VolumeIV

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº49 - MAIO - PORTO VELHO, 2002 VOLUME IV ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ISSN 1517-5421 lathé biosa 49 TEXTUALIZAÇÃO MARIA CRISTINA PEREIRA DE SOUZA PRIMEIRA VERSÃO

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Volume IV do Primeira Versão (Maio/Agosto de 2002)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº49 - MAIO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 49

TEXTUALIZAÇÃO

MARIA CRISTINA PEREIRA DE SOUZA

PRIMEIRA VERSÃO

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Maria Cristiane Pereira De Souza TEXTUALIZAÇÃO

Aluna do curso de História - Centro de Hermenêutica do Presente – UFRO

[email protected]

De início gostaria de esclarecer alguns enganos teóricos: entrevista não é História Oral, seja ela exercida com rigores teóricos ou não. A entrevista

em si não caracteriza nenhuma teoria sobre História Oral. A História Oral também tem seus equívocos. Talvez pela composição do nome é entendida como

uma ‘história’ (disciplina) que utiliza fontes orais como complementação e/ou confirmação às fontes escritas. A História Oral, ou pelo menos certa história

oral não é sobre oralidade e nem se baseia completamente sobre a oralidade. A oralidade é um momento no caminho da apreensão, de uma sondagem do

presente. O termo sondagem, ainda provisório pois não expressa de todo a idéia que tenho desenvolvido, que é: através da apropriação da linguagem

tenciona-se compreender o presente. O que difere da história que nunca é sobre ou chega ao presente.

O termo sondagem é aplicado para assinalar o desconhecimento intencional que colocamos frente ao presente. É como se pronunciássemos: “O presente não

existe e eu vou fazê-lo a partir de minha perspectiva. Ele não é o que eu estou lendo, o que estou vendo, porque tudo está pronto.”

E aqui trazemos um fragmento do texto “Ontologia, Virtualidade, História” de http://www.unir.br/~caldas/Alberto para especificar a acepção deste presente:

“conceber o presente não como uma fina fatia de tempo, mas como dobra: múltipla dimensão onde convergem todas as vivências, todos os significados, todos os passados, deixando de lado tanto a concepção de História quanto uma idéia presentista: o passado deixa de existir como tendo acontecido e o presente escapa do seu imediato. Sem o imediato do presente, sem os discursos que o produzem, reproduzem ou capturam, não há o presente, que é somente quando desdobrado, em desdobramento, em tenção, em atualização. Não há o presente como depósito, arquivo, baú. A “forma de existência” do presente é a de virtualidade [...]. Não há a língua antes do seu exercício, somente a língua em exercício, a atualização em desdobramento que a faz ser. Virtualidade viva no viver.”

Sendo assim Roma clássica, Egito antigo, Renascimento e outros ‘fato histórico’ estão presentes enquanto linguagem (estrutura do existente) dada por uma

presença social. Não há uma Roma, um Egito antigo ou o Renascimento estagnado num passado, com uma existência física e metafísica, esperando pelo crivo dos

estudiosos, para ser descoberta, trazida a luz da ciência. Falamos e vivemos Roma. Pois Roma existe para nós apenas como criação e a recriamos na linguagem. O que

é Roma para um pigmeu? Nada. Não há significância pois não faz parte de sua estrutura de linguagens tais construções.

A História Oral parte de pressupostos diferentes da antropologia, psicologia, história, das ciências humanas. O pressuposto da História Oral é nossa existência

social, todos os processos sociais que nos apresenta como narrativa momentânea de linguagem. É a linguagem que cria nossos corpos, nossas crenças, ordena a

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sociedade. Fomos inscritos nos códigos desta cultura. Nesta percepção de linguagem constitutiva damo-nos conta da plasticidade do mundo. A História Oral não é

ciência por que a ciência é naturalizante, para esta não há linguagem como ficção.

