Walter Carnielli - Lógica Paraconsistente

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93 | REVISTA OMNIA LUMINA | SÃO PAULO | V. 1 N. 1 | P. 93 - 103 | JAN./JUN. 2010 | www.revistaomnialumina.org.br CONTRAFACTUAIS, CONTRADIÇÃO E O ENIGMA LÓGICO MAIS DIFÍCIL DO MUNDO Walter Alexandre Carnielli * RESUMO Partindo da pressuposição de que enigmas lógicos podem ser expres- sivos no debate filosófico, este artigo avalia o papel das noções de contradição, consistência e condicionais contrafactuais na sua formu- lação, desafiando a competência da lógica clássica como foro privile- giado na racionalidade de tais dilemas. Palavras-chave: Enigmas lógicos. Contradição. Consistência. Con- trafactuais. ABSTRACT Starting from the assumption that logical puzzles can be significant in philosophical debate, this article evaluates the role of the notions of contradiction, consistency and counterfactual conditionals in its formulation, challenging the power of classical logic as a privileged forum for the rationality of such dilemmas. Keywords: Logical puzzles. Contradiction. Consistency. Counterfactual. 1 Como tornar o mais difíCil de todos os enigmas um pouCo mais difíCil Há dezoito anos o filósofo George Boolos publicou, num arti- go de 5 páginas em Boolos (1992) o que ele chamou de “o mais difí- cil de todos os enigmas lógicos”, atribuído originalmente ao lógico Raymond Smullyan (uma versão menos complicada, mas com quase todos os ingredientes, já havia sido introduzida por Smullyan (1978, * Doutor em Matemática pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutorado pela Uni- versity of California e pela Universitat Munster (Westfalische-Wilhelms). Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Lógica e Fundamentos da Matemática. Atua principalmente nos seguintes temas: semânticas formais, lógicas não-clássicas, combinação de lógicas, combinató- ria finita e infinita, história e filosofia da lógica.

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    ContrafaCtuais, Contradio e o enigma lgiCo mais difCil do mundo

    ContrafaCtuais, Contradio e o enigma lgiCo mais difCil do mundo

    Walter Alexandre Carnielli*

    ResumoPartindo da pressuposio de que enigmas lgicos podem ser expres-sivos no debate filosfico, este artigo avalia o papel das noes de contradio, consistncia e condicionais contrafactuais na sua formu-lao, desafiando a competncia da lgica clssica como foro privile-giado na racionalidade de tais dilemas.Palavras-chave: Enigmas lgicos. Contradio. Consistncia. Con-trafactuais.

    AbstRActStarting from the assumption that logical puzzles can be significant in philosophical debate, this article evaluates the role of the notions of contradiction, consistency and counterfactual conditionals in its formulation, challenging the power of classical logic as a privileged forum for the rationality of such dilemmas.Keywords: Logical puzzles. Contradiction. Consistency. Counterfactual.

    1 ComotornaromaisdifCildetodososenigmasumpouComaisdifCil

    H dezoito anos o filsofo George Boolos publicou, num arti-go de 5 pginas em Boolos (1992) o que ele chamou de o mais dif-cil de todos os enigmas lgicos, atribudo originalmente ao lgico Raymond Smullyan (uma verso menos complicada, mas com quase todos os ingredientes, j havia sido introduzida por Smullyan (1978,

    * Doutor em Matemtica pela Universidade Estadual de Campinas. Ps-doutorado pela Uni-versity of California e pela Universitat Munster (Westfalische-Wilhelms). Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas. Tem experincia na rea de Filosofia, com nfase em Lgica e Fundamentos da Matemtica. Atua principalmente nos seguintes temas: semnticas formais, lgicas no-clssicas, combinao de lgicas, combinat-ria finita e infinita, histria e filosofia da lgica.

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    p.149-156). Mais do que apenas um outro da srie de enigmas lgicos envolvendo deuses, gnios e tribos estranhas que sempre dizem a ver-dade ou a falsidade, o enigma de Boolos tem interessantes peculiari-dades que o tornam altamente no trivial (embora ainda no em grau mximo, como veremos) e filosoficamente relevante e revelador. O enigma original de Boolos o seguinte:

    Trs deuses (ou gnios infalveis) A, B, and C so denomina-dos, em alguma ordem, Verus, Falsus e Aleatorius. Verus sempre diz a verdade, Falsus sempre diz uma falsidade, mas Aleatorius diz verda-des ou falsidades de uma forma completamente aleatria. Sua tarefa determinar as identidades de A, B, e C com trs perguntas cujas respostas so do tipo sim ou no; cada questo deve ser colocada a exatamente um dos deuses. Os deuses entendem a sua lngua, mas res-pondem a todas as questes em sua lngua nativa, na qual as palavras para sim e no so da e ja, em alguma ordem. Voc no sabe qual das palavras significa sim ou no.

