos líderes em se deixar conhecer aos

pesquisadores já consiste em elemento a ser considerado no processo investigativo.

247 Gravação em fita de vídeo feita pelo ex-pastor iurdiano Carlos Magno de Miranda e levada ao ar pela Rede Globo de Televisão, em dezembro de 1995.248 CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 376.249ALBERTI, Verena. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 156.250Id., ibid., p. 165.251Sérgio Von Helde, bispo da IURD, em 12 de outubro de 1995, chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida, em um programa levado ao ar pela TV Record, sob a alegação de ser esta “objeto de idolatria”.

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Para driblar tais dificuldades, foram adotados nesta pesquisa alguns

procedimentos. Primeiramente, obter acesso a várias entrevistas concedidas, principalmente

por Macedo, antes do episódio conflituoso anteriormente referido, a revistas e jornais não

pertencentes à igreja. Depois, colher, de maneira indireta, a opinião ou entrevistas de líderes e

fiéis, concedidas ao jornal Folha Universal e revistas da própria denominação, aos programas

religiosos veiculados através do rádio e da televisão, ou ainda, às revistas de circulação

nacional, que apresentam matérias jornalísticas sobre a IURD. Também, conquistar a

confiança dos fiéis no sentido de concederem algumas entrevistas, atentando para que seus

nomes não fossem, por exemplo, literalmente mencionados. O livro Usos e Abusos da

História Oral, ao discutir acerca do “lugar da entrevista”, sugere que essa ocorra na casa do

entrevistado ou no local de trabalho.252 No caso da IURD, tornou-se inviável fazer a

entrevista com os adeptos e os obreiros (auxiliares dos pastores) no espaço do templo, no

intervalo dos cultos etc. Eles não ficavam à vontade, pelos motivos já anteriormente

apresentados. E para que o encontro ocorresse em um outro local, foi “indispensável criar

uma relação de confiança entre informante e entrevistador”.253 A observação participante,

desenvolvida de forma sistematizada, contribuiu para essa relação de confiança.

Quanto às gravações diretamente feitas com os fiéis, as entrevistas se deram

a partir de perguntas fechadas ou bastante direcionadas, e outras mais abertas para que os

interlocutores pudessem se expressar mais livremente. Fizemos as devidas anotações, dados

que mostram como os entrevistados compreendem e descrevem a experiência que têm

vivenciado em suas práticas religiosas.

Há de se considerar, ainda, que a História Oral, vista como uma técnica de

investigação ou um método de pesquisa social do tempo presente, também tem sido alvo de

recorrentes críticas. Uma delas é a de que possui um grau elevado de subjetividade, ou seja,

por ela o historiador faz ao seu interlocutor tão somente as perguntas que interessam ao seu

objeto enquanto o interlocutor, por sua vez, também declara somente aquilo que interessa que

fique registrado. Há um direcionamento para a pesquisa. Sobre isso, vale contrapor tais

indagações com as palavras de Jacques Le Goff:Não exis te um documento obje t ivo , inócuo, pr imár io . ( . . . ) O documento não é qualquer co i sa que f i ca por conta do passado; é um produto da soc iedade que o fabr icou segundo as re lações de forças que de t inham o poder . Só a aná l ise do documento enquanto

252AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de M. (Orgs.). Usos e abusos da História Oral. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 236.253Id., ibid., p. 234.

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monumento permi te à memória co le t iva recuperá- lo e ao h i s tor iador usá- lo c ien t i f icamente , i s to é , com pleno conhecimento de causa . 2 5 4

Outra crítica é a de que ocorre a escolha das pessoas a serem ouvidas,

havendo grandes direcionamentos ou intencionalidades, pelo pesquisador em sua abordagem.

É preciso, contudo, ponderar que todo procedimento de pesquisa historiográfica envolve

“escolhas”:Mas toda h i s tór ia é escolha . É-o , a té devido ao acaso que aqui des t ru iu e a l i sa lvou os ves t íg ios do passado . É -o , devido ao homem: quando os documentos abundam, e le r esume, s impl i f i ca , põe em des taque i s to , apaga aqui lo . É-o , sobre tudo , porque o h i s tor iador cr ia os seus mater ia i s , ou , se qu ise r , r ec r ia-os : o h i s tor iador que não vagueia ao acaso pe lo passado , como um t rape iro à procura de achados , mas pa r te com uma in tenção prec isa , um problema a reso lver , uma h ipótese de t r aba lho a ver i f icar . 2 5 5

Inegavelmente, os depoimentos orais aqui recolhidos e analisados podem

carregar elementos de subjetividade. Entretanto, isso não faz que essa fonte tenha menos

importância que o material escrito.O tes temunho ora l tem s ido amplamente d i scu t ido como fonte de informação sobre eventos h i s tór icos . E le pode ser enca rado como um evento em s i mesmo e , como ta l , submet ido a uma anál i se independente que pe rmi ta r ecupera r não apenas os a spec tos mater ia is do sucedido como também a a t i tude do narrador em re lação a eventos , à subje t iv idade , à imaginação e ao dese jo que cada ind iv íduo inves te em sua re lação com a h i s tór ia . 2 5 6

Além do que, a História Oral, apesar de ser-lhe normalmente atribuída um

maior grau de subjetividade e dessa trabalhar com certo deslocamento no tempo, propicia

elementos, informações e acesso a determinadas discussões que a fonte escrita nem sempre

pode propiciar, como por exemplo, as vivências e as percepções dos indivíduos em seu

cotidiano, um aprofundamento no universo cultural-religioso de tais agentes. Tal recurso

ajuda a trazer mais luzes para a compreensão do porquê, por exemplo, de tanta “teimosia”

por parte dos fiéis em continuar sendo seguidores de tal segmento, mesmo sob o fogo

cruzado de tantos questionamentos e críticas de diferentes setores da sociedade.

É preciso também considerar, entretanto, que essas mesmas preocupações

voltadas à subjetividade também se aplicam às fontes escritas. Ao analisarmos o jornal, por

exemplo, temos de considerar que as informações nele contidas também possuem a posição

pessoal do jornalista e, até mesmo, a censura estabelecida pelo próprio jornal enquanto 254Apud KARNAL, Leandro; NETO, José Alves de F. (Orgs.). A escrita da memória: interpretações e análise documentais. São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004, p. 30.255Id., ibid., p. 28.256PORTELLI, A. Sonhos ucrônicos. Memórias e possíveis mundos dos trabalhadores. Projeto História, São Paulo, Educ, n. 10, p. 41, 1993.

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veículo informador, isto é, não há nada que impeça a fonte escrita de conter elementos de

subjetividade tanto quanto a fonte oral. É preciso ressaltar ainda que o mesmo

direcionamento e papel de escolha pelo historiador também ocorrem no uso que se faz de

fontes escritas; escolha e seleção de conteúdos que interessam à temática que se está

investigando, por exemplo. E, de igual modo, também houve seleção de temas por parte

daqueles que produziram os registros, depois transformados em “documentos escritos”. Além

do que, geralmente o historiador utiliza a fonte oral como a única fonte para o seu trabalho.

Ao contrário do trabalho jornalístico, que tem como maior preocupação colher depoimentos e

transmiti-los, o historiador deve problematizar os depoimentos, fazendo o devido cruzamento

com outros documentos.

Também os que se dedicam ao estudo da História Oral costumam ressaltar

que a elaboração de um roteiro de entrevistas prévio é parte importante do uso desse método:Nenhuma entrev i s ta deve ser rea l izada sem uma preparação minuc iosa : consul ta a a rquivos , a l iv ros sobre o a ssunto , à v ida do depoente , l e i tu ra de suas obras , se houver a lguma, bem como referência sobre a s pr inc ipa i s e tapas de sua b iograf ia . Cada ent rev is ta supõe a aber tura de um doss iê de documentação . A pa r t i r dos e lementos e scolh idos , e labora -se um ro te i ro de perguntas do qual o informante deve es tar c ien te durante toda a en t rev is ta . 2 5 7

Nesta mesma obra, Usos e Abusos da História Oral, adverte-se ainda sobre

os cuidados que se deve ter na elaboração de um questionário de entrevistas, para que não

dirija passo a passo a testemunha e assim, “a mesma fique presa a um roteiro que não lhe

permite desenvolver seu próprio discurso”. Por outro lado, se a testemunha for deixada

totalmente livre, há o risco de se afastar do tema tratado. Por isso, “a entrevista semidirigida é

com freqüência um meio-termo entre um monólogo de uma testemunha e um interrogatório

direto”. À medida que a entrevista prosseguir, o roteiro terá, às vezes, que ser modificado. “O

entrevistador deverá adaptar-se à testemunha e nunca dar por encerrada uma entrevista antes

de acabar o questionário”.258

Em síntese, os recursos metodológicos da História Oral demonstram

relevância para a investigação da IURD principalmente pelo fato de possibilitarem maior

aproximação das práticas e vivências cotidianas de seus membros. Para tanto, há que se ter

consciência também das limitações desse método de pesquisa. Por isso, as fontes produzidas

por tal recurso foram nesta pesquisa cruzadas com outros documentos disponíveis.259 Aliás, o 257 AMADO, J. ; FERREIRA, M. M. Op. cit, p. 236.258 Id., ibid., p. 237.259Para o uso que aqui se fará da História Oral, serão adotados alguns parâmetros propostos, por exemplo, pelas obras: PORTELLI, A. Memória e Diálogo: Desafios da História Oral para a ideologia do século XXI. Fio Cruz - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2000, p. 67-71; PORTELLI, A. O que faz a História Oral diferente.

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cruzamento de diferentes fontes, já anteriormente nominadas, foi uma tônica no transcorrer

de todo o trabalho aqui realizado, estando-se ciente de que, na análise de entrevistas de

História Oral deve-se ter em mente também outras fontes – primárias e secundárias; orais,

textuais, iconográficas etc – sobre o assunto estudado.260

Finalizando esses apontamentos metodológicos, vale observa ainda que a

pesquisa sobre a IURD pode ser classificada como “história do tempo presente”,

considerando-se que os acontecimentos que a envolvem se dão no “calor da hora”. Nesse

aspecto, o historiador Eduardo Basto Albuquerque, em texto bastante elucidativo261 - no qual

procura analisar a distinção no campo das disciplinas da história que tratam da religião e

estabelecer relações do saber histórico e da religião na constituição do objeto e nas suas

relações metodológicas - ressalta que, ao tomar a religião por objeto, é fundamental que o

historiador tenha como um de seus objetivos “preocupar-se com a inserção social” da mesma

“em certo tempo”,2 6 2 independentemente do seu recorte cronológico:Mas se há a lgo que d i s t ingue o saber h i s tór ico dos out ros saberes é que sua postura de ancorar - se no tempo como fundamento de onde par tem todas as suas anál ises . Sem o tempo não há h i s tor iador . Breve ou cur to e longo ou mui to longo, sempre o t empo é a base na qual todo h is tor iador se f inca pa ra r ea l iza r suas anál i ses . 2 6 3

Destaca ainda Albuquerque que o historiador que toma o fenômeno

religioso por objeto pode aumentar a sua compreensão devido a dois pontos centrais: “a

temporalidade e as variedades do fenômeno religioso no tempo e no espaço”,2 6 4 e argumenta: Sua ca rac ter í s t ica bás ica é que o contex to h i s tór ico no qua l se inse re a re l ig ião é essencia l para compreendê- la . Daí a necess idade de cons tru í - lo ou recons tru í - lo formando um conjunto que abrange a ps ico logia soc ia l , a h i s tór ia soc ia l , po l í t i ca , econômica e tc . 2 6 5

Investigar a IURD, nesse caso, significa para o pesquisador inscrever-se

dentro de um período de grandes mutações sociais, culturais e econômicas, com profundas

repercussões no campo religioso. Naturalmente, viver em períodos históricos representa para

o pesquisador vantagens e desvantagens. O principal aspecto positivo está em poder realizar

com mais facilidade, possivelmente, o que Pierre Bourdieu denomina uma “conversão do

Projeto História, São Paulo, n. 14, p. 25-39, fev. 1997.260 ALBERTI, V. Op. cit, p. 187.261ALBUQUERQUE, Eduardo Basto de. Distinções no campo de estudo da religião e da história. In: GUERRIERO, Silas (Org.). O estudo das religiões: desafios contemporâneos. São Paulo: Paulinas, 2003.262Eduardo Albuquerque cita como exemplos dessa perspectiva, os trabalhos de Marc Bloch (Os reis taumaturgos); Jacques Le Goff (O nascimento do purgatório); Carlo Ginzburg (O queijo e os vermes); Keith Thomas (Religião e o declínio da magia). Id., ibid., p. 64.263 Id., ibid., p. 57.264 Id., ibid., p. 67.265 Id., ibid., p. 65.

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olhar” ou uma “ruptura epistemológica”.266 Segundo esse autor, as rápidas mudanças sócio-

culturais estimulam alguns atores a adquirir uma visão perspicaz e crítica da própria

sociedade em processo de ebulição, sendo isso um elemento fundamental aos que se dedicam

à compreensão da sociedade: “As rupturas epistemológicas são muitas vezes rupturas sociais,

rupturas com as crenças do corpo de profissionais, com o campo de certezas partilhadas que

fundamenta a comnunis doctorum opinio” - afirma.267 Em outras palavras, a convivência com

as tensões do campo religioso pode permitir não somente uma melhor proximidade do objeto,

mas principalmente a possibilidade de se compreender o fenômeno a partir de novos

conceitos ou reformulações de postulados teóricos que já não mais conseguem responder às

mutações geradas pelo processo histórico.

Em termos de fontes e documentos, a investigação de um objeto do tempo

presente também significa que tais recursos se produzem simultaneamente ao trabalho do

pesquisador. Mas a plausibilidade de tal investigação pode ser fundamentada nas

considerações feitas por Eric Hobsbawm, quando apresenta a sua própria experiência na

atenção que dedicou em seus escritos à história do tempo presente: “O breve século XX

quase coincide com meu tempo de vida (...) Falo como alguém que atualmente tenta escrever

sobre a história de seu próprio tempo (...)” - e acrescenta: “toda história é história

contemporânea disfarçada”.268

Feitas tais observações teórico-metodológicas, pode-se concluir com as

considerações apresentadas por Eduardo Albuquerque ao afirmar que “o estudioso acadêmico

da religião sabe que em vários momentos de sua pesquisa surgem questões as quais requerem

elementos de análise que rompem fronteiras epistemológicas”, sendo importante, neste caso,

escolher perspectivas de abordagem “conforme exigir o objeto e, mesmo assim, em um

momento ou segmento da pesquisa”.269

266BOURDIEU, P. O poder simbólico, p. 39.267Id., ibid.268HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 243.269ALBUQUERQUE, E. B. Op. cit., p. 66.

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2 – O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL EM QUE SE DESENVOLVEU O PENTECOSTALISMO BRASILEIRO

O funcionamento da Igreja Universal do Reino de Deus articula

eficazmente mecanismos internos próprios do campo religioso e também elementos externos

que se situam em contextos sócio-econômicos e políticos específicos. Assim, é importante

relacionar a configuração do capital simbólico cultural, que propiciou um universo

representacional vivenciado por esse movimento, com um ambiente mais amplo,

dimensionado em outros campos da sociedade e que marcaram o país sobretudo no século

XX. Tal procedimento é necessário para que o segmento religioso, aqui investigado, não seja

compreendido como algo à parte da dinâmica histórica, pois como observa Jacques Le Goff,

“um fenômeno histórico jamais se explica plenamente fora do estudo de seu momento”.270 As

expressões de crenças devem ser observadas em relação à cultura e à sociedade nas quais se

manifestam, como uma “relação de partes entre si dentro de um sistema historicamente

coerente”,271 pois “o pensamento religioso não evolui sozinho no espaço simbólico, ele

interage com outras formas de pensamento e outras esferas de organização social, política e

cultural”.272

Esse procedimento metodológico é também lembrado por Mircea Eliade,

quando afirma que não existe nenhum fenômeno religioso “puro”, fora da história, “porque

não existe nenhum fenômeno humano que não seja ao mesmo tempo fenômeno histórico”;

toda experiência religiosa é “expressa e transmitida num contexto histórico particular” -

declara.273 Por essa razão, segundo esse autor:[o h is tor iador] Deve a inda compreender o s ign i f icado , quer d izer que deve ident i f i ca r e i luminar a s s i tuações e a s pos ições que induzi ram ou torna ram poss íve l o aparec imento ou o t r iunfo des ta forma re l ig iosa num momento pa r t i cu lar da h i s tór ia . I s so cons t i tu i a verdadei ra função cu l tura l do h i s tor iador das re l ig iões . 2 7 4

Desse modo, a relação que os elementos das práticas e representações

iurdianos mantêm entre si e com os demais aspectos presentes na sociedade como um todo,

tendo como finalidade “determinar-lhes a significação intrínseca e social”,275 implica

270 LE GOFF, J . In: BLOCH, M. Op. cit, p. 17.271EVANS-PRITCHARD, E. E. Op. cit., p. 155.272 DELGADO, Lucila de A. N.; FERREIRA, Jorge (Orgs.). O Brasil republicano. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. V. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 102.273Id., ibid., p. 28.274 ELIADE, Mircea. La nostalgie es origines: méthodologie et histoire des religions. Paris: Gallimard, 1978, p. 18.275 Id., ibid., p. 32.

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conhecer e analisar as mudanças e transformações que o contexto histórico-social brasileiro

experimentou no período correspondente à formação e desenvolvimento do campo

protestante no país em suas diferentes faces, sobretudo com pontuações para os períodos

correspondentes ao surgimento e projeção do pentecostalismo em suas diferentes tipologias.

Assim procedendo, o movimento iurdiano será situado num ambiente de mobilidades do

campo religioso a partir de relações que se estabelecem com processos que articulam

elementos de âmbito sócio-econômicos e políticos no país, em tais períodos.

Seguindo a formulação feita por Pierre Bourdieu, de que “a história dos

deuses segue as flutuações históricas de seus seguidores”,276 uma análise das dimensões de

tempo, lugar e circunstância em que a Igreja Universal surgiu e se desenvolveu no contexto

brasileiro, possibilitará então melhor compreensão de como esse segmento religioso obteve

êxito em sua construção histórica.

2.1 – O contexto de movimentos precursores

Durante o período colonial, os colonizadores portugueses estabeleceram em

solo brasileiro uma espécie de monopólio religioso, procurando impedir a entrada de

estrangeiros que não professassem a fé católica. Nesse período, o Tribunal do Santo Ofício,

por meio das conhecidas “visitações”, agia com rigor para extirpar qualquer prática religiosa

que fosse caracterizada “heresia”. Gilberto Freyre registra que em tal época “todo navio que

entrava num porto brasileiro recebia a bordo um frade capaz de examinar a consciência, a fé

e a religião de um recém-chegado. O que barrava um imigrante naqueles dias era a ortodoxia

(...) a possibilidade de ser herético”.277

Não obstante as restrições impostas, duas tentativas de inserção foram feitas

por protestantes no Brasil colonial. Ambas acabaram sendo fortemente rechaçadas pela

religião dominante, o catolicismo, sob a acusação de se constituir prática de heresia, dado o

calor dos conflitos desencadeados naquele período pelo processo de reformas na igreja, que

contrapunha protestantes e católicos, e envolviam não só aspectos religiosos, mas também

interesses econômicos de controle e conquistas de mercados pelos países europeus. A

primeira tentativa de inserção no país, por protestantes, data de 1555, quando se deu a

chegada da expedição liderada por Nicolau Villegaignon, que objetivava fundar a França

Antártica e construir uma espécie de refúgio onde calvinistas franceses, conhecidos como 276 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 91.277 FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: Maria Schimidt, 1933, p. 237.

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huguenotes, pudessem praticar livremente a fé reformada, uma vez que sofriam duras

perseguições religiosas em seu país de origem. Como desdobramento ainda desse projeto, em

10 de março de 1857, chegaram em solo brasileiro pastores enviados por João Calvino, da

cidade de Genebra, Suíça, com o propósito de difundir o culto protestante.278 Em decorrência

de conflitos com líderes políticos e religiosos portugueses,279 a expedição teve seu término

com a expulsão, em 1860, de todos os franceses e a desativação da colônia que havia sido

organizada por Villegaignon.

Um segundo esforço de inserção no Brasil se deu no século XVII, entre

1630 e 1654, dessa vez com holandeses, através do empreendimento denominado

“Companhia das Índias Ocidentais”, que se estabeleceu inicialmente em Pernambuco e,

depois, em outras áreas do Nordeste brasileiro. O objetivo principal era o comércio de açúcar. 280 Maurício de Nassau, líder do projeto, também se preocupou em trazer ao Brasil pastores

da Igreja Reformada Holandesa, que chegaram a desenvolver um trabalho religioso não

apenas com a comunidade holandesa, mas também com outros grupos existentes no país.

Com esse propósito, foi elaborado até mesmo um catecismo nas línguas holandesa,

portuguesa e tupi, sendo organizadas inclusive algumas igrejas que praticaram o culto

reformado. Em 1654, conflitos políticos e econômicos provocaram o fim desse

empreendimento, desaparecendo também com isso os vestígios institucionais do cristianismo

protestante holandês em solo brasileiro.281

No início do século XIX, em 7 de março de 1808, sob a alegação de refúgio

frente à ameaça de invasão napoleônica em seu território europeu, a Família Real Portuguesa

desembarcou na cidade do Rio de Janeiro. Com esse episódio, o Brasil deixaria de ser apenas

uma colônia portuguesa, adquirindo um novo estatuto político, o de Reino Unido, fato que

iria modificar substancialmente tanto sua relação com outras nações como seus arranjos

sociais internos. Era o início de um novo capítulo na história da religião no país. Já em 25 de

novembro do mesmo ano, D. João VI emitiu um decreto garantindo a todos os imigrantes

considerados aceitáveis, “independente de nacionalidade e religião”, condições atrativas de

trabalho em solo brasileiro. Um pouco mais tarde, em 19 de fevereiro de 1810, registra-se a

278Fazia parte desse grupo um jovem estudante de teologia, chamado Jean de Léry, que vinte anos mais tarde publicaria uma obra que se tornou um importante documento sobre o Brasil, em tal período, denominada Viagem à Terra do Brasil.279 MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1984; LESTRIGANTE, Frank. A outra conquista: os huguenotes no Brasil. In: NOVAES, Adauto. A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.280REILY, Duncan. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1993.281MENDONÇA, A. G. Op. cit., p. 17.

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celebração do Tratado de Aliança e Amizade e Comércio e Navegação com a Inglaterra,

abrindo com isso os portos “às nações amigas”, permitindo que protestantes anglo-saxões

começassem a chegar e se estabelecer no Brasil com relativa liberdade para suas práticas

religiosas. Pela primeira vez o controle hegemônico institucional da Igreja Católica seria

modificado, permitindo que o campo religioso brasileiro ganhasse um novo estatuto em

relação à fé protestante.

Assim, permitiu-se que protestantes que viessem ao país a trabalho,

especialmente no comércio, pudessem aqui praticar a sua fé dentro de alguns limites que o

próprio acordo estabelecido prescrevia, tais como: não realização de cultos na língua

portuguesa, não construção de templo com semelhança aos templos católicos, não

proselitismo dos cristãos católicos etc. Mesmo com tais restrições, houve algum contato de

brasileiros com a fé reformada, pois vieram capelães para auxiliar espiritualmente os

marinheiros, os quais, além de realizarem cultos no interior dos navios, também se

encarregavam de distribuir algumas literaturas evangélicas. Ainda que fosse esta uma

pequena mudança, na verdade já representava uma grande diferença em relação a períodos

precedentes.

Uma política de incentivo à imigração permitiu que mais de dois mil

imigrantes provenientes do cantão de Friburgo se estabelecessem, em 1819, nas

proximidades da cidade do Rio de Janeiro, onde fundaram a colônia de Nova Friburgo.

Grande parte dos imigrantes, principalmente os de origem germânica, professava a fé

reformada, fato esse que provocou novos debates acerca da questão religiosa no Brasil,

especialmente quanto à legislação envolvendo casamento, registro de crianças e

sepultamentos em cemitérios públicos.

Com a Independência do país, as discussões religiosas ganharam maior

evidência na elaboração da primeira Constituição, em 1824. Muitos dos parlamentares, de

idéias liberais, defendiam maior abertura religiosa. E, mesmo com forte oposição no

Parlamento,282 e continuando a religião católica a ser a religião do Estado e a única a ser

mantida por ele, a Constituição reconheceu o Brasil como nação cristã em todas as suas

confissões, garantindo liberdade religiosa, ainda que fossem mantidas algumas restrições:A Rel ig ião Ca tó l ica Apos tó l ica Romana cont inuará a ser a Rel ig ião do Impér io . Todas a s ou t ras re l ig iões serão pe rmi t idas com seu cul to domés t ico , ou par t i cu la r em casas pa ra i s so des t inadas , sem forma a lguma exte r ior de t emplo . 2 8 3

282 Vale observar que dos 90 constituintes, 19 eram padres. 283Artigo 5º da Constituição do Brasil, promulgada em 24 de março de 1824. Apud FERREIRA, Júlio Andrade. Religião no Brasil. Campinas: LPC, 1992, p. 69.

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Também em 1824, chegaram ao país grupos de imigrantes, de origem

alemã, que se estabeleceram principalmente na região sul do Brasil. Mant iveram a sua re l ig ião de or igem, o lu teran i smo, mas , por serem um grupo é tn ico d is t in to , sof reram um processo de marginal ização cul tura l , o que l imi tou sua inf luência sobre o conjunto da soc iedade . Por mui to t empo não desenvolveram uma a t iv idade prose l i t i s t a , pe lo cont rá r io , so l ic i t a ram à sua igre ja de or igem que enviasse pas tores para d i r ig i r as novas comunidades . ( . . . ) A igre ja lu te rana começou a enviar pas tores ao Bras i l para a tender os imigrantes lu teranos . 2 8 4

Os pastores se encarregavam de atender religiosamente os conterrâneos,

praticamente sem nenhuma pretensão de converter brasileiros à sua fé, até porque havia

grande preocupação em conservar a sua cultura e tradição, daí o fato dos seus cultos e

celebrações religiosas serem realizados na língua alemã - 285 o que dificultou ainda mais a

aproximação do contexto cultural brasileiro.

Vale destacar que, a distribuição de Bíblias, pela Sociedade Bíblica

Britânica e Estrangeira, organizada em 1802, tornou-se um procedimento estratégico onde o

protestantismo encontrava barreiras legais. Por isso essa estratégia também foi adotada no

Brasil, através do trabalho de colportores.286 A primeira versão da Bíblia na língua portuguesa

foi feita por João Ferreira de Almeida, no século XVIII287, e isso contribuiu diretamente para

os primeiros empreendimentos evangelizadores do protestantismo em solo brasileiro. Com

esse propósito, em 1837 chegou ao Brasil o missionário americano, metodista, Daniel Kidder,

que viajou extensamente pelo país fazendo distribuição de Bíblias. Como fruto desse trabalho

chegou a ser organizada uma Igreja Metodista, no Rio de Janeiro, com aproximadamente 40

membros.

284 SIEPIERSKI, C. T. Op. cit., p. 33, 34.285HAHN, Carl Joseph. História do culto protestante no Brasil São Paulo: ASTE, 1995.286“Colportores” era a identificação que se dava aos missionários enviados pelas sociedades Bíblicas européias e norte-americanas, com finalidade de propagar a fé protestante na América Latina, tentativa esta que já havia sido feita, esporadicamente, e sem maiores êxitos, por piratas e corsários protestantes, durante o período colonial. Cf. DEIROS, Pablo. História del cristianismo en la América Latina. Buenos Aires: FTLA, 1992, p. 250.287João Ferreira de Almeida nasceu em 1628, na cidade portuguesa de Torre de Tavares. Educado num lar católico, converteu-se ao protestantismo aos quatorze anos de idade. Ligou-se à Igreja Reformada Holandesa e, mais tarde, partiu para o sudeste asiático como missionário. Em Málaca (atual Malásia), iniciou a tradução da Bíblia para o idioma português com base em versões latinas, italianas e francesas derivadas dos originais em grego e hebraico. Esta tarefa consumiu-lhe a vida, já que ao morrer, em 1691, ele ainda estava no livro de Ezequiel, no Antigo Testamento – embora o Novo Testamento já estivesse traduzido por ele desde 1677. A tradução completa da Bíblia foi concluída três anos depois, pelo pastor holandês Jacobus den Arrer. Os textos de Almeida foram submetidos a uma série de revisões e correções por parte da instituição a que estava subordinado, antes de publicá-los – o que ocorreu somente em 1748, mais de meio século após sua morte. Cf. Revista Eclésia, Rio de Janeiro, p. 41, abr. 2000; FERREIRA, A. J. Op. cit., p. 75-80.

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Finalmente, a partir da segunda metade do século XIX, iniciou-se o trabalho

mais propriamente missionário, feito principalmente por norte-americanos, período em que

também começam a ser organizadas as primeiras igrejas com a conversão de brasileiros à fé

reformada.288 Nesse contexto é que se desenvolverá o presbiterianismo no Brasil: a partir da

chegada ao país do missionário Ashbel Green Simonton. Nascido na Pensylvania, em 1833,

educado em lar protestante, Simonton decidiu dedicar-se ao trabalho pastoral quando estava

na conclusão do seu curso de Direito. Daí em diante, seguiu para a Universidade de Princeton

para estudar teologia e preparar-se para o exercício de sua vocação religiosa. Aos concluir o

seu curso de quatro anos, decidiu dedicar-se ao trabalho missionário. Em novembro de 1858

apresentou-se à Junta de Missões, indicando o Brasil como o campo missionário de sua

preferência.

Sintetizando esse período que envolve a inserção do protestantismo

histórico no Brasil, ao longo do século XIX, pode-se dizer que, em grande parte,

reproduziram-se em solo brasileiro as diferenças denominacionais das suas igrejas de origem,

notadamente norte-americanas. Permaneceram embates com a Igreja Católica até que,

finalmente, com a Proclamação da República, em 1889, e a promulgação de uma nova

Constituição, ficou estabelecida formalmente a separação entre Igreja e Estado, garantindo

legalmente a liberdade religiosa e admitindo uma situação de pluralismo religioso. O

catolicismo teve, assim, de gradativamente ceder terreno a uma nova religião institucional: o

protestantismo. Porém, a fragmentação deste em diferentes grupos, muitas vezes

concorrentes entre si, introduzia um aspecto de fragilidade na sua relação com a sociedade

brasileira:Ao longo do século XIX, angl icanos , lu te ranos , me todis tas , p resb i ter ianos , ba t i s tas , congregações t r ad ic ionai s do chamado “pro tes tan t ismo h i s tór ico” implantaram-se pac if icamente no Bras i l , ganhando adeptos ao r i tmo da imigração es t r ange ira , núc leos jun to aos quai s se enra iza ram, e da formação de uma c lasse média urbana , mas sem um c resc imento que pudesse inquie tar a h iera rquia ca tó l ica . 2 8 9

De qualquer forma, configurava-se uma diversidade e uma plasticidade no

campo religioso brasileiro, cuja dinâmica interna possibilitaria, mais tarde, a gênese de

movimentos mais agressivos, com maior impacto e ressonâncias culturais em dimensões mais

amplas.

288FILHO, Prócoro Velasques; MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1990.289 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 81.

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2.2 - O contexto do surgimento do pentecostalismo

No início do século XX, o Brasil experimenta significativas transformações

sociais, especialmente em sua paisagem urbana. Cidades como Rio de Janeiro e São Paulo,

por exemplo, recebem contingentes migratórios de diferentes regiões brasileiras, atraídos,

principalmente, pelo anseio de novas possibilidades de trabalho criadas pela instalação de

fábricas nesses dois maiores centros do país. Acrescenta-se a isto que, com o fim da

escravatura, em 1888, houve o deslocamento populacional de ex-trabalhadores escravos para

os centros urbanos em busca de outras oportunidades de vida.

Esse crescente aumento dos contingentes urbanos gerou um descompasso

entre demandas básicas da população e existência de infra-estrutura, desencadeando uma

série de dificuldades sociais:Nessa época , o adensamenteo de populações nas grandes c idades ocor reu sem que houvesse uma correspondênc ia na expansão da inf ra -es t ru tura c i t ad ina e na ofer ta de empregos e moradias , t ransformando esse avolumar menos num desenvolv imento e mais num inchaço , o que acentuou o cont ras te en t re as des igualdades socia i s que a í se f i ze ram presentes . 2 9 0

Nesse contexto, é também possível perceber conflitos entre os universos

rurais e os perfis mais propriamente “modernizadores” que se buscava implementar naquele

momento. Influenciados pelos modelos europeus de urbanização, elites brasileiras

empreendiam esforços com o propósito de transformar os então “complementos rurais” em

cidades modernas com prédios, monumentos, jardins, parques e longas avenidas. Em

decorrência disso eclodiu, na cidade do Rio de Janeiro, em 1904, o célebre episódio

denominado “Revolta da Vacina”, conforme descrito por José Murilo de Carvalho.291 Projetos

elaborados visando implementar uma reformulação urbanística passaram a conceber os

cortiços como um grande obstáculo a tais intentos, razão pela qual seria necessária a

desapropriação de muitos daqueles casebres. Para atingir esses objetivos, técnicos do governo

passaram a utilizar como argumento “científico” a realização de campanhas sanitárias contra

diversas doenças infecto-contagiosas, associando sua transmissão ao tipo de vida insalubre

daquelas populações. Atitudes contundentes foram então adotadas visando a “desinfecção”

dos moradores: invasão dos cortiços, expulsão e vacinação das pessoas à força. A população,

290WISSENBACH, Maria Cristina. In: SEVECENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil 3: república, da belle époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 91.291CARVALHO, José Murilo. Cidadãos ativos: a revolta da Vacina. Os bestializados: o Rio de Janeiro e república que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 91-139.

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entretanto, reagiu energicamente àquelas medidas, promovendo uma grande revolta nas ruas,

mobilizando milhares de pessoas “de todas as classes sociais”.292

Dentre os aspectos “mais consistentes” que desencadearam aquela

resistência, destaca-se um elemento de motivação cultural-religiosa. José Murilo afirma que

aquelas populações “não aceitavam qualquer intromissão do governo, poder material, no

domínio da saúde pública, reservado ao poder espiritual. Irritava-os particularmente o

monopólio exercido pelos médicos sobre a saúde prinvada e pública”.293

Observa-se, portanto, através de tais episódios, que um universo folclórico -

com imaginários fincados no mundo rural, segundo o qual a cura das doenças advém por

outros meios, que não os “científicos” - apresenta-se como um ingrediente cultural bastante

sólido no contexto brasileiro, capaz de efetivar resitências e mobilizar massas. E foi nesse

contexto e período que veio a se desenvolver em solo brasileiro uma nova tipologia cristã: o

pentecostalismo, disposto a vivenciar a fé numa dismensão folclorizada.

O marco histórico de origem desse segmento pode ser situado em 1901, em

Topeka, Kansas, Estados Unidos. Charles Fox Parhan, evangelista metodista - ligado aos

movimentos de santidade dos séculos XVIII e XIX e fundador e dirigente da Escola Bíblica

Betel - passou a ensinar a seus alunos ser possível contemporaneizar ou reviver os sinais de

êxtase que teriam ocorrido com cristãos do primeiro século da era cristã, conforme relato do

texto bíblico Atos 2:1-4. Segundo tal narrativa, cerca de 120 cristãos que estavam reunidos

na cidade de Jerusalém, teriam recebido o “dom” ou a capacidade divina de “falar outras

línguas”. Esse episódio é lembrado como Pentecostes, por ter ocorrido no dia em que se

celebrava uma festa judaica que trazia esse nome em alusão aos cinqüenta dias que a

separavam da Páscoa. Daí a atribuição do nome “pentecostalismo”. A manifestação de um

fenômeno de êxtase, atribuído ao Espírito Santo, semelhantemente àquele descrito pelo texto

bíblico, teria se dado inicialmente com a jovem Agnes Ozman, aluna da escola dirigida por

Parhan. O fenômeno teria ocorrido posteriormente com outros estudantes, vindo também a

espalhar-se rapidamente por outros lugares no âmbito de várias igrejas.

Influenciado pela experiência pentecostal de Topeka , no ano de 1906, em

Los Angeles - EUA, o pregador negro William J. Seymour, membro da igreja Holiness,

passou a realizar cultos carismáticos em um salão alugado na Rua Azusa, 312, onde

oficialmente fundou a primeira denominação pentecostal, chamada de “Missão Evangélica da

Fé Apostólica”. A ênfase à obra do Espírito Santo evidenciada por êxtases tornou-se, em 292 Id., ibid., p. 102.293Id., ibid., p. 97, 98.

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pouco tempo, uma sensação local e, mais tarde, um fenômeno de alcance mundial. Os jornais

locais passaram a divulgar amplamente os episódios miraculosos que ali se afirmava ocorrer,

o que contribuiu para que muitos visitantes de vários lugares procurassem Los Angeles no

intuito de conhecer e depois também propagar aqueles sinais carismáticos. Estas reuniões na

Rua Azusa aconteceram diariamente por três anos, de onde surgiram inúmeros pregadores

responsáveis pela difusão do movimento em outras partes do mundo.

Além da alusão feita ao acontecimento bíblico já anteriormente descrito, é

preciso salientar que o pentecostalismo tem raízes precursoras que se reportam a imaginários

de movimentos religiosos de longa duração. Uma delas pode ser localizada nas práticas

montanistas ocorridas no segundo século da era cristã, sob a liderança de Montanus, o qual,

ao tornar-se cristão e receber o batismo no ano 156, entrou em êxtase e começou a falar em

línguas desconhecidas. Esse episódio foi classificado por alguns cristãos como manifestação

do Espírito Santo, como ocorrera no Pentecostes, não, porém, para a igreja institucional, a

qual classificou aquele ato como algo estranho ao cristianismo. Expulso da igreja como

herege, o novo profeta passou a liderar um movimento que atraiu muitos seguidores,

anunciando que a revelação divina ocorre diretamente através de seus profetas, sem a

mediação institucional. Além disso, Montanus se considerava o escolhido para anunciar o

novo advento messiânico, passando a afirmar que o fim do mundo estava próximo e prestes a

ser estabelecida, na Frígia294 - região onde morava - a nova Jerusalém, para onde, inclusive,

dirigiam-se muitos dos seus fiéis.

Sementes pentecostais também podem ser encontradas em movimentos

pietistas ou de “santidade” decorrentes da Reforma Protestante, entre os séculos XVI e

XVIII, na Europa ocidental.295 Um desses, foi o movimento puritano Quaker. Jorge Fox

(1642-1691), líder desse segmento cristão, passou a pregar que “o Espírito de Deus não fala

somente pelas Escrituras”, mas que também o faz diretamente através daqueles que

“interiormente são iluminados”. Afirmava ainda que era preciso “rejeitar o ministério

profissional dos clérigos”.296

Outro movimento que ganhou maior projeção e desempenhou maior

influência foi o metodismo, sob a liderança de John Wesley, na Inglaterra, no século XVIII.

294Montanus viveu em meados do século II, na Frígia, interior da Ásia Menor, região “de há muito notável pela religião de tipo extático nela existente”. Cf. WALKER, W. História da igreja cristã. Vol. 1, 2. São Paulo: ASTE, 1980, p. 86, 87; DREHER, Martin. A Igreja no Império Romano. São Paulo: Sinodal, 1994, p. 36.295 DARNTON, R. A história da leitura, p. 219.296WALKER, W. Op. cit., p. 160. Por volta de 1652, no Norte da Inglaterra, formou-se a primeira comunidade Quaker, que espalhou-se posteriormente para vários outros lugares, inclusive nas colônias inglesas da América do Norte.

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97

O metodismo tem sido considerado como um ramo tardio da Reforma Protestante. Segundo

Peter Burke, os processos de reforma religiosa ocorridos entre os séculos XVI e XVII

ficaram mais restritos às elites. O referido autor observa que tais reformas devem ser

compreendidas como o esforço do clero católico e protestante em promover transformações e

controles no universo da cultura folclórica. Depois de esforços fracassados nos séculos XVI e

XVII, ocorreu, no século XVIII, uma tentativa não a partir de estratos sociais superiores, mas

com a participação mais efetiva de categorias sociais populares. O metodismo representou

então uma forma dessa penetração dos valores da Reforma Protestante na cultura folclórica.

A partir do metodismo também ocorreu o chamado “reavivamento” de

grupos internos das igrejas protestantes nos Estados Unidos, no século XIX, aspecto no qual

podem ser encontradas as raízes mais próximas do que viria a se denominar pentecostalismo,

no início do século XX. Conseguindo romper com controles dogmáticos e institucionais,

movimentos avivalistas daquele período davam grande ênfase à experiência mística e direta

com o Espírito Santo, evidenciada por êxtases e fortes emoções: A função do pregador era convencer seus ouvin tes de seus pecados , l evá- los ao ar rependimento e to rná- los r esponsáve is pe la ace i tação ou re je ição da sa lvação . Para i s so , e ra necessá r io que se cr ia sse um c l ima a l t amente emocional , onde choros , desmaios e a taques h i s té r icos eram habi tua i s . 2 9 7

O pentecostalismo seria, então, diretamente decorrente dessa efervescência

religiosa: “o movimento pentecostal é o metodismo levado às suas últimas conseqüências”:298

( . . . ) pa rece que o pentecos ta l ismo absorveu da sua descendência metodis ta as convicções da exper iência subseqüente e ins tan tânea , e a s t ransfer iu in tegra lmente da san t i f icação , segundo Wesley , pa ra o ba t i smo do Espí r i to Santo . De qualquer forma, tan to o me todismo quanto o pentecos ta l i smo colocam sua ênfase em a lgum lugar depois da jus t i f icação . 2 9 9

Em relação ao campo religioso brasileiro também não demorou para que o

pentecostalismo lançasse nele as suas sementes, configurando-se em denominações próprias.

Num primeiro momento, surgiu o que viria a ser identificado pela tipologia de

297FILHO, P. V.; MENDONÇA, A. G. Op. cit., p. 85.298O Metodismo pregava a santificação como uma segunda obra da graça após a justificação: “não conhecemos um só caso, em qualquer lugar de uma pessoa receber, no mesmíssimo momento, a remissão dos pecados, o testemunho permanente do Espírito, e um coração novo e limpo”, dizia John Wesley. A origem do movimento de santidade norte-americano nas décadas de 1840-1850, no qual o pentecostalismo viria também fincar suas raízes, tinha a intenção de preservar e propagar o ensino de Wesley: O processo de salvação nesse movimento envolvia duas fases: a conversão (justificação), significando a libertação dos pecados cometidos; e a inteira ou plena santificação, entendida como a libertação da falha da natureza moral que leva a pecar. Cf. SEMANA DE ESTUDOS TEOLÓGICOS, XI, 1992, Londrina. Anais: o neopentecostalismo brasileiro. Londrina: STL, 1992.299 Id., ibid.

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“pentecostalismo clássico”,300 através da formação de duas igrejas: a Congregação Cristã no Brasil e a Igreja Evangélica Assembléia de Deus - ambas organizadas por líderes que tiveram

inicialmente experiências com o movimento de Los Angeles.

A Congregação Cristã 301 tem sua organização inicial oficialmente datada

em 05 de junho de 1910, na cidade de Santo Antônio da Platina – PR. Seu líder-fundador foi

Luís Francescon, um estrangeiro italiano que se considerava missionário autônomo e,

portanto, não era mantido financeiramente por nenhuma instituição do exterior. Francescon,

de origem religiosa presbiteriana-calvinista, havia residido anteriormente em Los Angeles,

onde passara a freqüentar o movimento pentecostal ali nascente. Decidiu expandir aquele

modelo de cristianismo para a América do Sul, iniciando seu trabalho em Buenos Aires,

Argentina, em 1909. Não obtendo grandes êxitos naquela cidade, quatro meses depois

dirigiu-se para o Brasil, chegando a São Paulo no início de 1910, onde passou a residir no

bairro do Brás, lugar de grande concentração de italianos. Naquele mesmo ano, ao saber da

existência de uma colônia italiana em Santo Antônio da Platina - PR, professante do

catolicismo romano, decidiu visitá-la com o propósito de fazer ali conversos à fé pentecostal.

O trabalho obteve êxito e dele nasceu uma nova igreja em solo paranaense. Retornando a São

Paulo, naquele mesmo ano, Francescon passou a fazer pregações na igreja Presbiteriana do

bairro do Brás, até que suas idéias doutrinárias geraram conflitos com a liderança daquela

igreja. Tendo um grupo simpatizante com o seu ensino, composto por italianos que

freqüentavam aquela comunidade, promoveu um cisma e constituiu oficialmente a sua nova

igreja, à qual foi filiado o núcleo já existente no Paraná.

Como bases teológico-doutrinárias, Francescon adotou e adaptou para a sua

nova igreja estruturas eclesiásticas do presbiterianismo calvinista, como é o caso da doutrina

da predestinação, segundo a qual Deus de antemão pré-determina os que haverão de ser

salvos ou condenados. Por isso mesmo, nessa denominação não se fazem campanhas

evangelísticas com apelos à conversão em locais públicos que não os templos, ou ainda

através do uso dos meios de comunicação de massa, como ocorre normalmente com os

demais segmentos pentecostais. Os fiéis fazem convites individuais para os cultos,

principalmente para os dias de batismo. O batismo se torna, então, um apelo mudo: quem se

apresenta ao batizador recebe o rito sem perguntas. Desses, alguns acabam não ficando na 300Tipologia e classificação empregada por vários pesquisadores, dentre os quais, Antonio de Gouvêa Mendonça, no capítulo Sociologia da religião no Brasil: o pentecostalismo, suas terminologias e classificações. In: MENDONÇA, A. G. (Org.). Sociologia da religião no Brasil. São Paulo: UMESP, 1999, p. 73-84.301 Esta denominação conta hoje com mais de dois milhões de seguidores no Brasil, cf. CAMPOS, Leonildo Silveira; GUTIÉRREZ, Benjamin (Orgs.). Na força do Espírito. Os pentecostais na América Latina: um desafio às igrejas históricas. São Paulo: AIPRAL/UMESP, 1996, p. 111.

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igreja, mas isto não é obstáculo, pois entendem que apenas os eleitos hão de permanecer, isto

é, os “verdadeiros chamados”, por isso, como destaca Mendonça, “neste sentido, eles são

mais presbiterianos que os presbiterianos brasileiros”.302

O pesquisador Carl J. Hahn destaca que os “anciãos”, além de não

possuírem formação teológica específica, são obreiros voluntários e nada recebem por seu

trabalho:As cole tas recolh idas regula rmente vão para uma tesoura r ia cen t ra l para serem apl icadas na cons trução de novos templos . Há um fundo d iacona l , cons t i tu ído por cont r ibu ições espontâneas dos membros , que é usado para a judar os que es tão em di f icu ldades prementes . 3 0 3

Para a configuração de sua fé, lêem quase que exclusivamente a Bíblia

tendo, quando muito, o auxílio de alguma literatura doutrinária sobre o texto bíblico,

publicada pela própria denominação. Crêem que os sermões pregados em seus cultos são

recebidos diretamente pela revelação do Espírito Santo, o qual coloca a mensagem necessária

no coração de um dos anciãos ou diáconos, que ficam estrategicamente assentados na fileira

da frente de seus templos, durante as celebrações cúlticas.

Em 1935, sob a vigilância do Estado Novo chefiado por Getúlio Vargas, em

que se impunha rigoroso controle em relação ao estrangeirismo, a Congregação substituiu em

seus cultos a língua italiana pela portuguesa, fato que também viria contribuir para a sua

expansão, a partir daí, para o interior do país:A ident i f icação com os i t a l i anos do Brás , (“pequena I tá l i a” , ba i r ro operár io onde se concent ra ram os imigrantes i t a l ianos em São Paulo) era t an ta , que o segundo h inár io ( impresso em Chicago em 1924) a inda era to ta lmente na l íngua i t a l i ana . A te rce i ra ed ição (1935) t inha o to ta l de 580 h inos e somente 250 deles es tavam na l íngua por tuguesa . Porém, a ed ição de 1943 fo i impressa to ta lmente em por tuguês . Esse h inár io , Louvor e Súpl icas a Deus , contém os 12 pontos dout r inár ios da igre ja , uma breve h i s tór ia da e laboração da obra e uma c lass i f i cação dos h inos conforme os momentos l i tú rg icos . 3 0 4

Na década de 1950 se deu o crescimento mais acentuado dessa igreja,

quando nordestinos passaram a ocupar o lugar dos italianos no referido bairro do Brás.

Atualmente, a maior concentração de templos ocorre em São Paulo e no Paraná, ainda que

estejam presentes em todos os demais estados brasileiros.

302 MENDONÇA, A. G. Introdução ao protestantismo no Brasil, p. 49.303HAHN, C. J. Op. cit., p. 346.304CAMPOS, L. S. ; GUTIÉRREZ, B. (Orgs.), p. 111.

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A Igreja Evangélica Assembléia de Deus305 também tem suas raízes

fincadas no movimento pentecostal de Los Angeles. No Brasil, foi oficialmente estabelecida

em 1911, na cidade de Belém – PA, por dois pentecostais sueco–americanos, Daniel Berg e

Gunnar Vingren, que atribuíam suas motivações missionárias às revelações recebidas

“diretamente de Deus”. O próprio Vingren, mais tarde, descreveu esta experiência vivenciada

quando ainda se encontravam nos Estados Unidos: Num dia , no verão , Deus pôs no coração que nos dever íamos reunir num sábado à noi te para oração . Quando orávamos , o Espí r i to do Senhor ve io de uma forma poderosa sobre nós ( . . . ) . Um i rmão, Adol fo Ul ld in , recebeu pelo Espí r i to Santo pa lavras maravi lhosas e mis tér ios e scondidos , que foram revelados . Ent re mui tas co i sas , o Espí r i to Santo fa lou por meio des te i rmão que nós dever íamos i r a um lugar chamado “Pará” , onde o povo a quem tes te f ica r íamos de Jesus e ra de um nível soc ia l mui to s imples . Nós i r í amos ens ina r-lhes os pr imei ros rudimentos do Senhor . Também escutamos pe lo Espí r i to Santo , a l inguagem daquele povo, o id ioma por tuguês . ( . . . ) Nenhum dos presentes conhec ia ta l luga r . Após a oração , fomos a uma l ivrar ia a f im de consul ta r um mapa que nos mos t rasse onde es tava loca l izado o Pará . Descobr imos en tão que se t r a tava de um Es tado no Nor te do Bras i l . A chamada d iv ina es tava , en tão , conf i rmada ( . . . ) . 3 0 6

Em 05 de novembro de 1910, a bordo do navio Clement, os missionários

deixaram a cidade de Nova Iorque com destino ao Brasil. No dia 19 daquele mesmo mês e

ano desembarcaram, em um dia de sol escaldante dos trópicos, na cidade de Belém, no Pará.

Alojaram-se nas dependências da Igreja Batista, cujo pastor também era de origem sueca.

Depois de alguns meses, após certo aprendizado da língua portuguesa, os suecos, por

conflitos doutrinários, provocaram uma cisão na igreja ali existente e, com 19 membros,

criaram a Missão de Fé Apostólica, cujo nome, após 1914, foi alterado, assim como também

ocorrera nos Estados Unidos, para Igreja Assembléia de Deus.

Acompanhando a migração dos nordestinos, a igreja em poucos anos se

expandiu para o Sul (hoje, Sudeste) do país. em poucos anos. Após três décadas de

predominância missionária sueca, o controle passou à liderança brasileira, e a base de

expansão deixou de ser Belém para centralizar-se no Rio de Janeiro, onde também existe

grande presença de nordestinos. Nota-se que o pentecostalismo tem raízes fincadas no

contexto do nordeste brasileiro e tem projeção ligada à inserção dos nordestinos em outras

regiões do país. Aliás, esse também pode ser um aspecto que contribui para a composição do

305A Assembléia de Deus possui atualmente mais de 8 milhões de adeptos no Brasil. Esta denominação continua ostentando com ampla vantagem o primeiro lugar quanto ao número de membros entre as igrejas evangélicas no país.306 CONDE, Emílio. História das Assembléias de Deus no Brasil - Belém 1911-1961. Rio de Janeiro: Livraria Evangélica, 1960, p. 14.

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imaginário messiânico presente no pentecostalismo brasileiro, pois tal região do país tem

forte tradição histórica de messianismo, como o veremos mais adiante.

Na Assembléia de Deus, a hierarquização interna está centralizada na figura

do pastor. Nas comunidades locais, essa liderança se subordina à dos templos–sede, e estes a

uma convenção nacional. Os pastores assembleianos eram, inicialmente, leigos e sem preparo

teológico, o que os levava a se identificar bastante com o povo na forma de pensar, falando-

lhe na mesma linguagem, causando com isso grande empatia na projeção de suas mensagens.

Atualmente, exige-se dos líderes ao menos uma formação teológica básica. Coincidência ou

não, o fato é que essa igreja já não mais apresenta escalonários índices de crescimento como

ocorrera anteriormente.

O grande contingente que aflui à sua mensagem é atraído, dentre outros

fatores, pela fraternidade que agrega ali pessoas dos mais diferentes níveis culturais e sociais

e, principalmente, pela oportunidade que lhes é outorgada de exercer cargos de liderança

através dos diferentes programas de evangelização desenvolvidos pela denominação. A partir

do momento em que o converso torna-se membro pelo rito do batismo de imersão em água,

passa a buscar o chamado “batismo com o Espírito Santo”, evidenciado pela glossolalia e

seguido de diversos dons ou carismas, mediante os quais se tem a oportunidade de provar que

são “vocacionados pelo Senhor”.

O sociólogo Ricardo Mariano resume os primeiros anos do pentecostalismo

brasileiro da seguinte forma:Compostas major i t a r iamente por pessoas pobres de pouca escola r idade , d i scr iminadas por pro tes tan tes h i s tór icos e per seguidas pe la Igre ja Cató l ica , essas igre jas se ca rac ter izavam por um fe r renho an t ica to l ic i smo. Em 30 anos , seus t emplos j á es tavam em todos os Es tados bras i l e i ros . 3 0 7

Vale observar que o período que marca a inserção e o desenvolvimento das

primeiras formas de pentecostalismo em solo brasileiro ainda é configurado pela presença

majoritária do catolicismo no país. Formalmente ligado, enquanto instituição, ao Estado até o

final do Império, o catolicismo entra no século XX sob o signo da romanização e, ao mesmo

tempo, a tentativa de recuperação de seus laços privilegiados com o poder político. Mesmo

com a instauração do fim do padroado, com a promulgação da primeira Constituição Federal

da República, a Igreja Católica continuou agir como se tivesse ainda de operar com primazia

e com certa exclusividade no contexto brasileiro. Submetida à injunção de reorganizar-se

institucionalmente, promovendo uma nova centralização do poder eclesiástico segundo os

307 Revista Eclésia, Rio de Janeiro, p. 46, abr. 2000.

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ditames de Roma e obrigada a reencontrar para si um novo lugar na sociedade, a Igreja desde

meados dos anos 1920 abandonaria a posição defensiva em que se encontrava ante o avanço

da laicização do Estado e a ideologia do progresso inspirada no positivismo, para engajar-se,

com um novo espírito triunfante, na implementação da “restauração católica”.

A inauguração da estátua do Cristo Redentor na cidade do Rio de Janeiro,

em 1931, e, dois anos mais tarde, a realização do II Congresso Eucarístico Nacional

representam o espírito militante com o qual, recorrendo à tradição para solucionar suas

longas décadas de crise, no mais puro estilo conservador, o catolicismo atravessará as

décadas de 1930 e 1940, procurando dar corpo ao projeto de recriação de um “Brasil católico,

uma nação perpassada pelo espírito cristão”. Por isso, os “inimigos” da Igreja Católica são,

nesse período, o protestantismo e as religiões afro-brasileiras, genericamente incorporadas

pela designação de “espiritismo”, ao lado do pensamento cientificista e da secularização que

ameaçavam a posição institucional e a hegemonia espiritual do catolicismo, num Brasil

“verdadeiramente cristão”.308

A década de 1930 assinalará acontecimentos importantes pela força do seu

simbolismo:Em toda a década de 30 , a Igre ja Cató l ica pe rsegui rá o obje t ivo de consol idar sua unidade em plano nacional , a t ravés de uma centra l i zação e coordenação da d i reção ep i scopa l e do apos to lado dos le igos . Es ta un idade havia s ido assegurada durante o pe r íodo colonia l pe los mecanismos do Padroado, onde o Estado det inha o cont ro le da Igre ja . O re i e depois o imperador eram vi r tua lmente o che fe da Igre ja no pa í s . Proclamada a Repúbl ica em 1889 c r ia-se um vaz io de poder , logo preenchido por Roma, quando f racassam as t en ta t ivas dos b i spos bras i l e i ros de c r iarem seus própr ios mecanismos de ar t i cu lação in terna , guardando um ce r to cont ro le sobre a Igre ja bras i le i r a . 3 0 9

Desde os primeiros dias da República, havia uma reivindicação dos bispos

por um Concílio Plenário Brasileiro. Este veio a se realizar em 1939. Mas o esforço

institucional de busca pela “unidade do povo católico” se daria, antes, pelo prevalecimento da

força do simbólico, centralizada em um elemento de devoção: “a 16 de julho de 1930, o Papa

Pio XI declara Nossa Senhora Aparecida Padroeira do Brasil”.310 Passava-se, dessa maneira,

do até então padroeiro principal da nação, São Pedro de Alcântara – estabelecido durante o

308 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 73, 75, 76.309 BEOZZO, José Oscar. A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado Novo e a redemocratização. In: FAUSTO, Boris (Org.). História geral da civilização brasileira. O Brasil republicano. São Paulo: Difel, 1986, p. 293.310 Id., ibid., p. 294.

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Império e mantido mesmo após a entrada da República - para uma representação oriunda dos

estratos populares:Sua h i s tór ia é s inge la . T i rada das águas do Para íba por pescadores encarregados do pe ixe para a comi t iva do Conde de Assumar , em v iagem de São Paulo pa ra Minas , em 1717, é guardada na casa de Fel ipe Pedroso . Só em 1743, pede o v igá r io de Guara t ingue tá l icença ao b i spo do Rio de Jane iro para er ig i r uma cape l inha no loca l . ( . . . ) Aparec ida pouco a pouco se torna r ia um dos san tuá r ios de maior devoção popula r no pa ís . 3 1 1

É cultural e socialmente significativo o fato de Aparecida não ter por

origem uma iniciativa diretamente episcopal ou clerical, assim como de grupos dominantes,

mas, ao contrário, ter sido encontrada enquanto imagem por pescadores, que viviam do

trabalho diário e, como observa Beozzo, “abrigada em casa de família e posteriormente numa

capela tosca e humilde”:a imagem do pr ime iro ora tór io não per tenceram a nenhum membro da c la sse dos grandes propr ie tár ios e senhores de esc ravos , co isa t ão comum no Bras i l co lonia l , onde as cape las eram cons t ru ídas pe los senhores de engenho, de minas e de f azendas de gado ou ca fé . Não faz ia par te daquelas invocações apropr iadas por a lguma c lasse em par t i cu la r ou a lgum grupo dominante , como era praxe acontece r . 3 1 2

Além do que, há de se considerar ainda o fato de aquela pequena imagem

retirada do rio ser de cor negra. Numa igreja com presença predominantemente branca em

sua membresia e liderança, aquela representação teria o significado de identificação e

aproximação daqueles que por quase quatrocentos anos viveram discriminados pela condição

de escravos e pela cor da pele. “Sendo uma Virgem dos mais pobres podia ser uma Virgem

de todos” – ressalta Beozzo.313 A população negra e mestiça, assim como a massa procedente

de estratos sociais populares, aflui no cumprimento de votos e promessas a Aparecida, fato

que representa uma interrogação levantada à consciência católica acerca da força das crenças

populares, patrimônio cultural e espiritual de tais segmentos da população duramente

combatido ao longo de quase toda a história do país.

Naturalmente, o estabelecimento de Aparecida como padroeira do Brasil

também está associado aos interesses políticos e econômico-sociais do período:Aparec ida serv iu mui tas vezes na h i s tór ia mais recente do pa í s como um imenso capi ta l e sp ir i tua l e soc ia l acumulado pelo apego e f ide l idade do povo à Mãe de Deus , u t i l izado f ina lmente em benef íc io dos in te resses da h ierarquia ec les iás t ica e da ideologia das c lasses dominantes . Em épocas de duros emba tes ideológicos ,

311 Id., ibid.312 Id., ibid., p. 295.313 Id., ibid.

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Aparec ida fo i apresentada como a me lhor bar re i ra à penet ração do comunismo no Bras i l , a pa lavra comunismo se rv indo o mais das vezes de f achada à reação das c la sses dominantes a re formas e mudanças necessár ia s para a sobrevivência do própr io povo. 3 1 4

É necessário considerar o fato de que Aparecida se situa no Vale do Paraíba

paulista, num momento da história nacional em que a hegemonia econômica havia se

transferido do Norte açucareiro e da mineração do ouro nas Gerais, para o Sul cafeeiro, cujo

primeiro berço de prosperidade foi o Vale do Paraíba fluminense e paulista.

Há igual interesse de manter uma identidade e uma unidade nacional em

torno de um símbolo religioso. Por isso mesmo, logo após a Revolução de 1930, houve uma

grande concentração católica no Rio de Janeiro devido ao deslocamento da imagem de

Aparecida para uma homenagem na capital da República perante o Governo Provisório em

maio daquele mesmo ano:No dia 31 de ma io , chega a imagem conduzida de Aparec ida em t rem espec ia l pe lo Arcebispo D. Duar te . De tarde pe rcorre rá em proc issão as ruas do Rio a té a Esplanada do Cas te lo , onde na presença de imensa mul t idão , do Pres idente e do seu Minis tér io , do corpo d ip lomát ico convidado pelo I t amara t i , o ca rdea l consagra o pa í s à Virgem da Conce ição Aparec ida . 3 1 5

Esse evento religioso estava, entretanto, carregado de repercussões políticas:O país re faz ia- se mal do aba lo t e r r íve l p rovocado pe la Revolução de 30 . Germens de d i scórd ia pol í t i ca e surdos per igos ameaçavam aque le momento . A f is ionomia da Repúbl ica Nova – como se in t i tu lara o reg ime ins taurado pela Revolução – mant inha-se enigmát ica , numa época em que a idé ia comunis ta f ermentava nos pa í ses da América . Não se podia prever o que o fu turo rese rvava para o Bras i l . De qua lquer modo, haver ia uma renovação nos moldes pol í t i cos e leg is la t ivos , em que a Igre ja dever ia in f lu i r , em nome da imensa ma ior ia ca tó l ica do pa í s . Uma grande concent ração de e lementos ca tó l icos na Capi ta l da Repúbl ica , em momento ass im dec is ivo , va ler ia por uma demons tração de força moral , pe ran te os poderes públ icos a inda hes i tan tes en t re corren tes d iver sas . E va le r ia a inda como uma opor tunidade de desper ta r a consc iênc ia ca tó l ica aos seus deveres c ív icos . 3 1 6

Quando da inauguração do Cristo Redentor no alto do Corcovado, em que

houve nova concentração popular, o presidente e todo o Ministério também fizeram questão

de marcar presença naquele ato: O coro a f avor de Vargas era engrossado também pe la Igre ja Cató l ica . S ímbolo dessa a l iança é a e s tá tua do Cr i s to Redentor , no Corcovado, inaugurada em 12 de outubro de 1931 com a presença de

314 Id., ibid., p. 296.315 Id., ibid., p. 297.316 ROSÁRIO, Maria Regina do Santo. O cardeal Leme (1882-1942). Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1962, p. 227, 228.

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Vargas e do Cardeal d . Sebas t ião Leme, o mesmo que a tuara um ano antes na des t i tu ição de Washington Luís . 3 1 7

Essas imbricações de interesses políticos e religiosos mereceriam o

destaque de Oswaldo Aranha – nomeado ministro da Justiça do Estado Novo – expresso nas

seguintes palavras:Quando chegamos do Sul , nós pendíamos para a Esquerda ! Mas depois que v imos os movimentos r e l ig iosos populares em honra de Nossa Senhora Aparec ida e do Cr i s to Redentor , pe rcebemos que não podíamos i r cont ra o sen t imento do povo. 3 1 8

Em julho de 1939 destaca-se a reunião dos bispos para o Concílio Plenário

Brasileiro. O governo brasileiro oferece aos conciliares um banquete no Palácio do Itamarati.

Nos respectivos discursos de representantes da igreja e do Estado, a tônica era a “colaboração

mútua”. Nesse sentido, vale destacar as palavras proferidas pelo presidente Getúlio Vargas:Apesar de separados os campos de a tuação do poder po l í t i co e do poder esp i r i tua l , nunca en t re e les houve choques de ma ior impor tância ; re spei tam-se , auxi l i am-se . O Es tado de ixando à Igre ja ampla l iberdade de pregação , assegura- lhe ambiente propíc io a expandir -se e a ampl iar o seu domínio sobre as a lmas; os sacerdotes e miss ionár ios co laboram com o Es tado , t imbrando em se r bons c idadãos , obedien tes à Le i c iv i l , compreendendo que sem e la – sem ordem e sem disc ip l ina por tan to – os cos tumes se corrompem, o sen t ido da d ignidade humana se apaga e toda a v ida esp i r i tua l se e s tanca . Tão es t re i t a cooperação jamais se in ter rompeu; af i rma-se , de modo auspic ioso , nos d ias presentes e há de in tens i f i car - se no futuro , mantendo a admirável cont inu idade de nossa h i s tór ia . 3 1 9

No Concílio, realizado de 2 a 20 de julho do referido ano, também já se

observam as preocupações dos bispos quanto aos problemas que ameaçavam mais de perto a

hegemonia da Igreja Católica naquele período, sobretudo nas camadas mais populares. Por

isso, ao longo dos debates internos, o Concílio criou comissões que trabalhassem

cuidadosamente três temas: o protestantismo, o espiritismo, a questão social. Observa o

historiador católico Oscar Beozzo:O protes tan t i smo, a té en tão um fenômeno l igado à imigração a lemã ( . . . ) lu te rano em sua doutr ina e sem esp í r i to de conquis ta , v inha sendo rap idamente suplan tado pelo pro tes tan t i smo das se i t as nor te -amer icanas , cu ja propaganda se in tens i f i ca depois dos anos t r in ta . Com o seu ind iv idua l i smo acentuado, seu agudo senso do dever no t raba lho , seu en tus iasmo pela Bíb l ia e a ace i tação de pas tores v indos do povo miúdo, esse pro tes tan t i smo mi l i t an te conseguia pene trar com fac i l idade nas novas camadas populares , f ru to do capi ta l i smo indus t r ia l dependente . A re l ig ião é o cosmopol i t i smo

317 O BRASIL EM SOBRESSALTO. 80 anos de história contados pela Folha de S. Paulo. São Paulo: PubliFolha, 2002, p. 57, 58.318 Id., ibid., p. 289.319 VARGAS, Getúlio. Discurso em homenagem ao Episcopado Nacional, reunido no 1º Concílio Plenário. Ação Católica, ano II, n. 10, p. 289, 290, out. 1939.

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das c lasses subal ternas na ordem capi ta l is ta e a í o pro tes tan t i smo das se i t as nor te -amer icanas desempenha papel -chave . 3 2 0

Não obstante a condição de primazia oficialmente ostentada no Brasil, cabe

observar que a Igreja Católica possuía uma face de “distanciamento do povo e do catolicismo

popular”:

Essa neocr i s tandade tem um cará ter conservador e desenvolv iment i s ta . E la se mantém ancorada em torno das o l iga rquias conservadoras e dos propr ie tá r ios rura i s . O processo de romanização do ca to l ic i smo bras i l e i ro en tra em c r i se com as mani fes tações r e l ig iosas do povo. São cons ideradas supers t i c iosas , a l i enantes e vaz ias de sen t ido . As impl icações desse t ipo de ca to l ic i smo se fazem sent i r nas ce lebrações l i tú rg icas , na ausência de um pro je to pas tora l que cons ide re a p lura l idade cu l tura l b rasi l e i ra . 3 2 1

Portanto, a ausência da Igreja quanto a uma proposta mais condizente com

a cultura e as necessidades da grande maioria da população brasileira. Nesse período:Os desequi l íbr ios da sociedade passam a se r c i t ados com bastan te veemência , no en tan to , sem cons iderar a formação h i s tór ica , cul tura l , po l í t i ca e re l ig iosa do povo. Exis t i a , por tan to , uma f ronte i ra en tre Povo, Es tado e Igre ja . Um jogo de representações , cons t ru ído pe lo poder po l í t i co e re l ig ioso , es tabe lec ia l imi tes e d iv isões para um verdadei ro d iá logo com as camadas populares . 3 2 2

Não conseguindo responder satisfatoriamente aos anseios dos grupos

urbanos que se formam, o catolicismo abre espaço para outras organizações, como bem

destaca Oscar Beozzo:os grupos urbanos que se a r t i cu lam para lu tar cont ra a exploração capi ta l i s ta não encont ram na Igre ja uma a l iada , pe lo cont rár io , a nascente c lasse operár ia encont ra no anarquismo, no socia l i smo e no maximal ismo sua v i são de mundo, nos jornai s operá r ios , l ibe ra is de e squerda , an t ic le r ica is e ana rquis ta s , sua forma de expressão e , nos c lubes , mutua l idades , s ind ica tos e cen tros operár ios suas formas de organização . 3 2 3

O período de 1930 a 1945 configurou um momento extremamente

complexo da vida econômica brasileira. A crise internacional, de 1929, levou a um impasse a

economia cafeeira, gerando a perda da hegemonia política por parte das oligarquias do café.

O Estado, com Vargas, passou a intervir de modo crescente na economia e na sociedade. O

período compreendido entre 1945 e 1964 possibilitou “a emergência de classes populares no

320 BEOZZO, O. Op. cit., p. 331.321 DELGADO, Lucila de A. N.; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 98.322 Id., ibid., p. 100.323 FAUSTO, Boris (Org.). Op, cit, p. 277, 278.

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quadro de uma democracia eleitoral que permitiu os experimentos de Vargas, Kubitschek,

Quadros e Goulart” no quadro político brasileiro.324

Na década dos anos 50, “alguns imaginavam até que estaríamos assistindo

ao nascimento de uma nova civilização nos trópicos”, a qual combinava a incorporação das

conquistas materiais do capitalismo com a persistência dos traços de caráter que nos

singularizavam como povo: a cordialidade, a criatividade, a tolerância. De 1967 em diante, “a

visão de progresso vai assumindo a nova forma de uma crença na modernização, isto é, de

nosso acesso iminente ao ‘Primeiro Mundo’”.325

Entre 1930 a 1950, sobretudo, processou-se um contexto propício ao

seguimento de líderes com projeção salvacionista por parte das massas. Esse caráter cultural

de messianismo pode ser observado, por exemplo, nas próprias palavras de Vargas, quando,

em discurso ao povo, apresenta-se como um líder capaz de viabilizar-lhe amparo,

paternalismo e satisfação de suas necessidades sem mediações institucionais:Hoje , o Governo não tem mais in termediár ios en t re e le e o povo. Não mais manda tár ios e pa r t idos . Não há mais representan tes de grupos e não há mais representan tes de in te resses pa r t idár ios . Há s im o povo no seu conjunto e o governo d ir ig indo-se d i re tamente a e le , a f im de que , auscul tando os in teresses co le t ivos , possa ampará- los e rea l izá- los , de modo que o povo, sen t indo-se amparado nas suas a sp irações e nas suas conveniências , não tenha necess idade de recor rer a in termediá r ios para chegar ao Chefe de Es tado [ . . . ] . 3 2 6

Marilena Chauí, ao analisar esse aspecto, aponta para o caráter de

sacralidade que envolve o populismo,327 destacando o que chama de “mito fundador” como

um poderio que provém de uma fonte imaginária “extra-social”, isto é, da divindade,

responsável por conferir ao líder poderes e representações salvacionistas, ou seja, a v i são do governante como sa lvador e a sacra l ização-sa tan ização da pol í t i ca . Em out ras pa lavras , uma v isão mess iân ica da pol í t i ca que possu i como pa râmet ro o núcleo milenar i s ta como embate f ina l , cósmico , en t re luz e t r evas , bem e mal . 3 2 8

A autoridade máxima e a síntese do poder público moderno se fundem,

dessa maneira, em tal período, numa pessoa: o presidente. Tal formulação acabava por

combinar tradições da sociedade brasileira fincadas na longa duração – fundadas no poder

personalizado do patriarca rural, assim como do líder com carisma messiânico – com os mais

vigorosos imperativos da política da época: 324 Id., ibid., p. 106.325 NOVAIS, Fernando A. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 560.326 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, p. 134.327 Aqui entendido como política fundada no aliciamento, sobretudo, das camadas sociais de menor poder aquisitivo.328 Id., ibid., p. 19, 20, 30.

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A capac idade incomparáve l de Ge tú l io de se comunicar com todo o povo, que v ia ne le o “chefe-guia” e o “amigo-pai” , o qual v ibrava no mesmo compasso que sua “famíl ia” ( . . . ) Uma das imagens ma is f reqüentes a que os d i scursos es tado-novis ta s recorr iam para carac ter iza r o processo de cons t rução do Es tado Nac iona l , e ra formação de uma grande famíl ia . Ne la , a s l ideranças s ind ica i s e ram como i rmãos mais ve lhos , e o pres idente , o pa i , de um povo nobre e t raba lhador – “o pa i dos pobres” . 3 2 9

Tradição e modernidade se confluíam harmoniosamente no

empreendimento que consagrava, a um só tempo, o reforço do sistema presidencial e a

“construção mítica da figura de seu representante como uma encarnação do Estado e da

nação”.330 Essa imagem se origina num mito sobre o qual se fundaria o processo de

integração da nação e que incorporaria suas características mais profundas. No caso de

Vargas, a relação direta líder-massa teve dupla feição da representação de interesses e da

representação simbólica, e Vargas transformava-se no terminal adequado para ambas: Num país sem di re i t a , sem esquerda , sem par t idos , sem Congresso , sem representação de in teresses a lém do corpora t iv i smo of ic ia l , sem nenhum in termediár io ins t i tuc ional en t re soc iedade e governo , ( . . . ) Getú l io Vargas se d i r ig ia d i re tamente às massas no melhor es t i lo f asc i s ta . Se não es t imulava o cu l to à pe rsonal idade , impunha na máquina adminis t r a t iva sua marca pessoal , devidamente d i fundida por um meio de comunicação que começava a v ive r seu apogeu – o r ád io . 3 3 1

Depois da transmissão inaugural, em 1922, o rádio começou a popularizar-

se dez anos mais tarde, quando o governo provisório autorizou a veiculação de propaganda:

“a população, na maioria analfabeta, tinha no rádio seu canal de comunicação com o

mundo”.332 Percebendo o potencial deste meio de comunicação, Vargas criou, em 1934, a

“Hora do Brasil”. Dois anos mais tarde, surgia no Rio de Janeiro a Rádio Nacional, líder de

audiência, encampada pelo governo em 1940, quando se transformou em instrumento de

apoio a Vargas.

A importância desse mito estava em seu poder mobilizador, que dependia

tanto dos elementos de crenças e valores como das relações que estabelecia com as

experiências imediatas das massas a que se destinava. O carisma de Vargas pode, assim, ser

associado a um poder provindo das massas, como destaca Marilena Chauí: No popul i smo, o poder encont ra- se t a l e p lenamente ocupado pelo governante , que o preenche com sua pessoa porque es ta se ident i f i ca com o corpo do de ten tor do poder (o povo) e com o própr io lugar do poder . O governante popul i s ta encarna e incorpora o poder , que não

329 SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 527, 528.330 Id., ibid., p. 522.331 O BRASIL EM SOBRESSALTO. 80 anos de história contados pela Folha de S. Paulo. Op cit., p. 56, 57.332 Id., ibid.

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mais se sepa ra nem se d i s t ingue de sua pessoa , uma vez que não se funda em ins t i tu ições públ icas nem se rea l iza a t ravés de mediações sócio-pol í t i cas . 3 3 3

As massas encontram no mito da personalidade um poder de expressão

simbólica fincado em estratos culturais de longa duração na sociedade brasileira:O “coração” é um obje to s imból ico de ampla força re l ig iosa e de uso d i fundido nas mi to logias po l í t i cas . Mas o imaginá r io do povo brasi l e i ro , como o óbvio , pode ser e spantoso , e a lguns pol í t icos l igados a Vargas t ambém. Ass im, não é poss íve l de ixar de reg is t ra r que , quando no ano de 1945 o Es tado Novo v iv ia inegáve is momentos de dec l ín io , o mito Vargas deu só l idas demons trações do quanto havia tocado o povo, par t i cu larmente o das c idades . O movimento queremis ta , i s to é , o movimento que “quer” a permanênc ia Vargas , p r imei ro como candida to á Pres idênc ia e , em seguida , como condutor dos t raba lhos cons t i tu in tes prev is tos pa ra 1946, l evou mul t idões às ruas e surpreendeu as opos ições reunidas no combate ao d i tador . 3 3 4

Maria Helena Capelato, ao comentar o varguismo e o peronismo, afirma

que “transformaram os imaginários coletivos numa força reguladora da vida coletiva e peça

importante no exercício do poder”.335 Essa autora aponta o aspecto da “divinização mítica”

que envolveu o governo brasileiro em tal período: O poder mís t i co e a ident i f i cação com o d iv ino a t r e lavam o des t ino do homem-Deus [Vargas] ao da Pát r ia . Sua imagem mescla- se à da pá t r i a una e imor ta l ; o des t ino desse homem era o des t ino mesmo do Bras i l . A d iv in ização do che fe insere- se no movimento de sac ra l ização da pol í t i ca ( . . . ) . 3 3 6

Quando se preparava para retornar ao poder, na década de 1950, em

entrevista publicada nos jornais dos Diários Associados, Vargas declarou: “Sim, eu voltarei,

não como líder político, mas como líder de massas”.337 Comentando a afirmação, Francisco

Weffort transcreve as seguintes palavras retiradas da nota editorial de uma revista publicada

em 1950, que retrata a visão dos liberais da época, a qual analisa o caráter explosivo da

emergência política das massas, que culminaram com a vitória de Getúlio Vargas em outubro

daquele ano: No dia 3 de outubro , no Rio de Janei ro , e ra me io milhão de mise ráve i s , ana l fabe tos , mendigos , f amintos e andra josos , esp í r i tos r eca lcados e jus tamente r essent idos , ind iv íduos tornados pe lo abandono em homens boça is , maus e v ingat ivos , que desceram os morros emba lados pe la cant iga da demagogia be rrada de janelas e

333CHAUÍ, Marilena. Raízes teológicas do populismo no Brasil: Teocracia dos dominantes, messianismo dos dominados. In: Anos 90 – Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 20.334 SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 529, 530.335 Como, por exemplo, o Varguismo (ou o Peronismo, na Argentina), conforme análises feitas por Francisco Weffort. In: CAPELATO, Maria H. Rolim. Multidões em Cena. Campinas: Papirus, 1998, p. 211-277.336 CAPELATO, M. H. R. Op. cit., p. 259.337 O BRASIL EM SOBRESSALTO. 80 anos de história contados pela Folha de S. Paulo. Op. cit., p. 69.

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automóveis , para votar na única e sperança que lhes r es tava : naquele que se proclamava o pa i dos pobres , o mess ias -char la tão . 3 3 8

Dias depois do pleito, o jornal Folha da Manhã publicava a seguinte

análise: “O fato é que Getúlio Vargas fala ao ‘homem da rua’”.339

Algumas dessas representações populistas, anteriormente apresentadas,

aglutinam elementos que se aproximam de aspectos presentes em movimentos messiânicos

ocorridos na América. Exemplificam isto: a projeção num momento de grande instabilidade

social;340 a sacralização da figura de seus líderes, mitificando-lhes o poder;341 o perfil

salvacionista, procurando estabelecer uma luta contra o mal (“inimigos”);342 a identificação

com símbolos de forte apelo popular (como as figuras religiosas);343 o desenvolvimento de

seus ritos a partir de simbolismos que impregnam o imaginário popular coletivo; o

estratégico uso dos meios de comunicação para propagação de sua mensagem.

2.3 O contexto de projeção do pentecostalismo

Com a “substituição” do populismo pelo nacionalismo,344 em meados da

década de 1950, no cenário político brasileiro, observa-se que se a palavra “populismo”

desaparecia, permanecia no entanto o seu caráter. Segundo Weffort, “o desenvolvimento

histórico posterior a 1930 havia constituído, através do populismo de Vargas e seus

herdeiros, a figura do moderno Estado Brasileiro”.345 Essa figura, porém, se encontrava

“inacabada”, “imperfeita”, uma vez que o “povo não era uma comunidade” mas um conjunto

de “contradições”. Em meio a essas tensões em desenvolvimento é que eclodiu o golpe

militar de 1964, quando o Estado projetou-se sobre o conjunto da sociedade com a finalidade

de dirigi-la soberanamente. O mito Vargas tornou-se, portanto, referência de poder

carismático no imaginário político do país. E mesmo após a morte trágica desse líder, sua

figura continua a se impor como uma referência imortal para a memória nacional.

A partir de 1964, a Igreja Católica, que marcara sua relação com o Estado

por um movimento ambíguo e pendular – quer de apoio e colaboração, quer de crítica diante

de antagonismos e entraves mais agudos, é compelida a redefinir posições, começando por 338Apud WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1990, p. 22.339 O BRASIL EM SOBRESSALTO. 80 anos de história contados pela Folha de S. Paulo. Op. cit., p. 70.340 Id., ibid., p. 212.341 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. LVI.342 CAPELATO, M. H. R. Op. cit., p. 267.343 Id., ibid., p. 276, 277.344 Id., ibid., p. 37-44.345 Id., ibid.

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sua própria estruturação interna. Inicialmente, houve divergência entre a cúpula da Igreja, na

avaliação do golpe. No final do mês de maio daquele ano, a Comissão Central da CNBB

emitiu pronunciamento extremamente cauteloso e ambíguo. A violência das inúmeras

punições pelo governo militar fez que o colegiado episcopal assumisse em um documento

oficial duas posições aparentemente contraditórias: procurava, por um lado, reafirmar sua

aliança com o Estado, apoiando a ação militar que “arrancou o país do comunismo”, que

deveria continuar para “consolidar a vitória, mediante o expurgo das causas desordem”; por

outro, lembrava a necessidade de que os acusados não fossem punidos pela força e tivessem o

direito à defesa, pois a restauração da ordem social não viria “apenas com a condenação

teórica e a repressão policial do comunismo”. O apoio ao Estado ocorre em nome da luta

contra o avanço comunista no país. Na mensagem da CNBB declaram os bispos que estão

“prontos a prestigiar, acatar e facilitar a ação governamental”, mas não silenciando “a voz a

favor do pobre e das vítimas da perseguição e da injustiça”.346

Conflitos e desgastes de relacionamentos, porém, se seguiram. No primeiro

aniversário do golpe militar, D. Hélder Câmara se negou a celebrar a missa comemorativa,

alegando o caráter político do ato de exclusiva competência do governo militar e não da

igreja. Novas repercussões se deram no segundo aniversário, quando se reeditou o mesmo

argumento do religioso. Uma outra situação de conflito entre a igreja e o governo foi

provocada pela proibição, em julho de 1966, da realização em Belo Horizonte, do 28.º

Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). Sob a alegação de que o referido órgão

de representação nacional dos estudantes universitários fora extinto, a polícia federal proibiu

aos hotéis da capital mineira que recebessem os congressistas. Dominicanos, franciscanos e

monjas beneditinas se solidarizaram com os membros da UNE, abrigando-os em suas casas

religiosas e permitindo assim que o congresso previsto se realizasse. Nos anos de 1967 e 68,

os conflitos entre Igreja e Estado se multiplicariam na medida mesma em que “a nova ordem

estatal escalava o caminho da direita e da força e voltava contra a sociedade o rosto do

terror”. 347

Em 1968, quando o governo promulgava o AI-5, armando o Estado com o

seu “instrumento mais discricionário”, a Igreja Católica se reunia em Melellín, com a

presença do Papa Paulo VI, definindo posições de vanguarda da Igreja, que se tornavam

346 DECLARAÇÃO DA COMISSÃO CENTRAL DA CNBB, de 27 maio 1964. REB 24 (2), p. 491-493, jun. 1964.347 FAUSTO, B. (Org.). Op. cit., p. 375, 376.

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oficialmente linhas básicas de ação: a opção pelos pobres e as Comunidades Eclesiais de

Base (CEBs).Na década de 70 aprofunda-se o conf l i to en t re a Igre ja e o Es tado que se manifes ta de manei ra mul t i forme , em nívei s var iados da es t ru tura h ie rá rquica , tan to do Estado , como da Igre ja . As mudanças do ca to l ic i smo, apoiando movimentos de emanc ipação de ca tegor ias soc ia i s exc lu ídas e defendendo os d i re i tos humanos cont ra o a rb í t r io e a v io lência do Es tado au tor i tá r io e d i t a tor ia l , pa recem ocor rer de modo gradual , p rosseguindo em r i tmo i r regular , mas seguindo tendênc ia coe rente . 3 4 8

Após o golpe militar de 1964, também passam a ocorrer dura vigilância e

repressão aos setores populares e suas organizações praticamente inviabilizadas. Profissionais

liberais e artistas, por exemplo, não conseguiram ficar imunes ao controle e repressão

governamental ao longo de tal período. Entretanto, restou como espaço de manifestação e

protesto o setor da cultura: “a esquerda era forte na cultura e em mais nada. É uma coisa

muito estranha. Os sindicatos reprimidos, a imprensa operária completamente ausente. E

onde a esquerda era forte? Na cultura”.349

O teatro nacional, nos anos imediatamente anteriores e posteriores a 1964,

enfatizou a dramaturgia política. Surgiram, por exemplo, seminários de dramaturgia,

promovidos em São Paulo pelo Teatro Arena, a partir de 1958, incentivando a escritura e a

encenação de peça e autores nacionais que expressassem os dilemas do povo, procurando

refletir sobre a conjuntura nacional. O Teatro Arena tornou-se um pólo de atração para jovens

artistas engajados politicamente na capital paulista, além de intelectuais e estudantes. Ele

atraía artistas de vários campos, do cinema a artes plásticas, vários dos quais participaram de

encenações com músicas.350 Nos grandes centros urbanos, bem no âmago do capitalismo,

como sua principal célula econômica e também como seu pior inimigo, lá estava sendo

representado o operário, pobre, ignorante, mas que começava a tomar conhecimento de suas

potencialidades e a perceber que os fracos, unindo-se, poderiam derrotar os fortes. A greve e

união em torno do sindicato significavam para ele menos uma oportunidade de luta por

reivindicações precisas, salariais ou de outra natureza, do que o estopim deflagrador de um

processo de esclarecimento político que se começou a chamar de conscientização.351

A formação de uma cultura expressa na imagem áudio-visual se delineia no

Brasil a partir da década de 1950, quando se assiste a um revigoramento geral do cinema

brasileiro, visível pela abertura de novas companhias produtoras. Há, neste período, 348 Id., ibid., p. 377.349 DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 143.350 Id., ibid., p. 139.351 Id., ibid., p. 570.

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formulações que culturalmente instigam imaginários voltados à brasilidade, com

representações fincadas em anseios de instauração de um novo modelo de sociedade que

possibilitasse oportunidade de melhor condição de vida aos segmentos mais socialmente

desfavorecidos. Com isto, busca-se principalmente fazer da expressão cinematográfica um

recurso de identificação do “homem brasileiro” – sobretudo o homem do povo – do seu

trabalho, da sua estrutura mental, da sua maneira de andar, falar, vestir, de existir, ou seja,

pensava-se em retratar “sem disfarces” a realidade. O cinema deveria ser um “meio de

expressão” a serviço da cultura, a qual deveria ser “criada” com traços “autenticamente

brasileiros”:Tra tava- se da t en ta t iva de a lcança r , e se prec iso fosse inventar , uma expressão c inematográf ica adequada a uma cer ta rea l idade cu l tura l , econômica , po l í t ica , soc ia l , que ao mesmo tempo fosse r ef lexo des ta r ea l idade e fa tor a tuante na sua superação . Propunha-se que o c inema a judasse a formar uma nova cu l tura , apoiando-se na preexis ten te para enr iquecê - la e t ransformá- la . Ass im, em termos socio lógicos , en tendia-se o c inema enquanto mani fes tação representa t iva de uma rea l idade h i s tór ica de te rminada que se pre tende desvendar e ana l isa r c r i t i camente , e enquanto fa tor in te rvenien te nes ta r ea l idade . 3 5 2

Assim, num contexto de acelerado processo de urbanização, “certos

partidos e movimentos de esquerda, seus intelectuais e artistas valorizavam a ação para

mudar a história, para construir o homem novo”, cujo modelo estava no passado, na

idealização de um autêntico homem do povo com raízes rurais, do interior, do “coração do

Brasil, supostamente “não contaminado pela modernidade urbana”. Formulavam-se

representações da mistura do branco, do negro e do índio na constituição da brasilidade, não

mais no sentido de justificar a ordem social existente, mas de questioná-la. Recolocava-se o

problema da identidade nacional e política do povo brasileiro, buscava-se a um tempo suas

raízes e a ruptura com o subdesenvolvimento, numa espécie de desvio à esquerda do que se

convencionou chamar de era Vargas, caracterizada pela aposta no desenvolvimento nacional,

com base na intervenção do Estado.353

No aspecto educacional, nas décadas de 1950 e 1960 o país enfrentava

grandes desafios. Além da falta de escolas em amplas regiões do território nacional, outros

fatores, especificamente sociais, faziam com que grandes porcentagens de crianças nem

sequer chegassem a ingressar no sistema de ensino. Nas periferias das grandes cidades, por

exemplo, havia contingentes de menores marginalizados. Crianças, ou mesmo famílias,

socialmente destituídas da possibilidade de projetar a vida no futuro, estavam 352 Id., ibid., p. 495.353 Id., ibid., p. 135, 136.

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incompatibilizadas com a idéia, implícita na escolaridade, de um caminho em direção a um

futuro pensado e desejável.354 Essa situação foi analisada, na época, por Florestan Fernandes:Em pr ime i ro lugar , a educação escola r izada aparece como um pr iv i lég io econômico e soc ia l . De um lado porque só uma minor ia pode a rca r com os ônus d i re tos e ind i re tos da educação dos ima turos . De out ro , porque a compreensão da impor tânc ia da inst rução e sua va lor ização socie tá r ia dependem de convicções e conhecimentos compar t i lhados , em regar , pe los c í rcu los soc ia i s dominantes . Em segundo lugar , porque ex i s tem graduações na d i s t r ibu ição desse pr iv i lég io . A des igualdade econômica , cu l tura l e soc ia l t ende a fomenta r condições imprópr ias ao aprove i tamento das opor tunidades educac iona is , fazendo com que as d i f i cu ldades f inancei ras se jam cons ideravelmente reforçadas pe la ind i ferença d ian te da ins t rução ou pe lo poder coe rc i t ivo var iável do dever de inst ru i r -se . O jogo desses fa tores ex t ra-educaciona is benef ic ia , na tura lmente , as minor ias bem ins ta ladas na es t ru tura do poder da sociedade . 3 5 5

Além desses fatores, destaca-se ainda a dificuldade de rendimento e,

conseqüentemente, as deficiências do ensino primário decorrentes de um choque cultural

entre os conteúdos do ensino e as condições de vida econômica, social e cultural das

comunidades rurais e periféricas no contexto urbano. Predomina uma orientação educacional

a partir de um “ponto de vista de uma cultura dominante” que define as diretrizes e os

conteúdos da escolaridade: Amplos segmentos das populações subal ternas , sobre tudo nas zonas rura i s e nas per i f er ia s das áreas urbanas , v ivem segundo valores , normas de compor tamento , a t i tudes , sen t imentos , c renças , enf im, segundo uma cul tura em gera l ausente dos conteúdos e da organização do processo educat ivo , que não a va lor iza , não a ace i ta e não a l eva em cons ideração . Por mais complexos e adapta t ivos que possam se r e sses contex tos cu l tura i s , e le s e s tão exclu ídos da escola . 3 5 6

Foi nesse período e contexto, a partir de meados do século XX, que o

quadro religioso brasileiro também começou a sofrer maior impacto com a “irrupção de um

novo tipo de protestantismo de massa, que passa a crescer de uma maneira assombrosa com

base nos grupos pentecostais”.357 No início da década de 1950, desenvolveu-se no país o que

alguns pesquisadores chamam de “segunda onda” pentecostal358 ou pentecostalismo de “cura

354 Id., ibid., p. 404.355 FERNANDES, Florestan. Dados sobre a situação do ensino. In: EDUCAÇÃO e sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus Editora, 1966, apud DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 404.356 Id., ibid., p. 405.357 Id., ibid., p. 82.358 Terminologia empregada por Paul Freston. Cf. FRESTRON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da constituinte ao impeachment. Campinas: UNICAMP, 1993. 350 fl. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Estadual de Campinas, 1993.

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divina”,359 notabilizado pela figura das “tendas divinas”, cujas igrejas “rapidamente se

implantam e passam a ganhar centenas de milhares de adeptos em velocidade crescente,

sobretudo entre as camadas mais modestas da população”.360 Esse pentecostalismo passaria a

representar, de fato, ameaças à hegemonia católica e transformações no âmbito do próprio

protestantismo:Miss ionár ios nor te-amer icanos invadi ram o pa ís implantando uma nova l i tu rg ia , mais espontânea , com cul tos informais e grandes concent rações de massa . O movimento evangél ico se urbanizava , com surg imento de grandes grupos pentecos ta is , como a Igre ja Quadrangular , O Bras i l Para Cr is to , Nova Vida e a Igre ja Deus é Amor . Ao mesmo tempo, segmentos das igre jas h is tór icas se r enovavam, pr inc ipa lmente ba t i s ta s e metodis tas . O pentecos ta l i smo se f i rmava como tendência i r reve rs íve l da igre ja bras i l e i r a . 3 6 1

Uma das denominações mais ativas nesse processo foi a Igreja do

Evangelho Quadrangular, fundada nos Estados Unidos, em 1922, por Aimeé Semple

McPierson,362 uma canadense, missionária da Igreja Metodista, que rompera com a sua

denominação para organizar o seu próprio movimento, também na cidade de Los Angeles. 363

Essa igreja viria a desempenhar um importante papel no campo religioso brasileiro quando,

no início dos anos 1950, começou um empreendimento proselitista sob o nome de Cruzada Nacional de Evangelização. Um dos missionários responsáveis, Haroldo Williams, que já

havia estado na Bolívia, chegou ao Brasil em 1946, radicando-se em São João da Boa Vista,

no interior do estado de São Paulo, onde iniciou uma igreja, em 1951. O começo foi lento e,

em 1953, ele convidou para auxiliá-lo um amigo, Raymond Boatright que, além de

missionário da Quadrangular, também era, como ele um ex-ator de filmes de faroeste.

Juntos, passaram a realizar campanhas de curas e expulsão de demônios, ocasião em que

conseguiram notadamente chamar a atenção da cidade. Devido ao sucesso alcançado, os dois

missionários foram convidados, no ano seguinte, para empreenderem uma campanha

semelhante na Igreja Presbiteriana Independente (IPI) do Cambuci, na cidade de São Paulo.

A ênfase era na cura e na expulsão de demônios e atraiu a atenção de uma crescente

multidão, de tal forma que o templo ficou pequeno. Os eventos ocorridos logo chamaram 359 Terminologias estas usadas, por exemplo, pelos pesquisadores: MENDONÇA, A. G. O celeste porvir. Op. cit.; MARIZ, Cecília Loreto. In: Sociologia no Brasil. São Paulo: UMESP, 1998, p. 73-91.360Id., ibid., p. 82.361 Id., ibid.362 A Quadrangular é ainda considerada a única grande igreja cristã fundada por uma mulher, o que pode explicar o espaço privilegiado nela existente para o ministério eclesiástico feminino, uma novidade na época. Isso certamente também contribuiu para que essa igreja se tornasse menos repressora em relação aos “usos e costumes” como “sinais externos de santidade”, como exigidos pelo pentecostalismo clássico em relação à mulher.363 McPierson morreu em 1944 e seu filho assumiu a liderança da igreja, que já contava então com um grande número de congregações nos Estados Unidos e em vários outros países.

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116

também a atenção da imprensa, tornaram-se objeto de muitos artigos nos jornais da época,

que noticiavam o comparecimento de milhares de pessoas às sessões de cura, obrigando

inclusive, a interdição de ruas do bairro para melhor locomoção das massas.

O resultado dessa série de reuniões no Cambuci foi um conflito com as

cúpulas das igrejas hospedeiras. A direção da Igreja Presbiteriana Independente (IPI) exigiu

explicações do pastor daquela comunidade presbiteriana local, Rev. Silas Dias, acerca das

práticas ali adotadas e que fugiam ao perfil teológico presbiteriano. Esse embate terminou

com a recusa das denominações protestantes em ceder outros templos a esse tipo de

atividade, bem como o desligamento da igreja do Cambuci da IPI, fato que deu origem à

Igreja Evangélica do Cambuci. Com a cisão, a solução foi comprar e armar tendas – lonas de

circo – em terrenos próximos à igreja, onde continuaram as reuniões. Muitas outras igrejas

presbiterianas independentes também foram atingidas pelo fenômeno pentecostal, sendo por

isso também forçadas a se desligar da IPI e cada uma se constituiu de forma autônoma,

abandonando a doutrina e a eclesiologia presbiterianas e assumindo uma nova identidade

marcadamente pentecostal.

Com o passar do tempo, o trabalho de curas e exorcismos realizado nas

tendas desvinculou-se da igreja do Cambuci, expandindo-se por todo o país. As tendas eram

montadas nos centros das grandes e médias cidades brasileiras. Esse “movimento de tendas”

ficou conhecido como Cruzada Nacional de Evangelização. Para organizar as novas igrejas

que foram surgindo em decorrência da atuação das cruzadas, os missionários criaram, ainda

em 1954, a Igreja da Cruzada, mas, já no ano seguinte, associaram-se formalmente à Igreja

do Evangelho Quadrangular dos Estados Unidos, mudando não somente o nome, mas

estabelecendo vínculos doutrinários com a igreja americana. O que tinha sido pensado

inicialmente apenas como um movimento de avivamento no interior das igrejas existentes

logo se transformou em uma nova denominação. Inovaram também ao infundir sua

mensagem através do rádio, principal meio de comunicação de massa da época, dos

ajuntamentos itinerantes com tendas de lonas, das concentrações em praças públicas, ginásios

de esportes e estádios de futebol. Ainda que mantivessem a ênfase no batismo com o Espírito

Santo, como os primeiros pentecostais, sua mensagem era agora principalmente concentrada

na cura divina.