Uma das preocupações fundamentais da História Oral é: termos o cuidado para não objetificar o ‘outro’, não naturalizarmos. Se tornarmos o ‘outro’ o objeto de

conhecimento, do pesquisador nós o estaremos reafirmando como mercadoria, limitando o ‘outro’ da ciência a uma linguagem como objeto de estudo. O momento da

entrevista requer a vigilância ético-epistemológica: não dialogarmos com nosso desejo, com os nossos motivos teóricos-metodológicos, nossas questões que possam

tolhe, retalhar, deformar o outro em sua linguagem. Com isso não queremos re-invocar a velha parcialidade, não-interferência, ao contrário, propomos assumi-la em

sua plenitude: o outro fala porque estou escutando em diálogo numa relação de entrelaçamentos, num imbricar, numa livre escolha para suas contradições. A existência

do oralista é plena de interferência num dialogismo com a existência do entrevistado. Esse ‘outro’(objeto) mirrado é confirmação dos objetivos e práticas que queremos

alcançar do conhecimento cientifico. Mesmo o ‘outro’ no seu discurso deixa aparecer em seus entremeios este outro: resultado dos fluxos discursivos ficcionais,

virtualidade social narrativa e textual, leitura que se organiza a partir dos limites do perceptível e do aceitável da sua comunidade.

Para compreendermos as especificidades de certa Historia Oral faz-se cogente distinguir os fundamentos em que esta inserida. Devemos não confundir

determinados conceitos (como faz o livro didático de História): o vivido onde homens vivenciam sentimentos e situações a partir das suas vidas e perspectivas,

situações que se esfumaçam ao serem vividas; diferencia-se do fato ou acontecimento que é sempre uma construção ficcional daquele vivido, uma perspectiva,

intertextualidade, uma abertura, sempre menos e sempre mais, sempre narrativa e ficcionalidade, sempre texto. Esta representação ocorre em processos múltiplos,

contínuo e por vezes imediato: a percepção que temos do som emitido pelo cachorro e sua relação que fazemos com o ser que chamamos de cachorro divergem entre si

e com o código que usamos para representa-lo. Deste modo a palavra cachorro, o seu desenho, não são o ser cachorro, mas todo esse sistema de representação funciona

de forma imediata e contínua para a nossa comunidade. Cada comunidade faz sua leitura do caos criando uma camada fina de significados e as redes simbólicas de

sentido que cobrem esse caos; e cada pele corresponde aos vários tipos de leituras construídas em relações. O olhar não suporta o nada: sem reconhecimento não há o

ver; sem um projetar profundo, não conseguimos ver. Toda projeção do ser é construída pelas relações. São elas que formam uma rede de significados vivenciados,

criando possibilidades de compreender e apreender o sentido do real enquanto ficcionalidade coletiva.

Mas para que serve este tipo de História Oral? Para nada. É inútil para a estrutura real e natural. É inútil para fazer rolar o eixo da mercadoria, do

sistema ideológico que garante a produção. Se muito servir quiçá seja para a aquisição da consciência pessoal num discurso crítico do conhecimento, das

formatações que compõe cada ser; que se converge na textualização: que faz fluir o outro da linguagem põe-se em dialogo em pela interpretação comigo que

sou linguagem. Outra conveniência para História Oral como conjunto teórico, (para quem necessite do utilitarismo como suporte das ações), é a de sanar a

deficiência do Marxismo e das ciências humanas que não sondam o presente apenas trabalhando com estrutura e conceito.

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Do que somos constituídos? De discurssividades. Somos fábulas (formatações) dos outros, do mundo e de nós mesmos. Somos discursos montados

pela coletividade, um algo para esconder núcleos vazios. A História Oral dentro dessa perspectiva de aquisição da consciência (consciência do projeto que

somos nós, aprendendo a ouvir a nossa voz, a sabê-la existente: sentir seu contorno, seu calor, as nuances que a faz ser o que não é, ser o que deveria ser, ser

aquilo que sonhou: compreender suas vozes e murmúrios como se tudo fosse uma grande e mesma voz: saber os sentidos e significados que é a identidade

mais intima de nós mesmos) busca aproximação com os discursos constitutivos da interioridade, da experiência, da palavra, da singularidade como um dos

caminhos necessários para se chegar ao conjunto da nossa atuação. A prática social vigente e pagamos para dizer o essencial, porque o essencial permanece

escondido, a linguagem é um jogo de esconde-esconde e não de revelações. Falamos do tempo, do jogo, da novela. Mas pagamos a psicólogos para dizer o

que realmente vale a pena ser dito. O oralista quer se colocar ao encontro do fluir a linguagem.

