Vontade de mudar

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56 CARTA FUNDAMENTAL REPORTAGEM Vontade de mudar Escola pública em Mogi das Cruzes cria projetos que incentivam professores e melhoram habilidades dos alunos POR ISABELA MORAIS lução no Ideb em Mogi das Cruzes. De 2009 a 2011, o índice aumentou 40% e passou de 4.0 para 5.6, número superior à média do es- tado de São Paulo, de 5.4. O crescimento é 30% superior à meta estabelecida para 2011. A mudança na escola traduzida em nú- meros teve início em 2011. Nesse ano, Dé- bora assumiu a coordenação pedagógica e implementou um projeto de reestrutura- ção dos Planos de Ação, iniciativa que já se desenhava desde 2009, quando ainda era professora. A proposta era transformar os Planos de Ação, tidos como mera formali- dade, em um documento de reflexão e au- tocrítica, como uma espécie de diário do professor. Os primeiros passos foram difí- ceis. “Havia aquela ideia de que o Plano de Ação era feito só para o coordenador ver. Fui mostrando que o documento pode até mesmo estar rascunhado a lápis, em uma folha qualquer. Ele precisa ser funcional e deve auxiliar o professor”, afirma. N uma rua de paralelepípedo em Mogi das Cruzes, região me- tropolitana de São Paulo, Gio- vana da Anunciação de Sou- za inicia a aula de Matemática que preparou para sua turma de quinto ano da Escola Municipal Doutor Benedito La- porte Vieira da Motta. Na sala abafada, os 30 alunos divididos em grupos discutem e dão risada. Não há lição na lousa e a pro- fessora permanece em sua mesa. Eventual- mente, ela interrompe algum aluno exaltado, mas os deixa conversarem. “E é sempre as- sim?” “Sim, essa é nossa aula”, ela responde. O barulho se explica pelos tabuleiros, da- dos e cartelas que fazem desta a aula de Ma- temática mais aguardada da semana. Desde o início do ano letivo de 2012, professores e alunos criam, confeccionam e brincam com jogos em sala. E não é só isso. Outros dois projetos – um pedagógico e outro de leitura – têm motivado a equipe de docentes e me- lhorado o desempenho das crianças. Localizada no distrito de Nova Jundia- peba, periferia da cidade, a escola Benedito Laporte atende alunos do primeiro ao quin- to ano. São cerca de 510 crianças de uma co- munidade pobre e “itinerante”, nas palavras da coordenadora pedagógica Débora Soa- res Alves Teixeira. Muitas famílias chegam, mas pouco tempo depois se mudam. O sa- neamento básico precário e a violência são grandes problemas. As adversidades se re- fletem no alto índice de abstenções. “Temos de ir atrás da família para tentar entender por que o aluno está faltando”, diz Débora. Apesar das dificuldades, a Benedito La- porte é a escola que apresentou a maior evo- A escola Benedito Laporte cresceu 40%, no Ideb, entre 2009 e 2011, com a implantação dos projetos, apesar de estar numa região pobre, violenta e com saneamento básico precário ••CFReportagemMogi44.indd 56 27/11/12 18:11

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reportagem

Vontade de mudar Escola pública em Mogi das Cruzes cria projetos que incentivam professores e melhoram habilidades dos alunosPor I sab e l a M o r aI s

lução no Ideb em Mogi das Cruzes. De 2009 a 2011, o índice aumentou 40% e passou de 4.0 para 5.6, número superior à média do es­tado de São Paulo, de 5.4. O crescimento é 30% superior à meta estabelecida para 2011.

A mudança na escola traduzida em nú­meros teve início em 2011. Nesse ano, Dé­bora assumiu a coordenação pedagógica e implementou um projeto de reestrutura­ção dos Planos de Ação, iniciativa que já se desenhava desde 2009, quando ainda era professora. A proposta era transformar os Planos de Ação, tidos como mera formali­dade, em um documento de reflexão e au­tocrítica, como uma espécie de diário do professor. Os primeiros passos foram difí­ceis. “Havia aquela ideia de que o Plano de Ação era feito só para o coordenador ver. Fui mostrando que o documento pode até mesmo estar rascunhado a lápis, em uma folha qualquer. Ele precisa ser funcional e deve auxiliar o professor”, afirma.