A atuação da Cruzada, portanto, causou um enorme impacto no campo

evangélico-protestante brasileiro, provocando cismas em praticamente todas as

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117

denominações, sejam históricas ou pentecostais.364 No caso das pentecostais, que até então

eram representadas quase que exclusivamente pelas igrejas Congregação Cristã e Assembléia

de Deus, a fragmentação denominacional foi enorme. Como resultado, surgiram várias novas

igrejas, entre elas a própria Igreja do Evangelho Quadrangular,365 além de O Brasil para

Cristo, Deus é Amor e várias outras de menor porte:A par t i r da Igre ja do Evangelho Quadrangula r , a semente do espantoso movimento de cura d iv ina es tava lançada para germinar em grande esca la no pa í s . Embora t ip icamente pentecosta l , e ssa igre ja inse r iu nos seus fundamentos t eo lógicos a chave do neopentecos ta l i smo, como por exemplo , a ênfase à cura d iv ina e à expulsão de demônios . 3 6 6

Se as primeiras igrejas pentecostais, como visto, tiveram sua origem no

exterior, as que surgiram no Brasil, a partir da década de 1950, foram formadas por cisões de

suas predecessoras, apresentando a emergência de lideranças carismáticas nacionais. É o caso

da Igreja o Brasil para Cristo, fundada em 1956, em São Paulo, por Manoel de Mello, um

pernambucano que havia migrado para a capital paulista em busca de trabalho. Mello tornou-

se membro da Assembléia de Deus e depois evangelista na mesma igreja. Foi no decorrer de

1954 que se integrou ao movimento Cruzada Nacional de Evangelização, combinando as

funções de pregador de multidões, nas tendas, com o de pequeno empresário de construção

civil.

Em 1955, Manoel de Mello iniciou um programa radiofônico na Rádio

América, com quinze minutos de duração, e alguns meses depois passou a transmiti-lo pela

Rádio Tupi de São Paulo, então a mais potente emissora paulista. Foi, portanto, um dos

pioneiros no país a utilizar programas de rádio para a propagação da sua mensagem religiosa.

Assim nasceu o programa A Voz do Brasil para Cristo, nome este que acabou gerando a

própria Igreja O Brasil para Cristo, que viria a ser fundada por ele em 1956. O sucesso de

Mello e a projeção de seu carisma podem ser explicados, dentre outros fatores, pelas

pregações radiofônicas, que provocavam grande interatividade entre o locutor e os ouvintes,

364 Observando-se ainda a importância a Cruzada Nacional de Evangelização no cenário religioso brasileiro, pode se dizer que tal segmento tornou-se uma espécie de matriz de “sindicato de mágicos”: a partir dela líderes dissidentes deram início a outros movimentos concorrentes e firmaram escola. O movimento iurdiano, mais tarde, também via brotar aí uma de suas raízes.365 A Igreja Quadrangular com o passar do tempo se consolidou institucionalmente e, em 1991, segundo dados da própria denominação, contava com aproximadamente 3.000 igrejas e 4.000 congregações (igrejas menores sem autonomia, vinculadas ainda a uma igreja-mãe), comandadas por cerca de 10.000 pastores, dos quais 35% são mulheres. 366MENDONÇA, A. G. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 1997, p. 158.

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118

principalmente pela oração e relatos de curas dela decorrentes através de tais programações

diárias.

O intenso emprego das emissoras de rádio como estratégia de apoio às

concentrações, para divulgação das curas divinas, possibilitava também o contato com um

rebanho disperso por inúmeras cidades no interior do País. A ousadia de Manoel de Mello era

notória naquele contexto. A partir de 1958 passou a realizar grandes concentrações religiosas

que lotavam estádios de futebol, em São Paulo. Essas concentrações eram chamadas de

“tardes da bênção” e tinham grande ênfase em milagres e curas divinas. A mídia dava uma

certa cobertura a esses eventos. Seguindo a estratégia da Cruzada, Mello também passou a

usar tendas de lona e, assim, a partir de São Paulo, a igreja espalhou-se por todo o Brasil. Foi

a igreja pentecostal a estar em evidência na mídia na década de 60, pois suas campanhas de

cura divina, ao mesmo tempo em que atraíam grande multidão, também rendiam muitos

processos de charlatanismo contra Manoel de Mello. Desde o final dos anos 50, a imprensa,

mais a religiosa que a chamada “secular”, publicou inúmeras críticas sobre sua atuação. Ele

foi o primeiro a alugar cinemas para as reuniões evangelísticas, rompendo com o que até

então era considerado espaço sagrado, apropriando-se de lugares tidos profanos, como

cinemas e estádios. Participou inclusive de programas de auditório, um escândalo para

protestantes históricos e, principalmente, para os pentecostais. Mello realizava concentrações

de cura em estádios de futebol em dias de feriado nacional e convidava autoridades civis e

militares para participar das reuniões. Em 1958, conseguiu levar ao estádio do Pacaembu, em

São Paulo, numa “tarde da bênção”, cerca de 150 mil pessoas. Nessas concentrações, embora

os seguidores de Mello dissessem haver milagres, jornais da época o denunciavam por

charlatanismo, como por exemplo, O Estado de S. Paulo, de 08/07/1959, o que custou a

Mello processos na justiça. Todavia esses processos acabaram sendo arquivados por falta de

provas. Em 13/03/1960 Mello realizou na Praça da Sé uma “tarde da vitória”, atraindo 50 mil

pessoas para comemorar o despacho da 8ª Vara Criminal de São Paulo, arquivando um

processo aberto contra ele por charlatanismo e prática ilegal da medicina.

Outro projeto de Manoel de Mello foi a construção de um grande templo no

Largo da Pompéia, em São Paulo, que de maneira ufanística era apresentado na época como

o “maior templo evangélico do Brasil e do mundo”. A construção foi concluída em 1979.

Mello já demonstrava também atitude dessacralizadora do espaço sagrado em relação a

outros segmentos evangélicos:O povo prec i sa sen t i r - se à vontade no templo . Por exemplo: na minha igre ja eu pe rmi to que a té à hora do cu l to o povo converse

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quanto quei ra . É um verdadei ro mercado lá dent ro , todo mundo conversando: “como vai a tua mãe? E aque le cava lo que você comprou?” Todos conversam. Na hora do cu l to en tro no assunto sér io . Aque la idé ia do su je i to en t ra r no templo e pensar que es tá num túmulo , num cemité r io , j á acabou ( . . . ) Eu não pe rmito que o povo veja o t emplo como coisa sagrada . Para o povo do “Bras i l pa ra Cr i s to” o templo não é sagrado . É sagrado o que se faz l á dent ro . O templo em s i t em apenas uma f ina l idade: ampara do so l e da chuva ( . . . ) quando começa o cu l to todo mundo es tá sa t i s fe i to ( . . . ) F iz mui ta co i sa rad ica l que hoje não fa r ia mais . Mas pe rcebi que o cu l to par t i c ipa t ivo é o cu l to de que o povo bras i le i ro gos ta . 3 6 7

Outra inovação importante introduzida por ele foi o envolvimento político-

partidário da igreja. Em 1962, apresentou um candidato a deputado federal, Levy Tavares, o

qual foi eleito em 1966, mas ao tentar empreender uma atuação independente perdeu o apoio

de Mello e não conseguiu se reeleger em 1970. Devido a uma atuação controvertida, tanto

Manoel de Mello quanto a sua igreja encontraram forte oposição por parte das lideranças das

denominações protestantes históricas. Não obstante, o seu rápido crescimento e projeção,

faltou a esta igreja uma estrutura de sustentação que fosse maior que o seu próprio fundador,

razão porque, com a morte de seu líder, em 1990, o movimento descentralizou-se, perdendo

muito das suas marcas iniciais.

Da Igreja Quadrangular, Davi Miranda saiu para fundar, em 1962, a sua

própria denominação: a Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA). Miranda, que viveu a

infância e juventude na zona rural do município de Telêmaco Borba – PR, mudou-se

posteriormente com sua família para São Paulo, onde se converteu ao pentecostalismo,

tornando-se membro da Igreja O Brasil para Cristo. Após ter obtido alguma liderança nesse

movimento, pediu rescisão de contrato na fábrica em que trabalhava como vigilante e, com o

dinheiro que recebera de seus direitos trabalhistas, alugou um pequeno salão na periferia da

capital paulista, criando assim, o seu próprio movimento. Mesmo possuindo apenas a

escolaridade primária, Davi Miranda logo passou a ganhar projeção no cenário religioso

pentecostal, enfatizando, sobretudo, a cura divina e o rigor ascético quanto ao chamado “usos

e costumes” dos seus fiéis.

Miranda empregou a mesma técnica de comunicação de Manoel de Mello,

fazendo do rádio o seu principal veículo de propaganda, prática esta à qual se mantém fiel até

hoje. À ênfase na cura divina, Miranda acrescentou o exorcismo, realizado durante os cultos

e transmitidos ao vivo pelo rádio. Com o crescimento de sua denominação, com sede em uma

antiga fábrica desativada próxima da Praça da Sé, no centro de São Paulo, missionário

367 MELLO, Manoel. Jornal Expositor Cristão, São Paulo, ano 83, n. 19, p. 11, 01 out. 1968. (Disponível para pesquisa no CDPH da FTSA, Londrina – PR.).

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investiu na aquisição de emissoras de rádio. Atualmente, a voz do “consagrado homem de

Deus”, como Miranda é chamado pelos fiéis, ecoa através das dezenas de emissoras de

propriedade da própria igreja e por centenas de outras com horários pagos em todo o Brasil.

Vale dizer que as primeiras programações radiofônicas realizadas pela IPDA provocaram

forte reação e oposição da mídia, sob a acusação de que tais programas promoviam a prática

de curandeirismo.

A IPDA mantém em seu templo-sede, na cidade de São Paulo, uma “sala de

milagres”, na qual inúmeras muletas, cadeiras de rodas e outros objetos ali expostos

testificam milagres declarados pelos fiéis. A igreja também se considera possuidora do maior

templo evangélico brasileiro, com capacidade para 18 mil lugares, onde funciona a sede

própria, instalada no centro da capital paulista. A Igreja Deus é Amor totaliza cerca de 2,5

milhões de seguidores no Brasil, estando também presente em outros 26 países, a maioria da

América Latina, sendo também proprietária de mais de 40 emissoras de rádio, que

transmitem diariamente e com exclusividade seus programas religiosos. A IPDA é fortemente

sectária, não colaborando com nenhuma outra igreja evangélica.

Essas vertentes do pentecostalismo neoclássico, das décadas de 50 e 60,

também se caracterizaram pelo chamado “sinal de santidade” expresso nos “usos e

costumes”. Isso se observa nas vestimentas características – terno escuro e gravata dos

homens, saias compridas das mulheres – ou nos hábitos peculiares com os quais geralmente

se identificam os chamados “crentes”: cabelos longos ou atados em coques pelas mulheres, a

Bíblia sempre carregada orgulhosamente na mão e a recusa de ter em casa aparelhos de

televisão ou participar de festas onde o canto, a dança e a bebida possam incitar à depravação

dos costumes. Mas, de todas as igrejas pentecostais brasileiras, a Deus É Amor é a mais

rigorosa em relação ao ascetismo comportamental. Ainda hoje se proíbe toda e qualquer

prática de jogos e uso de métodos anticoncepcionais. Também não se permite que seus

membros façam qualquer tipo de curso teológico, ou estudem qualquer instrumento musical,

por entender que tanto a teologia, como a arte, desviam o ser humano dos caminhos de Deus.

É também radicalmente contra o uso de TV como meio de diversão. Os casamentos só podem

acontecer entre os que freqüentam a igreja.

O regime militar, em busca permanente de legitimação e fidelidade,

valorizou práticas religiosas que enfatizavam a obediência às autoridades. Nesta demanda,

cresceram vários grupos religiosos pentecostais. Líderes como Davi Miranda, no início dos

anos 80, ofereciam, em suas pregações, respaldo de legitimidade ao regime autoritário. Numa

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dessas orações, Miranda suplicava em favor das autoridades da nação e, especialmente, pelo

governo de Paulo Maluf em São Paulo (que naquela época procurava petróleo, por meio da

companhia estatal Paulipetro), usando as seguintes palavras:Oh Deus , que as au tor idades possam tomar deci sões sáb ias e pagar a d ív ida ex terna ( . . . ) Abençoa as pesquisas para encont rar pe t ró leo , po i s tu f izes tes todas a s co i sas e sabes onde o ouro negro es tá e scondido e também sabes Senhor , o quanto o Bras i l p rec i sa d i sso . 3 6 8

Quanto ao uso da televisão como meio de veiculação de programas

religiosos, é preciso considerar que até os anos 1960 – apesar da televisão ter iniciado as suas

atividades na década anterior - os pentecostais ainda se mantinham longe desse novo veículo

de comunicação. As primeiras investidas dessas igrejas na televisão esbarravam em dois

grandes problemas: o pouco recurso financeiro para custear os programas e a falta de

experiência com o veículo.369 Manoel de Mello, nos anos 60, chegou a usar a TV, ainda que

em programas de pouquíssima duração de tempo. Além dele, o pregador pentecostal Josias

Joaquim de Souza, conhecido como “missionário Josias”, da Cruzada Evangélica A Volta de Jesus, sucessora da Igreja Viva Jesus. Souza pregava a cura divina e chegou a transmitir ao

vivo cenas de exorcismo que causaram enorme reação e provocaram o fim de sua aparição na

TV. Embora tais programas de TV, ancestrais da bateria de programações religiosas atuais,

tenham durado pouco, os líderes aceitavam convites para comparecer em outros shows,

mesmo aqueles que chocavam os pentecostais, como o da apresentadora Hebe Camargo.370

Esse novo pentecostalismo, chamado às vezes de “protestantismo de

conversão”,371 trouxe, sob vários aspectos, significativas inovações para o campo religioso.

Primeiro, no uso de instrumentos não convencionais de evangelização, centrados sobretudo

na comunicação de massa, por meio do rádio, tendas de lona itinerantes junto às quais se

agrupavam os adeptos potenciais para ouvir a nova mensagem evangélicas, assim como nas

concentrações em praças públicas, ginásios de esporte e estádios de futebol. Segundo,

inovava também em sua própria mensagem a “cura divina” para as doenças do corpo ou da

interioridade do espírito, em uma dimensão bastante privada, mas que, no entanto, eram

expostas publicamente por meio dos nomes verbalizados pelos pregadores que, sem receios,

as diagnosticavam; e também pela autoconfissão nos chamados “testemunhos de cura” dados 368 CAMPOS, Leonildo Silveira. O milagre no ar: persuasão a serviço de quem? Simpósio São Paulo, ASTE, v. 5, ano XV, p. 92, dez. 1982.369No caso da Igreja Pentecostal Deus é Amor, o uso da televisão é proibido aos fiéis sob o argumento de que é um veículo difusor de imoralidade.370FRESTON, P. Op. cit., p. 88.371 CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de (Org.). Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973.

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pelos fiéis. E, por fim, o novo pentecostalismo inovava ainda, num país majoritariamente

católico, do ponto de vista teológico e organizacional: suas igrejas prescindiam da hierarquia

sacerdotal e “negavam ao catolicismo o monopólio da salvação, agora colocada nas mãos dos

próprios fiéis”:372

Para esses novos f i é i s , a adesão às ig re jas pentecos ta i s emergentes seguramente representa r ia uma “subversão s imból ica” da es t ru tura t rad ic iona l do poder . ( . . . ) Ao re je i t a rem também a h iera rquia sacerdota l t r ad ic iona l da Igre ja Ca tó l ica , e la s promovem adesão a um si s tema de crenças re l ig iosas que co locam o sobrenatura l ao a lcance imedia to de todos os que abraçam a nova fé . 3 7 3

Nesse período de desenvolvimento de novas denominações pentecostais,

houve significativas transformações sociais, como, por exemplo, a aceleração do processo de

industrialização e a conseqüente migração para os grandes centros urbanos de contingentes

populacionais vindos de um Brasil rural pobre em busca de melhores condições de vida na

cidade.A emergênc ia des tas ig re jas v i r i a ao encont ro dos va lores t rad ic iona is da cu l tura desses migrantes , em espec ia l aqueles l igados a uma te rapêut ica mágica de benz imentos e s impa t ia s ou à medic ina t rad ic iona l de ervas e p lan tas cura t ivas sobe jamente conhecidas do meio rura l de onde provinham. Para es tes a mensagem de “cura d iv ina” não se r ia a lgo es t r anho. 3 7 4

Outra dimensão social do papel dessas igrejas é a conferência aos fiéis de

algum status, o que lhes tem sido negado, como destaca Montes:No meio em que passam a v ive r , essas igre jas rap idamente r econs t i tuem para e sses novos t raba lhadores que chegam aos grandes centros urbanos os l aços de so l idar iedade pr imár ia de seu loca l de or igem, pe rd idos com o processo migra tór io , dando- lhes enf im o sen t imento de pe r tenc imento que lhes f a l ta na grande c idade , absorvendo-os numa comunidade . Por mais humi lde , ma is incapaz , ma is ignorante que se ja , o conver t ido sen te imedia tamente que é ú t i l e que ne le depos i tam conf iança : chamam-no respe i tosamente i rmão, seus serv iços são so l ic i tados por pessoas que fa lam como e le e que têm a ce r teza de pe r tencer ao povo de Deus . 3 7 5

A multiplicação desses segmentos evangélicos, com extraordinário

crescimento, faz que seus fiéis “partilhem as mesmas crenças e as mesmas esperanças, longe

da agitação da vida social mais ampla, ensinando a não ambicionar outra projeção senão

aquela que se conquista no interior da própria igreja”.376

372 SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 83.373 Id., ibid., p. 84.374 Id., ibid.375 Id., ibid.376 Id., ibid.

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Do lado católico, preocupações frente ao desenvolvimento dessas novas

expressões religiosas que se apresentam como alternativa de amparo e acolhimento diante de

condições sociais agravantes. Sobretudo a partir da década de 1960, observam-se inquietantes

clamores das massas e apelos da sociedade por melhores condições de vida. O catolicismo

apresentará, então, setores preocupados em estabelecer maior proximidade com este quadro

social. Com tal propósito, convocado pelo papa João XXIII, ocorrerá o Concílio Vaticano II,

de 1962 a 1965. Buscava-se uma posição de abertura, diálogo e articulação. O Concílio

inspirou, assim, novos desenhos para o catolicismo, marcado por uma busca de diálogo com

os novos desafios do mundo contemporâneo. Produzem-se documentos que chamam a

atenção para o agravamento das desigualdades sociais. Sob o impulso conciliar, os bispos

brasileiros traçam um plano pastoral nas diversas regiões e dioceses do Brasil, realizando-se

cursos, conferências e seminários com o objetivo de divulgar uma nova mentalidade religiosa

de aproximação com o povo. Há maior abertura para os leigos e renovações litúrgicas.

Sob inspiração do Vaticano II também se articula no período subseqüente a

Teologia da Libertação. Em 1964, na cidade de Porto Alegre, reuniram-se teólogos latino-

americanos com o objetivo de estudar a presença do catolicismo no continente. Busca-se

outra postura da igreja, pois uma nova maneira de se fazer teologia está sendo tecida,

procurando dialogar com as questões sociais, políticas e culturais. Surge das práticas

populares, procurando responder às situações históricas e desafiantes do cotidiano, “pleiteia

uma leitura sempre situada e orientada em função dos desafios e dos problemas concretos”.377

No âmbito religioso, nesse período também, a Igreja Católica vê abrir-se um espaço real pela

redefinição de sua situação dentro da sociedade civil, de sua articulação com as classes

emergentes e com o novo bloco no poder. Internamente, a questão do laicato, em suas

relações com a sociedade, com a política e com a hierarquia, sobe ao primeiro plano.378

Procurando implementar as diretrizes da primeira sessão do Concílio do

Vaticano II, realizado em 1962, as Conferências do Episcopado Latino-Americano de

Medellín, em 1968, e de Puebla, em 1979, levaram bispos brasileiros a uma profunda

mudança no discurso perante a realidade social, em seus posicionamentos políticos e em sua

própria estrutura organizacional. Assim, abraçando-se a “opção preferencial pelos pobres”,

empreendem-se esforços na organização de Comunidades Eclesiais de Base, a Igreja Católica

promove uma revisão autocrítica de sua própria história, procurando redescobrir ou

reinventar sua vocação com base em uma releitura de sua atuação do “ponto de vista do 377 BOFF, Clodovis. Teologia e prática: teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 21.378 DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 274.

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povo”.379 Essa proposta de maior envolvimento social e político procura levar o fiel a uma

conduta mais voltada para a dimensão pública que para a interioridade da fé na vida privada.

Esse processo, porém, levaria o catolicismo a pagar um preço: Longe da v ida públ ica , da pol í t i ca e de compromisso com os pobres e suas causas socia is , uma grossa massa de f ié i s , r i cos ass im como pobres , não mais se reconhecer ia nessa nova Igre ja , v i s ta por mui tos como incapaz de lhes fornece r respos tas quando as ex igênc ias da fé não encontravam equivalênc ia necessár ia no p lano da pol í t i ca , como ao prec i sar de confor to d ian te das agruras da dor ín t ima, da perda pessoal ou da carênc ia esp i r i tua l , no âmbi to da v ida pr ivada . 3 8 0

O sacerdote peruano Gustavo Gutierrez que desenvolve um articulado

trabalho com estudantes universitários e será um dos principais expoentes e articuladores

desta maneira de pensar a teologia, declara:A Teologia da Libe r tação é uma ten ta t iva de compreender a f é a par t i r da práx is h i s tór ica , l iber tadora e subvers iva dos pobres des te mundo, das c lasses exploradas , das raças desprezadas , das cu l turas marginal izadas . E la nasce da inquie tan te e sperança de l ibe r tação . 3 8 1

Essa nova perspectiva de reflexão favoreceu a organização de uma pastoral

popular. Os leigos puderam, então, assumir maior participação de liderança na igreja.

Desenvolveram-se as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que congregavam grupos e

movimentos. As CEBs, na década de 1970, multiplicam-se em diversas regiões do país.

Através de círculos bíblicos promoviam-se reflexões das situações concretas da vida. A troca

de experiências dos participantes era uma forma de socializar os problemas e os

questionamentos de cada um, em sintonia com desafios da história presente. Há, assim, uma

intensificação entre religião e vida cotidiana, colocando nas manifestações religiosas

situações básicas: a família, o trabalho, o bairro, a cidade e seus desafios prementes. Em

síntese, a Teologia da Libertação, ultrapassando o conhecimento doutrinário apenas, propõe-

se a oferecer fundamento teológico às práticas da comunidade. Acredita na formação de uma

consciência política que torne o cristão um agente/sujeito engajado no propósito de

estabelecer novos rumos para a história na qual está inserido. Para tanto seria necessário

estabelecer uma rede de relações com sindicatos, associações e os diversos movimentos

populares. Assim, não apenas o religioso, mas a articulação política seria um caminho

obrigatório a fim de alcançar a tão sonhada libertação.

Para o catolicismo, seria preciso, assim, que se urbanizassem as massas

crescentes de fiéis, respondendo aos seus anseios frente aos novos desafios que o mundo 379 Id., ibid., p. 78.380 Id., ibid.381 CAMPOS, L. S. ; GUTIERREZ, B. (Orgs.). Op. cit., p. 58.

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125

urbano passa a representar. Num processo de urbanização que se modelava, “a igreja, com

sólidas raízes na zona rural, sentia que seu futuro podia estar comprometido se de algum

modo não tornasse ativa sua presença junto às classes populares em constituição nas

cidades”.382 Na medida do avanço progressivo e rápido das formas capitalistas de organização

da produção, os fiéis católicos nas cidades eram, em número cada vez maior, assalariados,

operários, funcionários. Para pôr em execução sua estratégia reformulada de reconquista

desses contingentes, a Igreja Católica faz “alianças táticas oportunas”:Preocupada s im com a própr ia sobrevivência e ace i tação en t re as massas que en tão se mobi l izavam, va leu-se de órgãos do governo federa l para “minorar os ma les” advindos das “condições subumanas de v ida” de grande pa r te da população bras i le i ra , consc ien temente ou à r evel ia ( . . . ) a sua essenc ia l ambigüidade casou-se , num plano de quase in t imidade , com a ambigüidade do própr io Es tado no per íodo popul i s ta . 3 8 3

Essa aproximação entre Igreja e Estado384 se observou nos esforços

empreendidos para “promover o desenvolvimento”, mediante a apressada sindicalização dos

trabalhadores rurais por iniciativa do clero, a formação das Frentes Agrárias, o Movimento de

Educação de Base (MEB). Tais procedimentos revelam muito do espírito de conquista e

disputa que tomou conta dos segmentos mais dinâmicos e renovadores do clero.A re lação de in t imidade pa lac iana com o Es tado popul i s ta desenvolv iment i s ta , a r ras tar iam a Igre ja rumo aos anos 60 em malhas tão contrad i tór ias , que far iam dela uma força bem mais progress is ta do que se poder ia supor na pr imei ra me tade dos anos 50 e , ao mesmo tempo, mui to ma is d iv id ida em sua força , porquanto e la v i r i a a s ign i f ica r ao mesmo tempo f re io e es t ímulo à expressão das insa t is fações de d i fe ren tes camadas da população , no campo e na c idade . 3 8 5

Entretanto, o agravamento das condições sociais de vida no mundo urbano

– marcado pela violência, desemprego, falta de saúde, moradia etc. – passava a exigir cada

vez mais respostas imediatas, que não podiam esperar pelo processo demorado de

engajamento social objetivando uma possível transformação da sociedade pelas mediações

políticas. Ruben Oliven, em análise sobre tal período, estabelece uma relação que ocorreu

entre a urbanização e um declínio gradual do catolicismo entre a população urbana, ao passo

que se observa a ascensão de outros segmentos populares não católicos.386 Nesse contexto,

marcado pelo “estado de ignomínia”, “pauperismo” e “fome”, e desencadeador de um

382 BEOZZO, O. Op. cit., 299.383 Id., ibid., p. 367.384 Id., ibid.385 Id., ibid., p. 368.386 OLIVEN, Rubem Georg. Urbanização e mudança social no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984.

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126

crescente “desespero” por parte das massas, cria-se espaço para maior operosidade de outras

organizações religiosas.387

2. 4 – O contexto de desenvolvimento do neopentecostalismo

A tomada do poder pelos militares consistiu num “acontecimento político

de enormes conseqüências não apenas na política, mas na economia, na cultura e no

comportamento”.388 Com a instauração desse regime, passou-se a uma preocupação com a

manutenção da “boa imagem” do país, e também com a amenização da impopularidade

daquele modelo de governo que a cada dia se tornava crescente. Nesse sentido, segundo

Carlos Fico, no estudo a que denominou “a criação de uma agência de propaganda”,389 mostra

que a formação de tais agências pretendia criar um sentimento de patriotismo, de unidade, e a

idéia de que o país vivia um bom momento econômico: “a grande identidade entre Aerp e a

Arp era a pretensão de projetar uma imagem de otimismo, de esperança (...) a criação de uma

atmosfera de otimismo e o fortalecimento do caráter nacional”. 3 9 0 Daí, slogans e frases de

efeito com grande teor apelativo: “Brasil: ame-o ou deixe-o”; “ninguém segura este país”; ou,

“este é um país que vai para frente”.

Entretanto, não obstante o espírito de “otimismo”, durante o regime militar

brasileiro, mediante o ufanismo do chamado “milagre econômico”, a partir dos anos 80,

assiste-se ao “reverso da medalha: as dúvidas quanto às possibilidades de construir uma

sociedade efetivamente moderna tendem a crescer e o pessimismo ganha, pouco a pouco,

intensidade”.391 Acentuou-se, pois, intensa crise social em todo o país, e mesmo nos países

desenvolvidos tal crescimento se mostrou instável:Ele [desenvolv imento econômico] consol idou-se nas décadas de 60 e 70 provocando um in tenso cresc imento econômico de f in ido nas sociedades indus t r ia i s e tecnológicas , como desenvolv imento . Naque le momento i r rompeu naque le e spaço uma profunda c r i se soc ia l , po l í t i ca e cu l tura l . Os pressupos tos defendidos segundo os quai s com o cresc imento mate r ia l mi lhões de se res humanos passar iam a t e r uma melhora s ign if ica t iva de sua condição de v ida , bem como as des igualdades en t re os pa íses se r iam sanadas , demons t raram ser fa l sas . O aumento do bem-es ta r mate r ia l concent rou-se na mão de a lguns poucos pr iv i leg iados , de ten tores do poder po l í t i co-econômico ( . . . ) . 3 9 2

387 DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 362.388 Id., ibid., p. 6.389 FICO, Carlos. Reiventando o otimismo. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 89-147.390 Id., ibid.391 NOVAIS, Fernando. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 560.392 PAES DE ALMEIDA, Jozimar. Errante no campo da razão. Londrina: UEL, 1996, p. 54.

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Descrevendo esse período, em nível nacional e internacional, pode-se citar

Eric Hobsbawm:Depois da Segunda Guerra Mundia l , segui ram-se 25 ou 30 anos de ext raord inár io cresc imento econômico e t r ansformação soc ia l , anos que provave lmente mudaram de manei ra mais profunda a soc iedade humana que qualquer ou t ro per íodo de brev idade comparável . Ret rospec t ivamente , podemos ver e sse pe r íodo como uma espécie de “Era de Ouro” , e ass im e le fo i v i s to quase que imedia tamente depois que acabou, no in íc io da década de 70 . 3 9 3

As palavras de Perry Anderson ressaltam as dificuldades que envolveram a

economia capitalista em geral, a partir dos anos 70:A chegada da grande c r i se do modelo econômico do pós-guerra , em 1973, quando todo o mundo capi ta l i s ta avançado ca iu numa longa e profunda recessão , combinando, pe la pr ime i ra vez , ba ixas taxas de c resc imento com a l tas t axas de inf lação , mudou tudo . A par t i r da í a s idé ias neol ibe ra is passaram a ganhar t e r reno . ( . . . ) o Estado teve de aumenta r cada vez mais os gas tos soc ia i s ( . . . ) desencadearam-se processos inf lac ionár ios que não podiam de ixa r de te rminar numa c r ise genera l izada das economias de mercado. 3 9 4

A economia brasileira, nas décadas de 1970 e 1980, sustentou-se a partir de

empréstimos externos e juros exorbitantes,395 fato que culminou na sua subserviência cada

vez maior à hegemonia do capital estrangeiro. O neoliberalismo se projetava como uma

“seita exótica, que pregava teses como a privatização dos serviços de saúde, do sistema

educacional, a diminuição da proteção social ao trabalho, o incremento da desigualdade como

fator de crescimento econômico”.396 Pesquisas elaboradas na época apontavam para ampla

crise social em escala crescente:Em 1960, 51% de pessoas v iv iam abaixo da l inha de pobreza na Amér ica Lat ina , o que equiva l ia a ce rca de 110 milhões de pessoas ( . . . ) em 1990, cerca de 196 mi lhões de l a t ino-amer icanos, ( . . . ) na chegada do ano 2000, a e s t imat iva é para mais de 300 mi lhões . 3 9 7

Fernando Novais comenta esse quadro econômico e social:A par t i r de 1980, f ina lmente , a nova rea l idade se impõe. Malgrado hes i tan tes t en ta t ivas de re inversão , consol ida -se nas suas expressões l imí t rofes (e s tagnação econômica , super inf lação , desemprego, v io lência , e sca lada das drogas e tc . ) , nes tes d ias a tua i s em que v ivemos . 3 9 8

393 Apud NETO, José Miguel Arias. O Eldorado: representações da política em Londrina - 1930-1975. Londrina: UEL, 1998, p. 9.394 ANDERSON, Perry. In: SADER, Emir (Org.). Pós-neoliberalismo: As políticas sociais e o Estado Democrático. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1995, p. 10, 11.395SADER, Emir (Org.). Op. cit., p. 83.396Id., ibid.397Id., ibid.398 NOVAIS, Fernando A. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 562.

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No início da década de 1970, já se observava também um processo de

industrialização o qual atraía a grande mão-de-obra do campo, que até então representava

uma das principais bases econômicas do País, sendo esta expulsão da mão-de-obra do campo

também decorrente, dentre outros aspectos, da implantação de culturas que passaram a

utilizar a crescente mecanização, como a soja e o trigo. Os jornais da época apontavam para

novos quadros sociais:As c idades crescem e fa l t am moradias . O grande número de pessoas que vem das reg iões rura is contr ibu i em cerca de 50 por cento para o c resc imento das c idades , e a ou t ra metade resu l ta do cresc imento na tura l da população urbana . Ass im, a s c idades , p r inc ipa lmente nas l a t i tudes t rop ica i s , aumentam o seu tamanho duas e a té t rê s vezes dent ro de 10 anos . P r inc ipa lmente a t ing idas pe lo problema da habi tação são as grandes camadas de r endas infe r iores , e en t re a s quai s es tão jus tamente aquelas pessoas que vêm de áreas rura is pa ra a s c idades , onde esperam encontrar me lhores condições de v ida . Nas á reas marginai s das c idades surgem então , da noi te pa ra o d ia , as f avelas com todos os seus problemas . 3 9 9

Também nesse período se completa a integralização efetiva de todas as

grandes regiões do território nacional. A expansão rodoviária e a instalação da indústria

automobilística levaram à integração de regiões, dando lugar a um processo de concentração

ainda mais profundo.400 A urbanização acelerada fez surgir grandes regiões metropolitanas,

notadamente na região sudeste, onde se encontram Rio de Janeiro e São Paulo – as duas

maiores metrópoles brasileiras. O país vive os momentos decisivos do processo de

industrialização, com a instalação de setores tecnologicamente mais avançados, que exigiam

investimentos de grande porte, como foi o caso do pólo industrial instalado em São Paulo.

As migrações internas e a urbanização ganharam assim um ritmo

acelerado,401 provocando alterações nos dados estatísticos populacionais: se até 1970, cerca

de 70% da população estava concentrada no campo, 402 em 1980, as cidades já abrigavam 61

milhões de pessoas, contra quase 60 milhões que moravam ainda no campo, em vilarejos e

cidades pequenas.403 Uma das razões desse novo quadro tem origem no fato de que, na

década de 1980, a esmagadora maioria da população que vivia no campo estivesse

mergulhada na pobreza absoluta, forçando, assim, o deslocamento para o contexto urbano:Nestas c i rcuns tâncias , o êxodo rura l se in tens i f i ca de manei ra ext raord inár ia ( . . . ) A misér ia rura l é , por ass im d ize r , expor tada para a c idade . ( . . . ) E , na c idade , a chegada de verdade iras massas de

399 Folha de Londrina, Londrina, 12 fev. 1976, p. 01 (material disponível no acervo de Jornais da Biblioteca Pública de Londrina).400 FAUSTO, B. (Org.). Op. cit., p. 227.401 SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 560, 561.402Cf. Folha de Londrina, Londrina, 12 fev. 1976, p. 01. 403 Atualmente, segundo dados do Censo IBGE, mais de 70% desse contingente se instalam nos centros urbanos.

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migrantes press ionou cons tan temente a base do mercado de t rabalho urbano. Em vez de regula r o mercado urbano de t rabalho , o autor i t a r ismo p lu tocrá t ico , a pre tex to de combater a in f lação , pôs em prá t ica a po l í t ica de l ibe rada de rebaixamento do sa lár io mínimo. Não bas tasse i s so , a d i t adura ca lou os s ind ica tos . 4 0 4

O sociólogo Rubem G. Oliven apresenta uma análise sobre as

transformações sociais que ocorreram no país apontando para uma sociedade cada vez mais

“urbana”, sobretudo a partir do final da década de 60, e apresenta a migração de camponeses

e agricultores mais pobres para as cidades, em busca de trabalho, como um dos fatores

responsáveis por este quadro, e acrescenta:Um dado s igni f ica t ivo sobre o volume da migração no Brasi l é o f a to de que por ocas ião do censo de 1970 quase um terço de todos os bras i le i ros e s tavam vivendo num lugar d i fe ren te daquele em que t inham nasc ido . 4 0 5

Devido a crises no campo, ou embalados pelo sonho de uma vida melhor,

massas migratórias que se concentram no mundo urbano passarão a enfrentar grandes

problemas de violência e desemprego, exclusão social, crise de sentido, numa espécie de

subproduto do modelo urbano-industrial – aspectos esses que foram intensificados com o fim

do “milagre econômico” apregoado pelos governos autoritários. Novas classes sociais

emergem, pois, disputando um espaço, ainda que subalterno na sociedade brasileira: classes

médias urbanas, o operariado industrial, o mundo estudantil. Conseqüentemente, houve

considerável aumento do custo de vida, ocasionando uma queda dos salários reais. Nos meios

urbanos, observam-se condições de saúde e nutrição, assim como o controle de doenças,

agravando-se de forma bastante precária:o comba te à mor ta l idade encont ra sé r ias bar re i ra s na condição de v ida das camadas mais pobres da população , par t icu la rmente no que d iz re spei to à mor ta l idade infan t i l nos cent ros urbanos , cu jos coe f ic ien tes aumentaram a par t i r de 1962-63 . 4 0 6

Desse modo, sem mão-de-obra qualificada, a condição de grande parte da

população trabalhadora se torna cada vez mais difícil:As poss ib i l idades de ascensão do t r abalhador comum são bastan te l imi tadas . Na indús tr ia , um ou out ro consegue se e rguer a té o t raba lho espec ia l izado ou semi-especia l i zado; a lguns passam da pequena para a grande empresa , que paga melhor . Na cons t rução c iv i l , uns poucos aprendem o of íc io de pedre i ro , encanador , de e le t r i c is ta , de co locador de p isos e azu le jos e tc . Depois , pouquíss imos poderão chegar ao obje t ivo sonhado por todos: t raba lha r por conta própr ia . 4 0 7

404 SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit,. p. 620, 621.405 OLIVEN, Rubem Georg. Op. cit., p. 68.406 DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 257.407 NOVAIS, Fernando A. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 600.

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As grandes camadas de rendas inferiores, principalmente, passaram também

a ser atingidas pelo problema da habitação. O processo de favelização também se acentuou

na mesma proporção. Nas áreas marginais das cidades, principalmente as de médio e grande

porte, surgiram então, da noite para o dia, as favelas com todos os seus problemas correlatos:Os nossos governantes vo l ta ram suas v is tas pa ra as c idades e abandonaram to ta lmente a zona rura l e os d i s t r i tos em termos de educação , saúde , habi tação , comunicação , l azer , t r anspor te , e s t radas , e tc . ; a migração rura l -urbana , causou o inchaço das c idades médias e grandes , aumentando com i sso as f avelas , a fome, a margina l ização , a v io lênc ia e insegurança . 4 0 8

Vista a sociedade em sua maior parcela, há a família do trabalhador

comum, do migrante rural recém-chegado e dos citadinos pobres, de todos os que se

encontram na base do mercado do trabalho; há a família que mora em barracos mais ou

menos precários nas favelas, ou na periferia, ainda cheia de poeira, sem iluminação pública,

sem esgoto ou água encanada, sem condições básicas de saneamento. “Fugir do aluguel” é

uma preocupação permanente de todos os assalariados.409

Naturalmente que o incremento populacional é um dos elementos

desencadeadores da violência urbana. Há uma explosão desse problema social nos anos 1970

e 1980. Os efeitos da pobreza e da urbanização acelerada promovem aumento espetacular da

violência nas metrópoles, sendo as áreas e bairros mais pobres os mais afetados. Noticiários

nos meios de comunicação de massa passam a estampar diariamente informações que

propagam o medo, sobretudo pelo crime e morte ocorridos de modo agressivo.410

No final dos anos 60, início dos anos 70, o país começaria a viver uma fase

de grande desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, especialmente através da

televisão, que logo passaria a transmitir em cadeia nacional e em cores.411 A importância e a

capacidade de influência desses meios de comunicação para a atividade política, sobretudo da

televisão, ficou muito evidente com o regime militar: Nos anos 60 , e specia lmente depois de 1964, consol idou-se aos poucos a indús t r ia cu l tura l e os meios de comunicação de massa . Desde os anos 40 , o rád io , e pos ter iormente a TV, começou a desempenhar papel cada vez mais dec i s ivo na v ida socia l . 4 1 2

408 Folha de Londrina, Londrina, 22 maio 1984, Caderno 2.409 NOVAIS, Fernando. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 601.410 ZALUAR, Alba. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.411 DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 197.412 ALAMBERT, Francisco. A cultura no Brasil. In: 500 anos de Brasil: histórias e reflexões. São Paulo: Scipione, 1999, p. 102.

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Valendo-se desses recursos, o regime militar recorreu às diferentes

emissoras de TV para a veiculação de filmes e propagandas de seu material produzido a fim

de “levar aos brasileiros uma mensagem de ‘confiança e otimismo’” - afirma Octávio Costa,

um dos principais mentores das propagandas daquele período ditatorial. As estratégias dos

apelos propagandísticos estavam voltadas para “sentimentos nobres”, para símbolos culturais:

“A propaganda da AERP/ARP não foi doutrinária. Amparou-se num material histórico pré-

existente, fundou-se em mitos e estereótipos clássicos da “brasilidade”.413 Lançava-se mão,

portanto, de “imagens, palavras e gestos” que estivessem enraizados na própria “memória

nacional”.414

O advento da televisão teria, inegavelmente, uma importância cultural de

grandes proporções na história do país, como afirma Fernando Novais: “o centro da nossa

indústria cultural tornou-se a televisão”.415 É dos anos 70 aos anos 90 que se f i rma um novo meio de produção cul tura l , que i r ia marca r o f ina l do século bras i le i ro de manei ra a inda a ser d imens ionada : a t e lev i são de massa . No Bras i l r ecente , a t e lev i são teve o papel de incorpora r , modi f ica r , padronizar e bana l izar todo o l egado cu l tura l . E la tornou-se o meio , por excelênc ia , do reconhec imento de va lores . 4 1 6

Introduzida no Brasil, em 1950, por iniciativa de Assis Chateubriand,

proprietário do conglomerado jornalístico Diários Associados, seu raio de ação era ainda

muito limitado em tal período, não só pelo número reduzido de telespectadores – a classe

média de renda superior – mas, também, pela frágil organização empresarial e pelas

limitações tecnológicas, quer do país, quer das próprias empresas. Estes obstáculos,

entretanto, foram logo vencidos e o aparelho de TV passou a ser difundido rapidamente para

a base da sociedade, com o auxílio valioso do crédito ao consumo: “bastaram vinte anos para

que 75% dos domicílios urbanos o possuíssem”.417

O impacto da televisão na vida privada dos brasileiros pode ser

dimensionado no fato de ser a principal forma de lazer, de entretenimento e de informação.

Em 1980, por exemplo, ficava ligada, no Rio de Janeiro e São Paulo, cerca de seis horas por

dia, de segunda a sexta. No domingo, em São Paulo, atingia a média de oito horas diárias.418

Dentre outros aspectos, a TV passou a representar a “quase invasão de privacidade” que

preenche espaços deixados pelo analfabetismo com uma cultura visual que, no limite, 413 Id., ibid., p. 146.414 Id., ibid., p. 118.415 NOVAIS, Fernando. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 640.416 ALAMBERT, F. Op. cit., p. 92.417 NOVAIS, Fernando. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 638.418 Cf. dados da revista Meio e Mensagem, São Paulo, n. 25, nov. 1984 , “informe especial”.

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prescinde de instrução básica.419 As telenovelas substituíram, para a maioria da população, a

literatura e o cinema como formas válidas e importantes de pensar o Brasil. Os anos da

ditadura militar e conseqüente abertura dos governos Sarney, Collor e Fernando Henrique

Cardoso continuaram permitindo que o Brasil mantivesse uma crítica distribuição de renda,

um número elevadíssimo de analfabetos, “mas nunca nada se opôs ao predomínio da

televisão e das formas de publicidade”: Se nossas escolas cont inuaram ru ins e desamparadas , se nosso c inema não t inha espaço , se a l i t e ra tura e s tava res t r i t a a un ivers i t á r ios , a te lev i são recebeu todos os benef íc ios para subs t i tu i r e impor seu padrão . 4 2 0

Analisando esse aspecto, Novais tece o seguinte comentário:

Expos ta ao impac to da indús tr ia cu l tura l , cen t rada na t e lev isão , a soc iedade bras i l e i ra passou d i re tamente de i l e t rada e deseducada a mass i f i cada , sem percorrer a e tapa in termediár ia de absorção da cul tura moderna . Es tamos , por tan to , d ian te de uma audiênc ia inorgânica que não chegou a se cons t i tu i r como públ ico ; ou se ja , que não t inha desenvolv ido um nível de au tonomia de ju ízo mora l , e s té t i co e po l í t i co , ass im como de processos in te rsubje t ivos mediante os qua is se dão as t rocas de idé ias e in formações ( . . . ) os ques t ionamentos que aprofundam a re f lexão , tudo aqui lo , enf im, que torna poss íve l a ass imilação cr í t i ca das emissões imagét icas da t e lev i são e o enfren tamento do bombardeio da publ ic idade . ( . . . ) Os va lores inoculados pe la t e lev i são são predominantemente os u t i l i t á r ios . 4 2 1

A penetração intensa da televisão no Brasil se inscreve na paisagem urbana

e rural, na profusão de aparelhos nos interiores das casas, nas mansões de alto luxo, nos

barracos das favelas das cidades grandes, como também nas casas modestas e nas praças

públicas de cidades pequenas:Os recordes nas vendas de t e lev i sores se expl icam pela presença de d iversos apare lhos por domic í l io , cu idadosamente d i spos tos em vár ios cômodos das re s idências , às vezes em meio a a l ta res domés t icos . As inúmeras an tenas pa raból icas , com seus imensos d i scos redondos vol tados pa ra o céu , ins ta ladas em muitos t e lhados de res idências em favelas ( . . . ) em d is tan tes s í t ios nas zonas rura i s , são emblemát icas , quase fa lam por s i só . Esse apare lho tecnológico d i ssemina por todo o t e r r i tó r io nac iona l imagens acuradas emi t idas por uma va r iedade de cana is , e l iminando nesse contex to a lgumas bar re i ra s soc ia i s geográf icas . 4 2 2

Tornando-se cada vez mais um poderoso instrumento de comunicação, a

televisão passou a fornecer um repertório comum por meio do qual pessoas de classes

419 Id., ibid., p. 9. 420 ALAMBERT, F. Op. cit., p. 105,106.421 NOVAIS, Fernando. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 640, 641.422 SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 440.

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sociais, gerações, sexo e regiões diferentes se posicionam, integram-se e se situam umas em

relação às outras, criando com isso aproximações e, no caso de programações religiosas,

promovendo aos fiéis representações de pertencimento a uma comunidade imaginária maior.

Atenta a essa nova estratégia que se apresenta, a Igreja Católica passou a investir nesta

modalidade de comunicação. Empreendeu também uma corrida para a conquista de mais

espaço na TV, fundando a Rede Vida e apoiando as lideranças da Renovação Carismática,

maximizando o uso evangelístico de sua extensa rede de rádio.

Nos anos 60 e 70 no Brasil, ainda predominava uma moral herdada do

mundo rural, conservadora e tradicional, usada politicamente pela ditadura militar como

apoio ao seu discurso de moralidade e patriotismo. Essa reação moralista facilitava o

acionamento da censura praticada pela Polícia Federal, encarregada da fiscalização dos meios

de comunicação. Tal contexto explica toda a polêmica criada pela presença na TV de agentes

religiosos umbandistas, por exemplo.423 Em 1971, tem-se conhecimento do caso envolvendo

Cacilda de Assis, que se dizia encarnar “Seu Sete da Lira da Encruzilhada”. Era proprietária

de um sítio onde instalou o seu centro de culto afro-brasileiro, no Rio de Janeiro, e mantinha

um programa de rádio diário, na Rádio Metropolitana (RJ). No final de agosto daquele ano,

essa médium se apresentou nos programas de auditório de Abelardo Barbosa (Chacrinha) e

de Flávio Cavalcanti, respectivamente nas TVs Globo e Tupi. No programa do Chacrinha,

não somente D. Cacilda caiu em êxtase, como também o apresentador foi tomado de

convulsão de choro, as duas ajudantes (“chacretes”) entraram em transe, junto com várias

pessoas do auditório.424 O acontecido criou uma ebulição nacional e, sobretudo, entre

representantes de segmentos religiosos do país. Os bispos católicos reagiram, através da voz

de D. Eugênio Sales no programa de rádio “A Voz do Pastor”, e através dos jornais O Globo425 e Tribuna da Imprensa.426 Até mesmo os demais umbandistas condenaram o delírio

causado na TV, conforme matéria publicada no jornal A Notícia,427 sob a manchete

“Umbandistas manifestam sua repulsa por Seu Sete” e também no jornal Última Hora.428

Houve também debates entre deputados na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Esse

423 Cf. estudos realizados por MAGGIE, Yonne. Medo do feitiço: Relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1992.424Em seu livro A Noite da Madrinha, publicado em 1972, e recentemente relançado pela editora Companhia das Letras, em que trata de programas televisivos, Sérgio Miceli descreve tal episódio referindo-se à “macumbeira que bebeu pinga e fez o auditório entrar em transe no programa do Chacrinha e do Flávio Cavalcanti, em 1971”. Cf. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 set. 2005, p. E1.425 O Globo, Rio de Janeiro, 03 set. 1971.426 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 04 set. 1971.427A Notícia, Rio de Janeiro, 09 set. 1971.428 Última Hora, Rio de Janeiro, 13 set. 1971.

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episódio, ao lado de outros, foi usado pela ditadura militar para estabelecer a censura dos

programas de auditório, então transmitidos ao vivo. Tecnicamente, a televisão brasileira já

havia incorporado os recursos do vídeo-tape, o que facilitou o cumprimento de tal exigência

e, ao mesmo tempo, facilitaria mais tarde a presença mais efetiva de programas religiosos na

TV.

Foi nesse contexto e período que também surgiu um elemento marcante no

campo religioso brasileiro: a Igreja de Nova Vida, fundada em agosto de 1960, no bairro

Botafogo, Rio de Janeiro, pelo pastor canadense Walter Robert McAlister. Ele publicou mais

de 40 livros e livretos sobre libertação de demônios. Durante os anos 60 McAlister fixou-se

no Brasil como missionário, morando no Rio de Janeiro, e pregava semanalmente no

auditório ABI – Associação Brasileira de Imprensa, iniciando a Cruzada de Nova Vida. Essa

igreja desempenhou um papel importante na demarcação do campo religioso brasileiro: nela

se formou um habitus pentecostal, desencadeador e provedor de quadros de liderança das

duas das maiores igrejas neopentecostais do país: Universal do Reino de Deus e Internacional

da Graça de Deus – respectivamente lideradas por Edir Macedo e R.R. Soares, originários

daquela igreja.

Ao lado da Igreja O Brasil para Cristo, a Nova Vida foi também pioneira no

uso da televisão como veículo de divulgação de sua mensagem. Através da TV Tupi,

McAlister transmitia seus programas religiosos, no período de 1965 a 1967. No Rio de

Janeiro, a Nova Vida é proprietária da Rádio Relógio. Ela criou a sua própria editora e, desde

1994, passou a editar a revista mensal Voice, cuja tiragem alcança 20 mil exemplares,

distribuídos gratuitamente ao público, em geral através de bancas de revistas, especialmente

no Rio de Janeiro.

Mas foi a partir de meados da década de 1970 que surgiu uma nova

tipologia429 pentecostal denominada “terceira onda”, por Paul Freston,430 e que Mendonça,

Bittencourt e Mariano designam “neopentecostalismo”,431 nomenclatura também empregada

por Leonildo Campos.432 A opção feita neste trabalho pelo termo neopentecostalismo se deve 429MARIANO, R. Op. cit., p. 23-49.430FRESTON, P. Op. cit.431Ricardo Mariano afirma que “não é possível supor que através de uma construção tipológica se dê conta de um universo religioso tão complexo e heterogêneo. A divisão em três ondas visa apenas ordenar a realidade observada, tornando-a mais inteligível”. Cf. MARIANO, R. Op. cit., p. 35-36.432O debate em torno da tipologia ocorre pelo fato de não haver propriamente rupturas bruscas entre o que seria uma “onda” e outra, ou seja, existem vários elementos comuns nas supostas “fases”. Ricardo Mariano faz um balanço crítico das principais tipologias apresentadas e aponta suas inconsistências e imprecisões, acentuando que o termo “neopentecostal” tem sido empregado com imprecisão, mas é o que mais vem sendo empregado pelos pesquisadores. Cf. CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. Op. cit.

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não somente ao fato de ter se tornado esse um termo de uso mais freqüente nas pesquisas

acadêmicas, assim como no uso mais popular, mas, porque embora mantendo certas ênfases

das denominações pentecostais mais antigas, as novas igrejas “acrescentam elementos

totalmente inovadores (...) constituindo-se em algo qualitativamente diferente”,433

características distintivas que conferem a tal segmento identidade e estatuto próprio em

relação ao protestantismo histórico, configurado pela Reforma Protestante no século XVI, e

também quanto aos modelos predecessores de pentecostalismo, como o veremos mais adiante

no desenvolvimento dessa tese.

Finalizando esse item, vale sintetizar os aspectos anteriormente observados,

destacando que a IURD foi fundada em um contexto de urbanização - a cidade do Rio de

Janeiro – que obviamente possui suas especificidades, mas que reflete situações de outros

contextos brasileiros. É uma cidade que já convivia, na década de 1970, com a expansão da

violência, da máfia, do jogo do bicho e das mazelas sociais presentes nas favelas que a

contornam. Sob o ponto de vista cultural, caracterizada pela promoção de mega-eventos e

shows, facilitando assim os movimentos de concentração popular. Sob o ponto de vista

religioso, traduz, de certa forma, a natureza plural da religiosidade brasileira, marcada pela

forte presença de pessoas da raça negra e, também, por inúmeros locais de culto das crenças

afro-brasileiras. Politicamente, naquela época, o Rio de Janeiro vivia sob a influência do

populismo personificado em Leonel Brizola. Portanto, a fundação da IURD, nesse contexto

nacional-urbano, desde cedo encontrou um “terreno fértil” para o seu desenvolvimento e

expansão, respondendo a ele com uma mensagem inovadora em relação às demais igrejas

evangélicas e outros segmentos religiosos, ao procurar trazer o “céu” com todas as suas

benesses para a terra, no aqui e no agora, apresentando-se como o “pronto-socorro

espiritual”, falando às questões emocionais do ser humano, tratando de assuntos de natureza

afetiva, financeira, familiar e de saúde.

O advento da Igreja Universal do Reino de Deus, no Brasil, portanto, está

temporalmente situado num período de intenso processo de urbanização, assim como de

agravamento das condições sociais de vida. Por isso mesmo, sua mensagem encontrou

ressonância no tipo de discurso com forte apelo popular que se buscava naquele momento. A

IURD se apresenta, assim, como a materialização deste universo. E mais: a Igreja Universal

saberá utilizar com uma eficácia sem precedentes os meios de comunicação de massa para

433SIEPIERSKI, C. T. Op. cit., p. 17.

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veiculação de sua mensagem nas mais diferentes regiões do país, como o veremos mais

adiante.

2.5 – Um contexto de esforços do catolicismo pelo controle do campo religioso

É possível identificar, no contexto que se formou nos períodos

anteriormente descritos, um caminho que se abriu a novas configurações religiosas no

cenário religioso brasileiro e que se tornou uma opção sedutora a esse contingente de fiéis,

como destaca Montes: “Sentindo-se abandonados à própria sorte, muitos deles se bandearam

para o lado do protestantismo então em plena expansão e das religiões afro-brasileiras

(...)”.434 Enquanto o catolicismo se projetava na vida social e política, engajando-se

decididamente na via da “opção pelos pobres”, o neopentecostalismo se voltaria para uma

religiosidade mais pessoal, ainda que comunitária, com base na experiência da conversão.

Um olhar mais atento sobre os últimos censos brasileiros mostra uma

progressiva redução do número daqueles que professam a fé católica. Cândido Procópio

Camargo, por exemplo, em sua clássica análise sobre os censos de 1940, 1950 e 1960, já

havia chamado a atenção para essa “tendência geral para um declínio moderado, mas

constante, de adeptos da Igreja Católica”.435 Mas foi sobretudo a partir dos anos 80 que a

porcentagem de católicos experimentou um declínio cada vez mais acentuado: 90% da

população em 1980; 83,3% em 1991; e 73,8% em 2000, quando os evangélicos já que

atingiam índices acima de 15,4% da população brasileira.436 Vale citar a observação feita por

Pierre Sanchis, que a Igreja Católica passou a perder “o seu caráter definidor hegemônico da

verdade e da identidade institucional no campo religioso brasileiro”.437

Dessa forma, o avanço e a pronta penetração de um protestantismo

agressivo, como da propagação popular do espiritismo e da umbanda, obrigariam os bispos

católicos a levar em consideração aspirações populares e reformular seu modo de atuação.

Neste período, o Vaticano se mantém bastante vigilante. Em relação ao espiritismo, a Igreja

Católica manteve sua posição institucional de combate ao que entende ser práticas de heresia

e ameaçadoras à “verdadeira fé”. Assim, os bispos reagem tanto em relação ao kardecismo de

434 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 79.435CAMARGO, C. P. Op. cit., p. 24.436TEIXEIRA, Faustino. Faces do catolicismo brasileiro contemporâneo. Revista USP, Religiosidade no Brasil, São Paulo, n. 67, p. 16, set./nov., 2005. 437SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à cultura católico-brasileira. In: Alberto Antoniazzi et al. Nem anjos nem demônios. Op. cit., p. 36.

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importação, principalmente norte-americana, quanto à eclosão de cultos afro-brasileiros que

emergem cada vez mais com autonomia no campo religioso brasileiro. Desde que surgiu no

Rio de Janeiro, na década de 1920, e já nas décadas de 1930 e 1940, a umbanda começava a

se disseminar pelo tecido urbano mais moderno do país, o das cidades grandes da região mais

desenvolvida, o Sudeste.

No afã de tentar manter controle sobre o campo religioso brasileiro, o

catolicismo lançou mão de todas as estratégias possíveis para impedir que seus fiéis fossem

atraídos para o protestantismo, não importando qual ramificação ou tipologia a ele

pertencente. Assim, empreenderam-se esforços em âmbito nacional e também regional,

como, por exemplo, um episódio ocorrido na região de Londrina, no Paraná. No início da

década de 1930, quando a região norte-paranaense passou a ser colonizada, as primeiras

igrejas protestantes começaram a se estabelecer em Londrina e adjacências, sendo

presbiterianos e metodistas os pioneiros desse trabalho. Naquela ocasião, os evangélicos

usavam como uma das principais estratégias para as atividades de proselitismo, a distribuição

de Bíblias - literaturas adquiridas pelos protestantes e depois vendidas ou doadas a fiéis

pertencentes ao catolicismo:Naque le t empo, as Bíb l ia s v inham de São Paulo ou Rio de Janei ro das sociedades b íb l icas . Os cren tes ou as ig re jas adqui r iam estas Bíb l ias e depois vendiam ou doavam ( . . . ) Eu mesmo, era comerc ian te , e no meu es tabelec imento comercia l havia uma seção onde expunha as Bíb l ias . Quem comprava e ram gera lmente os c ren tes , aos ca tó l icos nós gera lmente f az íamos doação . A maior ia da população morava na roça , l á t ambém os ca tó l icos ganhavam Bíbl ia s dos seus v iz inhos cren tes . 4 3 8

A posse e a leitura da Bíblia entre os católicos, nesse período, estavam

restritas aos clérigos: “A população católica não tinha contato com a Bíblia, ouviam falar

dela nas missas, que eram feitas em latim”.439 Por isso, a iniciativa feita pelos protestantes

desencadeou preocupações por parte do clero que, em 1941, transformaram-se em ações

concretas, ao serem enviados para a região do norte do Paraná missionários capuchinhos da

cidade de Aparecida – SP, com a finalidade de impedir a aproximação de católicos das

“heresias protestantes”:Esses miss ionár ios passaram a pe rcor rer toda a reg ião conclamando os f i é i s para que t rouxessem todas as Bíb l ia s que haviam recebido dos pro tes tan tes , a té a ig re ja para se rem queimadas , porque eram

438 Georgino Matias de Freitas, comerciante, membro da Igreja Presbiteriana, residente na cidade de Cambé – PR, desde 1934, região pertencente à área metropolitana de Londrina. Depoimento concedido em 17 jul. 2003 (Material em CD-ROM, disponível no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica – CDPH, da Faculdade Teológica Sul Americana, à Rua Martinho Lutero, 277, Londrina – PR.).439 Id., ibid.

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f a lsas . Em Cambé f izeram um “monte” com Bíbl ia s em f ren te à ig re ja , na hora da missa , ocorrendo em seguida a queima. Es te epi sódio se repet iu em 1942, e t ambém ocor reu em out ras c idades da r eg ião . 4 4 0

Cerca de dez anos depois os conflitos novamente se acirraram na região,

conforme se observa em outro depoimento:Os miss ionár ios capuchinhos per segui ram mui tos c ren tes . Diz iam que a Bíb l ia pro tes tan te era fa lsa , e que só a Bíb l ia ca tó l ica e ra comple ta , por conter todos os l iv ros , inc lu indo o que nós pro tes tan tes cons ideramos apócr i fos . Em Astorga , f i zeram uma “colhe i ta” de Bíb l ia s e l i te ra turas que t inham s ido d i s t r ibu ídas pe los evangé l icos , e rea l izaram uma queima de Bíb l ias ao pé do c ruzei ro , em f ren te a ig re ja mat r iz . 4 4 1

Esta queima pública e coletiva de Bíblias provocou intensos debates sobre

as questões teológicas através do que era, então, o principal sistema de comunicação nas

pequenas cidades interioranas:Aos domingos , quando havia uma aglomeração maior de pessoas na c idade , l íderes evangé l icos es t ra teg icamente vol tavam os a l to-fa lan tes f ixados no topo dos t emplos , na d i reção da igre ja ca tó l ica , antes ou após a missa , f azendo le i turas da Bíb l ia e pregações que denunc iavam pr inc ipa lmente a ido la t r i a . 4 4 2

Esses são exemplos de esforços empreendidos pelo protestantismo no

sentido de aproximar católicos romanos da leitura da Bíblia e, mais particularmente, da

chamada “Bíblia protestante”.443 Tal aproximação veio a se consolidar nas décadas seguintes,

quando já passado aquele período conflituoso e havendo um processo de intensa urbanização,

muitos católicos, em diferentes regiões do país, ao migrarem para as cidades se tornaram

adeptos de segmentos neopentecostais e, particularmente, da Igreja Universal do Reino de

Deus:Um pouco mais ta rde , a par t i r da década de 70 , a Igre ja Cató l ica começou a pe rder mui tos membros para a s ig re jas pentecos ta i s , e t ambém para as neopentecos ta i s , que passavam a formar um movimento cada vez mais a r ro jado . 4 4 4

440 Id., ibid. 441 Uzias Stultz é agricultor, membro da Igreja Presbiteriana, residente na região desde 1944. A cidade de Astorga localiza-se nas adjacências de Londrina. Existe hoje, na praça desta cidade, um monumento dedicado à Bíblia em alusão aos episódios acima descritos. Depoimento concedido em 10 out. 2003 (Material em CD-ROM, disponível no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica – CDPH, da Faculdade Teológica Sul Americana, à Rua Martinho Lutero, 277, Londrina – PR.). 442 Depoimento de Georgino Matias de Freitas, cf. já citado.443Durante décadas, desde a inserção do protestantismo no Brasil, permaneceu a expressão feita por católicos, em tom de certa desconfiança ou suspeita, de “Bíblia dos protestantes” ou “Bíblia dos crentes”, em alusão ao texto bíblico utilizado pelo protestantismo no Brasil. Tal referência decorre, principalmente, do fato da Bíblia usada por estes conter sete livros a menos do que a Bíblia adota pelo catolicismo.444 Depoimento de Uzias Stultz, cf. já citado.

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No ano de 1955, reuniu-se no Rio de Janeiro a I Conferência Geral do

Episcopado Latino-Americano (CELAM), a qual apontou os “mais graves inimigos do

catolicismo na América Latina: o protestantismo, o comunismo, o espiritismo e a

maçonaria”.445 No ano de 1957, o papa Pio XII, falando ao II Congresso Mundial para o

Apostolado dos Leigos, lembrava a urgência da formação de apóstolos leigos “para suprir a

falta de padres na ação pastoral” e fazer frente aos “quatro perigos mortais” que ameaçavam

a Igreja na América Latina: “a invasão das seitas protestantes; a secularização da vida toda; o

marxismo, que nas universidades se revela o elemento mais ativo e tem nas mãos quase todas

as organizações de trabalhadores; e finalmente, um espiritismo inquietador”.446

Em abril de 1962, reunidos no Rio de Janeiro, os bispos católicos

discutiram e votaram, inclusive, um “Plano de Emergência”, o qual destacava que o campo

de ação do catolicismo no Brasil se achava “trabalhado por forças adversas”. No documento

elaborado, retomavam a fala de Pio XII:Apl ica- se ao Bras i l o que d isse o Santo Padre quanto a quat ro per igos mor ta i s pa ra a América Lat ina : o na tura l i smo que leva a té c r is tãos a não te rem, mui tas vezes , a v i são cr i s tã de v ida ; o pro tes tan t i smo que ten ta en t re nós seu es forço máximo de expansão e se acha , de f a to , em maré montante ; o e sp i r i t i smo cuja d i fusão , nas grandes c idades , nos meios de misér ia , t em ares de endemia ; o marxismo que empolga as Escolas Super iores e cont ro la os S indica tos Operá r ios . 4 4 7

Essa atitude do catolicismo institucional para com as demais crenças

operantes no campo religioso brasileiro demonstra semelhança com o que Jacques Le Goff

analisa em relação ao contexto medieval. Naquele período, houve “recusa da cultura

folclórica pela cultura eclesiástica,” empreendendo-se esforços para isto, como inúmeras

“destruições de templos e de ídolos” e, no âmbito da literatura, a “proscrição de temas

propriamente folclóricos”, especialmente o cuidado em relação a textos do Antigo

Testamento, “pela tradição rica em motivos folclóricos”.448

No entanto, o próprio catolicismo historicamente ajudou a criar os

elementos culturais-religiosos que propiciaram o surgimento do que ele agora entende ser

necessário combater. Maria Lucia Montes, ao falar sobre o “espírito” que preside as

transformações do campo religioso brasileiro, aponta para um “etos” orientador de tais

445 FAUSTO, B. (Org.). Op. cit., p. 360.446 PIO XII – Normas aos participantes do II Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos. Rio de Janeiro, REB 17 (4), 1060, dez. 1975.447 CÂMARA, D. Helder. CNBB – Apresentação do Plano de Emergência. Rio de Janeiro: Livraria D. Bosco Editora, 1962, p. 3. 448 LE GOFF, J. Op. cit., p. 214.

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práticas, destacando a Igreja Católica como plenamente atuante na vida pública, “capaz de

acomodar-se, em curiosa mistura, ao etos da sociedade em que se inseria e assim incorporar

sistemas de crenças particulares e locais, adaptar-se à devoção de cunho privado”.449 Nas

práticas mais folclóricas da fé, formas simbólicas foram introjetadas por “culturas africanas e

indígenas”, permitindo que por meio dela se interagissem segmentos étnicos distintos à

sociedade e à cultura brasileira em formação.450 Esse catolicismo, nos tempos coloniais, na

distância da metrópole, “aqui se reinventa, nas devoções e na lassidão dos trópicos”, no

convívio com índios e negros, incorporação pelas festas e rituais, “desses diferentes estoques

étnicos e culturais que aqui se confrontam e aos poucos se fundem num Brasil em

formação”.451 Neste mesmo sentido, A. Otten diz que desenvolveu-se no Brasil um

catolicismo “longe do clero que estava a serviço do Estado e dos senhores e se limitava a

ministração sumária dos sacramentos”; “o catolicismo oficial” deixou assim uma lacuna que

acabou sendo preenchida pela “elaboração de formas religiosas leigas”. 452

Entretanto, por mais que o catolicismo tenha empreendido esforços para

manter o controle hegemônico no campo religioso brasileiro, o maior adversário não

provinha do protestantismo, o pentecostalismo e nem das crenças afro-brasileiras,

nominalmente identificados, a grande força concorrente provinha de modo silencioso e

sutilmente impregnado em todas essas manifestações de fé: a magia.

2.6 – Um contexto histórico de magia no campo religioso brasileiro

A magia consiste num dos elementos que marcam fortemente o campo

religioso brasileiro, com raízes fincadas na longa duração. Pode-se entender como magia tudo

aquilo que tenta inverter as formas naturais das coisas. A sua essência reside, pois, na

dominação dos poderes supra-sensíveis, os quais são convocados e controlados

autoritariamente em função do objetivo visado pelos seus adeptos. Desde os tempos mais

antigos, a magia tem prometido às pessoas que a ela recorrem a solução imediata de

determinados problemas muito concretos. Antônio Flávio Pierucci ressalta que a magia está

circunscrita nas soluções que pode oferecer aos transtornos e contratempos da vida humana:

“A magia torna o mundo mais próximo das nossas próprias mãos, deixa os poderes

449 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 101.450 Id., ibid., p. 116.451 Id., ibid., p. 103.452 OTTEN, A. O contexto histórico-religioso. In: Só Deus é grande. São Paulo: Loyola, 1990, p. 93, 132.

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superiores mais acessíveis à nossa própria vontade, simbolicamente mais controláveis; a

magia delimita, define e aproxima os resultados que promete”.453 Esse mesmo autor

acrescenta:A magia não é da ordem do co t id iano , da repet ição ro t ine i ra e prev is íve l . E la é do mundo v iv ido , s im, mas não se a l imenta da rot in ização da v ida . A magia , quando se dá , põe -se sempre no p lano do ex t raord inár io , do ex tra-co t id iano , do imprevis íve l . ( . . . ) A magia cos tuma ser pra t i cada em s i tuações de mui ta ince r teza , imprevis ib i l idade e , por tan to , tensão e ans iedade . ( . . . ) Magia é para ser ac ionada no momento opor tuno , quando se t em que enfren ta r , com sucesso , d i f icu ldades não usuai s , s i tuações e specí f icas fora do t r iv ia l , quando o inexpl icável te ima em acontece r e o imprevis to pode sobrevi r . Magia é fe i t a para concre t iza r o ex t raord inár io . 4 5 4

Estabelecendo como ponto de partida o contexto do Brasil colonial, pode-se

dizer que em tal período já podem ser identificadas práticas religiosas marcadamente

caracterizadas por expressões de magia, com fortes raízes no catolicismo folclórico medieval.

Especialmente, a partir do século IV da era cristã, quando o cristianismo se tornou religião

lícita e oficial do Império Romano, desenvolveu-se um intenso e crescente processo de

aculturação entre doutrinas cristãs e antigas práticas cúlticas que permeavam o universo

religioso do mundo greco-romano. Segundo Leonildo Campos, nesse período a assimilação

da fé cristã pela população rural, mediante a catequese, “formou uma camada de verniz sobre

uma antiga realidade religiosa”,455 desencadeando um intenso apego às relíquias como

fetiches de proteção, com caráter mágico, objetos esses que supostamente teriam sido

utilizados pelos apóstolos ou outros mártires do cristianismo e que eram então guardados nos

lares dos devotos com o sentido de proteção contra doenças, contra infortúnios do demônio

ou como ajuda contra as intempéries que poderiam ameaçar as colheitas.456 Esta “magia” dos

objetos desencadeou um verdadeiro comércio de amuletos:Mult ip l icaram-se os cu l tos às re l íqu ias sagradas , ve rdade i ros f e t i ches milagrosos , aos quai s se a t r ibu íam poder de cura r enfermidades e pro tege r a s pessoas dos per igos . Esses obje tos , que pensavam te rem per tenc ido aos san tos ou s implesmente por t e rem s ido usados na missa , e ram t rocados , p resenteados , roubados , vendidos ou comprados . Muitos de les eram empregados com as mais d iversas f ina l idades , desde o auxí l io no t r aba lho de par to a té na cura de pes te no gado bovino ou afas tar ep idemias de seca , fome ou pragas de ga fanhotos . 4 5 7

453 PIERUCCI, A. F. Magia. Op. cit., p. 44.454Id., ibid., p. 55.455CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 170.456Cf. GONZALEZ, Justo. A era dos mártires. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992; DREHER, Martin. A igreja no mundo medieval. São Leopoldo: Sinodal, 1996.457CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 171.

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O historiador inglês Keith Thomas também afirma que no contexto da Idade Média,

as re l íqu ias sagradas torna ram-se fe t i ches mi lagrosos , t idos como dotados do poder de curar enfermidades e pro teger cont ra pe r igos ( . . . ) a t r ibu ía- se igua lmente uma ef icác ia mi raculosa às imagens . A representação de são Cr i s tóvão , que com tan ta f reqüênc ia ornamentava as paredes das igre jas das a lde ias ing lesas , supos tamente concedia um dia de imunidade à doença ou à mor te a todos os que a f i t assem. 4 5 8

Este mesmo autor constata que no mundo medieval havia se desenvolvido

um “amplo leque de fórmulas para atrair a bênção prática de Deus sobre as atividades

seculares”, acrescentando:O r i tua l bás ico era o benzimento com sa l e água para a saúde do corpo e expulsão dos maus esp í r i tos . Mas os l iv ros l i tú rg icos da época também t raz iam r i tua is para benzer casas , gados , cu l turas , embarcações , fe r ramentas , a rmas , c i s te rnas e fornalhas . Havia fórmulas para abençoar homens que se preparavam para sa i r em v iagem, pa ra t ravar um due lo , pa ra en t ra r em bata lha ou mudar de casa . Havia métodos para abençoar os doentes e t r a tar de an imais e s tére i s , pa ra afas tar o t rovão e t raze r a f ecundidade ao le i to mat r imonia l ( . . . ) Fundamenta lmente em todo esse procedimento e ra a idé ia de exorc ismo, o esconjuro formal do demônio , expulsando de a lgum obje to ma ter ia l por me io de preces e da invocação do nome de Deus . A água benta podia ser u t i l izada para afas tar maus esp í r i tos e vapores pes t i l encia i s . Era remédio cont ra a doença e a e s ter i l idade . 4 5 9

Thomas observa ainda que, no período entre os séculos XVI e XVII, da

história inglesa, os objetivos pelos quais a maioria dos homens recorria a sortilégios e a

feiticeiros eram precisamente aqueles para os quais “não havia alternativa técnica adequada”.

Assim, na agricultura, o lavrador que normalmente confiava em suas próprias habilidades e

perícias, quando ficava dependente de circunstâncias fora do seu controle – a fertilidade do

solo, as condições meteorológicas, a saúde do gado -, ele se mostrava mais propenso a

acompanhar suas atividades normais com alguma precaução mágica. Na ausência de

herbicidas, “havia encantamentos para manter a erva daninha distante das plantações”, e, em

lugar de inseticida e raticida, “havia fórmulas mágicas para afastar as pestes”. Havia também

sortilégios para aumentar a fertilidade da terra, além de precauções rituais que rodeavam a

caça e a pesca, “atividades especulativas, isto é, incertas ambas”.460

Assim como em Weber, para Bourdieu461 a racionalização da prática

religiosa, concentrada nas mãos de “sacerdotes” tende a enfraquecer o espírito mágico diante 458THOMAS, Keith. Religião e declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 36.459Id., ibid., p. 38.460THOMAS, K. Op. cit., p. 775.461 BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas. Op. cit., p. 79.

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do religioso. Segundo Weber, essa história de rivalidade começou com a religião judaica,

séculos antes de Cristo. No universo do magismo, nas religiões com origem na Índia, na

Mesopotâmia, na Pérsia, no Egito, na China, os deuses e espíritos são imanentes ao mundo,

não transcendentes. Javé, para o judaísmo, é um Deus pessoal e único, totalmente

transcendente ao mundo terreno. Isto fez que se introduzisse um dualismo básico que

separava a figura de Deus da esfera da natureza criada – Deus é uma realidade, e o mundo,

porquanto criatura, uma esfera totalmente distinta. Conforme Weber, esse é o verdadeiro

começo da idéia de desencantamento do mundo, a saber: este mundo não é sagrado.

Fundamentado no monoteísmo como dogma central, o principal pecado para o judaísmo era a

idolatria, e essa poderia ser cometida pela recorrência à magia (Deuteronômio 18; 9-15). Os

profetas bíblicos em sua pregação ética deflagram verdadeira guerra contra a magia. Esta

passa a ser concebida como pecado de idolatria: prática de inspiração diabólica, moralmente

condenada. Aos olhos de Javé, toda feitiçaria não pode ser senão arte do demônio,

abominação, diz a Bíblia, por isso, a Moisés teria ordenado: “não deixarás viver a feiticeira”

(Ex. 22:17). Os principais responsáveis por essa postura de rejeição moralizante da magia

foram os profetas de Israel, portadores de um tipo inédito de profecia na história das religiões

– a profecia ética.462 Eles condenaram a magia no âmbito do próprio “povo eleito”, exigindo

das autoridades sua repressão em nome da aliança com Javé. Segundo Weber,463 assim

procedendo, os profetas bíblicos davam início a um longuíssimo processo histórico-cultural

de “desencantamento religioso do mundo”, o qual veio a atingir o seu ápice no radicalismo

dos movimentos protestantes surgidos na Europa dos séculos XVI e XVII. Antes desse

período, durante a vigência do catolicismo medieval como religião do ocidente, magia e

religião viviam em simbiose, não podendo separar-se facilmente. Foi o surgimento das

formas puritanas de protestantismo que precipitou a separação entre as duas, separação

tornada reflexiva pela teologia calvinista do século XVII.

Em sua obra, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber

aborda o processo de desmagificação do cristianismo, na transição do catolicismo de feitio

sacramental e ênfase ritualística, para o protestantismo puritano dos séculos XVI e XVII, de

feitio ascético e acento moralista. Desde então, reformadores, inquisidores, tanto protestantes

como católicos, saíram a campo decididos a converter à “verdadeira fé” seus

462 PIERUCCI, A. F. Magia. Op. cit., p.10.463WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo/Brasília: Pioneira/EdUNB, 1981.

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contemporâneos, classificados como pagãos pela magia que praticavam e, por isso mesmo,

heréticos e pecaminosos.464 Assim,as ve r ten tes re l ig iosas ma is desencantadas , i s to é , menos mágicas , ser iam juda ísmo profé t ico , p ro tes tan t i smo pur i t ano e ca to l ic i smo in te lec tua l . E las a ssumem em re lação às crenças e prá t icas mágicas uma pos tura pr ime iro super ior , depois , exc ludente . Pode-se d izer que o ca to l ic ismo é menos desencantado que o pro tes tan t i smo h i s tór ico , sobre tudo o de fe i t io pur i tano;o pentecosta l i smo, mais encantado que os outros ramos do pro tes tan t i smo. 4 6 5

Os articuladores da Reforma Protestante, no século XVI, sobretudo na

forma do ascetismo ético intramundano dos grupos puritanos, reagiram energicamente contra

as conotações mágicas vivenciadas pela Igreja medieval, empreendendo-se intensivos

esforços no sentido de banir o que consideravam superstição e magia ainda presentes em seu

meio como herança do catolicismo medieval. Atribuíam a elas, inspirações do demônio,

associando-as à prática de necromancia:Os r i tos ca tó l icos eram vis tos , em sua ma ior ia , como metamorfoses mal d i s fa rçadas de cer imônias pagãs an te r iores ( . . . ) os pr ime iros r eformadores também começaram a suspender cos tumes t r ad ic ionai s do ca lendár io ( . . . ) Evidentemente , essa nova a t i tude pro tes tan te em re lação à magia ec les iá s t ica não logrou uma v i tór ia imedia ta , e a lgumas t rad ições do passado ca tó l ico cont inuaram a subs i s t i r . 4 6 6

De acordo com Keith Thomas, para os protestantes surgidos com a

Reforma, a fé vivenciada pelas massas católicas estava profundamente marcada por

superstições e magia. Afirma este autor que a tendência de estigmatizar as práticas e

sacramentos católicos como magia, que vinha desde os lombardos, em fins do século XIV,

tornou-se mais forte no decorrer da reforma iniciada por Henrique VIII. Nessa época,

analisaram-se todos os sacramentos quanto às suas ligações com práticas mágicas e, um por

um, foram sendo abandonados, até se fixarem apenas na Santa Ceia e no Batismo. “À

primeira vista, a Reforma parece ter eliminado todo esse aparato de assistência sobrenatural.

Ela negou o valor dos rituais da Igreja e devolveu o devoto à imprevisível mercê de Deus” –

afirma Thomas.

Remover a magia do mundo com base no ethos dos movimentos

protestantes puritanos implicava, inclusive, livrar-se de seus praticantes. Envolveu, por isso,

não só a violência simbólica do ataque intelectual e oratório ao pensamento mágico e às

464GODBEER, Richard. The Bevil´s Dominion: magic and religion in early new england. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.465 MARIANO, Ricardo. Igreja Universal do Reino de Deus: a magia institucionalizada. Revista USP, n. 31, p. 121, set./nov., 1996. 466 Id., ibid., p. 66-70.

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145

diversas modalidades do exercício “pecaminoso” da magia, mas também a violência física da

perseguição, prisão, tortura e morte dos profissionais da magia.

Também a Contra-Reforma Católica capitaneada pelos padres jesuítas e

outras ordens religiosas alinhadas com o papado, em pé de guerra religiosa com os

protestantes, desencadearam perseguições ao que consideravam magia.467 Laura de Mello e

Souza afirma que à semelhança dos protestantes, católicos também chegaram a fazer uso da

violência no esforço que empreenderam visando o banimento do que consideravam

“paganismo”, expresso na religiosidade vivida pelas populações da Europa Moderna:

“homens e mulheres [eram] acusados de (...) blasfêmias, proposições heréticas, visões e

feitiçarias”.468 Segundo escreve essa historiadora,469 “os jesuítas haviam desempenhado

função demonizadora durante o século XVI, vendo sabá nas cerimônias indígenas”. As

atuações colonizadoras no Brasil colonial eram também vistas como mecanismos

“exorcizadores desses povos; trazendo-lhes a fé cristã, os livrariam dos demônios”.470 Na

época, como mostra Keith Thomas, o diabo era a explicação para o inexplicável e para

mistérios, doenças e insucessos, havendo, portanto, a necessidade de se recorrer à magia.471

Esta religiosidade continuou se projetando com o advento da modernidade.

Em estudos que realiza sobre este período, Laura de Mello e Souza afirma que “a baixa Idade

Média assistira a uma demonização paulatina da existência”, e que “a Reforma Protestante e

as lutas religiosas do século XVI fortaleceram ainda mais a presença de satã entre os

homens”.472 Acrescenta ainda esta autora:No f ina l do século XV, pregadores e c lé r igos sa turavam seus sermões com um vocabulár io d iaból ico . ( . . . ) Foi , por tan to , no in íc io da Época Moderna , e não na Idade Média , que o inferno e seus habi tan tes tomaram conta da imaginação dos homens do Ocidente . 4 7 3

No caso católico, a ratificação feita pelo Concílio de Trento no sentido de

continuar usando a Inquisição no combate às heresias, acabou instigando ainda mais o

imaginário diabólico que viria configurar as práticas religiosas desenvolvidas na América

Colonial.Encont rando na co lônia populações au tóctones que também viam o d iabo como força a tuante e poderosa , os j esu í ta s acabaram por

467 DELUMEAU, Jean. Le catholicisme entre Luther e Voltaire. Paris: PUF, 1971.468SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico. Demonologia e colonização - Século XVI - XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 90.469Id., O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.470MARIZ, Cecília L. Identidade e mudança na religiosidade latino-americana. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 257.471THOMAS, K. Op. cit., p. 387.472 SOUZA, L. M. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 137.473 Id., ibid., p. 139.

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demoniza r a inda mais as concepções ind ígenas , to rnando-se , em ú l t ima ins tância , e por ma is paradoxal que pa reça , agentes demonizadores do co t id iano co lonia l . 4 7 4

Ressalta-se ainda que as práticas mágicas e religiosas na colônia brasileira

revelariam, ao final de seu primeiro século de existência, sua face pluricultural, que se

consolidou durante o século XVII. Para isso contribuiu a Inquisição, que “despejou sobre

solo colonial com grande freqüência os hereges e feiticeiros” que “trabalhariam no sentido da

manutenção das persistências”.475 Enfim, a Europa da Modernidade nascente, berço e auge

das reformas religiosas protestante e católica, experimentou, com sua periferia colonial uma

guinada: em vez de “religião com magia”, como sempre tinha sido e assim seguiria sendo no

resto do mundo, “religião contra magia”.476

Portanto, há uma vasta difusão geográfica e longuíssima duração histórica e

permanência da magia no Ocidente, mesmo com o advento da Modernidade. Assim, da

Modernidade clássica e pré-industrial à atual sociedade pós-industrial - a magia vem

enfrentando repressão, porém, jamais se deixando extinguir. Pelo contrário, tem se dado

muito bem em situações de risco.477 O próprio Max Weber, teórico da desmagificação do

mundo ocidental, admite que a magia é inextirpável: “a magia é uma base inerradicável”478

das manifestações mais folclóricas da fé. Isso significa que o desencantamento do mundo (ou

desmagificação), de que falou Weber, não chega a atingir plenamente as religiosidades.

Sempre há interesse por um objeto religioso mais próximo, suscetível de influenciar

magicamente, para que o desejo seja prontamente atendido.

Assim, nas últimas décadas, como visto anteriormente, o Brasil se encontra

numa industrialização ainda em processos de incompletude – fase de formação de

complicações no mercado de trabalho, multiplicação do número de desempregados e

excluídos do sistema econômico vigente. Esse quadro social de instabilidade acabou criando

condições propícias para a recorrência a respostas mais rápidas aos dramas existenciais, ou

seja, esse componente externo instigou o florescimento de um mecanismo interno

profundamente arraigado no campo religioso brasileiro: a magia. O contexto urbano se

tornaria, dessa forma, lugar de uma magificação especialmente configurada pelo que se pode

chamar de “massa de pressão cultural do campo”.

474 Id., ibid., p. 140.475 SOUZA, L. M. Inferno Atlântico, p. 56.476 PIERUCCI, A. F. Magia, p. 86.477 Id., ibid., p. 53.478WEBER, Max. Economia de sociedade. V. 1. Brasília: UNB, 1991, p. 292.

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2.7 - Um contexto de pressão folclórica camponesa no mundo urbano

Jacques Le Goff usa a expressão “massa de pressão cultural do campo” para

se referir ao “fenômeno de pressão das representações populares sobre a religião dos eruditos

no cristianismo medieval”. Naquele contexto, uma cultura “primitiva” de “cariz mais

guerreiro”, laica, de caráter sobretudo camponês no conjunto das camadas inferiores

ruralizadas, manifestou uma acentuada pressão perante a cultura eclesiástica:Ocor rem, a ss im, dois fenômenos essenc ia i s : a emergência da massa camponesa como grupo de pressão cu l tura l e a ind i fe renc iação cul tura l c rescente – com a lgumas exceções ind iv iduais ou loca is – de todas a s camadas socia i s la icas face ao c lero que monopol iza todas a s formas evolu ídas , e nomeadamente esc r i t as , de cu l tura . O peso da massa camponesa e o monopól io c le r ica l são duas formas essenc ia i s que agem sobre a s re lações en t re os meios socia is e os n íve i s de cu l tura da Al ta Idade Média . 4 7 9

Algo semelhante se deu no contexto brasileiro na segunda metade do século

XX: um universo folclórico religioso, configurado na liminaridade do controle institucional

católico, emergiu como “massa de pressão” no campo religioso. Que cultura folclórica é

essa? Antonio Gouvêa Mendonça ajuda a descrever esse compósito afirmando que “o

universo do catolicismo popular era um universo mágico de pluralidade de deuses”, cujo

cenário, nunca fixo e permanente, “podia ser manipulado e rearranjado segundo as

necessidades humanas”. Acrescenta ainda:A cul tura bras i l e i ra t em t rês componentes mui to c la ros : a cu l tura ibero- la t ino-ca tó l ica , a ind ígena e a negra . A pr ime i ra não é r epresentada pe lo ca to l ic i smo t r ident ino , mas pe la re l ig ião popular , folc lór ica e f es t iva l egada pe la t r ad ição lus i t ana . Dessa mis tura de cul tura r esu l tou um imaginár io de um mundo compos to por esp í r i tos e demônios bons e maus, por poderes in termediár ios en t re os homens e o sobrenatura l e por possessões . Tra ta -se de um mundo maniqueís ta em que os poderes são c lass i f i cávei s en t re o bem e o mal e manipuláve is magicamente . 4 8 0

Mendonça destaca algumas características fincadas nas raízes dessa

religiosidade desenvolvida desde o período colonial: peregrinações a locais sagrados;

mediação dos santos por meio de preces muito populares, que nem sempre seguem a

canonização oficial dos mesmos pela igreja; fazer e cumprir promessas, acender velas,

solicitar ajuda de rezadores. Eduardo Albuquerque comenta o arraigamento dessas práticas

no catolicismo de devoção folclórica:

479 LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente, p. 207, 208, 209. 480MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 1997, p. 160.

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No cr i s t ian i smo popular brasi l e i ro , a oração , a prece e a reza são fórmulas r e l ig iosas d i r ig idas a Deus, a Cr i s to , à Vi rgem Maria e aos san tos , mediante o que o f i e l pede , dese ja , ju lga a s i mesmo e ava l ia suas própr ias necess idades . Vindas de Por tuga l , enf ren tam a Inquis ição , os médicos e os jur i s ta s e sobrevivem nos nossos d ias a t ravés dos homens e mulheres que benzem. ( . . . ) ins t rumentos mant idos pe la memória do povo bras i l e i ro para enfren tar suas advers idades co t id ianas . 4 8 1

A introdução de grandes levas de escravos provenientes da África

ocasionou não somente uma grande mescla ou mestiçagem racial, como também um intenso

e circular pluralismo nas crenças que perfazem o campo religioso brasileiro. Basicamente, os

únicos elementos que os negros puderam transportar da sua terra natal para o Brasil colonial

foram, além de outros aspectos culturais, as crenças em seus deuses e espíritos e os múltiplos

ritos para se relacionar com eles. Esta fé se estendeu posteriormente às diferentes regiões do

país, estando presente por meio de uma variedade de expressões das quais as mais conhecidas

e extensivas são o candomblé e a umbanda. Essa última tipologia contém traços muito fortes

de espiritismo como também elementos litúrgicos da fé cristã. Tais crenças devem, pois, ser

consideradas como parte importante da cultura do país, como bem destaca Milton Carlos

Costa ao dizer que “a religiosidade afro-brasileira” consiste em “manifestação cultural de

reconhecida importância e um dos traços distintivos da civilização desenvolvida no Brasil”.482

Pierre Sanchis também se refere ao capital simbólico que configura o

campo religioso brasileiro, indicando como matriz religiosa um encontro de práticas, crenças

e ritos de expressões culturais distintas, marcadas por raízes européias, africanas e indígenas.

A “porosidade” que configura essa matriz cultural é que permite, ao mesmo tempo, crer em

demônios, ter medo de pisar em trabalhos de macumba, usar fitas do Senhor do Bonfim,

colocar carrancas nas entradas das casas, elefantes de costas para as portas, soltar fogos no

dia de Nossa Senhora Aparecida, virar Santo Antônio de cabeça para baixo para se obter um

casamento, ir à missa aos domingos, acreditar em reencarnação, tomar banho de descarrego e

benzer-se com água benta, acender incensos, acreditar em “olho gordo”, cristais, gnomos...483

Também Eduardo Hoornaert, distinguindo do que chama de “catolicismo

estabelecido ou patriarcal”, identifica o “catolicismo popular” brasileiro como sendo a

religiosidade indígena e africana.484 Afirma ainda que “os sacerdotes católicos foram 481ALBUQUERQUE, Eduardo Basto de. Orações & rezas populares. Texto disponível em: http:// www.planetanews.com. Acesso em: 25 out. 2006.482COSTA, Milton Carlos. Joaquim Nabuco entre a política e a história. São Paulo: Editora Annablume, 2003, p. 55.483 SANCHIS, Pierre. Para não dizer que não falei de sincretismo. Comunicações do ISER, Rio de Janeiro, n. 13, p. 4-11, 1994.484 HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 98.

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assimilados a modelos bem definidos do imaginário religioso indígena...”,485 ao passo que um

processo em outra via também ocorreu: no confronto entre o sacerdote católico e o “xamã”

americano (pajé, curandeiro, conselheiro, feiticeiro etc.) alguns deles “descobriram nesse

confronto a dimensão xamânica inerente à sua própria vocação”.486

Devido a um intenso processo de êxodo rural e urbanização acelerada,

grandes contingentes populacionais passaram a experimentar no dia-a-dia do mundo urbano

um alto grau de insegurança, desproteção e incertezas, principalmente entre as camadas

médias e pobres da sociedade. Este escalonário deslocamento da população do campo para a

cidade criou uma intensa “orfandade” religiosa envolvendo fiéis e devotos. Diante desse

quadro, o discurso feito pelo corpo de especialistas urbanos da religião - católicos e

protestantes históricos - não foi capaz de atender satisfatoriamente a essa massa em busca de

amparo, fazendo que ocorresse um processo de espoliação simbólica ainda maior,

envolvendo tais devotos e levando-os a um distanciamento cada vez mais acentuado de suas

divindades.487

Ao falar sobre elementos geradores de magia, Max Weber a localiza e a

observa sobretudo entre camponeses, pois devido à incerteza com que vivem em sua

atividade profissional, as práticas mágicas ou de uma religião com maior presença de traços

mágicos, apresenta-se-lhes como um dispositivo para soluções mais imediatistas. Sendo

assim, a cidade – dada à existência em seu meio de maior proximidade com o

desenvolvimento de saberes científicos, assim como a presença de práticas religiosas mais

institucionalizadas – constitui-se como um dos elementos diretamente responsáveis pela

eliminação desse encantamento folclórico camponês. Logo, as transformações do contexto

brasileiro contribuíram para provocar o abandono ou redução da atratividade das opções

religiosas estabelecidas no mundo urbano, que propunham ao indivíduo um “novo céu e uma

nova terra” fora do mundo e da história, como foram os casos do protestantismo clássico e do

pentecostalismo em seus primórdios.

E, como visto anteriormente nessa pesquisa, o campo religioso possui denso

capital simbólico de magia. Assim, nesse momento e contexto, eclodiu uma massa emergente

de indivíduos em busca de respostas mais rápidas aos seus dramas e anseios. Em outras

palavras, esse contingente migrante do contexto rural para o urbano não encontrou espaço no 485 Id. Sacerdotes e conselheiros. In: HOORNAERT, Eduardo et al. Estudos Bíblicos nº 37. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 67.486 Id., ibid., p. 72.487 BENEDETTI, Luiz R. Os Santos Nômades e o Deus Estabelecido. São Paulo: USP, 1981. 250 fl. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, 1981.

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protestantismo pela sua aridez simbólica, discurso racional e por constituir-se em uma

religião tipicamente urbana no mundo moderno. Além de um estilo de culto com linguagem

inacessível e espaço quase inexistente à liderança leiga, aspectos que marcavam um fosso

cultural entre a cultura folclórica e o racionalismo da cultura eclesiástica. No catolicismo

oficial, a erudição das missas em latim também se tornava grande obstáculo. Tampouco o

discurso militante da Teologia da Libertação foi capaz de atrair essa massa que precisava de

respostas imediatas, sem poder esperar pelos processos de conscientização promovidos nos

grupos de reflexão e catequese das Comunidades Eclesiais de Base e a conseqüente

transformação da sociedade pela revolução dos oprimidos ou proletariados. Com ênfase nas

questões de natureza social e na politização da fé, essa opção religiosa acabou gerando

vulnerabilidade e muitos desses simpatizantes acabariam atraídos a uma “solução” mais

rápida e de caráter mais “sobrenatural”. Assim, acaba ocorrendo algo semelhante ao

identificado por Jacques Le Goff no cristianismo medieval, quando afirma que, não obstante

“haver um bloqueamento da cultura inferior pela cultura superior, as influências não são

unilaterais”, é preciso considerar “duas culturas diversamente eficazes, em níveis diferentes”,

e por isso “o fosso que separa a elite eclesiástica não impede, porém, que esta se torne

permeável à cultura folclórica, da massa rural”.488

Pessoas experimentando intensas incertezas na vida urbana, nos quadros de

uma economia capitalista em processo de remodelação, aliado a um processo de

desarticulação dos modos de vida, provocado dentre outros aspectos pelo deslocamento de

grandes contingentes populacionais do campo para os espaços urbanos, buscavam, na

verdade, oportunidade para o emprego de rituais que reduzissem as incertezas e restaurassem

nos indivíduos a crença de que o mundo pode deixar de ser não-manipulável e arbitrário. Ou

seja, tornava-se emergente a aparição de um espaço que permitisse a esta massa que,

deixando o catolicismo ou as religiões de origem afro, pudesse manter ou reviver um

fertilíssimo mundo de práticas tipicamente mágicas e híbridas que constituíam seu imaginário

primevo. Foi em tal ambiente – onde o ato mágico se tornou necessário para preencher o

vazio do desconhecido, sob a “pressão psicológica do indeterminismo” - 489 que surgiu uma

resposta aos anseios emergentes: um “sindicato de mágicos”. Um movimento com propostas

de soluções mais instantâneas e mediadas pelo “sobrenatural” do sagrado apresentar-se-ia

como um caminho mais sedutor para um imaginário cultural-religioso de um contingente

urbano que não mais podia esperar. Assim, com o nome Igreja Universal do Reino Deus, essa 488 LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente, p. 215.489 GEERTZ, C. Op. cit., p. 140.