O assunto eleito para uma pesquisa tem função simplesmente operacional: o oralista precisa de uma ilusão básica para chegar a um local e ali iniciar

uma leitura nas redes de discursos. O outro em sua frente é discurso tecido entre escolhas de imagem, de linguagem. Não há nada além das palavras e idéias:

a fala direcionada gera ficção, falseamento. O escrito da nossa imagem (representação) é sagrado, o livro é sagrado. Platão apresentar a idéia de que o mundo

é um simulacro do mundo das idéias, do mundo perfeito. Os poetas têm baixa estima na sociedade pensada por Platão por representarem o grupo que cria e

re-cria simulacro sobre simulacro. Na caverna de Platão o simulacro é sombras, tudo é apenas sombra, penumbra, movimento de não-luz. A Textualização

nesta compreensão de realidade ficcional, sendo o passado criação literária ficcional no presente, abre-se como uma maneira de abordar o texto.

A ficcionalidade concernente à categoria do real, do humano, permeia o texto em História Oral e garante de rigor ético-filosófico e não um rigor

científico. A ética se concretiza no ouvir, deixar o outro construir o seu “eu” profundo, se metamorfoseia elaborando um corpo uma idéia, um sonho, um

desejo, satisfazendo o desejo de se dizer. A intencionalidade em História Oral esta no contar do outro, sua ilusão, como monta o fabular. A intenção esta no

fulgor do relato num auto-eco História Oral, deixando fluir nossa narrativa. O que é verdadeiro ou falso, o que está certo ou errado, ‘o que realmente

aconteceu’ na narrativa são perguntas incabíveis quando se trabalha com a concepção de realidade, humano, sociedade e todo o complexo de símbolos,

imagens como ficcionalidade. No texto “Ficção e Realidade” em http://www.unir.br/~caldas/Alberto:

“A ficcionalidade não reduz o texto ou a realidade a ser uma mentira ou uma ilusão. Deformação é a “realidade” e os “nossos textos” dizerem-se sem o saber que são objetivos-além-do-mundo ou que seu rigor garante-lhe uma realidade-verdade: enquanto um texto ficcional encontra seu devido rigor e consciência, voltado ao coletivo e às possibilidades reais de mudança e consciência, aqueles textos que são “cientificamente objetivos” desconhecem que são apenas perspectivas ideológicas, afundados num inconsciente redemoinho etnocêntrico, que, sempre que pensaram ter conquistado o mundo somente o haviam perdido por covardia, capachismo e falta de talento.”

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Existe diversidade na definição do que seja o texto final do conjunto de técnicas em História Oral: Alguns acreditam que a oralidade é documento (fitas

gravadas); outros que a oralidade escrita (a transcrição) é o documento. A idéia da textualização intenciona que oralidade e o primeiro texto (oralidade escrita) é

insuficiente para exprimir a intenção do colaborador, pois o código escrito e falado são essencialmente diferentes. A transcrição é uma integralidade de imagens

incompletas vítimas da oralidade (linguagem). Ela não é a oralidade e nem a fidelidade aos propósitos do colaborador. A transcrição é uma tentativa desta intenção. A

oralidade por sua vez não é um dizer: é um esconder que apreendemos como um dos passos que gerarão outros textos que se encaminham para a intenção.

Na utilização das técnicas de História Oral e compreensão do que é seu texto final consolidou-se várias formas de apresentação da entrevista e suas utilizações:

1. Emprega a transcrição na entrevista e a utiliza em Corte na fala do outro. Deixando que fale o “outro” para continuar o discurso do pesquisador, da ciência e do

conhecimento. Uma parte do outro que será eu mesmo falando.

2. Um texto preliminar apresenta a situação da entrevista e em seguida insere a entrevista como um jogo de perguntas e respostas.

3. A entrevista é apresentada em forma de depoimento sendo disposta uma diretriz temporal. Este tipo de texto faz certo tipo de textualização.

Nesse contexto conflituoso entre o esconde da oralidade e a intencionalidade da transcrição, a textualização estabelece uma conquista de um diálogo. O texto

definitivo, que passa por uma textualização retorna as intenções do colaborador, realizando-as. Não há uma re-escritura na operação do texto, com a textualização. Não

se re-escreve a transcrição. O que ocorre é um afloramento da intenção, um deixar fluir a narrativa escondida pela oralidade das ficções que somos criadas pela família,

pela sociedade e por nós. Nas ciências humanas: teoria e método criam a realidade. Em História Oral a textualização é a pratica teórica da conquista do que diz ser: o

colaborador; numa tentativa de fazer a individualidade, a singularidade. Assumir a ficção que o outro é a que nós somos é assumir a interferência no texto através da

textualização e da interpretação.