    Boolos esclarece, para guiar a soluo, que:

    (a) Pode ocorrer que um mesmo deus ou gnio seja inquirido mais de uma vez (e algum deles nenhuma). Note que isso no fere a restrio de que cada questo deva ser colocada a exatamente um dos deuses;

    (b) O teor da segunda questo, e a quem ela ser dirigida, pode depender da resposta da primeira (e assim tambm para a terceira);

    (c) O fato de Aleatorius dizer uma verdade ou no deve ser en-tendido como dependente de se jogar uma moeda escondida no seu crebro: se a moeda cai com cara, ele diz uma verdade; se coroa, uma falsidade;

    (d) Aleatorius responder da ou ja frente a qualquer pergunta do tipo sim ou no.

    Boolos mostrou que o enigma pode ser resolvido em apenas trs perguntas (um tanto complicadas), mas dois estudantes norte--americanos, Brian Rabern e Landon Rabern, propuseram em Rabern & Rabern (2008) uma soluo bem mais simples que a de Boolos,

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    ainda com trs perguntas, e alegaram que uma soluo para um enig-ma ainda mais difcil seria possvel com apenas duas perguntas. A primeira observao interessante de Rabern & Rabern (2008, p. 107), que a maioria dos leitores acreditar, sem refletir muito que, a partir do esclarecimento de Boolos (em (c) acima), Aleatorius dar respostas completamente aleatrias a qualquer pergunta, mas essa impresso falsa; na verdade, se perguntarmos a Aleatorius Voc responder a esta questo com uma mentira?, acontecer o seguinte: se a moeda do seu crebro cair com cara, ele ter que responder com uma verdade; nesse caso, sua resposta no poder ser o equivalente a sim (pois isso seria uma mentira), e portanto sua resposta deve ser o equivalente a no. Se a moeda cair com a coroa, ele ter que responder com uma uma falsidade, e da mesma forma neste caso, sua resposta no poder ser o equivalente a sim (pois agora isso seria uma verdade), e da a sua resposta deve ser o equivalente a no. Ou seja, sua resposta pergunta ser sempre negativa, e no h aleatoricidade alguma!

    O que acontece que, inadvertidamente, Boolos facilitou o pro-blema, que no pode ser ento legitimamente considerado o mais difcil de todos os enigmas lgicos; pode-se dificult-lo um pouco, da seguinte forma: (c*) O fato de Aleatorius dizer uma verdade ou no deve ser entendido como dependente de se jogar uma moeda escon-dida no seu crebro: se a moeda cai com a cara, ele responde j, se coroa, ele responde da,

    Mesmo este problema mais difcil pode ser resolvido (seguindo a estratgia de Rabern & Rabern (2008) de maneira mais simplificada com trs questes condicionais contrafactuais. Um condicional con-trafactual uma afirmao condicional onde o antecedente no ver-dadeiro e no qual se apela a um mundo possvel (linguisticamente, atravs do modo subjuntivo). A pergunta bsica a seguinte: Se eu lhe perguntasse p, voc responderia ja?

    onde p uma pergunta qualquer. Note que esta uma pergunta a respeito de uma pergunta que no foi feita (e por essa razo um condicional contrafactual); vamos cham-la de questo P com pergun-ta implcita p. Podemos agora facilmente demonstrar o seguinte:

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    Lema: Se perguntamos qualquer questo P com pergunta impl-cita p a Verus ou Falsus, a resposta ja indica que a resposta correta de p afirmativa, e a resposta da indica que a resposta correta de p negativa.

    Demonstrao: Se p for verdadeira (por exemplo, 1+1=2?, em cujo caso P seria Se eu lhe perguntasse se 1+1=2 , voc responderia ja? ) a resposta de Verus, a P s poder ser ja , quer ja signifique sim ou no. Se p for falsa (por exemplo, 1+1=3?) a resposta de Verus, a P s poder ser da , quer da signifique sim ou no . Portanto, ja indica que a resposta correta de p afirmativa, e da indica que a resposta correta de p negativa. Raciocnio anlogo vale para Falsus.