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expressão religiosa marcaria a escrita de um capítulo absolutamente novo na composição e

no funcionamento do campo religioso brasileiro, reconfiguração tão absolutamente radical ao

ponto de se poder afirmar que o panorama de crenças do país se divide em antes e depois dessa Igreja.

Naturalmente, algumas das características que marcam as práticas da IURD

reeditam experiências já conquistadas por segmentos pentecostais que historicamente a

antecederam. Porém, as modificações implementadas ocorrem numa dimensão e numa

profundidade sem precedentes em tal contexto. Maria Lucia Montes descreve este aspecto

dizendo que surgiu aí “um novo tipo de igreja evangélica, inédito no Brasil”:Em menos de t r ês décadas essa igre ja a t ing iu um c resc imento ver t ig inoso , d iver s i f icando suas a t iv idades e formas de a tuação a ponto de def in i r um “perf i l p rópr io” que a d i s t ingue no in ter ior do campo evangél ico , conf igurando o que ve io a se r chamado de “neopentecos ta l i smo”. 4 9 0

A IURD se diferencia do protestantismo e do pentecostalismo clássico,

assim como promove um dinâmico processo de apropriação e resignificação das expressões

de fé arraigadas nas crenças afro-brasileiras e no catolicismo de devoção mais folclórica.

Dessa forma, a “massa de pressão folclórica”, com um espectro denso de magia, proveniente,

em boa parte do mundo rural, encontraria finalmente um espaço de acolhimento para a

experiência com o sagrado em seus níveis mais encantados, como o veremos a seguir.

490MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 85.

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3 – UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS: PRÁTICAS

3.1 - A consagração do herético: o nascimento de um sindicato de mágicos

Nascido na cidade de Rio das Flores, em 18 de fevereiro de 1945, Edir

Macedo Bezerra viveu sua infância em um lar extremamente pobre de migrantes nordestinos:

“seu pai, Henrique Francisco Bezerra, alagoano, possuía uma pequena venda de secos e

molhados, e sua mãe, Eugênia Bezerra, dona-de-casa”.491 Segundo o próprio Macedo, ele é

um “sobrevivente”, pois sua mãe teve 33 filhos, dos quais 10 morreram e 16 foram abortados

por terem nascido “fora de época”.492 No começo da sua adolescência, Macedo mudou-se

com sua família para Petrópolis - RJ. Em 18 de dezembro de 1971, casou-se com Ester

Eunice Rangel Bezerra. Do casamento nasceram três filhos, sendo as duas filhas mais velhas

casadas com pastores da Igreja Universal e vivendo, atualmente, no exterior. O terceiro filho,

Moisés, já na juventude, “segue o mesmo caminho vocacional do pai” - comenta o site oficial

da igreja, que também ressalta:O bispo Edi r Macedo cons ide ra de fundamenta l impor tância a guarda dos va lores e pr inc íp ios cr i s tãos , segundo a Palavra de Deus , para a cons t i tu ição da famí l ia . E le própr io é exemplo d isso . Com mais de 30 anos , seu fe l iz e só l ido casamento com Este r Eunice Macedo Bezer ra é um dos grandes segredos das v i tór ias no minis tér io do b i spo . 4 9 3

Quanto à sua trajetória mais propriamente religiosa, vale destacar que, antes

de fundar a sua própria igreja, foi católico, depois participante da umbanda e candomblé além

de peregrinar por igrejas evangélicas, fato que o torna figura bastante representativa da

configuração de elementos culturais-religiosos dispostos no campo:A própr ia t ra je tór ia de Edi r Macedo é i lus t ra t iva dessa fusão de referen tes cu l tura i s , po i s Macedo nasceu de uma famíl ia de ca tó l icos devotos , passou por uma in ic iação no Candomblé , pe lo pentecos ta l ismo c láss ico e pe las ondas renovadas do pentecos ta l ismo nor te-amer icano . Mas fo i de modo paula t ino que a nova igre ja se t r ansformou em um marco do que v i r i a a se r conhecido como o neopentecos ta l i smo. ( . . . ) 4 9 4

O início de sua trajetória religiosa pelos caminhos do pentecostalismo se

deu em 1963, quando, aos 18 anos, converteu-se na Igreja Pentecostal Nova Vida, onde

chegou por meio de sua irmã, que testemunhava ter sido curada de uma bronquite asmática 491 MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, p. 43.492 Programa 25ª Hora. São Paulo, Rede Record, 15 nov. 1991. Programa de TV.493 http:// www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 25 out. 2005.494MAFRA, C. Os evangélicos, p. 38.

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naquela denominação religiosa. Em entrevista jornalística (20/06/91), Macedo mencionou

detalhes dessas primeiras experiências:Eu era uma pessoa t r i s te , depr imida , angus t iada . No fundo do poço busquei a ig re ja Cató l ica , e só encont re i um Cri s to mor to . Aqui lo não sa t i sfez meu coração e pa r t i para o e sp i r i t i smo, mas as idé ias que a í encont re i não se coadunavam com as minhas . Então , um dia , t ive e sse encont ro pessoal com Deus . Estava em uma reunião públ ica de evange l is tas na sede da Associação Bras i le i r a de Imprensa , no Rio . As pessoas cantavam e , de repente desceu uma coisa sobre nossa cabeça , nosso corpo , como se e s t ivéssemos sendo jogados deba ixo de um chuvei ro . Foi a lgo ao mesmo tempo f ís ico e e sp i r i tua l , abs t ra to e concre to . Pude me ve r como rea lmente era , e eu me v ia como se es t ivesse descendo ao infe rno . Ca í em prantos . Então a mesma presença me apontou Jesus . Foi quando nos conver temos e nos en tregamos de corpo , a lma e esp í r i to . 4 9 5

O site da Igreja descreve esta experiência de conversão como decisiva na

vida de seu líder: Desde mui to jovem, Edir Macedo sen t ia fa l t a de a lgo especia l que preenchesse o vaz io de seu coração: uma exper iência maior com Deus . O encont ro ocorreu em 1963 e deu or igem a uma v i rada rad ica l não apenas em sua v ida , mas também na de mi lhões de pessoas . 4 9 6

A aparição definitiva de Macedo como líder religioso aconteceu pouco

tempo depois, em 1974, cuja vocação é enaltecida pela Igreja: Logo após receber a p len i tude do Espí r i to Santo na sua v ida , sen t iu o dese jo a rdente de conquis tar a lmas para o Senhor Jesus e l eva r o Evange lho a todos . Começou evangel izando nas ruas e fazendo reuniões nas praças . Quando sen t iu o chamado de Deus pa ra o minis tér io , de ixou o emprego e in ic iou o t raba lho da Igre ja Univer sa l do Re ino de Deus. 4 9 7

A Folha Universal apresenta ainda outros detalhes que enobrecem a

vocação de seu líder:Quando cr iança , j á mos trava seu temperamento for te ; na adolescênc ia coragem, ousadia , esp í r i to r enovado e v igor da juventude; aos 27 anos en t re lu tas e lágr imas , amadureceu most rando ao mundo que sua força e s tá no t raba lho nos gue tos , nas f avelas , onde ha ja a lguém sof rendo. Quando in ic iou o t r aba lho da Igre ja Universa l do Reino de Deus , em 1977 o b i spo Edir Macedo já t inha ce r teza de que i r i a l eva r o evangelho a um imenso número de pessoas u l t rapassando as f ronte i ras do Bras i l . 4 9 8

Quando Macedo era agente da Casa de Loterias do Rio de Janeiro, com 31

anos, deixou a Igreja Pentecostal Nova Vida, que freqüentava na cidade do Rio de Janeiro,

495Apud MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, p. 69.496http:// www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 20 abr. 2004.497http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em 21 abr. 2004.498 Folha Universal, Rio de Janeiro, 11 jul. 2004, p. 7.

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para iniciar sua própria igreja. O primeiro passo foi iniciar um programa de rádio que ia para

o ar logo após uma outra programação religiosa, apresentada por uma mãe-de-santo. O

programa, ao vivo, garantia que Edir contrapusesse os discursos, as cosmologias e,

principalmente, os resultados práticos de uma religiosidade e outra. Durante esse período,

com o auxílio de Romildo Ribeiro Soares, seu cunhado, (hoje, conhecido como “missionário

R.R. Soares”), Roberto Augusto Lopes e Samuel Fidélis Coutinho, fundou a Igreja Cruzada

do Caminho Eterno. Logo depois, Macedo e R. R. Soares consagraram-se mutuamente

pastores, sendo que Edir Macedo passou a acumular também o cargo de tesoureiro da

cruzada. Vale dizer que antes de fundarem a Igreja do Caminho Eterno, esses dois líderes

nunca haviam exercido qualquer cargo eclesiástico; contudo – mesmo sem qualquer

formação teológica específica – obtiveram a consagração para tal função.

Três anos mais tarde ocorreu uma cisão no grupo. Foi quando Macedo,

após também pedir demissão de seu emprego na Loterj, com o apoio de R. R. Soares, fundou,

no dia 9 de julho de 1977, a Igreja Universal do Reino de Deus. Nas palavras da própria

IURD assim é descrito o surgimento da Igreja:Num século em que a cr iminal idade , a insegurança e a d i scórd ia imperam, f a lar da Igre ja Unive rsa l do Reino de Deus é o mesmo que desc rever uma boni ta h i s tór ia de amor . Essa h i s tór ia vem sendo levada pa ra as pessoas ca ren tes . É bem verdade que nada começou de uma hora para out ra . Sem condições de a lugar um imóvel , o então pas tor Edi r Macedo in ic iou as suas pr imei ras reuniões num core to do Jard im do Méier . Or ien tado pelo Espí r i to Santo e r eves t ido de uma fé inabaláve l , a s suas pa lavras logo deram in íc io à Igre ja que a tua lmente mais cresce no mundo. Em 9 de ju lho de 1977, abr iam–se of ic ia lmente as por tas da Igre ja Unive rsa l do Reino de Deus . Foi a lugada uma ant iga fábr ica de móve is no número 7 .702 da Avenida Suburbana que pa rec ia ser o loca l idea l pa ra in ic ia r a obra , O galpão se tornou o grande templo da Abol ição , com capacidade in ic ia l para 1 .500 f ié is . Mas logo fo i p rec i so ampl iar a capacidade para duas mi l pessoas . 4 9 9

Em 1980, devido a uma divergência, R.R Soares separou-se de Macedo

para fundar a sua própria denominação religiosa, a Igreja Internacional da Graça de Deus. Mais tarde, em 1981, optou pelo episcopado, sendo consagrado bispo.

Em torno da figura do bispo desenvolveu-se um fetichismo, uma grife e um

efeito mágico que o torna distintivo perante os fiéis: Todo mundo adora o b i spo Macedo. Ele dá uma ordem aqui e lá no ext remo do Bras i l , e mesmo numa igre ja d i s tan te , a ordem é conhecida e obedec ida ( . . . ) Macedo é uma espécie de l íde r ‘ au tor i t á r io’ no bom sent ido da pa lavra ( . . . ) e le é um homem que tem tudo nas suas mãos dentro da igre ja ( . . . ) a s suas dec i sões são ráp idas e inques t ionáveis na igre ja . E le f a lou e t á fa lado ( . . . ) a

499 http:// www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 25 abr. 2004.

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unidade da IURD é garant ida pe la au tor idade única e cen t ra l izada do b i spo Macedo. Ass im temos uma igre ja que tem mais un idade do que a própr ia Igre ja Ca tó l ica na f igura do Papa . 5 0 0

Ao ser venerado pelo movimento que fundou, esse líder recebe como

destaque o atributo de grande empreendedor:Ideal izador e fundador da Edi tora Gráf ica Univer sa l , ho je incorporada pe la Hold ing Univer sa l Produções . Fundador do Por ta l Arca Unive rsa l ( In te rne t) . Pres idente do Conselho das Redes Record , Mulher e Rede Famíl ia de Telev isão . Cr iador e pres idente do Conse lho da Rede Ale lu ia de Rádio (Rede Nacional de Radiocomunicação pa ra a Evange l ização do Povo de Deus) . Fundador e responsável d i r e to pe la Igre ja Univer sa l do Re ino de Deus em mais de 100 paí ses da Europa , Ás ia , Áfr ica e Américas . Autor de inúmeros e in f luentes l iv ros . Jorna l is ta -co laborador r esponsável por a r t igos pe r iódicos em vár ios ve ícu los de comunicação , des tacando-se : jo rna l semanár io Folha Unive rsa l , com t i r agem super ior a 1 ,4 mi lhão de exemplares em edição nac ional ; Jornal Hoje em Dia (vesper t ino d iá r io ed i tado em Belo Hor izonte , com dis t r ibu ição para todo o Estado de Minas Gera i s ) ; Jorna l do Bras i l (vesper t ino d iá r io ed i tado no Rio de Jane iro) ; Jorna l “Pare de Suf r i r !” e “Stop Suffer ing!” (ambos ed i tados em Nova York , s imul taneamente , nos id iomas espanhol e ing lês ) ; Jornal “Ci ty News” (Londres) ; Tabló ide “Folha Univer sa l” (ed i tado para Por tuga l e comunidades af r icanas de Língua Por tuguesa (Moçambique , Cabo Verde e Angola) ; Jorna l “Univer sa l SHINBUN” ( Japão) ; Jorna l “El Universa l” (Buenos Ai res ) ; Revis ta “P len i tude” (di rec ionada pa ra toda a comunidade evangé l ica , em edição nac iona l , com t i r agem mensal de 450 mil exemplares ) ; Revis ta “Obre i ro de Fé” (d i r ig ida a obre i ros e obre i ras de comunidades c r is tãs em busca de ens inamentos b íb l icos - t i r agem de 100 mi l exempla res ) . Radia l is ta , apresentador e comenta r i s ta de programas evangél icos em vár ias redes de t e lev isão e r ád io , no Bras i l e no exter ior , des tacando-se a Rede Record de Telev isão e a Rede Ale lu ia de Rádio . Organizador de concent rações evangél icas no Bras i l e em out ros pa íses : 1994 (Ater ro do Flamengo - RJ) - mais de um mi lhão de pessoas ; 1995 (Vale do Anhangabaú - SP) - mais de um mi lhão de pessoas e ar recadação de 700 tone ladas de a l imentos não-perec íve i s para a s comunidades caren tes ; 1998 (Praça da Apoteose - RJ) - 200 mi l pessoas concentradas em c lamor a Deus ; 09 de abr i l de 2004, por ocas ião da Páscoa (no a ter ro do Flamengo, no Rio de Jane i ro – RJ) 1 ,5 milhão de pessoas . Des taca -se , t ambém, na l iderança de concent rações evangé l icas em todos os es tád ios do Bras i l , a lém de eventos in te rnacionais , concentrando grande número de pessoas de vá r ios pa í ses em I srae l . 5 0 1

Igualmente, são destacados os títulos que lhe foram conferidos:Cidadão Benemér i to do Es tado do Rio de Janei ro ( confe r ido pe la Assemblé ia Legis la t iva , conforme a r eso lução 41/1987) . Medalha Ti radentes ( confe r ida pe la Assemblé ia Legis la t iva do Es tado do Rio de Janei ro) . C idadão Pe tropol i t ano (Câmara Munic ipa l de

500 L. M. S. é pastor da IURD na cidade de Londrina. Entrevista concedida em nov. 2004. Gravação em K7, transcrita para uso como fonte.501http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 02 maio 2004.

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Pet rópol is–RJ) . Cidadão Paul i s tano (Câmara Munic ipa l de São Paulo) . 5 0 2

Mas a igreja transfere todas estas representações para o nível do eufemismo religioso,

recalcado pela alquimia da “consagração”, pela representação de serviço prestado à

divindade,503 ao lembrar que:Edi r Macedo, l íder esp i r i tua l da Igre ja Unive rsa l do Reino de Deus , abr iu mão de uma v ida es tável para serv ir exc lus ivamente a Deus . Suas pr imei ras pregações aconteceram num modesto core to do Méier , subúrb io do Rio de Jane iro . Hoje , Catedra i s imponentes se e spa lham por mais de cem países . Na época em que abandonou seu emprego de func ionár io públ ico para se dedica r à obra do Senhor Jesus , fo i c r i t i cado a té mesmo por fami l ia res . No en tan to , acred i tou em seu sonho e a tua lmente a IURD é a ig re ja evangél ica que mais c resce no Bras i l e no mundo. Nes tes 28 anos de lu tas e conquis ta s e le sof reu d ive rsas perseguições , fo i p reso e humi lhado, mas sempre superou seus desaf ios e se manteve f i rme no propós i to de levar a Palavra de Deus aos desamparados e sof r idos . 5 0 4

3.2 - A universalização do reino: o explosivo crescimento da Igreja Universal

O crescimento da Igreja Universal se deu de modo sem precedentes no

campo religioso brasileiro. Em menos de três décadas transformou-se no mais surpreendente

e bem-sucedido fenômeno religioso do país. Nenhuma outra igreja havia crescido tanto em

tão pouco tempo. Rapidamente, a IURD rompeu as fronteiras geográficas de seu ambiente de

origem, superando as expectativas mais otimistas utilizadas para aferir o crescimento de

novas igrejas. O site oficial da IURD enobrece essa capacidade visionária e o papel de

ousadia desempenhado pelo seu líder.Quando o jovem Macedo a lugou o ga lpão , a lguns pas tores que t raba lhavam com e le cons ideraram o ges to uma loucura , já que o a luguel do imóvel e ra mui to ca ro . Essa ousadia , en tre tan to , cont r ibu iu pa ra faze r da Unive rsa l o que e la é ho je : uma Igre ja que não pára de c rescer . Cruzada do Caminho Ete rno e Igre ja da Bênção foram a lguns dos nomes u t i l i zados na formação da a tua l Igre ja Univer sa l do Re ino de Deus. 5 0 5

Nos primeiros anos, a distribuição geográfica da Igreja se concentrou nas

regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Em seguida expandiu-se

pelas demais capitais, grandes e médias cidades. Com apenas três anos já contava com 21

templos em cinco estados brasileiros. Em 1985 avançou para 195 templos em 14 Estados e no 502http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 03 maio 2004.503OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). Sociologia da religião. Enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 105.504 Folha Universal, Rio de Janeiro, 21 ago. 2005, p. 6.505 http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 05 jun. 2004.

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Distrito Federal. Em 1989, eram 571 locais de culto. Na década de 1990, passou a cobrir

todos os Estados do território brasileiro. Em 1999, numa vigília, reuniu multidão suficiente

para lotar, ao mesmo tempo, o enorme estádio do Maracanã e o Maracanãzinho, evento

registrado de forma entusiástica pela Folha Universal: A noi te de 29 de outubro en t ra pa ra a h i s tór ia como a da ta em que se reuniu o maior número de pessoas em um evento re l ig ioso rea l izado num es tád io de fu tebol no pa í s : 250 mil pessoas . Ônibus , t rens e me t rô comple tamente lo tados , t raz iam, a cada nova v iagem, centenas de pessoas ( . . . ) Caravanas , u t i l izando mais de t r ês mil ôn ibus, de vár ios pontos do pa í s , passa ram pe los por tões do maior e s tád io do mundo, porém pequeno para abr igar o grande número de membros da IURD. 5 0 6

Nesse acontecimento, a Universal ousou novamente ao alugar dois trens, cada um com oito

vagões, que saíram da Baixada Fluminense, transportando os fiéis até o local da reunião.

Comentando esse crescimento da Igreja, Ricardo Mariano destaca a

distinção obtida pelo movimento liderado por Macedo:Qualquer um que t ivesse v i s to a IURD surg i r na sa la de uma ex-funerár ia do ba i r ro da Abol ição , subúrb io da Zona Nor te do Rio , não sus ten ta r ia grandes expec ta t ivas a seu respei to . ( . . . ) No en tan to , apesar da remota probabi l idade de êx i to , a h i s tór ia lhe fo i a ssaz generosa , mi lagrosa a té . 5 0 7

O depoimento dado por um ex-pastor da IURD também destaca essa

capacidade de projeção:De todos os mi lagres operados por Edi r Macedo, o maior , sem sombra de dúvida , fo i de t e r t ransformado uma igre j inha pro tes tan te , que começara t imidamente em uma funerá r ia no Rio de Jane iro , em 1977, nes te imenso e poderoso impér io que se espa lha por vá r ios pa í ses . Um impér io que c resce a cada d ia com a capacidade de mul t ip l i ca r mi lhões de dóla res como se fossem pães . 5 0 8

O editorial da revista Plenitude atribui à “ousadia” essa capacidade de

projeção da Igreja:O nome Igre ja Unive rsa l f az jus ao dese jo do pas tor Macedo: “ ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda cr ia tura . Marcos 16:15” . O t rabalho sempre fo i duro . Dis t r ibu i r fo lhe tos nas ruas convidando os sof r idos e necess i t ados pa ra os cu l tos t ransformou aque la igre ja em um local pequeno demais . Mesmo fazendo vá r ias r euniões por d ia pa ra poder compor ta r todos os f reqüentadores , o loca l j á não era suf ic ien te . Surg ia , en tão o desaf io de consegui r um local maior e assumir os compromissos , p r inc ipa lmente f inance iros

506 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 69, ano 18, p. 69, 1999.507 MARIANO, R. Neopentecostais: o pentecostalismo está mudando, p. 43.508 JUSTINO, Mário. Nos bastidores do reino. A vida secreta na Igreja Universal do Reino de Deus. São Paulo: Geração Editorial, 1995, p. 29.

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que i sso acarre tar ia . Esse e ra apenas o pr ime iro passo que s ina l izar ia uma das maiores ca rac ter í s t icas da IURD: a ousadia . 5 0 9

A mesma reportagem ressalta que poucos anos depois da fundação da Igreja

Universal no Brasil, “o já bispo Edir Macedo havia cruzado os limites do Rio de Janeiro e

levado a palavra de Deus a vários estados brasileiros”. Lembra que, ao invés de comemorar o

rápido crescimento e usufruir de algumas facilidades que a igreja havia conquistado para o

trabalho evangelizador, como programa de rádio e televisão, a liderança da IURD “partia

para um novo e maior desafio, afinal, não se tratava da Igreja Nacional, mas sim da Igreja

Universal do Reino de Deus”.

Em declaração à revista Plenitude, o bispo Macedo conta um pouco de

como foi o início da igreja que fundou: Muitos ep i sódios v iv idos por mim e minha famí l ia nos ens inaram o sen t ido maior da pa lavra perseverança . Aprendemos na prá t ica a d i ferença en t re a f é emoc iona l e a f é esp i r i tua l . Contamos com a presença cons tan te do Espí r i to do Senhor Jesus . Além do que , aque le que fez e ssa promessa não pode fa lha r . Mesmo d ian te de per seguições e grandes lu tas a ig re ja Univer sa l p rogrediu e se expandiu não parando de c rescer par t indo para vár ias reg iões . 5 1 0

Segundo o bispo uma das atitudes que tem colaborado para o crescimento

da IURD em todo o mundo é uma receita bem simples: “fazer dos limões (que representam

os problemas), uma boa limonada (representando a vitória)”. A igreja enfrentou períodos de

grande perseguição e rejeição de alguns de seus pastores em alguns lugares onde se

estabeleceu. “Essas dificuldades têm sido encaradas pelos líderes da Igreja Universal como

oportunidades ideais para o exercício da fé e para a ação do poder de Deus”.511

A igreja reconhece essa ousadia de seu líder, afirmando que “não deu

importância às barreiras e às palavras negativas que se levantavam a cada dia”,512 experiência

que se tornou inspiração para os demais líderes:A Igre ja Unive rsa l do Reino de Deus tem ul t r apassado as f ronte i ras abençoando os povos em mais de cem pa íses . Todos os d ias , mi lhares de pessoas te s temunham mi lagres de cura , v i tór ia e prosper idade – um s ina l da mani fes tação do poder de Deus – que fazem com que a IURD se mantenha f i rme em sua t ra je tór ia . Nas ruas , p r i sões , hospi ta is e a t ravés dos meios de comunicação , b ispos , pas tores e obre i ros devotam cada minuto de suas v idas , dedicando todas suas forças para a judar os necess i t ados. 5 1 3

509 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 122, p. 10, jul. 2005.510 Id., ibid.511 Id., ibid., p. 12.512 Id., ibid.513 Folha Universal, Rio de Janeiro, 25 dez. 2005, p. 5.

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Grandes e estratégicas cidades se tornaram alvo dos primeiros esforços de

expansão fora do Rio de Janeiro. Em São Paulo, a Universal se estabeleceu em 1984, quando

Roberto Augusto – um dos auxiliares de Macedo na fundação da igreja - foi enviado para

implantar a igreja na capital paulista. O trabalho obteve êxito, tendo início no Parque D.

Pedro, sendo depois estabelecido no bairro da Luz – Brás, no antigo Cine Roxi, onde em

1989, se tornou sede nacional. Atualmente, porém, a sede está localizada na chamada

“Catedral da Fé” - um grande templo em Santo Amaro – SP.514

Ao se expandir para o Estado da Bahia, o movimento iurdiano já deu

mostras daquilo que lhe parece ser uma das vocações: obter êxito em contextos e realidades

marcados por crises e dificuldades. Nesses ambientes encontra terreno fértil para sua

operosidade. Recentemente, a Folha Universal publicou extensa matéria, intitulada “Do

porão à Catedral”, contando a história do movimento na cidade de Salvador – BA. Mais

precisamente, “um porão, em condições precárias, embaixo de um viaduto” foi o primeiro

endereço da igreja naquela cidade, em 1980 – destaca a reportagem. Muitos teriam sido os

obstáculos enfrentados pelos dois pastores responsáveis pela fundação da IURD naquela

capital, como declara Paulo Roberto, hoje bispo: “Na época, com 20 anos de idade, recém-

casado, estava iniciando meu ministério. Diante das condições péssimas das instalações da

igreja na ocasião, liguei para o bispo Macedo contando-lhe sobre nossas dificuldades, que o

lugar era uma área de risco, onde existiam prostituição e assaltos, e que havia resistência dos

moradores locais devido a seus costumes e religiosidade”. Paulo Roberto relata que, para sua

surpresa, ouviu de Macedo a seguinte resposta: “Graças a Deus! Excelente! Este é o lugar!”.

Não havendo então alternativa para o pastor Paulo Roberto e seu auxiliar, tiveram de

prosseguir e trabalhar com maior empenho ainda. Mas o resultado veio em pouco tempo: “A

igreja, que comportava 250 pessoas, logo ficou lotada” - comenta, ressaltando que passaram a

ser “realizados cultos de duas em duas horas”. Hoje, um dos maiores e mais confortáveis

templos da IURD, está justamente situado na capital baiana. Diz o bispo Sérgio Correia, atual

responsável pelo trabalho naquele Estado, que “em apenas três dias - domingo, segunda-feira

e terça-feira - passam semanalmente pelo Templo Maior, na cidade de Salvador, 72 mil

pessoas, sendo uma média de 24 mil para cada dia”.515

Em Londrina – um dos locais utilizados para pesquisas mais sistematizadas

neste trabalho - a IURD se estabeleceu ao final da década de 1980. Logo depois de chegar à 514Roberto Augusto, atendendo sugestão de Macedo para ingressar na política partidária, em 1986 foi eleito deputado federal constituinte pelo PTB/RJ. Porém, no ano seguinte, saiu da IURD e retornou à Igreja de Nova Vida, deixando assim, na IURD, o caminho livre para Macedo.515 Folha Universal, Rio de Janeiro, 03 set. 2005, p. 1.

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cidade de Curitiba – PR, estendeu-se a partir desta capital paranaense ao solo londrinense.

Neste, seguiu um roteiro quase que padrão: alugou um grande espaço na área central da

cidade, antes ocupado por uma loja, em frente ao terminal de transporte coletivo urbano,

onde passou a realizar reuniões diárias em diferentes horários. Literalmente, as pessoas que

saíam do movimentado terminal de transportes se encontravam imediatamente às portas da

igreja. Também passou a desenvolver programas diários em uma das emissoras de rádio

local, a Atalaia AM, a qual posteriormente adquiriu. O passo seguinte foi a compra um mega

espaço antes ocupado pelo “Supermercados Pastorinho” - um estabelecimento comercial

bastante tradicional na cidade – e de uma nova emissora de rádio: a Gospel FM de Londrina,

anteriormente pertencente à Igreja O Brasil Para Cristo, emissora que mantém

ininterruptamente programação exclusiva da denominação. Finalmente, a IURD de Londrina

transformou-se em sede regional, instalando-se num grande complexo antes pertencente a

uma rede de lojas de eletrodomésticos, comprado por uma suntuosas quantia. Este espaço,

agora denominado “Templo Maior da Fé”, comporta milhares de pessoas em seu auditório,

além de oferecer salas para escritório, livrarias para a divulgação dos produtos da

denominação e estúdios transmissores de programas de rádio e TV.

Atualmente, um dos pastores líderes da IURD atuantes em Londrina é

Renato Lemes. Natural do interior de São Paulo, Lemes trabalhou na roça até os 16 anos,

sendo depois metalúrgico e comerciário. Tornou-se pastor da Igreja Universal em 1985,

começando a atuar no interior de São Paulo, de onde se transferiu para Santa Catarina e, em

1996, para o Paraná, como pastor da igreja na cidade de Curitiba. Chegou a Londrina em

2003 para atuar no pastorado e também coordenar a campanha dos deputados estaduais do

Partido Liberal - PL. Envolvido com a proposta estratégica da IURD de ocupar cada vez mais

espaços na política, em 3 de outubro de 2004 foi eleito vereador para o seu primeiro mandato

na Câmara Municipal de Londrina, pelo Partido Social Liberal (PSL), com 3.245 votos.

Atualmente, Lemes também coordena os programas de rádio “Momento do Presidiário”,

veiculado pelas emissoras Atalaia AM e Gospel FM, e “Bom dia Londrina”, pela rádio

Atalaia AM.516 A IURD já estabeleceu um total de sete templos na cidade, além de dezenas

de outros espalhados nas regiões adjacentes. A pesquisa Tendências Demográficas, realizada

pelo IBGE, 2000, apontam o Paraná como o maior Estado do Sul do país em número de

evangélicos, perfazendo 16,6% da população. Inegavelmente, a presença da IURD no Estado

tem sido responsável pela projeção desses números.

516 http://www.camaramunicipaldelondrina.com.br . Acesso em: 10 fev. 2005.

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3.3 - A multiplicação da palavra: os recursos midiáticos da Igreja Universal

Inovação e agressividade têm sido marcas distintivas do movimento

iurdiano. Isto se observa, por exemplo, no uso extensivo e impactante dos meios de

comunicação, principalmente o rádio e a TV, como instrumento de evangelização de massas,

tendo conseqüentemente acesso ao ambiente privado dos lares em horários nobres e nos

horários tardios. Essa utilização dos meios de comunicação de massa ganhou uma proporção

inédita ou sem precedentes nas práticas da Universal, desempenhando um papel importante

no processo de rápida expansão do movimento. O depoimento de um pastor, líder da Igreja

no Nordeste do Brasil, revela o uso dessa estratégia:A implantação da igre ja é pra t i camente igua l em qualquer lugar . Em João Pessoa , por exemplo , consegui um horár io na rád io e comece i a pregar o evange lho . Arran je i um c lube e marquei para faze r r euniões aos domingos . Mui ta gente i a porque ouvia o rád io . Começa ass im: um núcleo a par t i r de um programa de rád io e t e lev i são e da l i nasce a ig re ja . Só en tão você a luga um lugar para r eunir a s pessoas . Foi ass im que começou a Unive rsa l no Rio , com horá r io a lugado na Rádio Met ropol i t ana , na época um programa de 15 minutos . E ass im implante i a Univer sa l em todos os Es tados do Nordes te , exceto no Ceará . 5 1 7

Reportagens do início da década de 1990 já constatavam o espaço da mídia

ocupado de forma ascendente pelos pregadores neopentecostais nas emissoras de rádio e

TV,518 os quais também vinham adquirindo concessões de dezenas de canais. A expansão da

IURD confirma bem esse quadro, já que se constitui hoje numa grande potência em termos

de propriedade e uso dos meios de comunicação de massa. Em 1984 ocorreu a compra da 1ª

emissora de rádio, a Copacabana Rio. Um avanço maior ocorreu em 1988, quando houve a

aquisição de várias emissoras de rádio e TV.519 A partir daí, não faltaram empreendimentos

milionários como, por exemplo, a compra do jornal diário Hoje em Dia e a Rádio Cidade de BH, por 20 milhões de dólares. Ao final da década de 90, a igreja já possuía um verdadeiro

império comunicacional formado por 22 emissoras de rádio e 16 emissoras de televisão. A

entrada da IURD na política partidária, a partir de 1986, configurou-se como estratégia para

se obter concessão de canais de rádio e TV.520 No final de 1989, realizou o mais ousado

517 Carlos Magno, pernambucano, então pastor da IURD. Depoimento ao Jornal da Tarde, São Paulo, 02 abr. 1991.518 Revista Veja, São Paulo, p. 40, 16 maio 1990.519 Ronaldo R. M. de ALMEIDA elabora uma análise sobre os dados estatísticos de projeção midiática da IURD, em seu texto: A universalização do Reino de Deus. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 44. Op. cit., p. 12-13. 520 MARIANO, Ricardo; PIERUCCI, Antônio Flávio. O envolvimento dos pentecostais na eleição de Collor. Novos Estudos CEBRAP, n. 34, São Paulo, p. 92-106, nov. 1991.

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investimento nesse setor: a compra da Rede Record de Televisão, por 45 milhões de

dólares.521 Atualmente, cerca de noventa emissoras de televisão estão afiliadas à TV Record.

O uso deste recurso de comunicação se tornou, inegavelmente, muito estratégico para a

propagação da mensagem iurdiana, sobretudo quando considerados os dados de que 90% dos

lares brasileiros possuem atualmente um aparelho de TV, o que corresponde a 65 milhões de

aparelhos.522

Edir Macedo foi o primeiro evangélico a televisionar os cultos ao vivo.

Davi Miranda, da Deus É Amor, já havia inaugurado prática semelhante, transmitindo as

sessões de exorcismo de seus templos, pelo rádio. A IURD também se utiliza dessa mesma

dramaticidade, só que de maneira ainda mais espetacular, pois o evento passa a ser veiculado

pela televisão. O movimento iurdiano soube, assim, aproveitar tal recurso midiático,

estabelecendo por meio dele “altares domésticos”, fazendo ocorrer uma aproximação entre a

igreja e o cotidiano de milhões de telespectadores.

Em programações televisivas diárias, exibidas durante a madrugada, a

denominação mantém sistematicamente dois programas: “Fala que eu te escuto” e “SOS

espiritual”, com grande abertura para a participação entre emissor e receptor. Aflitos recebem

socorro espiritual pela televisão. O telefone não pára de tocar durante toda a madrugada, na

Rede Record. São pessoas com diversos problemas, procurando um aconselhamento

espiritual. As telefonistas anotam os pedidos dos telespectadores sofridos por causa do

fracasso no casamento, filhos drogados etc. Nos programas, muitos deles ao vivo, o bispo ou

pastor recebe ligações telefônicas de pessoas que estão passando pelas mais variadas

dificuldades. Após ouvir pacientemente o relato do(a) telespectador(a), o apresentador abre a

Bíblia e lê algum texto que possa identificar ou “diagnosticar” a causa dos problemas. Em

seguida, são dados alguns conselhos e, finalmente, uma orientação no sentido de que tal

pessoa procure, com urgência, um dos templos iurdianos. A Igreja destaca a eficiência dessas

programações: Os tes temunhos comprovam a ef icác ia do t raba lho de oração rea l izada por b i spos e pas tores . Por ass i s t i r a essa programação , cen tenas de pessoas j á conheceram a pa lavra de Deus e passaram a t e r uma v ida t r ansformada e abençoada . 5 2 3

Maria da Graça, 64 anos, atesta o alcance desse recurso utilizado pela Igreja: Estava desenganada pe la medic ina , em decor rência a c inco meningi te s sof r idas , por is so cheguei a pensar em su ic íd io . Numa

521 Segundo reportagem da Revista Isto É Senhor, São Paulo, 22 nov. 1989.522 Entrevista 107. Londrina, Rádio Universidade FM, 07 jul. 2006. Programa de rádio.523 Folha Universal, Rio de Janeiro, 07 nov. 1998, p. 6.

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cer ta no i te re so lv i l igar o r ád io e s in tonize i um programa da Igre ja Univer sa l . As pa lavras do pas tor me f ize ram des i s t i r da mor te . Naque le momento me a joe lhe i , comece i a chorar e a fa la r com Deus . No d ia seguin te , p rocure i a ig re ja e passe i a segui r a s or ien tações do homem de Deus , que me ens inou a usar a minha fé , de terminando a cura na minha v ida . Hoje e s tou comple tamente curada da enfermidade e meu casamento res taurado . 5 2 4

Não obstante o uso recorrente da televisão para veiculação de sua

mensagem, parece ser inconsistente a conceituação que se tornou de certa forma

convencional entre pesquisadores do fenômeno religioso no Brasil de que a IURD seja

classificada como “igreja eletrônica”, pois é decisivo em suas práticas o templo como local

de ritos, reuniões e atendimento ao público. O bispo João Batista Ramos, ao ser entrevistado

pela Folha de S. Paulo sobre os “telepastores” norte-americanos, confirma essa perspectiva: somos f ronta lmente contra a ig re ja e le t rônica . Se você quiser compra r ca rne , va i ao açougue. Se quise r compra r um remédio , va i à drogar ia . Se quiser um encont ro ma is ín t imo com Jesus , p rec i sa i r à ig re ja . Caso se comunique só pe la te lev i são , o pas tor se d i s tancia de suas ovelhas . 5 2 5

3. 4 - Os milagres do dinheiro e dinheiro dos milagres nas práticas iurdianas

A trajetória de vida de Macedo revela curiosa proximidade com números.

Aos 17 anos ingressou como office-boy na Loterj - Loteria do Rio de Janeiro - trabalhando

durante dezesseis anos como funcionário público. Deixou a carreira no funcionalismo

somente em 1977, quando exercia a função de agente administrativo, para se dedicar

exclusivamente à IURD. Diferentemente da maioria dos líderes pentecostais, freqüentou, no

começo dos anos 70, os bancos universitários. Estudou Matemática na Universidade Federal

Fluminense e Estatística na Escola Nacional de Ciência e Estatística, sem, contudo, concluir

os respectivos cursos. Disto talvez decorra o fato de existir em Macedo, por trás da figura

eclesiástica, também a de um empreendedor sempre à vontade com números e balanços

contábeis. Tal preparo deve, naturalmente, ter contribuído para que viesse a ser reconhecido

como negociador habilidoso, também no âmbito eclesiástico. Ricardo Mariano ainda observa

tal característica, associando a projeção do movimento iurdiano à figura do seu líder,

destacando a controvertida, mas funcional atuação desempenhada:Par te do sucesso da IURD deve ser c red i tada a seu cont roverso l íde r , b i spo Edi r Macedo, sobre o qual não há unanimidade . Venerado por f i é i s e suba l te rnos , invejado e cr i t i cado por

524 Folha Universal, Rio de Janeiro, 16 abr. 2006, p. 8.525 Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 fev. 2003.

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adversár ios r e l ig iosos e pas tores concorren tes , acusado pe la po l íc ia , pe la Jus t i ça e pe la imprensa de char la tan i smo, es te l ionato , curandei r i smo e de enr iquec imento às cus tas da exploração da misé r ia , ignorância e c redul idade a lhe ias . Edi r va i , em par te graças ao Diabo que tan to a taca , in terpela e humi lha , cons t ru indo a passos l a rgos seu impér io . 5 2 6

A projeção financeira da IURD, que acompanhou o ritmo acelerado da

multiplicação dos seus templos, também suscitou inúmeras polêmicas. Reportagens do início

da década de 90 calculavam a arrecadação financeira dos templos em “cerca de 150 milhões

de dólares ao ano”.527 Na ocasião da aquisição da TV Record, estratégias de captação de

recursos ainda mais agressivas vieram à tona, a fim de garantir a compra dessa emissora e de

várias outras estações de rádio adquiridas no período. Mário Justino, então pastor da IURD,

relata sobre um megaculto promovido pela IURD no estádio de futebol da Fonte Nova, em

Salvador – BA, com a presença de Macedo:O bispo , depois de r ecolhe r os enve lopes com as ofer tas , denominadas de “sacr i f í c io” , e com os pedidos de oração , que ser iam levados para o Monte das Ol ive iras , em Je rusa lém, pediu aos seus seguidores ba ianos uma ofer ta e specia l para comprar uma emissora de rád io em Salvador , a ss im como seus f i é is ca r iocas o haviam contemplado com a Rádio Copacabana . – “Será que os car iocas t êm mais fé que os ba ianos?” – refer indo-se à mul t idão . – Não! – a r espos ta re tumbou como um t rovão . As ofe r tas v ieram então em forma de d inhei ro e jó ias . Passamos t rê s d ias t r ancados em uma sa la contando os sacos de d inhei ro l evantados no Fonte Nova. No f ina l , o d inhei ro fo i depos i tado na conta da Igre ja , no Bradesco , em Salvador . O ouro fo i levado para o Rio de Janei ro e t ransformado em barras . 5 2 8

Um verdadeiro frenesi também foi causado na mídia pelas palavras de

Macedo, proferidas numa concentração de fiéis que lotou o Estádio do Maracanã, com

capacidade para mais de cem mil pessoas, na cidade do Rio de Janeiro: “Sacudam bem

obreiros [as sacolas de oferta], para eles verem que estão vazias e só voltem quando

estiverem tão cheias quanto um saco de pipoca”.529 Também foram impactantes as imagens

que mostraram Macedo – em uma gravação em fita de vídeo – orientando seus pastores sobre

como mobilizar os fiéis da Igreja a aumentar as contribuições financeiras. Tais imagens

mostravam Edir Macedo, numa chácara, jogando futebol juntamente com a maior parte da

liderança de sua igreja. Ao final daquela atividade, informalmente, ele passou a orientar os

526 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: os pentecostais estão mudando. São Paulo: USP, 1995, p. 42, 43. 250 fl. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, 1995.527 Revista Veja, São Paulo, 17 jul. 1991.528 JUSTINO, M. Op. cit., p. 49.529Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 dez. 1988.

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pastores sobre como deveriam agir na arrecadação de ofertas e na ousadia de conduzir a

massa de fiéis:Você tem que chegar e d izer : ó pessoal ! Você va i a judar agora na obra de Deus . Se quise r a judar , amém. Se você não quise r a judar , então Deus va i a judar ou t ra pessoa a a judar , amém! Ou dá ou desce! Entendeu como é que é? Porque a í o povo vê coragem em você . O povo tem que te r conf iança no pas tor . Quer ver o pas tor br igando com demônio! Se você mos tra aque la mane i ra “chocha” , o povo não vai conf iar em você . ( . . . ) Tem que ser o super-heró i para o povo e d izer : Olha pessoa l , vamos fazer i s to aqui? É o grande desaf io . Eu f iz i sso . Eu peguei a Bíb l ia e d i sse : Oh! Deus! Ou o Senhor honra a sua pa lavra ( . . . ) e en tão joguei a Bíb l ia , que se despedaçou no chão . F iz i s so na igre ja e na t e lev i são . Então isso chama a a tenção . O povo d iz : Esse a í , pô , b r iga a té com Deus! Cuidado, he im! Então tem aque les que são t rad ic ionai s e d izem: Hi! Esse a í é um fa l so profe ta . . . esse a í , en tão , não va i ser abençoado. Agora , t êm out ros que d izem: Puxa, há quanto tempo que eu quer ia is so , “poxa” , eu es tou cansado de le r a Bíb l ia , de le r tan tas pa lavras e não acontece r nada na minha v ida . Então esse va i f i ca r do nosso lado . É tudo ou nada! E e le põe tudo lá . Quem embarcar e s tá abençoado. Quem não embarca r f ica . Então você nunca pode te r ve rgonha, t imidez . Peça , peça , peça . Se , t em a lguém que não quer da r , há um montão que va i dar . ( . . . ) O povo es tá cansado de fa l sa humi ldade . O padre é t ão humilde , e não dá nada , não ofe rece nada . O padre com aque la manei ra ( . . . ) e nós vamos lá , é i s so mesmo, ( s ic ) e bo ta pra quebra r , e v i ra camba lhota , e faz o povo f icar louco ( . . . ) . Vejam o caso de Moisés , que se apresentou perante o povo com um ca jado na mão – aque le mesmo que e le havia usado para abr i r o Mar Vermelho e f azer t an tos mi lagres no dese r to - e perguntou: “acaso pode sa i r água dessa pedra?” Ele ba teu com o ca jado na rocha e en tão jor rou água e o povo f icou maravi lhado . É também isso que vocês prec i sam dizer ao povo: quem aqui tem um cajado? O ca jado é a f é e o “ toque na rocha” s ign i f ica a ofer ta de dez mi l , c inco mi l ou dois mil c ruzados novos . . . Desaf iem: se você tem o ca jado , en tão use -o agora! Ass im, as pessoas vão dar a ofe r ta e o mi lagre va i acontece r . . . 5 3 0

Vários jornais e revistas, na ocasião, reproduziram denúncias sobre esse

tema, como por exemplo, a revista Isto É (27/01/1996) e a Folha de S. Paulo (02/01/1996),

que publicaram reportagens, apontando aspectos empresariais e de exploração financeira

praticados pela IURD e apresentando dados de arrecadações, consideradas “exorbitantes”, de

vários templos iurdianos.

Edir Macedo juntamente com a IURD também têm sido alvo de diversos

processos criminais sob acusações de práticas escusas envolvendo dinheiro, tais como

charlatanismo, vilipêndio do culto religioso etc.531 Exemplo disso se deu no dia 24 de maio

de 1992, quando Macedo foi preso em São Paulo, acusado de charlatanismo, curandeirismo e 530 Fita de vídeo gravada pelo ex-pastor iurdiano Carlos Magno de Miranda e levada ao ar pela Rede Globo de Televisão, em horário nobre – no Jornal Nacional - poucos dias antes do Natal de 1995. Esses episódios vieram a público durante a polêmica entre a Rede Globo de Televisão e a IURD, no segundo semestre de 1995.531 Ver JUNGBLUT, Airton Luiz. Deus e nós, o diabo e os outros: a construção da identidade religiosa da Igreja Universal do Reino de Deus. Cadernos de Antropologia, Porto Alegre, UFRGS, n. 09, p. 45-61, 1995.

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estelionato. Sua prisão teve origem num inquérito aberto, em 1989, por cinco ex-fiéis

alegando terem doado dinheiro e bens à igreja em troca de milagres, que não teriam ocorrido.

O Ministério Público de São Paulo acatou a denúncia e determinou a prisão. Mas três dias

antes de ser detido, Macedo também fora indiciado com base no artigo 15 da Lei do

Colarinho Branco, acusado de usar a IURD como instituição financeira clandestina.532 A

acusação principal era de que o bispo teria adquirido grande patrimônio, graças à sua

atividade frente à Universal. Segundo o Ministério Público, o patrimônio pessoal de Macedo

chegava, em 1992, ao equivalente a 100 milhões de reais. Vale observar que, antes, esse

mesmo tribunal, a 21ª Vara Criminal de São Paulo, já havia absolvido Edir Macedo em

outros dois processos. Um deles, que tratava de ataques contra cultos afro-brasileiros,

acusava quatro pastores da IURD de terem invadido um templo de umbanda em Diadema,

município da grande São Paulo, em abril de 1990. Nesse processo, Macedo foi acusado de

estimular publicamente os ataques a adeptos daquela religião que, segundo ele, eram

“adoradores do demônio”. Num outro inquérito, o bispo era acusado de vender “óleo bento”

aos fiéis que participavam dos cultos de sua igreja.533

Traduzida como símbolo da existência de perseguição religiosa no país, sua

prisão também foi capaz de mobilizar fiéis, pastores e políticos evangélicos. Em primeiro de

junho de 1992, preso há oito dias, “cerca de dois mil fiéis da IURD formaram uma corrente

humana em volta da Assembléia Legislativa de São Paulo para protestar contra a sua

detenção”.534 Entendendo ser esta uma questão de liberdade religiosa, líderes evangélicos

também reagiram imediatamente. Logo vários políticos, evangélicos e não evangélicos,

solidarizaram-se com Macedo. Curiosamente, até mesmo alguns dos segmentos religiosos

que se sentiam concorrencialmente ameaçados pela atuação da IURD, uniram-se naquele

momento, em prol de um interesse comum. Duzentos pastores protestaram na Assembléia

Legislativa de São Paulo, argumentando que a prisão fora manipulada por grupos ligados ao

setor de comunicações que a propriedade da Rede Record estava ameaçando, e os setores

religiosos, que estavam tendo seus membros captados pelo discurso da Universal. Reunidos

no interior da Assembléia, os pastores, representando 34 igrejas, e 30 deputados redigiram

documento repudiando o ocorrido, o qual apresentava o seguinte teor:O Bras i l v ive nos ú l t imos d ias momentos de preocupação no que d iz r espe i to aos d i re i tos de expressão re l ig iosa e suas ga ran t ia s cons t i tuc ionais . Os 35 mi lhões de evangé l icos em todo o pa ís

532 O Globo, Rio de Janeiro, 25 maio 1992.533 Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1995.534MARIANO, R. Neopentecostais: os pentecostais estão mudando, p. 61.

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exigem o cumpr imento da Cons t i tu ição e o f im de todo t ipo de d i sc r iminação re l ig iosa . 5 3 5

Doze dias depois, Macedo foi solto. Vale ressaltar a habilidade sempre

demonstrada por ele em lidar com as “regras do campo”, fato que lhe tem permitido grande

capacidade de reverter obstáculos em benefício do grupo. Quando esteve preso, representou

bem o papel de vítima, recorrendo comparativamente à imagem de sofrimento de Cristo e dos

apóstolos. Dizia-se “orgulhoso de estar preso em nome de Deus”. Atrás das grades, ao

conceder entrevistas ou deixar-se fotografar, aparecia lendo ou portando uma Bíblia. Até bem

pouco tempo, quem tomava a Folha Universal para uma primeira leitura teria sua atenção

despertada para uma imagem: em seu logotipo uma foto do bispo em uma cela de presídio,

fazendo a leitura da Bíblia. A imagem no jornal ajuda a preservar e a manter vivo na

memória dos fiéis o ato heróico do seu líder, cuja confiança se observa no depoimento de um

obreiro da IURD:O bispo não mente conforme as rev i s ta s e a t e lev i são d izem por a í . E le é um se rvo de Deus , dedicado , honrado , in fe l i zmente , ca iu nas gar ras da mídia , mas Deus fa la a t ravés de le e as pessoas que têm fé c rêem nisso . Eu acred i to em tudo o que o b ispo Macedo fa la , po i s se i que e le é i luminado, insp i rado por Deus . 5 3 6

A confiança em seu líder, diante das experiências adversas que enfrentou, é

destacada pela Igreja:Calúnias , in júr ias , d i f amações e a taques gra tu i tos somam-se a uma l is ta imensa de advers idades v iv idas pe lo b ispo Edi r Macedo. Embora nunca se t enha aprovado nenhuma das acusações , e le não se de ixou aba ter por nenhuma de las . Como lema pr inc ipa l de seu minis tér io , o b i spo v ive aqui lo que prega e , d ian te das d i f icu ldades , não se mos t ra nem mesmo cansado. O segredo , segundo e le é o emprego da fé sobrenatura l , po i s seus sonhos nunca foram baseados em emoções , mas s im na cer teza de que com seu t rabalho , a l iado à ação do poder de Deus , to rnar iam-se rea l idade . 5 3 7

Ao se sentir afrontada pelas acusações de charlatanismo e abuso da fé

popular, pela mídia e demais segmentos religiosos, a IURD também reagiu. Nos cultos, os

jornalistas passaram a ser identificados como enviados do Diabo. Os fiéis receberam

expressas orientações para não lerem nem darem crédito às notícias veiculadas na imprensa

sobre a Igreja Universal e seus pastores, e de igual forma, para também não concederem

entrevistas ou emitirem opinião a jornalistas sobre a Igreja:Em meados de 1994, convic tos ou tomados por paranóia de que havia uma conspi ração em andamento para des t ru i r a Unive rsa l ,

535 Id., ibid.536João Luís M. Depoimento concedido em ago. 2004. Gravação em K7, transcrita para uso como fonte. 537 http://www.igrejauniversal.com.br . Acesso em: 03 mar. 2005.

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l íde res da denominação pro ib i ram todo e qua lquer membro ou pas tor de dar en t rev i s ta s ou esc la rec imentos a quem quer que so l ic i t asse . A lém de jorna l is tas , pesquisadores passaram a não se r benquis tos . 5 3 8

Em um grande evento realizado no estádio do Maracanã, Rio de Janeiro, na

ocasião, Edir Macedo, em tom combativo e convocatório, exclamou: “Estamos sendo

castigados e perseguidos pela imprensa como cão danado. Eles querem arrancar nossa

cabeça. Mas isto só aumenta a nossa fé”.539

3.5 – Interesses do gesto desinteressado: a economia de oferenda nas práticas iurdianas

Devido à grande demanda dos que recorrem aos espaços sagrados sob seu

comando, inegavelmente há muito trabalho a ser feito pelos líderes da Igreja Universal. Por

isso, permanecem diariamente de plantão nos templos. Lidam no dia-a-dia com os mais

diferentes dramas das pessoas que ali chegam. Não têm folga, dormem pouco, vivem

atarefados com os cultos, programas de rádio e TV, vigílias, entre outros. Não se sabe ao

certo sobre a remuneração que recebem. Apenas que têm suas despesas cotidianas custeadas

pela Igreja tendo direito ainda a moradia, telefone, carro, escola paga para os filhos. Segundo

a linguagem de Bourdieu, criou-se uma representação de que os agentes especializados do

sagrado não precisam mais se ocupar com a produção de sua existência material, pois seu

sustento é assegurado pelos serviços religiosos os quais estão socialmente autorizados a

desempenhar. Ademais, a alquimia em relação a tais pastores se mostra eficaz à medida que a

ostentação apresentada de um estilo de vida próspera e bem sucedida, acaba se convertendo

favoravelmente em seu favor no sentido de referendar o discurso proferido sobre a

prosperidade, acenando positivamente aos fiéis ao mostrar a possibilidade de semelhante

performance.

É possível observar uma economia de produção e circulação de bens

simbólicos nas práticas da IURD. Uma primeira característica a se destacar dessa

operosidade refere-se à denegação do interesse econômico possibilitada por uma “economia

de oferenda” que ali ocorre. Se, em relação aos fiéis iurdianos, o dinheiro e a fé se

amalgamam em sedutora proposta de acesso à prosperidade e riqueza, o mesmo não se dá

quando este assunto envolve os líderes, os quais são vistos no âmbito do grupo como agentes

“desinteressados” pelos bens materiais. Nesse sentido, lembra Bourdieu que, embora “não

exista ato desinteressado”, uma das principais características do campo religioso – e também 538MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: os pentecostais estão mudando, p. 58.539Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 9 out. 1990.

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dos campos culturais - é o revestimento eufêmico de desinteresses quanto ao acúmulo de

riquezas e poder. Ao descrevê-los, Bourdieu destaca que devem ser considerados como “um

mundo econômico invertido”,540 ou seja, um mundo econômico que substitui interesse

econômico pelo desinteresse estético. Entende o autor que há uma economia da produção

simbólica, mas que funciona com parâmetros opostos aos do campo econômico: Há uma inversão dos va lores ou dos in te resses que regem o campo econômico dent ro dos campos cu l tura i s ; por exemplo , há o des in teresse es té t i co ou in te lec tua l cont ra a busca de benef íc io , de lucro econômico; a gra tu idade do ges to cont ra a u t i l idade da produção; a a r te pe la ar te cont ra a c i rcu lação e a acumulação de d inhei ro . 5 4 1

No campo religioso, pois, quanto maior a separação entre os agentes

especializados na produção e reprodução de bens religiosos e os demais membros da

sociedade, tanto maior a autonomia do campo e mais forte a aparência da instituição como

acima dos interesses mundanos, gerando assim um eufemismo de que a religião paira sobre

ela e refere-se apenas ao sobrenatural. Dessa forma, supõe-se que os agentes que atuam no

referido campo sejam “desinteressados” do interesse econômico, repousando suas práticas na

economia da oferenda, no voluntariado, no sacrifício, pois não teriam uma “profissão”, e sim,

um serviço prestado à divindade. Essa alquimia da oferenda pode ser observada tanto no

discurso dos próprios líderes quanto no reconhecimento pelos fiéis. O bispo Marcelo Crivela,

quando interrogado sobre a posse de bens pelos líderes da Igreja, respondeu:Desde c r iança gosto de confor to , mas tenho ódio de luxo . ( . . . ) O que ocor re na Igre ja Unive rsa l é que nenhum pas tor t em posses ou é dono de qua lquer co isa . Mesmo os que t raba lham no ex ter ior ou no Bras i l e v ivem em s i tuação melhor não são donos . O ca r ro do b i spo Macedo, sua casa , tudo pe r tence à Igre ja . Ninguém tem poupança , exa tamente porque cremos que es te é o sabor que nós t emos . No Ant igo Tes tamento , os l ev i tas f i ze ram uma “a l iança de sa l com Deus” , segundo a qual abr i r iam mão de posses mate r ia i s , sendo que , em cont rapar t ida não lhes fa l ta r ia nada . De igua l modo i s to hoje t ambém nos dá au tor idade pa ra subi r no púlp i to e pedir ao povo que ent regue o d íz imo e dê ofer ta . 5 4 2

Também o bispo Macedo, quando pressionado por denúncias da mídia

acerca de ostentação de riquezas, alto padrão de vida e preferência por carros luxuosos como

Mercedes e BMW, respondeu apontando para o exemplo católico: “O Papa mora e utiliza um

palácio em representação da sua igreja, e ninguém se importa com isso”.543 E, orientando-se

pelas regras do campo, assim se expressou em uma entrevista: “Se eu fosse interessado em

540 CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 141.541 Id., ibid.542 Revista Eclésia, ano V, n. 50, p. 11, jan. 2000.543 Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 out. 1991.

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dinheiro não seria pastor, seria político, com bom salário e mordomias (...) O Brasil ainda é

uma província e a imprensa não traduz a verdade”.544 Ao se queixar da “perseguição” movida

pela mídia contra ele e sua igreja, argumentou:Não dever iam se r t r a tados como ladrões e chantag is ta s aque les que dedicam suas v idas pa ra serv ir o ou t ro . O t í tu lo de mercant i l i s t a não cabe a nenhuma organização re l ig iosa que es te ja inser ida em um s is tema no qual sem dinhei ro nada se pode fazer ; mui to ma is quando este s is tema é in jus to , cor rupto , su jo e , p ior , ace i to , p ropagado e impos to aos c idadãos , no uso de uma rac iona l idade ment i rosa , h ipócr i t a , maldosa e sem Deus . 5 4 5

A eficiência desse processo de alquimia veiculada pelos líderes iurdianos

também se observa na capacidade de transfigurar as instituições sociais - que são construções

humanas, culturalmente estabelecidas – em instituições de origem sobrenatural. Por isso,

diante de críticas ou de questionamentos quanto à sua atuação, Edir Macedo afirma:Ninguém tem o d i re i to de se vol ta r cont ra a au tor idade ins t i tu ída por Deus , po is é o própr io Deus que tem que tomar a s devidas providênc ias para fazê - lo sa i r ou permanecer na condição de autor idade esp ir i tua l , mas nunca e j amais , n inguém deve nem pensar em se co locar no lugar de Deus e procurar tomar providênc ias cont ra o ungido do Senhor ! E mui to menos tece r comentár ios nega t ivos a r espe i to daque la au tor idade esp i r i tua l . 5 4 6

Esse reconhecimento da “vocação divina”, ou de prestação de serviço à

divindade, também ocorre em relação aos demais obreiros:A exper iência de ser um obre i ro ou uma obre i ra na IURD, onde se lu ta d ia r iamente com os demônios , é a base pa ra que esse t r abalho evangel í s t i co , f e i to com muito amor , c resça cada vez ma is em todo o mundo. Os obre i ros t êm uma a tuação ind ispensável , porque são os car tões de v i s i t a da Igre ja e desempenham as ma is va r iadas funções . Fazem tudo i sso por amor a Jesus . Não recebem sa lá r io ; é um t raba lho voluntá r io . Para os que são conver t idos , ser obre i ro é cons iderado um pr iv i lég io , porque compreendem que são escolh idos por Deus para essa missão . 5 4 7

A economia de oferenda transfigura noções de “exploração financeira” em

relação aos membros do grupo, conforme declara o pastor iurdiano J. Cabral:Nenhum l íde r da Igre ja Unive rsa l força a s pessoas a contr ibu írem. Pedem como fazem todas as ig re jas , e t a lvez ins i s tam mais do que em a lgumas , porque compreendem a necessidade e a urgênc ia de ganhar o mundo para Jesus Cr i s to l iber tando as pessoas das ga rras do mal igno . As pessoas são or ien tadas a cont r ibu i r com amor e aprendem que Deus ama ao que dá com a legr ia ( I I Cor . 9 :7) . 5 4 8

544 O Globo, Rio de Janeiro, 29 abr. 1990.545Folha Universal, Rio de Janeiro, 15 out. 1995.546 MACEDO, Edir. Nos passos de Jesus. 8 ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1986, p. 76.547 http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 08 abr. 2005.548Jornal Soma, Goiânia, - GO, ano 4, n. 9, dez. 2000, p. 8.

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O bispo da IURD, João Batista Ramos, em entrevista concedida a um

programa da TV Record, referindo-se ao episódio da apreensão das malas com dinheiro - já

anteriormente mencionado - afirmou:Os f ié i s da igre ja en trega ram es te d inhe iro e spontaneamente , não foram forçados a fazê - lo . Ofer ta ram volunta r iamente a Deus a t ravés da igre ja , po i s sabem que a igre ja i r á adminis t r á- lo pa ra expansão do re ino de Deus na t e r ra . O d inhe i ro das ofer ta s é o sangue da igre ja . 5 4 9

Para evitar situações constrangedoras, a Igreja Universal, logo depois

daquele episódio, apressou-se em providenciar meios mais privativos para o transporte das

quantias arrecadadas em seus mais de 5 mil templos próprios espalhados pelo país.

Recentemente, comprou uma frota de 70 carros blindados de uma locadora que precisava se

desfazer dos automóveis: “os veículos, discretos e seguros, já circulam diariamente pelas ruas

e avenidas de diversas cidades do país, recolhendo sacos e mais sacos de dinheiro doados nos

templos” – ressalta uma reportagem.550

Ainda como defesa dessas acusações sofridas, a Igreja vem semanalmente

estampando em seu jornal reportagens que denotam perseguição em razão de seu crescimento

e projeção: O cl ima de perseguição à IURD não passa despercebido pe la população brasi l e i ra , que vem acompanhando o caso a t ravés das sucess ivas ed ições da Folha Universa l , que , em sua t i ragem de quase dois mi lhões de exemplares semanais , a le r ta sobre a a t i tude de Lula , que tem c laro obje t ivo de desv iar a a tenção dos sucess ivos e scândalos pol í t i cos envolvendo o seu governo . Enquanto i sso , as ofe r tas da Igre ja Universa l pe rmanecem re t idas . 5 5 1

Segundo a IURD, não é segredo que o seu crescimento sempre assustou os

“manipuladores da opinião pública”. Para tentar deter esse avanço, “a Rede Globo promoveu

várias campanhas difamatórias contra a igreja e contra o bispo Edir Macedo”. Por isso, a

origem do dinheiro, “já comprovada e o seu transporte, feito por pessoas devidamente

autorizadas, não caracterizam um crime, de acordo com a Constituição Federal” – ressalta a

Igreja.552

Essa dualidade da economia da oferenda não deve ser vista como

duplicidade, como hipocrisia ou como relação de “enganador” e “enganado”, pois se trata de

um recalcamento coletivo fundamentado na orquestração do habitus de todo o grupo: “o

549 Fala Que Eu Te Escuto. São Paulo, Rede Record, 15 jul. 2005. Programa de TV.550 Revista Exame, ano 40, n. 17, p. 20, 30 ago. 2006.551 Folha Universal, Rio de Janeiro, 31 dez. 2005, p. 1.552 Folha Universal, Rio de Janeiro, 25 dez. 2005, p. 6.

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trabalho coletivo de recalque só é possível se os agentes são dotados das mesmas categorias

de percepção e de avaliação” – afirma Bourdieu.553 E acrescenta:A reconversão pe rmanente do capi ta l econômico em capi ta l s imból ico ( . . . ) só pode te r sucesso com a cumpl ic idade de todo o grupo : o t rabalho de denegação que es tá na or igem de a lquimia socia l é , como a magia , um empreendimento co le t ivo . 5 5 4 [grifo nosso]

Daí a força representativa de confiança que ostenta o líder, por exemplo,

demonstrar-se inabalável perante os fiéis, como se pode observar na resposta de um dos

membros iurdianos a uma revista de circulação nacional quando interrogado sobre o que

achava das acusações que a imprensa fazia em relação ao bispo Macedo e as origens obscuras

do dinheiro arrecadado para a compra da TV Record:Se rea lmente o Bispo houvesse roubado, e le não ser ia o homem com a v ida abençoada que tem. Além disso , a grande obra da Igre ja – que é de Deus e não do Bispo – t ambém não c rescer ia , po is e le e s tar ia roubando de Deus ( . . . ) Deus nunca abençoar ia um ladrão e o Bispo Macedo sabe d i sso ( . . . ) e le sabe que , se roubar , pe rde tudo . 5 5 5

De acordo com Bourdieu, “o discurso religioso que acompanha a prática é

parte integrante da economia das práticas como economia de bens simbólicos”, por isso essa

ambigüidade se torna uma propriedade geral da economia da oferenda, na qual “a troca se

transfigura em oblação de si a uma espécie de entidade transcendente”.556 Nesse aspecto, as

tarefas sagradas são irredutíveis a uma codificação puramente econômica e social: “o

sacristão não exerce um ofício; ele realiza um serviço divino” – lembra Bourdieu. Ressalta

ainda que a questão de saber se nisso há ou não cinismo desaparece inteiramente, se

percebermos que tal ocorrência faz parte das próprias condições de funcionamento e de êxito

da empresa religiosa, segundo as quais os agentes religiosos acreditam no que fazem e não

aceitam a definição econômica estrita de sua ação e de sua função.557 Ainda aqui a definição

ideal que os dignatários da igreja defendem faz parte da verdade da prática. A empresa

religiosa, nesse sentido, obedece aos princípios da economia doméstica, da qual aquela é uma

forma transfigurada (com o modelo de troca fraterna), ou seja, as relações de produção

funcionam de acordo com o modelo das relações familiares:As ins t i tu ições r e l ig iosas t r aba lham permanentemente , t an to prá t ica como s imbol icamente , para eufemizar as re lações socia is , a í inc lu ídas as re lações de exploração (como na famí l ia ) ,

553 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. p. 199, 200.554 Id. A produção da crença, p. 211, 212.555 Revista Veja, apud Bonfatti, P. Op. cit., p. 32.556BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 191.557 Id., ibid., p. 192.

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t ransf igurando-as em re lações de paren tesco esp i r i tua l ou de c rença re l ig iosa , a t r avés da lóg ica da benemerênc ia . 5 5 8

Ressaltando esta característica paradoxal da economia da oferenda, da

benemerência, do sacrifício, Bourdieu cita o caso da igreja católica como exemplo:( . . . ) essa empresa (a Igre ja Cató l ica) com dimensões econômicas , fundada na recusa do econômico , e s tá mergulhada em um unive rso no qual , com a genera l ização das t rocas mone tá r ias , a procura da maximização do lucro tornou-se o pr inc íp io da maior par te das prá t i cas co t id ianas , de modo que qua lquer agente – re l ig ioso ou não re l ig ioso – tende a ava l iar em d inhei ro , a inda que impl ic i t amente , o va lor de seu t rabalho e de seu tempo. 5 5 9

O comentário que esse autor faz em relação ao que ocorre na Igreja Católica

pode ser perfeitamente aplicado ao caso da IURD: embora a igreja seja uma empresa

econômica, nega-se como tal, sendo esta ambigüidade uma propriedade geral da economia da

oferenda:O templo funciona , ass im, obje t ivamente como uma espécie de banco , que não pode , no en tan to , se r percebido ou pensado como ta l , e a té sob a condição de que não se ja nunca v is to como ta l . A empresa re l ig iosa é uma empresa com dimensões econômicas que não pode se confessa r como ta l e que funciona em uma espéc ie de negação pe rmanente de sua d imensão econômica . 5 6 0

Acrescenta-se a isso um exemplo mencionado por Bourdieu, referente ao catolicismo, mas

que bem pode se aplicar ao caso iurdiano:Assim, f iquei surpreendido pe lo fa to de que , cada vez que os b i spos adotavam, a re spei to da economia da igre ja , a l inguagem da obje t ivação , fa lando, por exemplo , ao descrever a pas tora l , do “ fenômeno da ofer ta e da procura” , e les r i am: ( . . . ) “não produzimos nada , não vendemos nada [ r i so] não é mesmo?” ( . . . ) . 5 6 1

3.6 - O poder simbólico do carisma nas práticas iurdianas

De acordo com Bourdieu, nas sociedades contemporâneas os campos são

espaços onde são travadas lutas concorrenciais “entre os atores em torno de interesses

específicos que caracterizam a área em questão”.562 Nas batalhas empreendidas, os agentes

“dominantes e dominados” disputam o capital existente no respectivo campo:A es t ru tura do campo pode se r apreendida tomando-se como referência dois pó los opos tos : a dos dominantes e a dos dominados . Os agentes que ocupam o pr imei ro pólo são jus tamente aqueles que

558Id., ibid., p. 194.559Id., ibid., p. 183.560 Id., ibid., p. 192.561 Id., ibid., p. 184, 185.562 ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983, p. 19.

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possuem um máximo de capi ta l soc ia l ; em cont rapar t ida , aque les que se s i tuam no pólo dominado se def inem pela ausência ou pe la r ar idade do capi ta l soc ia l e specí f ico que de te rmina o espaço em ques tão . 5 6 3

Como já observado anteriormente, a Igreja Católica ocupou, desde o

período da colonização, posição dominante no campo religioso brasileiro na maior parte da

história do país, constituindo-se “uma ortodoxia que pretende conservar intacto o capital

social acumulado”. Mas, como pressupõe a própria estruturação do campo, “ao pólo

dominado correspondem as práticas heterodoxas que tendem a desacreditar os detentores

reais de um capital legítimo”.564 Dessa forma, a hegemonia católica, que começou a ser

alterada, ainda que de forma bastante insipiente, com a presença do protestantismo, em

meados do século XIX – processo esse intensificado em meados do século XX, com a

explosão do pentecostalismo – sofreu maior impacto com o advento do neopentecostalismo

iurdiano. Essas transformações no campo acirraram os conflitos entre a ortodoxia católica e a

heterodoxia de um movimento novo: A chegada de qua lquer novo agente no in ter ior de um campo provoca , necessar iamente , o des locamento das ins t i tu ições a l i e s tabe lec idas . Por i s so , a e s t r a tég ia do recém-chegado é , se não conseguir a l i anças , contes tar e desba l izar o já ex i s ten te . Os novos pregadores tendem a ves t i r a roupagem dos “profe tas” , encarando a r e tór ica da novidade e da t r ansformação , denunciando os demais como meros “ sacerdotes” . As mudanças ocor r idas no in ter ior do campo re l ig ioso , desde a v ida dos pentecosta is , re f le tem os conf l i tos e lu tas desencadeadas a pa r t i r da t ensão en t re os e s tabe lec idos e os a r r iv i s tas . 5 6 5

Pode-se dizer que esses conflitos são protagonizados pelos representantes

da religião e pelos agentes da magia ou da profecia. Nesse processo, a expressão religiosa

que está buscando o seu estabelecimento no campo tende a ser classificada como “magia ou

feitiçaria” pela instituição dominante, que a considera como uma “religião inferior, logo

profana e profanadora”:Todo s i s tema s imból ico es tá pred ispos to a cumpr ir uma função de associação e de d i ssoc iação , ou melhor , de d i s t inção , um s i s tema de prá t icas e c renças e s tá fadado a surg i r como magia ou como fe i t i ça r ia , no sen t ido de re l ig ião infer ior , todas as vezes que ocupar uma pos ição dominada na es t ru tura de re lações de força s imból ica , ou se ja , no s is tema das re lações en tre o s i s tema de prá t icas e de c renças própr ia s a uma formação socia l de te rminada . 5 6 6

563 Id., ibid., p. 21.564 Id., ibid., p. 22.565CAMPOS, L. S. ; GUTIÉRREZ, B. Op. cit., p. 96. 566 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 43, 44.

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No caso da Universal, o seu desenvolvimento está diretamente associado à

ocupação de espaço simbólico de seus líderes. Perante o grupo, são vistos como um

curandeiro, um benzedor, um exorcista ou taumaturgo, enfim, um “iluminado” que, com o

transe místico e o êxtase físico, enfrenta a maldade, desmancha feitiço ou então o localiza

identificando o sujeito causador das aflições de seus devotos: o Diabo. Isso faz que sejam

procurados tanto por seus conhecimentos práticos - espécie de segredos – quanto pela crença

em sua capacidade taumatúrgica: exercício de dons espirituais ou sobrenaturais. Acredita-se

que possuam faculdade incomum de entrar em contato com o mundo espiritual, a partir do

que adquirem autoridade para oferecer tratamento aos males do corpo e do espírito:

sofrimentos físicos, aflições psíquicas, perturbações espirituais e premências sociais. Esse

poder ostentado pelo líder iurdiano outorga-lhe autoridade, reputação e méritos perante seus

seguidores:O capi ta l s imból ico do l íde r re l ig ioso , enquanto agente soc ia l , se apresenta como um crédi to (no sen t ido , ao mesmo tempo, de crença e de conf iança concedida an tec ipadamente ) posto à d ispos ição de um agente pe la adesão de outros agentes , que lhe r econhecem es ta ou aque la propr iedade va lor izante . 5 6 7

Segundo Bourdieu, a alquimia produz, em proveito daquele que cumpre

com esses atos, um capital de reconhecimento que lhe permite ter efeitos simbólicos: “É o

que chamo de capital simbólico, atribuindo assim um sentido rigoroso ao que Max Weber

designava pela palavra carisma”.568 Segundo Weber:A expressão “ca r i sma” deve ser compreendida como refer indo-se a uma qua l idade ex t raord inár ia de uma pessoa ( . . . ) “Autor idade car i smát ica” , por tan to , re fere-se a um domínio sobre os homens ( . . . ) a que os governados se submetem devido à sua c rença na qual idade ext raord inár ia da pessoa especí f ica . O fe i t ice i ro mágico , o profe ta ( . . . ) são desses t ipos de governantes pa ra os seus d i sc ípulos , seguidores , e tc . A leg i t imidade de seu domínio se base ia na crença e na devoção ao ex t raord iná r io , dese jado porque u l t rapassa a s qual idades humanas normais e or ig ina lmente cons ide rado como sobrena tura l . A leg i t imidade do domínio ca r i smát ico base ia- se , a ss im, na crença nos poderes mágicos , r evelações e cu l to de heró i . 5 6 9

Isto se viabilizou devido à existência do capital simbólico presente no

campo. Os agentes religiosos iurdianos, com um mínimo desse capital, obtiveram condições

de se engajar no campo religioso e, a partir disso, aumentar o seu poder de representação.

567 BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 103.568 BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 177.569 WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982, p. 340.

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Esse capital simbólico, denominado carisma, portanto, torna-se nas práticas iurdianas um

poder simbólico:O capi ta l s imból ico tem como ca rac ter í s t i ca surg ir em uma re lação socia l en t re as propr iedades possu ídas por um agente e ou t ros agentes do tados de ca tegor ias de percepção adequados : en te percebido , const ru ído , de acordo com ca tegor ias de percepção especí f icas , o capi ta l s imból ico supõe a ex is tênc ia de agentes cons t i tu ídos , em seus modos de pensar , de t a l modo que conheçam e reconheçam o que lhes é propos to , e c re iam nisso , i s to é , em ce r tos casos , r endam- lhe obediênc ia e submissão . 5 7 0

Na obra A Produção da Crença, 571 em que oferece uma análise crítica

sobre o processo de criação, circulação e consagração dos bens culturais, Bourdieu ressalta

que o princípio da eficácia de todos os atos de consagração não é outro senão o próprio

campo, lugar de capital simbólico socialmente acumulado. Aqui lo que def ine a e s t ru tura de um campo num dado momento é a e s t ru tura da d i s t r ibu ição do capi ta l en tre os d i fe ren tes agentes enga jados nesse campo. Mui to bem, d i rão , mas o que você en tende por capi ta l? Só posso responder brevemente : cada campo é o lugar de cons t i tu ição de uma forma especí f ica de capi ta l . 5 7 2

Neste aspecto, vale dizer que a crença em poderes divinamente concedidos

a “indivíduos iluminados” é um dos componentes do capital simbólico do campo religioso

brasileiro. Assim, a representação do carisma configurada na IURD possui raízes fincadas na

longa duração, legadas pelo cristianismo. Já em seus primórdios, a fé cristã associou a idéia

de carisma ao vocábulo grego “cháris”, que significa “dom” ou “graça divina”. Segundo

relatos bíblicos, no ambiente das primeiras comunidades cristãs tal elemento foi associado à

idéia de que determinadas pessoas são visitadas por um poder divino, mais especificamente

pela figura do Espírito Santo, com o propósito de desempenhar certa vocação ou missão. Em

uma experiência religiosa denominada “pentecostes”, segundo o relato bíblico do livro de

Atos, o Espírito Santo teria sido enviado como poder divino para revestir de dons os

primeiros cristãos. Desta forma, o carisma passava a significar o reconhecimento intuitivo,

por parte dos que eram denominados leigos, de que determinadas pessoas no interior do

grupo ostentavam a condição de “iluminadas” ou “santas”, sendo possuidoras de

determinados poderes extraordinárias em razão do seu contato mais íntimo com a divindade.

Há de se dizer que o cristianismo já emprestou tal concepção de outras

matrizes religiosas e culturais. Primeiramente, do judaísmo, que preservava antigas tradições

com forte apelo de carismatismo. No ambiente do Antigo Testamento, juízes, profetas e reis 570BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 178, 179.571 Id., ibid., p. 30.572BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência. Por uma sociologia clínica do campo científico, p. 26.

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eram vistos como especialmente possuídos pelo Espírito do Deus Iavé, para o desempenho de

suas funções. No advento da era cristã tais idéias estavam ainda muito presentes no cotidiano

do apocalipsismo judaico que projetava em líderes taumaturgos capacidade de cura, de

exorcismo e de controle sobre fenômenos da natureza. Em segundo lugar, das chamadas

“religiões de mistério” oriundas do Egito, da Síria e da Pérsia, bastante difundidas e

popularizadas no mundo greco-romano quando do surgimento do cristianismo. Nos cultos,

com cerimônias secretas, acreditava-se que pessoas iluminadas eram possuídas por forças

divinas, podendo assim, em êxtase, mediar a cura de enfermidades físicas e estabelecer

comunicação com o mundo espiritual. A comunidade cristã, em parte, se apropriou desse

imaginário religioso, re-significando-o à luz do ensino apostólico. Terceiro, da idéia grega do

“homem divino”, ou do conceito romano de facilitas, que pressupunham a habilidade inata

do herói para levar um projeto ao sucesso, graças à sua ligação com o sagrado. Os gregos, de

acordo com suas mitologias, acreditavam que os deuses por eles adorados não estavam

separados dos homens por uma fronteira bem definida, razão porque alguns desses poderiam

ser colocados na comunhão divina, tornando-se filhos da divindade, podendo mediar

benesses sagradas aos que se punham sob sua liderança.

Bourdieu, ao fazer uma releitura de Weber, propõe um avanço na

compreensão do carisma ao associá-lo não ao indivíduo isolado, mas sim ao grupo em que se

desenvolve tal representação, mediante a força do capital simbólico e da crença existente no

campo:O poder ca r i smát ico , confe r ido a ind iv íduos supos tamente dotados de qua l idades especia i s que lhes a sseguram uma i r rad iação soc ia l excepciona l , es tá baseado numa de legação de poder dos l iderados em benef íc io dos que l ideram, que só faz exercer sobre aqueles o poder que e le s própr ios depos i ta ram em suas mãos ( . . . ) É i sso que expl ica o fa to de que a lguns ind iv íduos , do tados in ic ia lmente de t a len tos comuns , mas bem serv idos por c i rcuns tâncias comuns , t enham ga lgado pos ição de poder . 5 7 3

De acordo com Bourdieu,574 certas disposições em relação ao mundo, certas

formas elementares de construção da realidade, constituem possibilidades antropológicas que

formam potencialidades, um poder simbólico estabelecido pela força da crença.575 O “efeito

de constituição que opera a consagração desse capital consagrado e as condições sociais de

surgimento desse efeito”576 é melhor detalhado nos seguintes termos:

573 BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 104.574BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 218.575Id., ibid., p. 177.576 Id., ibid., p. 187.

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O capi ta l s imból ico é uma propr iedade qua lquer (de qualquer t ipo de capi ta l , econômico , cu l tura l , soc ia l ) , percebida pe los agentes soc ia i s cu jas ca tegor ias de pe rcepção são ta i s que e le s podem entendê- las (percebê- las ) e reconhecê- la s , a t r ibu indo- lhes va lor . ( . . . ) O capi ta l s imból ico é uma propr iedade que , pe rcebida pe los agentes soc ia i s do tados das ca tegor ias de pe rcepção e de aval iação que lhes pe rmi tem percebê- la , conhecê- la e reconhecê- la , to rna-se s imbol icamente ef ic ien te , como uma ve rdadei ra força mágica : uma propr iedade que , por r esponder às “expec ta t ivas co le t ivas” , soc ia lmente cons tru ídas , em re lação às c renças , exe rce uma espécie de ação à d i s tância , sem conta to f í s ico ( . . . ) apoiando-se em “expecta t ivas co le t ivas” , em c renças soc ia lmente inculcadas . 5 7 7

Ao formular essa compreensão do carisma na perspectiva do grupo,

Bourdieu se aproxima de Émile Durkheim, cuja preocupação não é com o ator socialmente

contextualizado, sempre individualmente motivado, mas sim com a dinâmica própria do

grupo carismático. Segundo Durkheim, o coletivo é o caso típico do sagrado: “enquanto

pertence à sociedade, o indivíduo transcende a si mesmo, seja quando pensa ou quando

age”.578 Para ele, o princípio criador é a participação conjunta em rituais sagrados, que

servem para integrar todos os participantes numa unidade. Na multidão, há uma participação,

mais do que de cooperação, mais do que competição; nela o poder supera a fraqueza, as

semelhanças sobrepujam as diferenças. No grupo, “os homens ficam mais confiantes porque

se sentem mais fortes; e realmente ficam mais fortes porque as forças que estavam

adormecidas despertam na consciência”.579

Os campos da produção de bens culturais são, pois, “universos de crença”

que só podem funcionar à medida que conseguem produzir, inseparavelmente, produtos e a

necessidade desses produtos por meio de práticas.É produzindo a r ar idade do produtor que o campo de produção s imból ico produz a r ar idade do produto : o poder mágico do cr iador é o capi ta l de au tor idade associado a uma pos ição que não poderá agi r se não for mobi l i zado por uma pessoa au tor izada , ou melhor a inda , se não for ident i f i cado com uma pessoa e seu car i sma, a lém de se r garan t ido por sua ass ina tura . 5 8 0

Com isso, desmistifica-se a autonomia do caráter sagrado do carisma

religioso, pois, sua produção é considerada resultado de um amplo empreendimento de

alquimia social, na qual colabora o conjunto dos agentes envolvidos no campo da produção e

circulação. Portanto, em relação ao carisma, pode-se dizer que o sucesso de tal alquimia se

577Id., ibid,. 107, 177.578 DURKHEIM, Émile. The elementary forms of religious life. Nova York: Free Press, 1965, p. 29.579 Id., ibid., p. 387.580 BOURDIEU, P. A produção da crença, p. 154.

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constitui na medida em que o aparelho de consagração e de celebração se torna capaz de

produzir e de manter tal poder simbólico bem como a sua necessidade:Deve-se ev i ta r a fé no poder car i smát ico do cr iador : es te l imi ta -se a mobi l i za r , em graus e por es t ra tég ias d i feren tes , a energ ia da t ransmutação s imból ica ( i s to é , a au tor idade ou a l eg i t imidade especí f ica ) que é imanente à to ta l idade do campo porque es te produz e a r eproduz por meio de sua própr ia es t ru tura e de seu própr io funcionamento . 5 8 1

Pode-se citar o exemplo da “grife do costureiro” para se demonstrar a

importância do reconhecimento coletivo na construção de um poder simbólico:A gr i fe , s imples “pa lavra co lada sobre um produto” é , sem dúvida , com a ass ina tura do p in tor consagrado , uma das pa lavras do ponto de v is ta s imból ico . ( . . . ) Mas , do mesmo modo que o poder da a ss ina tura do p in tor não se encont ra na ass ina tura , ass im também o poder da gr i fe não es tá na gr i f e , nem se encont ra sequer no conjunto dos d iscursos que ce lebram a c r iação , o cr iador e suas cr iações , cont r ibu indo de forma tan to mais e f icaz para a va lor ização dos produtos e logiados , quanto maior é a impressão susc i tada de que l imi tam a consta ta r t a l va lor quando, a f ina l , es tão empenhados em produz i- lo . 5 8 2

O habitus se torna responsável pela produção da estrutura coletiva do poder

carismático ostentado pelo líder, configurando-se num mecanismo essencial da socialização,

na medida em que os comportamentos e valores apreendidos são considerados óbvios,

naturais, quase instintivos; a interiorização permite agir sem ser obrigado a lembrar-se

explicitamente das regras que é preciso observar para agir.583 Louís Pinto comenta tal aspecto

afirmando que “a noção de poder simbólico é um instrumento muito sensível

simultaneamente aos dois principais espaços que são próprios da sociologia de Pierre

Bourdieu: o espaço do habitus e o espaço do campo”, e acrescenta: O capi ta l es tabelece uma re lação en t re habi tus e o campo, ag indo como um poder que permi te dominar um conjunto de potenc ia l idades obje t ivas ; por ou t ro , e le ex i s te segundo graus de obje t ivação que var iam de modo cont ínuo , desde o saber incorporado numa técnica a té a obra que lhe dá a forma de uma coisa , porém esperando ser apropr iada por agentes de te rminados e d i spos tos a t an to , i s to é , do tado de d i spos ições a f ins . 5 8 4

Mediante a orquestração do habitus - capaz de promover o efeito de

consagração - um mecanismo de “interiorização da exterioridade” torna capaz de adquirir

disposições para reproduzir-se espontaneamente, mobilizando energias do campo,

concentrando capital simbólico que, na forma de carisma, transforma-se em poder simbólico

581 Id., ibid., p. 155.582 Id., ibid., p. 160.583 BONNEWITZ, P. Op. cit, p. 77.584PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 136.

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na pessoa do líder. Promove-se, dessa forma, a transfiguração das relações de dominação e de

submissão em relações afetivas. O habitus, assim, permite explicar a plausibilidade que as

representações iurdianas passaram a ter para os seus adeptos, em meio a outras que surgiram

com proposta semelhante no mesmo período: somente a produção originada do consenso

coletivo do grupo, ainda que anônimo, obtém seu reconhecimento e legitimidade.

Portanto, a constituição de um poder carismático ocorre pela alquimia da

consagração e pela existência, no campo religioso, de crenças que promovem o revestimento

com caráter sagrado do que é produto humano. Em decorrência, estabelece-se uma forma de

dominação, porém transfigurada e, como tal, imperceptível perante o grupo liderado:Torna-se necessár io sabe r descobr i - lo [poder s imból ico] onde e le se de ixa ver menos , onde e le é ma is comple tamente ignorado , por tan to , r econhec ido: o poder s imból ico é , com efe i to , e sse poder inv i s íve l o qual só pode ser exe rc ido com a cumplic idade daqueles que não querem saber que lhe são su je i tos ou mesmo que o exercem. 5 8 5

Em vista disso, denota-se que a relação social é também uma relação de

sentido, e não somente uma relação de força. Tal fato, em relação ao líder religioso da IURD,

supõe a mobilização de um poder simbólico, o qual consegue se impor com significações

legítimas, tendo a cumplicidade de todo grupo do qual faz parte. Comentando esse aspecto,

Chartier afirma: A dominação s imból ica se def ine como uma dominação que não supõe o recurso imedia to à força , e la se de f ine como a incorporação dos pr inc íp ios da dominação , inc lus ive pe los dominados . I s to é poss íve l mediante s i s temas de representações co le t ivas . 5 8 6

Poderia se aplicar a isso às considerações de Baczko quando propõe uma

imbricação entre imaginário, imagens e relações de poder, mobilizados em favor daquele que

lidera. Reporta-se, como exemplo, a Maquiavel, quando afirmou que “governar é fazer crer”,

ressaltando que tal expressão põe em des taque as re lações ín t imas en t re poder e imaginár io , ao mesmo tempo que resume uma a t i tude técn ico- ins t rumenta l pe ran te a s c renças e o seu s imbol i smo, em espec ia l peran te a r e l ig ião . Encont ramos em Maquiave l toda uma teor ia das aparênc ias de que o poder se rode ia e que correspondem a outros tan tos ins t rumentos de dominação s imból ica . As apa rências f ixam as e spe ranças do povo no Pr ínc ipe ( . . . ) O Pr ínc ipe , rodeando-se dos s ina i s do seu própr io prest íg io e manipulando habi lmente toda a espécie de i lusões ( s ímbolos , f es ta , e tc . ) pode desv ia r em seu provei to as c renças r e l ig iosas e impor aos seus súdi tos o d i spos i t ivo de que re t i ra o prest íg io da sua própr ia imagem. 5 8 7

585 BOURDIEU, P. O poder simbólico, p. 7, 8.586 CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 168.587 BACZKO, B. Op. cit., p. 301.

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Assim, a produção desses bens simbólicos consiste numa operação de

transubstanciação simbólica. No campo, líderes e fiéis passam a agir e a constituir-se pelas

regras nele existentes, criando a grife do nome e a necessidade do carisma. Em um processo

coletivo, “a criação carismática é uma ilusão bem fundamentada”:588 O poder do c r iador nada mais é do que a capac idade de mobi l i zar a ene rg ia s imból ica produz ida pe lo conjunto dos agentes compromet idos com o func ionamento do campo. ( . . . ) O t rabalho de fabr icação propr iamente d i to não é nada sem o t r aba lho co le t ivo de produção do va lor do produto e do in teresse pe lo produto , i s to é , sem o conlu io obje t ivo dos in te resses que a lguns dos agentes , em razão da pos ição que ocupam em um campo or ien tado para o produção e c i rcu lação des te produto , possam ter e fazer c i r cu lar t a l p roduto , ce lebrá- lo e , ass im, apropr iar - se de le s imbol icamente , a lém de desvalor izar os produtos concorren tes , i s to é , ce lebrados por concorren tes . 5 8 9

Pela apropriação de imaginários e mobilização de símbolos, a mensagem

dos líderes iurdianos torna-se autorizada por ser investida de autoridade pelo próprio grupo

de onde procede. Assim, pelo processo de transfiguração das relações sociais, as práticas e

representações religiosas não são na IURD simples camuflagem ideológica de instituições ou

de interesses de classes. São produções internas do campo religioso que, pelo efeito da

consagração, as tornam irreconhecíveis enquanto produção humana e arbitrária, assegurando

sua reprodução:( . . . ) os agentes soc ia i s são agentes cognoscentes que , mesmo quando submet idos a de terminismos, cont r ibuem para produzi r a e f icác ia daqui lo que os de termina , na medida em que e le s e s t ru turam aqui lo que os de te rmina . 5 9 0

A eficácia do anúncio iurdiano deve ser buscada, então, no compósito

cultural, enquanto raiz, base e fundamento de sua operosidade, pois para se lançar num

campo um determinado agente precisa dedicar-se a ele, isto é, ter uma espécie de “vocação”

que permita esperar daí a satisfação de estar em harmonia com as expectativas.591 Quem a

possui é por ela animado ou “possuído”, empenha sua pessoa, suas convicções e seus talentos

específicos, sem precisar que objetivos sejam impostos de modo consciente, calculado,

refletido:Pois quem possu i vocação enca rna o a jus tamento en t re as probabi l idades obje t ivas oferec idas pe lo campo e o capi ta l que suas d i spos ições impl ica , sendo as e scolhas expl íc i t as f e i t as à base de evidênc ia dóxica : e sse ind iv íduo é so l ic i t ado a fazer a lgo que parece fe i to para e le e que ex ige se r fe i to por e le . Os a tos por

588 Id., ibid., p. 156.589Id., ibid., p. 163, 164.590BOURDIEU, P. ; WACQUANT, L. J. D. Op. cit., p. 143. 591 PINTO, L. Op. cit., p. 137.

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r ea l izar , longe de se rem antec ipados por um pro je to , são s implesmente suger idos por um es tado do mundo que encerra de modo v i r tua l a d ia lé t ica dos poss íve i s ob je t ivos e das potencia l idades inscr i t a s no corpo e na mente do ind iv íduo . As condições de êx i to das prá t i cas repousam sobre c renças que são tan to ma is ef icazes e in tensas quanto ref le tem a “cumplic idade” das e s t ru turas ob je t ivas e das d i spos ições subje t ivas . 5 9 2

Assim, pela crença nas relações sociais “bem terrenas”, por meio de uma

transfiguração, as práticas e representações religiosas são transferidas para o “absoluto”, o

“sobrenatural” ou o “transcendente”. Desse modo ocorre um processo de socialização que

possibilita a aceitação das práticas como se fossem disposições “naturais” e não socialmente

construídas, promovendo compatibilidade estrutural entre o sistema religioso e a sociedade

na qual ele existe, ainda que tal sistema religioso seja estruturalmente divergente dela.593

Portanto, é preciso que o campo esteja constituído com os elementos

necessários para a configuração do capital simbólico do qual o líder se apropria e mobiliza

em seu favor, dando origem ao seu carisma. Da mesma forma que ocorre em relação ao

artista, é necessário existirem condições sociais para que o líder carismático pareça e

aparente.594 O líder carismático iurdiano é, assim, construído no campo, modelando-o ao

passo que é também por ele modelado:Se o mundo socia l , com suas d iv i sões é a lgo que os agentes soc ia i s t êm a faze r , a cons t ru i r , ind iv idual e sobre tudo co le t ivamente , na cooperação e no conf l i to , res ta que essas cons t ruções não se dão no vaz io soc ia l . A pos ição ocupada no espaço socia l comanda as r epresentações desse e spaço e as tomadas de pos ição nas lu tas pa ra conse rvá- lo ou t ransformá- lo . 5 9 5

O carisma dos líderes iurdianos, portanto, configura-se pela mobilização do

capital simbólico existente no campo. Pela crença, o carisma se configura e é demonstrado na

medida em que compartilha um conjunto de “crenças das pessoas engajadas no campo”596 nas

condições culturais em que se encontram os que a elas aderem, pois “sem uma resposta ao

anúncio, por mais estratégico que se proponha a ser, nenhum credo germina e cresce”.597

Bourdieu cita Marcel Mauss para afirmar que é preciso que “as expectativas sociais” estejam

presentes, ou que os “espíritos estejam preparados”598 para tal surgimento. Nesse sentido, os

592 Id., ibid., p. 136.593BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985. 594 BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 188.595Id., ibid., p. 27.596Id., ibid., p. 177.597 ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil: uma interpretação sócio-religiosa. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 12.598Id., ibid., p. 188.

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líderes iurdianos se encontraram “socialmente predispostos a sentir e a exprimir, com uma

força e uma coerência particulares, disposições éticas ou políticas, já presentes, de modo

implícito, em todos os membros da classe ou do grupo de seus destinatários”.599

De forma incomum, a trajetória de Macedo e dos demais líderes que o

auxiliam, descreve a série de posições ocupadas, não sucessivamente, mas ao mesmo tempo,

por um mesmo líder no campo religioso, que assume representações diferentes e simultâneas

perante os seus fiéis. Isto se torna possível porque no caso de movimentos religiosos, “a

mensagem do fundador muitas vezes é ambígua. Na verdade, pode-se afirmar que os

fundadores têm êxito precisamente porque significam muitas coisas para muitas pessoas”.600

É na estrutura relacional e no processo de mutação do campo religioso que se pode definir o

sentido e a dinâmica dessa conjugação de posições.

A seguir, uma análise mais detalhada das tipologias pelas quais o carisma

assume representações nas práticas iurdianas.

3.6.1 - O carisma do profeta

Em sua obra Economia e Sociedade,601 dentre os tipos de agentes sociais

idealizados, Max Weber identifica o “carismático”, representado pela figura do profeta, do

guerreiro heróico, do revolucionário, que surge como líder em tempos críticos e a quem são

atribuídos poderes extraordinários e sobrenaturais. Podendo aparecer em qualquer sociedade,

a religiosidade carismática que se forma em torno desse líder tem grande preocupação com

valores imediatistas, tais como saúde, vida longa e riqueza. Nesse sentido, podem ser

destacados ao menos três aspectos em relação ao perfil “profético” do movimento iurdiano:

ruptura com os clichês institucionais de consagração; identificação com os dramas

vivenciados pelo povo; ação contestatória em relação aos demais agentes religiosos atuantes

no campo.

Primeiro, em relação ao rompimento com a instituição, vale considerar que,

de acordo com Bourdieu, no campo religioso a posição de destaque que certos agentes sociais

adquirem deve a sua eficácia de ação a uma dupla condição: por um lado, pela eficácia

simbólica do rito da instituição; por outro, através do processo de consagração popular a

partir do capital disposto no campo. Pelo poder de nomeação institucional, os líderes recebem

599 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 94.600 BURKE, P. O que é História Cultural?, p. 130.601 WEBER, Max. Economia e sociedade, v. 1. Op. cit.