Numa rua de paralelepípedo em Mogi das Cruzes, região me­tropolitana de São Paulo, Gio­vana da Anunciação de Sou­za inicia a aula de Matemática

que preparou para sua turma de quinto ano da Escola Municipal Doutor Benedito La­porte Vieira da Motta. Na sala abafada, os 30 alunos divididos em grupos discutem e dão risada. Não há lição na lousa e a pro­fessora permanece em sua mesa. Eventual­mente, ela interrompe algum aluno exaltado, mas os deixa conversarem. “E é sempre as­sim?” “Sim, essa é nossa aula”, ela responde.

O barulho se explica pelos tabuleiros, da­dos e cartelas que fazem desta a aula de Ma­temática mais aguardada da semana. Desde o início do ano letivo de 2012, professores e alunos criam, confeccionam e brincam com jogos em sala. E não é só isso. Outros dois projetos – um pedagógico e outro de leitura – têm motivado a equipe de docentes e me­lhorado o desempenho das crianças.

Localizada no distrito de Nova Jundia­peba, periferia da cidade, a escola Benedito Laporte atende alunos do primeiro ao quin­to ano. São cerca de 510 crianças de uma co­munidade pobre e “itinerante”, nas palavras da coordenadora pedagógica Débora Soa­res Alves Teixeira. Muitas famílias chegam, mas pouco tempo depois se mudam. O sa­neamento básico precário e a violência são grandes problemas. As adversidades se re­fletem no alto índice de abstenções. “Temos de ir atrás da família para tentar entender por que o aluno está faltando”, diz Débora.

Apesar das dificuldades, a Benedito La­porte é a escola que apresentou a maior evo­

A escola Benedito Laporte cresceu 40%, no Ideb, entre 2009 e 2011, com a implantação dos projetos, apesar de estar numa região pobre, violenta e com saneamento básico precário

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Hoje a prática é adotada por toda a equi­pe. Os professores do primeiro ano traçam metas mensais em grupo e a cada semana registram, individualmente, os detalhes de suas aulas. Do segundo ao quinto ano, os objetivos são definidos em conjunto quinze­nalmente. Os planos detalhados são feitos a cada semana. “Alguns usam o do cumento para desabafar e hoje já acrescentam até as fotos das atividades e comportamentos dos alunos que eles acham interessante. Isso faz do Plano de Ação um instrumento de tra­balho significativo”, comenta.

Cada docente tem sua pasta, onde guar­dam as anotações feitas à mão. Débora lê e comenta todos os registros duas vezes ao mês. “Se vejo que a atividade está dando certo, valorizo e peço para que comparti­lhem com os colegas nas reuniões.” Após a reestruturação dos Planos de Ação, a quali­dade das aulas aumentou.

Para atrair o interesse dos alunos para as aulas de Matemática, foi criado o projeto de jogos. A cada semestre, cada turma fi­

ca responsável por elaborar, problematizar e confeccionar um desafio que contemple um dos quatro eixos da disciplina: núme­ros e operações, espaço e forma, grandezas e medidas ou tratamento da informação.

Neste semestre, a sala da professora Gio­vana produziu os jogos Trilha do Tempo e Tentativa e Análise. No primeiro, o parti­cipante joga um dado e avança o número de casas no tabuleiro. Cada casa conta com uma numeração, que equivale a um cartão com uma pergunta. O oponente a lê e o jo­gador tem dez segundos para responder. Se ele errar, terá de cumprir a penalidade cor­respondente. O jogo, que trabalha o senso de tempo, traz questões como: “Mil anos equivalem a quantos milênios?”

Já o Tentativa e Análise trabalha com tratamento da informação e é jogado por duas pessoas. Um jogador anota uma se­quência de quatro cores e a mantém em se­gredo. Em um tabuleiro, dividido em du­as colunas, o oponente tenta descobrir a sé­rie colocando cartões coloridos em ordem.