    Qed. O que o Lema mostra que uma pergunta condicional ou condicional contrafactual arbitrria obtm muita informao de Verus ou de Falsus, mas nenhuma informao de Aleatorus; o proble-ma ento separar Aleatorius dos outros. Como isso pode ser feito? Nesse caso, com outras perguntas condicionais contrafactuais espec-ficas: Por exemplo, pergunte a B o seguinte (de forma a estabelecer a identidade de A, de B e de C):

    Se eu lhe perguntasse A o Aleatorius?, voc responderia ja?

    1. Se B responde ja, suponha que ele seja Verus ou Falsus; pelo Lema a resposta ja afirmativa (logo A o Aleatorius). Caso contr-rio, B o Aleatorius. Da, de todo modo C no o Aleatorius.

    2. Se B responde da, suponha novamente que ele seja Verus ou Falsus; pelo Lema a resposta da negativa (logo A no o Aleato-rius). Caso contrrio, B o Aleatorius. Da, de todo modo A no o Aleatorius.

    Reconhecemos assim, em cada caso, pelo menos algum dos deu-ses ou gnios que no o Aleatorius, e podemos reaplicar o Lema com mais duas questes, o problema se resolve. De fato, considere o primeiro caso, onde C no o Aleatorius. Perguntemos a C as se-guintes duas questes:

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    a) Se eu lhe perguntasse C o Verus?, voc responderia ja?

    b) Se eu lhe perguntasse B o Aleatorius?, voc responderia ja?

    De novo, pelo Lema, como C Verus ou Falsus, a primeira pergunta determina se C o Verus ou o Falsus, e a segunda pergunta determina se B o Aleatorius ou no, e da sabe-se quem A.

    No segundo caso, onde A no o Aleatorius, basta substituir C por A em (a) e (b).

    Dessa forma, trs questes condicionais contrafactuais bem es-colhidas resolvem o problema.

    2 Contradio,ConsistnCiaeCondiCionaisContrafaCtuais

    O interessante que os condicionais contrafactuais, que ob-tm tanta informao, parecem suspeitos para alguns filsofos; Quine achava, por exemplo, que eles no deveriam mesmo fazer parte da cincia, e deu um exemplo instigante em Quine (1974) p. 21:

    Se Bizet e Verdi tivessem sido compatriotas, Bizet seria italiano

    Isso porque Verdi era italiano, e compatriotas tm a mesma nacionalidade, mas por razes anlogas, mutatis mutandis,

    Se Bizet e Verdi tivessem sido compatriotas, Verdi seria francs

    Supondo que um francs no possa ser italiano e vice versa, o que teramos da que

    Se Bizet e Verdi tivessem sido compatriotas, Verdi seria francs e no francs

    e Se Bizet e Verdi tivessem sido compatriotas, Bizet seria italia-no e no italiano,

    e ainda, de forma mais global:

    Se Bizet e Verdi tivessem sido compatriotas, Bizet e Verdi te-riam a mesma nacionalidade e no teriam a mesma nacionalidade

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    ou seja, teramos condicionais com consequentes contraditrios partindo do fato hipottico de que Bizet e Verdi houvessem sido com-patriotas. Como sugere Sanford (2002) p. 83, no h nada na noo de compatriota que implique necessariamente uma contradio: Bizet e Verdi poderiam ser compatriotas e brasileiros, levando em conta o fato histrico de que ambas as famlias, Bizet e Verdi, consideraram imigrar para o Brasil em sua poca. A contradio no deve ser con-siderada como algo fatal, enquanto ligada ao conceito de compatrio-ta, se houver mais de um pas em questo! Dessa forma, a noo de compatriota constitui um excelente exemplo de um conceito que pode ser contingentemente classificado entre consistente ou inconsis-tente dentro da sistemtica das lgicas da inconsistncia formal (LFIs, usando o acrnimo j consagrado em ingls) investigadas e expostas detalhadamente em Carnielli et allia (2007). Como um exemplo, va-mos tomar uma simples LFI1 trivalente denominada LFI1 dada aqui atravs de sua semntica descrita por tabelas trivalentes:

    V I F V I F V I FV V I F V V I F V V V VI V I F I I I F I V I IF V V V F F F F F V I F

    ~

    V F V F V V

    I I I F I F

    F V F V F V

    Raciocinamos aqui com trs valores de verdade, V, F e I. En-quanto V e F indicam verdade e falsidade no sentido categrico, resoluto, o valor de verdade I pode ser entendido como interme-dirio, expressando um certo tipo de verdade que perfeitamente compreendido na linguagem natural quando algum diz por exemplo Raimundo culpado e no culpado querendo expressar o juzo complexo de que Raimundo culpado por um lado, mas no culpado por outro. Uma tal contradio (denotada por A A) no

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    causa nenhuma exploso dedutiva, j que no caso a culpabilidade de Raimundo pode ser compreendida como carente de consistncia (denotado por A), lido como A no consistente). O princpio fundamental das lgicas da inconsistncia formal prega, preci-samente, que somente contradies num ambiente consistente que seriam fatais, pois delas se derivaria qualquer coisa: no simplesmente ex contradictio sequitur quodlibet, mas somente de contradies consistentes segue-se qualquer coisa, ou seja: ex congruens contradictio sequitur quodlibet

    A noo de inconsistncia, denotada por A, uma abreviao para A (ou seja, a negao da consistncia) e a partir da negao e da consistncia define-se uma negao absoluta, na forma A = A A.

    Para que se tenha uma ideia das potencialidades dessa lgica, fcil ver (basta computar as tabelas-verdade) que as seguintes senten-as, por exemplo, so vlidas em LFI1:

    A lgica LFI1 uma das lgicas trivalentes paraconsistentes mais naturais e foi redescoberta vrias vezes, tendo sido inclusive apli-cada ao estudo de bases de dados inconsistentes, ver de Amo et allia (2002). Para mais detalhes conceituais e histricos ver por exemplo Carnielli (2006) e Carnielli et allia (2007).

    Voltando ao caso de Bizet e Verdi, o que se pode depreender da que compatriota uma noo consistente quando se refere a uma nica nacionalidade, e inconsistente caso contrrio. As noes de consistncia e inconsistncia de uma sentena A (denotadas, respec-

    A A A B

    1. (A B ) (( A B) (A B))

    2. (A B ) (( A B ) ( A B))

    3. (A B ) (A B)

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    tivamente, como vimos, por A e A) nada tm a ver, em princpio, com a noo de contradio (A A): a falta de consistncia decorre da relao, duvidosa nesse caso, entre compatriotas e conacionais. O que parece inelutvel que uma teoria sobre os condicionais contrafactuais no precisa excluir expresses subjuntivas simult-neas do tipo se C, ento A e se C, ento no A; essa convivn-cia s causar a trivializao dedutiva na presena de C, e se A for consistente. Uma tal fineza dedutiva, que pode perfeitamente bem ser expressa por meio de lgicas absolutamente coesas com a lgica clssica, como mais de 50 anos de investigao em lgica paracon-sistente tem cabalmente demonstrado, que permite raciocnios hipotticos refinados. Contudo, por outro lado, desconsiderar a possibilidade da paraconsistncia significa assumir limitaes ad hoc que podem levar a solues fceis demais e filosoficamente deplorveis, como veremos a seguir.

    3 ComotornarmuitomaisdifCilomaisdifCildetodososenigmas

    Rabern & Rabern (2008) argumentam que podem dar uma so-luo mais simples do que a dada na Seo 1 acima, com apenas duas questes ao invs de trs, tirando proveito dos limites da lgica: se perguntarmos a um dos gnios ou deuses Voc vai responder a esta pergunta com a palavra que diz no na sua lngua? e ele for Verus, e se ele tiver que dar uma resposta em tempo finito no h como escapar a uma contradio e sua cabea explode. A condio da obri-gatoriedade da resposta em tempo finito no exigida em Rabern & Rabern (2008), mas essencial fora dela, a resposta poderia ser indefinidamente adiada, como num processador em pane que entra em um regresso infinito.

    Por outro lado, se a pergunta for Voc vai responder a esta pergunta com a palavra que diz sim na sua lngua? endereada a Falsus, igualmente sua cabea explode perante a contradio. Dessa forma, com duas dessas questes conseguimos saber se estamos frente a Falsus, Verus ou Aleatorius, ao custo de explodir cabeas. Elabo-rando nessa direo, mas sempre usando a exploso causada pela im-

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    possibilidade de suportar a contradio, pode-se no caso geral obter a identidade de cada um com apenas duas questes convenientes, cujos detalhes no interessam aqui. O que interessa, de fato, notar que uma soluo desse tipo apela para uma viso limitada da oniscincia dos deuses ou gnios em questo: como sugerido em Randal (2002), contradies no explosivas podem ser uma novidade para os lgi-cos, mas certamente no para os telogos que em geral tm preferido a fidelidade bblica exploso como sada para a contradio. So Paulo (Corntios 1:20) j alertava para as solues fceis envolvendo a divindade e para a subverso divina aos projetos humanos: Por acaso, no tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? e exortava a cautela lembrando que (1:25) a loucura de Deus mais sbia do que os homens e a fraqueza de Deus mais forte do que os homens.