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títulos ou rótulos oficiais, mediante o que “a instituição impõe um dever-ser aos agentes

consagrados, agindo sobre a representação que os receptores do discurso institucional têm da

realidade”.602 É preciso, portanto, que os agentes a quem se dirige a instituição estejam

preparados para submeter-se aos seus veredictos – é o caso dos sacerdotes. Já os profetas,

acumulam veredictos dispostos no campo em que estão inseridos, dos quais aparecem como

porta-vozes.603 E, nesse sentido, no caso da IURD, seus líderes se tornaram produtores diretos

dos bens de seu mundo religioso; criaram seus próprios meios de relação direta com o

sagrado, rompendo ou eliminando as mediações sacerdotais do catolicismo ou do

clericalismo erudito postulado pelo protestantismo clássico.

A trajetória de consagração religiosa de Edir Macedo e de seus líderes

auxiliares, ocorre de modo sem precedentes no campo religioso brasileiro em relação ao

protestantismo e ao pentecostalismo clássicos. No caso do protestantismo histórico,

representado, por exemplo, pelas igrejas luterana, presbiteriana, batista e metodista, constata-

se que há um critério institucional bem definido para a nomeação daqueles que devem

exercer a liderança pastoral. Após se inserirem no Brasil, a partir do século XIX, essas igrejas

receberam orientação religiosa de pastores estrangeiros, oficialmente designados pelos países

de origem. E, quando finalmente constituíram as suas primeiras escolas de formação

teológica, seguiram o modelo norte-americano ou europeu: pastores só devem exercer este

ofício após cursarem teologia por um período de quatro a cinco anos, com a

complementação de mais um ano de licenciatura prática, sob a tutela de um pastor mais

experiente. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o primeiro seminário teológico

protestante criado no Brasil, nas dependências de uma Igreja Presbiteriana, a 14 de maio de

1867. Os primeiros professores eram os pastores-missionários, todos de nacionalidade

estrangeira. A primeira turma foi constituída por três alunos brasileiros, que receberiam toda

a formação segundo a teologia e os dogmas da igreja-mãe norte-americana. Já em seguida, os

seus dirigentes providenciaram para que chegassem ao Brasil livros que comporiam a

primeira biblioteca para estudos e pesquisas. Foi assim que, em 1868, sob encomenda do

missionário Ashbel Green Simonton, fundador daquela escola, vieram não apenas obras

teológicas, mas também de Física e Astronomia. Segundo o pesquisador Júlio Andrade

Ferreira604 além de matérias mais específicas do campo teológico, como Grego e Homilética, 602 BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 101.603 Id., ibid., p. 102.604 FERREIRA, Júlio A. História da Igreja Presbiteriana do Brasil. 2 ed. v. 1. São Paulo: Cultura Cristã, 1959, p. 85; GOMES, Antônio Máspoli de Araújo. Origens e imagens do protestantismo brasileiro no século XI numa perspectiva calvinista e weberiana. Ciências da Religião. História e Sociedade, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, ano 1, n. 1, p. 71-106, 2003.

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os alunos também tinham aulas de Álgebra, Aritmética, Inglês, Latim e Gramática

Portuguesa. Chamberlain ficou responsável pela coordenadoria de ensino e o curso completo

por ele elaborado tinha a duração de seis anos. Pouco tempo depois, em 1888, ao se expandir

para a região de São Paulo, a Igreja Presbiteriana do Brasil estabeleceu outro seminário

teológico na cidade de Campinas.

O que se observa nessas experiências é a preocupação de se formar líderes

com bom nível de conhecimento intelectual, tendo como referência a cultura estrangeira.

Assim, de origem norte-americana ou européia, perfil elitista e com uma mensagem

racionalizadora do mundo, o protestantismo clássico desenvolvido no Brasil demonstrou

desde o início ter grandes dificuldades para aproximar-se das camadas sociais mais

populares.

Não é muito diferente o caso do pentecostalismo clássico, desenvolvido no

país nas primeiras décadas do século XX. Observa-se que, apesar de haver menor rigor

quanto ao preparo teológico de seus líderes, ainda assim, no caso da Assembléia de Deus, por

exemplo, seus fundadores possuíam um curso teológico.605 Mais tarde, em 1958, foi inclusive

fundado o Instituto Bíblico das Assembléias de Deus (IBAD), em Pindamonhangaba, interior

de São Paulo, onde se formam a cada ano, em média, 210 novos pastores que vão comandar

os mais de 180 mil templos que essa igreja – hoje a maior igreja evangélica do país com 8,6

milhões de fiéis – tem espalhados por todo o país. 606 Também no pentecostalismo de “cura

divina”, desenvolvido a partir da década de 1950, igrejas como do Evangelho Quadrangular e

O Brasil para Cristo desenvolveram critérios e ritos institucionalizados para a ordenação de

seus líderes.

No caso do líder iurdiano, especialmente Edir Macedo, há uma distinção

que o configura como um profeta, “portador de um carisma pessoal”607 atribuído por uma

iluminação direta do sagrado, sem a mediação institucional, razão porque obteve êxito

possibilitando que houvesse uma “consagração do herético”.608 Ao comentar as razões do

sucesso de sua igreja, Macedo retrata bem este aspecto: “Atribuo o crescimento da Igreja à

atuação do Espírito Santo nos corações do povo que faz parte dela (...) A direção da obra vem

do Espírito Santo, não do homem”.609 Esse reconhecimento vem, igualmente, da própria

IURD, que faz questão de ressaltar o carisma do seu líder-fundador como um dom divino:

605 Revista Igreja, São Paulo, jul. 2007.606 Revista Veja, São Paulo, p. 84, 12 jul. 2006.607 WEBER, Max. Economia e sociedade, v. 1, p. LI.608 BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 108.609 Revista Isto É, São Paulo, 14 dez. 1994.

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Com o obje t ivo de pregar o evangelho a toda cr ia tura e levar a s pessoas a encontrarem o verdadei ro caminho da paz e da fe l i c idade e terna , há cerca de v in te e c inco anos , o jovem pastor , Edir Macedo, usava toda a sua fé e de terminação numa praça do Méie r , subúrb io do Rio de Janei ro , pa ra rea l izar vá r ias pregações . Em ju lho de 1977, e s te jovem, auxi l i ado por ou tras pessoas , que compar t i lhavam da mesma fé , fundava a pr ime ira Igre ja Unive rsa l do Reino de Deus . Não demorou mui to para que a IURD most rasse que t inha surg ido pe la vontade do Espí r i to Santo . O poder de Deus se manteve tão for te sobre a Igre ja que , logo , ou t ros espaços prec i saram se r a lugados para da r luga r a ma is f i é i s . Naque la época , a d ivulgação dos cu l tos era f e i ta por dez obre i ros , que co lavam fo lhe tos nos pos tes e convidavam as pessoas para ass i s t i r em às r euniões . 6 1 0

Comentando o assunto, Cartaxo Rolim afirma que o profeta( . . . ) não nasce das f i l e i r as sacerdota is . Não é , po i s , o homem do cul to . Mas a lguém que proclama uma revelação recebida do a l to . A mente , a pa lavra , o poder do profe ta e s tão ancorados num dom pessoal dado grada t ivamente por uma d iv indade . 6 1 1

Essas representações estão em sintonia com a compreensão de Weber

quando fala sobre a força que o líder carismático possui em relação aos seguidores:São cons ide rados especia lmente sagrados e d iv inos devido a sua excepciona l idade ps íquica e ao va lor in t r ínseco dos re spect ivos e s tados por e les condic ionados ( . . . ) pa ra o devoto o va lor sagrado , antes e ac ima de tudo ( . . . ) Es te va lor sagrado torna o e lemento car i smát ico ce rne emoc ional da exper iência re l ig iosa e impõe a submissão ín t ima ao inédi to e absolu tamente único , por tan to d iv ino . 6 1 2

Joachim Wach comenta este aspecto da “vocação divina” do profeta como

sendo um dos segredos do êxito da sua atuação:A consciênc ia de se r órgão , ou ins t rumento ou por ta -voz da vontade d iv ina ca rac te r iza a au to- in te rpelação do profe ta ( . . . ) v i sões , t ranses , sonhos ou êx tases ocorrem com freqüênc ia ( . . . ) o profe ta e s tá preparado pa ra r eceber e in terpre tar mani fes tações do d iv ino ( . . . ) Com freqüênc ia e le aparece como renovador de conta tos perd idos com os poderes ocul tos da v ida , e aqui se parece com o fe i t i ce i ro e o curande iro . O profe ta l ança luz no passado e in te rpre ta-o , mas e le an tec ipa t ambém o fu turo . 6 1 3

Marcelo Crivella, influente bispo iurdiano, declara: As denominações pro tes tan tes t rad ic ionai s , que chegaram pr imei ramente ao Bras i l lança ram aqui uma boa semente . Porém, a Igre ja Universa l surg iu como uma igre ja de poder , que mos tra cura , em que os e sp ír i tos mal ignos são expulsos dos corpos das pessoas . I sso t r az rea lmente mudanças a v ida das pessoas e se enca ixa

610 Id., ibid.611 ROLIM, F. C. Op. cit., p. 73.612 WEBER, Max. Economy and socity. Berkeley: University of California Press, 1978, p. 117.613 WACH, Joachim. Sociologia da religião. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 416.

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per fe i t amente a Palavra de Deus . A v i são da Universa l é de t raba lha r com os a f l i tos . 6 1 4

Crivella, ao comentar a maneira como Edir Macedo experimentou rejeições

no âmbito do protestantismo clássico, destaca elementos significativos que identificam o

fundador da IURD como um “profeta” que emerge do povo e foge aos estereótipos

estabelecidos pelas instituições:Na época em que eu faz ia o segundo grau , e le [Edi r Macedo] faz ia f aculdade de es ta t í s t ica , ( . . . ) Conversávamos sobre a Bíb l ia , e le d iz ia : “Rapaz , Deus tem que fazer uma obra nes te Bras i l ” . Ass i s t i de per to ao surg imento de um grande l íde r , que fo i l evantado por Deus . Nas igre jas pe las quai s passou , não havia a t ra t ivo a lgum nele que desper tasse a a tenção dos out ros pas tores . E le t em um defe i to nas mãos . Era uma pessoa que , quando pegava o mic rofone , demorava um pouco pa ra f a lar , não t inha aque la re tór ica entus iasmada dos pas tores . Não cantava mui to bem. Era apenas um homem com uma fé mui to grande . Era um pat inho fe io , mas Deus o conduz iu para se r o l íder da Igre ja Universa l , que hoje cresceu mais do que todas as ig re jas pe las quai s passamos , e nas quai s o b i spo espe rava te r a chance de ser convidado a se r pas tor . 6 1 5

Victor Turner, em sua obra O Processo Ritual, emprega o conceito de

“liminaridade” para se referir à “ação cultural” de “pessoas que escapam à rede de

classificações que normalmente determina a localização de estados e posições num espaço

cultural (...), pessoas que fogem às ordenanças da lei, convenção e costumes”, 616

estabelecendo-se em “regiões de fronteira”, formando comunidades “vicinais” como modelo

de sociabilidade.617 As expressões culturais que agem nesse nível “podem ser muito criativas

em sua libertação dos controles estruturais ou podem ser consideradas perigosas do ponto de

vista da manutenção da lei e da ordem” – declara esse autor,618 que acrescenta:Os profe tas t endem a ser pessoas l iminares ou margina i s , “ f ronte i r i ços” que se es forçam com veemente s ince r idade por l ibe r tar -se dos c l i chês l igados às incumbênc ias da pos ição socia l e à r epresentação de papé is , e en t ra r em re lações v i ta i s com os outros homens , de f a to ou na imaginação . ( . . . ) Transgr ide ou anula as normas que governam as re lações es t ru turadas e ins t i tuc iona l izadas , sempre acompanhadas por exper iência de um poder io sem precedentes . 6 1 9

Segundo Turner, os profetas surgem nos “interstícios da estrutura, na

liminaridade ou na marginalidade; não costumam provir da aristocracia, do meio dos doutos;

614 CRESCIMENTO DA IGREJA UNIVERSAL – do Brasil para o mundo. Rio de Janeiro: Universal Produções, 2000. Documentário em vídeocassete.615 Revista Eclésia, Rio de Janeiro, ano V, n. 50, p. 12, jan. 2000.616 TURNER, Victor W. Op. cit., p. 5.617 SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. Cit., p. 08. 618 Id., ibid.619TURNER, V. Op. cit., p. 155.

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freqüentemente surgem dentre o povo mais simples”.620 Esta compreensão está de acordo

com a visão dos fundadores do movimento iurdiano: Os melhores pas tores não saem dos seminár ios . Pas tor é que nem jogador de fu tebol : e le s saem das escol inhas ; e les surgem, apa recem. Depois só prec i sam se r l ap idados . Com o passar dos anos , e les vão f ica r mui to mais preparados do que jamais f i ca r iam num seminár io normal . Os grandes homens de Deus surg i ram do nada , sem preparação . 6 2 1

O pastor iurdiano J. Cabral observa que para ser pastor na Universal, “os

requisitos são a conversão, a dedicação e o desejo de fazer a obra de Deus”. O aprendizado

para exercer o pastorado ocorre mediante a “atuação prática e direta nas igrejas”. Assim, para

o aspirante a pastor é fundamental aprender a reproduzir corretamente o que os pastores

titulares fazem no púlpito. Este caráter do chamado divino para o exercício da função

pastoral é destacado pela igreja:Consc ien te da urgênc ia que a população mundia l t em de ouvi r a Palavra de Deus , a Igre ja Unive rsa l compreende a necessidade da imedia ta formação de pastores . Por i sso , l evanta homens de Deus em cará te r emergencia l e os encaminha para cumpr ir o “ ide” de Jesus . Para a Igre ja Universa l do Re ino de Deus não é prec i so es tudar c inco anos de Teologia para fa la r do que o amor , a miser icórd ia e o poder de Jesus podem faze r na v ida dos que O ace i tam como Salvador . A IURD prega uma fé prá t ica , a t iva e d inâmica . Seus pas tores são or ien tados a l evar o povo a v ivê- la , não buscando apenas sabedor ia . Quem de te rmina o chamado pa ra a obra é o Espí r i to Santo , de acordo com o ca rá te r , a f é e a d i sponib i l idade do candida to . 6 2 2

Pastores e bispos iurdianos são, portanto, leigos quase que na sua totalidade;

não fizeram curso teológico, até porque não lhes é exigido. São-lhes designados tais títulos e

funções pela desenvoltura e habilidade no exercício do seu carisma:Esses pas tores [da IURD], bem como os “obre i ros” e “obre i ras” , são se lec ionados segundo seu car isma e seu dom de ora tór ia , num reconhec imento da graça dada ao ind iv íduo ( . . . ) aspec to não-desprez íve l f ren te a or igem humi lde da maior ia de les . 6 2 3

O treinamento do futuro pastor acontece normalmente no próprio templo

que freqüenta. Depois da entrada na igreja, portanto, é preciso percorrer um caminho que

requer constância e fidelidade, participação, trabalho intenso e certa abdicação total da vida

pessoal. “São rapazes de poucos recursos, com baixa escolaridade” – observa uma

620 Id., ibid.621 Revista Eclésia, Rio de Janeiro, n. 67, p. 30, abr. 2001. Palavras de R. R. Soares, cuja perspectiva é compartilhada por Edir Macedo quando demonstra aversão à erudição teológica clássica, como se observa em seu livro Libertação da Teologia. Op. cit.622 http://www.igrejauniversal.org.br Acesso em: 25 mar. 2005.623 MAFRA, C. Op. cit., p. 43, 44.

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reportagem jornalística.624 Começam lendo os livros do bispo Macedo, depois passam por um

curto treinamento, que dura em média três meses, ganhando em seguida o título de pastor.

Inicialmente como obreiro, depois auxiliar de pastores, pastor e, finalmente, bispo. É lá, junto

a outro pastor e, sob a sua orientação, que o candidato a pastor recebe um preparo prático de

como conduzir o público, dar orientações, realizar milagres e fazer exorcismos. É no

cotidiano que o futuro líder assimila ou reconfigura não apenas um universo simbólico, mas

também os procedimentos práticos que lhe compete no exercício dessa função, assim como a

confiança e a respeitabilidade por parte dos fiéis. Por ser uma obra de Deus , a IURD não pára de c rescer . Por i s so mesmo, necess i t a cada vez ma is de novos b i spos, pas tores , obre i ros e membros pa ra socorrerem os ma is necess i t ados . É impor tan te d izer que o braço d i re i to da Igre ja Univer sa l é compos to de homens e mulhe res , que um dia t ive ram uma exper iência com o Espí r i to Santo e co locaram suas v idas a se rv iço de Deus . 6 2 5

A procedência do próprio grupo para o qual dirige a sua mensagem

possibilita criar maior identificação dos profetas com os anseios e o universo representacional

dos seus fiéis. Essa identificação entre líderes e fiéis promove um processo dialético entre a

“linguagem autorizante” e a “linguagem autorizada”:626

O mis tér io da magia pe rformat iva r eso lve- se a ss im no mis té r io , i s to é , na a lquimia da representação a t ravés da qua l o representan te cons t i tu i o grupo que o cons t i tu iu : o por ta-voz dotado do poder p leno de fa lar e de ag i r em nome do grupo, fa lando sobre o grupo pela magia da pa lavra de ordem, é o subs t i tu to do grupo que ex i s te somente por e s ta procuração . 6 2 7

Atuando na liminaridade de um profeta, Macedo demonstra grande

desconfiança em relação à teologia institucional. Em um dos seus livros de grande tiragem,

intitulado A Libertação da Teologia,628 alerta que os dogmas estabelecidos a partir dessa área

do conhecimento anulam a espontaneidade da fé, impedindo sua “manifestação miraculosa”:Todas as formas e todos os r amos da Teologia são fú te i s . Não passam de emaranhados de idé ias que nada d izem ao incul to ; confundem os s imples e i ludem os sáb ios . Nada acrescentam à fé ; nada fazem pelo homem senão ta lvez aumentar sua capac idade de d i scu t i r e d i scordar . ( . . . ) Cr i s t i an ismo de mui ta t eor ia e pouca prá t ica ; mui ta t eo logia , pouco poder ; mui tos a rgumentos , pouca mani fes tação; mui ta s pa lavras , pouca fé . 6 2 9

624 Revista Veja, São Paulo, 06 set. 2000.625 http://www.igrejauniversal.com.br . Acesso em: 27 mar. 2005.626 BOURDIEU, P. A economia da trocas simbólicas, p. 92, 93.627 Id., ibid., p. 83.628 MACEDO, Edir. A libertação da teologia. 7 ed. Rio de Janeiro: Editora Gráfica Universal, 1990.629 Id., ibid.

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Entretanto, não obstante ao discurso reticente em relação à Teologia, a

Igreja Universal ressalta que o seu líder “fala fluentemente três idiomas, português, inglês e

espanhol” e destaca como parte de seu currículo uma extensa lista de cursos teológicos

realizados: Bachare l em Teologia , pe la Faculdade Evangé l ica de Teologia “Seminár io Unido” . Doutor em Teologia , Faculdade de Educação Teológica no Es tado de São Paulo (FATEBOM). Doutor em Fi losof ia Cr i s tã , pe la Faculdade de Educação Teológica no Es tado de São Paulo (FATEBOM). Doutor Honor i s Causa em Divindade , pe la Faculdade de Educação Teológica no Es tado de São Paulo (FATEBOM). Mes t re em Ciências Teológicas , pe la Federac ión Evangé l ica Española de Ent idades Rel ig iosas – “F .E.E.D.E.R” (MADRID, ESPAÑA). 6 3 0

O próprio Macedo se apressa em reverter em seu benefício a ostentação dos

títulos teológicos que lhe são atribuídos, dizendo que por isso fala com maior autoridade e

propriedade, pois conhece bem os “perigos” que tal formação pode representar.

O fato é que a IURD produz e elabora a sua própria concepção teológica,

ancorada não em especulações caracteristicamente conceituais ou filosóficas, mas sim, no

universo das práticas e do vivido. Há, em seu espaço, uma teologia própria, fundamentada

numa leitura funcional da Bíblia. Nas centenas de páginas dos livros de autoria de Edir

Macedo, analisadas para esta pesquisa, observa-se, por exemplo, que o autor recorre

insistentemente às citações bíblicas na proposição dos seus argumentos. Verifica-se também

que é bastante característico que os textos bíblicos sejam interpretados e filtrados a partir de

um substrato cultural que é próprio de seu habitus e imaginário religioso. A coerência das

postulações teológicas iurdianas fundamenta-se na lógica do sistema religioso. A teologia que

nasce de tal procedimento dá coerência às práticas ao mesmo tempo em que também por ela é

referendada. Exemplo desta “prova de fogo”, estabelecida por Macedo e seus líderes à

mensagem que anunciam, ocorre durante os rituais de cura e de exorcismo, quando as

palavras se materializam em cenas dramáticas perante os fiéis.

A teologia “liminar” de Macedo é transportada para os diversos livros

publicados por sua autoria. O site da Igreja refere-se ao seu líder destacando a sua atuação

como escritor: Escr i tor evangé l ico com mais de 10 milhões de l iv ros vendidos , d iv id idos em 34 t í tu los , des tacando-se bes t -se l le rs “Orixás ,

630 http://www.igrejauniversal.com.br . Acesso em: 25 jul. 2005. Vale observar que alguns desses cursos podem ser feitos a distância, por correspondência ou por outros recursos magnéticos ou eletrônicos, sem necessidade, por exemplo, de freqüência às aulas.

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caboclos e gu ias” e “Nos Passos de Jesus” , ambos com mais de 3 milhões de exempla res vendidos no Bras i l . 6 3 1

Também se valoriza a influência desses escritos na vida dos fiéis: “Fé é a

palavra mágica sempre presente nos livros do Bispo Macedo, porque ele aspira, respira e

transpira esse maravilhoso sentimento que eleva e enleva, concedendo-nos a senha para

penetrarmos no coração de Deus”,632 acrescentando-se ainda as especificidades na atuação

desse líder:Ele tornou-se , t ambém, um consagrado au tor de l iv ros . Seus e sc r i tos , que não fazem concessões às l inhas t eo lógicas , t êm prestado um e f icaz comba te ao engano, à ment i r a e ao er ro r e l ig ioso , t ransmi t indo ao le i tor os ens inamentos b íb l icos como são e e s tão , a t ravés de r edação c lara e ob je t iva . A pregação des temida e a forma de fa lar do b ispo Edi r Macedo o t r ansformaram, em poucos anos , de pas tor , an tes sem púlp i to , a l íde r mundia l da Igre ja Univer sa l do Re ino de Deus, que congrega , ho je , mi lhões de f i é i s . 6 3 3

Comprometidos, portanto, com a “teologia do vivido”, bispos e pastores da

IURD não cursam teologia. As palavras de um ex-pastor da IURD não só também constatam

essa realidade, como ainda demonstram as representações que de fato têm valor para os fiéis

seguidores desta Igreja:Na minha v i são , os pas tores eram mensagei ros ce les t i a i s ( . . . ) O que mais me maravi lhava naqueles homens era o fa to de que a ma ior ia e ra gente humi lde , sem ins t rução formal . Mui tos nem sequer t inham o pr ime iro grau comple to . Não haviam passado anos f r eqüentando seminár ios e f aculdades de Teologia e mui tas vezes se embaraçavam para l e r e expl ica r uma s imples passagem bíb l ica . Alguns, em meio a uma t ransmissão ao v ivo , l i am na Bíb l ia “parabólas de Jesus” com a tôn ica no ó em vez de parábolas . 6 3 4

Em segundo lugar, destaca-se a identificação do profeta iurdiano com os

seus seguidores. Afirma Bourdieu que, no sentido weberiano, um dos significados da atuação

carismática do profeta é o de oferecer “resposta sistemática a todos os problemas da

existência”:635

Os profe tas são produtores e por tadores das “revelações” metaf í s icas ou é t i co-re l ig iosas ( . . . ) O profe ta é o por tador de uma nova v isão do mundo que surge aos o lhos do le igo como “ revelação” , como um mandato d iv ino . ( . . . ) É o por tador de um “discurso de or igem” , o in te rmediár io e o anunciador de mudanças socia i s . 6 3 6

631http://www.igrejauniversal.org.br. Acesso em: 02 ago. 2004.632 MACEDO, Edir. Nos passos de Jesus. 13ª ed. Rio de Janeiro. Gráfica Universal, 2004, p. 5.633 http;//www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 20 set. 2005.634 JUSTINO, M. Op. cit., p. 28.635 CHARTIER, R. Práticas da leitura, p. 241.636 BOURDIEU, P. A economia da trocas simbólicas, p. LVI.

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O surgimento e a projeção do líder carismático se dá, sobretudo, em

“situações de crise, quando a ordem estabelecida ameaça romper-se ou quando o futuro

inteiro parece incerto”:O discurso profé t ico tem maiores chances de surg ir nos per íodos de c r ise aber ta envolvendo soc iedades in te i r as ; ou en tão , apenas a lgumas c lasses , va le d izer , nos per íodos em que t ransformações econômicas ou morfo lógicas de terminam, nesta ou naquela par te da sociedade , d i sso lução , o enfraquec imento ou absolescência das t rad ições ou dos s is temas s imból icos que fornec iam os pr inc íp ios da v i são do mundo e da or ien tação da v ida . 6 3 7

Esse aspecto da atuação do líder iurdiano como “profeta” se apresenta,

assim, na proposta de uma mensagem voltada a oferecer respostas imediatas às situações de

crises. A teoria social de Weber, ao tecer redes culturais de significado, fala de profetas

carismáticos que surgem em um contexto social marcado por “situações extraordinárias”,

cujo carisma se torna revolucionário e criativo, abrindo caminho para um novo futuro. Os

próprios líderes iurdianos apresentam depoimentos sobre essa atitude distintiva do

movimento sob sua liderança:Ao longo des tes 20 séculos o cr i s t i an i smo quis se to rna r uma re l ig ião hegemônica , mas ao mesmo tempo a l iou-se a mui tos in te resses e poderes que comprometeram a essência do evange lho . No caso do Bras i l , por séculos o povo só conheceu um t ipo de c r is t i an i smo, o ca to l ic i smo. Só a pa r t i r do século XIX chegaram as igre jas h i s tór icas . Porém, cont inuou ex is t indo uma d i s tânc ia mui to grande en t re o povo e os sacerdotes /pas tores . As pessoas permanec iam a inda angus t iadas em busca de re spos tas para os seus dramas pessoai s . I s to fez inc lus ive com que recorressem a out ras prá t i cas re l ig iosas , sem contudo encont ra r expl icações pa ra as causas de seus sofr imentos . Foi a í que Deus levantou , em meio a e sse contex to de ido la t r ia um movimento que v i r ia a da r cont inu idade a ig re ja pr imi t iva cr iada por Jesus . I s so mudar ia o cur so da evangel ização no Bras i l . 6 3 8

Em uma entrevista, ao falar sobre o surgimento da IURD e os motivos que o

levaram a fundar a sua própria igreja, Edir Macedo revela um episódio bastante pessoal, mas

que identifica bem a situação de sofrimento por que passam tantos outros brasileiros: Tudo começou quando nasceu a minha f i lha ma is ve lha , Viv iane . Viv iane nasceu acomet ida de problemas sé r ios de saúde , havendo inc lus ive por pa r te dos médicos d iagnós t icos de que era por tadora de debi l idades i r reve rs íve i s que a imposs ib i l i ta r iam de fa lar e t e r uma v ida normal . D iante desse fa to , sen t i de pe r to o drama de out ras famí l ia s que sem condições f inance iras padecem com f i lhos doentes , sem recursos para encaminhá- los a um t ra tamento médico especia l i zado . I sso fez com que se movesse dent ro de mim um in tenso dese jo de fundar uma igre ja na qua l as pessoas pudessem

637 Id. ibid., p. 74, 75.638 Depoimento de Paulo Guimarães, bispo da IURD. CRESCIMENTO DA IGREJA UNIVERSAL – do Brasil para o mundo. Rio de Janeiro: Universal Produções, 2000. Documentário em vídeocassete.

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encontrar uma por ta aber ta que lhes ofe recesse socorro e amparo em momentos de desespero e angús t ia . Por i sso t razemos desde o in íc io da igre ja , como lema, a mensagem: “Pare de sofre r” . 6 3 9

A esposa de Edir Macedo, Ester Bezerra, também é contundente ao

recordar esse episódio: “Com o nascimento da Viviane, nasceu a Igreja Universal”. Lembra

ainda o casal que hoje Viviane “é uma pessoa completamente curada de seus problemas de

infância”. 640

Macedo destaca também a dimensão mais coletiva deste episódio que o

teria levado a dar início a um novo movimento religioso: “Queria ajudar o povo brasileiro a

descobrir a causa de seu sofrimento e encontrar respostas concretas para os seus males.

Queria mostrar às pessoas que o evangelho é capaz de libertá-las das estruturas religiosas que

não ensinam uma fé sobrenatural com resultados práticos”. Explica melhor esse propósito ao

dizer que através da IURD “o povo tem a oportunidade de tocar o sagrado, cantar, aplaudir,

sentir-se protagonista, como alguém que não apenas vai a uma cerimônia religiosa para ouvir

do púlpito sermões distantes da realidade em que vive, como normalmente acontece nas

igrejas tradicionais”.641

Os profetas iurdianos promovem então uma interatividade com aqueles que

normalmente estão colocados também à margem: “Na liminaridade, as crises da vida e as

mudanças de posição social encontram oportunidade de manifestações pelos sinais externos e

sentimentos internos de distinção de situação social e fundir-se com as massas”.642 Citando

Durkheim, Bourdieu afirma que da mesma forma que um “emblema” constitui “o sentimento

que a sociedade tem de si mesma”, a fala e a pessoa do profeta “simbolizam as

representações coletivas porque contribuíram para constitui-las”, e acrescenta: O profe ta t raz ao n íve l do d iscurso ou da conduta exempla r , r epresentações , sen t imentos e asp i rações que já ex i s t iam antes de le embora de modo impl íc i to , semiconscien te ou inconscien te . Em suma , rea l iza a t ravés de seu d i scurso e de sua pessoa , como fa las exempla res , o encont ro de um s igni f ican te e de um s ignif icado preexis ten tes ( . . . ) é por i s so que o profe ta ( . . . ) pode ag i r como uma força organizadora e mobi l i zadora . 6 4 3

A Igreja Universal faz questão de ressaltar a identificação de Edir Macedo

com o povo brasileiro:

639 CRESCIMENTO DA IGREJA UNIVERSAL – do Brasil para o mundo. Rio de Janeiro: Universal Produções, 2000. Documentário em vídeocassete.640 Id., ibid.641 Id., ibid.642 Id., ibid., p. 243.643 Id., ibid., p. 92, 93.

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De hábi tos s imples , o b i spo não cons idera o seu es t i lo de v ida d i feren te do de qualquer se rvo usado por Deus. E , depois de mais de 24 anos à f r en te de um rebanho de f i lhos na fé , cada vez mais numeroso , e le a f i rma que , se t ivesse de recomeçar tudo de novo, não mudar ia nada do que fo i fe i to a té o momento , mantendo sempre a mesma l inha de ação: pregação do Evangelho para sa lvação e l ibe r tação das pessoas . O bispo nunca escondeu a sua insat i s fação e preocupação com a s i tuação do Bras i l e com os problemas das pessoas . Descompromissado com as corren tes f i losóf icas e r e l ig iosas , e le es tá sempre pronto para da r uma pa lavra de fé e ânimo a todos os seus ouvin tes . 6 4 4 [g r i fos nossos]

É igualmente notável o fato de quase todos os pastores iurdianos já terem

experimentado episódios de adversidades pessoais e sociais múltiplas, tais como desemprego,

crise familiar ou financeira, convívio com a violência urbana, entre outros. Romualdo

Panceiro, atualmente, um dos bispos mais influentes na hierarquia da IURD, responsável pela

direção do Templo Maior da Fé, localizado em Santo Amaro - SP, onde atua com o auxiliar

direto de Edir Macedo tem uma história de vida marcada por dramas. A igreja refere-se ao

testemunho de vida do bispo da seguinte maneira: “Assim como acontece com vários outros

bispos e pastores da Igreja Universal, o bispo Romualdo teve uma vida sofrida, sentiu

solidão, desprezo, fome e dor. Hoje, ele sabe entender um coração desesperado que chega até

um templo da IURD. Ele sabe o que essas pessoas com as vidas destruídas precisam e como

fazês-la enxergar a vitória que está poucos passos à frente”.645 O próprio Romualdo relata que

tendo nascido em um lar com posses e recursos materiais, veio a experimentar posteriormente

a miséria e o sofrimento, após o pai ter sido acometido de distúrbios mentais, vindo a morrer

de câncer. “Hoje tenho consciência de que a loucura de meu pai foi fruto de um trabalho de

bruxaria, que atingiu também minha mãe e os três filhos. Passei a trabalhar, mas sempre

enfrentando muitas dificuldades, tendo uma vida muito arrasada” – recorda. “Foi então que a

minha mãe conheceu o trabalho da Igreja Universal através de um programa de rádio e

passou a freqüentá-la. Ela começou a fazer uma corrente direcionada à minha vida. Todos os

dias ela levava uma foto minha para a igreja. Nessa época, eu já usava drogas e não dormia.

Foi quando abriu uma igreja Universal perto da minha casa e eu decidi ir a um culto. Cheguei

no templo, com um casaco do meu irmão, uma calça jeans suja e um sapato furado, mesmo

assim recebi a atenção de um obreiro e desabafei com aquele homem de Deus. Comecei a

fazer as correntes de libertação e de prosperidade. Um dia, numa reunião especial no

Maracanã, dirigida pelo bispo Edir Macedo, eu me ajoelhei, abri meu coração e comecei a

chorar. Não me importei com nada. Quando saí dali eu era uma nova criatura. Naquele dia eu

644http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 15 ago. 2005.645 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 70, p. 47, 2000.

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tive um encontro real com Jesus e enfrentei todos os meus problemas. Logo passei a ganhar o

respeito de todos de minha família e do meu trabalho, até que um dia fui chamado para ser

pastor”. A IURD faz questão de destacar o impacto da atuação desse líder hoje: “Quem

assiste a um culto do bispo Romualdo percebe a força da dedicação desse homem de Deus.

Nesses cultos a presença do Espírito Santo é sentida de tal maneira que as pessoas vão as

lágrimas e têm um verdadeiro encontro com Jesus”.

Também o bispo Clodomir dos Santos, 38 anos, apresentador de um dos

principais programas televisivos denominado “Fala que eu te escuto”, ressalta em seu

testemunho de vida que enfrentou a “miséria, vícios, marginalidade na infância e

adolescência”, mas que através da fé conquistou “uma nova vida”. Em uma infância marcada

pela miséria financeira e a família desestruturada, chegou a envolver-se com armas e drogas: Com doze anos comecei a consumir cocaína . Minha famí l ia e ra d iv id ida , com mui tos sofr imentos em casa . A fome chegou. Eu e meu i rmão en tramos para uma quadr i lha e começamos a roubar . Torne i-me em pouco tempo um dos t ra f ican tes ma is procurados nas f avelas do Rio de Jane iro . Quando es tava ameaçado de mor te por grupos r iva is , t ive de mudar-me do bai r ro onde v iv ia com a famí l ia . Recebi um l ivro de um homem da Igre ja Univer sa l do Re ino de Deus chamado Orixás , Caboclos e Guias , do b i spo Edir Macedo. Comece i a l e r e a t r emer ; eu pensava em su ic íd io a no i te , fu i a ig re ja Univer sa l do ba i r ro onde morava . Cheguei l á a f l i to , sem saber o que fazer , pensando em morrer . Mas a pa r t i r da ida ao templo minha v ida começou a mudar . Lá me acolhe ram e me a judaram a exerc i ta r a f é . Naquela semana fo i aber ta uma poss ib i l idade de emprego. Oi to meses depois , fu i l evantado a obre i ro – na ocas ião , passe i a f reqüentar a IURD do Maracanã . Tempos depois de ixava o emprego para ser auxi l ia r de pas tor pe las mãos do b i spo Sérg io von He lde . 6 4 6

Não é diferente a história de Renato Santos, hoje bispo da IURD na cidade

de Curitiba - PR e responsável pelo trabalho da Igreja no Estado do Paraná. Renato teve uma

adolescência marcada por dramas. Aos treze anos, por influência dos colegas do conjunto

habitacional onde morava, em Vista Alegre, Rio de Janeiro - RJ, teve a primeira experiência

com maconha: “Apesar de saber que o caminho pelo qual outros haviam enveredado os

conduzira à marginalidade, e muitas vezes à morte, uma força maior me impelia às mesmas

experiências, e depois com drogas ainda mais pesadas” – recorda, emocionado. Renato foi

detido pela polícia cinco vezes e internado em uma clinica para dependentes químicos, e nada

surtia efeito. Na ocasião conheceu a atual esposa, que já freqüentava a Igreja Universal:

“Consegui autorização para sair da clínica e fui ao culto com ela. Lá o pastor orou e um

espírito, manifestando através da minha namorada, disse que queria me matar - esse pastor

que orou por mim hoje é o bispo Macedo” – lembra. Renato passou a freqüentar os cultos da

646 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 118, p. 43-45, 2000.

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IURD. Tornou-se evangelista, pastor e bispo, além de escritor de livros sobre experiências

com entorpecentes.647

Bourdieu ressalta que é preciso superar o postulado da “representação do

carisma como propriedade associada à natureza de um indivíduo singular”.648 Lembra que há

em Weber essa perspectiva quando este afirma que “a criação de um poder carismático [...]

constitui sempre o produto de situações exteriores inauditas”, ou de uma “excitação comum a

um grupo de homens, suscitada por alguma coisa extraordinária”. É possível então

compreender que o líder carismático iurdiano obtém êxito no campo em que atua não por

causa de sua genialidade, como se exercesse um papel de criador onipotente e se localizasse

fora do grupo, mas sim, pelo fato de encontrar uma ressonância interativa por parte dos fiéis

que também estão inseridos no mesmo campo.649 O poder simbólico de que se cerca o líder

iurdiano procede, portanto, do próprio grupo do qual faz parte:O poder do profe ta t em por fundamento a força do grupo que e le mobi l i za por sua ap t idão para s imbol iza r em uma conduta exempla r e /ou em um discurso (quase) s is temát ico , os in teresses propr iamente r e l ig iosos de l e igos que ocupam uma pos ição de terminada na es t ru tura socia l . 6 5 0

A força da mensagem proferida pelo profeta não reside nas próprias

palavras ou nos locutores que a empregam:O poder das pa lavras é apenas o poder de legado do por ta-voz ( . . . ) sua fa la concent ra o capi ta l s imból ico acumulado pelo grupo que lhe confer iu o manda to ( . . . ) do qual e le é ( . . . ) o procurador . 6 5 1

Há, assim, uma cumplicidade entre líderes e fiéis na vivência das práticas e

das representações que ocorrem no âmbito iurdiano. Nesse sentido, vale destacar a fértil

reelaboração feita por Bourdieu da tipologia religiosa proposta por Weber, ao sublinhar que

não se pode criar uma dicotomia de mercado religioso que separa produtores de bens

religiosos – especialistas - e consumidores, destituídos da capacidade de produzirem eles

mesmos os bens religiosos que dão sentido à sua existência – os leigos. Pois é preciso

entender que os chamados “leigos” também são produtores coletivos dos referidos bens,

ainda que na condição de não-especialistas. Bourdieu afirma que não pode existir a produção

647 Folha Universal, Rio de Janeiro, 12 fev. 2006, p. 3.648A compreensão de Marcel Mauss, citado por Bourdieu, também vai nesta direção: “fomes e guerras suscitam profetas, heresias (...) não se deve confundir essas causas coletivas, orgânicas, com a ação dos indivíduos, que delas são muito mais intérpretes do que senhores (...)”, cf. BOURDIEU, P. A Economia das trocas simbólicas, p. 74, 75.649 BOURDIEU, P. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 317-368.650 Id., A economia da trocas simbólicas, p. 92, 93.651Id., A economia das trocas lingüísticas, p. 87, 89.

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de bens simbólicos ex-niilo. O que pode ocorrer é uma expropriação do trabalho religioso

popular pelos especialistas, para devolvê-los como um bem simbólico apto a atender sua

demanda de sentido: as s ign i f icações r e l ig iosas por e les [não-especia l i s ta s ] produzidas f icam em es tado bru to a té que os e specia l i s tas t raba lhem, l ap idando-as pa ra as apresentarem como se fossem uma in tu ição ou revelação or ig ina l . 6 5 2

Os líderes carismáticos iurdianos se tornaram, portanto, agentes

catalisadores de toda uma situação que clamava por uma nova teodicéia. Isso ocorre em

momentos nos quais as formas de entender e explicar a vida não mais estão em sintonia com

as condições sociais, gerando novas demandas, que somente podem ser atendidas por uma

palavra profética.653 Os profetas iurdianos reiniciaram, assim, a produção de um novo capital

religioso. Sendo orientado pelo mesmo habitus de seus fiéis - “princípio ativo, irredutível às

percepções passivas, de unificação das práticas e das representações” - 654 pode-se dizer que o

líder da IURD “não prega senão a convertidos”,655 pois fala, na verdade, a seus pares, e nisto

reside certamente um dos segredos de seu sucesso.

A própria trajetória desses líderes em sua relação com a IURD torna-se,

para os fiéis, uma prova argumentativa de que é possível vencer os obstáculos e ascender

socialmente, pois a chegada deles à igreja quase sempre dá na mesma condição de fracasso

ou desespero com que os demais também recorrem à igreja. Essa situação costuma ser

denominada por eles de “fundo do poço”. Ocorre, assim, uma identificação entre líderes e

fiéis: A Igre ja en tende que a verdadei ra f é , o encont ro r ea l com Jesus e a unção com o Espí r i to Santo são suf ic ien tes para que pas tores se jam consagrados . Só aque le que é verdadei ramente ungido pelo Espí r i to de Deus se propõe a uma v ida de lu tas e sacr i f í c ios . Para os que são rea lmente tocados , t r abalha r na obra de Deus , se ja da forma que for , é uma bênção , porque é um pr iv i lég io se rv i r ao Senhor dos senhores . Quanto ao aprendizado , devem conhecer as verdades b íb l icas , sendo prec i so en tendê- las com o coração , a a lma e o e sp í r i to . A Palavra deve ser r espei tada e obedecida para que ha ja in t imidade com Deus . A l inguagem s imples deve va lor iza r a comunhão com Nosso Senhor . 6 5 6

Assim, palavras, gestos e atitudes desses agentes respondem a um habitus adquirido e relacionado às estratégias operadas pelo campo. Por isso o líder é compreendido

652 OLIVEIRA, P. A. R. Op. cit., p. 101.653 BOURDIEU, Pierre. A economia da trocas simbólicas, 1982, p. 49.654 BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 77.655 Id., A produção da crença, p. 57.656 www.igrejauniversal.com.br . Acesso em: 20 jan. 2004.

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pelos fiéis, conseguindo estabelecer comunicação em linguagem que descortina anseios e faz

emergir representações que impregnam o imaginário coletivo:( . . . ) do tada de sen t ido e doadora de sen t ido , a profec ia l eg i t ima prá t icas e r epresentações que têm em comum apenas o fa to de serem engendradas pe lo mesmo habi tus (p rópr io de um grupo ou de uma c lasse ) ( . . . ) porque a própr ia profec ia t em como pr inc íp io gerador e un i f icador um habi tus ob je t ivamente co incidente com o dos seus des t ina tár ios . 6 5 7

Um terceiro aspecto a se destacar diz respeito à ação combativa pela Igreja

Universal em relação aos demais segmentos religiosos atuantes no campo. Ao mesmo tempo

em que é combatida, essa Igreja também empreende um incisivo ataque. Logo, interpretando

as configurações religiosas presentes no contexto brasileiro, nos últimos decênios, Edir

Macedo procura tirar proveito da situação em favor de sua mensagem:Potestades são c la sse de esp í r i tos imundos ( . . . ) e agem especi f icamente dent ro do mundo re l ig ioso ( . . . ) c r iam novas r e l ig iões a cada d ia , somente com o obje t ivo de pulve r iza r a genuína fé cr i s tã ( . . . ) p romovem fa l sos profe tas , com suas fa lsas r e l ig iões , apa rentando um c r i s t i an ismo autên t ico ( . . . ) e não ad ian ta ves t imenta r e l ig iosa e aparênc ia humi lde , porque a Pa lavra da Verdade reve la a ment i r a e o engano. 6 5 8

Agindo na condição de um profeta, Macedo tece críticas às instituições

religiosas:Enquanto você , amigo le i tor , es t iver sa t i s fe i to com a t rad ição h i s tór ica da sua igre ja , com seus r i tua i s e cer imônias , com sua l i tu rg ia e com a sua ace i tação das co isas como es tão , não será ungido pelo Espír i to Santo ( . . . ) há um demônio chamado Exu t rad ição que penet ra sorra te i ramente , obr igando os membros da Igre ja a a ten tar t ão somente pa ra usos , cos tumes e normas ec les iá s t icas ( . . . ) . 6 5 9

Citando especificamente a Igreja Católica, Macedo a responsabiliza por ter

dado início à perseguição sobre a IURD, dizendo que o motivo era porque “aquele gigante

adormecido” estaria perdendo adeptos para “uma igreja que tem trabalhado pela

transformação de viciados, alcoólatras e outras pessoas de vida perdida”, e acrescenta:Um padre só sabe d izer : “ reze minha f i lha” . Ora , o povo já cansou de rezar ! O povo quer ver sua v ida mudada. Os doutos jun to com suas teor ias não podem entender como um “pas torz inho” , com a sua “ r id ícu la” 4 ª sér ie do pr ime iro grau , impõe sua mão sobre a cabeça do d i to cu jo , e a pessoa é l iber ta , não vol tando mais ao v íc io . 6 6 0

O bispo emite também dura crítica ao culto mariano do catolicismo:

657 BOURDIEU, P. A produção da crença, p. 94.658Folha Universal, Rio de Janeiro, 24 jul. 1994.659MACEDO, E. A Libertação da teologia, p. 21.660Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, ano VII, n. 50, p. 2, 1990.

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Foi e la que começou a promover Mar ia . E la não passava de uma serva de Deus , um ins t rumento usado para t raze r Jesus ao mundo. O cul to mar iano é uma agressão a Jesus e a e la mesma . Há um t recho na Bíb l ia em que Jesus se d i r ige à mãe , d izendo “Mulher , que tenho eu cont igo?” Ve ja bem, e le não d i sse “mamãe”. Mar ia en tão entendeu que Jesus e ra Deus , o Deus homem. E e la pediu a todos para obedecer a Jesus . Nós fazemos apenas o que e la mesma indicou . A Igre ja Ca tó l ica f az o cont rár io . E la promove a imagem de Mar ia porque é lucra t ivo . O Vat icano tem fábr ica de san tos , f ábr ica de es tá tuas . E e les sabem que qua lquer imagem feminina faz sucesso . E tem mais , o problema não é só com ela . Quando vejo a imagem de Jesus ensangüentado na c ruz , f ico com pena de le . 6 6 1

Prossegue, Edir, afirmando que em 1980, quando esteve pela primeira vez

em solo brasileiro, “o papa abençoou o Brasil através de um ídolo chamado Senhora da

Aparecida. Como conseqüência o país entrou numa onda de maldição incontrolável”. Destaca

as conseqüências danosas decorrentes daquele ato: “Sérios problemas políticos. Inflação

galopante. Tremendas secas no Nordeste. O nascimento do cruzado. O enxerto do cruzado

novo. O presidente Collor. O aumento da violência. Seqüestros generalizados. Terremotos no

Ceará... e por aí a fora”.662

O bispo também culpa o catolicismo pela formação de um habitus que

impede o usufruto de uma vida melhor, segundo o qual a dor, o sacrifício, o sofrimento e a

pobreza são vistos como uma espécie de caminho de redenção ou de penitência a ser

percorrido pelo cristão em sua trajetória de fé:A Bíbl ia apresenta Jesus como a face do so l ao me io-d ia . O que a Igre ja Cató l ica f az é o opos to . É como se eu fosse v i s i t a r um parente te rminal de cânce r e , pouco tempo antes de le [s ic] morrer , eu t i rasse fo togra f ia do rapaz , em coma, semimorto . E pegasse aque la fo togra f ia , p in tasse um quadro , f i zesse uma imagem de gesso e l evasse para sua casa e co locasse no lugar mais apa rente da casa [ . . . ] Passa- se a idé ia de que , se e le sof reu , não há mal a lgum no f ie l sof re r t ambém. Então a humanidade passa a ace i ta r a der ro ta como uma coisa na tura l . Como as re l ig iões não a tendem a necess idade das pessoas que es tão sofrendo, e la s se jus t i f icam dian te de las com uma imagem de a lguém que supos tamente fo i de r ro tado . “Olha , vocês e s tão no fundo do poço , Jesus t ambém es teve e n inguém sa lvou . Es tá l á , morreu .” Es ta idé ia faz com que as pessoas aca tem os seus sofr imentos , ace i tem os seus ca rmas ou sua desgraça como uma c ruz . 6 6 3

Pesquisas nas manchetes da Folha Universal também evidenciam atitudes

de denúncia da IURD ao catolicismo:His tór ias do c lero romano: padre por tuguês recolheu ofe r tas e enganou o povo (120) ; Arcebispo ca tó l ico preso por sedução de meninos (146) ; Padre ca tó l ico abusava de meninos (130) ; Desvios e

661Revista Veja, São Paulo, 06 dez. 1995.662 Folha Universal, Rio de Janeiro, 19 out. 1997, p. 2663 Revista Veja, São Paulo, 06 dez. 1995.

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poder do c lero ca tó l ico em Por tugal (120) ; Fundador de Movimento Car i smát ico acusado de abuso sexua l (125) ; Padres pe rseguem a IURD em Piedade (124) ; O papa não é infa l íve l (127) ; Decl ín io do papado (174) ; IURD anive rsar ia sob perseguição ca tó l ica (118) ; Perda de f i é i s e desespero da Igre ja Ca tó l ica (171) ; B ispo ca tó l ico se torna pa i (170) ; O cu l to de Mar ia na Igre ja Cató l ica (168) ; Padre ca tó l ico es tuprava mulheres em Ruanda (174) ; Cardeal -pr imaz des t i la ód io cont ra a IURD (193) . 6 6 4

Inegavelmente, um dos ápices dos conflitos envolvendo o catolicismo deu-

se no dia 12 de outubro de 1995, quando o bispo Sérgio von Held chutou a imagem de Nossa

Senhora Aparecida em seu programa na TV Record. Em uma cerimônia religiosa, o bispo “se

referia com horror aos descaminhos idólatras da fé católica em sua adoração a uma imagem

de barro”, empreendendo chutes numa “imagem que a representava”, observa Montes, que

dimensiona o alcance desse ato para exigências de novas compreensões envolvendo o

sagrado:Tal ges to v i r i a a es t i lhaça r e ssa p iedosa imagem, e os ecos do escândalo por e le susc i tado se es tenderam por meses a f io , surpreendendo a opin ião e obr igando os especia l i s ta s a repensa r a conf iguração do campo re l ig ioso bras i l e i ro às vésperas do te rce i ro milên io . 6 6 5

A Rede Globo de televisão multiplicou as imagens em nível nacional,

mostrando Von Helde chutando a imagem da padroeira do Brasil. Naquele dia, via Embratel,

a televisão brasileira transmitiria para todo o país, ao vivo e em cores, a imagem do que seria

considerado um ato de profanação e quase uma ofensa pessoal a cada brasileiro - dada a

importância daquele símbolo de fé, como já observado nesta pesquisa - provocando enorme

indignação popular e mobilizando em defesa da Igreja Católica não só sua hierarquia como

também figuras eminentes de praticamente todas as religiões, além de levantar uma enorme

polêmica inédita nos meios de comunicação sobre uma instituição religiosa no Brasil.666

Em relação às denominações do protestantismo clássico, a IURD polemiza

ao ressaltar a ineficiência dessas igrejas em se atualizar em seu culto e liturgia, assim como

estabelecer maior proximidade com as camadas mais populares. Em um artigo publicado pela

Revista Plenitude, pode-se ler a referência feita, por exemplo, ao caso metodista: A Igre ja Metodis ta t em cerca de 250 anos e apesar d i sso seu c resc imento vem se dando a passos de t a r ta ruga pe lo

664Os números entre parênteses referem-se às edições do jornal Folha Universal utilizados para a pesquisa. Exemplares disponíveis no Centro de Documentação e Pesquisa Histórica – FTSA, Londrina - PR.665 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 65.666 O bispo Von Helde recebeu uma pena de dois anos de prisão domiciliar em regime aberto por causa deste episódio. Como era réu primário, cumpriu em liberdade. Cf. Revista Eclésia, Rio de Janeiro, ano V, n.50, p. 11, jan. 2000.

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t rad ic iona l i smo da igre ja que tem quase a mesma l i tu rg ia desde a sua fundação . Os metodis ta s va lor izam em seus sermões o rac ioc ín io lóg ico , o profundo conhec imento teo lógico e as mús icas da Idade Média , a fas tando com i sso o povão dos seus t emplos . Uma pessoa humilde aprove i ta pouco desses cu l tos . 6 6 7

Há entre os pastores da IURD muitas reservas quanto ao que chamam de

“pastores intelectuais” - uma referência aos líderes de outras denominações protestantes que

prezam pela formação teológica. Chegam até mesmo a ultrapassar os preconceitos já

cultivados pelos demais grupos pentecostais. Respondendo a críticas de pastores protestantes,

mencionadas em artigo na Folha de S. Paulo,668 o então influente Bispo Rodrigues, da Igreja

Universal, usou as seguintes palavras: “É muito fácil ficar num amplo gabinete escrevendo

teses de doutorado e acusando outros pelos jornais (...) Para mim tem mais valor a pessoa que

dá a vida pelo que crê e luta por aquilo que acredita ser o melhor, do que um sujeito cheio de

pós-graduação, que se contenta com meia dúzia de fiéis”.669

O bispo Macedo ao se referir aos líderes de outras igrejas evangélicas é

contundente ao afirmar que estariam, “ingênua e irresponsavelmente” pregando o evangelho

“água com açúcar”:A culpa do fa to de o Diabo e seus an jos es tarem a rru inando a v ida das pessoas , mui tas vezes , r es ide nos l íderes re l ig iosos evangé l icos que não minis t ram o poder de Deus na v ida das pessoas . P regam apenas o evangelho “chocola te” , ou água com açúcar e não l ibe r tam verdadei ramente a s pessoas da inf luência dos demônios . 6 7 0

Nesse aspecto, ele aponta para o que entende ser diferencial nas práticas da

Igreja que comanda:A Igre ja Unive rsa l do Reino de Deus tem consc iência da supremacia da f é em re lação à r azão ( . . . ) Talvez esse se ja um dos aspec tos mais impor tan tes que a f azem di fe ren te de out ras organizações r e l ig iosas ( . . . ) Cr i s to passou mui to ma is t empo expulsando demônios e curando miraculosamente as pessoas do que pregando se rmões ou d i s t r ibu indo comida pa ra os pobres ( . . . ) . 6 7 1

O depoimento de outro bispo da Igreja também destaca a inovação da

mensagem iurdiana:A IURD veio pa ra a tender aos perd idos . Os cu l tos pro tes tan tes eram t rad ic iona is , não d iz iam nada ao coração das pessoas . Repent inamente , a IURD se espa lhou pelo mundo. Nossa Igre ja ve io para mos t ra r a Bíb l ia e in terpre tá- la àqueles que não a

667 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 66, p. 28, 1999. 668 Folha de S. Paulo, São Paulo, 01dez. 1995.669 Folha Universal, Rio de Janeiro, 28 jan. 1996.670MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro: Graça Editorial, 1988, p. 131.671 Folha de S. Paulo, São Paulo, 01 out. 1995.

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compreendem. Falem bem ou mal , mas IURD consegue toca r no coração das pessoas porque mexe lá no fundo da fer ida . Es tamos sempre com as por ta s aber ta s de segunda a segunda aber tas pa ra que o mundo possa encont ra r -se com Deus . Atendemos todos os t ipos de pessoas com seus re spect ivos problemas . 6 7 2

Até mesmo em relação ao pentecostalismo clássico são contundentes as

palavras de Edir Macedo:Temos de sa i r da mera pregação pentecos ta l , que es tá na moda, pa ra a pregação p lena . Temos que sa i r por a í d izendo que Jesus Cr i s to sa lva , ba t iza com o Espí r i to Santo , mas também, e an tes de tudo , que l iber ta as pessoas que es tão opr imidas pe lo d iabo e seus an jos . ( . . . ) Seus membros não se a l i s tam no comba te cont ra as po tes tades e passam a se preocupar com jogos , passa tempos , d ive rsões , ou no out ro ex t remo, com as “ves tes dos san tos” . 6 7 3

Também são combativas e duras algumas palavras da IURD em relação ao

comportamento de líderes de outras igrejas que tecem críticas ou fazem oposição à Igreja

Universal, assegurando que procedem assim instigados e manipulados por “espíritos

enganadores”:Nós, membros e pas tores da Igre ja Univer sa l , t emos enfren tado enormes d i f i cu ldades pa ra serv ir ao nosso Senhor com almas . Nossa maior lu ta t em s ido cont ra os e sp ír i tos enganadores a tuantes nos pas tores de out ras denominações . [ . . . ] em todos os pa í ses do mundo onde temos abe r to a s por ta s da Casa do Deus de Abraão , t emos encontrado en tre os d i tos “evangél icos” grande número daque les que usam a Bíb l ia , não para sa lvar perd idos, mas para vac iná- los cont ra o t raba lho da Igre ja Unive rsa l do Reino de Deus . 6 7 4

Mas a ação dos profetas iurdianos também se voltou de maneira

contundente contra outras expressões de crença que igualmente disputavam o capital

simbólico com o propósito de ganhar legitimidade e reconhecimento no campo. Foi assim

que ao se expandir para a Bahia, principal reduto brasileiro de cultos africanos, no início dos

anos 80, a IURD promoveu vários conflitos com adeptos do candomblé, cometendo até

mesmo um equívoco cultural, porque não se deu conta inicialmente da existência de suas

peculiaridades em relação à umbanda. Tais polêmicas ganharam, inclusive, instâncias

judiciais, tematizando liberdade de culto, disputas por espaços e símbolos religiosos.

Quando se refere ao combate contra as forças do mal, personificados

sobretudo nos cultos afro-brasileiros, a IURD usa a expressão “guerra santa”, tanto em suas

literaturas como em suas campanhas. Em junho de 1994, por exemplo, durante uma semana

se divulgou no rádio e na TV a realização da “Guerra Santa Contra a Macumba”. Essa 672 R. A., bispo da IURD em Londrina. Depoimento a mim concedido, Londrina, set 2004. Gravação em K7, transcrita para uso como fonte. 673MACEDO, E. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, p. 131, 133, 138.674Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 82, 2002.

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atitude, na verdade, caracteriza a Igreja Universal desde o seu nascimento, especialmente nas

primeiras décadas de seu funcionamento. Um dos elementos que credenciava com êxito o

pastor da IURD era a habilidade e ousadia que tal líder demonstrava para fechar um certo

número de terreiros de candomblé e umbanda. E, envolvidos pelo “espírito militante dos

fiéis”, notabilizavam-se por “agredir a golpes de Bíblia pais-de-santo e iaôs em dia de festa

de terreiro”.675 Nélson de Omulu, pai-de-santo, descreve alguns dos conflitos e agressividades

cometidos por líderes e fiéis contra os cultos afro:Primeiro , e le s só a tacavam nas rád ios . Depois começaram a invadi r t e r re i ros . Agora , e le s reso lveram bagunçar nossas fes tas . Aconteceu i sso na fe s ta do f ina l do ano passado , quando o Bispo Macedo e seus seguidores (cerca de 15 mi l ) invadiram a Pra ia do Leme, com aque les a l to- fa lan tes , para dest ru i r nossas homenagens a Iemanjá . Na fes ta da cr iança , que a gente rea l izou na Quin ta da Boa Vis ta , os evangél icos quebraram vár ias imagens e queimaram a té roupas de san to . 6 7 6

Na Folha Universal é também possível se observar manchetes polêmicas

em relação aos cultos afro-brasileiros:Violação de sepul turas e de cadáveres (156 ,196) ; Exus ex igem que médium se re ta lhe (175) ; Necrof i l ia de ex-pai -de -santo (130) ; Lula ape la para o candomblé (118) Espi r i t i smo es t imulava Jocemar a se r gay (129) ; Revei l lon de Iemanjá promove su je i r a , v io lência e mald ição (195) ; Fa lsos mi lagres esp í r i t as (113) .

A revista Plenitude trouxe recentemente reportagem intitulada “ocultismo”,

alertando sobre “as armadilhas” que as festas escondem, quando possuem significado

religioso: Muitas fes tas passaram a fazer par te da cu l tura brasi l e i ra , a lgumas or iundas de outros pa íses . Quero chamar a a tenção pa ra os pe r igos e sp i r i tua i s e a té mesmo f í s icos pa ra a lgumas dessas fes ta s . Temos casos de pessoas que sumiram e após a lgum tempo foram encontradas mor tas . Após inves t igações rea l izadas fo i poss íve l a ssocia r essas mor tes a de te rminada ‘ fes ta ’ . A popular fes ta de Cosme e Damião , por exemplo , apa rentemente inofens iva e car idosa , e sconde o fa to de que os doces e br inquedos , an tes de serem dis t r ibu ídos à s c r ianças são oferec idos à s en t idades e sp ir i tua is . Já ouvimos mui tas pessoas declararem que após a par t i c ipação de las ou de seus f i lhos nes ta fes ta anual , surg i ram vár ios problemas . 6 7 7

Em artigo, na Folha Universal, intitulado “Macumba, religião ou folclore?”,

a IURD explica que a macumba de hoje tem sua origem na tradição africana. “Macumba vem

do idioma quimbundo, e significa fechadura, cadeado, provavelmente ligada aos ritos e

675 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 137.676O Globo, Rio de Janeiro, 23 out. 1988.677 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 124, p. 39, out. 2005.

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banhos de fechamento do corpo, praticados no sentido de proteger contra o mau olhado” –

ressalta-se. Registrando que a inserção desses ritos e práticas se deu pela presença dos

escravos no Brasil colonial, o artigo destaca que houve uma união pragmática dos ritos da

natureza, que foram trazidos da África pelos negros escravos, com a religião católica romana

e crendices indígenas. Assim, rápidas fusões e amalgamações com outros ritos, como o

Cabula, Catimbó e a Pajelança, teriam contribuído para que esses cultos se expandissem

rapidamente pelo país, sobretudo após o fim da escravidão, quando uma boa parte dos cultos

passaram a ser feitos sem maior repressão, facilitando a abertura de inúmeros terreiros.

Finalizando a abordagem do tema, a matéria apresenta então o resultado final do

desenvolvimento dessas crenças em solo brasileiro:Com sua magia pe rve rsa exe rce inf luênc ia ma l igna nos quat ro cantos do pa ís . Mi lhares de pessoas de todas a s c lasses soc ia i s r ecorrem a seus sor t i l ég ios . Pol í t i cos e a r t i s ta são os melhores e mais a ss íduos c l ien tes , j á que recor rem a esse subte r fúgio para r eso lve r problemas de amor , ód io e in te resses e scusos . 6 7 8

Inúmeras polêmicas também têm sido desencadeadas pelo livro Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios? - de autoria do bispo Macedo. A Justiça Federal da

Bahia determinou recentemente a suspensão da venda do livro: uma ação civil pública foi

movida sob alegação de ser literatura ofensiva e preconceituosa em relação às religiões afro.

A juíza Nair Cristina de Castro determinou que a IURD e a Editora Gráfica Universal

retirassem em 30 dias os livros do mercado, sob pena de multa diária de R$ 50 mil. A Justiça

considerou a obra “abusiva e atentatória ao direito fundamental”, não apenas aos adeptos das

religiões originárias da África e aqui absorvidas culturalmente, como afro-brasileiras, “mas

da sociedade, no seu genérico prisma, que tem direito à convivência harmônica e fraterna, a

despeito de toda a sua adversidade (de cores, raças, etnias e credos)” – declarou a

representante do poder público.679

Ao apresentar a referida obra ao público leitor, Macedo usa as seguintes

palavras: “é impossível a um praticante do espiritismo ler esse livro e continuar na sua

prática. Todas as áreas do demonismo são postas a descoberto neste livro; todos os truques e

enganos usados pelo diabo e seus anjos para iludir a humanidade são revelados”. No prefácio

da obra, Macedo é apresentado pelo editor da seguinte maneira: Poucas pessoas es tão tão bem qual i f i cadas para fa la r desse assunto quanto o b i spo Macedo. Ele tem se empenhado fer renhamente , por mui tos anos , na obra de l ibe r tação . Quem o conhece pessoa lmente se contag ia com sua ardente f é , po i s dedica toda sua v ida a lu ta r contra

678 Folha Universal, Rio de Janeiro, 14 set. 2005. 679 Jornal da Manhã, Marília - SP, 13 nov. 2005, p. 6

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os demônios , pe los qua is tem repugnânc ia e r a iva . Esse homem, que Deus levantou nesses d ias pa ra uma obra de grande vul to no cenár io evangel í s t i co nac iona l e mundia l , conhece todas as ar t imanhas demoníacas . Seu f reqüente conta to com pra t ican tes do esp ir i t i smo, nas suas ma is d iver sas ramif icações , faz com que se ja um grande conhecedor da maté r ia . At ravés dos ve ícu los de comunicação e das igre jas que tem es tabe lec ido pe los r incões de nossa pá t r i a e no exter ior ( . . . ) . Nes te l iv ro , denunc ia as manobras sa tân icas a t r avés do kardeci smo, da umbanda , do candomblé e ou t ras se i t a s s imi la res ; coloca a descober to a s verdadei ras in tenções dos demônios que se f azem passa r por or ixás , exus , e rês , e ens ina a fórmula pa ra que a pessoa se ja l ibe r ta do demônio que a domina . 6 8 0

Também na introdução da referida obra há um alerta quanto a uma possível

polêmica a ser desencadeada pela leitura: “o diabo e seus demônios irão se levantar com

todas suas forças contra o bispo Macedo e toda a Igreja Universal, pois sabem que terão de

contabilizar grandes perdas”.681 Durante a exposição do texto, Macedo faz a seguinte

afirmação: “há muito tempo venho orando por pessoas que tiveram ligações com o

espiritismo nas suas diversas facetas”. Ressalta que milhares de pais e mães-de-santo “se

transformaram em cristãos sinceros e tementes a Deus”, após participarem de reuniões da

Igreja Universal. “Nossa igreja foi levantada para um trabalho especial, que se salienta pela

libertação de pessoas endemoninhadas” – afirma, acrescentando: “nossa experiência tem sido

muito vasta nesse campo e grande é o número de pessoas que nos procuram pedindo

esclarecimentos a respeito de tão discutido assunto”.682 Macedo não esconde o seu desejo de

ver os líderes religiosos de cultos afro-brasileiros sendo encaminhados para atuar em sua

igreja: Dedico es ta obra a todos os pa i s -de -santo e mães-de -santo da nossa pá t r i a , porque e le s , mais do que qualquer pessoa , merecem e prec i sam de um esc la rec imento . São sace rdotes de cu l tos como umbanda, qu imbanda e candomblé , que es tão na ma ior ia dos casos bem-in tenc ionados . Poderão usar seus dons de l iderança ou de sacerdócio , corretamente , se forem instruídos . Mui tos de les ho je são obre i ros ou pas tores das nossas igre jas , mas não o se r iam se Deus não levantasse a lguém que lhes d issessem a verdade . 6 8 3 [g r i fos nossos]

Atribuindo ao Demônio a origem dos cultos afro, Edir afirma: O povo bras i l e i ro herdou, das prá t i cas re l ig iosas do índ ios na t ivos e dos e scravos or iundos da Áfr ica , a lgumas re l ig iões que v ieram mais t a rde a ser r eforçada com dout r inas esp i r i tua l i s ta s , e so té r icas e t an tas ou t ras . Houve, com o decorrer dos séculos um s inc re t i smo re l ig ioso , ou se ja , uma mis tura cur iosa e d iaból ica de mi to logia a f r icana , ind ígena bras i le i ra , esp i r i t i smo e cr i s t ian i smo, que cr iou

680 MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, p. 2.681 Id., ibid.682 Id., ibid., p. 9.683 Id., ibid., p. 10.

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ou favoreceu o desenvolv imento de cu l tos fe t i ch i s tas como a umbanda, a qu imbanda e o candomblé . 6 8 4

Macedo é incisivo em sua afirmação ao dizer que,

no Bras i l , em se i ta s como o vodu, macumba, qu imbanda, candomblé ou umbanda, os demônios são adorados , agradados ou serv idos como verdadei ros deuses ; no esp i r i t i smo mais sof i s t icado , e le s se mani fes tam ment indo , a f i rmando se rem esp í r i tos de pessoas que já morre ram. Na maior ia desses cu l tos os esp í r i tos são invocados pa ra presta r car idade , se ja pra t i cando curande i r i smo ou t ransmit indo mensagens que vão “ i luminar os adeptos , ou a inda , para rea l izar a lgum fe i to ex t raord inár io” 6 8 5

Associando os cultos afro ao catolicismo folclórico, o bispo afirma:Quando os pr ime iros e sc ravos chegaram ao Bras i l , t rouxeram com e les a s se i ta s an imis tas e fe t i ch is tas que permeavam seus pa í ses de or igem na Áfr ica . Para ev i tar a t r i tos com a igre ja ca tó l ica , os e sc ravos que pra t icam macumba , insp i rados pe las própr ia s en t idades demoníacas , passaram a re lac ionar os nomes de seus deuses ou , para f ica r ma is c laro , demônios , com os san tos da igre ja ca tó l ica . Por i sso , os nomes dos demônios e s ta rem assoc iados a san tos , como são os casos de São Jorge , que representa Ogum; a Vi rgem Maria que representa Iemanjá . 6 8 6

Os conflitos com as crenças afro também ganharam as dimensões dos meios

de comunicação de massa. Recentemente, a Justiça condenou duas emissoras controladas por

Macedo, a TV Record e a Rede Mulher, por descriminação:A Record e Rede Mulher foram condenadas pe la Jus t i ça por d i sc r iminação contra re l ig iões a f ro-bras i l e i r as e seus pra t ican tes . As emissoras t ransmitem programas da IURD, cons ide rados pe la Jus t i ça ofens ivos à l ibe rdade re l ig iosa . Como d ire i to de re spos ta , t e rão de t ransmi t i r durante se te d ias consecut ivos programas de uma hora sobre os cu l tos t raz idos ao Bras i l pe los esc ravos . 6 8 7

De acordo com a 5ª Vara Federal Cível de São Paulo, não houve como

negar o ataque feito às religiões de origem africana e às pessoas que as praticam ou que delas

são adeptas. Segundo a juíza responsável pelo caso: “Nos programas gravados há

depoimentos de pessoas que antes eram adeptas das religiões afro-brasileiras e se

converteram; nos templos da nova religião essas pessoas realizam sessões de descarrego ou

consultoria espiritual. Assim, é de se concluir que não negam as tradições e os ritos de

religiões de matriz africana, porém afirmam que nos terreiros os seguidores praticam o mal, a

feitiçaria e a bruxaria”.688

684 Id., ibid., p. 13.685 Id., ibid., p. 14, 15.686 Id., ibid., p. 44.687 Folha Online. www1.folha.uol.com.br . Acesso em: 14 maio 2005.688 Jornal da Manhã, Marília – SP., 20 nov. 2005, p. 2.

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A IURD, evidentemente, também se defende. Em matéria publicada com o

título “A censura está de volta ao Brasil?”, a Folha Universal encampa a defesa do livro

Orixás, Caboclos e Guias, com quase três milhões de exemplares comercializados. A

reportagem cita a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5º, para afirmar a liberdade de

expressão e manifesta ainda o temor pela volta de algum tipo de censura aos meios de

comunicação.689

É preciso considerar que as perseguições às crenças religiosas e práticas

rituais de origem afro-ameríndia era já um fato empreendido pelo catolicismo desde os

tempos coloniais. Onde a atitude iurdiana inova é na operação de apropriação reversa que faz

dessas religiões. O que se exorciza é o conjunto das entidades do panteão afro-ameríndio

incorporado às crenças populares, das devoções e práticas mágico-rituais do catolicismo

ainda conservadas às religiões de negros e mais recentemente apropriadas pelos estratos

médios das populações urbanas:O que os r i tos neopentecosta is supõem, e põem em ação , é um profundo conhecimento dessas out ras cosmologias que sus ten tam ta i s re l ig ios idades , ass im como as t écn icas de produção e manipulação do t r anse das re l ig iões de possessão . Sob a mesma forma r i tua l gera lmente j á conhecida pe lo f i e l nos t e r re i ros de candomblé e de umbanda, as en t idades do panteão af ro-bras i l e i ro são chamadas a incorporar - se pa ra , depois de “desmascaradas” como f iguras demoníacas enviadas por a lguém conhecido pa ra f azer um t rabalho cont ra a pessoa , se r devidamente “exorc izadas” e submet idas à in junção de não mais vo l tar a a tormenta r aquele e sp í r i to , pe lo poder de Deus . 6 9 0

Por outro lado, em sua curta trajetória histórica, a Igreja Universal

também tem sido alvo de combate por parte de outros segmentos religiosos, sobretudo das

religiões institucionalmente estabelecidas no campo, que lhes atribui o estigma de magia,

vendo em suas práticas “heresias” e usurpação da “legitimidade” sacerdotal ou pastoral.

Neste aspecto, desde os primeiros momentos de sua aparição, o emprego pela IURD do título

de “bispo” ao invés de “pastor” – até então um clichê no protestantismo brasileiro – já soava

não apenas como uma ousadia, mas como usurpação. Os combates também envolveram

questões “teológicas”. Julgando-se depositários da verdade e da ortodoxia, catolicismo e

protestantismo brasileiros voltaram-se a partir daí contra um inimigo comum que lhes

ameaçava, passaram a referir-se em tom depreciativo às práticas vivenciadas pela Igreja

689 Folha Universal, Rio de Janeiro, 27 nov. 2005, p. 6.690 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p.122, 123.

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Universal sob alegação de não ter ela teologia691 nem coerência doutrinária com a leitura que

faz dos textos bíblicos pelo fato de não utilizar métodos hermenêuticos ou exegéticos

adequados para a leitura e interpretação da Bíblia. Assim, com uma mensagem caracterizada

“profética” – porque inovadora e contestatória em relação à religião estabelecida - o

“profeta” e seus discípulos iurdianos passaram a ser duramente combatidos pelos

“sacerdotes”: A força de que d i spõe o profe ta (empresár io independente de sa lvação) cu ja pre tensão cons is te em produzi r e d i s t r ibu i r bens de sa lvação de um t ipo novo e propenso a desvalor iza r os an t igos ( . . . ) depende da ap t idão de seu d i scurso e de sua prá t i ca pa ra mobi l i za r os in teresses re l ig iosos v i r tua lmente heré t icos de grupos ou c lasses de terminantes de l e igos , g raças ao e fe i to de consagração que o mero fa to da s imbol ização e de expl ic i t ação exerce . 6 9 2

Da parte do protestantismo clássico, por exemplo, devido ao balizamento

feito por dogmas com forte apelo à razão e pouco propenso para lidar com elementos da

cultura folclórica, líderes da IURD passaram a ser acusados de charlatanismo, e seus

prodígios de curas e exorcismo foram atribuídos ao próprio demônio, capaz de “imitar a

graça divina”.693 Assim como no estudo sobre a crença no milagre régio, feito por Marc

Bloch em Os Reis Taumaturgos - em que a Igreja usou o conceito de “superstição” para

condenar as crendices que contrariavam a ortodoxia ou dela se desviavam, empregando

definições como a de “equívoco coletivo”, “representações” infantis do povo”694 - a opinião

emitida por um pastor presbiteriano retrata semelhante hostilidade e posicionamento

ortodoxo combativo do protestantismo em relação à IURD:Conside ramos um absurdo pessoas se in t i tu lando pas tores , miss ionár ios , abençoando copos de água , gravando orações de cura d iv ina , e lementos que , tomados e ouvidos , cura r iam toda e qualquer doença ( . . . ) P ior a inda: anunc iam espalhafa tosamente grandes concent rações em es tád ios com dia marcado e hora de terminada , garan t indo que o Espí r i to Santo es tará presente pa ra curar todas a s enfermidades e so luc ionar todos os problemas . Além das sedes dessas igre jas , em cuja por ta é co locado o expedien te para

691 O protestantismo clássico, de modo geral, conceitua teologia nos seguintes termos: “Uma visão de mundo expressa por um grupo de fiéis, uma teia de palavras, símbolos e atos elaborados à luz de suas experiências religiosas, discurso esse nem sempre regido pela lógica cartesiana. Como tal, a teologia transcende a reflexão individual, porque ela é uma atividade grupal, objetivada em dogmas, ritos ou meios catequéticos. Além disso, toda teologia tem por finalidade explicar a especificidade de suas relações com o sagrado, enquanto apresenta as experiências históricas do grupo, que a formulou como um modelo de vida para todas as demais pessoas”, cf. CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 327.692 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 49.693 Isto foi o que também ocorreu em relação ao rito do toque régio, estudado por Marc Bloch, quando afirma que na Inglaterra e na França este ritual sofreu fortemente o ataque do protestantismo, sob a acusação de ser aquele milagre uma atribuição dos demônios, capazes de imitar os prodígios divinos. Cf. BLOCH, M. Op. cit., p. 270.694 GURIÊVITCH, A. Op. cit., p. 45.

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a tendimento dos in te ressados , como se o Espí r i to Santo fosse um execut ivo à d i spos ição de ta is min is t ros ( . . . ) . 6 9 5

Quando ocorreu, por exemplo, o episódio conhecido “chute na santa”, a

Associação Evangélica Brasileira (AEVB) - com sede na cidade do Rio de Janeiro, então

presidida pelo pastor presbiteriano Caio Fábio D’Araújo Filho - fez um pronunciamento

oficial na imprensa, além da elaboração de um documento, assinado pelos diretores,

conselheiros e secretários da AEVB e também por cerca de quarenta pastores de diversas

denominações evangélicas.696 Esse pronunciamento objetivou distinguir as igrejas

evangélicas da IURD, ressaltando que nas práticas desta há “elementos radicalmente

contrários à fé evangélica e ao melhor da herança bíblica da igreja protestante e pentecostal”,

acrescentando ainda que existem “imensas e irreconciliáveis diferenças entre as práticas da

maioria dos evangélicos e a IURD”. Como exemplo , destacava algumas questões que se

referiam: à doação de dinheiro para alcançar bênçãos; ao seu método de levantar fundos; à

aceitação de entidades dos cultos “afro-ameríndios” tal qual estes as concebem; ao “uso de

elementos mágicos dos cultos e das superstições populares do Brasil” como “sal grosso”,

“rosa ungida”, “água fluidificada”, “fitas e pulseiras especiais”, “ramo de arruda” e “uma

quantidade enorme de apetrechos”. Caio Fábio também afirmou na ocasião:As prá t icas da Igre ja Universa l ge ram um const rangimento profundo no meio evangél ico ( . . . ) A Igre ja é uma máquina de a r ranca r d inhei ro dos f i é i s ( . . . ) e la é o pr ime iro produto de um s incre t i smo surg ido en tre os evangél icos bras i l e i ros , é uma ve rsão cr is tã da macumba . 6 9 7

A chegada da IURD ao campo de Londrina, no final da década de 1980,

reeditou conflitos observados em outras regiões do país. A sua presença também se tornou

“incômoda”, causando impacto e provocando reações por parte das demais igrejas já atuantes

na cidade. A Universal representava uma concorrência com proposta “diferente”, dada a sua

agressividade e inovação, o que levava as demais denominações a se sentirem ameaçadas e

com dificuldades para competir em pé de igualdade com o novo fenômeno. Por isso, a

primeira estratégia de defesa foi a de empreender veementes críticas às práticas iurdianas,

classificando-as como “perigosas” à fé cristã, sob o argumento de serem muito parecidas com

o “espiritismo”, e também de “oferecer milagres em troca de dinheiro”. As afirmações 695 Palavras de Roberto Vicente Cruz Themudo Lessa, pastor presbiteriano, em entrevista jornalística, 24 ago. 1978. Apud CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing e eum empreendimento neopentecostal, p. 177.696 Documento com cópia impressa disponível para pesquisa no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica - CDPH, da Faculdade Teológica Sul Americana, em Londrina – PR.697 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 68.

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provinham dos pastores, que se utilizavam de seus púlpitos e de programas de rádio para

alertar os seus respectivos rebanhos. O próprio Conselho de Pastores de Londrina chegou a

fazer pronunciamentos oficiais e emitir notas que questionavam a “identidade evangélica” da

igreja liderada por Macedo.

Mais recentemente, no ano de 2006, a IURD concorreu à compra de um

grande terreno existente no centro da cidade, onde intenciona construir a “Catedral da Fé do

Norte do Paraná”, projeto arquitetonicamente já elaborado. Entretanto, no processo de

licitação, mesmo fazendo uma proposta financeira superior aos valores feitos pelos demais

concorrentes – no caso, grandes grupos do setor comercial – a aquisição do terreno está

embargada devido à articulação de moradores da região, apoiados por lideranças católicas, e

de estabelecimentos comerciais localizados nas proximidades, que se opõem à construção de

um templo religioso naquele endereço. O processo, por esse motivo, tramita na Justiça e a

IURD luta por fazer valer seu direito de compra do terreno.

Semelhante reação proveio da Igreja Católica que passou a perder milhares

de seus fiéis para os segmentos evangélicos. Reportagens jornalísticas, no início dos anos 90,

apontavam para o poder de arregimentação e atração exercida por tais movimentos sobre

adeptos do catolicismo romano:Mais de se iscentas mi l pessoas , por ano , abandonam o ca to l ic i smo para jun ta r - se a uma igre ja evangél ica . A mensagem pregada pe las se i t as evangé l icas é mui to mais s imples e me lhor do que a mensagem do Ca to l ic i smo, que pregava por meio dos padres de esquerda , uma maior par t i c ipação pol í t ica . 6 9 8

Tendo historicamente marcado o país, ajudando a configurar um conjunto

de valores, crenças e práticas, por aproximadamente cinco séculos, o catolicismo percebia

cada vez mais que seu controle institucional e seu conjunto de doutrinas - que se propunham

definir de modo coerente os limites e as intersecções entre a vida pública e a vida privada -

não eram tão incontrastadamente hegemônicos como se ostentava. Por isso, vê-se obrigada a

reagir, partindo em busca da modernidade e das linguagens contemporâneas da fé, que já

haviam sido dominadas pelos novos grupos pentecostais, através do controle dos meios de

comunicação de massa. Busca-se, ao mesmo tempo, vigor interior da crença, da experiência

da exaltação da fé e do transporte espiritual diante do milagre como diretriz para uma

recuperação de uma dimensão privada da experiência religiosa, inteiramente íntima e pessoal.

Isso gerou uma outra “aproximação a contrapelo com o pentecostalismo”, representada, por

698 Revista Veja, São Paulo, 16 maio 1990, p. 40-44.

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exemplo, pelo fortalecimento e progressiva expansão da Renovação Carismática Católica.699

“É o movimento carismático que vai fortalecer a Igreja Católica contra os avanços das

seitas”, dizia, em 1990, Claudionor Erasmo Peixoto, diretor regional da renovação

carismática em São Paulo.700

A redefinição de seu papel numa sociedade cada vez mais pluralista em

termos religiosos fez que, em 1982, o setor de ecumenismo e diálogo inter-religioso da

CNBB (Conferência Nacional de Bispos do Brasil), a pedido do Vaticano, passasse a

pesquisar o fenômeno.701 Em 1995, o Conselho Pontifício para a família e a Comissão

Pontifícia para a América Latina se reuniram em Petrópolis - RJ, para discutir o que fazer

“diante dos desafios das seitas”. Face a ampla “pesquisa de mercado”, a hierarquia Católica

passou a agir, não hesitando em se apropriar de certas estratégias dos concorrentes: ampliar a

utilização dos meios de comunicação de massa; oferecer maior abertura à participação dos

leigos nas celebrações; revalorizar as tradições populares e as pastorais sociais e de saúde;

renovar as liturgias; promover a abertura de novos ministérios; tornar os sacerdotes mais

disponíveis ao povo; incentivar vocações sacerdotais e conceder maior espaço à

expressividade emocional nos cultos, também foram estratégias adotadas. Enfim, a Igreja

Católica, reconhecendo que perdia o “seu” espaço, também entrou na moderna estratégia do

marketing religioso.

Todos esses movimentos no campo religioso, como anteriormente descritos,

tornam-se possíveis porque nele existem “tensões e forças vivas”, com potencialidades de

promover mudanças, sendo que algumas são propícias a inovações ou até mesmo,

“revoluções”, como afirma Bourdieu: O espaço dos poss íve i s rea l iza- se nos ind iv íduos que exercem uma a t ração ou uma “ repulsão” , a qua l depende do “peso” de les no campo, i s to é , de sua v i s ib i l idade , e da maior ou menor af in idade dos habi tus que leva a achar “s impá t icos” ou “ant ipá t icos” seu pensamento e sua ação . 7 0 2

Bourdieu considera em suas análises a possibilidade de haver, num dado

momento histórico, uma ruptura do que chama de “dominação” do poder simbólico que

699 Id., ibid., p. 80.700 Id., ibid.701A primeira pesquisa acusa principalmente governos de direita de fomentar a expansão de seitas “alienantes” e conservadoras do status quo na América Latina para dificultar a ação da igreja “progressista”. Em 1987, procurando evitar explicações simplistas ou preconceituosas, passou a pesquisar as causas mais profundas do fenômeno. E, depois que a Igreja Universal passou a comandar a Rede Record, a preocupação da cúpula Católica cresceu ainda mais, tornando a expansão das “seitas” tema quase constante das Assembléias Gerais da CNBB.702BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 55.

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determinados agentes ou instituições exercem sobre os que estão a eles agregados: “Os

dominados podem recusar progressivamente o que haviam incorporado, ou ainda, um

acontecimento brutal pode dilacerar o tecido ordinário da reprodução e introduzir uma crise

violenta”.703 Pode-se dizer, então, que líderes e fiéis iurdianos, “não são partículas

passivamente conduzidas pelas forças do campo”, mas “têm disposições adquiridas” pelo

habitus, isto é, “maneiras de ser permanentes, duráveis que podem, em particular, levá-los a

resistir, a opor-se às forças do campo”.704 Esse efeito se exerce em parte, por meio de

“confronto com as tomadas de posição de todos ou de parcela daqueles que também estão

engajados” nesse espaço de atuação, sendo fundamental para isto “encarnações entre um

habitus e um campo”.705

Em sua obra Coisas Ditas,706 esse autor amplia ainda mais a “imagem da

sociedade como um campo de batalha operando com base na força e no sentido”, ao afirmar

que:Os agentes que es tão em concor rênc ia no campo de manipulação s imból ica têm em comum o fa to de exercerem uma ação s imból ica . São pessoas que se e sforçam para manipular as v isões de mundo (e , desse modo, pa ra t ransformar as prá t i cas ) manipulando a e s t ru tura da percepção do mundo (na tura l e soc ia l ) , manipulando as pa lavras , e , a t r avés de las , os pr inc íp ios da cons trução da rea l idade soc ia l . 7 0 7

Assim, os agentes podem recriar esse espaço do qual fazem parte e estão

inseridos e, sob certas condições estruturais, transformá-lo:708 Descrevo o espaço socia l g lobal como um campo, campo de forças , cuja necessidade se impõe aos agentes que ne le se encontram envolv idos , e como um campo de lu tas , no in te r ior do qua l os agentes se enf ren tam. 7 0 9

Em relação às rupturas, Pierre Bourdieu observa que para se entrar no

campo acadêmico, por exemplo, são necessários títulos, certificados, havendo assim uma

objetividade dos mesmos quanto à permissão para que alguém seja considerado ou não

membro de um espaço acadêmico identificado com o mundo universitário. “Ritos

institucionais produzem a condição de ingresso na tribo dos filósofos (...); alguém se torna

‘filósofo’ pelo fato de haver sido consagrado”, garantindo para si o “estatuto prestigioso de

‘filósofo’” - exemplifica esse mesmo autor.710 Comentando este aspecto, Chartier afirma que 703CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 154.704BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência. Por uma sociologia clínica do campo científico, p. 26.705Id. Esboço de auto-análise, p. 55.706 Id. Coisas Ditas, p. 121-122.707 Id., ibid.708 Id. Razões práticas., p. 161.709 Id., ibid., p. 50.710 Id., Esboço de auto-análise, p. 41.

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o mesmo já não ocorre nos campos culturais, pois esses “não são juridicamente

codificados”.711 Assim, a inexistência de codificações formalmente estabelecidas faz com que

nos campos culturais se promovam lutas de representação, conflitos, na busca pela definição

e classificação de quem é considerado ou se considera participante legítimo.

Semelhantemente, pode-se dizer, “rivais num campo gravitacional regido por expectativas de

prestígio e consagração”,712 para produzir, proteger ou conquistar capital simbólico, os

agentes religiosos também acabam travando intensos conflitos e lutas no campo em que

atuam.

Em sua obra As Regras da Arte, Bourdieu analisa como esses conflitos, para

definir essas identidades, remetem à luta pelo direito ou pelo monopólio do poder da

consagração. Uma luta pela classificação, como observa Chartier:As representações s impl i s ta s e so l id i f icadas da dominação socia l ou da d i fusão cu l tura l devem então se r subs t i tu ídas por uma manei ra de compreendê- las que reconhece a r eprodução das d i ferenças no in te r ior dos própr ios mecanismos de imitação , a s concorrências dent ro das d iv i sões , a cons t i tu ição de novas d iv i sões pe los própr ios processos de d ivulgação . 7 1 3

Pode-se associar esses dinamismos ao conceito de representação, pois

permitem articular configurações múltiplas, “através das quais a realidade é

contraditoriamente construída pelos diferentes grupos”, práticas essas que “visam fazer

reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar

simbolicamente um estatuto e uma posição”, fazendo que sejam marcadas “de forma visível e

perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade”.714 E ainda nesse sentido,

Chartier afirma que um dos elementos mais essenciais do trabalho de Bourdieu era pensar

que as lutas de classe, que regem e organizam o mundo socioeconômico, sempre se

traduziam ou se nutriam das lutas de classificação, permitindo o direito de dizer a sua própria

identidade ou a do outro dentro do campo - espaço social no qual se situam as produções

simbólicas.715

Não obstante os esforços de controle empreendidos pelos agentes detentores

de capital institucional, há sempre espaço para que agentes rompam com tais protocolos e

promovam mutações, como se observa no comentário feito por Chartier ao lembrar que uma

das contribuições de Bourdieu para o trabalho historiográfico está no fato de

711 CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 142.712 BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, contra-capa.713 CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. Op. cit., p. 17.714 Id., A história cultural: entre prática e representações, p. 23.715 Id. Pierre Bourdieu e a História, p. 143.

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suger i r que , para cada obje to de aná l i se , devemos pensa r ao mesmo tempo no espaço , no campo de coe rção , de coações , de in te rdependênc ias que não são percebidas pe los ind iv íduos , e , ao mesmo tempo, loca l izar dentro dessa r ede de coações um espaço para o que chamava “sent ido prá t ico” , ou es t ra tég ia , ou a jus te às s i tuações – e que , inc lus ive , para ind iv íduos que têm as mesmas de terminações soc ia i s , não func iona de uma manei ra homogênea . 7 1 6

Dessa forma, o campo religioso pode ser entendido como o espaço em que

o conjunto de atores e instituições religiosas - em interação e conflitos - produzem,

reproduzem e distribuem bens simbólicos de salvação, ou seja, um “espaço especializado de

produção cultural”.717 Tais mudanças originam-se da própria estrutura nele existente, isto é,

das posições sincrônicas entre posições antagônicas no campo global, da posição na estrutura

de distribuição do capital específico de reconhecimento, posição esta fortemente

correlacionada entre o que é ortodoxo e o que é herético,718 pois a história do campo é “a

história da luta pelo monopólio da imposição das categorias de percepção e apreciação

legítimas; é a própria luta que faz a história do campo”.719 Assim, orientados por um habitus,

e tendo certa liberdade para agir, os líderes iurdianos acabam incorrendo no que se pode

chamar de “desvio”, devido ao comportamento que rompe ou se afasta de normas

estabelecidas pelos segmentos religiosos oficiais, o que os levou à organização de novos

espaços de atuação, promovendo intensas disputas pela classificação, autoridade e

legitimidade de atuação.

Todos esses fatores de conflitos, anteriormente mencionados, acabaram

contribuindo para que a IURD continuasse crescendo, instigando e promovendo mutações de

impacto no campo religioso brasileiro. Os fatos que pareciam ser grandes obstáculos para

essa igreja, acabaram revertendo-se, na verdade, em fatores que sedimentaram ainda mais a

força aglutinadora do movimento. Razão porque o hino oficial da IURD também traz como

tema principal a perseguição que o seu líder maior sofreu no país naquele momento em que

iniciava o que entendem ser o cumprimento de uma vocação, ou chamado divino, como a

própria IURD faz questão de ressaltar:A se r iedade e o compromisso com o Evange lho deram lugar a uma igre ja abençoada e f i e l aos seus membros . Mesmo encont rando no caminho pedras e t r ibu lações , a Igre ja nunca des is t iu de seu obje t ivo : levar a Palavra de Deus aos caren tes e desesperados . A cada d ia , B ispos e pas tores t r avam uma lu ta d i fe ren te com as forças ocul tas . Em todo lugar t em sempre a lguém em busca de paz in ter ior , p rec i sando das or ien tações desses homens de Deus. No en tan to , e le s

716 Id., ibid., p. 151.717 BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 15.718 Id. Razões práticas, p. 68.719 Id. A Produção da crença, p. 87.

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não des is tem da lu ta , po i s sabem que a ba ta lha é árdua , porém, a v i tór ia é cer ta , em nome do Senhor Jesus . 7 2 0

A habilidade de Macedo para lidar com as situações adversas também se

tornou bastante evidente quando do episódio que ficou conhecido como “chute na santa”. Na

época, o então influente pastor iurdiano Ronaldo Didini saiu em defesa de Von Helde.

Ambos estavam habituados a brigar com o catolicismo e a desmascarar imagens católicas no

interior dos templos iurdianos. Didini, sem considerar a centralização hierárquica, deu uma

entrevista coletiva afirmando que “a Igreja Universal estava solidária com o bispo Von

Helde”. De imediato, porém, através do rádio, Macedo retomou o controle da situação, e

segundo o registro feito pelo jornal Folha de S. Paulo, proferiu as seguintes palavras:Nós quer íamos decla rar para todo o povo ca tó l ico , esp í r i t a e evangél ico , a todas as pessoas que d i re ta ou ind i re tamente , foram a t ing idas por uma a t i tude impensada , ( . . . ) insensa ta do b i spo Von Helde ( . . . ) que pensou e ag iu como um menino , t r azendo esse f a to novo e inconsc ien te para todo o povo bras i l e i ro ( . . . ) que remos pedir então perdão a todos vocês , ca tó l icos , que foram a t ing idos por essa a t i tude do b i spo Von Helde ( . . . ) . 7 2 1

Em todas as circunstâncias de embates nas quais se envolveu, nessas três

décadas de sua existência a Igreja Universal conseguiu demonstrar força de resistência e

capacidade de arregimentação, em grande parte graças aos elementos que envolvem o seu

habitus identitário, com raízes culturais historicamente fincadas no campo religioso

brasileiro.

3.6.2 - O carisma do mago

O mago é definido, na linguagem de Weber722 e Bourdieu, como um

“pequeno empresário autônomo de salvação”, cuja atividade econômica consiste em produzir

e oferecer a uma clientela avulsa serviços de socorro e ajuda. A magia, manipulada pelo

mago, pode ser mais detalhada nos seguintes termos: Tra ta -se de um poder ex t raord iná r io – um car i sma, no sen t ido for te do te rmo – que , segundo se c rê , capaci ta quem é mago, bruxo, f e i t i ce i ro ou xamã, a impor sua vontade às forças supra -sensíve is ( tan to faz se d iv ina ou demoníacas) e d i rec ioná- las para a concre t ização dos obje t ivos para os qua is é so l ic i t ada sua competente pe rformance prof i ss iona l : p red ize r o des t ino de a lguém, curar uma doença , defender dos inve josos , a taca r os in imigos . 7 2 3

720 http:// www.universal.org.br . Acesso em: 16 mar. 2005.721 Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 out. 1995.722 WEBER, Max. Economia e sociedade. V. 1, p. 294.723PIERUCCI, A. F. Magia, p. 9.

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Aos olhos dos sacerdotes e profetas – concorrente na administração do

sobrenatural e na oferta de serviços de acesso ao sagrado – os serviços prestados pelos magos

são “apenas aparentemente” religiosos, “pseudo-religiosos”, ou ainda, “religiosos ilegítimos

ou ilícitos”, manipulações profanas e profanadoras do divino.724 Pierucci destaca que o mago

ou o feiticeiro é portador de saber especializado e as ciências que ele controla são ditas

“ocultas”: as a r tes que e le domina na condição de produtor independente , envolvem mul t ip l i c idade complexa de operações . São e las que lhe poss ib i l i tam ofe recer aos in teressados duas c la sses de produto : em t roca de remuneração mone tár ia cobrada sem subter fúgios ou eufemismos , o fe i t i ce i ro produz bens e pres ta se rv iços . 7 2 5

Classicamente, os sacerdotes têm sido entendidos como “funcionários

qualificados de uma empresa religiosa permanente, especializada em exercer influência sobre

os deuses e os corações dos homens através do culto regular e organizado”.726 Também é

atribuição do agente sacerdotal propor submissão à soberana vontade divina, promover a

salvação eterna e a paz espiritual. Já os serviços do mago visam fins específicos, voltados

para o aqui e agora, não para o “outro mundo”, no porvir. Ao contrário do ritual clerical, que

é serviço divino, o ritual mágico é visto como coerção divina. Enquanto que o sacerdote

estabelece relações mais duradouras com os seus adeptos, a relação do mago com as pessoas

que o procuram é conceituada normalmente como profissional, como feita a um cliente.