Saiba maiS: Escola Municipal Doutor Benedito Laporte Vieira da Motta Telefone: (11) 4795-3244

planoS de açãoNa aula de Matemática, alunos criam jogos, progresso é registrado por todos os professores em pastas próprias

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Na outra coluna, o jogador analisa a joga­da do oponente distribuindo cartões pre­tos para os erros e brancos para os acertos. O jogador tem oito tentativas para acertar.

Nas turmas de primeiro ano, o Jogo do Caranguejo é um dos preferidos. Em gru­pos de quatro pessoas, eles jogam um da­do e realizam as instruções corresponden­tes em um tabuleiro retangular. Todos co­meçam com suas peças no centro e devem avançar ora para a direita, ora para a es­querda, de acordo com as orientações reti­radas. Vence quem alcançar primeiro uma das pontas. “O jogo trabalha o senso de di­reção, com ordens de ir para a direita ou para a esquerda. Eles já são craques e dão um banho na gente”, brinca Débora.

Os jogos são utilizados uma vez a cada se­mana em todas as turmas. As primeiras au­las são destinadas ao planejamento e à con­fecção. Depois, os alunos começam a se fa­miliarizar com as regras. A princípio, os pro­fessores interferem nos grupos, problemati­zando, mas, no final, a mediação diminui e eles dão autonomia para que os estudantes resolvam entre si eventuais problemas.

Nas aulas de Língua Portuguesa, os alu­nos tomam a frente da sala para contar his­tórias. A ideia é que o estudante mais velho seja um exemplo para os mais novos. A cada 15 dias, professores do quarto e quinto anos iniciam a escolha de uma obra a ser lida para as crianças da Educação Infantil. Na biblio­

teca, os alunos exploram diferentes livros e decidem qual deles será utilizado. Depois, os docentes realizam o estudo do texto, onde dão aos colegas a oportunidade de escutar e recontar a história, chamando a atenção pa­ra a entonação, a pontuação e outras estra­tégias de leitura em voz alta.

Entusiasmados, os alunos costumam produzir cartazes, fantoches e fantasias para o momento da leitura. “Alguns têm a iniciativa de se caracterizar como os per­sonagens, o que é muito estimulante para eles”, diz Sandra Regina Fritoli Renzi, pro­fessora do quinto ano.

No momento de contar a história, os estu­dantes são divididos em grupos e se dirigem às salas de aula do primeiro ano. Na turma de Sandra, Leandro de Souza e Guilherme Alves, ambos de 10 anos, se preparam pa­ra interpretar os personagens Coelho Pai e Coelho Filho, do livro Adivinha o quan-to Te Amo. De maquiagem pronta e orelhi­nhas coladas, eles interpretam a narrativa que seis colegas leem diante dos alunos de 5 e 6 anos. Os estudantes do segundo e ter­ceiro anos, ainda em processo de alfabetiza­ção, não realizam a contação, mas indicam livros para os alunos da Educação Infantil.

Segundo Sandra, além da melhora na fluência, o trabalho com a pontuação e a en­tonação ajudou os alunos a compreender melhor o texto. “No início, eles ficaram inse­guros, mas criaram o hábito de leitura e ho­je são modelos na escola, o que é muito im­portante para eles.” Ao término da leitura, a professora questiona os alunos do primei­ro ano: “Quando vocês crescerem, quem vai querer contar histórias?” Sentados em gru­pos de quatro, todos levantam as mãos.

As iniciativas da Benedito Laporte fo­ram reconhecidas pelo 1º Congresso de Boas Práticas em Sala de Aula, que acon­teceu em setembro na capital paulista. O evento, promovido anualmente pela ONG Parceiros da Educação, promove e moni­tora parcerias entre empresas e escolas da rede pública. Um dos critérios para a apro­vação da escola foi justamente a facilidade de os projetos serem replicados, um estí­mulo para outros educadores que também têm vontade de mudar.

Projetos nas disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática e em Pedagogia foram reconhecidas pelo 1º Congresso de Boas Práticas em Sala de Aula, promovido pela ONG Parceiros da Educação

jovenS contadoreS Os mais velhos escolhem, leem e até interpretam livros para as crianças da Educação Infantil

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