    O que isso significa que gnios ou deuses oniscientes certa-mente tm total clareza (j que pelo menos alguns lgicos e filsofos tambm a tm) de que possvel construir lgicas onde a contradito-riedade no tem como nica sada a exploso, e sua cabea no neces-sariamente explode perante uma questo simplria como Voc vai responder a esta pergunta com a palavra que diz no na sua lngua?. Para que explodisse, a pergunta teria que ser proferida de tal forma que implicasse sua prpria consistncia! No se pode ludibriar seres oniscientes com um simples truque rasteiro, e a soluo do enigma com apenas duas respostas no se aplica mais.

    J hora de os enigmas lgicos levarem honestamente em conta que a lgica no se reduz ao que se chama de lgica clssica, e de tentar de fato encarar a lgica sem o brido do classismo. O pr-prio problema original de Boolos, assim como muitos de Smullyan, ficariam muito mais interessantes sem essa restrio. O mais difcil de todos os enigmas lgicos ficaria bastante mais difcil da seguinte forma de um legtimo enigma lgico heterodoxo:

    Trs deuses (ou gnios infalveis) trivalentes A, B e C so deno-minados, em alguma ordem, Verus, Falsus e Aleatorius. Verus sempre diz a verdade (ou seja, diz, daquilo que o caso, que verdadeiro, e do que no o caso, que falso e do que intermedirio que in-

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    termedirio); Falsus sempre responde com a negao do que Verus responderia (ou seja, diz, daquilo que o caso, que falso, do que no o caso, que verdadeiro e do que intermedirio que inter-medirio; veja a tabela-verdade de ). Aleatorius porm diz que algo verdadeiro, falso ou intermedirio de uma forma completamente aleatria. Sua tarefa determinar as identidades de A, B e C com um nmero finito de perguntas do tipo verdadeiro, falso, intermedirio; cada questo deve ser colocada a exatamente um dos deuses. Os deuses entendem a sua lngua, mas respondem a todas as questes em sua lngua nativa, na qual as palavras para sim, no e indeterminado so da, j e ta, em alguma ordem. Voc no sabe qual das palavras significa verdadeiro, falso ou intermedirio.

    Com as mesmas condies de Boolos, mais o esclarecimento:

    (c**) A resposta de Aleatorius deve ser entendida como depen-dente de se jogar um dado escondido no seu crebro: se o dado cai com 1 ou 6, ele responde j, se ele cai com 2 ou 5 ele responde da, e se cai com 3 ou 4 ele responde ta.

    Operando com uma lgica trivalente, por exemplo com a lgica LFI1, qual o menor nmero de perguntas que resolve o problema? Suponhamos, para facilitar a soluo, que uma pergunta que resulta em uma contradio vai ser sempre respondida com a resposta inter-medirio, a menos que a pergunta sobre uma proposio Q seja feita junto com uma demonstrao de que Q consistente. Dessa forma, uma pergunta como Voc vai responder a esta pergunta com a palavra que diz no na sua lngua? endereada a Verus, vai ter como resposta intermedirio (a menos que a pergunta seja acompanhada de uma demonstrao de sua prpria consistncia, o que parece impossvel).

    Pode-se conjecturar sem grande esforo que so necessrias pelo menos 5 perguntas, mas a resposta deste problema desconhecida; fica como um desafio para os leitores. Contudo, o mais interessante no apenas resolver o problema, mas apresentar de forma ldica uma questo das mais instigantes relativas formalizao dos raciocnios do senso comum: de fato, como manter que a lgica dita clssica possa ser vista como paradigmtica se no consegue expressar racio-

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    cnios interessantes como por exemplo aqueles ligados contradio? No menos interessante, porm, alm de levar em conta que a lgica na Teologia no precisa, nem deve, ser restrita ao paradigma clssico, poder ter liberado o pensamento ldico dos grilhes clssicos que desnecessariamente o forjavam.

    refernCias

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