Outra distinção que se coloca é de que o mago não se preocupa em aplacar a cólera dos

deuses ou atrair para si seus favores – ele procura coagi-los:Quem possui o ca r i sma de empregar os meios adequados para i s to é mais for te a té mesmo que um deus , e pode impor a es te sua vontade . Nes te caso , a ação r i tua l não é “se rv iço ao deus” , mas s im “coação sobre Deus” , a invocação não é uma oração , mas uma fórmula mágica . 7 2 7

A atitude da magia para com os poderes divinos é tida, assim, como

manipulativa e instrumentalizadora. Enquanto que a relação clerical com o divino é de

respeito, obediência e veneração, o mago não ora nem suplica aos poderes supra-sensíveis;

submete-os ao poder da fórmula mágica: A maior ia dos au tores e s tá de acordo em reconhecer nas prá t i cas mágicas os seguin tes t r aços : v i sam obje t ivos concre tos e e specí f icos , pa rc ia i s e imedia tos ( . . . ) ; es tão insp i radas pe la in tenção de coe rção ou de manipulação dos poderes sobrenatura is ( . . . ) e por

724 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 60.725 PIERUCCI, A. F. Magia, p. 28.726 Id., ibid., p. 27.727 WEBER, Max. Economia e sociedade. V. 1, p. 292.

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úl t imo, encont ram-se fechadas no formal i smo e no r i tua l i smo do toma lá da cá . 7 2 8

Ainda segundo Pierucci,729 todo diagnóstico mágico segue mais ou menos

ponto comum: “tens problemas?” A causa de um problema específico é “alguém”. Ou seja,

sempre se coloca a etiologia: “alguém está causando isto”, um “trabalho feito”, uma “coisa

feita”, um feitiço ou malefício encomendado por um inimigo. Está “carregado”, com um

“encosto”.

Adotando essas práticas, linguagem e procedimentos, Edir Macedo e seus

auxiliares promoveram uma irrupção autônoma do carisma configurado por um “sindicato de

mágicos”. Há, nesse segmento, produção e distribuição de bens simbólicos, como parte de

uma “economia de trocas simbólicas”,730 com imediata ressonância nos elementos místicos e

mágicos que culturalmente configuram o campo religioso brasileiro. O movimento iurdiano

procurar satisfazer, através da magia, necessidades e desejos dos que acorrem a seus templos.

Essa manipulação do sagrado pode ser observada, por exemplo, nas palavras de Macedo: “A

verdade é que os louvores que ministramos a Deus são o seu alimento (...) Por isso mesmo,

antes de fazermos qualquer pedido ao Senhor, devemos atraí-lo com os nossos louvores”.731

Identifica-se, aí, um aspecto de manipulação mágica do humano sobre o divino, o que está

em conformidade com a conceituação elaborada por Weber:( . . . ) a an t ropomorf ização tende (en tão) a t r ans ladar ao compor tamento dos deuses a graça l iv re de um poderoso senhor mundano, a se r ob t ida mediante súpl icas , p resentes , serv iços , t r ibu tos , adulações , subornos e , por f im e nomeadamente , mediante um compor tamento agradável que corresponde à vontade do senhor , concebendo os deuses em analogia com este , como seres poderosos e in ic ia lmente mais for te s apenas em termos quant i t a t ivos . ( . . . ) Do ut des é o dogma fundamenta l por toda a par te ( . . . ) cará ter ineren te à r e l ig ios idade co t id iana e das massas de todos os t empos e povos e t ambém de todas a s re l ig iões . 7 3 2

Nas práticas iurdianas está também muito presente a oferenda como meio

de troca pela realização do desejo: O f ie l paga pr ime i ro . Coloca -se na pos ição de credor , coagindo Deus a re t r ibu i r abundantemente . O desaf io f inancei ro , an tes de cons t i tu i r a r r iscada apos ta , representa a cer teza da ef icác ia da f é como meio de propic iar a in tervenção d iv ina sobre de terminado infor túnio . 7 3 3

728BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 44, 45.729 Id., ibid.730Expressão usada por Pierre Bourdieu em sua obra A Economia das Trocas Simbólicas, op. cit.731 MACEDO, Edir. Vida com abundância. 10ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1990, p. 56.732 WEBER, Max. Economia e sociedade, p. 292, 293.733 MARIANO, R. Neopentecostalismo: os pentecostais estão mudando, p. 131.

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A conversão que se observa na Igreja Universal não significa

necessariamente o rompimento com as antigas práticas religiosas. Ao contrário, há, na

verdade, uma apropriação re-significadora, cujo simbolismo não desaparece, recebendo

apenas como que “uma nova camada de verniz religioso” a partir de elementos legados pelas

forças dispostas no campo. Desta forma, o Jesus curandeiro, mágico e taumaturgo, age na

IURD através de seus porta-vozes, bispos e pastores, conhecidos e reconhecidos como

“homens de Deus”, vistos como mediadores entre o ser humano e o sagrado.734 A bênção por

eles ali proferida tem a capacidade de “fechar o corpo” das pessoas, afugentar os demônios e

produzir benesses na vida daqueles que levam para a casa alguns objetos recebidos na Igreja.

A IURD faz ressurgir, assim, experiências cotidianas muito intensas com o sagrado,

marcadas pela prática de curas, tal como faziam antigos taumaturgos, curandeiros ou xamãs,

usando-se para isso, procedimentos de conotações mágicas e exorcistas, e que manda as

pessoas de volta para a casa, levando talismãs ou fetiches carregados de energias “benéficas”,

direcionadas à solução dos casos mais difíceis.

O que também se constata com isto é que, apesar de todo esforço

prolongado para a eliminação da magia, como analisado anteriormente, o movimento

iurdiano, enquanto ramificação protestante, veio comprovar que não se atingiu aquele fim

esperado. Se até meados do século passado, na Europa, com o crescimento do número de

pessoas que afirmavam não possuir crença religiosa, chegou-se a falar “na morte de Deus”,

ou, num “desencantamento do mundo”,735 - gerado por um processo de “racionalização e

intelectualização”, do qual o protestantismo é participante ao forjar uma postura

racionalizante da vida, isto como resultado de um crescente processo de secularização - o que

hoje se observa é que o campo religioso caminha na direção contrária: há o retorno a uma

intensa imersão na magia, gerando-se um dinâmico e recriativo encantamento do um mundo: Enquanto se e s t i lhaçam as ins t i tu ições , longe das igre jas , per to da magia , é a impor tânc ia do sagrado que ass im se rea f i rma, demons t rando que a r e l ig ião na sociedade bras i l e i ra a inda é um e lemento essenc ia l na demarcação de f ronte i ra s en t re a e s fera públ ica e a v ida pr ivada , num mundo que len tamente vol ta a r eencantar - se . 7 3 6

Dado o seu estabelecimento no campo religioso brasileiro, a magia tem

persistido, como uma espécie de “eterno retorno”, recriando-se, renegando-se. Reginaldo

734 PIERUCCI, A. F. Magia, p. 36.735 WEBER, Max. In: GERTH, H.; MILLS, C. (Orgs.) Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 182.736 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 149.

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Prandi comenta esse aspecto da recuperação da magia nas práticas dos segmentos religiosos

aos moldes iurdianos:O que há de mais carac te r í s t ico na mul t ip l i cação mais recente de r e l ig iões e na expansão da conversão ou reconversão a essas novas ou renovadas formas de c renças é a f a l ta de compromisso com qualquer pos tura que re leve o ca rá te r rac ional , c ien t í f i co e h i s tor ic is ta fundante da sociedade na sua presumida modern idade desencantada . Essas r e l ig iões não es tão preocupadas em re ter nos seus conteúdos expl ica t ivos e or ien tadores da conduta fundamentos impor tan tes do desencantamento do mundo. O desencantamento s ign i f ica o re f luxo da magia ( . . . ) mas o que as novas propos tas r e l ig iosas fazem e professam s ignif ica vol ta r a t rás , recuperando a magia com mui to v igor . 7 3 7

É preciso sublinhar que as práticas de magia no ambiente da Igreja

Universal tem demonstrado contornos inovadores em relação às conceituações clássicas.

Primeiro, a magia ali praticada possui denotação coletiva: não há apenas uma relação isolada

ou independente entre o mago e seu “cliente”, mas, ao contrário, intensas relações e

interatividade são vivenciadas nos ritos disponibilizados. Nesse sentido se aplicam com

propriedade as palavras de Bourdieu quando afirma que “é impossível compreender a magia

sem o grupo mágico”, e acrescenta:Em matér ia de magia , a ques tão não é t an to saber quai s são as propr iedades e spec íf icas do mago, nem sequer operações e r epresentações mágicas , mas de terminar os fundamentos da crença cole t iva ou , a inda melhor , do i r reconhec imento co le t ivo , cole t ivamente produz ido e mant ido , que se encont ra na or igem do poder do qual o mago se apropr ia ( . . . ) . 7 3 8

A esse processo interativo e representativamente conjugado, cabem também

as observações feitas por Lévi-Strauss:A ef icác ia da magia impl ica na crença da magia : ex i s te , in ic ia lmente , a c rença do fe i t ice i ro na ef icác ia de suas t écn icas ; em seguida , a c rença do doente que e le cura , ou da v í t ima que e le per segue , no poder do própr io fe i t i ce i ro ; f ina lmente , a conf iança e a s ex igênc ias da opin ião co le t iva , que forma a cada ins tan te uma espécie de campo de grav i tação no se io do qua l se def inem e se s i tuam as re lações en t re o f e i t ice i ro e aquele que enfe i t iça . 7 3 9

Segundo, essa instituição demonstra a mágica habilidade em não deixar a

magia institucionalizar-se. A tendência natural do campo é de que o movimento mágico ou

profético caminhe para uma complexa estrutura hierárquica, com cerimônias mais

complexas, tornando-se, no caso do cristianismo, igreja. Segundo Weber, num processo

dialético, quando o carisma se torna rotina, aparece a instituição, e esta, por sua vez, dá lugar

737 PRANDI, Reginaldo. Um sopro do Espírito. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 95.738 BOURDIEU, P. A produção da crença, p. 28, 29.739 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 194.

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a um processo de nova irrupção do carisma autônomo, sectário. Este carisma vive, então, um

processo oscilante entre a manifestação e a latência: a institucionalização é o período de

latência do carisma autônomo que, ao se manifestar, promove a desinstitucionalização:Os movimentos de r enovação ca r i smát ica ou de reavivamento apa recem prec i samente quando as soc iedades re l ig iosas , ig re jas , a lcança ram um grau de buroc ra t ização , que já não dá lugar para a e spontane idade ( . . . ) A i r rupção ou mani fes tação do car isma toma, no in íc io , a forma orgânica de uma se i ta , que depois evolu i a té tomar a forma de uma igre ja ( . . . ) . 7 4 0

Esse processo gerador de mobilidades estruturais é descrito por Carlos

Rodrigues Brandão da seguinte forma: “Se alguma coisa é realmente estável no mundo da

religião, essa coisa é a dialética de sua constituição, onde a Igreja conquista o sistema e gera

a seita que vira a Igreja que produz a dissidência”.741

Victor Turner também observa que, com o passar do tempo, os movimentos

“liminares” caminham para a cristalização, reingressando-se na estrutura, recebendo um

inteiro suplemento de papéis e posições estruturais: “O tempo e a história introduzem, porém,

a estrutura na vida social daqueles movimentos e o legalismo em sua produção cultural”,742

pois, nestas, “os indivíduos estruturalmente inferiores aspiram superioridade simbólica

estrutural no ritual”.743

Na linguagem de Weber e Bourdieu, a igreja é o estágio de maior

organização ou burocratização da “seita”, ou a etapa de institucionalização do movimento.

Por isso, é natural que a racionalização da prática religiosa leve a um crescente

enfraquecimento do espírito mágico diante do religioso. A tendência no campo religioso é a

de que se forme, portanto, a partir dos movimentos liminares, uma “comunidade religiosa de

irmãos” instituída na forma de igreja, em torno do serviço divino administrado rotineiramente

pelos sacerdotes, isto é, uma “comunidade moral permanente e permanentemente

moralizável” pela “ação pastoral de proselitismo insistente e endoutrinação incansável dos

seguidores, a fim de fazê-los e mantê-los fiéis”.744 O representante da instituição,

burocratizada, torna-se sacerdote, que pereniza a rotina de um sistema de crenças e ritos

sagrados:Está , por tan to , p red ispos to a a tuar em defesa da ordem s imból ica e soc ia l , sendo por s i mesmo incapaz de produzi r o novo ou expressa r

740CAMPOS, Bernardo. Da Reforma Protestante à pentecostalidade da igreja: debate sobre o pentecostalismo na América Latina. São Leopoldo: Sinodal, 2002, p. 50.741 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 113. 742 TURNER, V. O processo ritual, p. 202.743 Id., ibid., p. 245.744Id., ibid., p. 27.

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aqui lo que não é l íc i to ex i s t i r : tudo que es tá fora da ordem (def in ida como natura l ou d iv ina ) é anatemat izado como “pecado”. 7 4 5

Nesse sentido, o movimento iurdiano percorreu um caminho histórico com

amostras de aproximação da magia, que originou suas práticas, de uma estrutura

institucionalizada. O quadro a seguir, que descreve a distribuição hierárquica de funções

exercidas, demonstrando um certo grau de complexidade organizacional da IURD, parece

comprovar esse aspecto:

- Edir Macedo: Fundador e líder máximo da igreja. Nenhuma decisão importante, seja de

caráter religioso, seja financeiro, é tomada sem sua interferência.

- Conselho Episcopal Mundial: É o órgão máximo da igreja, formado por bispos no Brasil e

fora do país.

- Líderes Estaduais: Podem ser bispos ou pastores. Controlam a arrecadação dos templos nos

Estados.

- Pastores Regionais: Administram de dez a quinze templos em suas regiões.

- Pastores: Subordinados aos bispos, os pastores estão espalhados pelos templos existentes

no Brasil e no exterior. Administram apenas um templo, ministram cultos e indicam seus

auxiliares.

- Pastores Auxiliares: São uma espécie de estagiários. Ajudam o pastor titular nas tarefas do

templo, mas não ministram cultos.

- Obreiros: São milhares espalhados nos diferentes templos. São requisitados do grupo de

fiéis, cuja principal missão é auxiliar nos templos: limpeza e ornamentação, recepção de

visitantes, distribuição de literaturas e auxílio nos momentos de cultos e rituais. Vestem-se

com uniformes específicos durante o período em que exercem suas funções.

Atualmente, a IURD possui, além de algumas dezenas de bispos, cerca de

dezesseis mil pastores titulares e auxiliares, responsáveis pelos mais de cinco mil templos no

Brasil. Acrescenta-se a isso o fato de que à medida que obteve rápido crescimento, gerando

grande movimentação financeira e posse de enorme patrimônio imobiliário, a Igreja

Universal passou a adotar mecanismos mais sofisticados de gerenciamento de seu capital. Em

1989, por exemplo, adquiriu a Delpa Distribuidora de Títulos e Valores, empresa atuante no

mercado de capitais.746 Depois, em 1991, comprou por três milhões de dólares o Banco Dime,

que se transformou no Banco de Crédito Metropolitano, dirigido por um pastor.747

745OLIVEIRA, P. A. R. A teoria do trabalho religioso em Bourdieu, p. 187.746 Cf. Jornal da Tarde, São Paulo, 06 abr. 1991.747 Cf. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 05 jun. 1992.

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Pelo quadro exposto acima seria de se esperar que o elemento mágico do

movimento iurdiano tivesse já atingido um grau de institucionalização que o caracterizasse

como igreja aos moldes mais clássicos. Entretanto, não obstante a presença desses elementos

institucionais que envolvem a IURD, há de se destacar a sua capacidade de preservar o

aspecto de magia em suas práticas, num dinamismo que permanentemente se atualiza.

Quais seriam, então, os segredos iurdianos para manter a alquimia que

combina elementos, em tese, concorrentes? Primeiro, a IURD opera com as regras do

campo, em que prevalece a alquimia do múltiplo. Essas forças operantes no campo religioso

possuem porosidade, são produtoras de circularidades, que mobilizam fronteiras entre o que é

liminar e institucional, folclórico e clerical, herético e canônico. Marcel Mauss comenta essa

funcionalidade do elemento coletivo:Se pudermos mos t rar que , na magia cons iderada em sua to ta l idade , r e inam forças semelhantes àquelas que agem na re l ig ião , t e remos most rado que a magia t em um ca rá te r co le t ivo idênt ico ao da re l ig ião . Só nos r es tará , en tão , f azer ver como essas forças co le t ivas foram produz idas , não obs tan te o iso lamento que , segundo o que parece , se encont ram os magos , e seremos levados a conceber a idé ia de que esses ind iv íduos l imi tam-se a se apropr iar das forças cole t ivas . 7 4 8

Em segundo lugar, líderes e fiéis são orientados por um habitus

historicamente construído pelas experiências com religiões de mediúnicas, de mistério e de

encanto. Os agentes iurdianos incorporaram, assim, esses elementos pela própria experiência

de trânsito religioso que tiveram por igrejas católicas, pelo protestantismo histórico, pelo

pentecostalismo clássico e, principalmente, por religiões afro-brasileiras. Por isso o carisma

da magia não permite que nela ocorra o elemento da rotina. As suas reuniões não se

transformam em liturgia que inibe a manifestação do inédito. Comparecer ao templo é estar

preparado para o mistério do imprevisível, do novo que a qualquer momento pode irromper.

Assim, em uma sociedade marcada pela violência, individualismo e desagregação, a

Universal também opera eficazmente com flexibilidade capaz de responder na mesma

agilidade com que os anseios também se avolumam em meio ao caos:Ora , a s re l ig iões t rad ic iona i s , como re l ig ião , têm a função de cul tuar e manter um univer so f ixo e prev is íve l . Quando esse universo se desorganiza , a s re l ig iões t rad ic iona is t êm d i f icu ldades para a jus ta r as pessoas . Entra en tão a magia , com sua v i são mais compar t imentada do universo , que permi te a jus tes imedia tos e parc ia i s . Ser ia , en tão l í c i to , conclu i r que o neopentecos ta l i smo é um a jus te en t re re l ig ião e magia . 7 4 9

748 Apud BOURDIEU, Pierre. A produção da crença. Contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo: Zouk, 2002, p. 115.

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Terceiro, a permanente recepção de novos adeptos, provenientes em sua

maioria de crenças folclóricas, mantém alimentado o repertório mágico iurdiano. É uma

Igreja que se alimenta de outras manifestações religiosas brasileiras, das próprias

representações que necessita combater. Nesse sentido, o crescimento escalonário da IURD

rompe com um postulado proposto por Victor Turner, de que “nos movimentos liminares se

cria uma organização hierárquica à medida que o número de membros aumenta”.750 No

campo religioso brasileiro, os segmentos que obtiveram estagnação em termos de

crescimento - em alguns casos, tendo inclusive decréscimo de filiação, como é o caso de

históricas denominações do protestantismo clássico – mostram perfis de institucionalização

dogmática, rígida. No caso da Universal, a adesão de cada novo fiel tem contribuído para

assegurar a atualização das origens do movimento. Como que num ciclo vicioso, os novos

convertidos são atraídos, ali, à mensagem sedutora do mistério e da magia; uma vez

ascendendo às funções de obreiros, pastores ou bispos, perpetuam tais práticas.

E, por fim, destaca-se o fato da IURD ter conseguido desenvolver uma

organização intermediária entre a cultura folclórica e a clerical: um sindicato de magia.

Ricardo Mariano chega a usar a expressão “magia institucionalizada” para tentar descrever a

capacidade da IURD de lidar com a tensão que os elementos da religião e da magia

congregam.751 Mendonça emprega o termo “igreja mágica” no esforço por conceituar tal

experiência. Cont rar iando Durkheim, dent ro de uma ec les io logia desa ten ta , poder íamos d izer que o neopentecos ta l i smo cons t i tu i , ou ins t i tu i , ig re jas mágicas . ( . . . ) Essas igre jas es tão sempre cheias , mas de c l i en tes que buscam so lução mágica para os problemas do co t id iano , mantendo sua ident idade re l ig iosa t rad ic ional . Não são , por tan to , ig re jas , mas c l ien tes de bens de re l ig ião obt idos magicamente . 7 5 2

Reginaldo Prandi parte do princípio de que, se o protestantismo clássico

teve um compromisso natural com o processo de “desmagicização” do mundo moderno, a

Igreja Universal seria então propagadora de uma mensagem religiosa “falsificadora” do

protestantismo clássico, logo, “anti-protestante”.753 E, considerando que o esforço protestante

não foi capaz de banir a magia, Prandi aponta então duas possibilidades para uma

compreensão do que ocorre no movimento iurdiano: ou as pessoas recorreram a “outros tipos

749MENDONÇA, Antonio de Gouvêa. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 1997, p. 161.750 TURNER, V. Op. cit., p. 222.751MARIANO, R. Igreja Universal do Reino de Deus: magia institucionalizada?. Op. cit.752 MENDONÇA, A. G. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus personagens, p. 161.753 PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec-Edusp, 1991, p. 188.

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de controle mágico, para substituir os remédios oferecidos pela religião clerical, ou teria o

próprio protestantismo violado suas premissas, para elaborar uma magia própria.754

Finalizando esse item, é plausível afirmar que a IURD surgiu como um

rompimento ao modelo de protestantismo que se quis averso ao elemento mágico, provando

que as fronteiras estanques convencionalmente estabelecidas entre magia e religião possuem

porosidades, pois são elementos imbricados. Dessa forma, aos moldes de um sindicato, é

vivenciado um tipo de “magia protestante”, ou “magia evangélica”, num dinamismo eficiente

que permite a magia e a instituição clerical agirem conjuntamente, complementando-se,

inclusive. Ao combater as práticas católicas e afro-brasileiras, o segmento iurdiano, em

aparente ambigüidade, repõe assim em seus rituais práticas que escandalizam os protestantes

clássicos e desafiam a concorrência católico-romana, pois o campo religioso tem se tornado

“um campo de manipulação simbólica mais amplo”755 do que as fronteiras estabelecidas pela

religião institucionalizada.

3.6.3 O carisma messiânico-milenarista

O campo religioso brasileiro possui grande presença de elementos

messiânicos e milenaristas. Maria Isaura Pereira de Queiroz conceitua aquele primeiro

elemento nos seguintes termos:A idéia mess iân ica não é pecul ia r ao juda ísmo ( . . . ) Mas fo i na ant iga re l ig ião juda ica que a noção adqui r iu sua def in ição p lena . O concei to mess iân ico parece t e r passado aos judeus provenien te de fonte or ien ta l . Ocor re pe la pr imei ra vez no l iv ro de Samue l , suger indo o contex to que o messias era o ungido do Senhor e que seu papel e ra po l í t ico ( . . . ) . Somente depois do ca t ive i ro , porém, surg iu “uma promessa c lara de uma idade a inda por v i r , e na qua l todas as in jus t i ças ser iam sanadas” . 7 5 6

Originariamente, na língua hebraica, o termo “messias” significa

“ungido”.757 O judaísmo e o cristianismo na Antigüidade foram os principais responsáveis

pela difusão de tal expectativa em todo o mundo ocidental. Mas sua definição passou a ser

empregada para designar movimentos com tais perfis mesmo em sociedades que não

754 THOMAS, K. Op. cit., p. 75.755 BOURDIEU, P. Coisas ditas, p. 121.756QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa e Omega, 1982, p. 25.757DOBRORUKA, Vicente. História e milenarismo. Ensaio sobre tempo, história e milênio. Brasília: UNB, 2004, p. 115.

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conhecem a figura de um messias nos moldes judaico-cristãos, ainda que tal emprego deva

merecer certo cuidado:Exis tem aque les que supõem que os movimentos mess iân icos somente podem ocorre r em soc iedades que tenham t ido a lgum conta to com a he rança juda ico-c r i s tã ( . . . ) e por ou t ro l ado os que a f i rmam ser a expecta t iva da v inda de um redentor e a ins tauração de uma “ idade de ouro” t r aços unive rsa i s , encontráve is em todo o mundo e em todas a s soc iedades . 7 5 8

Na tradição cristã, a palavra “milenarismo” remete, em seu sentido

primeiro, à espera de um reino de mil anos de paz sob o reinado de Cristo, então de volta à

terra antes do juízo final. Em sentido mais amplo, “entende-se por ela todas as esperanças,

todas as aspirações de conotações religiosas prevendo o surgimento sobre a terra de uma

ordem perfeita, de certa forma paradisíaca”.759 Constitui-se o cerne dessa mentalidade,

portanto, a crença de que o mundo terreno está com os seus dias contados e que, por

deliberação divina, chegará brevemente ao fim para dar lugar a um outro mundo – o reino da

paz, da boa-aventurança e da justiça. Outra cor ren te , igualmente poderosa , a r ras tou mui tos de les [homens da Idade Média ] para out ra e sperança , pa ra out ro dese jo : a r ea l ização na te r ra da f e l ic idade e terna , o regresso à idade de ouro , ao para í so perd ido . ( . . . ) O milenar i smo é um aspec to da esca to logia c r is tã , enxer ta -se na t rad ição apocal íp t i ca ( . . . ) o c l ima dramát ico desemboca-se numa mensagem de espe rança . 7 6 0

Desde o fim da Antigüidade, as idéias escatológicas contendo elementos

milenaristas situavam-se fora da tradição doutrinal da Igreja. O estado ideal cujo surgimento

esperava-se era essencialmente definido pela purificação da Igreja, numa atitude crítica em

relação à religião oficial estabelecida.

Messianismo e milenarismo podem apresentar elementos afins ou

complementares, ou que se coadunam, pois o estabelecimento de um reino de paz, ou a

antecipação das benesses do paraíso na terra, tem a condução de um ou mais líderes

messiânicos. Maria Isaura apresenta uma descrição de como isso acontece:Essas doutr inas r e l ig iosas que pred iz iam o nasc imento na te r ra de uma e ra de fe l ic idade per fe i t a são chamadas de “mi lena res” ; e la s se opõem à soc iedade ex i s ten te , que é cons iderada tão in jus ta quanto opressora , e proclamam sua queda iminente . Essas dout r inas são chamadas de “mess iân icas” sempre que o in íc io desse mundo per fe i to depender da chegada de um “f i lho de Deus” , de um mensage iro d iv ino , ou de um heró i mí t i co : na rea l idade , de um “Mess ias” . É o Mess ias que dá in íc io e que anunc ia na t e r ra o

758Ibid., p. 114.759 TÖPFER, Bernhard. Escatologia e milenarismo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Op. cit., p. 353.760LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. V. 1. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 233.

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“Reino dos Céus” . [ . . . ] os movimentos mi lenares podem se r d i r ig idos por um grupo de idosos ou por l íderes e le i tos en t re os f ié i s ( . . . ) ; um movimento é mess iân ico se for d i r ig ido por um l íde r sagrado , um mensage iro do a lém. 7 6 1

Maria Isaura, quando qualifica o campo religioso brasileiro como solo fértil

para o florescimento de messianismos milenaristas, apresenta ainda outros aspectos: credita

às crenças religiosas e míticas a importância dos elementos constitutivos desses fenômenos.

Crenças apocalípticas que se fazem presentes no imaginário popular de vastos segmentos

sociais, catalisaram a fermentação de um clima propício à eclosão desses surtos. De acordo

com essa autora, esses movimentos decorrem do encontro do imaginário ameríndio com uma

intensa tradição de representações salvacionistas da sociedade européia colonizadora da

América. O desenvolvimento de uma mentalidade messiânica, desde os tempos coloniais no

Brasil, aglutina, pois, um cristianismo de penitência e de apocalipse, marcado por

redefinições peculiares, influências indígenas e africanas. É o universo do capelão, que

desconhece os dogmas católicos, mas se encarrega na costumeira ausência das autoridades

eclesiásticas da condução dos ritos, das orações e ladainhas que acompanham as práticas

religiosas da população pobre do campo. É também a religião das festas, da devoção aos

santos, das romarias, das penitências, manifestações muitas vezes avessas aos agentes oficiais

da igreja. Afirma, Maria Isaura, que esse distanciamento, por vezes tenso, em relação ao

catolicismo oficial, é o ventre fecundo dos líderes religiosos leigos, penitentes, “santos” e

beatos que “se acredita serem os verdadeiros representantes de Deus, que os inspira

diretamente, enquanto o padre é antes um funcionário da igreja”. E também não é raro que

este último fosse estrangeiro, tendo por isso muitas vezes dificuldades de bem compreender

os costumes locais.

Detalhando ainda mais a definição desse compósito cultural, na

classificação que apresenta, Maria Isaura identifica a primeira tipologia nos messianismos

mais autóctones inspirados na mitologia indígena e nas visões de mundo que antecederam e

permaneceram após a chegada dos colonizadores ibéricos. Foi assim com os Tupi e com os

Guarani, quando as tribos, em massa, peregrinavam periodicamente em solo brasileiro na

busca do seu “paraíso”, a Terra sem Mal, cuja existência é aventada no corpus mítico desses

povos como um lugar em que o arco e flecha caçariam sozinhos, ninguém envelheceria, nem

adoeceria ou morreria.762 Também Jean Delumeau, ao se referir aos messianismos que se

exprimiram na civilização ocidental como sendo a “nostalgia do paraíso perdido”, ou ainda

761 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Messinic Miths and Movements. Diogene’s, Paris, n. 90, 1975.762CLASTRES, Hélène. Terra Sem Mal. São Paulo: Brasiliense, 1978.

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como “a duradoura esperança de reencontrar no futuro o paraíso terrestre das origens”,763 cita,

dentre outras culturas, o caso “dos guaranis”.764 Tais povos se apegavam às orientações de

seus líderes espirituais, xamãs ou pajés, que assumiam papéis de profetas e guias religiosos

conhecedores do caminho para a condução ao paraíso sonhado. Arrebatados pelos inflamados

discursos dos profetas-xamãs, cujas pregações anunciavam a iminência do fim do mundo e

outras catástrofes, expressivos contingentes daqueles indígenas deixavam suas aldeias à

procura da Terra sem Males,A pecul iar idade des tes mess ian i smos cons i s te , po i s , em que surg i ram endogenamente , causados por uma mito logia mess iân ica . As migrações foram produz idas sob a condução de um profeta car ismático , na ma ior ia dos casos um xamã (pajé) , buscando a “ ter ra sem males” para o l es te , ma is a lém-mar , o que expl ica o t ra je to desde o in te r ior pa ra a cos ta . 7 6 5 [g r i fo nosso]

Também Maria Isaura destaca a participação de líderes neste processo:Profe tas ind ígenas i am de a lde ia em a lde ia apresentando-se como reencarnação de heró is t r iba i s inc i tando os índ ios a abandonar o t raba lho e a dançar , po i s os “novos tempos” , que ins ta lar iam na te r ra uma espécie de Idade de Ouro , e s tavam para chegar . 7 6 6

Outro grupo apresentado na taxonomia elaborada pela autora compõe-se

pelos chamados movimentos messiânicos de influência ocidental. Uma mentalidade com tais

representações norteou os primeiros conquistadores que chegaram ao Brasil colonial, com

raízes em tempos primevos. Delumeau767 também explica o fato referindo-se ao que ocorrera

com o messianismo milenarista propagado por Joaquim de Fiore,768 nos séculos XII e XIII, o

qual teria sofrido influência de uma tradição escatológica que se reporta aos séculos IV e VII

d.C., no Ocidente, quando foram redigidos textos sob o nome de “sibilinas cristãs”,

anunciando a vinda de um rei ou imperador cristão, cujo reinado se instalaria em

Jerusalém.769 Essas “sibilinas” circularam durante toda a Idade Média e foram impressas no 763DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300 – 1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 441.764 Id., ibid.765 PRIEN, H. J. La historia del cristianismo em America Latina. São Leopoldo: Sinodal, 1985, p. 313. 766QUEIROZ, M. I. P. Messianismo no Brasil e no mundo, p. 165.767 Outro pesquisador sobre tal temática é Norman Cohn. Ver COHN, Norman. Na senda do milênio. Milenaristas, revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média. Lisboa: Presença, 1981.768 Joaquim de Fiore (1145-1202) foi abade de um mosteiro na Calábria, no sul da Itália. Em seus inúmeros livros desenvolveu uma filosofia da história com base em genealogias bíblicas, a partir do que calculou e previu o retorno de Cristo à terra para o ano 1260 d.C, fato que seria seguido por um reinado terreno com duração de mil anos, quando seria então estabelecido o paraíso da terra. Fiore conquistou e influenciou inúmeros seguidores.769Joaquim de Fiore sem empregar a palavra “milênio”, anunciou a vinda de um tempo do Espírito, no qual a humanidade viveria em um estado de piedade e de paz. Escreve Delumeau: “Joaquim, morto em 1202, estimava que um período crítico ia começar muito em breve e duraria até por volta de 1260 e que, depois desse tempo de turbulências, a “religião monástica” faria reinar paz no mundo. Ele evocou apenas em termos sóbrios essa futura

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fim do século XV. Antonio Gouvêa Mendonça afirma: “a profecia joaquiniana é também

responsável por boa parte da mentalidade messiânica que perpassa o movimento

pentecostal”.770 Esta esperança messiânica medieval sustentou a empresa das Cruzadas, vindo

influenciar, inclusive, Cristóvão Colombo, que esperava financiar a retomada de Jerusalém

através das riquezas dos países que descobrira.771 Dessa forma, estas concepções se

deslocaram para a América como parte do imaginário dos conquistadores europeus, sendo

alimentadas pelo desejo de se encontrar tal paraíso perdido, conforme bem demonstrou

Sérgio Buarque de Holanda.772

O Padre Manoel da Nóbrega, em uma carta escrita em 1549, menciona um

movimento entre os tupiniquim e os tupinambá:Somente en t re e les se f azem ce r imônias da mane ira seguin te : De cer tos e ce r tos anos vêm uns fe i t ice i ros de mui longe te r ras , f ing indo t razer san t idade e ao tempo de sua v inda lhes mandam l impar os caminhos e vão recebe- los com dança e fes tas , segundo o cos tume ( . . . ) Em chegando o fe i t i ce i ro . . . lhes d iz que não cu idem de t raba lha r , nem vão à roça , que o mant imento por s i v i rá a casa e que as enxadas i rão cavar e a s f l echas i rão ao mato por caça pa ra seu senhor e que hão de matar mui tos dos seus contrár ios , e ca t ivarão mui tos para seus comeres e promete - lhes l a rga v ida , e que as ve lhas vão se tornar moças . . . 7 7 3

Também o Padre José de Anchieta, em carta escrita em 1557, destaca outro

exemplo de representações de messianismo presente no Brasil colonial:Pelo se r tão anda agora um ao qual todos seguem e veneram como a um grande san to . Dão- lhe quanto têm, porque se i s to não fazem c rêem que e le com seus esp í r i tos os matará logo . Es te metendo fumo pela boca , aos outros lhes dá seus e sp ír i tos , e faz seus semelhantes . Aonde quer que va i o seguem todos , e andam de cá para l á , de ixando suas própr ias casas . 7 7 4

Também estudos feitos por Antônio Cândido775 constatam que os

segmentos da população brasileira que ofereceram espaço para as manifestações messiânicas

apontam para um imaginário com raízes fincadas no “sebastianismo” de Portugal, colorido e

felicidade espiritual e, não obstante, terrestre”, cf. DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente (1300 – 1800), p. 445.770 MENDONÇA, A. Gouvêa. In: Sociologia da religião no Brasil. São Paulo: UMESP, 1998, p. 74.771 Ibid., p. 446-447.772HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do paraíso. São Paulo: Nacional, 1969. Outro pesquisador, Ronaldo Vainfas, ao falar sobre milenarismo, reporta-se ao conceito de “mito”, conforme o conceitua Mircea Eliade: “o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos”. Apontando para este modelo de anúncio apocalíptico que ocorrera na América após a conquista, Vainfas afirma que a “previsão apocalíptica implica necessariamente a indicação do recomeço”. Cf. VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 35.773 VAINFAS, R. A heresia dos índios, p. 99.774 Ibid., p. 109.775CANDIDO, Antônio. Os Parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975.

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reforçado no fértil solo indígena do mito da “terra sem males”, presente no contexto

brasileiro. O “sebastianismo” significou a crença, muito difundida em Portugal, nos séculos

XVI e XVII, em relação ao regresso vitorioso do rei D. Sebastião, morto na batalha de

Alcácer-Quibir, atualmente Marrocos, em 1578. Ao tornar-se rei, Sebastião foi chamado “O

Desejado” e ao morrer foi aguardado como o “Encoberto”. Isto porque, dadas as

circunstâncias misteriosas da sua morte, desenvolveu-se a crença de que talvez tivesse

sobrevivido à batalha e se tornado prisioneiro dos mouros ou estivesse escondido

(“encoberto”) na África. Daí a espera pelo seu retorno.

Esse imaginário português transferiu-se para o Brasil com a colonização,

fincando raízes especialmente na região Nordeste. A partir de 1640, o principal disseminador

dessas idéias foi o padre Antonio Vieira, fato que muito provavelmente tenha ajudado a

impregnar de sebastianismo as crenças religiosas no Brasil. Logo a crença sebastianista deu

lugar à expectação de um salvador no sentido mais geral, aproximando-se sensivelmente do

messias de Israel, ao desenhar o anseio popular pelo aparecimento de um personagem

redentor messiânico. O “Encobertismo”, como é também conhecido o sebastianismo, teve,

inclusive, muita guarida entre os judeus e é possível que os cristãos-novos também tenham

dado sua contribuição para propagar tal crença no Brasil. Também as longas migrações de

milhares de indígenas, anotadas desde o século XVI, em busca de imortalidade e descanso

eternos, podem ter alimentado ou oferecido solo propício para diversos movimentos

sebastianistas no século XIX, quase todos eles com desenlaces trágicos.776

O pesquisador Antonio Gouvêa Mendonça, analisando movimentos com

tais perfis, afirma: De fa to , a h i s tór ia da co lonização bras i le i ra manifes ta um c l ima mess iân ico e , poss ive lmente , uma menta l idade messiân ica . ( . . . ) Os es tudiosos desses movimentos concordam, regra gera l , que e le s surgem em populações rura i s subal ternas em s i tuações anômicas ou de mudança soc ia l , em que os modos de v ida t r ad ic iona is são ameaçados . Quando a e s te s fa tores soma-se a fa l t a de ass i s tência r e l ig iosa , como ocorreu durante quase todo o desenvolv imento da sociedade bras i l e i ra “ rús t ica” , a s condições pa ra a emergênc ia de mess ian i smos são bas tan te f avoráveis . Cre io ser vá l ida a h ipótese de que a junção das crenças ind ígenas sobre a “Terras sem Males” com as crenças sebas t ian is tas formou na “c iv i l i zação rús t ica” bras i le i ra uma menta l idade mess iân ica . 7 7 7

O historiador Levine comenta que “no período moderno podemos

identificar oito movimentos messiânicos brasileiros que (...) deixaram as suas marcas

776Cf. CLASTRES, Hèlene. Terra sem mal. São Paulo: Brasilienses, 1978; BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. V. 1 e 2 . São Paulo: Pioneira, 1971. 777 MENDONÇA, A. G. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil, p. 247-248.

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importantes” no país.778 Destaca que no século XIX, por exemplo, ocorreram no Brasil

diversos movimentos sociais de inspiração sebastianista, como o de Pedra Bonita, em

Pernambuco, em 1817; O Reino Encantado, também iniciado em Pernambuco, por volta de

1836; A Cidade Santa (Juazeiro, Ceará), fundada em 1872 pelo Padre Cícero, o mais extenso

movimento messiânico brasileiro, pois que hoje ainda permanece. Assim, merece registro o

fato de o pentecostalismo, por exemplo, ter se desenvolvido inicialmente no Norte e no

Nordeste brasileiros - regiões tradicionalmente marcadas por movimentos religiosos

populares com perfis messiânicos.

Já no século XX, registra-se o movimento milenarista do Contestado, mais

ou menos com as mesmas características dos anteriores. Na “Guerra do Contestado”, como

ficou conhecida, de 1912 a 1916, na região fronteira entre Paraná e Santa Catarina, velhas

tradições e concepções culturalmente folclorizadas revigoraram-se até mesmo no plano

militar e redefiniram profundamente a vida diária da população regional, sacralizando e

militarizando o cotidiano no grande embate entre o bem o mal, entre a justiça e a injustiça.

Tais movimentos são revoltas camponesas diante da penetração do modelo econômico

capitalista no campo, da ruptura das antigas formas de relações de produção e de relações

sociais. Nesse sentido, Maurício Vinhas de Queiroz, em trabalho publicado em 1965,779

buscou uma explicação global para a eclosão desse tipo de reação popular. Esse autor

encontra a explicação para a Guerra Sertaneja do Contestado, por exemplo, “numa crise de

estrutura, em que problemas sociais acumularam-se e agravaram conflitos latentes entre

diferentes classes sociais”.780

O pesquisador René Ribeiro considera que para se compreender a

constituição de um movimento messiânico, além de causas sócio-culturais e “a atração

estética que exerce a idéia de uma era perfeita”, é necessário levar em conta “o fascínio que

os novos líderes exercem”.781 Jean Delumeau, quando se refere a movimentos milenaristas

dos séculos XIX e XX, apresenta, dentre outros fatores que propiciam o seu florescimento, os

“desequilíbrios surgidos no interior de uma sociedade dada ou de uma desorganização social

provocada por fatores externos”, os quais podem recrutar adeptos em todos os níveis

sociais.782 Maria Isaura também situa o fenômeno milenarista numa lógica social, destacando-

o como uma força ativa e não apenas uma espera contemplativa por uma intervenção divina. 778LEVINE, Robert. O sertão prometido. O massacre de Canudos. São Paulo: Edusp, 1995, p. 309. 779QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social. A Guerra Sertaneja do Contestado 1912-1916. São Paulo: Ática, 1981.780HERMAN, Jacqueline. In: CARDOSO, C. F. ; VAINFAS, R. Op. cit., p. 349.781Apud LEVINE, R. O sertão prometido. O massacre de Canudos, p. 327.782DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente (1300 – 1800), p. 155.

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Ajudam nas mobilizações da luta contra a morte social, contra a perda de identidade,

construindo ações articuladas, criando esperança na possibilidade do novo. Entretanto, para

essa autora esse universo simbólico deve ser reposicionado especialmente nos setores da

população rural. Contextos de expropriação ou de privação a que camponeses pauperizados

estão submetidos, por esse motivo são apontados como fatores responsáveis por tais

manifestações. 783

Todas essas revoltas, enfim, buscam na religião seu ponto de partida e sua

força de aglutinação. O imaginário religioso é que expressa essas redefinições, constituindo

como uma espécie de documento cultural sobre mudanças nas mentalidades.

A Igreja Católica, mantendo sua postura institucional, tem historicamente

marcado distância de todas essas expressões populares. Foi a primeira a condenar o que

chamou de fanatismo religioso dos seguidores de Conselheiro e a emprestar seu apoio à

repressão do Estado que se seguiu àquele movimento. Não foi diferente sua atitude com o

Padre Cícero de Juazeiro, suspenso de ordens até o fim de sua vida, ou com o monge José

Maria, do Contestado:Toda igre ja cons t i tu ída t em, sem dúvida , seus mís t i cos , mas e la desconf ia de les , e la lhes de lega seus confessores e seus d i re tores para d i r ig i r , canal izar , contro lar seus es tados ex tá t i cos ( . . . ) Os movimentos de reforma, a s he res ia s , os mess ian ismos , os milena r i smos são expressões soc ia is do dese jo de vol ta a um passado v ibran te e e fe rvescente de “deuses sonhados” . 7 8 4

O movimento iurdiano, ainda que não possa ser classificado como

tipicamente messiânico pelos moldes clássicos, notadamente apresenta práticas que

configuram representações de um tipo de “messianismo no mundo urbano”. Podem ser

identificadas, em seu meio, como messiânico-milenariastas, as seguintes características:

proposta de estabelecimento terreno de um reino de felicidade; crença de ser o grupo portador

de uma especial eleição ou saberes divinos; pressuposição de um outro reino terrenamente

acessível aos membros do grupo; a existência de um reino do bem em combate a um reino do

mal; formação e desenvolvimento de um poder paralelo ao existente na sociedade geral;

amparo e sentido frente a um contexto de crise e desestabilidade, com deslocamento de um

imaginário com representações rurais para um contexto urbano.

Para que estes elementos pudessem se configurar foi necessário, como

visto, a existência de um capital simbólico próprio disposto no campo. Há, no Brasil, um

substrato cultural fortemente marcado pela crença de que é possível a superação de 783 QUEIROZ, M. I. P. O messianismo no Brasil e no mundo, 1977. 784 DOSSIÊ: Religiões no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo: USP, n. 52, v. 18, p. 31, 2004.

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contingências e mazelas seguindo-se à voz de comando de líderes visionários com forte

representação de carismatismo. A IURD se apropria, portanto, de um capital simbólico

messiânico-milenarista disposto no campo e de maneira bastante criativa o re-significa,

mobilizando-o em seu favor. Em suas práticas, os dois elementos estão conjugados, ou seja, o

acesso ao reino de paz e felicidade já está acessível aos fiéis, sendo necessário para isso estar

sob a orientação e o comando de seus bispos e pastores. A seguir, mais detalhadamente, uma

análise destas representações nas práticas iurdianas.

Em primeiro lugar, a IURD se apresenta como um reino de benesses

terrenas com acesso imediato. Não é sem propósito que escolheu colocar no seu nome a

palavra “reino”. Fala-se ali de um outro reino já terrenamente acessível aos membros do

grupo. Não há mais a necessidade da morte ou mesmo um advento apocalíptico para o acesso

ao paraíso idílico. Ao proceder dessa maneira, o movimento iurdiano promove mutações no

campo religioso brasileiro e reconfigura elementos culturais de longa duração. Nesse sentido,

vale observar as considerações feitas por Chartier que, citando Philippe Ariès, destaca a

atenção de olhares voltados para o “além-pós-morte”como um dos elementos que

culturalmente marcam a civilização ocidental. A esse propósito a leitura – no caso, de textos

bíblicos - desempenhou “um papel pedagógico quanto às preparações para a morte: como ela

devia ser pensada, domesticada, vivida nos últimos instantes – argumenta Chartier.785

Exemplifica tal procedimento o protestantismo clássico desenvolvido no Brasil, o qual

representa bem as raízes fincadas na modernidade. Desde a sua chegada ao país, no século

XIX, esse segmento religioso teve como uma de suas características ler a Bíblia com a

atenção voltada para o “celeste porvir” ou para a espera do “grande dia” do advento, como

bem destaca o pesquisador Antonio Gouvêa Mendonça. Sob orientação desses imaginários, o

protestantismo desenvolvido em solo brasileiro, em suas primeiras vertentes, direcionava sua

mensagem a uma dimensão para “além da história”:A visão de “Cr i s to do céu” implantou na América La t ina um Pro tes tan t ismo já de in íc io em cr i se , porque co locou a igre ja numa encruzi lhada a té aqui não superada . O “Cr i s to do céu” não apresenta sa ída a lém da seguin te a l t e rna t iva : ou ar rebata a ig re ja para que vá ao seu encont ro ou desce novamente pa ra ence rra r a h is tór ia e inaugura r um re inado ter reno . Qua lquer des tas opções t em levado as ig re jas a expecta t ivas de p len i tude a lém da h i s tór ia . São comunidades de espe ra . . . 7 8 6

785 CHARTIER, R. Leitura e leitores na França do Antigo Regime, p. 376.786 MENDONÇA, A. Gouvêa. Cristo no Céu e a Igreja Ausente. Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, n. 6. p. 170, abr. 1989.

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Algo semelhante também se deu com o pentecostalismo clássico. A sua

mensagem se notificou como eminentemente futurista, milenarista, voltada à espera de um

“grande dia” quando haveria a instauração do reino dos céus por uma intervenção

sobrenatural e divina. Tal perspectiva acaba por gerar, por exemplo, uma conduta de

aceitação da pobreza, sob a espera de um reino de riquezas no tempo do fim. Gutierrez

lembra que às vezes, quando se pergunta a líderes pentecostais se as suas igrejas fizeram a

“opção pelos pobres”, prontamente respondem: “não optamos pelos pobres, somos os

pobres”.787 Nesse aspecto, vale também retomar o fato de que o movimento pentecostal

também consiste num desdobramento do chamado “grande avivamento” religioso que

ocorrera nos Estados Unidos no século XVIII e XIX.788 Dentre os pregadores avivalistas,

naquele momento, destacou-se Jonathan Edwards, a quem Jean Delumeau faz referência

como propagador de idéias milenaristas,789 as quais estavam associadas à noção de

“progresso” e “prosperidade econômica”790 que sucederiam àquele despertar religioso

mediante um grande advento apocalíptico. Nesse sentido, a IURD apresenta uma proposta

inovadora de milenarismo: não há mais necessidade de espera pelo “Grande Dia” do devir

escatológico, marcado pelo retorno de Cristo à Terra e inauguração do milênio. O reino já

chegou e suas benesses já podem ser usufruídas. Essa escatologia se configura não como um

apocalipsismo, mas como um messianismo-milenarista voltado à presença do “reino de

Deus” na terra, aqui e agora, com acesso imediato pelos fiéis através dos meios

disponibilizados pela igreja. As palavras de Ricardo Mariano também constatam essa

perspectiva:Se os pr imei ros pentecos ta i s enfa t izavam o abrupto f im apocal íp t ico des te mundo, ao qual se segui r ia a bem-aventurança dos e le i tos no para í so ce les t i a l , os novos pentecos ta i s , por seu lado , pr ior izam a v ida aqui e agora , e les querem ter sucesso nesse mundo. 7 9 1

Edir Macedo faz questão de ressaltar - em relação ao que o protestantismo e

o pentecostalismo oferecem - a nova proposta e visão apresentada pelo movimento sob sua

liderança:Até bem pouco tempo a t rás uma fa t i a r espei táve l da igre ja cr i s tã empurrava todas as bem-aventuranças pa ra o céu e para a

787 CAMPOS, L. S. ; GUTIERREZ, B. (Orgs.). Op. cit., p. 16.788FILHO, Prócoro Velasques; MENDONÇA, A. Gouvêa. Op. cit., p. 82-109.789DELUMEAU, Jean. Uma travessia do milenarismo ocidental. In: NOVAES, Adauto et al. A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 449.790Delumeau acrescenta que “laços uniram, no século XVIII, o milenarismo e a crença no progresso”, cf. Id., ibid, p. 451. Assim, o discurso iurdiano encontra afinação entre o seu compósito de crença com a idéia de sucesso, prosperidade e usufruto dos bens de consumo, propostos pelo sistema capitalista.791 MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, p. 8.

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e tern idade . Diz ia- se en tão que era necessá r io supor ta r pac ien temente o sof r imento presente . . . A “Teologia da Prosper idade” es tá t razendo o ce les te porv ir para o t e r res t re presente . Pa ra comermos a melhor comida , pa ra ves t i rmos as melhores roupas , para d i r ig i r os melhores car ros , para t e rmos o melhor de todas as co i sas , pa ra adqui r i r mui ta s r iquezas , para não adoecermos nunca , pa ra não sofre r qualquer ac idente , para morre rmos en tre 70 e 80 anos , pa ra exper imentarmos uma morte suave - bas ta crer no coração e dec re ta r em voz a l t a a posse de tudo i sso . Bas ta usa r o nome de Jesus com a mesma l ibe rdade com que usamos nosso ta lão de cheques . 7 9 2

No modelo da IURD, o pentecostalismo abandona uma ética de

desvalorização do mundo e se volta para objetivos extra-mundanos e uma escatologia

apocalíptica, optando pela idéia da aceitação de que é natural o usufruto de riquezas, de saúde

e de prosperidade793 em uma espécie de antecipação do paraíso que comumente esteve

deslocado para o final dos tempos, num futuro incerto e indeterminado. Para os fíéis da

IURD o templo que freqüentam e o movimento que integram já representam o início de uma

vida no paraíso a ser conquistado dentro da história. O acesso às benesses do paraíso tem

passagem imediata; a escatologia do “celeste porvir” é substituída pela do “terrestre

presente”.

Um dado marcante que se apresenta nas práticas da IURD, dentro desse

aspecto messiânico, é o que se pode chamar de “confraria de ajuda mútua”. Isto significa que,

ao se filiar à igreja os fiéis se integram a uma “grande família da fé” passando a contar não

apenas com o auxílio e a ajuda para eventuais dificuldades que venham a enfrentar, mas

também com a “preferência” e apoio dos irmãos nas diferentes atividades profissionais que

realizam. Exemplificando: é prática freqüente os membros da igreja comprarem

preferencialmente no estabelecimento comercial do “irmão” que também pertença à sua

mesma comunidade; ou então, solicitarem os serviços do “irmão” ou “irmã” que exerce a

atividade profissional de imobiliarista, mecânico, pintor, motorista de táxi, empregada

doméstica, médico etc. Algumas igrejas chegam, inclusive, a manter um guia de classificados

que indica os nomes e os serviços prestados por profissionais evangélicos, onde também se

atualizam semanalmente as ofertas de empregos aos membros da comunidade local. Ainda 792 Depoimento do bispo Edir Macedo, cf. Teologia da Prosperidade. Revista Ultimato, São Paulo, série Cadernos Especiais, p. 5, mar. 1994.793 Os ensinos precursores da Teologia da Prosperidade se remontam a movimentos teosóficos propagados no contexto norte-americano no início do século XX, que enfatizavam a “confissão positiva” com finalidades terapêuticas, tendo como pressuposto o fato de que as forças mentais e espirituais estão à disposição do indivíduo para que, uma vez manipuladas, possam realizar curas e resolver problemas. Essek W. Kenyon e Kenneth Hagin se tornaram os principais propagadores desse ensino no meio evangélico norte-americano, mediante pregações itinerantes e publicações de literaturas, através das quais houve influência sobre alguns líderes do neopentecostalismo brasileiro. Cf. CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 365.

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nesse sentido, vale observar que empresários ou empreendedores que têm emprego a

oferecer, costumam normalmente dar preferência aos membros da mesma igreja que também

freqüentam para a ocupação de tais cargos e funções. Desta maneira, converter-se numa

igreja local significa inserir-se numa rede de ajuda mútua, ampliar consideravelmente

possibilidades de se ter novos clientes, novas portas de emprego abertas, e assim por diante.

Com isto, o comerciante passa a vender mais, o taxista a ter mais passageiros, o médico a ter

mais pacientes, o trabalhador autônomo mais opções de emprego. Daí ser possível

compreender que resultados concretos como esses acabem transmitindo ainda mais aos fiéis a

firme convicção de que a chamada “teologia da prosperidade” é de fato funcional e eficaz.

Um segundo aspecto do messianismo iurdiano se configura no fato dessa

Igreja representar amparo e sentido frente a um contexto de crise e desestabilidade. De

acordo com Maria Isaura, grupos sociais que estão “imersos numa sociedade em intensa crise

sócio-econômica e política, acham-se normalmente mais predispostos a se reunirem em torno

da figura carismática de um líder messiânico”.794 Norman Cohn destacou que dentre as

manifestações da cultura se encontram os movimentos religiosos, “chamados milenaristas”,

que surgem no meio das “massas desarraigadas e desesperadas, ... vivendo à margem da

sociedade (estruturada, complexa)”.795

Também Weber e Durkheim concordam que o carisma é uma força criadora

e regeneradora favorecida em tempos de mal-estar e sofrimentos sociais, quando formações

sociais fragmentadas necessitam especialmente de uma revigoração através da participação

carismática. A figura de um líder carismático consegue então agregar partícipes de uma

mesma convicção em torno de um anseio idílico, projetando expectativas de superação das

mazelas existenciais. A participação da comunidade no ritual coletivo pode proporcionar uma

sensação interior de propósito elevado, necessário para os indivíduos que precisam de um

objeto transcendente para escapar do desespero e do isolamento.796 Roger Bastide igualmente

observa que “o messianismo (...) representa um despertar que sempre acaba levando a uma

percepção de causas da privação”.797 Peter Berger afirma que “manifestações do messianismo

religioso, do milenarismo e da escatologia, como seria de se esperar, associam-se

historicamente aos tempos de crise e desastre, de causas naturais ou sociais.”798 “A influência

794 Apud CARDOSO, C. F. ; VAINFAS, R. Op. cit., p. 349.795 COHN, Norman. The pursuit of the millenium. New York: Harper Torch Books, 1961, Apud TURNER, V. O processo ritual. Op. cit., p. 19. 796 Apud LINDHOLM, Charles. Carisma. Êxtase e perda de identidade na veneração do líder. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 44.797 apud LEVINE, R. O sertão prometido. O massacre de Canudos, p. 326.798 BERGER, P. Op. cit., p. 53.

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que o líder exerce em seus seguidores se deve, em geral, à insegurança e à desesperança

generalizadas” – ressalta também Robert Levine, que argumenta: “quando um grande número

de pessoas se liga a um culto religioso, existem normalmente mais causas do que a

meramente religiosa”.799 Levine apresenta ainda maiores detalhes sobre tais ambientes que

criam espaço e condições favoráveis para o desenvolvimento de propostas salvacionistas com

perfil messiânico:A maior ia dos movimentos mess iân ico-mi lenar i s ta s surge em conseqüência de movimentos de ag i tação econômica e soc ia l , de grandes pr ivações , de cresc imento das ans iedades e tensões do povo, de conturbações ps icó t icas co le t ivas , ou en tão como forma de pro tes to socia l . 8 0 0

Trata-se, portanto, de um fenômeno bastante característico das sociedades

que estão sofrendo mudanças sociais rápidas e desordenadas. Aqueles que se vêem

desvalorizados e confusos pela desintegração do tecido social estão prontos a abrir mão de

uma identidade, já prejudicada, em troca da aceitação em um grupo no qual, devido a sua

intensidade e objetivo, a existência se transforma em algo transcendente. Em um contexto de

agravamento das condições sociais de vida, portanto, a representação carismática pode

oferecer ao grupo elementos de reconstrução de sua identidade:Se houver uma cr i se , podemos esperar a t iv idades ca r i smát icas mais r ad ica i s . Es tes grupos podem faze r , inc lus ive , a f i rmações milena r i s tas , p rovocando o fe rvor en tus iás t i co dos acól i tos . ( . . . ) O car i sma ofe rece a força e a imaginação para mudanças . ( . . . ) A exper iênc ia de fusão in tensa com um ser car i smát ico dent ro do grupo permi te a cont inuação da v ida e de seu s ign i f icado quando o mundo co t id iano já perdeu o encanto . Tal pa r t ic ipação pode oferece r um per íodo de descanso e um momento de t rans ição , dando força e sus ten tação para a cons t rução de uma nova ident idade . 8 0 1

As três últimas décadas, devido à formação de condições sociais de

exclusão, marcadas por intenso processo de urbanização e desilusão com o presente no

contexto brasileiro, propiciaram condições favoráveis para a emersão de representações,

configuradas por anseios de amparo e segurança. O misticismo, o messianismo e o

milenarismo, “tão próprios de nossas tradições sertanejas”, encontraram no mundo urbano

espaço e condições para expressar uma esperança e uma base nova a fim de mediatizar sua

utopia como tempo do novo e inovação social. Em um período no qual o Brasil vivencia um

processo de urbanização e industrialização caóticas, está em escalonário desencadeamento o

êxodo rural, responsável por deslocar grande contingente populacional para os centros

799 Id., ibid, p. 323.800LEVINE, R. O sertão prometido. O massacre de Canudos, p. 327.801 Id., ibid., p. 218, 219.

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urbanos, intensificando assim a formação e multiplicação de periferias pobres, gerando

desemprego e perda de referência de coletividade. Isso fez que a periferia das cidades, que

acolhe em primeiro lugar os imigrantes, se tornasse o recôndito dos excluídos do processo

produtivo, aumentando ainda mais os problemas sociais e gerando muitos outros, inclusive de

natureza existencial. Formava-se, desta maneira, o “terreno social fértil” para o

desenvolvimento de práticas religiosas que pudessem responder a tais contingências:No contex to de urbanização e indus tr ia l ização caót icas que carac ter iza ram o desenvolv imento naciona l nos ú l t imos 50 anos, uma propos ta r e l ig iosa a l i cerçada na in tensa c i rcu lação de bens s imból icos , l evou ampl í ss imos segmentos empobrec idos da população , inc lu indo camadas in te rmediár ia s , exc lu ídos do “mundo moderno” , a for jar suas própr ias r egras e combinarem or ig ina lmente um mosa ico s imból ico que lhes confe r i sse sen t ido e d ignidade . 8 0 2

O processo de urbanização, portanto, proporcionou o surgimento de um

contingente que passaria a experimentar situações de pobreza e violência, num contexto

gerador de profundas incertezas e desestabilidade existenciais, em proporções ainda maiores

do que as vividas pelo homem rural. Neste quadro de uma economia capitalista em fase de

remodelação, provocando desarticulação dos modos de vida, é que se formou um contingente

vivendo em situações-limite - terreno fértil e público–alvo para a operosidade iurdiana: O cresc imento do pentecos ta l ismo se dá desde a pe rspec t iva de um contex to de cr i se sóc io-econômica e po l í t i ca nos pa í ses do Cont inente , que cr iou a mass i f i cação e a despersona l ização en t re os se tores da população que migram do campo para a c idade (urbanização) . Diante dessa mudança tão rad ica l , a ig re ja pentecos ta l a juda a re s taura r os va lores comuni tár ios do mundo rura l perd ido , de modo que se possa r es i s t i r aos desa f ios e exigênc ias do mundo moderno . 8 0 3

A massificação da vida nos grandes centros urbanos leva o indivíduo a

conviver com problemas de natureza psicossocial: a solidão e a perda de muitos referenciais

simbólicos como a família e a religião da tradição, logo, torna-se necessário buscar

alternativas de compensação na tentativa de preencher os espaços vazios que o novo estilo de

vida foi criando. E aí a religião exerce um papel fundamental, tanto como fator de integração

social, como também de reorganização da vida, procurando dar a esse indivíduo um sentido e

uma direção no âmbito de uma comunidade. Fry e Howe,804 ao comentarem o

desenvolvimento de cultos populares sobretudo entre as camadas sociais mais pobres nas

grandes cidades brasileiras, mostram que a umbanda e o pentecostalismo passaram a

802 BITTENCOURT FILHO, J. Op cit., p. 102,103.803CAMPOS, L. S. ; GUTIÉRREZ, B. (Orgs.). Op. cit., p. 15.804FRY, Peter; HOW, Gary Nigel. Duas respostas à aflição: umbanda e pentecostalismo. Debate e Crítica. São Paulo: HUCITEC, n. 6, 1975.

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constituir respostas à aflição decorrente das situações de crise a que as populações urbanas

passaram a estar submetidas em tal contexto.

Diante deste quadro social, é preciso considerar que a IURD é uma igreja

essencialmente urbana, cuja mensagem é voltada para alcançar os “excluídos” da cidade.

Num contexto, como o descrito anteriormente, ela surgiu como um movimento agressivo,

inovador, determinado a realizar o “milagre” que todos esperam e há muito tempo não vêem.

Isso faz lembrar as palavras de Pierre Bourdieu, quando em entrevista concedida a uma

autora brasileira foi indagado acerca da seguinte questão: “O senhor acredita que a enorme

massa de sofrimento – que no Brasil se expressa em violência, miséria, exclusão,

insegurança, incerteza sobre o futuro - produzida pelo neoliberalismo poderá um dia dar

origem a um movimento capaz de acabar com ele? E as religiões que crescem de forma

proporcional a esse estado de coisas, têm alguma chance de se voltar contra a sociedade?” A

resposta de Bourdieu:As s i tuações de c r i se são s i tuações cr í t i cas nas quai s o mundo ca i em pedaços . As pessoas perdem as re fe rênc ias , f i cam sem inst rumentos pa ra to ta l i zação . Max Weber d iz que a função pr inc ipa l da re l ig ião é da r sen t ido e coe rência prá t i ca , não teór ica , à exi s tência , de modo que a pessoa se encont re , se or ien te . Infe l izmente , os profe t i smos re l ig iosos cos tumam se s i tuar na lóg ica do escapismo, conduzindo a v i sões mi lenar i s ta s que se a fas tam do pol í t i co no que e le t em de bru ta l e insupor táve l . Poder íamos nos pergunta r onde se r ia poss íve l encont rar forças soc ia is para mudar e sse mundo. ( . . . ) Penso que o que es tá acontecendo é mui to grave e que a humanidade es tá ameaçada . 8 0 5

Ao comentar sobre a miséria que afeta grande parte da população atual,

Bourdieu faz ainda a seguinte afirmação:O conhec imento do mundo socia l pe rmi te ve r co i sas e suas conseqüências ocul tas . Por exemplo: a tua lmente , ex i s te a tendênc ia de se subs t i tu í r em os cont ra tos de t raba lho de duração indeterminada pe los cont ra tos de duração de te rminada , os empregos permanentes pe los empregos temporár ios . São pequenas medidas tomadas todos os d ias , nos ma is d i feren tes se tores . Na ve rdade esse t ipo de medida te rá conseqüênc ias ( . . . ) Para quem sabe ve r e las já e s tão presentes no Bras i l , por exemplo . ( . . . ) vemos as conseqüências: aumento de desemprego, v io lênc ia , c r imina l idade , rel ig iões milenaris tas , pentecosta l i s tas e tc . 8 0 6 [g r i fo nosso]

Os fatores de experiência e criação de sentido se apresentam como

elementos consistentes para as práticas e as representações que os fiéis vivenciam no âmbito

da IURD. Bispos, pastores, obreiros auxiliares e membros, de modo geral, demonstram uma

805 BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002, p. 39.806 Id., ibid, p. 22, 23.

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experiência comum: chegaram à Igreja na condição do que denominam “fundo do poço”. A

saída de tais situações de infortúnio, que se materializam em doenças, desemprego e

fracassos, está nas mãos de cada um, pois basta que os fiéis apelem para Jesus buscando o

auxílio da verdadeira Igreja (IURD, é claro), a qual é fiadora dos milagres. O passo seguinte

é fazer, lá mesmo, as “correntes de fé”.

Pessoas vivendo em “situações limites” de sofrimento e até decepcionadas

com a medicina oficial recorrem à IURD. Muitas dizem “desenganadas” da ciência, tendo

apenas uma última centelha de esperança: o milagre. Nos depoimentos, chamados de

“testemunhos”, em que relatam as experiências de mudança e transformação alcançadas,

costumam ressaltar que para lá se dirigem ou como doentes, bêbados, jogadores, traficantes,

pobres, homossexuais, travestis, prostitutas, viciados ou assassinos. Os dois relatos, a seguir,

apontam para este aspecto: Quando eu cheguei na Unive rsa l , eu es tava der ro tada , desesperada [ . . . ] tudo que havia t en tado deu er rado . A lo ja era a ú l t ima espe rança [ . . . ] T inha perd ido tudo , meu negócio fa l iu , minha sóc ia t inha ido embora e eu f iquei soz inha , o lhando a lo ja vaz ia , não acred i tando que t inha perd ido tudo , que havia dado tudo er rado . 8 0 7

Um rapaz, em outro depoimento, diz: Eu es tava andando só com marginal [ . . . ] e ra t ra f ican te e v iv ia na pros t i tu ição . Porque só e les ace i tavam andar comigo. Um dia minha mãe apareceu para conversar comigo, chorou mui to , fa lou pa ra eu sa i r daque la v ida [ . . . ] f ique i cha teado dela t e r ido a l i , sabe como é , mãe da gente [ . . . ] meu pa i j á nem conversava comigo, depois minha mãe também sumiu . . . acho que e la se cansou de mim, cansou de tan to sofrer , de me ver naque la v ida [ . . . ] E eu só usando todo t ipo de droga , a lgumas já nem faz iam mais efe i to . T inha que roubar pra manter o v íc io [ . . . ] Aí eu chegue i aqui na Igre ja e tudo mudou. 8 0 8

O bispo Macedo faz questão de ressaltar que acolher pessoas nesta situação

de sofrimento e redimensionar-lhes o sentido de vida faz parte do dia-a-dia da IURD.

Segundo ele, “a mudança de vida não é difícil quando se está no fundo do poço [...] e

qualquer pessoa quando chega até nós é porque está no fundo do poço. E quando ela está lá

tende a subir ou morrer. Baixar mais não pode”.809

A IURD representa, para os que a ela recorrem, um lugar aonde se vai

quando não se tem mais para aonde ir, quando se está sofrendo, sozinho e sem saída. Num

contato inicial tais pessoas são simplesmente acolhidas sem questionamentos ou exigências.

Cria-se então uma relação de ajuda que obedece em linhas gerais a seguinte ordem:

807 Sandra Regina Ribeiro, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 07 jul. 2005, p. 4.808 Marcos Antonio de Paula, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 14 mar. 2005, p. 8.809 Revista Veja, São Paulo, 06 dez. 1995.

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acolhimento, escuta e proposta de solução. Promove-se, a partir daí, principalmente através

da participação nos ritos oferecidos pela Igreja, noções de segurança, proteção e sentido no

ambiente do grupo. Ao se r emeterem à s i tuação de “ fundo de poço” , os membros fa lam sempre de uma v ida deses t ru turada no âmbi to f inancei ro , f í s i co , a fe t ivo , emocional , fami l ia r e soc ia l . Quando se chega à IURD, chega-se não tendo mais lugar para se i r , em gera l o ind iv íduo já perdeu tudo o que lhe dava a lguma d ignidade socia l ou pessoa l . Gera lmente , não se tem saúde , emprego, a fe to , recursos f inancei ros para prover , a té mesmo, à s vezes , o bás ico como moradia e a l imentação . Ou en tão , não se é ace i to pe la f amíl ia , pe la soc iedade ou v ive-se no submundo de v íc ios , p ros t i tu ição e drogas . 8 1 0

Esse sentido de mundo, calcado na experiência - por ilógicos que pareçam

ser aos que não pertencem àquele universo – dá coerência a quem está inserido ou se integra

no ambiente iurdiano. Como observa Peter Berger, a religião se torna assim resultado de uma

atividade humana fundamental de contínua busca, no meio do caos, de um mundo pleno de

sentido e ordem: “Toda sociedade humana é um empreendimento de construção de mundo

(...) a religião ocupa um lugar destacado nesse empreendimento”.811 Bourdieu, ao empregar o

conceito de “distinção” associa a ele os mecanismos que possibilitam a construção desta

identidade social, organizada em função do habitus. O texto, a seguir, tece considerações

sobre este aspecto:O func ionamento do espaço socia l base ia- se na vontade de d i s t inção dos ind iv íduos e dos grupos, i s to é , na vontade de possu ir uma ident idade soc ia l p rópr ia , que permi ta ex is t i r soc ia lmente . Tra ta -se de ser reconhec ido pe los outros , de adquir i r impor tânc ia , v i s ib i l idade , e f ina lmente t ra ta-se de t e r um sent ido . Exis t i r soc ia lmente é , essenc ia lmente , ser percebido , i s to é , faze r com que se jam reconhecidas t ão pos i t ivamente quanto poss íve l a s suas propr iedades d i s t in t ivas . Daí t ransformar-se em capi ta l s imból ico as propr iedades imaginár ias . 8 1 2

Para o imaginário representativo que nela se vivencia, acredita-se ser

possível, dentro da Igreja, alcançar tudo o que se deseja. Tal crença é nutrida pelos relatos e

testemunhos dos pastores e fiéis que lembram a todo instante que a vitória já obtida pelo

outro é prova de que também pode acontecer com os demais. Assim, o fiel sabe que, se ainda

não alcançou o seu objetivo, está lhe faltando uma entrega ou obediência mais completa a

Deus através dos recursos oferecidos pela Igreja. Desta forma, ele acredita que em algum

momento isso ocorrerá. Mesmo quando o milagre ou solução do problema não é alcançado, a

capacidade de produção de sentido da IURD consegue incorporar essa situação em seu

810 BONFATTI, P. Op. cit., p. 137.811 BERGER, P. Op. cit., p. 15, 20, 21.812BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 103.

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universo simbólico. Não se questiona a lógica simbólica da IURD, pois não é ela que deve

mudar, mas a atitude do fiel dentro dessa lógica. Isto faz que o adepto permaneça ligado à

Igreja. Tal perspectiva se assemelha aos milagres régios estudados por Marc Bloch:Se o doente a quem o milagre f a lhara era mal -educado o bas tan te para que ixar- se , os defensores da rea leza não t inham di f icu ldade em responder- lhe . Repl icava-se- lhe , por exemplo , que lhe fa l t a ra f é ( . . . ) Ou conc lu ía -se que houvera er ro de d iagnós t ico . 8 1 3

Este amparo e proteção recebidos são também demonstrados nos

depoimentos dos fiéis, os quais, ao concederem tais “testemunhos” aos pastores, costumam

seguir uma tríade: cura de enfermidades, libertação dos demônios e prosperidade financeira.

Sendo divulgados nos horários dos cultos e também veiculados nos programas de rádio, TV e

jornal Folha Universal, esses depoimentos obedecem basicamente à seguinte estrutura:

primeiro, a identificação do problema (doença, miséria, falência etc.); segundo, a

complicação ou agravamento da situação (apelo para todas as soluções possíveis: medicinais,

extra-medicinais, espiritismo, terreiros, tentativa de suicídio etc.); terceiro, a solução

encontrada na última porta, ou seja, a entrada na Igreja Universal, seguida pelo “milagre”

alcançado.

Portanto, em meio às crises e transformações ocorridas nas últimas décadas,

o movimento iurdiano surgiu como o meio pelo qual determinados setores da sociedade

tentam superar coletivamente as contingências e as mazelas existenciais. Os fiéis iurdianos

foram atraídos intensamente para uma religião que se foi criando e moldando como resposta

possível e concreta à crise e às transformações em todas os níveis de vida, que desarraigaram

e desconcertaram o povo em um contexto de instabilidade econômica e social. Afinal, “num

momento, o sujeito se sente desamparado e, no outro, está num ambiente de fraternidade”.814

O ambiente iurdiano, assim, propicia estrutura organizacional, afetiva e cultural condizentes

com a geração de confiança em uma espécie de rede social familiar, cumprindo um papel de

integração e de adaptação ao meio urbano: Exper imentando no corpo e na a lma os efe i tos angust ian tes da desorganização socia l e de padrões de compor tamento produz idos pe la indus tr ia l ização (anomia socia l ) , o migrante busca , como por ensa io , um grupo no qua l possa sen t i r a f in idade emoc iona l e r econhec imento pessoal . 8 1 5

Em síntese, a experiência de conversão vivenciada no contexto da IURD

insere os membros em um grupo social no qual encontram relações possibilitadoras de

813 BLOCH, M. Op. cit., 275.814 FONSECA, Alexandre Brasil. Revista Veja, São Paulo, 03 jul. 2002, p. 93.815 Id., ibid, p. 38.

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ascensão perante o grupo ao qual pertencem, dando-lhes, por exemplo, uma certa liderança

que lhes confere uma honra pouco acessível no mundo em que vivem. No âmbito da IURD

ocorre a criação e o desenvolvimento de uma forma de poder ou capital simbólico, podendo

chegar ao exercício dos cargos eclesiásticos mais elevados e à obtenção de títulos e prestígio

conferidos pelo poder simbólico. No grupo no qual estão inseridos, são chamados por títulos

como: bispos, pastores, obreiros. Constata-se também grande presença de pessoas vitimadas

por algum tipo de preconceito na sociedade: pobres, negros, mulheres, semi-analfabetos etc.

Líderes e fiéis encontram no segmento iurdiano um espaço acolhedor que lhes confere

dignidade, prestígio, ascensão social mediante os cargos e funções que passam a

desempenhar – oportunidades essas que muitas vezes se apresentam inacessíveis na

sociedade em geral.

Um terceiro aspecto que envolve representações messiânicas neste

segmento religioso pode ser observado na mobilização de símbolos e na auto-compreensão de

ser um grupo divinamente eleito para um combate ao reino do mal. Como observado

anteriormente, nas últimas décadas a cidade se tornou cada vez mais lugar do medo. Os

efeitos da pobreza e da urbanização acelerada promoveram um aumento espetacular da

violência. Os meios de comunicação de massa passaram a estampar diariamente informações

que propagam o medo, sobretudo pelo crime e morte violentos.816 Isso desencadeou uma

busca de amparo e proteção por meios que ultrapassam os recursos convencionais advindos

de órgãos públicos ou organizações privadas.

Observa-se também, pelos testemunhos, que os participantes da IURD dela

se aproximam orientados por um habitus marcado por um “encantamento”, cujo mundo é

intensamente habitado por forças espirituais. Dessa forma, é comum nos depoimentos sobre a

entrada na Igreja Universal perceber a idéia de que Deus, em todo tempo, estava querendo

mostrar o caminho ao ainda não convertido por meio de inúmeros sinais, aos quais se opunha

a todo tempo o Demônio, numa batalha espiritual: ter sido abordado na rua para recebimento

de panfletos com propaganda da IURD, assistido circunstancialmente ao programa de rádio e

TV (em que naquele programa, viu-se a própria vida sendo relatada pelos testemunhos

alheios), ou então, ter sentido tremuras nas pernas quando passou em frente da Igreja pela

primeira vez, e o Diabo fez que ele não quisesse entrar...817 Ou ainda, como descreve outro

depoimento, ter chegado à Igreja em condição de fracasso financeiro e crise familiar: “Havia

sido abandonado pela mulher e estava derrotado, ficando dias perambulando pela rua, sem 816 SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.817 Paulo César Oliveira, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 25 maio 2004.

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rumo, até que Deus fez com que fosse parar em frente à Igreja, foi quando ouvi uma cantoria

e o meu corpo ficou arrepiado e então decidi entrar. Então comecei a chorar e não conseguia

parar... era Deus que estava me chamando”.818

O espaço da crença se torna assim estratégico para a obtenção de amparo

por meios “sobrenaturais”, mágicos, pois no espaço iurdiano se opera um combate, uma

guerra contra as forças operantes do mal. A IURD entende que a origem do mal se deu a

partir de uma rebelião dos anjos no céu, comandada por Lúcifer, “querubim da guarda”,

culminando com a sua expulsão e a de seus seguidores. O orgulho teria feito que almejasse

ocupar a posição de Deus. Estaria aí a razão de sua queda. Edir Macedo, por exemplo,

fundamenta tal explicação na interpretação que dá a dois textos bíblicos do Antigo

Testamento: Isaías 14:12,14 e Ezequiel 28:11-19. Em sua obra Orixás, Caboclos e Guias, o

bispo explica que Lúcifer, tendo sido anjo criado por Deus, teve essa condição original até se

rebelar contra o Criador, pelo que foi amaldiçoado e, conseqüentemente, tornado-se demônio.

Esclarece que antes da “queda dos anjos”, Satanás liderava uma estrutura hierárquica desses

seres. “Dotados de livre arbítrio, eles podem escolher entre o obedecer a Deus ou rebelar-se

contra Ele. Prova é que numerosos anjos, um terço, decidiram seguir a rebelião de Satanás e

transformaram-se em demônios” – declara Macedo. 819Assim, após ter sido expulso da

presença de Deus, perdendo sua condição original, Satanás teria organizado os anjos

decaídos, os demônios, para atuarem em áreas e regiões distintas em toda terra com o

objetivo de dominá-la, passando a fustigar o mundo e a humanidade a partir do momento em

que esta também veio a ser criada. Cheios de ódio e vingativos fazem de tudo para prejudicar

a obra de Deus, principalmente o ser humano.

A partir de uma configuração cultural, portanto, no âmbito do “grupo

eleito” iurdiano, em que entram teologias, teogonias, antropogonias e uma série de mitos

ancestrais, a cosmologia iurdiana se assemelha à visão tripartida do imaginário religioso

hebreu, descrito nas Escrituras Bíblicas, que separava o cosmos em três dimensões: céu,

morada de Deus e de seus anjos; terra, uma criação divina entregue aos seres humanos;

inferno, regiões inferiores destinada a acolher as almas dos mortos e demônios. O mundo é

assim concebido como uma arena onde se trava a luta entre Deus, o Diabo e seus anjos. O

objeto dessa guerra é o ser humano. Para a IURD os demônios existem, estão soltos e cada

vez mais astutos no propósito de causar diversos males na vida das pessoas. “Vivemos em

818 Afonso Vítor Martins, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 13 jun. 2005.819 MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 1. Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 1998, p. 105.

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plena era do mal” - enfatiza o bispo Macedo.820 Em seu Manual do Obreiro, a Igreja expressa

bem o imaginário permeado por forças do mal em que desenvolve suas práticas:Acredi tamos que os demônios a tuam na v ida das pessoas com o propós i to de afas tá- la s de Deus e não de ixá- la s e conseqüentemente , entender o p lano d iv ino para suas v idas . Daí en tendermos que a pr imei ra co i sa que deve se r fe i t a com a lguém, pa ra t razê - lo ao Senhor e l iber tá- lo do poder e da inf luênc ia do d iabo e dos seus anjos , os demônios ( . . . ) Uma vez l iber tado dessa inf luência , a pessoa pode encontrar forças para persevera r em seguir ao Senhor Jesus e caminhar a v ida cr i s tã de uma mane i ra v i tor iosa . 8 2 1

Argumenta o bispo Macedo que os demônios, que são espíritos imundos,

não têm corpo nem sexo. Eles são espíritos que sabem que para se expressarem nesse mundo

material precisam de corpos, por isso atraem, cativam e iludem as pessoas com intenção de

destruí-las e usá-las para fazer o mesmo com as demais. Como forças espirituais do mal,

esses espíritos usam corpos dos homens para realizar e expressar suas ações maléficas contra

Deus e os seres humanos. “Atuam agora gerando enfermidades, desastres, medo, insônia,

depressão, desejo de suicídio, destruição dos lares etc. sobre a vida das pessoas”.822

Em uma outra reportagem, a IURD afirma que “existem inúmeras pessoas

de boa índole, sinceras na fé, mas enganadas pelas mentiras, as falsas curas e sinais

demonstrados por esses espíritos. A Bíblia não é contra tais pessoas, mas condena

veementemente essas práticas”.823 A Universal acredita, assim, que aquilo que se passa no

“mundo material” decorre da guerra entre as forças divina e demoníaca no “mundo

espiritual”, tendo como protagonistas Deus/anjos versus Diabo/demônios. Os seres humanos,

porém, conscientes disso ou não, participam ativamente de uma ou de outra frente de batalha.

A Igreja faz o papel de engajá-los do lado divino, fazendo com que seus fiéis adquiram poder

e autoridade para reverter e destruir as obras do mal. Há, assim, uma convocação para uma

batalha coletiva contra o mal. Aqueles que, por razões de tempo, vontade ou aptidão, não

podem se dedicar ao trabalho como pastores ou obreiros, são exortados não somente a ofertar

dízimos para a expansão do reino de Deus na terra, mas também se engajar na “batalha

espiritual” contra as potestades do mal, a pregar o evangelho mediante distribuição de

panfletos evangelísticos em locais públicos, convidando amigos, parentes e vizinhos para

comparecerem aos templos.

820 MACEDO, Edir. A libertação da teologia, p. 117.821 MANUAL DO OBREIRO: Estatuto e regimento interno da Igreja Universal do Reino de Deus. Op. cit.822 MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 2. Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 1999, p. 58.823 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, p. 14-16, mar. 1999.

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Maria Isaura de Queiroz824 identifica como um dos componentes

fundamentais para o desenvolvimento de movimentos messiânicos a presença e a atuação de

um líder que acredita - e cuja representação também lhe é atribuída por seus fiéis - ser

possuidor de poderes sobrenaturais. E a força mobilizadora dessa verdade estabelecida é

capaz de atrair grande massa de seguidores a partir da projeção das representações que se

constitui em torno da pessoa. Nesse sentido, os líderes iurdianos são vistos como detentores

de um saber ou de um conhecimento diferenciado sobre o sagrado e, como tais, profetas

portadores de uma nova mensagem divina no combate ao mal, como se pode observar nas

palavras de Edir Macedo:O Espír i to do Senhor nos t em di r ig ido , razão pe la qual es tamos p i sando a cabeça de sa tanás . Em nossas reuniões , os demônios são humilhados e a té mesmo achinca lhados , numa prova de que o Senhor e s tá conosco . ( . . . ) Se uma pessoa chegar à Igre ja no momento em que as pessoas e s tão sendo l ibe r tas , poderão a té pensa r que es tão num cent ro de macumba ( . . . ) t emos a impressão que aquelas pessoas f ica ram loucas , en t re tan to , após a lguns momentos , quando fazemos a l impeza em suas v idas ( . . . ) a í vem a bonança , a paz ( . . . ) em seus ros tos t r ansparece a a legr ia da l iber tação . 8 2 5

No âmbito do grupo iurdiano, o aparecimento e a atuação do “líder

carismático” presume que sua autoridade esteja em “harmonia direta com a “vontade divina”,

e que ele foi chamado a cumprir” especial missão contra um reino demoníaco.826 J. Cabral,

escritor da IURD, no prefácio que apresenta ao livro best seller de Macedo, Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?, faz a seguinte afirmação em relação ao bispo:

Tem dedicado toda a sua v ida a lu tar cont ra os demônios , por quem tem repugnânc ia , r a iva . O b ispo Macedo tem desencadeado uma verdadei ra guer ra san ta cont ra toda a obra do d iabo . 8 2 7

Na visão da IURD, o Diabo está no mundo tentando tomar conta dele. E

esse “reino do mal” a ser enfrentado e combatido pode ser identificado em algumas “faces”.

Num primeiro momento, apresenta-se através de falsas religiões. Estas podem se apresentar

na roupagem do catolicismo, como se pôde observar no episódio do “chute na santa”,

conforme já destacado. No entanto, tais formas de “engano religioso” são identificadas

prioritariamente pela IURD nas crenças afro-brasileiras. Obviamente, contribui para isto a

passagem de Macedo pela umbanda e candomblé, como ele mesmo o declara, reivindicando

a autoridade da experiência pessoal no conhecimento de tal universo religioso.828 Macedo

824 QUEIROZ, M. I. P. Messianismo no Brasil e no mundo, p. 165ss.825 MACEDO, Edir. O Espírito Santo. Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 1993, p. 134.826 CAMPO, Bernardo. Op. cit., p. 53.827MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, p. 14.828Id., ibid., p. 91.

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adverte que os demônios procuram se “disfarçar de santos” e cheios de filosofias

“aparentemente cristãs” criam religiões onde transformam seres humanos em “cavalos” e

“aparelhos”. A Igreja explica que normalmente se tem entendido que essas entidades

desenvolveram práticas específicas para cada classe social, ou seja, o “baixo espiritismo”

(umbanda, candomblé, quimbanda etc) com seus terreiros e figuras ameríndias estariam

voltadas às camadas mais populares da população; enquanto que o “alto espiritismo”,

também conhecido como científico (kardecismo, esoterismo e outros), estaria voltado para

“os intelectualizados”. A IURD, porém, alerta que a origem e as manifestações são as

mesmas: O exu que ba ixa nos t e r re i ros é o médico conselhe i ro no esp ir i t i smo e ass im por d ian te . Essas en t idades , para jus t i f icar a própr ia exi s tência , inventaram his tór ias de v idas t e r renas , como se fossem suas , e ho je mor tos v ivem em out ro p lano esp i r i tua l v indo a t e r ra para pre judicar . Os f i lhos de san to e f reqüentadores são or ien tados a fazerem t rabalhos pa ra expulsa r os esp í r i tos encarnados , obsessores . 8 2 9

Sobre os milagres atribuídos aos santos católicos, ou então viabilizados por

um trabalho mediúnico, Macedo também é contundente em suas palavras:Não são milagres fe i tos pe los servos de Deus que já fa leceram, pois os mor tos não vol tam e nada podem fazer por nós . Tra ta-se de engano de Satanás , que pode per fe i t amente i lud ir pessoas e sp i r i tua lmente caren tes . O d iabo é capaz de esc rav iza r uma pessoa durante anos , co locando- lhe uma doença , depois quando lhe for convenien te , t ambém pode re t i r ar suas garras de modo que pareça es tar acontecendo uma cura . E i s a expl icação para tan tas curas mediúnicas e tan tos mi lagres a t r ibu ídos aos san tos . 8 3 0

Em depoimentos, os fiéis também constatam bem esses aspectos ao

testemunhar que foram “libertos” de crenças identificadas como diabólicas, conforme é o

caso relatado a seguir: Estava comple tamente endiv idado no banco e era juros sobre juros . . . F reqüente i a té por a lgum tempo a Se icho-no- iê e nada , a d ív ida só i a c rescendo. Mais t a rde f iquei sabendo que haviam fe i to um ‘ t rabalho de macumba’ cont ra mim para que as co i sas fossem de mal a p ior ; fo i uma mulher com quem terminei um re lac ionamento . Quando cheguei à Igre ja sen t i uma co isa mui to es t ranha , um ar rep io e en tão um obre i ro orou para que o demônio sa ísse da minha v ida , para que e la fosse “desamarrada” . Sent i en tão uma espécie de a l ív io . . . 8 3 1

829 Id., ibid.,830 MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 2. Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 1999, p. 93, 94.831Luiz Henrique Camargo, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 18 abr. 2005.

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Continua relatando que uma série de eventos posteriores começaram a

rearticular sua vida financeira e vindo a receber maior salário devido a uma promoção no

emprego e ressalta a importância da Igreja: “Hoje eu sei que foi ‘trabalho da ex-amante’ que

fez com que eu ‘andasse para trás’... E só quando encontrei Jesus na Igreja Universal minha

vida foi abençoada”.

Em relação às crenças afro, líderes e fiéis sentem não só o direito, mas

também o dever de combatê-las. Constatando nelas a presença do Diabo e seus demônios

agentes, a IURD promove dois tipos de combates: invoca tais agentes inimigos dentro dos

seus rituais de libertação para serem exorcizados; e desempenha uma “batalha espiritual” de

ocupação de espaços físicos religiosos, o que tem desencadeado, por vezes, conflitos em

relação às crenças afro. Como já mencionado, ao se expandir no Estado da Bahia, a IURD

acirrou os ânimos quando passou a desclassificar em seus programas de rádio e televisão os

orixás, igualando-os aos demônios identificados pelo cristianismo, e também chegando a

promover invasões em terreiros de culto afro. A reação da população ligada a tais cultos

manifestou-se na forma de conflitos físicos entre pastores e adeptos de diferentes terreiros,

em tentativas de fechar templos e prender pastores. Dessa forma, a IURD reconhece,

legitima e reafirma a força das religiões afro, fazendo com que tais crenças, de maneira

ambígua, ao serem combatidas acabem sendo muito valorizadas devido à capacidade que têm

de interferir negativamente na vida das pessoas. Afinal, quanto mais poderosos forem os

inimigos diabólicos, maior será a vitória e a necessidade de se pertencer à Igreja. Assim, ao

identificar tais crenças como verdadeiras e perigosas, a IURD se apresenta aos seus fiéis

como única força capaz de enfrentá-las ou, então, lugar de proteção e segurança frente a tais

ameaças.

Fechar centros espíritas, tendas de umbanda e terreiros de candomblé

situados ao redor de seus templos se deve a propósitos expansionistas, mas também ao que a

IURD chama de “demarcação de território”, ou conquista de espaço para o reino de Deus.

Seus líderes e seguidores entendem que é preciso tomar conta do mundo e libertá-lo, antes

que os seguidores do mal o dominem. Segundo Macedo, para que a igreja não seja “apenas

um clube”, deve usar e mostrar o seu poder no combate a este “anti-reino”:Podemos cons idera r uma igre ja for te se e la es tá a l i s tada para a lu ta cont ra todas as po tes tades infernai s . . . e se na igre ja o poder de Deus sobre os demônios não é exerc i tado , e la se t r ansforma em um c lube ou em uma escola b íb l ica . Evangelho é poder , e poder t em de se r exe rc ido , pa ra a der ro ta de sa tanás ( . . . ) e a g lór ia de Deus! 8 3 2

832 MACEDO, E. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, p. 138.

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Portanto, se esse mal se utiliza de cinemas para a projeção de filmes

imorais, que se instalem em tais lugares templos; se emissoras de televisão estão a serviço do

mal, que se comprem emissoras de televisão para enfrentá-lo em condições de igualdade.

Uma outra “face” do reino do mal a ser vencido tem dimensões políticas.

Vale citar Eric Hobsbawm quando afirma que “os movimentos messiânicos são formas

religiosas de também se demonstrar necessidades e exigências políticas”.833 No movimento

iurdiano cria-se um ambiente messiânico que se configura como uma espécie de contra-poder político-religioso em nível local e terreno. A IURD faz com que as práticas ali

vivenciadas “respondam aos processos de modernização que se impõem à sociedade,

favorecendo a sobrevivência e a ascensão social”.834 Nesse sentido, suas práticas se

convertem em uma alternativa sociorreligiosa frente a uma contingência estabelecida, “uma

forma de resposta à situação de anomia social, produzida pelo processo de migração criado

na incipiente industrialização e urbanização da América Latina dependente”,835 significando a

possibilidade de construção de uma identidade popular pela mediação do religioso.

Destaca-se, como um dos elementos que dá sustentação às práticas

messiânicas com representações políticas, a apropriação de mitos e mobilização de símbolos

com forte apelo popular impregnados no imaginário coletivo. Sobre isto, Lévi-Straus afirma:

“sabe-se que todo mito é uma procura do tempo perdido”.836 Assim, na experiência

ritualística, “o fiel vive e revive mitos, com a ajuda de elementos tirados do seu passado”:837 O mi to é r ecr iado pe lo su je i to , que r se ja tomado de emprés t imo à t rad ição , e le absorve de suas fontes , ind iv idual ou co le t iva (en t re as quai s se produzem constan temente in terpenet rações e t rocas) , o mater ia l de imagens que e le emprega; mas a es t ru tura permanece a mesma, e é por e la que a função s imból ica se rea l iza . 8 3 8

O poder do mito resulta, pois, de acontecimentos históricos e socialmente

apropriados, temporalmente ligados à “longa duração”. Partindo da afirmação de Bourdieu de

que a emersão de representações que estão depositadas no imaginário coletivo ocorre pela

existência de um habitus, denota-se que essas configurações não são criadas e impostas a

partir de elementos externos, mas sim introjetadas pelos diferentes grupos que compõem a

sociedade, daí a sua força de arraigamento. Tais mecanismos, que vão além da “situação-

833 Apud NARBER, Gregg. Entre a cruz e a espada: violência e misticismo no Brasil rural. Op. cit., 2003, p. 22.834 CAMPOS, L. S. ; GUTIERREZ, B. (Orgs.) Op. cit., p. 14.835CAMPOS, Bernardo. Op. cit., p. 37.836 LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural, p. 236.837 Id., ibid., p. 230.838 Id., ibid., p. 235.

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limite”, tornam-se os elementos mais profundos em tais mobilizações sociais, como afirma

Joanilho: Para que as idé ias possam congregar pessoas , a lém da s i tuação-l imi te é prec iso que a t in jam as expecta t ivas , c r iem poss ib i l idades ( . . . ) pa ra que as pessoas se a ssociem a uma idé ia para mudar de terminada s i tuação , devem ver ne la uma ressonância de seus dese jos e asp i rações . É prec i so que ve jam nela uma sa ída ( . . . ) Ass im, todo movimento de revol ta procura e s tabelecer a lguns s ímbolos que lhe dão ident idade , t en tando a t ing ir e representar e sses dese jos , ( . . . ) e formar uma cumpl ic idade na ação co le t iva . 8 3 9

Destacam-se ainda as palavras de Joanilho quando classifica tais

movimentos salvacionistas como “sócio-mitológicos”:840

Muitos movimentos , mesmo der ro tados mi l i t a rmente , permanecem na memória soc ia l e por e la são re l idos ( . . . ) Mui tas exper iênc ias que foram pos tas em prá t ica em movimentos , vão sendo reapropr iadas ( . . . ) Ao ser r eapropr iada pe la memór ia soc ia l , a r evol ta ganha rea lmente impor tância , i s to é , passa a se r u t i l i zada de forma d i feren te pe las pessoas , de acordo com o contex to em que v ivem. 8 4 1

Estudos sobre os participantes de movimentos carismáticos mostram que os

devotos acreditam ter adquirido uma capacidade maior de enfrentar as contingências do dia-

a-dia graças à sua experiência religiosa: “de fato, nem mesmo o colapso final do movimento

carismático elimina a fé profundamente arraigada dos crentes; uma fé que se tornou

fundamental para a sua identidade”.842 E, nesse sentido, os movimentos messiânicos

expressam além de revolta e protesto, uma expressão de “eterno retorno”, o que pode ser

aplicado ao caso iurdiano: Sempre há nas revol ta s uma idé ia de re torno a um passado grandioso ou uma ida ao fu turo onde se rea l izarão os dese jos . Ou melhor a inda , a propos ta é de um re torno ao fu turo , i s to é , a soc iedade te rá de vol ta o que fo i perd ido . É o mi to do e terno re torno . 8 4 3

É também relevante a compreensão feita por Max Weber de que “processo

de simbolização cumpre sua função essencial de legitimar e justificar a unidade do sistema de

poder, fornecendo-lhe o estoque de símbolos necessários à sua expressão”.844 Comentando

ainda este aspecto, Sérgio Miceli afirma que, segundo Weber, o discurso do agente religioso

carismático não constitui “mero epifenômeno da realidade social”, e acrescenta:Sem os s ímbolos que são os mate r ia i s s ign i f ican tes que a dout r ina t ransmi te como se fossem s igni f icações não-arb i t r ár ia s , não pode

839 JOANILHO, André Luiz. Revoltas e rebeliões. São Paulo: Contexto, 1989, p. 19-20.840 Joanilho usa tal terminologia para identificar, caracterizar e situar historicamente os principais movimentos com caráter messiânico-milenaristas desenvolvidos no Brasil. Op. cit., p. 73-75.841 Ibid., p. 54-55.842 LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural, p. 233.843 JOANILHO, A. L. Op. cit., p. 67-68.844 MICELI, Sérgio. A Força do Sentido. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. LIV.

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haver expressão de uma es fera propr iamente econômica e mui to menos uma es t ru tura de poder . 8 4 5

Bourdieu afirma que Weber encontra os meios de correlacionar o “conteúdo

do discurso mítico” aos interesses religiosos daqueles que “o produzem, que o difundem e

que o recebem”.846 Comentando este aspecto, Miceli afirma:O tema cent ra l d iz respe i to , por tan to , à s r e lações en t re s i s temas s imból icos – como por exemplo , a s c renças re l ig iosas ( . . . ) – e o s is tema de c la sses e grupos de s ta tus , e a e s t ru tura de poder da í r esu l tan te ( . . . ) o a lvo ú l t imo de Weber cons is te em compreender o processo de d i fusão e mobi l i zação a t r avés do qua l uma dada or ien tação re l ig iosa pode tornar- se a concepção do mundo dominante para toda uma soc iedade . 8 4 7

Quando líderes e fiéis iurdianos exaltam poderes divinos, apresentando-o

como cura para os males presentes e sentidos de modo imediato, transferem para um

ambiente intra-histórico, o grupo, a aspiração de uma libertação latente, que tem implicações

sociais. Assim, a IURD, num dinamismo aparentemente paradoxal, ao mesmo tempo que

acena aos seus adeptos com os bens de consumo que a sociedade capitalista tem para seduzir,

acaba por representar uma forma de reação e enfrentamento da situação adversa que o

sistema estabelecido também lhes proporcionou:A re l ig iosidade f reqüentemente se encontra na base dos grandes movimentos populares de contes tação pol í t i ca , como fo i o caso de Canudos e do Contestado ( . . . ) Os movimentos re l ig iosos populares de Canudos Juazei ro e Contes tado não são resu l tado de iso lamento sócio-pol í t i co redundando em fanat i smo, mas são uma resposta concre ta , de ca rá te r re l ig ioso , a r t i cu lada a t r ansformações pol í t i cas na soc iedade bras i l e i ra e percebidas como adversas pa ra os f racos e despro teg idos . Não é por a l i enação que a re spos ta de t ipo milena r i s ta se e fe tua . 8 4 8

Segundo Chauí, a resposta messiânica à adversidade social e política possui

qualidades que a revestem de religiosidade, permitindo que haja o desejo profundo de

“mudança da ordem vigente aqui e agora”, ou ainda, a expressão do sentimento “dos

oprimidos de que eles são mais fracos que os opressores” e que só poderão superar os

desafios do contexto urgente, pela união de todos, “formando uma comunidade verdadeira e

nova, indivisa, protótipo do mundo que há de vir”.849

Na IURD, portanto, os agentes sociais, utilizando-se de um capital cultural

ao seu alcance, introjetado pelo habitus, reconstroem ou resignificam sua identidade “capaz 845 Id., ibid., p. LIX.846 Id., ibid., p. 32.847 Id., ibid., p. LII.848 CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência. Aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 75.849 Id., ibid., p. 76.

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de redefinir sua posição na sociedade” e de fazê-los buscar a transformação do contexto

social em que estão inseridos: “a identidade destinada à resistência leva à formação de

comunas, ou comunidades”.850 Por tal identidade pode-se entender “a fonte de significado e

experiência de um povo”, ou “o processo de construção de significado com base em um

atributo cultural, assim como um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s)

qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado”.851 Os imaginár ios soc ia is organizam e cont ro lam o tempo cole t ivo , in te r fe rem na produção da memór ia e nas v i sões de fu turo . Por meio de les , uma co le t iv idade designa sua ident idade e laborando uma representação de s i p rópr ia ; a representação to ta l i zan te da soc iedade ind ica uma ordem por meio da qua l cada e lemento tem seu lugar , sua ident idade e sua razão de se r . 8 5 2

No movimento iurdiano, líderes e fiéis, enquanto atores sociais,

internalizaram uma “identidade de resistência coletiva”, a qual “é criada [ou recriada] por

atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas” por um

contexto de vida que se lhes tornou desfavorável e excludente, levando-os a criar “trincheiras

de resistência e sobrevivência”, com base em identidades que já haviam sido anteriormente

“definidas pela história”.853

3.7 - O palimpsesto cultural das práticas iurdianas

Como figura de linguagem, pode-se empregar a representação do

“palimpsesto”854 para identificar o modo pelo qual antigas crenças, muitas vezes combatidas e

aparentemente extirpadas, histórica e culturalmente, mantêm a força para resistir e ressurgir

com uma nova roupagem nas expressões do sagrado, no contexto religioso brasileiro

contemporâneo. Tomando-se o protestantismo histórico como referência, observa-se que este

segmento, em mais de um século de atuação no contexto brasileiro, manteve-se um elemento

estranho ao universo cultural-religioso que configura o país. Para os missionários que

chegaram ao Brasil, no século XIX, era preciso substituir uma cultura considerada “inferior e

idolátrica” por valores culturais e normas sociais superiores. Assim, nota-se uma atitude

850 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 25.851 Id., ibid., p. 22.852 CAPELATO, M. H, Op. cit., p. 211-277.853 CASTELLS, M. Op. cit., p. 24, 25.854Palavra de origem grega empregada para identificar um antigo material de escrita, conhecido como “pergaminho”, o qual, em razão da sua escassez ou alto preço, era raspado por copistas para permitir novos registros. Assim, após um determinado tempo em que fora apagada, a antiga escrita costumava reaparecer sob o novo texto impresso, permitindo, inclusive, a releitura ou decifração do que havia sido ali primeiramente redigido.

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semelhante a que é identificada por Jacques Le Goff quando emprega o termo “obliteração”

para se referir ao esforço empreendido pelo catolicismo medieval no sentido de realizar uma

“sobreposição dos temas, das práticas e dos monumentos cristãos sobre os antecessores

pagãos”. Naquele contexto, “luta-se por não haver sucessão; há uma abolição. A cultura

clerical encobre, oculta e elimina a cultura folclórica” – afirma Le Goff.855 Já nos primeiros

esforços de inserção empreendidos pelo protestantismo no Brasil, ficava demonstrada a

inabilidade para lidar com as regras existentes neste novo campo. Enquanto que, com

plasticidade, o português – durante o período colonial - “americanizava-se” ou “africanizava-

se” conforme fosse preciso, cedendo com “docilidade ao prestígio comunicativo dos

costumes, da linguagem e das seitas dos indígenas”, o protestantismo era inflexível diante de

elementos culturais, como observa Sérgio Buarque de Holanda: Ao opos to do ca to l ic i smo, a re l ig ião reformada oferec ia nenhuma espécie de exci tação aos sen t idos ou à imaginação dessa gente , e a ss im não proporc ionava nenhum ter reno de t r ans ição por onde sua re l ig ião pudesse acomodar- se aos idea i s c r i s tãos . 8 5 6

Quando, finalmente, conseguiu inserir-se no país, finalmente, no século

XIX, continuou sendo “um elemento estranho à realidade cultural brasileira”.857 Em sua face

mais européia, como no caso dos luteranos alemães que se estabeleceram no Sul do país, a

preocupação era a de preservar valores culturais de origem, como um valor identitário, sendo

os cultos feitos inclusive na língua estrangeira. Em sua vertente norte-americana, o

comprometimento era com o chamado “Destino Manifesto”, que pressupunha ser a

“civilização cristã norte-americana” o protótipo do reino messiânico que se consolidaria com

o retorno de Cristo a terra. Assim, àquele povo, divinamente eleito, caberia então a tarefa de

evangelizar as outras nações:( . . . ) uma inc r íve l inquie tação mess iân ico-mi lena r i s ta na América do Nor te a t ing iu seu auge no século XIX. ( . . . ) Para mui tos l íderes e pensadores ec les iás t i cos a v inda g lor iosa do Re ino se dar ia após a implantação da c iv i l ização c r i s tã ; por i s so a c r i s t i an ização da sociedade ser ia uma preparação para a v inda do Re ino de Deus, f a to que promoveu a empresa miss ionár ia v ia “Des t ino Mani fes to” . 8 5 8

As palavras a seguir retratam bem o perfil do protestantismo clássico que se

desenvolveu no país, destacando-se a sua dificuldade de inserção, sobretudo, nas camadas

855 LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente, p. 214.856HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 65.857ALVES, Rubem. Protestantismo: dogmatismo e tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982.858 MENDONÇA, A. G. O celeste porvir, p. 55.

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mais populares e a perda de espaço “na luta entre diferentes empresas de bens de

salvação”:859

A ét ica pro tes tan te rompia com dive rsos padrões do ca to l ic i smo medieva l . Além de red i rec ionar a ascese , o pro tes tan t i smo nega vár ios sacramentos , a devoção aos san tos ques t ionando mi lagres . Ao mesmo tempo em que d iminui a quant idade de r i tua i s , re je i t a a prá t i ca de promessas e r ezas t rad ic iona is , e s t imulando a le i tura e in te rpre tação da Bíb l ia por todos . Era a ss im uma re l ig ião menos r i tua l i s ta , mais in te lec tua l izada , ma is é t i ca , menos encantada , menos “mágica” . A rac iona l ização moderna oc identa l se expressa bem nessa ten ta t iva pro tes tan te de se l iv ra r de qua lquer proximidade com o que Weber de f ine como o t ipo idea l de magia . 8 6 0

E mesmo no caso do pentecostalismo clássico - não obstante seu avanço de

aproximação dos estratos sociais mais amplos da sociedade brasileira – muitos dos seus

referenciais continuaram sendo externos. Os missionários - responsáveis por sua introdução

no país - eram todos estrangeiros, daí uma preocupação rígida quanto aos usos e costumes,

por exemplo, e mesmo em relação a qualquer comportamento social que lembrasse

“catolicismo” ou até mesmo com relação à prática de esportes ou à participação de

determinadas atividades sociais. O pentecostalismo classificou os cuidados estéticos do corpo

como “vaidade” e, portanto, algo perigoso para a espiritualidade cristã.

É notório, portanto, que a IURD tenha adquirido uma identificação cultural

sem precedentes com elementos do campo religioso brasileiro. Em relação aos “usos e

costumes”, por exemplo, conecta perfeitamente a fé a elementos associados ao “valor ao

corpo”. Seria simplesmente inconcebível imaginar as primeiras formas de pentecostalismo

desenvolvidas no campo religioso brasileiro, estampando como propaganda ou testemunho

da bênção divina alcançada, a seguinte manchete: “Quando a fé e a beleza são fundamentais:

conheça o testemunho de quem tem alcançado a prosperidade” – título que aparece em artigo

da Revista Plenitude,861 destacando o lançamento, pelo empreendimento de membros da

Igreja Universal, de uma linha de produtos de beleza, direcionada “especialmente ao público

evangélico”. Composta por cerca de duzentos produtos, “traz citações de versículos bíblicos

nas embalagens e nomes patenteados ligados à Bíblia”. Ressalta ainda a reportagem que “os

cuidados com a beleza exterior não são sinais de falta de espiritualidade”. A IURD responde

assim ao pluralismo que historicamente configura o campo religioso brasileiro, estabelecendo

859MICELI, Sérgio. A força do sentido. In: BOUDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. XIII.860MARIZ, Cecília Loreto. A sociologia da religião de Max Weber. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 77.861 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 67, p. 34, 1999.

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ressonância identitária com o capital simbólico cultural nele disposto, do qual se apropria.

Esse compósito cultural ou folclórico pode ser entendido como: O conjunto de representações co le t ivas sed imentadas que , t ransmi t idas de uma ge ração pa ra out ra , formaram um subs tra to comum a todos , uma espécie de ma t r iz re l ig iosa , que permanece subjacente ao ca to l ic i smo, a cer tas formas de kardeci smo e re l ig iões a f ro-bras i le i ras . Esse te r reno contém o húmus no qua l o neopentecos ta l i smo se a l imenta t an to r i tua l como teo logicamente , ao se apropr ia r de s ímbolos , l inguagens e v i sões de mundo preexis ten te ao seu surg imento na h i s tór ia . 8 6 2

Segundo Bourdieu, há uma relação de tripla dimensão no campo cultural:

recuperação e integração do passado dentro do presente, paródia e repulsa e ruptura –

responsáveis por promover “revoluções” culturais. Na trajetória histórica da IURD, é

possível identificar esses movimentos acontecendo simultaneamente. Sobre o processo de

apropriação e assimilaridade de elementos culturais, Roger Chartier comenta que um dos

elementos característicos dos campos culturais reside na sua relação mais forte, mais do que

em outros campos, “do presente com um passado de longa duração”.863 Diante disso, pode-se

dizer que os campos culturais carac ter izam-se pe la incorporação , em cada momento h i s tór ico , de sua própr ia h i s tór ia , a pa r t i r dos d iversos t ipos de r e lação que os c r iadores , os produtores es té t i cos ou in te lec tua i s , num dado momento do tempo, t êm com o passado do campo, d i sc ip l ina ou prá t ica . 8 6 4

Para a ocorrência desse processo de ressonância cultural são decisivos a

orquestração do habitus - que permite uma conversão sem rupturas – e uma apropriação e

resignificação de ritos católicos e afro-brasileiros. Os discursos, as configurações conceituais

e as práticas iurdianas consistem, pois, em apropriações de uma realidade simbólica social já

existente, estruturas essas que “são historicamente produzidas pelas práticas articuladas

(políticas, sociais, discursivas) que constroem as suas figuras”.865 Segundo Durkheim, “a

religião é um fato social, tem história, estrutura e função (...) é um fenômeno coletivo e

objetivo”, sendo um dos aspectos que lhe dá objetividade a sua “transmissão de uma geração

para outra”, fazendo que o indivíduo “a adquira tal como o faz com a linguagem”, por

exemplo.866 Observa-se que pela incorporação do e pelo processo histórico as representações

apreendidas e estruturadas pelas práticas iurdianas estão relacionadas “com os esquemas 862 CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 19, 20.863 CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 142.864 Id., ibid., p. 141.865 Id., A História Cultural: entre práticas e representações, p. 19, 27, 28.866 Apud EVANS-PRITCHARD. Op. cit., p. 79, 81.

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interiorizados, categorias incorporadas, que as geram e estruturam”. Essa subjetividade da

experiência religiosa objetiva-se em práticas e discursos à medida que responde a uma

demanda social, ou seja, é capaz de dar sentido à existência de um grupo: “A noção de

habitus ajuda a explicar a unidade de estilo que une as práticas e os bens de um agente

singular ou de um grupo de agentes”.867 Logo, os agentes iurdianos, orientados por um

habitus orquestrador, não precisam entrar em acordo “racional” ou formalmente protocolado

para agir da mesma maneira: cada um, obedecendo a um “gosto pessoal”, realizando o seu

projeto individual, concorda de maneira espontânea e sem saber com um número incontável

de outros que pensam, sentem e escolhem semelhantemente a ele. Daí as práticas coletivas

iurdianas adquirirem coerência e sentido aos seus adeptos.

Contribui diretamente para esse processo de assimilaridade do capital-

cultural do campo o fato dos agentes iurdianos, líderes e fiéis, não se despojarem de suas

raízes culturais de origem. Em relação aos fiéis, a mensagem iurdiana evita uma ruptura com

o universo representacional e com as vivências religiosas anteriormente experimentadas, fato

que contribui para que haja uma rápida adaptação ao grupo, dos que recorrem aos seus

templos. Afinal, quando se passa parte da vida freqüentando cultos afro-brasileiros ou

fazendo promessas a santos é porque esse referencial faz um sentido. A importância dessas

crenças já existentes para a operosidade da IURD pode ser observada no depoimento de seus

líderes:O bispo Macedo é uma pessoa mui to prá t i ca . E uma vez e le e s tava conversando conosco e d i sse que o Bras i l é um grande te r re i ro de macumba . E nós t emos t rabalhado exa tamente em c ima da exper iênc ia do bras i l e i ro . . . No Rio de Janei ro quando você pergunta “quem ve io da umbanda , do candomblé , do esp ir i t i smo”, 90% levanta a mão ( . . . ) Mui tas vezes nós somos c r i t i cados porque procuramos desper tar a fé do povo da mane ira mais s imples e da manei ra mais pa lpáve l ( . . . ) Para desper tar a fé da pessoa , nós às vezes en t regamos a lguma coisa na sua mão d izendo que aqui lo é exa tamente a lgo que va i a judá- la . Então , cada vez que e la o lha aque le obje to , e la va i d izer “eu vou consegui r” . Então porque não pegar a a r ruda que é um negócio que todo mundo conhece no Bras i l? Eu já f i z e se i o re su l tado d isso . Você bota a ar ruda numa bacia de água e espa lha , onde ba te aquela água o camarada , se e le e s tá endemoninhado, manifes ta demônio ( . . . ) Essas co isas você faz para desper tar a fé das pessoas e , inc lus ive , u t i l izar o que es tá a r ra igado no subconscien te co le t ivo bras i l e i ro para fomenta r a fé e l ibe r tar a pessoa . ( . . . ) Out ro d ia eu es tava conversando com o b i spo Macedo. “Escuta , b i spo , a fu lana – a gente conversa mui to sobre exper iência – ac red i ta que es teve na França e t rouxe de lá po tes tade e tc .” Ele me respondeu: “Ela acredi ta ni sso? Trabalhe em c ima do que e la acredita” . 8 6 8 [g r i fo nosso]

867 Cf. BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 83.868 Paulo De Velasco, pastor da IURD - e, na ocasião, deputado federal – em depoimento à Revista Isto É, São Paulo, 25 jan. 1995.

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Também um relato apresentado pela Folha Universal, transcrito a seguir,

exemplifica bem como a mensagem iurdiana encontra ressonância no habitus religioso de

seus fiéis:Alzi ra Vargas , ex-mãe-de-santo durante 25 anos , fo i a t ra ída pe las pregações da Te lev isão Record e conta que , depois de t e r t ido a lgumas f rus t rações com as r e l ig iões a f ro-bras i l e i ra s f i cou na seguin te s i tuação , da qual sa iu a t ravés de uma exper iência de conversão: “Passe i a t e r insônia ; audição de vozes ; dese jo de su ic íd io ; pe rd i a minha casa e os meus car ros ; f iquei com uma d ív ida a l t í s s ima no banco que me mandou pa ra ca r tór io ; enf im e les , os or ixás , me tomaram tudo . Aí fo i o meu fundo do poço” . A sua chegada na igre ja se deu da seguin te forma: “Foi no d ia que ten te i su ic íd io . Comple tamente louca e dec id ida , apanhei o revólve r e l igue i a t e lev i são para abafar o som do t i ro , porque meu f i lho es tava dormindo. Quanto l iguei a t e lev i são ca iu no cana l 13 [TV Record no Rio de Janei ro] . Não se i porquê , mas f iquei h ipnot izada , ass i s t indo à oração do pas tor ( . . . ) passou no rodapé da t e lev isão ‘pa re de sofre r ’ e o t e le fone . ( . . . ) F ique i desesperada para i r l á querendo fa la r com o pas tor ( . . . ) Apanhe i um táx i naque le momento e fu i a IURD de Bota fogo ( . . . ) O pas tor me a tendeu com pac iência , me or ien tou , fez uma oração , a qual me fez sa i r da l i l eve e com uma força incr íve l ( . . . ) quando cheguei em casa t ive forças para quebra r todo o barracão ( . . . ) des t ru í tudo” . 8 6 9

Em outro depoimento, uma fiel da IURD faz a seguinte afirmação: “Na

Universal é que eu me encontrei depois de muitos anos [...] depois de ter passado pela Igreja

Católica [...] terreiro, de mesa branca e ter feito muito trabalho...”870 As palavras a seguir

confirmam semelhante constatação: José Adalber to S i lva d iz que tocava a tabaque num “Centro Espí r i ta” . No meio de uma cr ise se embr iagou e fo i pa ra a casa com o obje t ivo de pra t i car o su ic íd io . Foi en tão que ouviu no rád io uma oração de Edi r Macedo, que o fez procura r um templo da IURD, loca l izado no ba i r ro do Guarani , em Belo Hor izonte e a l i , d iz e le , “comece i meu processo de l ibe r tação” . 8 7 1

Essa continuidade de profundas experiências religiosas anteriormente

vivenciadas pelos fiéis, em práticas agora resignificadas, está de acordo com os conceitos

formulados por Mircea Eliade de que “o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância

da vida espiritual”, e que se pode “camuflá-los ou mutilá-los”, mas que jamais se pode

“extirpá-los”, como afirma o mesmo autor:O pensamento s imból ico é consubs tancia l ao ser humano; precede a l inguagem e a razão d i scurs iva . O s ímbolo revela cer tos a spec tos da r ea l idade – os ma is profundos ( . . . ) As imagens , os s ímbolos e os mitos não são cr iações i r r esponsáve is da ps ique; e las r espondem a

869Folha Universal, 02 abr. 2004.870Nereida Shlishia, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 29 maio 2005.871Folha Universal, 26 nov. 2003.

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uma necess idade e preenchem uma função: revelar as mais secre tas modal idades do se r . 8 7 2

A força de elementos simbólicos que emergem de crenças e desejos

impregnados no imaginário social dos seus adeptos mostram que nas práticas ritualísticas os

agentes “não se contentem em reproduzir ou representar mimicamente certos acontecimentos;

eles os revivem afetivamente em toda sua vivacidade, originalidade e violência”.873 Revivem

de “maneira muito precisa e intensa uma situação inicial, e a perceber dela mentalmente os

menores detalhes (...) o mesmo caráter de experiência vivida inicialmente”.874 Também

Eliade, ao falar sobre “o eterno retorno”, afirma que o “tempo sagrado” é, pela sua própria

natureza, reversível e recuperável, sendo os ritos um mecanismo importante para viabilizar

esse processo:Espéc ie de e te rno presente mí t ico que o homem re in tegra per iodicamente pe la l inguagem dos r i tos : Toda a f es ta re l ig iosa , todo o tempo l i tú rg ico , r epresenta a rea tua l ização de um evento sagrado que teve lugar num passado mít ico , “no começo”. ( . . . ) Por conseqüência , o tempo sagrado é indef in idamente recuperável , indef in idamente repe t íve l . 8 7 5

Apropriando-se de elementos de uma matriz cultural religiosa, a IURD

elaborou uma prática religiosa na qual o grau de semelhança com o catolicismo folclórico e

os cultos afros é muito evidente, tornando-se, por isso, uma igreja muito próxima das

aspirações religiosas do povo, de fácil assimilação, implicando um crescimento incomparável

na história recente do pentecostalismo. Em suas práticas a IURD demonstra os elementos

constitutivos da “alma religiosa”, fazendo assim uma paráfrase ao conceito utilizado por

Durkheim, segundo o qual a “sociedade é a alma da religião”.876 O “processo de

simbolização” - de que se reveste o carisma nas práticas da IURD - “cumpre sua função

essencial de legitimar e justificar a unidade do sistema de poder, fornecendo-lhe o estoque de

símbolos necessários à sua expressão”.877

Para alguém que tenha sido um praticante de ritos das religiões afro-

brasileiras ou tenha mantido algum tipo de crença nas práticas do catolicismo, como o

costume de acender velas ou invocar a proteção do anjo da guarda ou das santas almas num

872 ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 8, 9.873LÉVI-STRAUSS, Claude. O feiticeiro e sua magia. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural, p. 209.874Ibid., p. 223.875 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. Lisboa: Edição Livros do Brasil, s.d, p. 81, 82.876DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 496.877 MICELI, Sérgio. A força do sentido. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. LIV.

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momento de aflição, há uma identificação, uma noção de pertença a tal universo. Mediante o

dinamismo das práticas, o habitus iurdiano se tornou um conjunto de “esquemas que

permitiram aos agentes gerar uma infinidade de práticas adaptadas a situações que se

modificam de modo ininterrupto”,878 engendrando “esquemas” que habilitam os agentes a

gerar uma infinidade de ações adaptadas a um sem fim de situações de mudança.879 Passível

de atribuição a um dado grupo social, o habitus880 se torna, desta maneira, responsável por

capacidades “criadoras”, produto da história, que produz práticas individuais e coletivas,

estabelecendo os limites dentro dos quais os indivíduos são “livres” para optar entre

diferentes estratégias de ação: O habi tus aparece como o te r reno comum em meio ao qual se desenvolvem os empreendimentos de mobi l i zação co le t iva cu jo êxi to depende forçosamente de um cer to grau de co inc idência e acordo en t re as d ispos ições dos agentes mobi l i zadores e as d i spos ições dos grupos ou c la sse cu jas a sp irações , re iv indicações e in te resses , os pr ime i ros empalmam e expressam a t ravés de uma conduta exempla r a jus tada às ex igências do habi tus e a t r avés de um discurso “novo” que ree labora o código comum que c imenta t a l a l i ança . 8 8 1

De igual modo, em relação aos seus líderes iurdianos, o processo de

ascensão que desenvolvem perante o grupo não ocorre por ruptura, mas por continuidade.

Destaca-se na história de vida desses pastores e bispos uma trajetória de experiências

anteriores com diferentes expressões religiosas do campo religioso brasileiro. Não apenas

Edir Macedo – ou Roberto Augusto, um de seus auxiliares na fundação da IURD, que foi

coroinha da Igreja Católica e posteriormente freqüentador da umbanda - mas quase a

totalidade dos demais pastores e bispos iurdianos transitaram por inúmeras religiões antes de

aportarem na Igreja Universal. Dada a sua história ainda recente, há poucos pastores que

“nasceram na Igreja”. Um grande número diz ter pertencido ao catolicismo e poucos

passaram pelo exercício do pastorado em outras denominações evangélicas. Mas,

inegavelmente, pelos depoimentos e testemunhos que apresentam sobre a sua vida pregressa

– geralmente citados nas suas prédicas – identificam-se como provenientes de uma

experiência religiosa anterior principalmente com o kardecismo ou cultos afro-brasileiros.

Como exemplo dessa realidade, pode ser citada a história de vida de Jorge Pinheiro, que com

apenas oito anos de idade era levado pelo pai a “freqüentar casas de encostos”, sempre às

sextas-feiras, na cidade de Juiz de Fora - MG, onde nasceu. Já ao lado da mãe, freqüentava as

878 BURKE, P. História e teoria social, p. 167.879 Id. O que é História Cultural?, p. 52.880 BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas, p. 51.881 Id. A Economia das trocas lingüísticas, p. 91.

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missas de domingo. Crescia, assim, “dividido entre religiões”. Ainda na adolescência,

conforme seu relato, enfrentava o drama de conviver com pesadelos e constantes dores de

cabeça. Até então imaginava que era “apenas problema de saúde comum a crianças”. “Mas os

remédios não surtiam o efeito esperado, pois se tratava de uma opressão espiritual” - observa.

Foi levado então por seu pai a uma igreja evangélica. Um ano depois, ainda sem respostas

para sua angústia, ouviu falar que uma nova denominação estava chegando à cidade. O

anúncio chegara pelo rádio: Meu pai ouviu que havia uma igre ja onde acontec iam mui tos milagres e , por cur ios idade , re so lveu i r e me levar jun to . Era a Igre ja Univer sa l do Reino de Deus . Ainda lembro que func ionava no espaço de uma d i sco teca e havia mui ta gente gr i t ando, mani fes tando encos tos . Era a lgo d i fe ren te para nós , porque na out ra ig re ja não havia e sse t rabalho de l iber tação . Vi na IURD ent idades mani fes tadas d izendo que des t ru ía a v ida de c r ianças . Aí comece i a entender o porque dos meus problemas de saúde . 8 8 2

Tornou-se membro da Igreja e, posteriormente, quando já possuía uma boa

condição financeira, decidiu deixar um bom emprego como funcionário público, para

dedicar-se exclusivamente ao ministério pastoral, entendendo ser esta sua vocação. Depois de

trabalhar em alguns estados do Nordeste, atualmente é pastor da IURD na cidade de Brasília.

Em um processo dinâmico que envolve não só o líder-fundador da IURD,

mas também o grupo que compõe o movimento sob sua liderança, Edir Macedo e seus

auxiliares foram assumindo papéis reconfigurados, representacionalmente dispostos no

campo sob a roupagem de xamãs, exorcistas, pais-de-santos etc. São líderes nacionais, sem

raízes oriundas de empreendimentos proselitistas vindos do exterior. Essa autoctonia permite

uma reelaboração dos elementos culturais-religiosos figurados nas crenças populares

desenvolvidas em solo brasileiro, promovendo pela orientação do habitus, maior

interatividade com o mundo do qual os fiéis também fazem parte. Esse habitus iurdiano

incorpora compósitos culturais híbridos, que estabelecem interações com um passado de

longa duração.

Destaca-se ainda o papel dos ritos nas práticas iurdianas no sentido de

promover a “recuperação do tempo sagrado” disposto no campo religioso, capaz de fazer

dessa Igreja um segmento com raízes culturalmente brasileiras. Como Capelato e Dutra

observam, “o imaginário tem sua existência afirmada pelo símbolo e sua expressão garantida

pela evocação de uma imagem, seja ela acionada por palavras, por figuras de linguagens ou

por objetos”:

882 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 126, p. 54-55, nov. 2005.

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Quando uma sociedade , grupos ou mesmo indiv íduos de uma sociedade se vêem l igados numa rede comum de s ign i f icações , em que s ímbolos ( s ign i f ican tes ) e s ign i f icados ( r epresentações) são c r iados , reconhecidos e apreendidos dent ro de c i rcu i tos de sen t ido ; ( . . . ) são capazes de mobi l i zar soc ia lmente afe tos , emoções e dese jos ( . . . ) Este imaginá r io socia l se t raduz como s i s tema de idé ias , de s ignos e de associações ind isso luvelmente l igado aos modos de compor tamento e de comunicação . 8 8 3

Nesse aspecto, como afirma Durkheim “as representações religiosas são

representações coletivas; os ritos são maneiras de agir que se destinam a suscitar, entender ou

refazer certos estados mentais destes mesmos grupos”.884 Também Peter Berger declara que

“o ritual religioso tem sido um instrumento decisivo do processo de ‘rememoramento’”, pois

“as execuções do ritual estão estreitamente ligadas à reiteração das fórmulas sagradas que

tornam presentes uma vez mais os nomes e os feitos dos deuses”.885 Victor Turner igualmente

destaca a importância dos ritos e dos símbolos religiosos para a organização e estruturação de

uma dada sociedade: “Vejo no estudo dos ritos a chave para compreender-se a constituição

essencial das sociedades humanas. (...) Os rituais revelam os valores no seu nível mais

profundo (...) os homens expressam no ritual aquilo que os toca mais intensamente”.886

Ressalta esse autor que “os ritos extrapolam a fronteira do tempo, estabelecendo

multiplicidade de laços estruturais”.887 Evans assinala que “o rito é parte da cultura em que

nasce o indivíduo (...) Ele é uma criação da sociedade, e não das emoções ou cognições

individuais, embora possa satisfazer a ambas”.888 Assim, a participação em rituais consiste

numa estrutura simbólica que, como linguagem, orienta o comportamento coletivo, a partir

do que também se constrói o que se pode chamar de personalidade social: “Os ritos ligam o

presente ao passado e o indivíduo ao grupo. (...) geram uma efervescência na qual todos os

sentimentos de individualidade se perdem e as pessoas se sentem a si mesmas como sendo

uma coletividade, a partir e através das coisas sagradas”.889

Constata-se que o êxito da IURD se deve ao fato de ancorar as suas práticas

no substrato cultural que configura a sociedade brasileira. E nesse aspecto Maria Lucia

Montes destaca como marcas do “etos brasileiro” a festividade, a configuração de ritos 883 CAPELATO, M. H. Rolim; DUTRA, Eliana R. F. In: CARDOSO, C. F. ; MALERBA, J. (Orgs.). Op. cit., p. 229. Estes aspectos, envolvendo a importância dos signos, dos significantes ou dos significados, para a mobilização de um dado grupo social, são também analisados no livro EPSTEIN, Isaac. O signo. São Paulo: Editora Ática, 1985.884DURKHEIM, E. Apud ROLIM, Francisco Cartaxo. Dicotomias religiosas. Ensaio de sociologia da religião. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 39.885BERGER, Peter. Op. cit., p. 53.886TURNER. V. Op. cit., p. 19.887Id., ibid., p. 118.888Id., ibid., p. 69.889Id., ibid., p. 89, 90.

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mágicos, símbolos, procissões e espetáculos dramáticos,890 acrescentando que “a IURD se

aproxima desse etos católico e das religiosidades populares, pela incorporação de práticas

rituais”. Há uma incorporação por essa Igreja das figuras do sagrado das religiosidades

populares, “uma transposição de ritos, crenças, valores e práticas rituais que por anos se

agregaram para compor um etos e uma visão de mundo minimamente coerentes”.891 Montes

observa ainda que:No esplendor de suas proci ssões e a a legr ia de suas fe s ta s que , cor tando t r ansversa lmente a h is tór ia , na longa duração , sempre foram os me ios pe los qua i s as grandes massas do povo, bem ou mal , se cr i s t i an iza ram, ou re in te rpre taram a fé ca tó l ica na lóg ica de out ras cosmologias a f ro-amer índias , na zona de ambigüidade que o r ecurso às formas sens íve i s e ao jogo da imaginação sempre lhes permi t i ra r ea l iza r . 8 9 2

Referindo-se ao devocionário folclórico, esta autora caracteriza-o como

expresso nas Folias de Reis ou do Divino, na celebração do antigo poder de São Sebastião

ainda invocado contra a peste, a fome e a guerra que continua perseguir como ameaça

constante a existência dos pobres, nas festas dos santos padroeiros, nas comemorações

juninas, nos pastoris e bumba-meu-boi dos autos de Natal, nas procissões, nas romarias e

santuários espalhados pelo Brasil. Também Fernando Novais, citando Gilberto Freyre, refere-

se a estas “profundas raízes históricas do catolicismo” nos seguintes termos:Estamos d ian te de um c r i s t i an i smo in te i ramente esvaz iado de conteúdo é t ico . É essa uma re l ig ião u t i l i t á r ia , em que Deus , a Virgem e os san tos vão socor rendo a cada momento , mi lagrosamente , a inação dos homens . Uma re l ig ião r i tua l i s ta e f es t iva , acentuadamente mágica , uma re l ig ião dos sen t idos , des t i tu ída de in te r ior idade . Uma re l ig ião puramente adapta t iva , que reduz a quase nada a t ensão en t re o código moral que deve se r pra t i cado e o mundo ta l como exis te . 8 9 3

Cândido Procópio Camargo define como santorial esse catolicismo

presente no Brasil desde o período da colonização. De caráter predominantemente leigo, sua

característica principal é o culto aos santos, seja nos oratórios domésticos, capelas de beira de

estrada ou santuários. É um catolicismo de “muita reza e pouca missa, muito santo e pouco

padre” – observa. Neste modelo, os santos representam um poder especial e sobre-humano

que penetra nos diversos espaços da vida, favorecendo uma estreita aproximação e

familiaridade com os seus devotos, oferecendo proteção diante das incertezas da vida,

890MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 105, 118.891 Id., ibid., p. 123.892 Id., ibid., p. 117, 118.893 SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 607, 608.

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necessidades mais urgentes nos negócios e na vida familiar. Segundo Procópio, esse

catolicismo de devoções populares sempre manteve relativa autonomia com respeito ao

catolicismo institucional e aos representantes oficiais da igreja, por isso sofreu o embate

violento da assim chamada “romanização”, que marcou o processo de instauração no Brasil

de um “catolicismo universalista”, caracterizado pelo maior controle sobre os leigos e suas

associações e de adequação do catolicismo brasileiro às diretrizes centralizadoras de Roma.894

Como já mencionado, nas décadas de 1930 e 1940, o clero dirigiu às

expressões da fé populares um “combate sem tréguas”. Principalmente nas cidades, ocorreu

um maior esforço por controle dos padres sobre o rebanho. “É para esse catolicismo do

devocionário popular que a Igreja, sob o império da romanização, volta decididamente as

costas”, por considerá-lo forma de exteriorização “vazia” da fé, expressão da ignorância do

povo ou obra de perversão da maldade – ressalta Montes.895 Para o novo catolicismo

romanizado e as “elites modernizadoras”, era preciso definir com precisão as fronteiras entre

o sagrado e o profano, o público e o privado, “para que a civilização triunfasse e a Igreja

pudesse firmar em outras bases o poder da fé”,896 razão porque o sistema popular de crenças e

práticas rituais deveria ser eliminado. Um exemplo dessa reação dos representantes

institucionais, visando enquadrar essas manifestações de fé e estabelecer fronteiras de

delimitação entre o sagrado e o profano, pode ser observado nas palavras a seguir:De mais , é necessá r io que se compreenda que a re l ig ião não cons i s te em passea tas que chamam de proci ssões , acompanhadas de ru idoso fogue tór io e de luzes ar t i f i c ia is . É prec iso que se sa iba que é uma acerba i ron ia e uma sacr í l ega i r r i são quere r coroar uma fes ta r e l ig iosa com ba i le e ou t ros d iver t imentos profanos e pe r igosos , onde o homenageado é sempre o demônio ( . . . ) . 8 9 7

A partir da década de 60, paradoxalmente ao abraçar a “opção preferencial

pelos pobres”, a Igreja Católica, em seu esforço de modernização, uma vez mais se afastaria

do povo, ao desritualizar suas práticas litúrgicas: Fazendo o sace rdote vol tar -se de f ren te para o públ ico de f ié i s , e la o f az de ce r to modo vol tar a s costas para o Cr i s to , a Vi rgem e os san tos do a l t a r , nos qua i s o ca to l ic i smo t rad ic iona l sempre v i ra os s ímbolos de sua fé . 8 9 8

894CAMARGO, C. Procópio F. Op. cit., p. 32.895 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 111.896 Id., ibid., p. 116.897 Palavras de D. Antonio Mazarotto, carta pastoral, fev. 1931, apud AZZI, Riolondo. A neocristandade: um projeto restaurador. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 96. 898 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 117.

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Abandonando o latim em suas cerimônias e os solenes responsórios do

canto gregoriano, os militantes utilizam-se de sons de violão para convocar cada um à luta

para que o Reino de Deus se realize na história, pelas mediações políticas e reordenamentos

sociais. A igreja, procedendo assim, enfraquecia a antiga magia, o mistério, elementos esses

fundamentais à fé cristã. Perderia ainda, o encanto da solenidade, o esplendor de suas

procissões e a alegria de suas festas que, cortando transversalmente a história, na longa

duração, sempre foram meios pelos quais as grandes massas do povo brasileiro, bem ou mal,

cristianizaram-se ou reinterpretaram a fé católica na lógica de outras cosmologias afro-

ameríndias.899 Também cabe citar as palavras de Baudrillard:Para as massas , o Reino de Deus sempre es teve sobre a t e r ra , na imanênc ia pagã das imagens , no espe táculo que a ig re ja oferec ia . ( . . . ) As massas absorve ram a re l ig ião na prá t i ca sac r í lega e e spe tacular que adota ram ( . . . ) Nenhuma força pôde conver tê - las à ser iedade dos conteúdos , nem mesmo à se r iedade do código ( . . . ) desde que e le s se t ransformem numa seqüência e spetacula r . 9 0 0

Ao proceder dessa forma, a Igreja Católica, em sua representação

institucional, abria o caminho para a progressiva perda de hegemonia do catolicismo e a

exposição do campo à oferta de bens de salvação por outros segmentos religiosos. Não

obstante os esforços empreendidos, não se conseguiu implantar uma forma romana na grande

massa de católicos do país. Há uma força, um enraizamento de uma teia de símbolos e

valores culturais que fazem que o apego aos santos e a crença nos milagres, por exemplo,

permaneçam como concepções basilares desse catolicismo folclórico, mantendo por isso

grande capacidade de se refazer continuamente. Abandonada pelas elites e pelo poder

eclesiástico, a antiga manifestação folclórica da fé iria permanecer então como memória ou

forma viva apenas entre os segmentos populares.

Dentre as novas expressões religiosas que se projetaram no cenário

brasileiro, principalmente a partir da década de 1970 - disputando com o catolicismo, mas

dentro de seus próprios referenciais, as massas de pressão folclórica – a IURD ganhou

especial notoriedade por incorporar um universo de crenças mágicas, ainda que sob o

discurso de combatê-las. Essa Igreja conseguiu, então, articular com grande eficiência a

apropriação, “às avessas”, de elementos “do tradicional ecumenismo popular, demonizando

indiscriminadamente santos, espíritos obsessores e orixás”:Ao faze r da “guer ra e sp ir i tua l” uma agress iva a rma de combate à s demais re l ig iões , ao ca to l ic i smo e em especia l ao universo re l ig ioso

899 Ver Id., ibid.900BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 13-15.

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a fro-bras i le i ro , ( . . . ) a Igre ja Unive rsa l conseguiu reapropr ia r em seu benef íc io , mas pe lo avesso , um r ico f i l ão da fé dado nas r e l ig ios idades populares no Bras i l . E é nessa re t radução dout r iná r ia em te rmos das l inguagens esp i r i tua i s mais imedia tamente próximas , no contex to bras i le i ro , que res ide um dos fa tores fundamenta i s do seu êx i to . 9 0 1

Distintivo é o fato do movimento iurdiano - não obstante ao discurso de

combate apresentado - acabar por depender diretamente das práticas mágicas, das religiões

afro-brasileiras, das bruxarias, do kardecismo, do catolicismo, ou mesmo dos protestantes

clássicos, para definir e estabelecer as suas instituições referenciais, assim como para fixar

seus programas de ação. É uma Igreja que tira a sua vantagem exatamente da identidade do

inimigo, exteriorizada na representação do Diabo, presente também naqueles seus

concorrentes que operam com formas simbólicas arraigadas no imaginário social. Ao

combater a umbanda, o candomblé, o espiritismo e o catolicismo, a IURD traz para o interior

dos seus cultos e doutrinas elementos da crença, da teodicéia e da visão de mundo das

religiões inimigas. Há, assim, uma apropriação de todo o panteão afro-brasileiro ou das

crenças mediúnicas. À proporção que se fortalece o inimigo e se justifica sua existência,

também se tornam legítimas e necessárias as práticas combativas da Igreja: Sem o Diabo , sem o in imigo incessantemente expulso , humi lhado, combat ido , a IURD não se r ia quem é e nem quem presume se r . P rec isam es tar comba tendo e vencendo um in imigo for te e poderoso para a tes tar seu poder io esp i r i tua l , conf i rmado a cada exorc ismo e a cada conversão nas ra ia s das re l ig iões in imigas . 9 0 2

Ao fazer uma resignificação de elementos reconhecidos e profundamente

arraigados no imaginário religioso, ou na(s) matriz(es) religiosa(s) brasileira(s), de uma

forma bastante peculiar e eficaz a IURD rompe com práticas de caráter mais intelectualizado

ou racionalizante – como demonstrado pelo protestantismo clássico - para ir ao encontro de

um universo encantado já preexistente no fiel, que dificilmente obteria tanta ressonância em

outro lugar. Essa igreja promoveu apropriações e empregos distintos, em relação a outros

grupos religiosos, dos mesmos bens simbólicos acumulados e em circulação no campo. Nesse

sentido, o que se observa é que o movimento iurdiano não somente participa de um processo

de “reencantamento”, mas, principalmente, recria crenças já “encantadas”.

Assim, diante de uma realidade na qual se defronta com a solidão, a

oportunidade de inserir-se numa comunidade de fé outorga ao fiel iurdiano espaços de

relações familiares ou de trabalho, onde compartilha com outros um sistema de interpretação 901 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 92. 902MARIANO, R. Neopentecostais: o pentecostalismo está mudando, p. 129.

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do mundo ao seu redor capaz de dar sentido às experiências-limites em confronto com as

quais o sagrado volta a emergir como fonte de significado para a existência humana. Desta

forma, por meio de ancoragens nos processos históricos, que envolvem as múltiplas esferas

da experiência pelas quais o ser humano é chamado a conferir sentido à sua existência, a fé

iurdiana toca o indivíduo de forma íntima e profunda, levando-o a aderir a “um sistema

cultural no qual um mesmo etos e uma visão de mundo a ele congruentes conformam sua

interpretação dessas experiências”.903 Ali, a organização interna do sagrado, na crença e na

prática ritual e devocional, valores e práticas ritualizadas tornam-se sistema interpretativo.

Desta forma, a IURD se configura numa “comunidade de sentido”, ao permitir que a

experiência do mundo se torne interpretável e que no seu interior também se definam

identidades. O conjunto de práticas e representações que se revestem de caráter sagrado nas

práticas iurdianas, torna-se, desta maneira, uma força estruturante da sociedade, pois opera a

ordenação de mundo para o grupo que a compõe, assumindo a produção de sentido:Enquanto s i s tema s imból ico , a re l ig ião é es t ru turada na medida em que seus e lementos in te rnos re lac ionam-se en t re s i formando uma to ta l idade coerente , capaz de cons t ru i r uma exper iência . As ca tegor ias de sagrado e profano , ma ter ia l e esp i r i tua l , e te rno e t empora l , o que é do céu e o que da t e r ra , funcionam como a l icerces sobre os qua i s se cons t ró i a exper iência v iv ida . 9 0 4

Concluindo esse capítulo, pode-se dizer que as práticas e representações

vivenciadas pela IURD se orientam a partir de um habitus que, presente no dia-a-dia, baliza

as falas, os ritos e o comportamento religioso de cada um dos seus membros, mesmo que

estes não se dêem conta dessa força reguladora. Por esse elemento, o que se curou ou não se

curou, aquilo em que não se acreditava e que se passou a acreditar, as desgraças, os

malefícios causados pelos demônios, doenças que surgiram, a expulsão de demônios, a saída

de outros movimentos religiosos e a entrada na Igreja são compreendidos e vivenciados,

adquirindo nexo, inteligibilidade e sentido. Esta força reguladora ancora-se em anseios,

desejos e símbolos coletivos de que compõe o campo religioso, razão porque a IURD

demonstra solidez, projeção e ampla aceitação por fiéis oriundos de diferentes estratos que

compõem a sociedade brasileira.

A economia de produção cultural nas práticas da Igreja Universal trata-se,

portanto, de um imenso trabalho de promoção e divulgação produzido e consumido por

todos. A cultura se torna um produto que se consome ao se produzir. O capítulo, a seguir,

903 Id., ibid.904 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 179.

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analisará mais detalhadamente este universo cultural que recreativamente se retraduz nas

representações vivenciadas por este fenômeno religioso.

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4 – UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS: REPRESENTAÇÕES

4.1 - Da funerária à catedral: representações do espaço sagrado iurdiano

O espaço inicial da antiga funerária logo deu lugar a edificações cada vez

mais imponentes para as práticas da Igreja Universal do Reino de Deus. Buscando atingir

escalonariamente as massas, a IURD desde o início procurou estabelecer-se em grandes

espaços, em lugares públicos de notória visibilidade, como cinemas e teatros, supermercados

e galpões, chamando a atenção por sua presença extensiva, contrastando com os modelos

arquitetônicos padrão sempre adotado por segmentos pentecostais, como são os casos da

Assembléia de Deus e Congregação Cristã. Na fachada, em letras góticas, sempre muito

visíveis, a frase Jesus Cristo é o Senhor, ao lado de “Igreja Universal do Reino de Deus”,

logo se tornou uma referência dos templos iurdianos. As várias portas, sempre abertas,

também se constituíram outra característica típica. O escritor Caio Fábio D’Araújo Filho

descreve bem este aspecto ao afirmar: “É só porta. A IURD não tem porta, ela é uma porta. A

arquitetura dela é uma porta (...) fica aquela boca assim aberta, gulosa, aberta e na

calçada...”.905

Com a expressão “não erguemos esse templo para possuirmos conforto ou

luxo, mas para termos mais trabalho para o Senhor Jesus”, o bispo Macedo declarou

inaugurada a Catedral Mundial da Fé, “a glória do novo Israel de Deus” – como é

denominada pelos líderes - na cidade do Rio de Janeiro, no ano 2000. Com auditório para

comportar 12 mil pessoas confortavelmente assentadas, o suntuoso e moderníssimo templo

agrega ainda em seu complexo uma espécie de shopping-center com lojas de roupas,

livrarias, praça de alimentação, cinema, parques infantis, museu com exposição de objetos

trazidos de Israel. A inauguração desse templo marcou uma nova tendência da IURD:

edificar megas “catedrais da fé” nas principais cidades brasileiras, começando pelas capitais

dos diferentes Estados do país.

Ao contrário do que ocorre com as igrejas tipologicamente pertencentes ao

protestantismo clássico, na IURD os templos permanecem abertos todos os dias, das 7 da

manhã às 10 da noite, sendo que muitas vezes esses horários se estendem pelas madrugadas

nas programações de vigílias que freqüentemente se realizam. Com isto, a Igreja faz jus a um

905Revista Veja, São Paulo, p. 31, 14 nov. 1990.

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de seus slogans: “Há sempre um pastor e um milagre esperando por você!” E, mesmo fora

dos horários pré-estabelecidos das reuniões ou correntes, sempre há pelo menos um obreiro

ou obreira (auxiliares dos pastores) para acolher e atender a quem procura pela Igreja. São

solícitos e muitas vezes ficam à porta dos templos convidando os transeuntes para participar

das reuniões ou simplesmente para entrar e conversar ou receber uma oração. Sobre isso,

Montes afirma que os templos, disponibilizados pela IURD, em movimentados locais

públicos do mundo urbano, têm como uma de suas funções estabelecer “mediações que, no

domínio do sagrado, se interpõem entre o indivíduo e a vida social mais ampla”:A IURD promoveu ex tensão da rede f í s ica dos seus loca i s de cu l to , com suas por ta s sempre aber ta s e seus pas tores d i sponívei s em diversos horár ios para pregação e oração comuni tár ia dos f i é i s ( . . . ) Ins ta lados em pontos es t ra tég icos , pe rmitem que as pessoas que saem apressadas dos esc r i tór ios , lo jas de comércio , à sua vol ta , possam aprovei tar a s reuniões nos in te rvalos de a lmoço ou nos f ina i s de expedien tes ( . . . ) Esses t emplos s i tuados em locai s de grande movimento respondem, para os f i é i s , a uma demanda ind iv idual pe lo sagrado ( . . . ) recr iando pa ra e le s , d ian te do anonimato em que se perdem, na voragem da v ida urbana , um cer to a r de famí l ia ( . . . ) Cr ia-se , com i sso , uma rede de sociab i l idade , r ecr iando para seus f reqüentadores um novo sen t ido de per tencimento à c idade . 9 0 6

No templo também há linhas telefônicas à disposição daqueles que

necessitam de orientação e atendimento, atividade esta chamada pela Igreja de “S.O.S.

espiritual”. As sedes regionais também possuem estúdios instalados em suas dependências,

de onde são produzidos os inúmeros programas mantidos em emissoras de rádio e TV,

muitos deles transmitindo ao vivo os cultos realizados.

A Igreja Universal também rompe com a aridez de símbolos normalmente

observada no protestantismo clássico, pois utiliza uma riqueza de objetos significantes em

seus cultos e ritos. E o que é mais inusitado: muitos desses objetos cúlticos são típicos dos

ritos católicos e dos cultos afro-brasileiros - aspecto que denota o lugar fronteiriço ocupado

por essa Igreja no campo representacional. Estabelecendo uma comparação, vale dizer que,

procurando construir uma identidade de negação em relação ao catolicismo, o protestantismo

brasileiro elaborou um culto ausente de riqueza simbólica e com forte apelo à razão. Para

isso, dessacralizou a missa católica, eliminando símbolos, luzes, cores e vestes, tornando

desencantado o seu próprio culto:A Reforma Pro tes tan te co locou, no lugar da devoção em movimento , uma p la té ia de boca fechada e ouvidos abe r tos , es tac ionada ao redor do púlp i to , lugar de onde o sagrado se i r rompe a t ravés da pa lavra

906 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 149.

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a r t i cu lada rac ionalmente . O pro tes tan t i smo também del imi tou a c r ia t iv idade l i tú rg ica e , mesmo condenando a missa ca tó l ica , impôs sobre o cu l to um scr ip t r íg ido . O resu l tado fo i o cu l to formal , que , no caso bras i l e i ro , o pro tes tan te h i s tór ico aprendeu a pres ta r à d iv indade com os miss ionár ios nor te-amer icanos , a despei to de todas as in f luênc ias ca tó l icas sobre e le exe rc idas . 9 0 7

Também, diferentemente dos púlpitos utilizados pelos protestantes

históricos - que escondem o corpo do pastor por trás de uma tribuna a fim de enfatizar sua

fala ou sermão, ou também das igrejas católicas em que o padre convencionalmente fica atrás

do púlpito e também da mesa eucarística - o templo/palco iurdiano faz com que toda a

performance verbal e não verbal seja absorvida de forma mais dinâmica e envolvente. Não

importa apenas o que o pastor diz em seus sermões, é preciso que seus movimentos também

exprimam sua narrativa; não basta vituperar com socos e pisões sobre o demônio nem dizer

que se está “cheio do Espírito Santo”, se fenômenos extraordinários não acontecerem.

A IURD realiza eventos religiosos em grandes espaços públicos, como

ginásios e estádios de futebol, porém, o culto no templo é, sem dúvida, com seus ritos,

cerimônias e todo o ritualismo e simbolismo que o envolve, o cenário preferido para as

práticas dessa Igreja. Devido a tal importância, os templos iurdianos são estrategicamente

construídos ou adaptados em forma de teatro onde o altar e o púlpito ficam elevados numa

condição de palco. Aliás, muitos deles foram antes utilizados como cinema, já predispondo

assim espaços cênicos com vistas à construção de uma ação representativa. Nesse sentido,

aproximam-se mais do catolicismo do que ao protestantismo. Nos templos católicos, a

suntuosidade observada também causa impressões de grandeza e de poder do sagrado em

relação aos fiéis que comparecem para assistir a algo. O que se destaca, entretanto, é que no

culto neopentecostal iurdiano a participação da platéia é mais interativa e constante durante

os rituais, através dos quais são revividos, a cada encenação, eventos carregados de força

simbólica, fazendo que se tornem também protagonistas das práticas que lá ocorrem. Fora do

grupo talvez não fossem vistos muito além de massas anônimas constituídas de negros,

pobres, mulheres... Mas no âmbito iurdiano todos se tornam agentes, personagens ativas de

práticas que constroem sentido.

Vale ressaltar que a concepção do “espaço sagrado” como algo miraculoso

ou mágico é muito presente na cultura religiosa brasileira: assim, os santuários católicos de

forte apelo e devoção popular, por exemplo, são concebidos como locais a serem visitados

em busca de milagres e os próprios terreiros das crenças afro-brasileiras, identificam-se como 907 CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 67, 68.

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espaços de manifestações do sagrado. No templo da IURD tudo é público. O atendimento

particular dado pelo pastor é à vista de todos, assim como a oração, imposição de mãos,

exorcismo ou unção com óleo aos enfermos. Há, de uma certa maneira, a reconstrução

simbólica do antigo confessionário católico e das consultas aos guias para receberem

“passes”, tal como no kardecismo e nas religiões afro-brasileiras. Em vista disso, o templo se

constitui em espaço para o desenvolvimento de ritos, utilização de símbolos, configuração da

imagem do líder carismático, cruzamentos, injunções, remodelagens, apropriação e

resignificação de um fertilíssimo capital simbólico disposto no campo religioso brasileiro.

Desempenhando o templo um papel fundamental nas práticas da IURD

como local sagrado, há uma orientação dentro da Igreja para que os ritos de cura e exorcismo

não ocorram em qualquer ambiente. Segundo o próprio bispo Macedo, os templos são

espaços propícios para a ação do Espírito Santo. Por isso, pastores e obreiros são orientados a

não se envolverem afetivamente com o doente ou quem esteja sob “influência do mal” e,

quando nas visitas a doentes nos hospitais ou residências, convidarem para ir ao templo a fim

de participar dos rituais lá desenvolvidos.

Mesmo quando ocorre algum tipo de auxílio através dos programas de rádio

e TV, o apelo e orientações finais a que a pessoa procure pelo templo da IURD mais próximo

são sempre enfáticos. Toda a publicidade desta Igreja, na sua própria mídia, está voltada para

um objetivo central: levar pessoas ao templo. Esse lugar é, assim, ideal para a realização do

milagre, e mesmo que o prodígio aconteça em casa, é naquele espaço sagrado que ele é

aprovado, legitimado e divulgado. Por isso serem freqüentes nas programações de rádio e TV

apelos como estes: “você precisa tomar uma decisão” (sinônimo de “ir à igreja”); “vença o

Diabo, que não quer que você vá até a Igreja”. Tais apelos acabam surtindo resultado. Os

que são atingidos pela mensagem da IURD preferem o comparecimento ao culto, a

participação pessoal no clima do ato religioso, a presença na apropriação da fé proporcionada

pelo ofício no espaço considerado sagrado.

Nos templos iurdianos, como parte da ornamentação, no palco-altar, sobre o

púlpito, fica permanentemente colocada uma Bíblia aberta. Na frente do palco, uma cruz de

madeira sem imagem do Cristo crucificado posiciona-se entre o rigor protestante, que excluiu

de seus templos o crucifixo, e a Igreja Católica, que faz dele sua marca distintiva. No pé da

cruz estão a “água abençoada” e uma tigela de “azeite orado”, marcas dos cultos kardecistas e

afro-brasileiros. Sobre a mesa está a menorah, castiçal judaico de sete velas. É possível

constatar, através da observação participante na IURD, que tal segmento religioso rompe com

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o protestantismo clássico à medida que este contribuiu diretamente para que o “pensamento

iconoclasta imperasse entre nós”,908 ao retirar dos seus templos as imagens que eram comuns

nos espaços sagrados do catolicismo.

4.2 - Representações mágicas dos objetos litúrgicos

Quando se desenvolve o espetáculo cúltico, os auxiliares dos pastores, no

momento oportuno, trazem outros objetos que serão utilizados: o “óleo consagrado”, os

“galhos de arruda”, as “rosas do amor”, a “água do rio Jordão”, o “sal grosso”, a “água

orada” etc. Este enorme arsenal simbólico pode significar ainda lavar-se com sabonete ou

xampu abençoados; andar com um retalho de manto sagrado no bolso; levar uma lâmpada

elétrica para ser ungida pelo óleo sagrado e colocá-la acesa no quarto, com o propósito de

que “ilumine a vida”; pode-se levar, de casa ao templo, uma foto ou um sapato de alguém

“problemático”, para ser abençoado, para que a pessoa representada seja então colocada “no

caminho certo”. Fala-se ainda em “fechamento do corpo”909 e, no chamado dia de Cosme e

Damião, reedita-se uma prática típica do catolicismo de devoção folclórica: distribuição da

“bala ungida” para as crianças. Destaca-se ainda a utilização do copo com água durante a

oração, prática diária nos programas iurdianos realizados no rádio e na televisão. Tal

procedimento estabelece analogia com a “água fluidificada” comumente utilizada, dentro de

ritual semelhante, em algumas religiões mediúnicas como o kardecismo. Também, o pão da

fartura, a maçã do amor, a rosa consagrada, o óleo ungido, o sabão da purificação - fetiches e

amuletos utilizados para exorcizar o mal e afastar os infortúnios, usados com evidência pelo

catolicismo medieval - revestem-se agora de nova roupagem simbólica nas práticas iurdianas.

Assim, fazendo jus à afirmação de que “o pensamento popular sempre gostou de procurar nas

imagens simbólicas a menção de acontecimentos concretos”,910 os objetos cúlticos tornam-se,

para o indivíduo, a sua casa e seus negócios, proteção contra os males atribuídos e

personalizados na figura do diabo e seus demônios.

O que ocorre na IURD se assemelha ao que é analisado por Jacques Le Goff

no período medieval: “o homem medieval possui uma 'mentalidade simbólica'”, vivendo

numa “floresta de símbolos”. A simbologia comanda o culto, a vida e os templos com sua

908BERNARDO, Teresinha. Técnicas qualitativas na pesquisa da religião. In: Sociologia da religião no Brasil. São Paulo: PUC/ UMESP/ Edições Simpósio, 1998, p. 140.909Prática típica dos terreiros de umbanda, segundo a qual os devotos recebem “passes” de benzimentos para que o corpo fique, por exemplo, protegido contra doenças e outros males causados por forças negativas.910BLOCH, M. Op. cit., p. 171.

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estrutura simbólica. Nota ainda, este autor, que em tal período “o livro essencial, a Bíblia,

tem uma estrutura simbólica. A cada personagem, a cada acontecimento do Velho

Testamento, corresponde uma personagem e um acontecimento do Novo Testamento”. O

homem medieval é assim um “decodificador contínuo, o que reforça a sua dependência em

relação aos clérigos, peritos em simbologia”. “O analfabetismo, que restringe a ação do texto

escrito, confere às imagens um poder muito maior sobre os sentidos e sobre o espírito do

homem medieval. Representações iconográficas”. 911

Podem ser identificadas algumas finalidades representacionais no emprego

dos símbolos feitos nas práticas iurdianas. Primeiro, a utilização para ensino de ilustrações de

relatos bíblicos. Afirmando que a Bíblia é um livro “cuja linguagem é repleta de símbolos”, o

bispo Macedo ressalta que “os símbolos devem ser empregados para transmitir

ensinamentos”, acrescentando ainda que “um objeto é figura ou idéia que representa e

garante a realidade daquilo que está sendo simbolizado”.912

Em segundo lugar, o emprego dos objetos visa instigar a imaginação dos

participantes daquele universo para o que chamam de “exercício da fé”. Macedo faz questão

de frisar que os objetos simbólicos são “pontos de contato, elementos usados para despertar a

fé das pessoas, de modo que elas tenham acesso às respostas de Deus para seus anseios”:Muitas pessoas t êm dif icu ldade para co loca r sua fé em prá t ica , por i sso prec i sam do ponto de conta to , que podem se r o ó leo de unção , a água , a rosa , uma peça de roupa e ou tros e lementos . Esses obje tos desper tam o coração e a s mentes das pessoas para a r ea l idade de que o Senhor e s tá presente para abençoá- las . 9 1 3

Terceiro, utilização dos símbolos como fetiches ou amuletos. Isto se

observa, por exemplo, em relação aos frascos de água, de óleo ou sal, às vezes vendidos, às

vezes distribuídos gratuitamente, os quais, usados no templo ou em casa, cumprem funções

de proteção ou realização de desejos com efeitos mágicos. Por meio desses, acredita-se que o

próprio Cristo se faz presente nas reuniões ou instala-se no lar de cada um. E por fim,

estabelecer uma conexão direta com o universo do catolicismo e das crenças afro-brasileiras,

onde a presença de símbolos e objetos ritualísticos exerce papel fundamental nos cultos.

Os Estatutos da Igreja Universal oferecem para os objetos simbólicos as

seguintes explicações: Muitas pessoas necess i t am de s ina i s ex te r iores , co i sas concre tas para for ta lece r sua fé ou pa ra c re r . Foi por is so que Jesus quando curou a um cego fazendo um lodo de sua sa l iva e t e r ra ( cf . João

911 LE GOFF, Jacques (Org.). O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 27. 912 MACEDO, Edir. O perfeito sacrifício. Rio de Janeiro: Graça Editorial, 1997, p. 16.913 Id. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 2, p. 101.

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9:6) . Nem todas a s pessoas necess i t am de “pontos de conta to” para desenvolve rem fé suf ic ien te , mas a maior ia prec i sa , razão pe la qual r ea l izamos em nossos t raba lhos a s cor ren tes e d i s t r ibu ímos co i sas l igadas à Palavra de Deus . . . 9 1 4

Os episódios descritos a seguir demonstram com mais detalhes as funções

desempenhadas pelos símbolos nas práticas iurdianas. Acionando o capital simbólico

acumulado no imaginário e de acordo com a procedência do fiel, o bispo Gonçalves fazia o

seguinte apelo na programação levada ao ar pela TV Record, às 23 horas do dia 31/08/95: Venha à Igre ja Universa l r eceber uma f i t a pa ra co locar no seu braço . Você que hoje es tá com uma f i t a vermelha , venha na próxima semana receber uma f i t a azu l em que es tá e sc r i to : ‘per segui os meus in imigos e só vol te i depois que os e smaguei ’ . Venha! Pois no Domingo, você va i receber a f i t a azu l em todas as Igre jas Unive rsa l ; l a rgue a f i t a do Senhor do Bonf im, dos san t inhos e venha receber a nossa f i t a azu l da cor do céu . 9 1 5

Em julho de 1994, jingles da IURD, veiculados pelas diferentes emissoras

de rádio que transmitem em rede nacional suas programações, faziam anúncio das virtudes

miraculosas da “rosa ungida”:A rosa ungida ! Pa ra você que es tá doente , p rocurou os médicos , tomou remédio e nada ad ian tou . A rosa ungida ! Para você que é uma pessoa depr imida , t r i s te , t em problemas in te r iores , v ive perseguido por l embranças do passado . A rosa ungida! Pa ra você que tem problemas nas suas f inanças , e s tá endiv idado, envolv ido com apos tas , indo à fa lência e não sabe mais o que fazer . A rosa ungida! Para você que tem problemas na v ida sen t imenta l e nunca fo i fe l iz no amor ! ( . . . ) Você es ta rá recebendo a rosa ungida , que representa o própr io Jesus , porque na Bíb l ia d iz “Eu sou a rosa de Sarom”. “Eu Sou” é o nome de Deus , de Jesus ( . . . ) você va i co loca r essa rosa no lugar mais a l to de sua casa , porque , ass im como Jesus fo i l evantado e co locado no lugar ma is a l to , que havia em Jerusa lém na época , no Calvár io , a ss im você va i co loca r a rosa ungida no lugar mais a l to de sua casa , e todo o mal va i ser a t r a ído pa ra essa rosa , todo esp í r i to de v íc io , contendas , homossexual ismo, esp í r i to de pros t i tu ição , de adul tér io , de doenças ( . . . ) É hoje que você , meu amigo, va i receber a rosa ungida ( . . . ) va i r eceber a rosa ao pé da cruz e pe lo poder da f é todo o mal , que a tormenta a sua v ida va i desaparecer aqui , j á na igre ja ( . . . ) não se esqueça de t razer o envelope com as pé ta la s secas da rosa da semana passada , será que imada na foguei ra san ta ( . . . ) [mús ica c láss ica] . Igre ja Univer sa l do Re ino de Deus , luga r de paz in te r ior ( . . . ) onde o mi lagre acontece . 9 1 6

Vale observar que a “rosa”, no imaginário católico brasileiro, consiste num

símbolo que possui um significante de grande apelo mítico: representa Maria, mãe de Jesus.

914Estatuto e Regimento Interno da Igreja Universal do Reino de Deus. Cap. VI. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, s.d, p. 50.915Apud CAMPOS, Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 79. 916 Ponto de Luz. Londrina, Rádio Atalaia AM, 20 ago. 2004. Programa de rádio. Material gravado em K7, transcrito para uso como fonte.

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Assim, não obstante condenar a prática do culto mariano, para conseguir que sua mensagem

fique mais tangível, a IURD mantém estrategicamente um elemento de grande apelo de

massa “pela sua potencialidade de mobilizar as pessoas”. Com este símbolo, consegue

desempenhar papel importante na vida imaginativa pelo fato de representar “uma idéia

abstrata por meio de um objeto concreto”.917

Também, recentemente, a Igreja organizou uma campanha denominada

“escada de Jacó”, alusiva ao episódio bíblico relatado no livro do Gênesis, em que esse

personagem bíblico teve num sonho a visão de uma escada que ligava a terra ao céu,

representando as conquistas materiais que obteria em sua vida e posteridade. Para representar

tal experiência, a IURD confeccionou uma escada e a colocou como parte do cenário do

templo, a fim de ser recorrentemente utilizada como ilustração pelo pastor em sua prédica.

Ao final do seu discurso, o pastor desafiou os fiéis a subirem pela escada em busca da

realização de seus sonhos e da conquista do que Deus lhes pode conceder.

Chama também a atenção o que ocorre na reunião denominada “corrente da

família”. Freqüentada quase sempre por pessoas sozinhas, e não por famílias, essas pessoas

comparecem trazendo retratos de filhos, roupas do marido e garrafas pertencentes àqueles

que “têm problema de bebida”, por exemplo. Os objetos são trazidos para ser abençoados nos

rituais da Igreja, mesmo que as pessoas por eles representadas não façam parte dela ou não

estejam ali naquele momento. A IURD se empenha na crença de que uma só pessoa da

família pode ser o grande ponto de partida para a transformação de toda a família envolvida

em algum tipo de crise. Seria o caminho inverso no sentido de se reverter o processo que

originou tais malefícios. O bispo Macedo procura mostrar como isto ocorre:O Demônio pode se apossa r de toda uma famí l ia , pode en trar na v ida de uma pessoa por hered i ta r iedade , por a lgum t rabalho , quando a mãe es tava gráv ida , pode en t rar e se a lo jar na famíl ia quando a lguém desta f reqüenta ou f reqüentou a lgum cent ro e sp ír i ta . 9 1 8

Na corrente da “sagrada família”, que envolvia a passagem pelo “arco do

amor”,919 foi colocado no corredor um grande arco com flores artificiais, por onde as pessoas

carentes de amor e de paz no lar deviam passar. Com duração de duas semanas,920 a IURD

também organizou a “Campanha das Loucuras da Fé”, enfatizando o comportamento tido

como louco daqueles que esperaram milagres de Deus em condições adversas e nas quais

tudo indica o contrário. A propaganda da “campanha” prometia a distribuição de dois objetos 917 EPSTEIN, Isaac. Op. cit, p. 59, 66.918 MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, p. 46.919 Observação participante realizada no templo de Londrina, 30 ago. 2004.920 De 1º a 14 de ago. 2004.

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que iriam, segundo os pastores, despertar a fé das pessoas, as quais os receberam como se

fossem objetos mágicos: dia 07/08, o “óleo de Israel” e dia 14/08, a “vara de Jacó”. Em

relação a este último anúncio, um pastor da IURD, em um de seus programas de rádio,

ressaltava: “Venha para o nosso templo e você vai receber a ‘vara de Jacó’. Com ela você

poderá apontar para o carro, para a empresa em que você quiser trabalhar e Deus vai-lhe dar

tudo o que você pedir. Toda maldição e amarração que estiver no seu caminho serão

queimadas ou afastadas”.921 Um programa na televisão entrevistou uma mulher que

testemunhou dizendo ter colocado a “varinha” na garagem e recebido um carro. Disse o

pastor: “Ela possuía só uma varinha, não tinha mais nada; com uma varinha que nós damos

na Igreja Universal, ela colocou na garagem e ganhou um carro”... (mostrando então no vídeo

aquele objeto, e acrescentando): “vá também domingo e receba a sua varinha e conquiste o

que você deseja (...) você vai determinar e Deus vai atender”.922 A finalidade dessa campanha

é mostrar que o milagre se encontra acima do “senso comum”, na dimensão da fé, instância

inatingível pela lógica rotineira da vida.

No templo de Santo Amaro, em outra reunião, pessoas receberam fitas azuis

e vermelhas para serem amarradas nos pulsos, adquirindo-se assim sorte e proteção contra os

malefícios demoníacos. Vale ressaltar que as cores azul e vermelha têm significação nos

cultos afro-brasileiros.923 Numa sexta-feira, na “vigília da mesa branca”, as pessoas, em fila,

passavam as mãos sobre uma toalha branca, estendida sobre a “mesa energizada”, para

adquirir bênçãos e proteção para a vida. Aquele objeto teria sido energizado pela imposição

de mãos de pastores, que teriam passado “24 horas em oração e santo jejum” para aquela

finalidade.924

A IURD também reedita uma prática típica ocorrida com grande evidência

no período medieval: peregrinações a Israel e aquisição de objetos tidos como sagrados da

Terra Santa. As campanhas de fé denominadas “campanha do Monte Sinai” e “fogueira santa

de Israel” ostentam especial destaque nos ritos propostos pela IURD. Visto como um “solo

sagrado”, Israel está à espera de uma peregrinação concreta, para os que tiverem condições

ou por procuração, feita pelos fiéis aos pastores, bastando para isso preencher uma folha de

papel com os seus “pedidos de fé”, cujas cinzas serão, segundo os pastores, por eles levadas

para Israel. É estabelecida, desta forma, uma conexão simbólica entre a Terra Santa e o

templo iurdiano por meio de objetos como água, pedra, sal, óleo, trazidos pelas caravanas de 921 Ponto de Luz. Londrina, Rádio Gospel FM, 07 ago. 2004. Programa de rádio.922 O Despertar da Fé. São Paulo, Rede Record, 04 ago. 2004. Programa de TV.923 Observações participantes realizadas no templo da IURD em Santo Amaro, fev. 2005.924Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 11 nov. 2004.

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pastores e fiéis que periodicamente fazem turismo àquele país. Nesse imaginário, Israel é

mais do que um território, pois transcende as fronteiras geográficas e adquire uma dimensão

mítica nas pregações dessa Igreja. Israel é a terra “abençoada”, onde tudo dava certo para os

que temiam a Deus, e está pontuada por locais “carregados de poder”, tais como os montes

Carmelo e Sinai, o Rio Jordão, o mar da Galiléia, as minas do rei Salomão e o túmulo de

Jesus, entre outros. Como espaço mítico, Israel serve de suporte para nele se apoiarem as

necessidades e desejos concretos a serem satisfeitos, como se pode observar no exemplo de

uma propaganda, transcrita a seguir:Não perca a “unção dos d iz imistas” . No próximo domingo, haverá a consagração dos d iz imis tas com óleo san to , que o Bispo Paulo es tará t r azendo de I s rae l e na segunda-fe i r a i r emos apresentar as imagens das pe regr inações , que 300 pessoas de nossa Igre ja f izeram a I srae l . Foram momentos insp iradores , inesquec ívei s mesmo, como a Santa Ceia no Getsêmane, com a par t i c ipação do Bispo Macedo. 9 2 5

Num dos templos da IURD,926 sobre a mesa, localizada no altar, foi

colocada uma pedra que, segundo os pastores, havia sido trazida do Monte Sinai. Em outra

ocasião,927 uma pedra apresentada aos fiéis teria sido tirada, segundo um dos obreiros, das

“minas do rei Salomão” – personagem bíblico notadamente lembrado como possuidor de

grande riqueza e poder. Mediante uma oferta financeira especial, as pessoas tinham então o

direito de colocar as mãos sobre aquela pedra, através da qual se transfeririam para os fiéis as

energias de origem divina que no passado teriam gerado a prosperidade daquele personagem

bíblico.

No programa matinal Despertar da Fé e à hora da oração especial de meio-

dia e seis da tarde, há o momento em que o pastor ora com um copo de água nas mãos. Ele

pede que Deus “fluidifique” com o Espírito Santo aquela água e “que ela seja, em cada uma

de suas moléculas, carregada com o poder do Espírito”. No final, convida as pessoas que

tiveram o seu copo abençoado, por causa do contato com o aparelho de televisão, a beber

daquela água com ele. Tal procedimento também encontra similaridade nos ensinos de Allan

Kardec. Teóricos kardecistas, entre eles José Lhomme, acreditam que há magnetismos agindo

na natureza, destacando-se entre estes o “espiritual”, cuja atuação se dá pelo pensamento –

que contém qualidades boas ou más – com o auxílio de entidades espirituais superiores.928 De

igual modo, vale também destacar que, em 1955, o padre Donizetti Tavares de Lima, que era

pároco na cidade de Tambaú – SP, atraiu a atenção de todo o país por causa de alguns 925 O Despertar da Fé. São Paulo, Rede Record, 02 fev. 2003. Programa de TV.926 Observação participante no templo da IURD em Londrina, 20 mar. 2004.927 Observação participante no templo da IURD em Santo Amaro, 30 nov. 2004.928LHOMME, José. O livro do médium curador. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Eco, s.d, p. 59, 65.

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milagres que estariam ocorrendo por meio de seus atos religiosos. Segundo Maria Isaura

Pereira de Queiroz, que dedicou estudos a esse caso, esse padre recomendava que, à hora da

bênção das seis da tarde, as pessoas colocassem as suas mãos, garrafas de água ou roupas de

enfermos sobre os aparelhos de rádio, afirmando também que, naquela hora, cada aparelho de

rádio se transformaria numa “sucursal de Tambaú”, podendo-se receber os milagres em

casa.929

A numerologia tem importante significado nos ritos iurdianos. É o que

ocorre, por exemplo, em relação ao número 7,930 pois, como afirmam, “representa a perfeição

divina: sete são os dias da semana; sete foram os altares que Balaão pediu para Balaque

edificar (Números 23:1); sete são as bem-aventuranças (Mateus 5); sete foi o número dos

primeiros diáconos da igreja”.931 Em uma programação de rádio, o pastor iurdiano deu a

seguinte instrução para a cura de uma fiel que iria amputar a perna: “Olha, a senhora virá à

reunião, irá pegar três petalazinhas da rosa que iremos distribuir, fazer um chá, um banho e

vai durante sete dias de manhã banhar a perna em nome de Jesus com toda a fé. Fazendo isso

não precisará mais cortar a perna”.932 Ocorre algo semelhante ao que Le Goff também

observa: “Também, o homem medieval vive fascinado pelo número simbólico: o três,

número da trindade; o sete, número dos sete sacramentos; 12, número dos apóstolos”.933 Em

setembro de 2003, apareceram em programas televisivos da IURD, pastores contando que se

banharam sete vezes no mar com roupas de pessoas doentes, dizendo que garantiam a cura

para os que viessem a usar tais peças de roupas.934 É também comum pessoas trazerem para

as reuniões, seguidamente por sete dias, garrafas com água, fotografias de parentes e roupas

de enfermos e colocá-los sob a cruz de madeira para receber a bênção. Durante os meses de

março e abril de 2006, a Igreja realizou a campanha “Sete Segredos Para a Virada

Econômica”. Nesse rito os fiéis recebiam uma carta selada contendo um segredo para a

respectiva semana, devendo ser aberto somente no momento da reunião. No texto da carta

elaborada, aparecem indagações que desafiam os fiéis: “Por que os incrédulos mantêm o

controle das indústrias, bancos, lojas, empresas ou meios de comunicação do mundo? Por que

os filhos de Deus, normalmente, são subordinados dos incrédulos? Será que Deus é pobre e o

929QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: LTC/Edusp, 1990, p. 135-208.930 Número também bastante utilizado nos ritos das crenças afro-brasileiras.931 Folha Universal, Rio de Janeiro, 30 jul. 2000, p. 4.932 Ponto de Luz. Londrina, Rádio Atalaia AM, Londrina, 20 jun. 2006.933 LE GOFF, J. (Org.). O homem medieval, p. 27.934Uma alusão ao episódio bíblico de I Reis. Segundo tal narrativa, o rei acometido de lepra banhou-se por sete vezes no rio Jordão sob recomendação do profeta Eliseu, sendo por isso curado de sua enfermidade.

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diabo é rico? Não! Deus é proprietário de tudo o que existe nesse mundo e por isso deseja

que os seus filhos estejam no comando de tudo o que Ele criou”.935

Nas práticas e representações da IURD se crê que, de forma mágica, os

objetos têm a capacidade de proteger a casa, o indivíduo e as relações sociais contra todos

aqueles males atribuídos e personalizados na figura do Demônio. Os símbolos desempenham

ali importante papel na “construção do mundo como representação”, pelo fato de promover

uma “relação compreensível entre o signo visível e o referente por ele significado”.936 Os

imaginários sociais entram em cena quando a linguagem simbólica comunicável exprime

representações. Contribui diretamente para a vivência do universo representacional iurdiano,

num processo de identificação com os elementos culturais-religiosos do contexto brasileiro, o

fato de muitos dos seus fiéis já terem pertencido ao catolicismo de devoção folclórica e às

religiões afro, além das igrejas do pentecostalismo clássico, havendo, portanto, na vivência

religiosa de tais membros, um fertilíssimo substrato cultural que retrata bem a “matriz

religiosa brasileira”, a qual, segundo Bittencourt Filho, é constituída por “catolicismo ibérico,

magia européia, religiões indígenas, religiões africanas, espiritismo europeu e catolicismo

romanizado”.937 Há, pois, uma relação de continuidade com o mundo mágico das religiões

afro-brasileiras e do catolicismo de devoção popular, imaginário este que é - parafraseando

Marc Bloch - “herdeiro tanto das tradições do cristianismo quanto das velhas idéias [ditas]

pagãs”, e que tem demonstrado grande capacidade de filtrar elementos de uma tradição cristã

mais elitizada, legada do protestantismo, que se desenvolveu no Brasil a partir de

“prerrogativas da estirpe”,938 arraigadas como substrato cultural desde o período colonial e

que se reportam, até mesmo, ao mundo do medievo.

4.3 - O universo representacional dos ritos

Na IURD, o calendário dos ritos e sessões apresenta uma correspondência

bastante explícita com o calendário ritual estabelecido pelas religiões afro-brasileiras para

celebrar suas divindades. Nessas religiosidades, acredita-se que o tempo é um sistema

discreto sob a regência de divindades específicas. Os dias da semana ou meses podem indicar

regências de princípios simbólicos organizadores. Assim, por exemplo, a segunda e sexta-

feira são dias consagrados a Exu, que, sendo orixá dos caminhos e das passagens, é cultuado 935 Material distribuído pela IURD e recolhido para pesquisa em abril de 2006. 936 CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 20, 21.937 BITTENCOURT FILHO, J. Op. cit., p. 99.938BLOCH, M. Op. cit., p. 169.

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nesses dias liminares que circunscrevem as mudanças entre períodos de trabalho e descanso.

Suas horas consagradas são as de mudanças de períodos, como a meia-noite. Por isso,

preferencialmente nesses dias são feitas as giras de exus nos terreiros de umbanda e lhes são

entregues oferendas em locais de passagem, como encruzilhadas e cemitérios. Sexta-feira é

também consagrada a Oxalá, no candomblé, quando muitos iniciados se vestem de branco. A

associação desse dia ao da crucificação de Cristo, também o torna uma referência de morte.

Nas práticas da IURD, as sessões de libertação ou de descarrego realizadas às sextas-feiras à

noite ganharam especial evidência, sendo as mais concorridas. À meia-noite, “hora grande”

de sexta para sábado, é o momento em que os Exus se manifestam e trabalham, é justamente

nessa mesma hora que nas igrejas estão sendo realizadas as cerimônias onde esses Exus são

invocados para, em seguida, serem expulsos dos corpos das pessoas presentes. O mês de

agosto, no calendário afro, é dedicado à terra onde se depositam os corpos dos mortos e se

veneram os ancestrais. Na IURD, essa época foi declarada o “mês dos encostos”, espíritos

malignos dos cemitérios.

Também esse calendário se utiliza das homenagens aos santos católicos.

Em janeiro, por exemplo, devido ao dia de São Sebastião, os terreiros saúdam Oxóssi, deus

da caça associado ao mártir cristão que fora torturado com flechas lançadas sobre o seu

corpo. Nesses rituais, é comum, por exemplo, que os caboclos recomendem benzimentos com

ervas, uso de sal grosso, óleo etc. Na IURD esses mesmos elementos fazem parte de rituais

feitos nos templos ou recomendados pelos pastores para que os fiéis o façam em casa. Em

suas programações de rádio, o pastor Gilberto convida os telespectadores para a busca do

“sabão abençoado”, com o qual iriam “lavar a peça de roupa daquela pessoa que está

internada, que está com Exus em cima, está com Tranca-Rua, com Omolu, alguém que

colocou seu nome lá no cemitério na cabeça de defunto fresco”.939

Nos templos iurdianos há, pelas razões anteriormente apresentadas, especial

espaço para a ação cênica, cujos agentes interagem com a presença de uma simbologia

devidamente compartilhada pelos participantes. Destaca-se a capacidade dos líderes na

condução desses ritos realizados durante os cultos. Edir Macedo, por exemplo, demonstra

notável habilidade para manter a atenção dos ouvintes quando conduz essas reuniões.

Durante sua prédica - que pode durar cerca de uma hora – o público o observa estaticamente,

ao ponto de raramente se retirar alguém do templo antes que sua mensagem se encerre. É

939 SILVA, Vagner Gonçalves da. Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais: uma análise simbólica. RevistaUSP, Religiosidade no Brasil, n. 67, p. 164 set./nov. 2005.

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como se fosse um momento “mágico”. Alguns choram como se aquelas palavras estivessem

sendo proferidas única e exclusivamente para eles:Quando ass i s to aos cu l tos d i r ig idos pe lo Bispo Macedo, s in to que Deus es tá fa lando d i re tamente comigo. O b i spo prega pra todos , mas o Espí r i to Santo fa la ao meu coração de um modo que eu não posso me conte r e choro , choro mui to . Aque las pa lavras que e le d iz são pra mim, t enho ce r teza d i sso . 9 4 0

Mas, no restante da reunião, o imenso público não fica impassível diante do

espetáculo religioso, comportando-se ora como platéia, aplaudindo o(s) ator(es) em cena, ora

como ator em transe, arrebatado em êxtase religioso diante de um profeta. Assim, em alta

voz, é bastante comum ouvir frases da platéia em concordância com o pregador ou dirigente

da reunião, às vezes gritando palavras como “glória” ou “aleluia”, e outras vezes repetindo

vibrantemente frases de efeito que o dirigente lança em orações. Os obreiros auxiliares

também costumam percorrer os corredores, estimulando o auditório a participar com

intensidade das cenas vividas no palco ou propostas pelo pregador.

Em uma reunião observada, numa sexta-feira, o pastor, ao entrar no palco-

altar deu início à dramatização, auxiliado por uma equipe de músicos passou a entoar

cânticos ao som de teclados, guitarras e baterias, enquanto os obreiros e obreiras, com seus

uniformes padronizados, postavam-se à frente. Com um microfone nas mãos, o próprio

pastor se encarregou de conduzir o espetáculo de fé, alternando, com voz incisiva e emotiva,

orações e palavras de ordem e estímulo aos participantes. Desta maneira, uma verdadeira

massa foi comandada nos 120 minutos que se seguiram, participando intensamente dos

cânticos, das pregações, dos rituais de exorcismo, das contribuições financeiras e do contato

com os “fetiches” simbólicos que foram utilizados naquele dia. Nota-se que durante o culto o

pastor apresenta uma performance verbal e não-verbal tão eficaz e eloqüente quanto a de um

ator em cena. Naquele espaço ele representa, configurando códigos que nele são projetados a

partir do imaginário do público que com ele interage.

No livro Teatro, Templo e Mercado, em que analisa, entre outros pontos, a

teatralização do sagrado na Igreja Universal do Reino de Deus, o sociólogo Leonildo Campos

afirma que os pastores iurdianos são avaliados não só pela sua intrepidez na arrecadação de

dinheiro, mas também pela sua capacidade comunicativa em executar performances teatrais:Para consegui r t a is r esu l tados , o pas tor -a tor prec i sa dominar a s a r te s ou as t écn icas , p rodutoras de pe rsuasão e rea l iza r o que se a t r ibu i ser impor tan te para o a tor , i s to é , corpor i f i ca r os papéis e e fe t iva r o drama ao representá - lo em um determinado pa lco . 9 4 1

940 Beatriz Gonçalves, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 05 fev. 2006, p. 7.

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Durante os cultos e seus ritos, o líder pode demonstrar ao público extasiado

a sua autoridade e legitimidade como algo divinamente concedido. Exercendo a função de

mediador mágico e tornando-se quase um “xamã”, observa-se que o pastor se torna o

responsável por estabelecer o momento em que o combate entre o bem e o mal deve iniciar e

quando o espetáculo deve se encerrar, além de possibilitar as “armas” espirituais para a

participação interativa dos fiéis. Nesses momentos de cura e libertação, o bispo ou pastor

convoca as pessoas que estão passando por diferentes problemas, como brigas entre

familiares, falta de dinheiro, vícios, doenças, desemprego, perturbação demoníaca a irem à

frente do púlpito. O líder, então, chama os pastores auxiliares e obreiros para, junto dele,

intercederem a Deus por aquelas pessoas. Todos começam a orar ao mesmo tempo em voz

alta. Ocorre uma manifestação coletiva, um intenso estado de êxtase toma conta de muitos.

Assim, é possível dizer que na IURD os rituais são desenrolados como um drama, uma “ação

representada num palco” – num espaço sagrado -, como nas cerimônias que consagram o

poder, “a ação reveste a forma do espetáculo”:Nesse caso , a r epresentação não se r esume à “exib ição” ( . . . ) p resume a rea l ident i f i cação , a repet ição mís t i ca ou a r epresentação do acontec imento . ( . . . ) o r i tua l p roduz um efe i to que , ma is do que f igura t ivamente mos trado , é r ea lmente reproduzido na ação . 9 4 2

Em suas representações, a IURD revive práticas que foram vistas com

suspeitas pelo catolicismo oficial no medievo. Jacques Le Goff fala de um sistema de

controle ideológico dos gestos no ocidente medieval por parte da igreja. O cristianismo da

Alta Idade Média considerou a gestualidade como suspeita: Os c r i s tãos mant inham uma lu ta r igorosa contra as sobrevivênc ias pagãs , sobre tudo em dois se tores : o do tea t ro e o da possessão d iaból ica , os e specia l i s tas do ges to , mimos ou possessos do demônio , v í t imas ou servos de sa tanás . A mi l íc ia de Cr i s to era d i sc re ta , sóbr ia nos seus ges tos . O exérc i to do d iabo aprec iava a grosser ia dos ges tos . 9 4 3

Ainda usando como exemplo de comparação a análise feita por Le Goff

sobre os gestos no período medieval, observa-se que se acreditava nos benefícios que alguém

podia fazer em favor de parentes e amigos, através de ritos, inclusive em favor da vida no

Além, no purgatório. Na IURD, também pessoas podem fazer algo semelhante, porém, no

âmbito da existência terrena, em favor de familiares através de ritos disponibilizados pela

941 CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 101.942CARDOSO, C. F. ; MALERBA, J. Op. cit., p. 215.943LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1983, p. 64.

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Igreja, mediante o uso de objetos como fotos, carteiras de trabalho, peças de roupas que,

levados para a casa, podem beneficiar com purificação espiritual a pessoa a quem se destina.

Umberto Eco afirma que os elementos presentes nas celebrações religiosas

obedecem a uma estética kitsch, compreendendo este conceito como uma “comunicação que

tende à provocação de um efeito”.944 Assim, desde o emocionalismo dos discursos dos

pastores, passando pelas repetitivas letras de músicas, até a cenografia do templo, tudo se

dirige como um apelo às emoções do público. Nas palavras do próprio Umberto Eco, todos

os elementos se apresentam como “efeitos já confeccionados”. Assistir ao culto é também

participar de um espetáculo visualmente bem construído, no qual a performance do líder

religioso ganha centralidade a ponto de arrancar palmas, gritos e outras formas de emoções

da platéia. De toda ação desenvolvida no palco se exige dramaticidade, que pressupõe a idéia

de uma presença, expondo uma situação significativa, “que evoca um encadeamento de

ações, tornando presente o destino, a vida, o mundo – tanto em seu aspecto visível quanto em

suas significações invisíveis”.945

Pode-se dizer que a IURD, em seus ritos, traz para dentro do templo o

espírito das festas populares e das procissões católicas, promoveu aproximação do

devocionário popular, à medida que incorpora algumas de suas práticas rituais, invertendo,

quando necessário, o seu significado. Exemplo disso é a campanha religiosa intitulada

“novena da sagrada família” – não coincidentemente iniciada no período da Quaresma no

calendário católico - segundo a qual os fiéis são desafiados a comparecer à Igreja durante

nove semanas ininterruptas em busca de solução para problemas que estejam afligindo a

família. Seguindo ainda este mesmo calendário, a Universal costuma realizar também a

campanha “Quarentena da Fé – quarenta dias de vitória”, cujo objetivo é realizar em todas as

noites nos dias de domingo, segunda, quarta e sexta-feira reuniões em busca de milagres. 946

Assim, as convocações para grandes eventos em estádios de futebol ou ginásios de esportes

relembram cortejos católicos festivos para conduzir os fiéis a esses lugares. Essas festas de

devoção também se reeditam no âmbito dos templos, nos rituais que semanalmente se

realizam. Por esse motivo, o culto se transforma num espetáculo do qual fiéis participam

intensamente. No decorrer da encenação há deslocamento de pessoas, movimentos corporais,

formação de filas e realização de procissões. É como se aquelas manifestações populares

deixassem as ruas e acontecessem no interior do templo, mediante o que os fiéis dramatizam

944 ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993, p.73.945 Id., ibid., p. 84.946 Campanha divulgada nas programações de rádio e TV, no período de março a julho de 2005.

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uma trajetória que vai da aflição ao milagre, do profano ao sagrado, apresentando à divindade

as ofertas, pagando promessas e recebendo as dádivas divinas. Numa dessas correntes,

observou-se intensa movimentação e mobilidade corporal do público na passagem pelo

“corredor dos milagres”, formado por “setenta pastores”. Também, na campanha “travessia

do rio Jordão”,947 no meio do corredor jogou-se “água do rio Jordão”, devendo os fiéis, tal

como Moisés, apontar o cajado (miniaturas que haviam recebido no início da reunião) para

aquela água “determinando” conquistas em sua vida, assim como ocorrera em relação à “terra

prometida” alcançada pelo povo hebreu após a longa peregrinação do Êxodo. Em outra vez,

realizou-se a campanha das “Portas Abertas”:948 pessoas formaram filas para passar por uma

porta aberta dentro de uma enorme cruz de madeira, sob promessa de sucesso profissional e

financeiro e uma efusiva presença do poder de Deus em suas vidas. De igual modo, o toque

de trombetas na “Queda dos Muros de Jericó”,949 em que os participantes da reunião recebiam

trombetas de plástico que, no momento oportuno do ritual, deveriam ser tocadas,

rememorando assim o episódio bíblico da queda dos muros de Jericó quando da conquista

desta cidade pelo povo hebreu sob liderança de Josué.

Os cultos iurdianos são assim, por excelência, os momentos em que se

vivenciam vários elementos do universo simbólico em que estão inseridos líderes e fiéis.

Devido a esse papel preponderante, tais atividades são realizadas, em média, quatro ou cinco

vezes todos os dias da semana. Há inclusive uma agenda semanal com horários e objetivos

estabelecidos para cada dia, que segue uma programação padronizada em todos os templos,

ainda que – uma vez iniciada cada reunião – o templo se transforme num espaço de

espetacularização do sagrado sem um roteiro rígido, havendo sempre uma expectativa para o

inédito e o inusitado. A grade de programação segue, em linhas gerais, o seguinte

cronograma:

Segunda-feira: Corrente da prosperidade

Terça-feira: Corrente de libertação e sessão de descarrego

Quarta-feira: Corrente de cura divina e milagres

Quinta-feira: Corrente da família (problemas conjugais, dificuldades com os filhos etc.)

Sexta-feira: Corrente de libertação e sessão de descarrego

Sábado: Terapia do amor (dedicada àqueles que desejam conseguir um casamento ou

solucionar problemas relacionados à vida sentimental)

947 Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 10 mar. 2004.948 Observação participante realizada no templo da IURD em Santo Amaro, 20 abr. 2004.949 Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 22 ago. 2004.

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Domingo: Busca do novo nascimento

A seguir, descrição e análise mais detalhadas de algumas dessas correntes

ou campanhas.

4.3.1 - Corrente da prosperidade: o dinheiro e suas representações

A Igreja Universal reserva um dia da semana para a realização de ritos

especialmente voltados à conquista de bens materiais pelos seus fiéis. A Igreja atua

acreditando ser depositária de poderes mágicos que podem ser distribuídos aos fiéis para

auxiliá-los em seus problemas financeiros, como o demonstra o anúncio abaixo:CAMPANHA ESPECIAL DE PROSPERIDADE – Você que: dese ja t raba lha r por conta própr ia ; p rosperar no seu emprego; e s tá com di f icu ldades f inance i ras ; v ive desempregado; seu sa lár io não é suf ic ien te para pagar as d ív idas ; es tá com pre ju ízo nos negóc ios . Par t i c ipe des ta campanha e receba a chave que abr i rá a por ta do sucesso . Pa r t i c ipe t ambém da CORRENTE DA VIDA REGALADA PARA OS EMPRESÁRIOS – Se você es tá passando por d i f icu ldades t a i s como: t í tu los pro tes tados ; fa lência ; d ív idas no banco , ag io tas , não tem como pagar seus funcionár ios ; o seu comércio , indúst r ia , e sc r i tó r io es tão indo de mal a p ior ; não consegue vender nada . Exis te uma sa ída . Toda a segunda às 19 :00 ( . . . ) . 9 5 0

Nas reuniões que dirige, Edir Macedo costuma ser enfático: “Cobre de Deus

o que você tem direito”.951 A Igreja argumenta que existem várias promessas da Bíblia para

este assunto, razão porque “na IURD todos são ensinados a conquistar cada vez mais bênçãos

materiais”: Por is so nas noi te s de segunda-fe i r a mi lha res de pessoas se reúnem em templos da Igre ja Unive rsa l espalhados pe lo pa í s pa ra c lamar a Deus pe lo sucesso nos empreendimentos . São f ié i s que dese jam se r empresár ios , donos do própr io negócio , se to rna r pa t rões . E les querem se r cabeça e não ca lda , e s ta r por c ima e não por ba ixo . Os cânt icos es t imulam a fé , nas orações os b i spos e pas tores incent ivam as pessoas a de terminarem a v i tór ia , pa ra que possam obter prosper idade , j á que as promessas e s tão na Bíb l ia : “O Senhor t e abr i r á o seu bom tesouro , o céu . . . empres ta rás a mui tas gentes , porém tu não tomarás empres tado . O Senhor t e porá por cabeça e não por ca lda ; e só es tarás em c ima e não debaixo . . . ” (Deuteronômio 28:12-13) . 9 5 2

Após “determinarem a própria vitória”, nos cultos e ritos realizados para

este fim, muitos conseguiram estabelecer o seu próprio negócio, “vencendo o Golias da

950Folheto divulgado pela Igreja Universal do Reino de Deus, recolhido para pesquisa em 2003.951 Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 mar. 2000, p. 12.952Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 67, p. 41, 1999.

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miséria e das dívidas”, chegando ao “topo do sucesso e da prosperidade, sem o risco de sofrer

quedas inesperadas” – lembra a Igreja, ressaltando que outros se tornaram empresários bem

sucedidos, conseguindo reerguer-se financeiramente: “É devido a esse resgate que muitas

pessoas que viviam na sarjeta, completamente arrasadas por problemas econômicos se

recuperam e de novo prosperam”.953 Ainda em tom de desafio se afirma:Embora as pesquisas se jam pess imis tas e co loquem a misé r ia como uma ameaça da v i rada do século , mi lhares de pessoas t êm sa ído de uma v ida de der ro tas para a prosper idade a t ravés do Senhor Jesus . Tes temunhos não fa l t am na Igre ja Univer sa l pa ra mos trar que cr ise se vence com fé . 9 5 4

Duas campanhas são intituladas com este propósito financeiro: a “vigília

dos 318 pastores” e a “fogueira santa de Israel”. A primeira campanha é alusiva a um

personagem bíblico chamado Gideão, que exercendo a função de juiz em Israel, teria se

“revoltado” contra a opressão estrangeira dos midianitas sobre o seu povo. Ele reclamou o

abandono de Deus e, movido pela fé, “convocou 318 homens para uma batalha contra um

exército inimigo mais poderoso e foi vencedor”.955 A IURD explica o significado e a

finalidade dessa reunião dizendo que consiste na “maior concentração de fé em prol da vida

financeira”. Argumenta que a reunião tem contribuído, por meio de orientações transmitidas

com base nas Sagradas Escrituras, para que muitos “usem a Palavra de Deus como

ferramenta para vencer os obstáculos que surgem em suas vidas”, como por exemplo,

dívidas, misérias, falências e tantos outros. “O exercício da fé faz nascer no coração de cada

um a esperança de um futuro abençoado e promissor e é por meio dessa prática que muitas

pessoas estão descobrindo os segredos para superar todas as crises” – observa a Igreja,

acrescentando que “essas pessoas compreenderam que todas as desventuras financeiras são

ocasionadas, não por conta da crise que assola o país, mas sim por não terem uma aliança de

fidelidade com Deus”: Nessa reunião mui tas pessoas chegam a f l i ta s e desesperadas em função de d ív idas , p ro tes tos , f a lênc ias e d i spos tas a a té mesmo a darem cabo da própr ia v ida . Outras nem dormem mais , t amanha a preocupação . No en tan to , ao ouvi rem as or ien tações minis t radas pe los homens de Deus , surgem em seus corações uma espe rança de que nem tudo está perd ido e que por in termédio da fé podem conquis tar a prosper idade , mas de uma forma segura , po i s quando se t em a d i reção de Deus nos negócios a pessoa não apenas se torna v i tor iosa , mas es tabe lece todas as suas conquis ta s . 9 5 6

953 Id., ibid.954 Folha Universal, Rio de Janeiro, 01 abr. 2006, p. 8.955 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 93, p. 46, 2003.956 Folha Universal, Rio de Janeiro, 30 mar. 2003, p. 8.

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A IURD apresenta maiores detalhes sobre a campanha dizendo que foi

criada para responder a desafios de um mundo capitalista onde impera a competitividade e

cada vez mais se torna difícil vencer o que leva ao aumento do número de falências, pois “a

mudança de governo e altas taxas de juros só fazem espalhar o medo entre patrões e

empregados que, desesperados com a condição econômica em que se encontram não

conseguem enxergar uma saída para os seus problemas”. Entretanto, “há quem esteja

contrariando as estatísticas desanimadoras e alcançando vitórias financeiras usando uma arma

diferente: a fé”, pois - como ressalta a Igreja - “não há crise que resista a fé dos que

participam da vigília dos 318 pastores!” 957 Lembram os líderes que muitas pessoas que

aparentemente tinham tudo para dar errado, através da fé e da força de vontade, “aprenderam

a transformar o fracasso em sucesso”, em um momento de crise “abriram os olhos para

visualizar outras opções”. “Onde elas aprenderam isso?” – perguntam, ao passo que

apresentam resposta de forma incisiva: “no maior congresso empresarial do Brasil: a Reunião

dos 318, que acontece todas as segundas-feiras nos templos da Igreja Universal do Reino de

Deus”. Acrescenta-se que:Lá as pessoas aprovei tam os momento de f r acasso para co locar suas idé ias e pro je tos em ação . Aprendem a conver ter o revés em êxi to . Fazem uma ponte para seus negócios e exe rc i tam a fé pa ra vencer . A nuvem da c r i se que assombra o pa í s não pa i ra sobre a v ida de les que , após par t i c ipar da reunião dos 318 podem ver em suas v idas r esu l tados surpreendentes . 9 5 8

Inegavelmente, uma das propostas mais contundentes e impactantes da

mensagem iurdiana tem sido a chamada “teologia da prosperidade”. Em seu livro, Nos passos de Jesus, Edir Macedo inicia seu primeiro capítulo denominado “a origem do caos”,

fazendo a seguinte afirmação: “É o nosso grande desejo, através deste livro (...) despertar a fé

do leitor, a fim de que venha a participar de tudo o que tem direito, diante de Deus-Pai,

através do nome do Senhor Jesus Cristo, por obra e graça do Espírito Santo”.959 Ressalta que

o propósito idealizado por Deus é que a humanidade viva em abundância. Viver desse modo

é um direito do ser humano, desde que havendo cumprido primeiro o seu papel de “mordomo

fiel de tudo o que lhe fora confiado pelo Criador”, que significa pagar os dízimos de tudo o

que administra. No mesmo livro Macedo afirma: “O dízimo foi instituído pelo Senhor, como

uma espécie de imposto às suas criaturas”.960 Além dos dízimos, ressalta a grande

importância das “ofertas voluntárias”, as quais são demonstração de amor a Deus. Havendo 957 Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 jan. 2003, p. 8.958 Id., ibid.959MACEDO, Edir. Nos passos de Jesus. 8 ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1986, p. 17.960 Id., ibid, p. 99.

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cumprido tais requisitos – ensina Macedo - o fiel fica no direito de exigir algo de Deus ou

então determinar o que deseja que a divindade lhe faça. Descobrir tal direito é um “despertar

da fé”, título este do primeiro livro publicado por Macedo assim como de vários programas

de rádio e televisão realizados pela IURD. O usufruto da prosperidade se caracteriza, pois,

por uma tríade: ter paz espiritual, boa saúde e sucesso financeiro:Quem ganha com isso? Deus e você , porque tendo sua renda aumentada , v ive rá mais t ranqüi lo e ma is fe l i z , e Deus , porque você t rará mais à Sua igre ja , t e rá mais d inhe i ro para usar em favor de out ras pessoas que es tão necess i tando ser abençoadas . 9 6 1

Sobre a idéia de que Jesus teria sido pobre, Macedo reage incisivamente:

Este é um t remendo engano. Jesus nunca fo i pobre . E le d isse : “Sou o senhor dos senhores , o re i dos r e i s” . Um re i nunca é pobre , a menos que es te ja des t ronado. Sendo re i dos re i s Jesus e ra r i co . E le ve io ao mundo na pobreza pa ra sen t i r na pe le o que é se r pobre , o que é v ive r na condição mais ins igni f ican te do ser humano. Mas Jesus não e ra pobre . 9 6 2

Segundo a mensagem da teologia da prosperidade, crer em Jesus Cristo e

tornar-se participante da igreja significa deixar de ser pobre, doente, azarado ou derrotado,

para ser uma pessoa rica, sã, de muito sucesso social e financeiro. Edir Macedo expressa bem

essa perspectiva ao afirmar em um dos seus livros:Ser c r i s tão é ser f i lho de Deus e co-herdei ro de Jesus , dono, por herança , de todas a s co i sas que ex i s tem na face da t e r ra ; p ropr ie tá r io de todo o Univer so ( . . . ) Você , l e i to r , é he rde iro de todas a s co isas e na sua v ida deve resp landecer a g lór ia do seu Pa i . Nada de se conten tar com a desgraça ou a pobreza . Levante- se agora mesmo e assuma a sua pos ição ( . . . ) Dê adeus às doenças , à misé r ia e a todos os males , t enha um reencont ro com Deus e a ssuma novamente a sua pos ição na famí l ia Div ina ( . . . ) Verdadei ramente , um pai r i co só poder ia t e r f i lhos r icos . Se você , amigo le i tor , não es tá v ivendo como um abundante f i lho de Deus , é porque ou es tá a fas tado das or igens da sua verdadei ra famí l ia , ou não quer se apossar da he rança . 9 6 3

O pregador, em um dos cultos observados, disse: “Não adianta você parar

na frente de uma casa e pensar: 'Ah! Se esta casa fosse minha!' Você tem que dizer: 'Esta

casa será minha, porque o Senhor vai me dar essa bênção, creio nisso'”.964 Em uma de suas

entrevistas, o bispo Macedo faz a seguinte afirmação: “Nós ensinamos as pessoas a cobrar de

Deus aquilo que está escrito [na Bíblia]. Se ele não responder, a pessoa tem de exigir, bater o

961 MACEDO, Edir. Vida com abundância. 10ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1990, p. 74.962 Revista Veja, São Paulo, 14 nov. 1990.963MACEDO, E. Vida com abundância, p. 42.964 Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, set. 2004.

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pé, dizer: - 'Estou aqui, estou precisando'”.965 O depoimento de uma freqüentadora assídua da

IURD demonstra como essas palavras ganham interatividade e ressonância entre os fiéis:Era uma sexta- fe i ra , eu es tava orando enquanto o Bispo c lamava ao Espí r i to Santo que tocasse nos nossos corações . I s so no momento das ofe r tas . Sent i o Espí r i to Santo en trar em mim, um calor imenso tomou conta de mim, comecei a fa lar em l ínguas , em seguida , abr i minha bolsa e de i tudo o que t inha na ca r te i ra (R$ 70 ,00) . Ao sa i r do templo , fu i a um caixa e le t rônico sacar uma quant ia para poder vo l ta r para minha casa e para passa r o f im de semana. Por t en tação do in imigo , para que eu me ar rependesse de minha doação , meu car tão f i cou preso na máquina e eu só o recupere i na t e rça - fe i r a . Qual fo i a minha surpresa? Havia R$190,00 em depós i to f e i to pe la empresa que eu t rabalhava an tes de me aposenta r . Tra tava-se de uma d i ferença que e le s f icaram me devendo. Ore i a l i mesmo no Banco , agradecendo a Deus pe lo seu fe i to . Bem que o Bispo nos f a lou , que se a gente desse tudo o que t inha , Deus i r ia mul t ip l i car . 9 6 6

O ato de ofertar dinheiro nas práticas da IURD está diretamente associado

ao repertório simbólico dos fiéis, ou seja, também denota uma força cultural. Pertence a esse

repertório o “princípio da reciprocidade e da troca”, que postula os atos de dar, receber e

retribuir como elementos constitutivos das práticas religiosas, como destacado por Marcel

Mauss em seu Ensaio sobre a dádiva.967 Desta forma, o dinheiro adquire simbolismo de um

veículo de comunicação com Deus, num universo em que nada é dado ou recebido

gratuitamente. Em uma entrevista, o bispo Macedo emite a seguinte opinião sobre este

princípio:A Bíbl ia , do in íc io ao f im, f a la sobre ofe r tas . A ofer ta representa a lguma coisa . Não é s implesmente uma ques tão de d inhe i ro . E la s ign i f ica amor . Quando você ama a lguém, você dá a lguma coisa a a lguém. Como expressar seus sen t imentos por a lguém? Dando- lhe a lgo . Abraão quase sac r i f i cou o f i lho pa ra da r e sse a lgo a Deus . Nós damos a ofer ta ( . . . ) Na segunda car ta aos Cor ín t ios 9 :6 , o após to lo Paulo d iz : “o que semeia pouco , pouco também ce ifará” . Eu ens ino i sso às pessoas . De acordo com o tamanho da fé , a pessoa faz a ofe r ta . Pa ra que a lguém alcance as r iquezas de Deus , é prec iso mani fes ta r uma fé . A fé no Deus v ivo é o me lhor inves t imento que uma pessoa pode faze r na v ida . 9 6 8

Esta relação de reciprocidade estabelecida, em que quanto mais se der mais

se receberá, ganha maior força ainda pelo fato do dinheiro ser inserido num ritual, adquirindo

com isto novos significados que extrapolam o aspecto monetário. O dinheiro, nas práticas da

IURD, de certa forma, substitui as promessas feitas na devoção católica, ou então as

oferendas de comidas e bebidas assim como sacrifícios de animais comumente praticados nos

965 Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 ago. 1991.966 Maria A. S. Londrina, membro da IURD em Londrina. Depoimento concedido em out. 2004. Gravação em K7, transcrita para uso como fonte.967 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e Antropologia. V. 2. São Paulo: Ática, 1974.968 Revista Veja, São Paulo, 06 dez. 1995.

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cultos afro-brasileiros. O dízimo e as ofertas assumem o sentido de um pacto entre Deus e o

fiel. Tal pacto não deve jamais ser quebrado, sob a ameaça de que se isso ocorrer, abrir-se-ão

as “portas” para o Diabo entrar e agir na vida da pessoa. Aliás, os demônios são vistos como

os responsáveis diretos por toda sorte de miséria e fracasso financeiro. Assim, ofertar o

dízimo é a estratégia ideal para afugentá-lo, o que não é incomum nos rituais de exorcismo

durante o culto. Conforme se acredita, um demônio (através do corpo do possuído), depois de

controlado e dominado pelos pastores, costuma passar pela humilhação de ter de percorrer os

corredores do templo recolhendo os dízimos dos fiéis, prática que significa sua dominação e

derrota.

O caminho obrigatório para uma vida financeira abundante é fazer uma

aliança com Deus, por intermédio de Jesus, o “filho do dono”. Para que essa aliança se

estabeleça é preciso que cada um faça a sua parte, isto é, realize o sacrifício, que consiste em

doar para a Igreja o que a pessoa tem de mais pessoal e sagrado: o dinheiro. Esse sacrifício,

“exigido por Deus”, atinge, especialmente, aquele dinheiro reservado para outras coisas

“menos sagradas” como manter a família, pagar o aluguel ou um projeto muito especial e

ansiosamente esperado. Sobre isto, Macedo declara: “É necessário dar o que não se pode dar.

O dinheiro que se guarda na poupança para algum sonho futuro, esse dinheiro é que tem

importância, porque o que é dado por não fazer falta não tem valor para o fiel e muito menos

para Deus”.969

Por isso mesmo, fazer donativos para a Igreja é colocar a fé em ação, é

provar a si mesmo, e Deus, vendo esse esforço, agora estará obrigado a fazer a sua parte, isto

é, abençoar o fiel. Somente assim, o cristão começa a se parecer com Cristo, pois ele teria

doado tudo em benefício de cada um dos pecadores. Um exemplo disso se observa nas

palavras de Edir Macedo, citadas abaixo:Dar o d íz imo é obr igação do c r i s tão , é demons t ração de seu compromisso , responsabi l idade e f ide l idade a Deus . Já a ofer ta é o que deve ser oferec ido a lém do d íz imo, como uma demons t ração maior a inda de amor a Deus . A Bíb l ia nos ens ina que o amor deve ser comprovado por doação , como aconteceu com Jesus , que doou a s i mesmo, a sua própr ia v ida em favor daqueles a quem e le amou. Ass im, para demons trarmos que o amamos , devemos ofe r tar - lhe aqui lo que ex ige de nós sacr i f íc io . E as Escr i turas Sagradas ens inam, no l iv ro de Malaquias , cap í tu lo 3 , que sobre aquele que ofe r ta a lém do d íz imo, Deus abre “as janelas do céu” pa ra abençoar e f aze r prospera r “sem medida” . Compareça à ig re ja e faça es ta prova en t regando a sua ofer ta . 9 7 0

969Revista Isto É, São Paulo, 22 nov. 1989.970Ponto de Fé. Londrina, Rádio Gospel FM, 01 ago. 2005. Programa de rádio.

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Através do site da Igreja, num espaço especificamente designado para

interatividade com o público, uma fiel da Igreja, Sandra Oliveira, de Porto Alegre – RS, faz

um pedido de esclarecimento: “Bispo, meu nome é Sandra, estou na IURD há três anos, sou

fiel a Deus nos dízimos e nas ofertas, porém tenho uma dúvida: sempre participo da Fogueira

Santa e vejo os bispos e pastores dizerem que a pessoa que sacrifica o tudo não precisa tirar o

dízimo. Pois bem, pelo que entendo, na Bíblia está escrito que de tudo que passa pelas nossas

mãos devemos devolver o dízimo. Por favor, oriente-me, pois não quero permanecer com

essa dúvida”. O Bispo Alceu Nieckarz responde, apresentando a seguinte explicação:

“Prezada Sandra: O dízimo, 10%, pertence a Deus, e o entregamos no altar como devolução.

Os 90% restantes pertencem à pessoa. Assim, a oferta sacrificial, significa a pessoa entregar

num ato de fé também este valor que lhe pertence. Que Deus a abençoe”.971

Edir Macedo detalha ainda mais esta explicação afirmando que, ao

contrário do que acontecia no Antigo Testamento, hoje não precisamos mais realizar

sacrifícios de animais. Porém, no Novo Testamento as ofertas e os sacrifícios não cessaram e,

assim, ao invés da oferenda de animais e produtos da terra, passa-se a ofertar agora o

resultado do trabalho, que é o dinheiro: Os d íz imos e ofer ta s são mane iras pe las qua i s ho je rea l izamos sac r i f í c ios . O d inhei ro que en t regamos à igre ja é r esu l tado do nosso t raba lho e representa pa r te do tempo no qua l gas tamos a nossa v ida para obtê - lo . Nesse aspec to o d inhe iro é um pouco de nós mesmos que depos i tamos no a l t a r do Senhor . 9 7 2

Prossegue dizendo que muitos criticam a oferta que é dada com a intenção

de se receber algo em troca. Lembra que Deus, na realidade, “não precisa de nada, pois é

dono de tudo, no entanto, quando estabelece este tipo de relacionamento com o ser humano

está “se preocupando com a sua obra na terra, que necessita da assistência da sua criatura”. E,

recorrendo à Bíblia, observa que “uma das mais importantes ofertas é a do dízimo”, e que no

texto Malaquias 4 se afirma que quando se oferta há uma recompensa. “Essa relação de troca

é o próprio Deus que estabelece” – ressalta.973 Essa mensagem da Igreja é referendada pelos

fiéis. Angela Maria da Conceição, 49 anos, empresária no ramo de cosméticos, declara:

“Tudo começou a mudar na minha vida financeira quando cheguei a Igreja Universal e

descobri que quanto mais nos damos a Deus, muito mais Ele nos dá. É algo recíproco”.974

971 A IURD mantém em seu site oficial um espaço para que qualquer pessoa possa esclarecer dúvidas ou receber orientação espiritual. Http://www.arcauniversal.com.br Acesso em: 12 mar. 2006.972 MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 2, p. 34, 36.973 Folha Universal, Rio de Janeiro, 01 nov. 1998, p. 6.974 Folha Universal, Rio de Janeiro, 09 abr. 2006, p. 9.

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Para a teologia da prosperidade os fiéis são colaboradores da vontade

divina, e “o dinheiro é uma ferramenta sagrada usada na obra de Deus”.975 Em entrevista

concedida à revista Veja, Macedo também afirma que o “dinheiro é o sangue que sustenta a

igreja” e que, por isso, ao oferecer à “casa de Deus” o seu dízimo, o cristão está como que

oferecendo metaforicamente o seu próprio sangue, substância que a igreja precisa para a sua

expansão. O bispo também acrescenta que “quando pagamos o dízimo a Deus, Ele fica na

obrigação (porque prometeu) de cumprir a sua Palavra, repreendendo os espíritos

devoradores que desgraçam a vida do homem”.976 Ocorre, aí, uma espécie de contrato que

estabelece Deus como um sócio: Decida-se agora mesmo. Dê adeus às doenças , à misé r ia e a todos os males , tenha um reencont ro com Deus e assuma novamente a sua pos ição na famí l ia de Deus ( . . . ) A v ida abundante que Deus , pe lo seu grande amor , nos garan te a t ravés de Jesus Cr i s to , inc lu i todas as bênçãos e provisões de que necess i t amos , ou mesmo que venhamos a dese ja r ( . . . ) Não pe rca a opor tunidade de se r sóc io de Deus . Coloque-se à sua d ispos ição com tudo o que você tem e comece a par t i c ipa r de tudo o que Deus tem. ( . . . ) O d inhei ro , que é humano, deve ser a nossa par t i c ipação , enquanto que o poder esp i r i tua l e os milagres , que são d iv inos , são a par t ic ipação de Deus ( . . . ) Dar o d íz imo é candida tar - se a r eceber bênçãos sem medida ( . . . ) quando pagamos o d íz imo a Deus , E le f ica na obr igação de cumpr i r a Sua Palavra . 9 7 7

Segundo essa teologia, todos os fiéis ao se converterem são reconhecidos

como “filhos de Deus” e, como tais, portadores do legítimo direito de receber todas as coisas

materiais criadas e terem êxito em todos os seus empreendimentos. Por isso Edir Macedo faz

um alerta: “nunca ouça a voz dos inimigos de Cristo, que colocam mensagens demoníacas,

afirmando que o dinheiro é mau, que a riqueza é diabólica ou coisas semelhantes a estas”.978

Entretanto, há aqueles que ainda não receberam tais benefícios, continuando a enfrentar

adversidades, miséria, pobreza, doença, sofrimento. Isso ocorre porque a fé do convertido

inaugura a chamada “batalha espiritual” contra o Demônio, o qual deseja fazer com que os

crentes duvidem de Deus ou dele se afastem. Assim, entre a prosperidade a que o fiel tem

direito desde a sua conversão e a sua vida presente interpõem-se as forças do Mal, e é para

combatê-las que a Igreja Universal disponibiliza aos fiéis os ritos em seus cultos, dando-lhes

condições de alcançar a desejada prosperidade. Com esse discurso, a IURD revisita, em

parte, elementos da ética protestante que considera o dinheiro, o lucro e os bens materiais

como sinais de bênçãos e até ser este o desejo de Deus para o crente, como análise feita por 975 Ibid, p. 75.976Revista Veja, São Paulo, 14 nov. 1990.977 Ibid, p. 76.978MACEDO, Edir. Vida com abundância, p. 43.

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Max Weber em relação a determinados segmentos do protestantismo surgidos com a

Reforma do século XVI.979 Segundo análise weberiana, os bons frutos adquiridos pela ética

do trabalho eram vistos como prova da eleição divina dos seus filhos que, ao terem êxito em

seus negócios, certificavam-se de serem objetos da graça divina. Mas na configuração e no

alcance notabilizados nas práticas iurdianas tal proposta ganha novas perspectivas. O que se

constata é que a aquisição de riquezas materiais não mais se dá pelo ascetismo, rompe-se com

tal categoria e o acesso aos bens materiais se dá pelo caminho do simbólico, do elemento

místico. Agora, o acesso a tais bens percorre um caminho místico, de “sobrenaturalidade”,

viabilizado pelos ritos mágicos da igreja. E, mais, a prosperidade material sintoniza-se com

regras do mercado: um lance maior de oferta corresponde a uma maior recompensa, quanto

mais se oferece à igreja mais se recebe de Deus. A mediação do trabalho não mais aparece.

Dessa forma, notadamente a IURD, em seu discurso e organização do

universo da crença, consegue promover a compatibilidade da religião com o sistema

capitalista. O êxito alcançado por essa Igreja é sem precedentes. Deus é visto como uma

espécie de provedor de benesses e prosperidade material para os fiéis. Conforme esse modelo

de pensamento, todo cristão consagrado tem o direito de “exigir” de Deus uma vida

financeiramente agradável, já que adquiriu a posição de legítimo “filho do Rei”. Descrever os

bens desejados, como casa, carro, ou outra forma de consumo, tornou-se uma prática comum

entre os evangélicos. Se os cristãos sofrem dificuldades financeiras é porque não fazem

ofertas suficientes para a obra de Deus. Essa é, portanto, a lei do retorno “cem vezes maior”.

A regra espiritual das finanças então seria: se a pessoa quer mais, ela precisa dar mais: “Se

alguém deseja grandes coisas, deve ter fé na mesma proporção. As bênçãos vêm pela fé, mas

você só pode colher caso plante – afirma Macedo”.980

Edir Macedo utiliza a expressão “o direito de cobrar” para se referir à

condição adquirida por aquele que é dizimista: “Quem tem o direito de cobrar de Deus aquilo

que Ele prometeu? O dizimista! Uma das grandes razões porque devemos dar o nosso dízimo

é esta”. Utiliza ainda como ilustração de seu argumento alguns nomes famosos:

“Conhecemos muitos homens famosos que provaram a Deus com respeito ao dízimo e se

transformaram em grandes milionários, tais como o Sr. Colgate, o Sr. Ford e o Sr. Caterpilar.

Homens como estes que além dos negócios e do acúmulo de riquezas se preocupam com a

fidelidade a Deus, tendem a ser abençoados cada vez mais”.981

979 WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 122ss.980Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 74, 2001.981 MACEDO, Edir. Nos passos de Jesus, p. 64.

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A figura do Diabo é também de grande importância para este modelo de

mensagem. Com isso, seguir corretamente a orientação do líder é assegurar-se de proteção e

livramento da ação demoníaca caracterizada pela crise financeira, doença e outras formas de

adversidade. O líder tem a autoridade para “quebrar as obras do inimigo” e impedir a “ação

do devorador” - costumam ressaltar os fiéis. Sobre o dinheiro nas mãos de pessoas “sem

Deus no coração”, o bispo Macedo adverte que “o dinheiro também pode trazer desgraça”, e

cita exemplos com a autoridade de quem já conviveu com o setor de loterias: “há pessoas que

ficaram ricas da noite para o dia com loterias e para elas as coisas não terminaram bem”. E

acrescenta: “Por que isso? Porque aquele dinheiro carecia de uma sustentação bíblica, não

tinha legitimidade espiritual”.982 De igual modo, “quem conquista bênçãos, mas não

estabelece um compromisso sério com o Abençoador, acaba sempre voltando à estaca zero” –

lembra o bispo.983 Assim, observa-se a estreita relação entre o fato de possuir bens materiais

estar diretamente vinculado ao campo do “espiritual”.

De acordo com Bourdieu, no campo as relações de transação ligam os

diferentes agentes especializados a grupos sociais. Assim, numa sociedade de dominantes e

dominados, os que pertencem às classes dominantes tendem a pedir à religião que legitime

sua dominação e seu bem-estar material. Já os grupos dominados tendem a recorrer aos

agentes religiosos para a superação imediata de algum tipo de sofrimento, ou para encontrar a

esperança de libertar-se de sua opressão em um futuro não muito distante. Nesse sentido, os

exemplos de Weber “procuram mostrar a religião como garantia e proteção, justificação e

legitimação de interesses econômicos e sociais: a proteção de bens materiais, proteção da

propriedade, proteção das barreiras sociais etc.”984

O evangelho da prosperidade tem eficazmente conseguido seduzir os fiéis

na busca de ascensão financeira e social. Nos depoimentos que dão, os líderes iurdianos não

escondem o orgulho de ver as igrejas sob seu comando prosperarem financeiramente. A

Folha Universal e a Revista Plenitude citam inúmeros depoimentos de pessoas que

participam das campanhas pela prosperidade, destacando que “muitos empresários,

microempresários, profissionais liberais e desempregados”, sem encontrar solução para seus

problemas financeiros “chegam a pensar em suicídio”, mas os que “aprendem a viver pela fé

descobrem que é possível ser um vitorioso”. É o caso de Maurício Ferreira. Aos 35 anos,

982 O Globo, Rio de Janeiro, 29 abr. 1990.983 Folha Universal, Rio de Janeiro, 09 fev. 2003, p. 2.984 MICELI, Sérgio. A força do sentido. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. Op. cit, p. LII, LIII.

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empresário, tinha uma vida financeira estável, em Brasília, quando “de uma hora para outra

tudo começou a desmoronar”:De repente , as vendas começaram a ca i r em minhas duas r evendedoras de au tomóve l e t ive que fechá- las . Cont ra í d ív idas a l t í s s imas , t ive bens penhorados, cheques devolv idos e perd i o imóve l em que eu morava . Os of ic ia i s de Jus t i ça v iv iam em minha casa . Eu es tava no fundo do poço e não conseguia enxergar uma so lução . Desesperado , chegue i ao ponto de t en tar o su ic íd io . Foi quando reso lv i procura r a Igre ja Univer sa l ma is próxima no anse io de achar uma sa ída , po i s ouvia f a lar da IURD e dos inúmeros milagres que lá acontec iam. No momento em que chegue i na Igre ja o pas tor fa lou a lgo que fo i d i re tamente pa ra mim: ‘você que ten tou a mor te o Senhor Jesus es tá fa lando que sua v ida t em je i to e Ele quer mudá- la’ . Pense i , se esse Deus ex i s te en tão vou mudar . Daquele d ia em dian te pa re i de ques t ionar o que o homem de Deus fa lava . O que Deus tem fe i to em minha v ida num cur to per íodo chega a se r inacred i tável pa ra mui tas pessoas . Já adqui r i t rê s imóveis , en tre e les uma cober tura , a lém de car ros impor tados . Tenho consciência de que todas a s minhas conquis ta s são pe la fé , f ru to da par t ic ipação nas reuniões e , ac ima de tudo , da minha f ide l idade a Deus. Venci porque aprendi na reunião dos 318 a t e r v isão de co isas grandes . 9 8 5

O testemunho de Odair Ribeiro de Siqueira, proprietário de uma

conceituada fábrica de brinquedos, também é apresentado como exemplo de sucesso

alcançado: Cheguei à ig re ja com minha v ida f inance ira a r ru inada . Es tava numa s i tuação d i f íc i l , em to ta l decadência f inance ira , com 275 cheques sem fundos , 95 t í tu los pro tes tados e uma d ív ida que aos o lhos humanos era impagáve l , embora t r abalhasse nesse r amo há 16 anos . Vejam em que condição f iquei : um empresár io com mais de 100 func ionár ios chegou ao ponto de não te r condições de comprar 1 qui lo de ma tér ia pr ima para fabr ica r . Meu contador aconselhou-me então a encerrar a empresa , mas tudo i sso mudou quando tomei conhecimento das reuniões que acontec iam na Univer sa l , e specia lmente a v ig í l i a dos 318 pas tores , a t ravés da qua l aprendi a agi r com a fé , a l i ada a in te l igência e , c laro , com a ação . Deus fo i abr indo as por tas grada t ivamente de forma que fu i qu i tando as d ív idas com os fornecedores e ho je t enho prosperado . 9 8 6

De igual modo, a empresária Ana Lúcia Valente, 38 anos, descreve a sua

participação nesta campanha: Por t rê s vezes re so lv i abr i r meu própr io negócio , em ramos d i feren tes , mas não deu ce r to . Sem expl icação , todos fa l i r am em pouco tempo me de ixando em s i tuação econômica mui to mais compl icada , porque as d iv idas se mul t ip l icaram. Pensava a té em comete r su ic íd io . Estava mui to angus t iada quando ass is t i a programação da IURD pe la t e lev isão e sem perceber consegui te r uma boa noi te de sono , o que não acontec ia a a lgum tempo. Por is so reso lv i i r à ig re ja . Me lancei nas mãos do Senhor Jesus e c lamei com todas minhas forças pe la t ransformação da minha v ida . A respos ta não demorou. Monte i um negóc io no ramo de

985 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 93, p. 46, 2003.986 Id., ibid.

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computadores , o qual t em prosperado mui to . Hoje possuo t rês lo jas no ramo da informát ica . 9 8 7

Mas não somente empresários ou micro-empresários testificam sobre as

experiências obtidas nos ritos de prosperidade. Roberto Tavares de Souza, 46 anos, membro

da Catedral Mundial da Fé, conta que chegou à Igreja Universal com várias dificuldades

financeiras, e a primeira reunião que freqüentou foi a sessão espiritual de descarrego, onde

ficou “livre da opressão dos espíritos imundos”. “Participo desde junho da Reunião dos 318

Pastores, e neste mês entre outras coisas, consegui adquirir um automóvel zero quilômetro” –

destaca.988 Deuza G. Coutinho, 56 anos, relata que durante sua juventude deixou o sertão

nordestino para tentar a vida na cidade grande. Ao chegar em São Paulo deparou-se com a

dura realidade. Sem trabalho e moradia acabou se instalando debaixo de um viaduto na

região central da capital paulista. “Nem cobertor eu tinha para passar minha primeira noite na

rua” - relembra emocionada. “Embora eu estivesse numa situação horrível e deprimente,

dentro de mim havia uma certeza de que eu, um dia, iria mudar de vida e que aquela situação

seria revertida. Eu olhava para o céu e dizia: Deus! Vim para São Paulo para vencer e não

para ser mendiga”. Foi quando a IURD surgiu em sua história de vida: “Um dia avistei um

local com uma pomba desenhada na frente e pensei tratar-se de um lugar que tivesse alguma

relação com o nordeste. Entrei e disse que queria falar com o responsável. Era uma Igreja

Universal” - conta. Após conversar com o pastor ela saiu dali com os sonhos renovados: “Ele

me disse para procurar um emprego. No início achei que aquele homem não tinha juízo. Eu

estava maltrapilha e suja, quem iria me atender? Mas ainda assim, voltando para debaixo da

ponte me senti renovada. Havia muito tempo que eu só ouvia palavras de derrota por isso me

apeguei à palavra do pastor. Com aquele incentivo, fui a um restaurante e perguntei se tinha

trabalho, o dono me respondeu que se eu estivesse limpa haveria sim. Fui ao viaduto, peguei

uma lata de água e joguei por cima do corpo. Esse era meu banho” - revela. Começou

lavando a calçada do estabelecimento e, durante este período, “participava da reunião dos

318 na IURD às segundas-feiras”. Vendo o empenho de Deusa, seu patrão lhe cedeu um

quarto com banheiro no fundo do restaurante. Deusa se empenhou e paralelamente concluiu

seus estudos. Com muito trabalho e dedicação ao ramo de beleza e estética, abriu um salão.

Hoje, ela é proprietária de uma clínica de beleza que leva seu nome e está localizada no

bairro do Morumbi, uma região nobre da cidade de São Paulo. “Eu não tinha nada. Só

987 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 90, p. 31, 2002. 988 Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 out. 2003, p. 8.

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precisei de uma palavra de incentivo e exercitei a minha fé para ir adiante e conseguir as

portas” - comemora.989

Semelhantemente, Maria Aparecida Souza de Oliveira testemunha que

chegou à IURD com a vida destruída: “Fui abandonada por meu marido, mas não podia

trabalhar, pois tinha que cuidar de um dos meus filhos que estava acidentado. Sem saber de

onde tirar dinheiro, a única saída que encontrei foi a de ir às ruas e pedir esmolas”. Nessa

época foi então convidada a participar de uma reunião na Igreja Universal e, na vigília dos

318, desafiada com as palavras do pastor: “Deus não nos chamou para a derrota, mas nos deu

a fé para resolver os problemas”. O que se seguiu a isto é descrito em tom miraculoso:

“Recebi orações do pastor e com o tempo todas as portas se abriram e comecei a trabalhar,

conseguindo pagar todas as dívidas. Hoje sou empresária, tenho casa própria, carro e posso

comprar tudo o que desejo”.990

A teologia iurdiana sobre prosperidade atribui ao Demônio toda a

responsabilidade pela miséria e sofrimento. Do material coletado pelas pesquisas de campo,

um folheto trazia o seguinte anúncio:OS EXTERMINADORES DE RIQUEZAS: ASSOLAÇÃO DOS GAFANHOTOS DO INFERNO. [Figuras representando ga fanhotos ameaçando dest ru i r a casa , o car ro , d inhei ro e jó ia s ] . Cada t ipo de gafanhoto representa uma leg ião de demônios que age na v ida do homem, em seu pa t r imônio , suas r iquezas , bens , sa lá r ios e f amíl ia . Par t i c ipe des ta cruzada vencendo os ex terminadores de r iquezas . Deus devolverá tudo aqui lo que o d iabo tomou de você . Nes ta segunda-fe i r a , à s 14 e 19 :30 horas . Par t i c ipe ! 9 9 1

Em um dos templos da IURD, no dia e hora marcados pelo convite acima,

realizou-se uma observação participante de uma campanha voltada à prosperidade.992 O culto

teve início com a entoação de cânticos que enfatizavam a “guerra espiritual” contra o

Demônio. Em seguida, passou-se à leitura do texto bíblico de Efésios 2:1-7, cuja ênfase dada

pelo pastor era a de que “através de Jesus podemos ter acesso à riqueza, porque está escrito, a

miséria é do diabo”. A todo instante o pastor procurava fundamentar seus argumentos no

texto bíblico. Além de proceder à leitura em voz audível, com entonação enfática nas

palavras que pretendia destacar, também instigava os ouvintes a repetir as frases do texto

bíblico, durante a pregação de aproximadamente vinte e cinco minutos. Ao final, o pastor

disse: “Deus colocou um alvo [oferta] em meu coração para atingir nesta tarde”. Logo após,

foram distribuídos envelopes de dízimos para quem quisesse ajudar. Em seguida, passou a 989 Folha Universal, Rio de Janeiro, 09 fev. 2006, p. 08.990 Id., ibid.991 Folheto divulgado pela IURD, recolhido para pesquisa em Londrina, em 2004.992Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, ago. 2005.

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fazer o apelo, enumerando valores em escala decrescente a ser oferecido. Primeiro, pediu aos

que gostariam de ofertar cinco mil reais, depois por etapas reduzindo os valores: mil reais,

quinhentos, cem, cinqüenta, dez e, finalmente, cinco. A cada apelo, ressaltava: “O Diabo é

contra a doação, não deixe que ele fique cochichando ao seu ouvido...”. Encontrando certa

dificuldade para atingir o seu alvo financeiro, indagou em tom apelativo: “Vamos sair daqui

derrotados? Quem não prospera é porque não tem coragem de dar um passo de fé”. E,

ilustrando, ressaltou: “Se você não tiver coragem de saltar, o pára-quedas não abre!” Após

todas estas etapas cumpridas, o pastor finalmente dirigiu-se ao público com entusiasmo:

“Irmãos, alcançamos nosso alvo!”

A segunda modalidade de ritos visando a prosperidade envolve

peregrinações à Terra Santa, mediante a campanha denominada “fogueira santa de Israel”.993

De acordo com o bispo Macedo, essa campanha “serve para tornar possível em sua vida

aquilo que é impossível. Esse é o propósito. Não é para dar o seu dinheiro ou a sua oferta

para a igreja. O objetivo é determinar que coisas grandes, magníficas aconteçam na vida

daqueles que acreditam que aquilo que Deus prometeu é verdade”. O Bispo explica porque é

necessário levar os pedidos das pessoas para Israel: “Esse país é disputado por muçulmanos,

cristãos e judeus, não por causa de ouro, petróleo ou pedras preciosas. O produto mais forte

de Israel se chama fé, por causa dela há um desenvolvimento no turismo. O mundo inteiro vai

a Israel, pois quer sentir naquela terra o que os profetas do passado sentiram. Israel representa

a existência de Deus nos dias de hoje. Por que não foi construído como os demais países.

Israel nasceu por obra do próprio Deus no coração de Abraão. Deus escolheu aquele lugar,

separado de todos os demais lugares, para que fosse santo, sagrado, para que tivesse um povo

que não fosse semelhante aos demais povos pagãos. Até hoje, tudo naquele lugar leva para a

fé do Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. A vida abundante é o resultado que essa fé

produz. É pela fé que você irá prosperar. É a fé que tornará todos os seus sonhos em realidade

e trará cura a todas as enfermidades, independente de sua gravidade. Esse é o sentimento que

faz a pessoa ser parceira de Deus, então não terá inimigo que possa barrar seu caminho de

conquistas”.994

Na entrada do ano 2000, a IURD realizou uma grande campanha

denominada “fé e sacrifício no monte de Deus”. Exatamente à meia-noite do dia 31 de

993 As caravanas da IURD à Terra Santa tiveram início em 1995. No primeiro grupo havia 52 peregrinos. “O objetivo maior é refazer os passos de Jesus Cristo, caminhando exatamente pelos mesmos locais nos quais Ele esteve” – destaca a Igreja. Já naquela época a IURD conseguiu “levar milhares de fiéis a Israel”, cf. Folha Universal, Rio de Janeiro, 27 nov. 2005, p. 1.994 Folha Universal, Rio de Janeiro, 04 dez. 2005, p. 2.

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dezembro, os bispos, representando as IURD de todo o mundo, iniciaram o chamado

sacrifício da subida ao Monte Sinai, o monte de Deus. Ao mesmo tempo, os templos das

igrejas ficaram super-lotados com a presença dos fiéis. A IURD explica o significado desse

rito: “No monte que o Senhor escolheu para fazer aliança com o povo de Israel, entregando a

tábua com os 10 mandamentos a Moisés, os bispos clamarão por vitória, para todo o povo

evangélico e entregarão seus pedidos. Estarão enfrentando para isso uma subida difícil, em

terreno acidentado, podendo encontrar uma temperatura que nesta época do ano atinge

índices abaixo de zero. A escalada deve demorar de duas horas e meia a três horas. É

verdadeiramente um sacrifício. Mas Israel também teve que se sacrificar antes de fazer uma

aliança com Deus. Nós vamos subir o monte e voltaremos com a certeza da vitória”.995

Destacando que o propósito dos bispos que sobem o Monte Sinai é “trazer

libertação, conforto e a presença de Deus ao povo”, Macedo é incisivo no desafio que

apresenta: “Meu amigo, esta subida do Monte Sinai é para mudar a sua vida. Nós vamos

levar o seu pedido, a sua súplica ao mesmo lugar em que Moisés esteve a cobrar de Deus

suas promessas e exigir que Ele nos use assim como usou muitos profetas em suas

respectivas épocas. Ele é o mesmo Deus e assim como respondeu a todos os profetas a de nos

responder em nome de Jesus”.996

Como resultado do sucesso obtido nesses ritos da fogueira santa, a Folha

Universal cita inúmeros testemunhos, como o do casal José e Luíza, comerciantes em São

Paulo: “Quando abrimos o nosso comércio não foi fácil, foram muitas lutas, inclusive o local

era alugado. “Determinei” que compraríamos o imóvel, então participamos do propósito da

fogueira santa, e fizemos o nosso voto com Deus, que nos respondeu. Recebemos uma

proposta de compra do imóvel e mesmo sem condições financeiras conseguimos fechar o

negócio. O nosso restaurante fica em local privilegiado, temos um movimento muito bom,

que me dá um padrão de vida como nunca tive antes. Tudo que quero posso comprar.

Agradeço a Deus e já estou me preparando para a próxima fogueira” – afirma Luíza.997

Alenir Mioto, 47 anos, decoradora, de Curitiba, conta que após passar por

situações de fracasso financeiro e ter perdido muitos bens, chegou a buscar ajuda em várias

religiões, “inclusive em casa de encostos, mas nada resolvia” – lembra. Foi quando conheceu

a Igreja Universal e começou a participar da campanha da fogueira santa: “Mesmo não

entendendo direito me lancei em busca dos meus objetivos. Os resultados foram

995 Folha Universal, Rio de Janeiro, 27 dez. 2005, p. 7.996 Folha Universal, Rio de Janeiro, 11 jul. 2004, p. 3.997 Folha Universal, Rio de Janeiro, 27 dez. 2005, p. 7.

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surpreendentes. Conseguimos comprar um sobrado com três pisos, carro zero, uma loja de

decoração. Depois de mais algum tempo compramos mais um sobrado que está em

construção. Todos os meus sonhos foram realizados na fogueira santa, mas o maior deles foi

a conquista da paz interior, restauração familiar e a compra de meu sobrado” – finaliza

Elenir.998

O depoimento de Francisco Alves da Silva, 42 anos, também segue a

mesma ênfase: Quando passava por mui tas d i f icu ldades f inance iras , fu i convidado a pa r t ic ipar de uma reunião na Igre ja Universa l . Ao ace i ta r o convi te percebi que havia a lgo de er rado , que meu sofr imento e ra causado por e sp ír i tos mal ignos . Dec id i en tão lu ta r pa ra a minha l ibe r tação to ta l e não mais ace i ta r v iver na misé r ia . Hoje minha famí l ia e s tá comple tamente l ibe r ta , nunca mais passamos por necess idades e es tamos conquis tando as bênçãos de Deus . 9 9 9

4.3.2 - Corrente do descarrego: o mal e suas representações nas práticas iurdianas

O anúncio apresentado a seguir demonstra o amplo alcance do universo

simbólico vivenciado pela IURD:SESSÃO ESPIRITUAL DE DESCARREGO! Se você é v í t ima de um encos to de v íc ios , doenças , misé r ia , separação conjugal , VENHA RECEBER A LIBERTAÇÃO NA PRECE DO DESCARREGO, aonde DEUS, que é o pa i das luzes , va i i luminar seus caminhos! Você receberá gra tu i tamente a Rosa do Desca rrego . Coloque-a num ambiente onde ex i s te um encosto pa ra que a mald ição se ja quebrada . Par t i c ipe t ambém da campanha da ar ruda cont ra os maus esp í r i tos na ú l t ima sex ta- fe i ra do mês . Temos a oração de descarrego com a rruda , uma oração for te , mui to for te para a sua v ida . Sexta- fe i ra , à s 15 e 19 :30 horas . Rua Bras i l , 553 , cen tro . Se prec i sar , l igue pa ra o SOS Espi r i tua l : (43) 3344-3557. 1 0 0 0

Na mensagem acima aparecem elementos que configuram a magia dos

símbolos (arruda, rosa ungida), dos rituais (encosto, sexta-feira, descarrego1001) e dos lugares

998 Id. ibid.999 Folha Universal, Rio de Janeiro, 30 jul. 2000, p. 11.1000Folheto publicado pela Igreja Universal do Reino de Deus, de Londrina, recolhido para pesquisa em Janeiro de 2004. A divulgação destes rituais também se faz diariamente, em nível nacional, através de programações diária de rádio e TV, como registro feito, por exemplo, no dia 22/03/04: O Despertar da Fé. São Paulo, Rede Record, 22 mar. 2004. Programa de TV. Ponto de Luz. Londrina, Rádio Atalaia AM, 22 mar. 2004. Programa de rádio.1001Uma edição re-significada do ebó, que, nos cultos afro-brasileiros, consiste num ritual de limpeza para descarregar o indivíduo de energias estranhas, que sobrecarregando o indivíduo, podem provocar desequilíbrios que resultam em doenças físicas ou psíquicas ou, de modo geral, em empecilho à realização de seus projetos e suas tarefas cotidianas. Cf. MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o prinvado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 151, 152.

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onde ocorrem as manifestações taumatúrgicas (templos). Fala-se em crença na inveja, mau-

olhado, praguejamento, simpatias, benzimento, apego a objetos como fetiches e amuletos.

A campanha de “descarrego” consiste num dos ritos fundamentais

apresentados pela Igreja para quem deseja superar a condição mais profunda de sofrimento e

de fracasso:Se a pessoa admi te que a sua v ida es tá um inferno , é porque ex i s te a a tuação do mal igno , e com essas pa lavras e la dá forças aos encos tos . O mal quando en t ra na v ida de uma pessoa usa toda a força para des t ru i r o ser humano, por is so , quem par t i c ipa da Sessão do Descar rego , t em que usar a força que vem de Deus para vencer def in i t ivamente os encos tos . 1 0 0 2

Um panfleto, apresentando como slogan “venha libertar-se dos encostos!”, dá detalhes sobre

o que a IURD entende por tal expressão: Encos to é uma força esp i r i tua l negat iva que se aproxima das pessoas causando sof r imento , t rans torno , confusões , v i r ando a v ida do avesso do d ia para a no i te como num pisca r de o lhos . O fe i t i ço , a inveja , o o lho-grande são os meios ma is comuns de se l ançar um encos to em a lguém. Se você tem víc ios , insônia , depressão , nervosi smo, dores de cabeça cons tan tes , desmaios ou a taques , vê vul tos , ouve vozes , t em dese jos de morrer ; se tudo tem dado er rado pra você . . . Há um encos to em sua v ida! 1 0 0 3

No início de suas atividades no Brasil, essa Igreja costumava empregar

publicamente em seus ritos os nomes das divindades pertencentes às crenças afro-brasileiras

para identificá-las com demônios: Exu, Tranca-rua, Maria Padilha, Preto Velho, Pomba-Gira

etc. Porém, devido a intensos conflitos e processos na Justiça movidos por estes segmentos

religiosos contra a IURD, o movimento passou a generalizar os nomes com o termo

“encosto”. Por isso também a Igreja, ao invés de usar as expressões “mães ou pai-de-santo”,

para se referir aos líderes de terreiros de cultos afro, identifica-os, agora, por “mãe ou pai-de-

encostos”.

O poder concedido por Deus sobre o mal se dá especialmente por meio dos

exorcismos dos demônios e da cura divina. Todos os problemas têm solução, sendo que

praticamente todos têm sua explicação na presença de algum, ou geralmente, muitos

demônios. Para isto atuam os pastores e obreiros da IURD, como os que podem exercer o

devido poder da fé para curar e libertar da força dos demônios os que recorrem à Igreja.

A teologia iurdiana pressupõe que todos os filhos de Deus têm direito de

usufruir as melhores riquezas e uma condição de vida sem infortúnios. E se isto não ocorre é

1002 Folha Universal, Rio de Janeiro, 02 abr. 2006, p. 21.1003 Folheto publicado pela Igreja Universal do Reino de Deus, recolhido para pesquisa em 2004.

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porque existe um adversário que o impede: o Diabo e seus demônios. Por isso o fiel precisa

tomar conhecimento disto e engajar-se numa batalha espiritual para vencer o inimigo. A

participação nos ritos oferecidos pela igreja é o “modo como o fiel trava esses infindáveis

combates”, mediante o que se desvendam “as figuras do sagrado por trás das quais o Maligno

revela sua ação” – destaca Maria Lucia Montes, que acrescenta:Os cul tos da Igre ja Unive rsa l se povoam de fe i t i ços e macumbar ias de exus e pomba-gi ras , de t raba lhos da d i re i t a ou da esquerda , de or ixás malévolos e fa l sos san tos , de benzimentos , rezas , pa je lanças e operações e sp i r i tua i s , a lém de fa lsas promessas de pa i s -de -santo de umbanda e candomblé ou bea tos mi lagre i ros que enganam um povo incrédulo e ignorante . 1 0 0 4

A Universal ressalta que “é comum encontrar pessoas sofrendo com

depressão, desejo de suicídio, insônia, família destruída, vida financeira arruinada, vícios,

enfim, problemas que não conseguem solucionar”, as quais, em alguns casos, chegam a

“gastar fortunas com especialistas” sem contudo descobrir as “causas de determinadas

doenças ou tão pouco obter a cura”. Isto ocorre pelo fato de estarem sendo “vítimas de

espíritos malignos, encostos que têm como único objetivo devastar a vida do ser humano,

direcionando ao fracasso”. Com o intuito de combater esses encostos e os males por eles

causados é que se realiza a sessão espiritual de descarrego: “Durante essas reuniões, uma

guerra espiritual é travada através da fé no Senhor Jesus e de orações em favor a dar um basta

em tanta humilhação”.1005 O anúncio, a seguir, descreve com mais detalhes a dimensão dos

males que a Igreja se propõe solucionar: Par t ic ipe da SEXTA-FEIRA FORTE! Se Deus é por nós , quem se rá cont ra nós! ! !? Exis tem 10 s in tomas de possessão demoníaca : dores de cabeça ; v íc ios ; insônia e ne rvos i smo; per turbação; desmaios cons tan tes ; medo; depressão; audição de vozes e v i sões ; doenças sem diagnós t icos ; dese jos de su ic íd io . Não impor ta qual a sua re l ig ião , Deus va i abr i r seu caminho, marque com um X o seu maior problema e você deverá comparecer nes te endereço: Rua Maranhão 449 - cen t ro . Diar iamente , à s 8 :00 , 10 :00 , 15 :00 e 19 :30 horas . Só depende de você! Exis te uma sa ída! 1 0 0 6

A Rádio Gospel FM, de Londrina, reforçando essa chamada, inseriu a fala

de Edir Macedo explicando “o porquê da sexta-feira”: Esse d ia , a sex ta - fe i ra , é c ruc ia l e d i fe ren te dos demais , po i s é quando os demônios se enfurecem e agem mais agress ivamente cont ra a s pessoas , i s so porque fo i nesse d ia que Jesus fo i c ruc i f icado . É nesse d ia também que os “ t rabalhos” de fe i t i ça r ias são fe i tos em maior quant idade” . Há um a f luxo maior de pessoas aos t e r re i ros e encruzi lhadas . Por i s so nós nos preparamos de uma

1004 MONTES, M. L. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 123.1005 Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 mar. 2003, p. 8.1006 Folheto recolhido para pesquisa em junho de 2004.

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manei ra mui to e specia l pa ra uma guerra de l iber tação dos per turbados por e sses esp í r i tos” . 1 0 0 7

Sobre possessão demoníaca, Macedo define-a como “habitação de um ou

mais demônios no corpo de uma pessoa, exercendo-lhe controle e influência, com prejuízos

para as funções mentais e físicas. O espírito imundo age bloqueando a visão, entendimento e

compreensão da Palavra de Deus”. E em relação aos sintomas o bispo afirma que significam

“tudo aquilo que foge ao normal sem que tenha uma causa plausível”, e apresenta outros

detalhes: “doenças e enfermidades físicas; doenças mentais; constantes dores de cabeça ou

dores localizadas em outras partes do corpo, não diagnosticadas pela medicina; insônia; medo

e fobias; desejo de suicídio; vícios; nervosismo; depressão; visão de vultos e audições de

vozes inexplicadas”.1008

Seguindo o convite de um desses panfletos, convidando para uma “sessão

de descarrego”, foram desenvolvidas algumas observações sobre esse ritual num dos templos

da IURD, localizado em área central da cidade de Londrina, com amplas instalações,

anteriormente ocupadas por uma loja de eletrodomésticos.1009 Uma dessas reuniões se deu

numa sexta-feira, no horário das 19 horas e 30 minutos; o templo, com capacidade para cerca

de 2 mil pessoas, estava completamente lotado. Antes de iniciar a reunião, à porta estavam

colocados os obreiros, vestidos com roupas brancas, que davam boas-vindas aos visitantes e

os conduziam para o interior do templo, aproveitando a ocasião para oferecer-lhes as

literaturas do bispo Macedo, as quais ficam estrategicamente em exposição sobre mesas à

entrada do local. No altar havia uma grande mesa pintada de branco, próxima à qual estava o

pastor, assentado em atitude de oração e concentração, preparando-se para entrar em cena. Na

hora marcada, iniciou-se a reunião com a entoação de um cântico conduzido por um grupo

musical, sendo acompanhado pela multidão presente. Terminada a canção, o pastor, com

idade aproximada de vinte cinco e anos, vestido com roupas brancas, levantou-se e se dirigiu

ao púlpito. De forma espontânea a multidão também se levantou e ouviu do pastor as

seguintes palavras: “Esta é uma noite muito forte! Você que sente que há um encosto, um

trabalho do diabo em sua vida ... um trabalho de feitiçaria ou de bruxaria contra seu

casamento, seus negócios financeiros, você que está tendo uma vida perturbada ... que já

freqüentou um terreiro, já fez rituais nas encruzilhadas, já acendeu velas no cemitério, venha

à frente, esta é a noite da sua libertação!” Cerca de uma centena de pessoas se dirigiu à frente

1007 Ponto de Luz. Londrina, Rádio Gospel FM, 12 ago. 2005. Programa de rádio. 1008 MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 2, p. 63, 64.1009 Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, mar. 2005.

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do altar. Sete obreiros (homens e mulheres) de cada lado do púlpito, estrategicamente se

posicionaram para auxiliar o pastor. Quando este começou a orar, pedindo ao Diabo que se

manifestasse, também foi acompanhado por toda a multidão que pronunciava, em voz alta,

impropérios contra o demônio. Instantes depois, havia dezenas de pessoas caídas ao chão,

com as mãos contorcidas para trás, com o rosto desfigurado, supostamente possuídas pelos

maus espíritos. Cessado o momento de oração coletiva, a multidão se assentou e o pastor

passou a citar passagens bíblicas, explicando como o Diabo age na vida de uma pessoa,

dando destaque ao texto de Tiago 2:9, que afirma: “O Diabo anda em derredor como um leão

procurando alguém para devorar”. Em seguida, para realçar os perigos de uma vida sem

Deus, voltou-se para uma enorme figura de leão, emoldurada em isopor, que estava exposta

sobre o altar, representando o demônio. Logo após, dirigiu-se àqueles que estavam sob

possessão demoníaca, declarando aos “maus espíritos” que os esses estavam espiritualmente

“amarrados” e não poderiam fazer nada naquele lugar. Iniciou-se a partir daí um período de

entrevistas com os demônios em que o pastor perguntava: “Qual é o teu nome”? Ao que

obtinha, em tonalidade de voz aguda e aterrorizante, respostas como: “sou lúcifer, pomba-

gira, zé-pilintra, tranca-rua, Maria Padilha ...”, nomes tipicamente pertencentes às crenças

afro. Prosseguiu: “o que você pretende fazer contra esta pessoa?” “Vou destruir o seu

casamento, tirar o seu emprego, não deixá-la ser feliz...”. O pastor então se dirigiu à multidão

dizendo que o mesmo poderia acontecer com todos os que ali estavam, e que a “campanha do

descarrego” era o meio de se libertarem. Os fiéis foram convidados a receber uma fita em seu

braço, na qual estava escrito “pai das luzes”, para isto, entretanto, teriam de ir de maneira

voluntária à frente e entregar uma oferta em dinheiro para ajudar à igreja. Ressaltou o pastor

que ofertar a Deus é a maneira de se proteger contra o ataque do diabo na área financeira: “o

que você não dá a Deus, o Diabo rouba” - enfatizou. Todos então se colocaram de pé, as

luzes foram apagadas, ficando acesa apenas uma grande cruz colocada diante do altar.

Formou-se um corredor com os obreiros diante dos quais a multidão passou em fila,

recebendo orações e aspersão de água feita com galhos de arruda, dirigindo-se até à cruz para

tocá-la e receber, finalmente, o suposto descarrego de todos os males. Quando as pessoas

retornaram aos seus lugares, as luzes foram novamente acesas, representando que os

caminhos estavam agora iluminados. Aqueles que haviam ficado “possuídos” pelo demônio

desde o início do culto, permaneceram estrategicamente nesta condição sobre o altar, durante

as duas horas em que a programação se desenvolveu, aguardando o momento em que viria

ocorrer a derrota final do Diabo e seus demônios. Por fim, o pastor convidou a multidão para

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ajudá-lo no último ritual daquela noite: libertar aquelas vidas. Antes, porém, lançou um

provocativo desafio: “Você que não acredita que isto aqui é demônio ... eu te desafio a vir

aqui à frente e tocar nestas pessoas. Porém, se o demônio sair daquela pessoa e entrar em

você, eu não vou tirar não... Você vai pra casa com ele! ...[risos]”. A multidão começou, de

forma sincronizada, a gesticular e a gritar repetitivamente “queima demônio!”, enquanto o

pastor e auxiliares passaram a travar uma verdadeira luta corporal contra os “demônios” em

cima do altar: agarrões, quedas ao chão, gritos veementes, davam o tom da dramaticidade e

representação do embate que naquele momento ocorria. Usando o microfone, o pregador

perguntou para a multidão de fiéis: “Ele sai ou não sai?” A reposta veio em coro: “Sai em

nome de Jesus!”. O pastor então pediu mais ajuda à multidão: “Mais fé gente! Mais poder! O

nosso Deus é maior!” A sessão de exorcismos continuou com gritos histéricos até que, cerca

de dez minutos depois de iniciado o combate, finalmente os demônios foram “vencidos”. Em

seguida, aqueles que experimentaram a libertação deram testemunhos em público afirmando

que não se lembravam de nada do que havia ocorrido durante todo o tempo em que ali

haviam permanecido, mas que naquele instante já desfrutavam de intensa sensação de bem-

estar. Encerrou-se aquele momento com a multidão, em êxtase, aplaudindo mais um

espetáculo cúltico e tendo nítida certeza de que naquele lugar estava o poder de Deus, capaz

de oferecer vitória mesmo diante dos mais temerosos desafios que a vida apresenta. Antes de

saírem daquele santuário, entretanto, os fiéis foram mais uma vez advertidos a não deixarem

de usar a fita de proteção que receberam e voltarem na sexta-feira seguinte para continuar a

campanha até que se completassem sete dias. Para a próxima reunião deveriam empenhar-se

em trazer mais um visitante para participar do ritual em que o “leão” seria destruído.

O que se observa, portanto, é que o exorcismo geralmente se realiza de uma

forma coletiva. Quando demônios se manifestam entre o público reunido no templo, com a

intervenção dos obreiros e apoio ativo dos presentes com seus gritos estridentes “Sai!”

“Queima!”, acompanhados de gestos enérgicos, o exorcismo realizado tem caráter de um

espetáculo. No altar também se costuma desenrolar um diálogo entre o pastor e a pessoa

endemoninhada, que com os seus braços cruzados às costas é obrigado a responder a

perguntas do pastor, como por exemplo: Qual o teu nome? Por que estás molestando esta

pessoa? Que trabalho foi feito contra a vida desta pessoa? Antes de “expulsar” os demônios,

é costume o pastor demonstrar o seu poder obrigando o demônio a fazer movimentos como

dobrar as pernas, caminhar para trás. Às vezes, o pastor e seus auxiliares agarram os

endemoninhados pela cabeça, demonstrando uma cena bastante agressiva. Acredita-se que a

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cabeça é a sede em que se alojam os espíritos malignos. Os exorcismos, sempre com tal

intensidade dramática e uso de fortes e numerosas expressões “Sai em nome de Jesus”, são ao

final aplaudidos calorosamente pelos fiéis.

Quando se desenvolve o ritual de descarrego, o templo se transforma em

palco de uma batalha, uma luta “dramática entre espíritos protetores e espíritos malfazejos

pela conquista e domínio de uma alma”.1010 Na realização desse drama, Deus e o Diabo

possuem papéis bem definidos. Esse espetáculo de “batalha espiritual”, em que o Diabo é o

antagonista por ser a figura causadora de tudo aquilo que impede toda sorte de bênçãos

materiais e espirituais, é muitas vezes transmitido também através do rádio ou da TV,

mostrando pastores e equipe de obreiros auxiliares nas sessões de exorcismo realizando um

verdadeiro talk show do além, presentemente materializados. “Nestes segmentos religiosos a

promessa de cura divina e exorcismos durante os cultos se tornaram cada vez mais próximos

de um espetáculo”- destaca uma reportagem jornalística.1011 O agente publicitário José

Szekely,1012 que trabalha com venda de programas evangélicos para a TV, também acrescenta

que “o demônio é o principal instrumento da mídia para atrair fiéis”, argumentando que a

audiência desses programas aumenta quando o Diabo é realçado. Nas sessões de exorcismo

os demônios acabam se tornando “vítimas”, pois antes de serem expulsos dos corpos têm o

dever de dar entrevistas para maior “esclarecimento” do público ouvinte. Trata-se do

surgimento de um fenômeno que inverte as condições comumente aceitas da relação ser

humano/Diabo, uma vez que seus entrevistadores o utilizam como artifício na conquista de

audiência bem como de fiéis. Os demônios tornam-se espécie de marionetes nas mãos dos

exorcistas, aspectos esses que conferem noções de segurança e proteção aos que vivenciam

tal universo, além de dar-lhes garantia de que “outras” expressões religiosas, como as de

tradição afro-brasileira, estão sob o engano do Demônio, pois ouviram pela própria voz das

entidades espirituais tal confissão.

Há convergentes proximidades simbólicas entre os rituais iurdianos e uma

sessão umbandista. Isto se deve, em parte, ao fato de o próprio líder-fundador da IURD ser

ex-umbandista, algo que também ocorre em relação aos demais bispos e pastores que, em sua

maioria, têm uma história de vida anteriormente ligada a essas crenças. Tais raízes são

visivelmente detectadas, por exemplo, no momento da expulsão de demônios. Os bispos e

pastores iurdianos, inclusive, chamam os demônios por seus nomes, nomes estes conhecidos

1010 LÉVI-STRAUSS, C. O feiticeiro e sua magia. In: Antropologia Estrutural, p. 222.1011 Gazeta do Povo, Curitiba, 10 set. 2000, p. 4.1012 Revista Veja, São Paulo, 31 jul. 1996, p. 7.

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e citados nos rituais umbandistas. Ainda que algumas diferenças sejam observadas entre os

rituais de exorcismo desses dois segmentos religiosos, o que se constata, entretanto, é que o

princípio acaba sendo o mesmo: invocação, pelo líder, de uma força espiritual mediante

possessão. Tanto o ritual de exorcismo de uma sessão umbandista como o iurdiano apresenta

uma linguagem verbal e corporal bastante afins. Nos rituais dos cultos afro-brasileiros se

observa que o médium, ao incorporar um determinado “guia” ou espírito, comporta-se como

se estivesse munido de toda a capacidade para retirar espíritos perturbadores das pessoas

presentes. No caso da IURD, a primeira providência do pastor-exorcista é obrigar a vítima

dos demônios a ficar de joelhos e colocar as mãos para trás, simbolizando assim o

reconhecimento, por parte do espírito rebelde, do poder de Jesus corporificado no pastor. Às

vezes, acontece de algum exorcista usar alguma forma de coerção física, mas será através do

diálogo que se tentará arrancar-lhe o nome, procedimento simbólico essencial, que garante a

soberania de Jesus sobre o intruso. Depois de muita insistência, o nome é dito entre urros,

suspiros e intensas agitações corporais. Assim, na IURD, o Demônio é retirado da vítima em

nome de Jesus mediante o poder do Espírito Santo que se apossa do bispo ou do pastor; na

umbanda, atribuem-se tais poderes ao “guia”, o espírito que entrou no corpo de um

determinado médium para cumprir aquela função. Ainda quanto a esse aspecto, cabe destacar

que, depois das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, Salvador - BA é a capital em que a

IURD tem obtido seus maiores êxitos em relação ao número de templos. Não é sem motivo

que isto acontece: essas cidades estão entre as que apresentam o maior número de adeptos do

kardecismo, umbanda e dos cultos afro-brasileiros, havendo, portanto, um universo cultural

afim às práticas e representações da operosidade iurdiana.

Maria Lucia Montes ressalta que o que se exorciza nas práticas da Igreja

Universal é sobretudo o conjunto das entidades do panteão afro-ameríndio incorporado às

religiosidades populares das devoções e práticas mágico-rituais do catolicismo ainda

conservadas às religiões de negros perseguidos e depois apropriadas por diferentes estratos

sociais também das populações urbanas.1013 Percebe-se a importância da dramatização do

confronto entre as forças do bem e do mal realizadas no culto, com a espetacularidade dos

rituais de libertação, cumprindo plenamente o papel de comprovar suas crenças. E mais, ali

as pessoas têm como argumentos de persuasão - em relação ao aspecto “farsante” das demais

religiões - não somente as palavras do líder, mas a voz dos próprios demônios que se auto-

nomeiam identificando-se, principalmente, com as divindades dos cultos afro-brasileiros. 1013MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 122.

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Mas, inegavelmente, um dos principais elementos pelos quais a IURD

desempenha a sua operosidade inovadora reside na apropriação reversa que faz das religiões

afro-brasileiras. Isto pode ser observado nos próprios apelos públicos, como o ocorrido

recentemente, na cidade do Rio de Janeiro, em que alguns templos iurdianos estampavam

uma faixa afixada na parte externa, com os seguintes dizeres: “Participe das reuniões no

Templo do Pai Maior”. Outro exemplo pode ser observado na prática denominada “consulta

espiritual”, realizada desde o ano de 2005. Essa atividade envolve “ex-pais e ex-mães-de-

santo” que, membros da Igreja, agora auxiliam os pastores e bispos no “diagnóstico” dos

problemas espirituais que envolvem aqueles que buscam auxílio da IURD. Em observações

participantes realizadas se verificou, durante os dias de campanha de “descarrego e

libertação”, “ex-pais e ex-mães-de-encosto” – como a Igreja os identifica – presentes para

oferecer consulta espiritual aos participantes da reunião.1014 Vestidos com roupas brancas –

idênticas às usadas na umbanda e no candomblé – ficam assentados a uma grande mesa

coberta com tolha branca, ouvindo individualmente o drama pessoal de cada solicitante. Logo

após, identificada a “causa espiritual” do problema, a pessoa recebe as instruções para

participar da devida corrente para que possa se libertar de seu mal. Dependendo da gravidade

do problema, o fiel recebe ali mesmo, imediatamente, orações de exorcismo para

“descarrego” de sua opressão, feitas pelos pastores e obreiros. Isto não o desobriga, porém,

de iniciar uma corrente que lhe garantirá a vitória completa. Este mesmo procedimento

também vem sendo adotado nos programas de TV,1015 realizados nos períodos noturnos,

especialmente às sextas-feiras, quando os telespectadores têm a oportunidade de telefonar

para o programa e descrever os problemas que estão enfrentando. As questões são

imediatamente respondidas e os diagnósticos apresentados pelos “ex-pais e ex-mães-de-

santo” que, devidamente trajados com aquelas mesmas roupas anteriormente descritas,

auxiliam os pastores na realização do programa. Os pareceres emitidos seguem um roteiro

quase padrão: um trabalho espiritual de macumba, um despacho feito na encruzilhada ou no

cemitério para prejudicar a pessoa; inveja no trabalho, mau-olhado, ou ainda opressão

demoníaca decorrente de algum envolvimento, da própria pessoa ou de alguém de sua

família, com práticas das religiões afro-brasileiras. A solução também é apresentada de

maneira incisiva: procurar o mais rápido possível um templo da IURD e realizar uma

campanha de descarrego e de libertação.

1014 Observações participantes realizadas nos templos de Santo Amaro e Londrina, mar./abr. 2006.1015 Programas: Fala que Eu te Escuto e Mistérios, ambos levados ao ar pela Rede Record. Gravação para pesquisa realizada em março e abril de 2006.

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É característica marcante, portanto, o fato de os pastores aproximarem ou

adaptarem os discursos e os ritos àquilo em que os fiéis já crêem, ocorrendo, assim, um

processo de apropriação e resignificação, uma adaptação, uma circulação cultural. É a partir

de uma crença ou “capital simbólico” já existente que os líderes coordenam os ritos em

sintonia com a visão de mundo das religiões populares, de origem cristã ou afro-brasileira. E,

segundo Carlos Brandão, nas religiões populares, como o catolicismo rural e as crenças afro-

brasileiras, o milagre é “rotina simples, fidelidade mútua entre as divindades e os fiéis”,

sendo, portanto, “necessário, acessível, rotineiro e reordenador”.1016 Os atos de exorcismo

representam um instrumento de reorganização do universo dos fiéis, separando o bem do

mal.

A Folha Universal destaca que nessa reunião, realizada às sextas-feiras, os

que comparecem “recebem a oração da fé que os fortalece na luta contra os espíritos

causadores das desgraças que acontecem em suas vidas”. Nos depoimentos dados pelos fiéis

observa-se a interatividade estabelecida com esse rito de descarrego. A comerciante Sueli de

Souza, 39 anos, conta como venceu os problemas espirituais: Eu era comple tamente per turbada . Levava uma v ida de f racassos , b r igas e der ro tas , meu casamento es tava des t ru ído , e s tava sufocada em dív idas . Sem saber o que faze r , ouvi na rád io o b ispo convidando para a sessão do descar rego . A par t i r daquele d ia comparec i à s reuniões , aprendi a desenvolve r uma fé in te l igente que produz resu l tados e da í fu i l ibe r ta . Hoje rea l izo todos os meus propós i tos com Deus , t enho uma famí l ia abençoada e não possuo d ív idas . 1 0 1 7

Alex Cabral Borges, 39 nos, declara ter atuado como “bruxo” durante 20

anos: Eu t inha 200 f i lhos de encos tos d i re tos e mais 800 ind ire tos . Eu faz ia t rabalhos que normalmente v isavam a des t ru ição das pessoas . Por is so f ique i conhec ido como pai Alex , apesar de tudo i sso , f iquei mui to doente e minha esposa morreu jun tamente com minha f i lha a inda no pe r íodo de ges tação . Os encos tos me levaram à misé r ia . F ina lmente uma pessoa me convidou pa ra i r a Igre ja Unive rsa l onde sen t i g rande impacto com o que v i naquele lugar . Quando chegue i só me lembro de t e r l ido Jesus Cr i s to é o Senhor , depois d i sso mani fes te i vá r ios encostos . Naquele d ia v i com os meus própr ios o lhos aqueles que se apresentavam como deuses se rendendo ao poder de Deus . Fiquei revol tado , dec id indo en tão abandonar toda aque la ment i r a . Hoje sou nova cr ia tura , to ta lmente l iber ta das forças das t r evas . 1 0 1 8

1016 BRANDÃO, C. R. Op.cit., p. 131-132.1017 Folha Universal, Rio de Janeiro, 01 abr. 2006, p. 21.1018 Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 mar. 2003, p. 5

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Maria Goreth, 36 anos, chegou à IURD “totalmente atormentada, pois

servira aos espíritos por mais de 20 anos”, sofrendo diversos tipos de enfermidade e com

desejo de suicídio. Envolveu-se com os encostos em busca de ajuda, mas acabou por

complicar ainda mais a sua vida, chegando a tornar-se filha-de-encosto e despachante de

trabalhos. Somente depois de participar da oração forte da sessão de descarrego, Goreth

“alcançou a verdadeira felicidade que só o Pai das Luzes pode dar”.1019

O testemunho de Sisleide Maria Coutinho também é citado como exemplo

dos benefícios alcançados:Vivi escrava dos encos tos por mais de 25 anos , inc lus ive dava ‘consul tas ’ . Mas em minha própr ia v ida havia desavenças , doenças v íc ios e misé r ia . Gas te i mui to d inhei ro com oferendas , mas só t ive meus o lhos aber tos depois de chegar a Igre ja Unive rsa l e pa r t i c ipar dessas Reuniões de Liber tação . A par t i r da í tudo mudou. Hoje , l ibe r ta de todo o ma l , sou ve rdade i ramente fe l i z . 1 0 2 0

Nessas práticas da IURD é possível observar também que “há um ato

fundador da violência que é a conquista dos territórios, a dominação dos corpos, o controle

dos indivíduos” exercida por tais líderes,1021 pela legitimidade e o direito que ostentam para

agir sobre a pessoa que se acredita estar enferma ou possuída pelos demônios. Mas essa

violência tem a sua legitimidade e autorização delegadas pelo próprio grupo. Pelo carisma

que se atribui ao profeta se estabelece a autoridade e o reconhecimento imediato, a cujas

qualidades milagrosas por concessão divina o discípulo se entrega numa total devoção

pessoal. Chartier aponta para o “poder” da representação ao dizer que “a distinção

fundamental entre representação e representado, entre signo e significado, é pervertida pelas

formas de teatralização da vida social”.1022 A identidade do ser pode ser confundida com a

aparência da representação. Para mostrar como a “aparência pode valer pelo real”, cita

Pascal, quando se refere à imagem de justiça dos magistrados e atuação curativa dos médicos

mediante o uso de aparatos simbólicos: “Mas lidando apenas com ciências imaginárias, é-

lhes necessário lançar mão desses vãos instrumentos que impressionam a imaginação

daqueles com quem têm de tratar; e é deste modo, que se dão ao respeito”.1023 Nesse sentido,

ao promover “respeito e submissão”, a representação se torna um instrumento que produz

“constrangimento interiorizado”, o que na linguagem de Pierre Bourdieu se converte em uma

forma de “dominação simbólica”, como bem comenta Chartier:

1019 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 97, p. 30, 2003.1020 Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 mar. 2003, p. 81021 CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a história, p. 154.1022 Id. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 21.1023 Id., ibid., p. 22.

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Esta insp iração de Bourdieu permi t iu ins ta lar no cerne de mui tas pesquisas h i s tór icas um concei to como o de v io lênc ia s imból ica ou de dominação s imból ica . I s to é , pensar que não há unicamente , numa soc iedade , formas de dominação bru ta i s ou enf ren tamentos expl íc i tos , imedia tamente socia is ( . . . ) Para que uma dominação se r eproduza , é prec i so um mecanismo de v io lênc ia s imból ica ou dominação s imból ica . 1 0 2 4

Os dominados incorporam – por meio “do simbolismo de que se reveste

toda e qualquer dominação”1025 - os princípios da dominação que asseguram a sua

dependência como legítima, comenta Chartier, destacando que isso se dá mediante a

instauração de um mecanismo mais sutil: “esse tipo de dominação se reproduz a partir da

incorporação da legitimidade do princípio da própria dominação nas percepções dos

dominados”: Os dominados utilizam as categorias construídas do ponto de vista dos

dominantes sobre as relações de dominação e, a partir daí, fazem estas relações de dominação

parecerem naturais.1026

4.3.3 - “Pare de sofrer”: corrente de cura divina e milagres

“Pare de sofrer! – Existe uma solução!” Este tem sido um dos slogans

característicos proclamados pela IURD desde a sua fundação. Por isso a Igreja mantém uma

campanha que apresenta permanente variação de tipologia e estética ritualística. Reporta-se

geralmente a episódios relatados na Bíblia, em grande parte no Antigo Testamento,

estabelecendo ao mesmo tempo, de maneira bastante original, uma conjugação entre os ritos

católicos, afro-brasileiros e protestantes. “Dificuldades financeiras, crise no casamento,

doenças, vícios e muitos outros problemas têm levado um número incontável de pessoas para

a Igreja Universal” – propaga a própria Igreja, que acrescenta: “elas têm a oportunidade de

participar de vários propósitos de oração, já que a IURD realiza reuniões diárias”.1027

O anúncio publicado no panfleto transcrito a seguir retrata bem o amplo

leque de opções que o fiel encontra nos cultos e ritos da IURD, na busca de respostas para

seus problemas: PARE DE SOFRER – Você que tem a lguns desses problemas marque um X: inve ja , v í t ima de o lho gordo , f e i t içar ia , p res tação a t r asada , quer emagrece r ou engordar , passar em concurso públ ico , doenças , insônia , fa lência , desemprego, a luguel a t ra sado , possessão mal igna , aposenta r -se , dores de cabeça , d ív idas , depressão , angúst ia , e tc .

1024 Id. Pierre Bourdieu e a História, p. 154.1025 Id., ibid.1026 Id., ibid..1027 Folha Universal, Rio de Janeiro, 05 fev. 2006, p. 7.

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Traga es te fo lhe to , receba uma oração for te e uma rosa ungida ! Sábado, a 1 :00 hora da t a rde , na Igre ja Unive rsa l , Rua Benjamim Cons tan t , 1488, cen t ro – Londr ina . 1 0 2 8

Em vista disso, a Igreja Universal mobiliza um universo muito presente no

chamado catolicismo folclórico rural,1029 no qual é comum, por exemplo, a realização de

festas religiosas em que os devotos fazem donativos aos santos suplicando uma graça a ser

alcançada, bem como a realização de rezas e rituais de benzimentos em favor das colheitas,

do gado e diante de doenças coletivas:O cato l ic i smo devoc ional é montado sobre rezas , bênçãos , devoções , curas , p romessas , todas e la s fundadas na crença no mi lagre . Es te se r efere às doenças (que podem se r in terpre tadas como “mal fe i to” ou “como cas t igo” , i s to é , como inf luênc ia malévola ou como resu l tado da cu lpa) , à busca de pro teção (pa ra a co lhe i ta , o gado , a saúde , cont ra desas t re s na tura is , pa ra encont ra r ob je tos perd idos ( . . . ) o milagre depende da fé de quem pede , do va lor da promessa fe i t a como re t r ibu ição da graça recebida . Mas depende sobre tudo da força do rezador ou do benzedor , de seu ca r i sma pessoa l . 1 0 3 0

Em relação à “cura divina”, no Manual da IURD, registram-se as seguintes

concepções:A cura d iv ina es tá de acordo com o cará ter de Deus, que sendo um pai amoroso , não poder ia ace i ta r na v ida dos seus f i lhos doenças ou enfermidades , ( . . . ) a s doenças , na sua grande maior ia , são causadas pe los demônios , que uma vez sa indo do corpo das pessoas as levam cons igo , ( . . . ) e las não cont r ibuem para a g lór ia de Deus , e s im para a misé r ia e desgraça dos homens ( . . . ) A Igre ja ( . . . ) min i s t ra a oração para a cura d iv ina por in termédio dos seus Bispos , Pas tores e Obre i ros , que r com impos ição de mãos conforme dete rminam as Escr i turas , quer sem impos ição de mãos , porque obedece à ordem do Senhor Jesus Cr i s to , que mandou curar os enfermos e expe l i r os demônios . Uma pessoa che ia de doenças não es tá à vontade pa ra g lor i f i ca r a Deus . Não pode compreender cor re tamente o Seu amor , se não for curada e abençoada em todas as co i sas . 1 0 3 1

Atribuindo a uma dimensão espiritual a causa das enfermidades, Edir

Macedo ressalta em uma de suas entrevistas: “Quando o problema é espiritual, não tem

médico que consiga resolver”.1032 Destaca também a fórmula de se obter a cura: “Nada de

ficar falando: Ó Deus, cura! Ó Deus, liberta! Ó Deus, abençoa! Isto é burrice espiritual! Nós

1028Folheto distribuído pela Igreja Universal do Reino de Deus de Londrina, setembro e outubro de 2002.1029 Entendendo tal conceito como referindo a um tipo de catolicismo que, mesmo mantendo-se ligado à Igreja Católica oficial, muitas vezes se organiza à margem desta, com expressões tipicamente sincréticas, rurais, extrapolando o controle dos dogmas oficiais. Cf. CHAUÍ, M. Raízes teológicas do populismo no Brasil: Teocracia dos dominantes, messianismo dos dominados. CHAUÍ, M. et ali. Anos 90 - Política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.1030Id., ibid., p. 128.1031 MANUAL DO OBREIRO. Estatuto e regimento interno da Igreja Universal do Reino de Deus. Op. cit.1032 Revista Veja, São Paulo, 06 dez. 1995.

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é que temos que curar, libertar e abençoar... Em nome do Senhor Jesus Cristo!”1033 Mostra

ainda a eficácia de tal procedimento na obtenção da cura: “(...) às vezes, gradativamente, às

vezes instantaneamente, dependendo da fé da pessoa”.1034

A Revista Plenitude destaca que a “corrente de Jericó – derrubando todas as

muralhas do mal”, tem como objetivo despertar a fé sobrenatural das pessoas através da qual

encontrarão forças para derribarem os muros que as tem impedido de usufruir as promessas

de Deus:Por ma is que as pessoas se e s forcem, sempre ex i s te um obs táculo , uma ba rre i ra que as impede de a t ing i r seus obje t ivos . No ponto de v i s ta humano, as mura lhas das d ív idas , do f racasso sen t imenta l e prof i ss ional , das doenças , en t re ou t ra , parece ser in t ransponíve i s . Porém muitos es tão conseguindo der rubar essas ba rre i ras ao par t i c ipa rem da Cor ren te de Jer icó . A reunião tem desper tado no coração dos que comparecem, a fé sobrenatura l , a t r avés da qual mui tos encont ram forças para vencer os obs táculos e darem um bas ta ao sofr imento . 1 0 3 5

O testemunho de Aureneide Mendes de Souza, 29 anos, é citado como

exemplo de alguém que transpôs essas barreiras: Sem expl icações comecei a te r convulsões e desmaios e como toda minha parente la se rv ia aos encos tos , meus pa i s foram consul tá- los sobre minha doença . Por or ien tação da mãe-de-encos to comecei a t raba lha r para e sses e sp í r i tos com apenas 12 anos de idade . Minha v ida passou a ser contro lada pe los encos tos que passaram a me per segui r com vozes e vu l tos , chegaram a me ameaçar de mor te . A lem de depr imida me tornei nervosa , agress iva , es tava a ponto de comete r su ic íd io quando recebi um convi te pa ra ass i s t i r uma reunião na Igre ja Unive rsa l . Chegando a igre ja recebi uma oração , ouvi a pa lavra de Deus e compreendi que havia um mal se opondo a minha fe l i c idade , causando toda sor te de sofr imento . A pa r t i r da í minha v ida fo i l iber ta e t ransformada . 1 0 3 6

No templo-sede, em Santo Amaro, na cidade de São Paulo, num culto

voltado à “saúde”, organizou-se um ritual denominado “corredor dos setenta pastores”,1037 em

que pessoas em busca de cura passavam as mãos ou beijavam um manto vermelho,

denominado “manto sagrado”. Enquanto os pastores e obreiros oravam e ordenavam que todo

o mal físico se desfizesse, o manto foi estendido sobre a cabeça dos fiéis, ao longo de toda

extensão do templo. Ao final do culto, no momento das ofertas, os obreiros passaram pelas

cadeiras oferecendo em troca de ofertas um pequeno pedaço daquele pano para ser colocado

1033 MACEDO, Edir. O poder sobrenatural da fé. 3ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1991, p. 157.1034 Id. O Espírito Santo. 4 ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1992, p. 96.1035 Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 95, p. 29, 2003.1036 Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 jan. 2003, p. 8.1037Ao estabelecer o número de “setenta” pastores a IURD se apropria de crenças judaicas que valorizam a numerologia, conforme registros apresentados principalmente no Antigo Testamento.

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sobre a enfermidade, para que “o Senhor estivesse completando a obra dele”.1038 Nesse

sentido, a IURD resignificativamente reedita a festa de Pentecostes ou do Espírito Santo

praticada pelo catolicismo, na qual também uma larga tira de pano vermelho, amarrada ao

altar, é estendida em todo o comprimento do templo por sobre a cabeça dos fiéis, sendo

recortada em pequenos retalhos para ser distribuídos aos fiéis. Pode se constatar também uma

versão da “Bênção do Divino” - bastante tradicional no catolicismo - mediante a qual os

devotos reverentemente beijam bandeiras, cobrindo com ela por um instante a cabeça, com o

propósito de buscar resultados com caráter mágico especialmente em situações de grande

aflição.

Em culto realizado por Edir Macedo na IURD do bairro do Brás, na capital

paulista, constatou-se, numa observação participante, que o templo, com capacidade para

aproximadamente 5 mil pessoas, estava completamente lotado. O bispo desenvolveu sua

pregação enfatizando “as respostas que Deus dá aos aflitos que a ele recorrem em templos de

aflição e angústia”. No momento da oração, chamou à frente os que desejavam se “libertar de

seus males e angústias”. O altar foi tomado pela multidão. O bispo canta e desafia o povo a

entoar junto com ele uma letra que convida a “entregar-se completamente a Deus”. Um

estado de profunda emoção toma conta do lugar. O líder então profere palavras de repreensão

ao demônio, “determinando” a cura, o milagre, a prosperidade. Após o êxtase coletivo, passa-

se ao momento do ofertório. Macedo indaga os fiéis: Quantos es tão aqui por que ouvi ram a mensagem da igre ja a t ravés de um programa de rád io? At ravés da t e lev i são? Ou conheceram a igre ja a t ravés de l i te ra turas? Alguém deu sua ofer ta para pa t roc ina r e s tes programas ou pa ra pagar o a luguel do imóvel quando o t emplo foi aqui ins ta lado . Por i s so , a sua ofe r ta ho je s ign i f ica t ambém a opor tunidade que out ros t e rão para ouvi r esse evangelho a t ravés dos d i feren tes pro je tos da igre ja .

Ao fundamentar biblicamente o seu argumento, Macedo cita o texto de João

3:16, “porque Deus amou o mundo de tal maneira, que deu o seu filho unigênito para salvar a

todo aquele que crê”, destacando que Deus ofertou à humanidade o que ele possuía de maior

valor e que por isso devemos também lhe ofertar com o máximo de esforço possível”.1039

Em agosto de 2004 foi iniciada a campanha denominada “troca do anjo da

guarda”. Ressaltava-se, nos apelos radiofônicos e televisivos, que “quando o anjo da guarda

está falhando” é preciso substituí-lo: “a pessoa necessita ter um anjo mais forte para

acompanhá-la, guardá-la e ajudá-la a vencer as batalhas espirituais” – desafiavam os pastores

1038 Observações participantes realizadas no templo da IURD em Santo Amaro, out. 2004.1039 Observação participante realizada no templo da IURD no Brás, em São Paulo, 05 mar. 2006.

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314

na ocasião.1040 Para esse rito, os fiéis são convocados a vir ao templo e, no momento oportuno

do ritual, efetuar uma substituição do anjo da guarda que têm tido até então – em razão de

terem pertencido ao catolicismo ou de outras crenças até então professadas – por outro que,

funcionalmente, passará a ser, de fato, eficaz. Segundo o bispo Macedo, em reunião realizada

na Catedral da Fé, no Rio de Janeiro, essa corrente visava pedir que os anjos poderosos

viessem guardar os fiéis: “porque balas perdidas têm ceifado muitas vidas nessa cidade. A

coisa está incontrolável. Só Deus para mudar essa situação”. Durante a reunião, o bispo

Macedo enfatizou que “diante de tantos problemas como violência, desemprego,

desentendimentos nos lares, entre outros, a pessoa necessita ter um anjo mais forte para

acompanhá-la”. A idéia da campanha surgiu a partir da leitura do texto bíblico de Daniel

10:13, que diz: “mas o príncipe do reino da Pérsia me resistiu por 21 dias; porém Miguel, um

dos primeiros príncipes, veio para ajudar-me, e eu obtive vitória sobre os reis da Pérsia”.1041

Em setembro de 2004, por exemplo, a IURD realizou a “campanha da

revolta”, mediante a qual os iurdianos poderiam exteriorizar situações de amarguras, revoltas

contra o Diabo e esperanças de mudanças. Em uma de suas programações de rádio,1042 foi

possível registrar o quadro descrito, a seguir. Atendendo os ouvintes ao telefone, o pastor

usou os seguintes termos: “Alô, irmã, tá revoltada? Vá até à Igreja para manifestar a sua

revolta, pegue o seu envelope”. A ouvinte responde: “Estou revoltada contra esse Diabo

desgraçado, que é o responsável pelo baixo salário de cento e sessenta reais que estou

ganhando”. Ao saber que a ouvinte ainda não havia retirado o respectivo envelope de

contribuição e de inclusão dos motivos de sua revolta, o pastor disse: “Então você não está

revoltada nada, porque ainda não tomou a decisão”, insistindo que a mulher procurasse um

templo e retirasse o envelope, dizendo que as pessoas, fazendo isso, estariam “pegando o

Diabo pelo pescoço”.

Vale ressaltar que a prática de duelos e desafios é um elemento muito

presente na cultura brasileira, isto não só no plano artístico, expresso em composições

musicais e poéticas, como também nas celebrações religiosas. Esse capital simbólico se faz

presente em romarias e peregrinações, quando as pessoas expressam suas relações com o

sagrado por meio de um duelo que envolve promessas e pagamento do prometido, quase

sempre por meio de sacrifícios corporais, de tempo ou de dinheiro. Por meio desses gestos

demonstra-se à divindade a coragem, ousadia e disposição dos devotos. Rubem César 1040 Gravação de programas veiculados pela Rede Record de Televisão e rádios Atalaia AM e Gospel FM, de Londrina, em fevereiro de 2006.1041 Folha Universal, Rio de Janeiro, 13 ago. 2004, p. 8.1042 Ponto de Luz. Londrina, Rádio Atalaia AM, 29 set. 2004. Programa de rádio.

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315

Fernandes se refere a tais formas de expressão social num estudo sobre os romeiros a um

santuário católico, localizado na cidade de Pirapora do Bom Jesus. Para alguns daqueles

peregrinos, “romaria é coisa para corajosos”, para “pessoas ousadas” e nunca para

“medrosos”.1043 Também Carlos Rodrigues Brandão analisa as festas populares como “folia

de reis”, “folia do divino” e, especialmente, as cavalhadas, como reminiscências de guerras

mantidas por portugueses e mouros na Idade Média.1044 Esses rituais são de desafios e contra-

desafios, que podem ser usados pelo povo como expressão de seu inconformismo a

determinadas situações, expressando de uma maneira simbólica sua disposição de vencer as

dificuldades da vida, sempre atribuídas à presença de forças do mal.

Percebe-se com isso a forte presença cultural que reside na compreensão de

“desafio” nos ritos que a IURD realiza. Participar dos rituais, seja “campanha” ou “corrente”

de fé, é ser colocado diante de um repto que envolve provocações e exige mudança nas

condutas. É constante o fiel ser ali desafiado a desempenhar papéis que mexem com os seus

brios. Essa atitude de desafio pode ser a de ir à Igreja, contribuir financeiramente, ir à frente

no altar, no momento em que o pastor faz um apelo para um determinado compromisso, de

acordo com os diferentes ritos que se desenvolvem. Os ritos dramatizam “batalhas” ou uma

“guerra espiritual” que está em andamento, entre as forças de Deus e dos demônios, diante da

qual não se pode permanecer neutro.

Em relação à eficácia dos rituais, pode-se dizer que essa se deve a “um

sistema coerente que fundamenta o universo” cultural na qual os participantes estão

inseridos. É esse “universo mítico que executa as operações” - observa Lévi-Straus.1045 No

momento em que o ritual se organiza “mecanismos se ajustam espontaneamente, para chegar

a um funcionamento ordenado”.1046 E, vale citar que, se os elementos simbólicos “não

correspondem a uma realidade objetiva, não tem importância: os participantes acreditam

nela, e eles são membros de uma sociedade que também acredita”.1047 Orientados por um

habitus, ao mesmo tempo que produtores de novos habitus, os ritos e símbolos praticados

pela IURD promovem, assim, indissociabilidade entre o “físico e o espiritual” – elementos

comumente distinguidos. Destaca-se o fato do simbólico não ser entendido como mero

reflexo do real, nem como simples subjetividade, o que aponta para a necessidade de

superação da dúvida cartesiana que pressupõe a idéia da humanidade ser exterior ao seu 1043FERNANDES, Rubem César. Os cavaleiros do Bom Jesus: Uma introdução às religiões populares. São Paulo: Brasiliense, 1982.1044BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Cavalhadas de Pirinópolis. Goiânia: Edições Oriente, 1974.1045LÉVI-STRAUSS, C. O feiticeiro e sua magia, p. 228.1046Id., ibid., 229.1047Id., ibid., p. 228.

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mundo, de onde também decorre a concepção de que “o pensamento ou a representação são o

produto artificial ou abstrato de seu intelecto”. 1048

Logo, a eficácia da ritualística iurdiana se deve não à genialidade do líder,

mas ao imaginário dos participantes daquele universo representacional, como o observa Lévi-

Strauss ao falar da atuação do xamã, afirmando que este estabelece uma “relação imediata

com as representações dos doentes”, sendo esse “o papel da encantação propriamente dita”:Neste sen t ido , e le se enca rna obje to da t r ansfe rência , pa ra se tornar , g raças às representações induzidas no esp í r i to do doente , o pro tagonis ta rea l do conf l i to que es te exper imenta a me io-caminho ent re o mundo orgânico e o mundo psíquico . 1 0 4 9

Como parte do universo da cultura, as práticas iurdianas propiciam,

portanto, a criação de um sistema cultural capaz de instituir um “corpo consistente de

símbolos, práticas, ritos, valores crenças e regras de condutas”, do que lhe advém a

“capacidade de conferir significado à existência humana” através da recorrência que se faz a

um “outro mundo para atribuir sentido ao que ocorre nesta vida”.1050

4.4 - O papel da leitura nas representações iurdianas

Historicamente, a leitura da Bíblia foi sempre uma prática bastante

controlada na constituição e configuração do campo religioso brasileiro. Durante um longo

período adeptos do catolicismo no Brasil ficaram privados de acesso ao texto bíblico. Até a

década de 1960, a sua leitura ocorria somente durante as missas, em latim. Cabia ao sacerdote

ler o texto sagrado nas homilias explicá-lo aos fiéis. O argumento era o de que tal

procedimento, quando feito por “leigos”, poderia suscitar interpretações errôneas,

desencadeando práticas de heresias. Mas, na verdade, com tal controle a instituição

dominante quer construir e manter representações de poder. Daí ter implementado uma

constante vigilância por parte da igreja em relação às constantes tentativas feitas por

protestantes de distribuir tais literaturas entre católicos.

O protestantismo clássico brasileiro, através das suas confissões de fé, tem

reivindicado para si a condição de guardião da “reta doutrina”,1051 mantendo-se reticente a

qualquer tipo de experiência pessoal que fuja aos seus cânones. Tal procedimento visa

controlar o surgimento de “heresias” em seu meio e coibir o avanço de movimentos que 1048 BURKE, P. História e teoria social, p. 168.1049Id., ibid., 229, 230.1050 Id., ibid., p. 71.1051 ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão, p. 27-36.

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317

considera seitas,1052 usando para isto a força de seus dogmas. Entretanto, parece ocorrer algo

já observado por Weber:Quanto ma is a re l ig ião se tornou l iv resca e doutr inár ia , t an to ma is l i t e rár ia to rnou-se e mais ef ic ien te fo i no es t ímulo ao pensamento le igo rac ional , l iv re do cont ro le sace rdota l . Dos pensadores le igos , porém, sa í r am os profe tas , que e ram hos t i s aos sacerdotes ; bem como os mís t i cos , que buscavam a sa lvação independente de les e dos sec tá r ios . 1 0 5 3

Edir Macedo e seus seguidores, na condição de “místicos” e “sectários”,

passaram a ler a Bíblia inovando nas suas interpretações, configurando práticas diferenciadas

em relação ao protestantismo clássico. “As práticas de leitura são mais complexas e mais

dinâmicas e devem ser pensadas, antes de tudo, como lutas de concorrência em que se

procura uma nova distinção” – observa Chartier.1054

Algumas características de leitura que “incomodam” o protestantismo têm

notabilizado as práticas iurdianas. Primeiro, o caráter místico da leitura. Na IURD, a leitura

realizada “alimenta as imaginações em que elementos do sobrenatural, miraculosos ou

diabólicos, rompem com o ordinário do cotidiano”.1055 A Bíblia tem a representação de “um

depósito de símbolos, alegorias e de cenas dramáticas, ou até um amuleto para exorcizar

demônios e curar enfermos, do que ‘regra única de fé e prática’ como a encaram outros

grupos protestantes”.1056 Essa mesma conotação de magia assumiu o ato de ler o texto bíblico

no contexto medieval:Qualquer oração ou passagem das e scr i turas podia te r um poder mís t i co à espera de se r redescober to . A Bíb l ia podia se r um inst rumento d iv ina tór io , que aber ta ao acaso reve la r ia o des t ino da pessoa . Os evange lhos podiam se r l idos em voz a l t a pa ra par tur ien tes , a f im de lhes garan t i r um bom par to . Podia- se co locar uma Bíb l ia na cabeça de uma c r iança inquie ta , pa ra f azer com que conc i l i asse o sono . 1 0 5 7

Nas práticas iurdianas, a leitura da Bíblia “oferece signos a decifrar. (...)

Textos que decifram o universo ou que dão receitas de bem-viver”;1058 ela responde a “uma

1052 O historiador Cláudio DeNipoti, ao analisar a obra de David Hall, sobre a Nova Inglaterra, afirma que a mesma apresenta interessante contribuição para se verificar “como ministros protestantes buscaram impedir que ocorressem excessos na livre interpretação da Bíblia, principalmente através da perseguição de profetas e visionários que se diziam inspirados por Deus, cujo exemplo máximo são os julgamentos de supostos feiticeiros, em Salém, em 1692”. Cf. DENIPOTI, Cláudio. Op. cit., p. 22.1053 Weber, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: Weber, Max et al. Ensaios de Sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982, p. 402.1054 CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 17.1055 Id., ibid., p. 116.1056 CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 82.1057 Id., ibid., p. 50.1058 CHARTIER, R. Leitura e leitores na França do Antigo Regime, p. 126.

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318

expectativa compartilhada, seja da ordem de devoção, da utilidade ou do imaginário.”1059

Denota-se daí algo semelhante ao que Michel de Certeau denominou de “leitura mística”, ao

referir-se ao “conjunto de procedimentos” adotado por grupos designados nos séculos XVI e

XVII, como “iluminados, místicos, ou espirituais”.1060 Os livros escritos pelos líderes

iurdianos, de igual modo, assumem poder simbólico e místico.1061

Segundo, uma prática de leitura resignificadora de substratos culturais. A

interpretação dada por líderes e fiéis às escrituras bíblicas se lhes apresenta como revelação,

tendo como filtro um substrato cultural que configura o seu imaginário. No caso específico

dos pastores e bispos, o êxito em atingir seus ouvintes com a mensagem que proferem se

deve em boa parte ao fato de a interpretação do texto bíblico ocorrer em conformidade com o

imaginário dos fiéis. Contribui para isto o fato de também serem eles mesmos pertencentes a

tal universo representacional, o que lhes permite descortinar eficazmente o capital

simbólico1062 que configura as representações por eles vivenciadas. Os iurdianos, através da

leitura bíblica, a partir de um capital simbólico e de um conjunto de representações híbrido

constituído em seu imaginário, filtram dogmas e postulados teológicos eruditos legados pelo

protestantismo clássico, realizando um dinâmico processo de circulação cultural. Neste

aspecto, torna-se ilustrativa a comparação com Menóchio, personagem de Carlo Ginzburg, em sua obra O Queijo e os Vermes. Nas várias leituras que fez, o moleiro de Friuli não soube

nelas encontrar o sentido esperado por todos, a “verdade” dos textos que teve em suas mãos,

mas reinterpretou-os. Efetuando leituras desviantes, que fogem ao controle, Menóchio fez

ressurgir uma tradição cultural não letrada, na qual, ainda que alfabetizado, ele está

totalmente inscrito. “Ao condenarem-no, os juízes condenaram sua intrusão não controlada e

incontrolável no mundo da cultura escrita”.1063 Menóchio não es tava s implesmente r e lendo mensagens t ransmi t idas de c ima para ba ixo na ordem socia l . E le l i a agress ivamente , t ransformando o conteúdo mater ia l à sua d i spos ição numa concepção rad ica lmente não-cr is tã do mundo. 1 0 6 4

1059 Id., ibid., p. 270.1060 Apud. CHARTIER, R. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: UNB, 1999, p. 13,14.1061 Neste sentido, pode-se afirmar que a prática de leitura iurdiana trabalha na contramão do sistema escolar que propõe eliminar este caráter místico, conforme análise feita por Bourdieu. Para este autor o sistema escolar tem esse efeito de se contrapor ao caráter místico de leitura, desenraizando a expectativa de “profecia”, no sentido weberiano de “resposta sistemática a todos os problemas da existência”. In: CHARTIER, R. Práticas da Leitura, p. 241.1062BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 107.1063CHARTIER, R. Práticas da leitura, p. 64.1064DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 147.

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319

Ginzburg, quando emprega o conceito de circularidade,1065 em tal análise,

seguiu semelhante metodologia e inspiração teórica utilizada por Mikhail Bakhtin,1066 embora

tenha estudado não um intelectual das elites, mas um simples moleiro que sabia ler, ao passo

que também empregou um conceito de cultura folclórica interposto em dois vértices:

primeiro, a oposição desta à cultura letrada ou oficial das classes dominantes; segundo,

manutenção de certas relações com a cultura dominante, filtrando-a, entretanto, de acordo

com seus próprios valores e condições de vida. É nesta dinâmica entre os níveis culturais,

chamados, por vezes, de popular e de erudito, que Ginzburg propõe um princípio que vai

além do que fora adotado por Bakhtin, pois considera as interpenetrações culturais e não

somente as oposições entre elas. Chartier comenta que Carlo Ginzburg analisa “como um

homem do povo pode pensar e utilizar os elementos intelectuais esparsos que, através dos

seus livros e da leitura que deles faz, lhe advém da cultura letrada”: É a pa r t i r de f ragmentos empres tados pe la cu l tura e rudi ta e l iv resca que se cons t ró i um s i s tema de representações que lhes fornece um out ro sen t ido , por que na sua base se encont ra uma out ra cu l tura ( . . . ) Por de t rás dos l iv ros r evolv idos por Menóchio t ínhamos ind iv idual izado um código de l e i tura ; por de t rás des te código , um só l ido es t ra to de cu l tura ora l . O impor tan te é ident i f i ca r como, nas prá t i cas , nas representações ou nas produções , se cruzam e se imbr icam di feren tes formas cu l tura i s , ( . . . ) ou se ja , que en t re o que se convencionou c lass i f icar en t re e rudi to e popular , há um jogo subt i l de apropr iação , r eempregos , desv ios , c ruzamentos ( . . . ) . 1 0 6 7

Semelhantemente, a leitura bíblica iurdiana tem por condição “evidências

anteriores”,1068 uma memória dos sentidos que a sustenta, estrutura, sentidos que se

apreendem mediante um processo de desvelamento “circunscritos a determinadas condições

sócio-históricas”: A le i tura não se r ea l iza a ss im a pa r t i r de um vazio de saberes ; a sua base de efe tuação é um campo de s ign i f icação reconhecíve l , em que o t ex to se in t roduz pa ra s ign if icar ( . . . ) Esses sabe res “anter iores” nem nascem nem habi tam apenas no ind iv íduo iso ladamente , mas remetem, t ambém eles , à ex i s tência de um corpo sóc io-h i s tór ico de t raços d iscurs ivos que cons t i tuem o espaço de memór ia . É a pa r t i r de t a l e spaço d i scurs ivo de regula r ização dos sen t idos , en tão , que os l e i tores procedem à le i tura . 1 0 6 9

1065Partindo de conceitos inspirados na Antropologia Cultural, Ginzburg investiga as idéias de um moleiro da região de Friuli, na Itália, condenado como herege pela Inquisição, no século XVI, devido às interpretações que passou a fazer a partir da leitura de textos religiosos. Essas idéias de Menóchio entraram em confronto com a posição escolástica da Inquisição. Desse embate, emerge o enredo transformando em análise pelo referido autor sobre a cultura folclórica e a cultura clerical daquele período. 1066 Mikhail Bakhtin procurou analisar a cultura das classes populares na França, na década de 60, através da obra de um letrado, tentando perceber nisto algum “conflito de classe” no plano cultural. 1067 CHARTIER, R. Práticas da leitura, p. 56, 57.1068 Id., ibid., p. 25.1069 PAYER, Maria Onice. Memória de leitura e meio rural. In: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998, p. 144.

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Sendo a capacidade de ler uma maneira culturalmente variável de

estabelecer significado, este emerge no instante em que o leitor iurdiano absorve o sentido

“em sua própria existência”,1070 pois “a leitura – conceituada de maneira técnica como a

capacidade de reconhecer símbolos alfabéticos e também o hábito de fazê-lo com

regularidade – tem a sua história intimamente relacionada com a história do mundo ‘como a

conhecemos’”.1071 Tal operosidade se torna possível graças ao habitus, que segundo

Bourdieu( . . . ) é um corpo soc ia l izado , um corpo es t ru turado , um corpo que incorporou as es t ru turas imanentes de um mundo ou de um se tor par t i cu la r desse mundo, de um campo, e que es t ru tura a pe rcepção desse mundo como a ação desse mundo. 1 0 7 2

Assim, tais sistemas de esquemas de “percepção, apreciação e ação”, geradas pelo habitus,permi tem tan to operar a tos de reconhec imento prá t ico , fundados no mapeamento e no reconhec imento de es t ímulos condic ionais e convencionais a que os agentes es tão d i spos tos a reagi r , como também engendrar , sem pos ição expl íc i t a de f ina l idades nem cá lcu lo r ac ionais de meios , es t ra tég ias adaptadas e incessantemente r enovadas , s i tuadas porém nos l imi tes das cons t r ições e s t ru tura i s de que são o produto e que as de f inem vol tou-se pa ra a cons t rução de uma teor ia da ação , são as “es t ru turas es t ru turadas e e s t ru turan tes” que v iab i l i zam a própr ia v ida socia l . 1 0 7 3

Terceiro, uma apropriação “vivencial” da leitura bíblica. Este processo se

dá a partir da reencenação de episódios bíblicos, narrados de modo miraculoso e carregados

de força simbólica. Os fiéis são desafiados a tomar o lugar de personagens bíblicos. No mês

de maio de 2004, por exemplo, a IURD1074 realizou a campanha sobre a “Ressurreição de

Lázaro”, uma alusão ao personagem bíblico que, conforme relato feito pelo evangelho de

João, capítulo 11, foi ressuscitado por Jesus. Assim, os pastores e obreiros auxiliares

construíram no interior do templo uma pequena tenda escura, dentro da qual os fiéis

deveriam passar como parte da encenação, enquanto os pastores liam o referido texto bíblico,

ordenando que os crentes saíssem das “trevas” da doença, da miséria, do fracasso para a

“luz” da cura, da prosperidade e da vitória. Nesta teatralização, pela leitura bíblica, os fiéis

assumem o lugar ou os papéis das personagens, objetivando a “apropriação” dos benefícios

que supostamente se lhes torna acessível. Aplicam-se com propriedade a isto as palavras de

1070 WOLFGANG, Iser. O ato da leitura: Uma teoria do efeito estético. Vol. II. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 82.1071 DENIPOTI, C. Op. cit., p. 14, 20.1072 BOURDIEU, P. Razões práticas. Sobre a teoria da ação, p. 144.1073 Id., Meditações pascalianas, p. 169.1074 Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 20 maio 2005.

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Chartier, no sentido de que “as obras, os discursos, só existem quando se tornam realidades

físicas, inscritas sobre as páginas de um livro, transmitidas por uma voz que lê ou narra,

declamadas num palco de teatro”.1075

Na IURD “os textos constroem representações e imagens”.1076 Observa-se

que o papel da fala, nos rituais, “não é apenas comunicação, mas poder e sabedoria; não

consiste somente num aglomerado de palavras e de sentenças, mas tem valor ontológico”,

sendo capaz de “remodelar o ser” dos que dele participam ao promover a passagem de uma

condição para outra, a substituição de uma condição anterior.1077 Nesta elevação simbólica a

posições de autoridade, “os fracos passam a agir como se fossem fortes”.1078 Exemplo disso

também se pode observar por ocasião do batismo: nas instruções preparatórias são citados

recorrentemente aos neófitos textos que lhes asseguram ser “despojados” de sua condição de

pecado, de maldição e de “velha vida” para o renascimento a uma “nova vida” de posição de

“filhos de Deus”, adquirindo-se, dessa maneira, o direito de viver com todos os “privilégios”

que tal condição representa. Pelo ato das palavras, naquele momento os ritos promovem

“status”.1079 A IURD opera num campo de leituras codificadas, de saberes populares,

promovendo, ao mesmo tempo, uma resignificação das leituras já existentes no referido

campo. Essas dramatizações proporcionam também aos participantes uma saída momentânea

do presente e um reencontro com dimensões sagradas da existência, conforme estudos feitos

por Mircea Eliade.1080 Esse tempo sagrado, segundo Eliade, é percebido pelo ser humano

como indestrutível e capaz de promover ordem. Volta-se a ele nos rituais e festas. Estes

permitem a invasão e alteração do presente por forças do passado, fazendo que as pessoas

distantes no tempo e no espaço se tornem “contemporâneas dos deuses”.1081 E, nas práticas da

IURD se observa, por exemplo, que os chamados pontos geográficos sagrados da Terra Santa

são conectados com os “espaços sagrados” em que estão localizados os fiéis.

Ainda neste item, constata-se que nessa Igreja a leitura bíblica se torna

como que uma chave usada para abrir espaços temporais residentes no imaginário dos seus

adeptos. A participação nos ritos, mediada pela leitura da Bíblia, representa não só um

mergulho nos “tempos bíblicos”, como também em um imaginário moldado pela tradição

1075 CHARTIER, R. A ordem dos livros, p. 8.1076 Id. Leitura e leitores na França do Antigo Regime, p. 377.1077 Id., ibid., p. 127.1078 Id., ibid., p. 202.1079 Essas expressões são enfatizadas pelo bispo Macedo quando fala sobre o significado do batismo, em artigo na Folha Universal, intitulado “Batismo, o ato de sepultar a carne”. In: Folha Universal, Rio de Janeiro, 08 out. 2006, p. 2.1080ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões, p. 102,117.1081Id. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 313, 314.

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católico-afro-brasileira. De acordo com Maria Isaura P. Queiroz, o imaginário pode ser

entendido como um “conjunto de representações” do qual emerge a capacidade criativa do

espírito humano de compor sínteses originais, “a partir de mitos, símbolos, imagens, sonhos e

tantos outros materiais estocados por uma determinada cultura”.1082 Nesse sentido, as práticas

de leitura da Bíblia tornam-se um importante elemento de produção e transmissão cultural,

pois promove um dinâmico processo de retradução e circulação de elementos pertencentes a

tempos de longa duração:Os le i tores são v ia jan tes ( . . . ) A esc r i t a acumula , es toca , res i s te ao tempo pe lo es tabe lec imento de um lugar ( . . . ) A le i tura não se pro tege contra o desgas te do tempo; e la pouco ou nada conse rva de suas aquis ições , e cada lugar por onde e la passa é a repet ição do para í so perd ido . 1 0 8 3

Desta forma, portanto, eventos perdidos no tempo fixados pelo relato

bíblico, ligam-se existencialmente à biografia de cada iurdiano, que se apropria desses

espaços e acontecimentos, inserindo neles seus sonhos e desejos. Assim, pela leitura

ritualizada da Bíblia, as práticas da IURD se tornam uma grande ação simbólica, em que

coletivamente se revivem experiências fundamentais, geradoras de sentido e de certeza para a

vida presente.

Quarto, uma leitura de caráter “rebelde” frente aos dogmas ou cânones

estabelecidos pelos segmentos religiosos dominantes no campo. No âmbito da IURD não há

preocupação com qualquer recurso metodológico de hermenêutica ou de exegese para a

leitura que fazem da Bíblia. Assim, sem maiores preocupações com a sistematização da

teologia bíblica – que ocorre pelo agrupamento de grandes blocos literários dos diferentes

livros - a prática de leitura iurdiana se dá pela fragmentação de trechos isolados das escrituras

bíblicas que priorizam personagens bíblicos descritos como portadores de uma vida próspera

e de sucesso como, são os casos de Abraão e José do Egito. Normalmente são evitadas

referências a textos que mencionam “fracasso” ou dificuldades que envolveram personagens

bíblicos, a não ser quando isso serve como argumento dos pastores para mostrar o que o

Demônio pode fazer na vida de uma pessoa que ainda não aprendeu a usar os recursos

disponibilizados pela Igreja.

A esse modelo de leitura podem ser aplicadas em paráfrase as

considerações feitas por Chartier, quando cita a temeridade demonstrada por Locke em

relação ao fato de que esses procedimentos fragmentados “quebram a continuidade 1082 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O imaginário em terra conquistada. Textos CERU, São Paulo, n. 4, 1993. 1083 CERTEAU, Michel de. Apud. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros, p. 11.

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ininterrupta do texto”, acrescentando-se que tal “recorte pode ter implicações fundamentais

quando se trata de um texto sagrado”, por “provocar uma obliteração à coerência da palavra

de Deus”, propiciando maior facilidade a cada “seita ou partido religioso de fundar a sua

legitimidade sobre os fragmentos da Escritura que mais lhe pareçam confortáveis”.1084 Essa

mesma temeridade, portanto, poderia paralelamente retratar a opinião do protestantismo ou

mesmo do catolicismo atuais a respeito do que vem ocorrendo nas práticas da IURD: Basta a e le (o f ie l de uma igre ja qualquer ) muni r -se de ce r tos ver s ícu los das Santas Escr i turas contendo pa lavras e expressões de f ác i l in te rpre tação ( . . . ) para que o s is tema , que os t e rá in tegrado à dout r ina or todoxa de sua Igre ja , logo os faça advogados poderosos e i r re fu táve is de sua opin ião . Essa é a vantagem de f rases separadas e da f ragmentação das Esc r i turas em vers ícu los que , r ap idamente , to rnar -se-ão afor i smos independentes . 1 0 8 5

Não obstante os esforços pelo controle da leitura, as práticas da Igreja

Universal fazem com que os protestantes clássicos não apenas percebam a ineficácia de se

atingir tal objetivo no campo religioso brasileiro, como também levam-no a experimentar dos

efeitos de sua própria gênese histórica, uma vez que a apropriação das práticas de leitura foi

preponderante para o desencadeamento da Reforma Protestante, no século XVI. Na ocasião,

vendo a leitura da Bíblia como o principal meio de se promover o acesso ao conhecimento da

salvação, ao liderar aquele movimento, Martinho Lutero foi enfático perante a Dieta de

Worms quando inquirido a abdicar de suas idéias reformadoras: “É impossível retratar-me, a

não ser que me provem que estou laborando em erro, pelo testemunho da Escrituras (...)

minha consciência está alicerçada na Palavra de Deus e não é honesto agir-se contra a

consciência de alguém”.1086 Constituiria-se, a partir daí, a doutrina do “sacerdócio universal

de todos os crentes” preconizada pela Reforma, que popularizou a leitura da Bíblia por não

mais imprescindir da figura mediadora do sacerdote como o agente devidamente autorizado a

interpretar as Escrituras. Isto acabou, porém, abrindo grande precedente em relação à

interpretação que se faria do texto sagrado. Pode-se verificar as implicações deste aspecto na

formação de diferentes grupos e ramificações denominacionais que passaram a configurar o

protestantismo em diferentes lugares para onde se expandiu a partir do século XVI, o que está

em sintonia com o dinamismo que possui a leitura. Por isso mesmo não demorou para que, à

semelhança do catolicismo, as igrejas reformadas também passassem a estabelecer seus

1084 CHARTIER, Roger. A ordem dos livros,, p. 18, 19.1085 Id., ibid.1086 NICHOLS, R. Op. cit., p. 151.

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dogmas e cânones, que deveriam se constituir em parâmetro interpretativo das Escrituras

bíblicas, incorrendo assim também no modelo de classe sacerdotal:O corpo de sace rdotes t em a ve r d i re tamente com a rac iona l ização da re l ig ião e der iva o pr inc íp io de sua leg i t imidade de uma teo logia e r ig ida em dogma cuja va l idade e perpe tuação e le ga ran te . ( . . . ) Enquanto resu l tado da monopol ização da ges tão dos bens da sa lvação por um corpo de especia l i s ta s r e l ig iosos , soc ia lmente r econhec idos como os de ten tores exclus ivos da compe tência e specí f ica necessá r ia à produção ou à reprodução de um 'corpus ' de l iberadamente organizado de conhec imentos secre tos ( e , por tan to , r a ros) , a cons t i tu ição de um campo re l ig ioso acompanha a desapropr iação obje t iva daqueles que de le são exclu ídos e que se t ransformam por e s ta razão em le igos ( . . . ) des t i tu ídos do capi ta l r e l ig ioso ( . . . ) e reconhecendo a leg i t imidade des ta desapropr iação pe lo s imples f a to de que a desconhecem enquanto ta l . 1 0 8 7

Ao se observar um caráter de insujeição e rebeldia da leitura nas práticas da

IURD, em relação ao modelo oficial preconizado por católicos e protestantes clássicos, pode-

se constatar que “aparentemente passiva e submissa, a leitura é, em si, inventiva e criativa”, 1088 e que também “liberta-se de todos os entraves que visam submetê-la”.1089 A isto se

aplicam com propriedade as palavras de Chartier:Pensar as prá t i cas cu l tura i s em re lação de apropr iações d i ferencia i s autor iza t ambém a não cons iderar como to ta lmente ef icazes e r ad ica lmente acul turan tes os t ex tos , a s f a las ou os exemplos que v i sam moldar os pensamentos e a s condutas da maior ia . Além disso , e ssas prá t i cas são cr iadoras de usos ou de representações que não são absolu tamente redut íve i s às vontades dos produtores de d i scursos e de normas . O a to de le i tura não pode de mane i ra nenhuma se r anulado no própr io t ex to , nem compor tamentos v iv idos nas in terd ições e nos prece i tos que pre tendem regulamentá- los . A ace i tação dos mode los e das mensagens propos tas opera -se por me io dos ar ran jos , dos desv ios , às vezes das res i s tênc ias , que mani fes tam a s ingular idade de cada apropr iação . 1 0 9 0

Assim, por mais que se queira direcionar a recepção de sentido pelos

leitores acerca do que se lê, haverá sempre o risco de uma “subversão herética” 1091 –

parafraseando Bourdieu - na apropriação que se faz pela leitura:A le i tura é prá t i ca cr iadora , a t iv idade produtora de sen t idos s ingula res , de s ign i f icações de modo nenhum redut íve i s às in tenções dos au tores de t ex tos ou fazedores de l iv ros . . . Abordar a l e i tu ra é , por tan to , cons idera r conjuntamente a i r redut íve l l ibe rdade dos l e i tores e os condic ionamentos que pre tendem ref reá - la . 1 0 9 2

1087 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 39.1088 CHARTIER, Roger. In: CHARTIER, Roger et al. Leitura, história e história da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2000, p. 31.1089 Michel de Certeau. In: CHARTIER, A ordem dos livros, p. 12.1090 CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 13, 14.1091 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 93.1092 CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 123.

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Chartier ressalta ainda que “uma configuração narrativa pode corresponder

a uma refiguração da própria experiência” e que é preciso “compreender na sua historicidade

as apropriações que se apoderam das configurações textuais”:1093 Os tex tos não são depos i tados nos obje tos , manuscr i tos ou impressos , que o supor tam como receptáculos ( . . . ) Cons iderar a l e i tu ra como um ato concre to requer que qualquer processo de produção de sen t ido , logo de in terpre tação , se ja encarada como estando s i tuado no cruzamento en t re , por um lado , l e i to res do tados de compe tências e spec íf icas , ident i f i cados pe las suas pos ições e d i spos ições ca rac ter izados pe la sua prá t i ca do le r , e , por ou t ro l ado , t ex tos cu jo s ign i f icado se encont ra sempre dependente dos d i spos i t ivos d iscurs ivos e formais – chamemos- lhes t ipográ f icos . 1 0 9 4

Sendo as práticas, por meio das quais o leitor se apropria do texto, histórica

e socialmente determináveis, o livro está “suscetível a uma pluralidade de usos, sendo

tomado dentro de uma rede de práticas culturais e sociais que lhe dá sentido” – afirma

Chartier, acrescentando ainda que “a leitura não é uma invariante histórica, mas um gesto,

individual ou coletivo, dependente das formas de sociabilidade, das representações, das

concepções da individualidade”.1095

4.5 - Representações da morte nas práticas iurdianas: mudanças na geografia do “Além”

A IURD promove significativas mudanças em relação à “geografia do

Além”, assim como nas relações entre “a sociedade dos vivos e a sociedade dos mortos”.1096

Sobre esse assunto, três aspectos podem ser destacados: a ausência de discurso em relação à

morte, e, nesse aspecto, curiosamente, a igreja que nasceu numa antiga funerária mantém

absoluto silêncio ou indiferença, quando não, atitudes combativas, em relação a esse assunto;

o “celeste porvir” é antecipado para o “terrestre presente”, propondo-se que as benesses do

paraíso, tradicionalmente projetado pelo cristianismo para a vida futura, possa ser acessível

ao fiéis já na existência terrena; antecipação das representações do inferno para o mundo

presente. As descrições feitas pela IURD do que o Demônio faz na vida das pessoas apontam

para ações que o cristianismo normalmente projetava para o mundo pós-morte. Jacques Le

Goff, quando descreve as representações do inferno no mundo medieval, cita, por exemplo,

“torturas sobre o corpo, gritos, urros, vociferações espetaculares e aterradores”,1097

1093 Id., ibid., p. 24.1094 Ibid., p. 25, 26.1095 CHARTIER, R. Leitura e leitores na França do Antigo Regime, p. 173.1096 LE GOFF, J. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, p. 63. 1097 Id., ibid., p. 67.

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provocadas pelos demônios. Esse segmento religioso toma essas imagens projetadas para o

futuro e as antecipa, identificando sua ocorrência principalmente nos terreiros afro. As

sessões de exorcismo, feitas no templo, encarregam-se de reproduzir tais manifestações,

tornando-se momentos estratégicos para demonstração de que o diabo já está antecipando

para o tempo presente, o que anteriormente se costumava projetar para o devir escatológico.

Jacques Le Goff, no texto anteriormente citado, também mostra que no

conjunto gestual medieval proposto para o cristão, caracterizava-se o gesto da “subida e o da

interiorização; uma atração do alto e interior”. Na Igreja Universal, há uma inversão do fato:

as representações estão voltadas para “baixo”, para o terreno, para o plano material e para o

“exterior”, o que é demonstrado na ostentação de riquezas, saúde e prosperidade financeira.

Esse “terrestre presente” também promove uma alteração na própria escatologia cristã: a

“nova Jerusalém”, descrita como a cidade ideal, na mensagem do Apocalipse (Ap. 22),

projetada para o Além, na IURD a Jerusalém atual, geograficamente localizada na Ásia é que

tem valor simbólico, razão porque se tornou centro de peregrinação de líderes e fiéis iudianos

para a realização de seus ritos, como já observado anteriormente.

Em relação propriamente à morte, vale dizer que consiste num elemento

muito presente na cultura e na religiosidade brasileiras, ocupando, na longa duração, grande e

importante espaço na vivência da fé. O historiador Philippe Ariès, em notável pesquisa sobre

as atitudes do ser humano diante da morte, no Ocidente católico, entre a Idade Média e

meados do século XVIII, apresenta uma relação de muita proximidade entre vivos e mortos.

Usa a expressão “morte domesticada” para se referir à maneira como parentes, amigos,

irmãos de confrarias e vizinhos acompanhavam no quarto dos moribundos seus últimos

momentos. Observa também, como prática característica, a partir do século V, o costume

cristão de se enterrar os corpos dos mortos no interior das igrejas que freqüentavam ou em

cemitérios absolutamente integrados à vida da comunidade. “Uma sociedade em que

coabitavam os vivos e os mortos, em que o cemitério se confunde com a igreja no coração da

cidade” – destaca.1098

Essa prática religiosa-cultural de proximidade e inter-relação entre os

mundos dos vivos e dos mortos fincou também raízes no Brasil ao longo do período colonial.

O historiador João José dos Reis afirma que na Bahia da primeira metade do século XIX, por

exemplo, havia “uma cultura funerária com as características de raízes em Portugal e África”.

Destaca que em ambos os lugares prevalecia a idéia de que o indivíduo devia se preparar para

1098 REIS, João José dos. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 73.

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a morte, arrumando bem a sua vida, cuidando de seus santos de devoção ou fazendo

sacrifícios a seus deuses e ancestrais: Tanto af r icanos como por tugueses eram minuc iosos no cu idado com os mor tos ( . . . ) Em ambas as t rad ições acontec iam cer imônias de despedida , v ig í l i as durante as qua is se comia e bebia com a presença de sacerdotes , f amil ia res e membros da comunidade . Tanto na Áfr ica como em Por tugal , os v ivos – e quanto maior o número des tes melhor – mui to podiam fazer pe los mor tos , to rnando sua passagem para o a lém mais segura , def in i t iva , a té a legre ( . . . ) . Os mor tos ganharam maior impor tância no ca to l ic ismo popula r , a inda impregnado de for te s componentes mágicos e pagãos . 1 0 9 9

Reis observa que os africanos mantiveram no Brasil muitas de suas

maneiras de morrer, mas sobretudo incorporaram maneiras portuguesas. Isso se deveu em

grande parte à repressão da religião africana no Brasil escravocrata, mas também à

dramaticidade ritualista dos funerais portugueses que se aparentava à dos africanos.1100 Esse

autor também se refere à tradição de sepultamento dos corpos no interior dos templos: “Por

mais de dois mil anos tinha sido direito de ricos e pobres, senhores e escravos a sepultura no

interior dos templos”, acrescentando-se que ficavam excluídos dessa graça “só os hereges,

pagãos, excomungados, pecadores públicos, autores de crimes hediondos”.1101

Em relação ao protestantismo que se desenvolveu no Brasil, também se

configuraram representações muitos fortes voltadas ao chamado “celeste porvir”. Para isto

dava-se grande ênfase nas prédicas à mensagem de conversão visando preparar o indivíduo

para a vida do além-pós-morte. Houve igualmente especial cuidado com o local de

sepultamento, construindo-se inclusive cemitérios próprios, em razão de conflitos com o

catolicismo local, sobretudo no século XIX, razão porque esses “cemitérios protestantes” são

até hoje encontrados, por exemplo, na capital e em cidades do interior do Estado de São

Paulo, assim como na região Sul do Brasil. Esse cuidado para com a morte, e os mortos,

decorre da herança protestante, especialmente norte-americana. Naquele contexto, não

obstante os esforços empreendidos a partir da Inglaterra por autoridades anglicanas e pastores

calvinistas visando a simplificação ritual dos funerais, acabou prevalecendo a resistência do

povo: “os cadáveres geralmente deixaram de ser enterrados no interior das igrejas, mas

permaneceram ocupando seus adros, sinal de resistência ao distanciamento entre vivos e

mortos”. Por esse motivo, na Nova Inglaterra, “no século XVIII, a maioria dos cemitérios se

aproximou dos templos e os funerais, antes de chegarem ao cemitério, paravam na igreja

1099 Id., ibid., p. 90.1100 Id., ibid., p. 91.1101 Id., ibid., p. 267.

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onde o pastor fazia um sermão fúnebre, conclamando os presentes a abandonarem seus

pecados”.1102

Em relação às crenças afro, assim como no kardecismo, em período mais

recente, há também em suas práticas fortíssimos vínculos estabelecidos entre o mundo dos

vivos e dos mortos. Através de seus rituais, acredita-se que o médium estabelece contato com

o mundo além, comunicando-se com espíritos dos que já morreram.

Sobretudo nas regiões interioranas do Brasil, a morte ainda consiste num

momento acercado de procedimentos quase que litúrgicos, que rompe a fronteira do privado

para tornar-se público: parentes, vizinhos e até estranhos têm acesso livre ao interior da casa

e ao leito do moribundo, denotando solidariedade própria dessas horas. Todos, de algum

modo, revezam-se na preparação para a morte, na preparação do corpo, no velório e no

enterro. Esse envolvimento comunitário expressa a concepção de que, embora o morto seja

da família, a morte, ao contrário, é assunto da comunidade.

A IURD, promove em suas práticas alteração destas representações. De

forma recorrente, tanto em suas reuniões como nos programas de rádio e TV, é citado o texto

bíblico de João 10:10, que diz: “O Diabo veio para matar, roubar e destruir”. A morte, a dor e

o sofrimento, situações-limite da vida humana, na cosmovisão iurdiana estão assim

diretamente associadas à atuação do Demônio. Em um depoimento ao programa de televisão

“Em que posso te ajudar?”, exibido pela TV Record, um recém-convertido à IURD enfatizou

a morte como tragédia provocada pelos demônios contra a sua família, antes de sua

conversão à Igreja:Eu não conhec ia a Deus . Por is so , t rabalhos de bruxar ia e fe i t i ça r ia t rouxeram desgraças cont ra a minha famí l ia , me fazendo perder um bom emprego que possu ía , mas pr inc ipa lmente , perde r minha i rmã doente no hospi ta l e um i rmão em ac idente de car ro . . . Em busca de a juda , recorr i aos t e r re i ros para f aze r “ t rabalhos” que pudessem desfaze r o mal que es tava cont ra mim. . . Mas v i as co i sas cont inuarem indo de mal a p ior . . . Até que conheci a Igre ja Univer sa l e tudo mudou na minha v ida . . . 1 1 0 3

Procurando ser coerente com a teologia da prosperidade, que prega o

usufruto de saúde, riqueza, bem-estar e vida longa, a mensagem iurdiana demonstra, por esse

motivo, grande dificuldade em lidar com qualquer situação que lembre “fracasso” e a morte

representa um tipo de derrota de todos os procedimentos ritualísticos criados para conferir

aos seus fiéis o sentimento de êxito e sucesso. O posicionamento da IURD confronta um

habitus que incorpora o campo religioso brasileiro e isso pode ser observado nas próprias 1102 Id., ibid., p. 80.1103 Em que posso te ajudar? São Paulo, Rede Record, 10 de maio 2005. Programa de TV.

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atribuições dos pastores. Em seu regimento interno, artigo 32, que trata das funções do

pastor, não há nenhuma menção à assistência às famílias enlutadas. Em outras igrejas

evangélicas é comum os pastores dirigirem ofícios fúnebres nos velórios, templos, casas de

família ou cemitérios. Já os pastores iurdianos, simplesmente se calam diante da morte. Em

entrevista com famílias, em Londrina, perguntando sobre os procedimentos da IURD quando

do falecimento de algum membro, os depoimentos apresentaram informações comuns:

estando ainda hospitalizado, antes de morrer, o doente, nos casos em que houve solicitação

da família, recebeu uma visita de um obreiro da Igreja, o qual orou pela cura do enfermo,

desafiando-lhe a acreditar que seria possível ocorrer um milagre. São oportunas as

observações feitas por Philippe Ariès sobre as mudanças de comportamento diante da morte

no mundo contemporâneo:Hoje , nos hospi ta i s , e c l ín icas em par t i cu lar , não há ma is comunicação com o mor ibundo. Ele não é ma is e scutado como um ser rac ional , é apenas observado como um caso c l ín ico , i so lado , na medida do poss íve l , como um mau exemplo ( . . . ) Na medida do poss íve l , e le se benef ic ia de uma ass i s tência t écn ica ma is e f icaz que a companhia cansa t iva de pa ren tes e v iz inhos . Mas tornou-se , a inda que bem cuidado e por mui to t empo conservado v ivo , uma coisa so l i t á r ia e humi lhada . 1 1 0 4

Após o falecimento, nos casos aqui analisados, os procedimentos fúnebres

não tiveram nenhum ritual religioso mais específico: o corpo, após liberação do hospital, foi

velado na “casa de velório” municipal; não houve o comparecimento de pastores, apenas a

presença de amigos da igreja num gesto de solidariedade.

Outra observação pode ser constatada na ausência de registro ou menção de

falecimentos de adeptos da Igreja. Examinando-se, para o desenvolvimento desta pesquisa,

centenas de exemplares da Folha Universal, não se encontrou uma nota sequer referente a

falecimento de membros da Igreja, algo que é bastante comum em outros jornais evangélicos.

Mário Justino, um ex-pastor da IURD, em depoimento que faz sobre a Igreja, em livro de sua

autoria, narra um episódio envolvendo sua mãe, que freqüentava um dos templos iurdianos

no Rio de Janeiro. Seis meses após o falecimento dela, a família teria recebido uma carta do

pastor redigida nos seguintes termos:Prezada i rmã: u l t imamente temos sen t ido a f a l ta de sua prec iosa presença nos cu l tos de louvores ao Div ino Espí r i to Santo . Lembre-se : “ res i s t i ao d iabo e e le fugi rá de vós” . Espero ver - te na próxima Ceia do Senhor . Paz se ja convosco . Seu esc ravo em Cr is to , Pas tor Ricardo Pe legr in i . P.S: O d í z imo da i rmã es tá a t rasado em c inco meses . 1 1 0 5

1104 ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 298, 299.1105JUSTINO, M. Op. cit., p. 65.

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Igualmente os hospitais são vistos como espaços de atuação de

“concorrentes”, médicos e enfermeiros, que disputam pelos meios da ciência o controle sobre

os corpos daqueles que deveriam recorrer aos meios sobrenaturais disponibilizados pela

Igreja para a solução de seus problemas. Por isso, o co-fundador da IURD, o missionário

R.R. Soares, quando interrogado sobre a função dos médicos respondeu: “Alguém uma vez

me disse, ‘mas Deus não colocou os médicos no mundo?’ Eu respondi: É verdade. Ele é tão

bom que pensou nos crentes incrédulos.”1106 Soares apresenta sua própria experiência como

argumento:Um dia l i o l iv ro 'O Nome de Jesus ' , de Kenneth Hagin . Acabe i de l ê - lo no d ia 2 de dezembro de 1984 e de l á para cá nunca mais tomei um compr imido sequer , com exceção de um ant iác ido que tomei qu inze d ias após , numa madrugada , por causa de uma indispos ição es tomaca l . 1 1 0 7

Também está associado a essa mensagem de “vida abundante”,

fundamentada na teologia da prosperidade, o fato de que gastar o dinheiro com médicos e

remédios é algo profano, afinal esse recurso teria melhor utilidade se destinado às finalidades

da Igreja. Assim, nas práticas da IURD os médicos acabam desempenhando um papel

importante apenas em duas circunstâncias: para diagnosticar a doença e, posteriormente,

constatar a cura. Em relação ao primeiro caso, os profissionais da medicina servem para

demonstrar os limites da ciência, emitindo pareceres de que alguém está “desenganado” pela

medicina. Isto fica bastante evidente quando, depois de ter procurado a Igreja e recebido o

“milagre”, o fiel enfatiza em seu “testemunho” que conseguiu êxito quando “não mais havia

recursos humanos” para a solução do problema. No segundo caso, a figura do médico é

novamente utilizada como prova do “milagre alcançado”, ou seja, é comum se observar

afixados nos templos ou expostos nos programas de TV laudos ou atestados médicos

comprovando que determinado fiel não mais é portador da antiga enfermidade que o

acometia.

Outro aspecto diz respeito às representações que envolvem o cemitério.

Tido como “campo santo” ou extensão da própria igreja no Brasil colonial ou imperial –

sendo por isso mesmo agregado aos templos na longa tradição do Brasil católico – este

espaço passa a ser visto pela IURD como “lugar de maldição”. Para detectar a origem do mal

ou dos trabalhos de feitiços praticados contra as pessoas que recorrem aos seus templos em

busca de ajuda, a Universal emprega com freqüência os seguintes diagnósticos: “foi feito um 1106 SOARES, R. R. Como tomar posse da benção. São Paulo: Graça Editorial, 1987, p. 40.1107 Id., ibid., p. 16.

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trabalho espiritual com terra de cemitério”; “alguém, tomado de inveja e de maldade, pegou

terra de cemitério e jogou no quintal da sua casa ou no pátio da sua empresa” – costumam

alertar os pastores. Assim, como parte de sua atividade, pastores e obreiros periodicamente

deslocam-se até aos cemitérios, especialmente à noite, para travar uma “batalha espiritual” e

desfazer os trabalhos de feitiçaria realizados naquele local contra a vida de pessoas que

passaram a freqüentar os seus templos.

Também por essas razões no túmulo de adeptos da IURD não se observa

nenhuma representação imagética que lembre, por exemplo, os costumes católicos. Por isso,

uma sepultura comum, sem inscrições lapidais e ornamentação sacra é o modelo

normalmente adotado. A ida ao cemitério no Dia de Finados, outro costume religioso

presente no contexto brasileiro, também só ocorre com um propósito: entregar panfletos

evangelísticos e fazer convite para que as pessoas compareçam à Igreja. O cemitério é visto

como representação viva das mazelas realizadas por aquele que “veio para matar, roubar e

destruir”, o Diabo.

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332

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Igreja Universal do Reino de Deus consiste num fenômeno

absolutamente inaugural no campo religioso brasileiro. Estabeleceu reconfigurações, criou

práticas e promoveu mudanças tão radicais no cenário religioso do país a ponto de se poder

dividi-lo em antes e depois da IURD. Ao contrário do que comumente ocorre na formação de

novas denominações, é uma Igreja que não surge de um cisma ou dissidência e nem é apenas

extensão de segmentos que migraram de outros contextos para o solo brasileiro: ela é criada,

irrompe com a força de processos históricos. “Sindicato de Mágicos” é, assim, uma expressão

que traduz bem a capacidade de um movimento de atuar eficazmente em níveis que o capital

cultural do campo permite, cujos recursos outros segmentos não tiveram a ousadia, a

coragem e nem a habilidade para operacionalizar.

Entre as características que notabilizaram as práticas iurdianas no

transcorrer das três últimas décadas no Brasil está o desenvolvimento de uma religiosidade

liminar, folclórica, interior, pessoal, que não necessita de oficialização, mais associada ao

imaginário do mundo rural que migrou para a cidade, nesse período. No contexto urbano,

marginalizada, essa cultura religiosa folclórica exerceu pressão sobre a cultura clerical,

católica ou protestante, que não soube acolhê-la ou absorvê-la. Foi a IURD, portanto, que

surgiu e passou a trabalhar com essa religiosidade, conseguindo chegar às bases, às massas

onde o protestantismo e o catolicismo institucional não conseguiram alcançar. Ela representa

um cristianismo que deu certo no contexto religioso brasileiro; obteve uma eficácia que as

outras ramificações cristãs não atingiram porque não souberam utilizar as regras do campo

nem interagir com os elementos nele constituídos.

Nos capítulos desta pesquisa, anteriormente desenvolvidos, foram

abordados aspectos que fizeram do movimento iurdiano o mais impactante fenômeno

religioso ocorrido no Brasil, nas últimas décadas. Alguns desses elementos serão pontuados,

a seguir, à guisa de considerações finais.

Primeiro, a Igreja Universal se caracteriza como um “sindicato”.

“Sindicato” é a expressão mais apropriada para identificar um movimento que emergiu do

povo, conseguiu traduzir os anseios das massas, colocar-se como uma organização paralela à

instituição religiosa hegemônica e operar habilmente suas práticas com regras coletivamente

construídas no campo. E mais: à liderança do líder carismático fundador, juntaram-se outros

magos, como agentes autônomos, igualmente livres das sanções institucionais que, pela força

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333

do habitus, conseguem reproduzir estilo e semelhante carisma de seu líder principal,

conquistando com isso maior legitimidade perante o grupo ao qual dirigem suas funções.

Esse sindicato religioso conseguiu, de fato, chegar às massas. Para isso,

desenvolveu a habilidade de integrar em suas práticas configurações classicamente tidas

como paralelas, concorrentes ou opostas no interior do campo religioso, presentes nas

instituições oficiais e nos movimentos liminares. Ostentando títulos clericais de “bispos”, os

agentes iurdianos interativamente atuam como profetas autônomos de salvação ou

empresários individuais de socorro e ajuda, emergindo do povo e prestando atendimento a

fiéis que, muitas vezes, parecem configurar-se como clientes. Um jogo de imagens e

representações que transcende fronteiras e limites conceituais. Denominando-se “igreja”, a

IURD desenvolve simultaneamente práticas caracterizadas por magia, messianismo e

profetismo. Vale dizer que, desde o período colonial, a Igreja Católica institucional não

conseguiu chegar aos grandes estratos do país - o que permitiu que se desenvolvesse um

catolicismo folclórico, montado em rezas, magia, messianismos. O protestantismo, inserido

no Brasil a partir do século XIX, semelhantemente, não conseguiu penetrar nas grandes

camadas sociais, rejeitando também todo o substrato cultural configurado em solo brasileiro

por considerá-lo, à luz de sua mensagem racional, idolátrico, demoníaco. Da liminaridade à

prioridade, o movimento iurdiano percorreu um caminho inverso, promovendo a consagração

de elementos “heréticos” existentes no campo, enfatizando elementos da fé que o catolicismo

e protestantismo consideraram “marginais”, como são os casos do Diabo, do exorcismo, do

transe, da magia e do messianismo. Edir Macedo tornou esses assuntos prioritários: ele se

apossou deles e os trouxe para o centro das práticas da sua Igreja.

Também se tem convencionado explicar que, inicialmente organizados fora da

estrutura de igreja, os movimentos liminares, com o passar do tempo, podem cristalizar-se,

crescer e solidificar-se, para eventualmente formarem a sua própria ortodoxia. Desse modo, a

institucionalização do carisma permitirá que se constituam novos sacerdotes, os quais

sistematizarão a mensagem profética em forma de doutrina e criarão novos rituais, o que se

pode chamar, na linguagem de Bourdieu, de “banalização da profecia”. É dessa forma que

ocorre a transformação da seita em igreja, que no futuro poderá ser alvo da contestação de

novos profetas. As aparentes contradições ou paradoxos vivenciados no âmbito iurdiano

emblematicamente ganham sentido e coerência a partir de regras que o campo religioso é

capaz de promover. Por isso, esse segmento passou a requerer o emprego de novos

Page 334: Wander Proenca Sindicato Dos Magicos

334

parâmetros explicativos, daí a atribuição do título “sindicato de mágicos” para o

desenvolvimento da tese aqui elaborada.

O uso da representação do “sindicato”, portanto, é plausível para a

compreensão do segmento iurdiano. Primeiramente, porque esse movimento congrega

anseios de expressivas camadas sociais, o qual desenvolveu um grau de organização e, tendo

surgido com proposta profética, passou a se aproximar de uma instituição, não deixando

ocorrer, entretanto, a rotinização do carisma nem a institucionalização de suas práticas.

Operacionaliza suas práticas e representações a partir de regras do campo religioso, as quais

permitem o avanço de fronteiras convencionalmente estabelecidas para as funções dos tipos

ideais de agentes religiosos, identificados, por exemplo, por Weber. No movimento iurdiano,

os líderes - denominados pastores ou bispos - assumem para os fiéis simultaneamente

diferentes representações e cumprem funções de mago, profeta ou messias. Isso demonstra

que, na verdade, o campo religioso não opera por fronteiras estanques, por limites bem

definidos ou puros, havendo magia no que se convenciona classificar como religião clerical e

um certo grau de institucionalização em movimentos de vocação liminar.

Outro elemento que torna a IURD um sindicato religioso está na construção

coletiva do líder carismático. Nesse caso, fica evidente que não é plausível pensar o seu

carisma a partir da valorização da figura do “herói”, ou pela excepcionalidade de uma

imagem isolada. A dimensão é coletiva pela atribuição de forças sociais e históricas. O poder

que se acerca do líder baseia-se na força do grupo. Assim, as relações entre os líderes

iurdianos e seus seguidores se dão à medida que “aspirações que já existiam antes dele” vêm

à tona “por causa de seus discursos, conduta exemplar ou palavra de ordem”. São “falas

exemplares” perante o grupo de seus seguidores.1108 É o poder das regras do campo que

permite a quebra do “monopólio dos instrumentos de salvação” por pessoas simples,

tornando-as líderes com notória grife religiosa. Esses novos produtores religiosos se tornaram

possíveis, portanto, porque havia condições históricas e sociais favoráveis à sua construção.

Nesse sentido, no contexto brasileiro, criou-se uma situação que clamava pelo advento de

uma nova teodicéia, uma vez que as formas de entender e explicar a vida não mais estavam

em sintonia com as condições sociais, gerando novas demandas, as quais só podiam ser

atendidas por uma palavra profética, messiânica. Nesse momento de crise e de latência do

campo, Edir Macedo surgiu como um “profeta que conseguiu dizer o que é para ser dito”,

1108 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 92.

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335

catalisando os elementos do campo e indicando novos caminhos para a superação da crise

estabelecida.1109

E, por fim, em termos de mecanismos mais propriamente externos, um

“sindicato de mágicos” – inserido na dimensão da cultura – tornou-se também um espaço

alternativo para a busca de mudanças da realidade na qual grandes setores da sociedade

estavam imersos. Num contexto de controle e repressão política por que passava o país nas

décadas de 1960 a 1980, um segmento religioso que propõe soluções por meios não políticos,

mas espirituais, evidentemente não apresentava maiores preocupações aos órgãos

controladores de manifestações populares, até porque a mensagem iurdiana também acenava

para a possibilidade de se obter a ascensão social e prosperidade financeira em consonância

com o próprio sistema econômico vigente. Os fatores geradores da miséria e do sofrimento

não são atribuídos à dimensão política ou econômica, mas sim ao Demônio e às forças

espirituais do mal nele representadas. Dessa forma, enquanto outras modalidades sindicais

sofriam repressões, um “sindicato de mágicos” encontrou mecanismos históricos que

permitiram a propagação de sua mensagem, ainda que não deixasse de ser, mesmo que

sutilmente, uma forma de resistência, no nível da cultura: por mais que o sistema político

vigente insistisse em propagar um espírito de otimismo, o simples surgimento de um espaço

de socorro e ajuda para as massas denuncia que há problemas existentes em tal contexto e

que os caminhos de natureza intra-histórica buscados para superá-los têm a preferência

popular.

Segundo, a Igreja Universal se caracteriza como um movimento de magia.

O catolicismo e o protestantismo desenvolvidos no campo religioso brasileiro empreenderam

inúmeros esforços visando proteger-se da magia, pois consideravam-na algo incompatível

com a “verdadeira religião”. Porém, ritos “mágicos” realizados pelos leigos, por profetas,

magos ou feiticeiros, situados à margem da instituição eclesial e de suas normas, nunca

deixaram de existir, pois quaisquer que tenham sido as pretensões dos clérigos, os ritos

eclesiásticos nunca foram os únicos capazes de garantir exclusiva e totalmente a

comunicação entre os devotos e as potências sagradas. Foi essa incapacidade dos ritos

clericais, para satisfazer aos pedidos dos fiéis, que contribuiu para a recorrência às práticas

mágicas liminares pelos devotos com o objetivo, por exemplo, de se “devolver a saúde a um

doente ou para desviar os malefícios de alguém mal-intencionado”,1110 e também para o

1109 Id., ibid., p. 76.1110 SCHMITT, Jean-Claude. Ritos. In: LE GOFF, Jacques ; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Op. cit. p. 423, 424.

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surgimento de um movimento que percorreria um caminho inverso daquele adotado por

católicos e protestantes: a Igreja Universal do Reino de Deus, que se apropriou do

instrumental mágico, vindo a constituir-se num “sindicato” de sua propagação.

Com esse diferencial, a IURD estabeleceu um “divisor de águas” no campo

religioso, pois consegue não apenas chegar à matriz cultural, recuperando práticas que lhe

são próprias desde longa duração, mas também manter-se atualizada na oferta de respostas a

novos anseios propiciados pelo dinamismo do campo. Não estando presos a controle

institucional e nem à rotina litúrgica do sacerdote, os líderes iurdianos criam e recriam

permanentemente novos ritos, empregam novos símbolos para atender à demanda de seus

adeptos e com isso conseguem responder na mesma agilidade com que os dramas existenciais

e sociais também se multiplicam no mundo urbano.

Outro aspecto que caracteriza a presença da magia nessa Igreja está em sua

capacidade de reverter em seu favor aspectos que se apresentam como adversidade ou

obstáculo. Conforme visto, a IURD experimentou em sua trajetória histórica as mais variadas

formas de conflito, perseguição, ataques e denúncias, sobretudo de setores da mídia e de

outros segmentos religiosos, mas teve, em tais contextos, a capacidade de obter os maiores

êxitos de projeção e recrutamento de novos fiéis. Sua história parece fazer jus e tornar lógicas

as palavras de Edir Macedo quando declara que “a igreja é semelhante ao omelete: quanto

mais batem nela mais ela cresce”.1111 Enquanto outros empreendimentos religiosos, surgidos

na mesma época, caíram no anonimato, a Universal superou todos os desafios, mantendo uma

capacidade mágica de arregimentação de fiéis. Em meio a uma grande crise econômica, que

leva à falência diferentes estabelecimentos comerciais ou empresariais, essa denominação

parece demonstrar imunidade frente às adversidades, avançando de forma escalonária na

ocupação de espaços cada vez maiores.

Esta pesquisa não se propôs investigar se a IURD teria êxito em contextos

sem crises, mas o oposto disto foi possível aferir: o movimento iurdiano nasceu e cresceu

num quadro social profundamente marcado por crise e se alimenta desse ingrediente.1112 Esse

é um componente externo de seu funcionamento. A explosão urbana dos anos 1970 e 1980, a

violência, o tráfico, a globalização, que desencadeia uma extensão de problemas econômicos,

sociais e políticos, são alguns dos fatores geradores do agravamento das condições de vida.

1111Revista Veja, São Paulo, 17 out. 1990.1112Uma análise sobre o crescimento da IURD em outros países, em diferentes contextos, pode ser encontrada na obra: CORTEN, André; DOZON, Jean-Pierre; ORO, Ari Pedro (Orgs.). Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé. Op. cit.

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337

Tal quadro social evidentemente gera uma busca desenfreada por respostas mais rápidas,

pelos meios “sobrenaturais”, criando-se, então, um terreno fértil para a operosidade da magia.

Porém, há mecanismos internos que garantem o funcionamento dessa

Igreja, independentemente de crises externas: um universo de crenças que concebe o Diabo

como um agente causador de permanente ameaça à vida pessoal e familiar; a prática do

exorcismo e conseqüente proteção em face do mal; a proposta de vida mais longa e feliz; a

antecipação das benesses do paraíso para o mundo presente; a construção de identidade no

âmbito de um grupo; ou então, a necessidade de se legitimar o acúmulo de dinheiro e a posse

de bens, pois como observa Max Weber, “os ricos não se contentam em serem poderosos e

felizes: querem ser assegurados que sua felicidade terrena é a recompensa celeste por sua

prática de virtudes”.1113

Por toda a abordagem desenvolvida ao longo desta investigação

historiográfica constata-se que a IURD, evidentemente, não é apenas magia. Ela opera

eficazmente a combinação de vários elementos presentes no campo religioso brasileiro.

Desafiando os instrumentos conceituais explicativos, a alquimia iurdiana faz que o conjunto

de elementos, alguns inclusive aparentemente contraditórios, funcione com êxito e nisto

reside o seu principal segredo. Esses elementos que dão sustentação às suas práticas estão

culturalmente constituídos, daí a necessidade de se pontuar as raízes históricas de suas

práticas, como especificado, a seguir.

Terceiro, o movimento iurdiano exige novos parâmetros conceituais

explicativos. Há novidades, há rupturas apresentadas pela Igreja Universal que definem a

vivência de novas tipologias em relação ao sagrado. Essa inovadora e emblemática

configuração religiosa no Brasil contemporâneo extrapola os instrumentos conceituais

normalmente utilizados para análise do campo religioso em suas manifestações. Desse modo,

a IURD desafia historiadores, antropólogos e sociólogos, convocando-os inclusive a rever

conceitos ou categorias de análise até então empregadas para a compreensão das expressões

de fé. A Universal, por exemplo, inovou no emprego da magia. Suas práticas quebraram

paradigmas clássicos, a saber: “a magia tem uma clientela, não se constituindo, portanto, em

“igreja”;1114 “há nos procedimentos do mago algo de profundamente anti-religioso”, sendo

por isso necessário “encontrar o ponto em que se distingue”.1115 Convencionalmente, religião

e magia também têm sido separados em relação à garantia do efeito desejado: na religião, o

1113Apud OLIVEIRA, P. A. R. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. Op. cit., p. 100.1114 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 76.1115Id., ibid., p. 75.

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pedido feito em oração depende de a divindade aceitar ou não a solicitação; já no magismo, o

efeito só depende de o agente seguir à risca o ritual, pronunciar corretamente a fórmula:Todas as vezes que , em vez de pros t rar -se pa ra supl ica r um favor aos céus , o agente d i to r e l ig ioso ex ig i r de um deus ou de um santo o e fe i to sobrena tura l p re tendido , podendo por i s so prometer com segurança que o e fe i to buscado fa ta lmente se dará , es ta remos d ian te de um a to de magia , não de re l ig ião . Promessa de efe i to garan t ido é promessa de mago. 1 1 1 6

Seguindo essa proposição clássica, Antônio Flávio Pierucci, por exemplo,

mesmo admitindo que o ritual religioso contém certos componentes mágicos - fazendo que

sacerdotes ajam, às vezes, como se fossem magos, curandeiros ou exorcistas - adverte que o

procedimento adotado por alguns pesquisadores, de usar o termo hifenizado, “mágico-

religioso” para designar práticas mágicas e religiosas como um só sintagma, é algo

generalizante e abusivo, que “mal disfarça a operação traiçoeira e empobrecedora de reduzir

magia e religião”. Por isso, segundo esse autor, esses dois conceitos “devem ser separados

analiticamente”:Hoje , na pesquisa socia l , não dá mais para abr i r mão dos ganhos teór icos t raz idos para a d is t inção en t re e s te par de concei tos , magia e re l ig ião , e es te ou tro corre la to , mago e sace rdote . Magia ou re l ig ião? É fundamenta l en tender os t e rmos dessa d i s jun t iva cul tura l . É uma d i ferença que rea lmente conta no es tudo das sociab i l idades contemporâneas . E que de res to é adequadamente a a tua l re l ig ios idade do povo bras i l e i ro . E os ganhos cogni t ivos f i cam a inda maiores quando magia e re l ig ião são encaradas da perspect iva do desenvolv imento h i s tór ico de sua conf l i tuosa re lação na cu l tura oc identa l . 1 1 1 7

As práticas da Igreja Universal, entretanto, exigem que esses procedimentos

metodológico-clássicos utilizados por pesquisadores do campo religioso - que distinguem

magia de religião - sejam absolutamente revistos. Rompendo clichês, os líderes desse

segmento se tornaram empresários individuais de salvação, agentes de socorro e ajuda,

conseguindo uma aproximação das massas, fundando uma igreja, com títulos, teologia e

organização. Porém, com capacidade mágica, essa instituição não permitiu a

institucionalização da magia.

Outro elemento importante reside na prática da magia por pessoas dos mais

variados estratos sociais e econômicos, prevalecendo o elemento cultural, o qual não está

acorrentado aos trilhos daquelas respectivas clivagens e não permite o estabelecimento de um

recorte entre erudito e popular, conforme se costuma às vezes classificar. No movimento

iurdiano, a magia se tornou um caminho que perpassa todos os níveis sociais, ultrapassando 1116Id., ibid., p. 86.1117PIERUCCI, A. F. Magia. Op. cit., p. 9, 10.

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os limites convencionalmente estabelecidos entre o que é folclórico e o que é clerical,

evidenciando-se que para o elemento mágico não existem fronteiras. Nessa Igreja, magia e

instituição não se excluem, mas eficazmente andam juntas.

Essa instigação de revisões epistemológicas, reivindicadas pela IURD, faz

que se processe um movimento nos domínios do próprio saber historiográfico, possibilitando

que a historiografia mantenha o dinamismo de mudança na mesma medida com que também

mudam ou ampliam seus objetos, personagens e espectros espaço-temporais.

Quarto, a IURD realiza um dinâmico processo de apropriação e

resignificação de compósitos culturais estabelecidos no campo religioso brasileiro. Antes do

surgimento da Universal, a umbanda chegou a ser vista como a religião mais propriamente

brasileira: “Para muitos a umbanda era a religião que melhor encarnava a tradição sincrética nacional; pensava suas raízes como plenamente brasileiras”.1118 Mais do que qualquer outro

segmento evangélico, soube aproximar-se dos elementos culturais e operar a partir das

respectivas regras dispostas no campo. Neste aspecto, vale citar as observações de um

jornalista e líder da umbanda, na cidade do Rio de Janeiro, comentando, com um certo tom

de espanto e de denúncia, as práticas de “apropriação” feitas pela Igreja Universal: Paradoxalmente , essa igre ja u t i l i za métodos e t e rminologias que pe lo menos teor icamente são cont rá r ios a seus ens inamentos e convicções , fazendo uma adaptação , ten tando dar uma roupagem a prá t icas que há mui tos anos são usadas por r e l ig iões de cunho esp i r i tua l i s ta que e le s combatem. 1 1 1 9

Destacando sobretudo as terças-feiras, em que se dá a reunião denominada

“descarrego”, quando os pastores se vestem de branco e usam terminologias umbandistas,

esse depoimento destaca ianda que “há pouco tempo, estavam distribuindo ‘sabão de arruda’

para tirar as coisas ruins do corpo e da alma”. A inovação é evidente até mesmo para o meio

umbandista, “pois nunca eu tinha visto falar de ‘sabão de arruda’” - observa.

Nota-se que a IURD acaba se beneficiando de elementos que se propõe a

combater: ao mesmo tempo em que se opõe veementemente às crenças afro-brasileiras, por

exemplo, delas depende para a constituição de suas práticas, reeditando-as, inclusive, com

outros nomes. No simbolismo empregado nos ritos iurdianos, há o uso de objetos típicos de

cultura folclórica, tais como panos coloridos, chás de sete dias, galhos de arruda molhados

1118 Id., ibid., p. 25.1119 Palavras de Ricardo Machado. Trecho transcrito de artigo publicado na Revista Ultimato, citado na conferência proferida por Ariovaldo Ramos, no CONGRESSO BRASILEIRO DE EVANGELIZAÇÃO, em 2003, na cidade de São Paulo. (Material em CD-ROM, disponível no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica – CDPH, da Faculdade Teológica Sul Americana, à Rua Martinho Lutero, 277, Londrina – PR.).

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em bacias cheias de água benta e sal aspergidos nos fiéis para que sejam libertos, o que indica

uma apropriação desse universo de uma magia popular difusa, mas muito comum nos rituais

de umbanda. O simbolismo do fogo também está presente numa relação com os rituais afro-

brasileiros. A arruda às vezes é conduzida pelo fiel para captar o mal existente em casa e nos

moradores, sendo depois levada de volta ao templo para ser queimada. Envelopes contendo

dinheiro e os pedidos dos fiéis iurdianos escritos num papel também são levados para a “terra

santa de Jerusalém”, onde são queimados ritualmente. Nos ritos de encenação praticados esse

segmento religioso entende ocorrer a vivência do Evangelho. A emoção compartilhada se dá

numa plenitude de sentido, num eixo “vertical” que liga os homens às potências sagradas que

o mobilizam. O mito está inextricavelmente misturado ao “rito”, cujo desenrolar desempenha

funções. E vale considerar que o mito encontra-se imerso na história e também nas

transformações inerentes à duração histórica, por isso, o seu sentido reside, antes de tudo, no

seu desempenho no presente e se torna real e eficaz quando é recriado. Com isso, modifica-se

a cada ocorrência, já que a forma, as circunstâncias e os agentes nunca são exatamente os

mesmos – razões por que na IURD sofreram mutações.

Quinto, a Igreja Universal conquistou um capital simbólico decisivo no

campo religioso brasileiro: o transe. Quando são analisados os dados estatísticos de filiação

religiosa no Brasil, surge uma inevitável questão: por que a IURD escolheu o candomblé, a

umbanda e o espiritismo como principais alvos de seu ataque, considerando-se que, juntos –

segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2000 – essas expressões religiosas somam apenas

1,7 da população, enquanto que o catolicismo representa, segundo estas mesmas fontes, 73%

do cenário nacional? Esse combate às religiões afro-brasileiras parece operar, então, como

uma estratégia às avessas, ou seja, objetiva-se tomar posse de um dos principais bens

simbólicos para um grande segmento da população, que é a experiência do transe religioso,

transformando-os em um valor interno do sistema iurdiano.

Há um capital simbólico de crenças mediúnicas constituídas no campo e a

IURD empreendeu a conquista desse valor cultural. Na configuração religiosa do país, o

transe ocupa um papel histórico central na mediação entre os grupos étnicos e sociais

portadores, a princípio, de diferentes patrimônios culturais que entraram em contato. Mircea

Eliade1120 utiliza o termo xamã para se referir ao mago ou ao feiticeiro que acredita, através

do estado de transe, entrar em contato com seres sobrenaturais sejam eles as almas dos

antepassados ou diferentes tipos de espíritos. Este é caso da maioria dos líderes espirituais 1120ELIADE, Mircea. El chamanismo y las técnicas arcaicas de extasis. México: Fondo de Cultura Económica, 1994.

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indígenas.1121 A maior parte do trabalho do xamã consiste em efetuar curas por meio do

controle dos espíritos que provocam as doenças e, até mesmo, a morte. Durante o ritual de

cura o pajé entra em transe ao receber o espírito. “É durante esse transe, enquanto está

possuído pelo espírito, que o pajé cura”.1122 Foi também por meio do transe que deuses

africanos romperam suas linhagens e se “abrasileiraram” ao descerem nos corpos dos seus

filhos na nova terra - negros, mestiços e, finalmente, brancos; ou que índios e escravos, na

condição de divindades veneradas, puderam voltar à terra para a remissão das injustiças

sociais e habitar os mais diferentes corpos na forma de caboclos e pretos-velhos. O

pentecostalismo clássico, pela experiência do “batismo com o Espírito Santo” - evidenciado

pela capacidade de se falar em “outras línguas” – reintroduziu no campo das religiões cristãs

uma relação de proximidade do indivíduo com o sagrado, mediada pelo corpo em êxtase, que

há muito vinha sendo combatida em virtude da proposta de conversão racional e

desencantamento. A possibilidade de receber “na pele” o próprio espírito de Deus recupera a

experiência extática no cristianismo, das devoções folclóricas mais próximas que descartam

os intermediários e enfatizam o monoteísmo na figura do Espírito Santo. Daí a importância

do episódio de pentecostes como mito bíblico legitimador desse movimento, nomeando-o,

inclusive.

Em relação ao transe religioso, observa-se, entretanto, que na

operacionalização desses elementos a IURD promove uma ruptura com práticas do próprio

pentecostalismo: as divindades da umbanda assumiram lugar na cosmogonia do culto,

inclusive em detrimento do transe do próprio Espírito Santo. O ápice desse transe ocorre no

momento das sessões de exorcismo, com aqueles que “manifestam” possessão por “espíritos

malignos”, com os quais o líder fala diretamente entrevistando-os, num “diálogo do além”.

Às vezes, o pastor não se contenta com a resposta e pergunta novamente ao demônio se ele é

o espírito mais forte entre os inúmeros que estão ocupando aquele corpo. “Quem é o mais

forte?” “Quem é o chefe?” - enfatiza. Nota-se que a língua utilizada para esta comunicação

entre o mundo terreno e o mundo do “além”, neste caso, não é mais a “dos anjos”, e sim, a

língua dos homens e de sua cultura, no vernáculo dos líderes e fiéis.

Dessa forma, a IURD pretende monopolizar a experiência do sagrado,

vivenciada no próprio corpo, característica que tradicionalmente esteve sob o controle das

religiões afro-brasileiras e do espiritismo. Com tal estratégia, o movimento iurdiano objetiva

1121 A palavra tupi-guarani que designa xamã significa pai, grafada em português como pajé.1122LARAIA, Roque de Barros. Religiões indígenas. Revista USP, Religiosidade no Brasil, São Paulo, n. 67, p. 9, set./nov., 2005.

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criar uma forma de atrair fiéis ávidos pela experiência com forte apelo mágico e extático,

retirando fiéis daquelas expressões de fé, com a vantagem da legitimidade social conquistada

pelo campo religioso cristão. Da apropriação de certos termos da linguagem, dos ritos, dos

símbolos, produzem-se alquimias que se transformam em instrumentos de combate em favor

da constituição e do monopólio do capital simbólico disposto no campo. Quando a Universal

admitiu o transe, recriando-o de forma específica, cravando-o no centro de seu ritual mais

elaborado, as entidades puderam irromper no seu universo religioso. Mais que o transitar de

entidades, o que de fato transitou e adquiriu uma nova fórmula foi o próprio transe,

conseguindo por meio de um processo de aculturação conjugar o pluralismo religioso do

campo religioso brasileiro. Nesse sentido, a Igreja Universal combate aquilo que, em parte,

ajudou a criar.

Sexto, há também, nas práticas iurdianas, um procedimento de

“desnaturação” de crenças existentes no campo. O termo “desnaturação” é utilizado por Le

Goff para se referir ao processo de luta da cultura clerical contra a cultura folclórica no

período medieval, quando “os temas folclóricos mudavam radicalmente de significado nos

seus substitutos cristãos”.1123 Um exemplo disso pode ser observado na experiência de

“audição de vozes”, identificada pela IURD como um dos dez sintomas que caracterizam a

possessão demoníaca. A Igreja rompe com práticas da tradição cristã, católica ou pentecostal,

que classifica tal elemento como recepção de sinais ou mensagens divinas, envolvendo

geralmente místicos, monges, ou santos.

Outro exemplo de desnaturação tem relação com os deuses das crenças

afro-brasileiras, pois uma das características da teologia da batalha espiritual empregada pela

IURD está na identificação dos demônios ou forças operantes do mal nas práticas daqueles

segmentos religiosos. O livro mais impactante de Edir Macedo deixa isso bem claro ao

apresentar em seu título uma provocativa questão: Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?

Também pode ser classificada como mudança de natureza a atitude

apresentada pela Igreja Universal em relação à morte. Nas práticas adotadas por católicos,

protestantes e outras religiosidades que operam no campo religioso brasileiro, há diversas

atitudes voltadas à preparação e às formas de “bem morrer”. Philippe Ariès situa na longa

duração os comportamentos preparatórios ocidentais em face da morte, destacando que entre

os séculos XI e XVI o indivíduo fazia o aprendizado da “morte de si”, numa representação

1123 LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente, p. 214.

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mais individualizada, e depois, entre os séculos XV e XVI, preparações para a morte passam

a revelar sentimentos comuns e práticas coletivas. No mundo contemporâneo, porém,

mudanças de atitudes promoveram um “novo consenso [que] exige que se esconda aquilo que

antigamente era preciso exibir e mesmo simular, o seu sofrimento”.1124 Por isso, na

civilização ocidental, passou-se “da exaltação da morte na época romântica, começo do

século XIX, à recusa da morte hoje”. Ariès destaca alguns fatores que contribuem

diretamente para isso. Inicialmente, os “novos donos” do domínio da morte não são mais os

familiares e os religiosos, mas a equipe do hospital, médicos e enfermeiros. Depois, o local

de se morrer não é mais a residência: “a morte recuou e deixou a casa pelo hospital”; esse

espaço restrito e privativo dificulta o ajuntamento de familiares e amigos. Em seguida, o

tempo previsto de chegada da morte se tornou muito mais “imprevisível”: em meio a

modernos recursos técnicos, o moribundo não mais sente a morte chegar; o seu tempo de vida

pode ser prorrogado por aparatos que “prolongam a vida”, “a morte não chega na hora

prevista, na hora certa”, o que dificulta a realização de cerimonial preparatório de “bem

morrer”. E por fim, além do individualismo que permeia as sociedades contemporâneas,

Ariès usa a expressão “os moribundos não têm mais status” para se referir ao abandono do

costume que as sociedades tradicionais tinham de rodear o moribundo e de receber suas

comunicações até seu último suspiro. 1125

Rompendo com comportamentos culturais de longa duração em relação à

morte, a IURD se aproxima das atitudes de escamoteamento típico da sociedade urbana e

industrial, indo, inclusive, além dessa indiferença: concebe a morte, o ambiente de hospital e

o cemitério como representações do mal, elementos que procura combater em suas práticas e

discursos. Ao contrário de preparativos para o “bem morrer”, luta-se para afugentar essa

ameaça por completo, pois é vista como uma presença demoníaca, sendo preciso, portanto, o

exercício da fé para não permitir que prevaleça. A morte se torna, portanto, símbolo de

derrota ou fracasso que confronta diretamente a mensagem, a proposição teológica e a função

dos ritos realizados pela Igreja: assegurar vida abundante e longa aos seus fiéis na dimensão

da existência terrena.

Sétimo, essa Igreja promoveu mutações ou revoluções culturais no campo

religioso brasileiro ao inovar as práticas de leitura da Bíblia. Mesmo recebendo identificação

de igreja evangélica ou protestante, a IURD rompe com procedimentos adotados por essas

tipologias na maneira de ler a Bíblia. Do modo tradicional de leitura pelo protestantismo - a 1124 ARIÈS, P. Op. cit., p. 149. 1125 Ibid., p. 293, 294.

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religião do livro, que vê a Bíblia como um conjunto de inscrições da palavra divinamente

inspirada, cuja leitura sistemática e racional permite a conversão - pouco sobrou nas práticas

iurdianas. O biblicismo protestante - leitura pessoal das Escrituras pelo fiel como parte

fundamental de sua espiritualidade - é substituído pela insistente recitação de alguns

versículos bíblicos pelos líderes, durante as reuniões, visando a um efeito mágico: um

“ecumenismo popular negativo, única cosmologia em operação ao longo de todo o rito

francamente mágico que é ali executado”.1126 Logo, o ato de ler iurdiano tem basicamente

uma função ritualística: os textos fundamentam a representação dos ritos, descrevendo-os e

dando a sua interpretação – razão porque o maior apego ao Antigo Testamento, dada à sua

maior riqueza de simbolismos.

Ao recuperar, por meio das Escrituras Bíblicas, a dimensão das tradições

orais, como agente mágico-religioso transformador da realidade, que pode servir como

balizas para condutas rituais, a IURD estabelece maior aproximação do contexto afro-

brasileiro no qual a palavra falada também é revestida de semelhantes poderes simbólicos. É

o caso do candomblé, em que a palavra pronunciada é considerada emanação de axé,

importante mecanismo de movimentação de forças sagradas. Semelhantemente, a força da

fala, mais do que um meio privilegiado de pregação dos escritos divinos, tornou-se, na

Universal, emanação de um poder mágico. Nas sessões de cura, por exemplo, é comum o

pastor ou o bispo pedir às pessoas que fechem os olhos, enquanto ele recita versículos

bíblicos, usando termos carregados de ênfase e veementemente ordenando, “em nome de

Jesus”, que os males saiam do corpo dos enfermos. É no momento dessa “ordem verbal” que

Deus, acredita-se, opera a cura. E as pessoas que acreditam estar curadas são convidadas a

dar pública e oralmente um testemunho sobre o milagre alcançado. O mesmo uso de palavras

bíblicas com efeitos mágicos se observa nos rituais de exorcismo, tanto no momento em que

o pastor ordena que os demônios se manifestem no corpo dos fiéis, quanto no instante em que

são expulsos do corpo do endemoninhado. Nesse momento, há inclusive um ato de

efervescência coletiva quando a multidão também efusivamente grita: “Sai! Sai! Ou

“Queima! Queima!”

Nessa prática de leitura, que visa a recepção do efeito mágico do texto,

pode se observar algo semelhante às atitudes que se tinham para com os “almanaques”,1127 no 1126 MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 123.1127 DUTRA, Eliana R. Freitas. O Almanaque Garnier, 1903 – 1914: ensinando a ler o Brasil, ensinando o Brasil a ler. In: DUTRA, Eliana R. F. et al. Leitura, História e História da Leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2000, p. 477–504. O Almanaque Garnier, lançado no Brasil em 1903, através da publicação de especialistas nas ciências ocultas, como astrologia, por exemplo – vista como uma “ciência de desvendar o porvir” – oferecia aos

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345

início do século XX, os quais, segundo Bourdieu, eram vistos como “depositários de

segredos mágicos climáticos, de um saber para iniciados, com uma aura sacralizada”.1128 Ou

ainda, algo semelhante à leitura paradigmática,1129 identificada por Roger Chartier em

estudos que realiza sobre maneiras de ler ocorridas na Europa Ocidental, no século XVIII.

Naquele contexto também se adotavam “estilos de leitura religiosos e espirituais” que

promoviam “o acesso à verdade absoluta”,1130 sendo responsáveis pela orientação da vida em

diferentes dimensões. De igual modo, pela “freqüentação intensa dos mesmos textos lidos e

relidos” que “molda os espíritos, habituados pelas mesmas citações”,1131 a leitura mágica

iurdiana orienta a busca de proteção, prosperidade financeira nos negócios, saúde,

estabelecendo os ritos para guerrear e vencer o demônio. Por essa prática são criadas as

regras de comportamento, elaborados os argumentos para a entrega de “dízimos” e ofertas; é

ela que também dá sustentação ao poder exercido pelo líder e legitimação aos títulos que

ostenta, conferindo-lhe autoridade perante o grupo a fim de conduzi-lo.

Outra característica que se notabiliza é a prática de leitura coletiva,1132 que

transforma a Igreja Universal numa “comunidade de leitores”.1133 Diferentemente do

protestantismo clássico, ou mesmo do pentecostalismo - cujos fiéis prezam pela leitura

individual do texto bíblico, mantendo também o hábito de conduzir a Bíblia nas mãos quando

se dirigirem aos seus cultos - na IURD, os fiéis não costumam levar a Bíblia ao templo e nem

cultivam o hábito de ler individualmente as Escrituras como regra de sua espiritualidade. O

ato de ler possui, como principal característica a prática coletiva, mediada por uma leitura em

voz alta, feita pelo pastor ou bispo dirigente da reunião. Esta condução pelo líder se dá de

maneira participacional: os fiéis incansavelmente respondem à incitação do pregador para

que repitam os versos bíblicos no momento em que desenvolve a sua prédica. Transliterando

Chartier, pode-se dizer que nessa Igreja a leitura coletiva visa engajar mesmo os mais humi ldes , mesmo os anal fabe tos que só podem receber o esc r i to por in te rmédio de uma fa la ( . . . ) mis tura na f é aqueles que lêem e os que ouvem. ( . . . ) Reunindo homens e mulhe res , l e t r ados e anal fabetos , f i é i s de prof i ssões e de ba i r ros d i feren tes , os cu l tos [ iurd ianos] são um dos lugares em que se opera , em comum, a aprendizagem do l iv ro . 1 1 3 4

leitores a garantia da “exatidão incontestável das suas revelações e predições”.1128 BOURDIEU, P. A Leitura: uma prática cultural. Debate com Roger Chartier. In: CHARTIER, R. (Org.). Práticas da leitura, p. 241.1129 CHARTIER, Roger. A ordem dos livros, p. 131.1130 Id., In: Leitura, História e História da Leitura, p. 26.1131 Id., Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 217.1132 Id.,. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 131.1133 Id., ibid.1134 Id. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 101.

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346

Nesse sentido, notável é também a habilidade iurdiana de conjugar

eficazmente esses antigos modos de ler com recursos ultra-modernos. Nos programas

realizados pelos pregadores radiofônicos ou televisivos, em que empregam insistente e

sistematicamente a leitura e exposição de textos bíblicos, também prevalece a forma coletiva.

Nesse sentido, o rádio e a TV não romperam necessariamente com o estilo de leitura do

passado, quando grupos de artesãos, no século XIX, por exemplo, “revezavam-se, lendo ou

ouvindo um leitor para se manterem entretidos, enquanto trabalhavam” - observa Robert

Darnton, que acrescenta:Até hoje , mui tas pessoas tomam conhecimento das not íc ia s a t ravés da l e i tura de um locutor de t e lev i são . A te lev i são pode ser menos um rompimento do passado do que ge ra lmente se supõe ( . . . ) para a maior ia das pessoas a t r avés da maior par te da h i s tór ia , os l iv ros t ive ram mais ouvin tes que le i tores . Foram mais ouvidos do que l idos . 1 1 3 5

Os meios de comunicação de massa, portanto, ampliaram o aspecto

instrumental da leitura, intensificando sua capacidade comunicacional. Como já dito ao longo

desta pesquisa, a IURD utiliza de forma intensiva recursos do rádio e TV para veiculação de

suas mensagens. Assim, ela apropriou-se de um meio capaz de não apenas instrumentalizar o

modo de ler, mas também de tornar a leitura uma prática mais familiarizada à grande parcela

da população, uma vez que é vantajosa a preferência popular pelos dispositivos de

comunicação áudio-visual no contexto brasileiro, como observa Antonio Cândido:A maior ia da população bras i l e i r a ouve rád io e vê t e lev isão , sendo minor i t á r ia a pa rce la que lê rev is tas , l iv ros ou jorna is ( . . . ) o que se observa é a maior audiência conquis tada pe lo r ád io e pe la t e lev i são , permanecendo a l e i tura c i r cunsc r i ta àqueles segmentos da população que f reqüentam a obr igação de l e r . 1 1 3 6

A IURD, nesse aspecto, mais uma vez consegue atingir com eficácia um

dos elementos que marcam a sociedade brasileira, fazendo que a leitura se torne viável

mesmo a quem não dispõe de tal habilidade lingüística, como observa Sérgio Miceli, ao dizer

que “a televisão brasileira é integrada a uma função paraescolar”, tendo como um dos fatores

para o sucesso de audiência com esta qualificação, o “alicerce do analfabetismo”.1137

Pode-se dizer, então, que em suas práticas de leitura, a IURD promove a

vivência da fé mediante a reatualização de um processo histórico de longa duração, cortado

por novas técnicas ultra-modernas, que atingem a vida privada e o cotidiano. Com isso, em

tempos de novos e agressivos recursos de comunicação e expressão, a leitura 1135DARNTON, R. História da leitura, p. 216.1136 Apud BARZOTO, Valdir H. (Org.). Estudo da leitura. Campinas: Mercado das Letras, 1999, p. 65.1137Folha de S.Paulo, São Paulo, 18 set. 2005, p. E1.

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347

emblematicamente resiste, sobrevive e continua a ser um elemento-chave para promover a

sedução do sagrado, retraduzindo um fertilíssimo passado cultural que faz incursões no

mundo contemporâneo.

Oitavo, há um novo modo de fazer teologia nas práticas iurdianas: a

teologia do vivido. Na IURD, a fé despertada é avessa à teologia formal e às instituições

teológicas formadoras de um clero intelectualizado. Com isso, a religião iurdiana torna-se

prática, associada aos problemas da vida cotidiana, aos quais procura apresentar soluções

espirituais. O bispo Edir Macedo faz questão de estabelecer uma diferença entre o que

entende ser “fé e religião”: “Durante toda minha vida ministerial, tenho ensinado sobre a

diferença entre fé e religião; entre o que é espírito e verdade, e a simples emoção, isto é, a

diferença entre a letra que mata e o poder vivificante do espírito” – ressalta Macedo.

Comentando ainda esse aspecto, afirma que:r e l ig ião é a lgo que es tá presente em todas a s c iv i l izações , adaptando-se do fe t i che à ido la t r i a , incorporando lendas loca i s e cos tumes . A re l ig ião sempre se vendeu para todos os gos tos , e f ide l iza o c l i en te , em a lguns casos o escrav iza , l evando-o ao fanat ismo, que é o afas tamento da rea l idade . Para a r e l ig ião e os r e l ig iosos va le mui to o que pode ou não ser comprovado por descober tas c ien t í f i cas . Vale mui to t ambém, o que d izem os in te lec tua i s de qualquer corren te . A re l ig ião é passada de geração em geração como t rad ição e va lores h i s tór icos a se preserva r . 1 1 3 8

Em relação ao que denomina “fé”, Macedo afirma: “a fé é uma experiência

pessoal medida pelos frutos que produz. É a verdade que liberta de maneira consciente e

inteligente. Ela vem preencher a fome da alma, que é naturalmente mística, porque viemos de

Deus. O antídoto para as religiões continua sendo uma experiência pessoal com o Espírito

Santo” – finaliza o bispo.1139

Diferentemente do catolicismo e do protestantismo, a ênfase dada em sua

mensagem não é mais no cristocentrismo - Cristo no centro do culto e das expressões de fé -

mas sim, o teocentrismo - Deus no centro – algo semelhante ao proposto pela espiritualidade

judaica descrita e vivenciada no Antigo Testamento. Em relação ao pentecostalismo, a ênfase

não mais recai na glossolalia como evidência do batismo com o Espírito Santo e seus

respectivos carismas que envolvem todos os fiéis; os carismas ocorrem não em forma de

experiência pessoal dos fiéis, mas numa dimensão coletiva através dos rituais.

Nono, a IURD recria práticas religiosas do campo religioso brasileiro em

relação às representações do dinheiro. Voltados à teologia da prosperidade, os pregadores

1138 Folha Universal, Rio de Janeiro, 30 abr. 2006, p. 18.1139Id., ibid.

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iurdianos não cansam de enfatizar que “é dando (dinheiro) que se recebe”, destacando

inclusive uma relação eqüitativa entre a quantia doada e a proporção do milagre desejado. O

caminho de acesso a uma vida próspera e economicamente bem-sucedida, passa

necessariamente pelo ato de ofertar. Nesse sentido, a Igreja opera de acordo com as regras do

campo, promovendo modificações em relação ao protestantismo. Maria Isaura de Queiroz,

quando aponta para um substrato religioso que configurou o catolicismo rural no Brasil,

afirma que o culto dos santos, a festa da novena, as orações têm por objetivo assegurar a boa

vontade dos seres sobrenaturais e “uma retribuição”. Desta forma, a relação religiosa básica

entre os homens e o sobrenatural é a do “ut des, ou seja, dou para receber em troca”.1140 É o

princípio da reciprocidade e da troca, observado, por exemplo, no catolicismo folclórico, com

suas promessas individuais ou coletivas aos santos. Vale notar que essa prática de oferecer

algo para se obter o socorro divino, ou o pagamento pelos serviços do feiticeiro, é também

um componente do repertório simbólico das crenças afro-brasileiras.

O protestantismo, quando de sua inserção no Brasil, trouxe consigo uma

prática diferente: o chamado “evangelho da graça”, o qual pedia nada ou quase nada em

troca. Aliás, preocupou-se mais em oferecer gratuitamente literaturas, serviços religiosos tais

como educação, atendimento em hospitais e outros projetos de cunho social. Já a IURD, ao

contrário, não rompe com as regras culturalmente estabelecidas no campo: enfatiza a oferta

ou o sacrifício financeiro como mediação dos serviços religiosos que presta. Ao agir com

essas regras do campo religioso brasileiro, pela denegação da alquimia da oferenda, o

segmento iurdiano acaba se protegendo e se defendendo de acusações de charlatanismo ou

exploração financeira dos fiéis.

Mas a teologia da prosperidade, surgida inicialmente nos Estados Unidos,

com pregadores e autores de auto-ajuda, também ganha evidência nas práticas iurdianas por

modificar radicalmente um habitus católico: enquanto que para o catolicismo a ascese ou

abstinência de bens é vista como preparação para salvação, na IURD se enfatiza o mundo, ou

seja, ter bens é sinal ou prova da salvação alcançada. Sendo a miséria vista como sinônimo de

atuação do Demônio na vida das pessoas e conseqüente sujeição ao pecado e ao mal; obter

prosperidade e sucesso material representa estar mais próximo de Deus ou ser pertencente ao

seu reino. Enfaticamente, os pastores proclamam que ao crente está destinado não apenas ter

um bom emprego, mas tornar-se patrão ou empregador, ser rico e não pobre.

1140 QUEIROZ, Maria Isaura P. de. O campesinato brasileiro. Petrópolis / São Paulo: Vozes / EDUNESP, 1973, p. 94.

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Décimo, e último item, há uma inovação nas práticas iurdianas em relação

ao messianismo e ao milenarismo. A Igreja Universal realiza uma vivência da escatologia já

no tempo presente. Há um reino de paz anunciado e trazido para a terra sob a liderança de

Edir Macedo. No âmbito do grupo iurdiano se propõe o alcance imediato de benesses

milenaristas tradicionalmente projetadas para o devir apocalíptico; promove-se a

materialização de uma esperança em relação à modificação benéfica do mundo para um

estado ideal.

E, diretamente relacionado a esse aspecto do milenarismo, no âmbito do

grupo iurdiano configura-se um tipo de messianismo localizado não mais no contexto rural, e

sim no mundo urbano. Como observado, as manifestações messiânicas que historicamente

marcaram o Brasil ocorreram em tempos de crise ou de desagregação social, constituindo-se

normalmente em mecanismos que visam a reorganização de sociedades camponesas: “quanto

mais a estrutura e a organização dessas sociedades camponesas forem frágeis, mais existem

possibilidades para que tais movimentos surjam”.1141 Neste aspecto, vale citar Roger Bastide,

quando afirma: “Se me permitirem levar até ao extremo essa tese, da eficácia dos surtos

messiânicos, diria que o campesinato brasileiro, ao qual é recusada uma Reforma Agrária,

como que a realiza por si mesmo, sob inspiração de seus líderes carismáticos, e segundo

valores que lhe são peculiares”.1142

A expulsão da mão-de-obra do campo, evidenciada no Brasil, sobretudo a

partir da década de 1970, possibilitou o rápido crescimento das cidades, onde contingentes

esperavam encontrar melhores condições de vida. Nas áreas marginais dos centros urbanos

“surgiram então, da noite para o dia, as favelas com todos os seus problemas nas áreas de

educação, saúde, habitação, comunicação, lazer, transporte, aumentando com isso a fome, a

marginalização, a violência e insegurança”.1143 Formava-se, desta forma, um contexto

propício para que aflorassem representações milenaristas: Os movimentos mi lenar is ta s baseados em sonhos u tópicos de sa lvação são bas tan te f reqüentes , sobre tudo en t re grupos marginal izados das populações rura i s bras i l e i ra s cu ja v ida , normalmente d i f í c i l fo i ameaçada por mudanças econômicas ou

1141Também neste aspecto, generalizando, Eric Hobsbawm afirma que “a história dos vinte anos após 1973 é a de um mundo que perdeu suas referências e resvalou para a instabilidade e a crise” cf. HOBSBAWM, E. A era dos extremos: breve século XX, p. 393.1142BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. 5 ed. São Paulo: Difel, 1973, apud QUEIROZ, Renato da Silva. Mobilizações sociorreligiosas: os surtos messiânico-milenaristas. Revista Usp, Religiosidades no Brasil, n. 67, p. 133, 2006.1143 Folha de Londrina, Londrina, 12 fev. 1976, p. 01 (Material disponível no acervo de Jornais da Biblioteca Pública de Londrina).

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350

pol í t i cas , ou en tão en tre grupos profundamente re l ig iosos mas que foram afas tados da igre ja ins t i tuc ional . 1 1 4 4

Ao migrarem para as cidades, os contingentes rurais carregaram consigo

crenças messiânicas das quais está impregnado o imaginário folclórico brasileiro. O

catolicismo ao qual estavam nominalmente vinculados, quase que na totalidade, dada a sua

liturgia burocratizada - com uma ortodoxia que tenta aprisionar o sagrado, transformando-o

de selvagem em dominado - não foi capaz de articular respostas ao nível desse imaginário

devocional e encantado. E nem tampouco o protestantismo, com seu discurso racional, teve

habilidade de fazê-lo. Foi então a IURD que se configurou como espaço de acolhimento,

apropriando-se, pelo habitus, desse imaginário da massa de pressão camponesa, apresentando

uma forma de resposta em nível cultural. Em um período de mobilidade populacional,

urbanização e aumento do mal-estar e sofrimento para grandes estratos sociais estabelecidos

sobretudo nas periferias das grandes cidades, pessoas que se encontram afastadas de suas

raízes e abandonadas à própria sorte, em meio a condições sociais adversas e sem sentido,

aderiram ao movimento iurdiano pelo fato de terem encontrado espaço para a reafirmação de

princípios e valores que o deslocamento do mundo rural para o urbano ameaçou usurpar-lhes.

Os espaços da Igreja propiciam um modo mais pessoal de contato e “algum tipo de

proteção”.1145 Ao infundir “segurança em pessoas traumatizadas pela privação, pelas

vicissitudes e pela incerteza econômica”,1146 a IURD exerce funções sociais e psicológicas

sobre os crentes, orientando-os quanto à conduta, proporcionando-lhes apoio emocional e

satisfazendo aspirações quanto a uma visão espiritual e mágica do mundo, no sentido de

muni-los de mecanismos de superação das crises e mazelas à que passaram a estar

submetidos. Desses se pode dizer algo semelhante ao que afirmou Pierre Bourdieu sobre

camponeses da Argélia: optaram pela “esperança mágica” por ser esta “a mira de futuro

próprio daqueles que não têm futuro”.1147

O desenvolvimento de práticas messiânico-milenaristas no contexto urbano,

configuradas não mais no contexto rural - como tradicionalmente se denotou nos movimentos

com tais perfis – faz que as fronteiras convencionalmente estabelecidas entre o que é rural e

urbano sejam rompidas, o que torna a cidade - teoricamente definida como lugar de

1144 LEVINE, R. O sertão prometido: o massacre de Canudos, p. 330.1145 OLIVEN, Ruben G. A antropologia de grupos urbanos. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 42.1146 Robert Levine, referindo-se à experiência vivida pelos participantes do movimento de Canudos. Cf. LEVINE, R. O sertão prometido: massacre de Canudos, p. 321.1147 BOURDIEU, P. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais, p. 102.

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351

“desencantamento” - em local de magificação do sagrado em suas expressões mais

folclóricas e encantadas.

Finalizando, há de se ressaltar que o principal segredo do êxito da Igreja

Universal do Reino de Deus, em termos de projeção e constituição de um fenômeno sem

precedentes, promotor de remodelagens do campo religioso brasileiro, reside na alquimia do conjunto. Ao fazer uma reinterpretação da teoria weberiana da religião, Pierre Bourdieu

destaca a oposição entre “mágicos” e “sacerdotes”,1148 levantando instigantes questões:

mágicos não poderiam construir comunidades? Ou seja, uma clientela da magia não poderia

evoluir na direção de práticas comunitárias, tipo igreja, sistematizando visões de mundo,

dando origem a doutrinas, gerando até mesmo um clero especialista no manuseio de ritual

apropriado? De igual modo, profetas e sacerdotes não poderiam lançar mão de uma visão

mágica da vida e de seus rituais para atender as necessidades dos que a eles recorrem na

condição de “clientes”? Não poderiam também praticar atos mágicos para aumentar a

capacidade de atração de seu templo? No caso iurdiano, a resposta é emblematicamente

“sim” a todas essas questões.

A alquimia do conjunto, nas práticas da IURD, permite a combinação de

elementos tidos como opostos ou contraditórios e a recuperação de um capital simbólico

retrabalhado numa mensagem como as outras expressões religiosas contemporâneas não

conseguiram fazê-lo. É por esse aspecto emblemático, que demonstra funcionalidade, que

outras categorias do conhecimento - embora contribuam - não dão conta de explicar os

mecanismos internos e externos que engendram e fornecem sustentabilidade ao

funcionamento dessa Igreja. Assim, não obstante possuir uma história recente, as raízes de

suas práticas estão fincadas na longa duração e nisto reside o ponto de partida para a

compreensão de suas práticas. Por isso, ela não é apenas uma religião de pobres, fruto de

crises sócio-econômicas desencadeadas nas últimas décadas, como tentaram classificar os

sociólogos; não é apenas uma religião que responde aos anseios emocionais das massas,

como querem às vezes categorizar os psicólogos; não é somente fruto de um eficaz

empreendimento de marketing e bom uso de recursos midiáticos de comunicação; não é

apenas uma continuidade das crenças afro-brasileiras, como uma espécie de “versão

evangélica da macumba”, como rotularam alguns segmentos evangélicos; não é meramente

uma nova tipologia de pentecostalismo. Por tais aspectos, o avanço em busca de uma

1148 Id., A economia das trocas simbólicas, p. 79.

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compreensão plausível do fenômeno iurdiano requer abordagem pelo viés de uma história

cultural, como destacado nesta pesquisa.

A partir de parâmetros da História Cultural aqui utilizados foi possível

perceber mais profundamente que o êxito da Igreja Universal do Reino de Deus está na

combinação de elementos produzidos como capital simbólico no campo religioso brasileiro.

Nessa igreja, magia e instituição deixam de ser elementos opostos e se tornam

complementares. Enquanto “sindicato de mágicos”, a IURD não opera apenas com a magia.

Em sua alquimia, faz a combinação de elementos que a tornam simultaneamente também

igreja, movimento profético, com caráter messiânico-milenarista. No espaço iurdiano, bispos

e profetas, magos e messias, complementam-se no exercício de sua função. O conjunto de

seus ritos agrega compósitos culturais-religiosos legados pelo protestantismo,

pentecostalismo, catolicismo folclórico, religiosidade afro, tradições judaicas. O sagrado, em

seu estado mais encantado, é transversalmente cortado pelo emprego de recursos

ultramodernos. Sofisticadas estratégias de arrecadação financeira são adotadas sem que se

perca o aspecto emblemático da economia da oferenda em atos coletivos que transfiguram as

especulações meramente mundanas. A posse e o usufruto de riquezas materiais são obtidos

com mecanismos “sobrenaturais”. A geografia do “Além” pode ser alterada. O devir

escatológico já se torna presente. O messianismo também ocorre nas grandes metrópoles. A

cidade pode ser lugar de encantamentos em seu estado mais verticalizado. Enfim, a história

recente esconde raízes profundamente fincadas em substratos estabelecidos na longa duração;

a religiosidade pode ser historicamente construída, articulada a lugares sócio-econômicos e

políticos específicos, permitindo ser compreendida a partir de suas transformações no interior

das experiências vivenciadas pelos indivíduos e grupos sociais.

Portanto, nas práticas dessa Igreja, flutuações históricas criaram outros

deuses, propagados por novos agentes, seguidos por antigos e novos fiéis, que transformam o

campo religioso na mesma dimensão com que também são por ele transformados. Desse

modo, o cristianismo - que é uma religião de mistério - o revive na sua intensidade, com o

emblema do encanto, da força recriativa e da riqueza cultural historicamente estabelecidos e

perpetuados no folclórico contexto brasileiro.

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Fala Que Eu Te Escuto. São Paulo, Rede Record, 15 jul. 2005. Programa de TV.

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Ponto de Luz. Londrina, Rádio Gospel FM, 07 ago. 2004. Programa de rádio.

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Observação participante no templo central na cidade de Londrina, 20 mar. 2004. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observação participante realizada no templo da IURD em Santo Amaro, 20 abr. 2004. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 22 ago. 2004. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observação participante realizada no templo de Londrina, 30 ago. 2004. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observações participantes realizadas no templo da IURD em Santo Amaro, out. 2004. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observação participante realizada no templo da IURD em Santo Amaro, São Paulo, 30 nov. 2004. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, set. 2004. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 11 nov. 2004. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observações participantes realizadas no templo da IURD em Santo Amaro, fev. 2005. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 27 mar. 2005. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 20 maio 2005. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, ago. 2005. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.

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