A interpretação é o momento mais próprio do oralista que entra em diálogo com o texto por que ali é necessário fazer fluir o texto sendo ele infinito e

polifônico requerendo uma postura que coloca em segundo plano o conhecimento e teorias. O texto é pura ficcionalidade, simbólico: não tem porta, não tem

entrada. É ponte para multiplicidade nossa no mundo. O olhar sobre a interpretação do texto é um conceito de barthesiano desenvolve em “Câmara Clara”

sobre as fotografias: o “punctum”: um ponto que atravessa você e o outro, desencadeando um encontro. O outro e você vão gerar interpretação. Um exemplo

disso: “Deus pairava sobre as águas”. Questões: quanto tempo eterno Deus permaneceu assim? Quantos mundos ele fez e desfez? Isto é o ponto no texto:

não importa, o antes e o depois textual, o que importa e o toque, o roçar que ocorre entre textos: entre você e o outro. O interprete: in-verte, sub-verte neste

jogo de sombras. Não é o trazer a luz, a perfeição, a verdade. Mas sim um per-verter de simulacros as cristalizações, as máscaras pessoais.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº50 - MAIO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 50

NOTAS SOBRE LITERATURA E ARTE

ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

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ALBERTO LINS CALDAS NOTAS SOBRE LITERATURA E ARTE

Professor de Teoria da História - Centro de Hermenêutica do Presente – UFRO

www.unir.br/~caldas/Alberto - [email protected]

"A verdadeira vida, a vida enfim descoberta e tornada clara,conseqüentemente, a única vida plenamente vivida, é a literatura." (Marcel Proust)

1 - Qualquer tipo de arte, principalmente depois do século XX, pois nele o individual pode se expressar aparentemente fora do cânone, gera uma forma de

artesão ingênuo que pensa que aquilo que faz é arte. Ao mesmo tempo cria um público ingênuo, quem admira, compra e incentiva o artesão como se ele fosse artista e

como se aquilo que ele produzisse fosse arte. Essa “dupla dinâmica” existe em todo o lugar que tenha criado algo chamado arte. É essa “dupla” quem move o “mundo

da arte”, pois no seu movimento está a reprodução do mesmo, do de sempre, do conhecido e já devorado, o que foi transformado em esquema reprodutível, aquilo que

foi apascentado e retirado do terrível que é a arte, se tornando um pastiche inofensivo. É esse pastiche inofensivo que é continuamente reproduzido como arte e é

admirado infinitas vezes pela massa dos admiradores, principalmente porque, sem o saber, esses admiradores são outra grande invenção do século XX: eles são a

Massa, um dos horrores desse século que concluiu um ciclo de crenças mas não de tolices.

Nascendo e crescendo com uma arte que parece fácil: “simples coisa de criança”: “qualquer um faz”: “é a minha forma de ver”: o artesão inicia um exercício

aleatório que ele mesmo e seu nascente público chamará de música, pintura, escultura, poesia. Como se parece com o já feito, se torna também da mesma natureza

daquilo com que se parece. Esse espectro mole torna aquilo que o fez um artista e quem o admira um conhecedor. A Massa gera sua arte extraindo da arte aquilo que a

torna terrível, a torna única, a torna a conquista de uma linguagem, de uma intensidade, a resultante de mil caminhos anteriores superados e retorcidos. A arte da massa

reproduz o visível desse resultado sem ir além, o que seria fazer arte. E isso ela não pode jamais fazer. Seu movimento é para traz e não um movimento intenso para um

além do existente. Sua carapaça é nacionalista (leia-se também regionalista) e facistoide. É, sobretudo, burra, despreparada e com a arrogância do desconhecimento.

2 - O libertino não é aquele que tem bons costumes, o que inspira bons costumes e doutrina a moral, o obediente, o pio. O libertino escreve e lê a libertinagem:

ele desdobra a libertinagem, o não querido por “fora dos panos” mas o desejado por “dentro dos panos”. O libertino pode se dar o direito [ele mata também sem se dar

ao direito, longe dos direitos] de matar o outro para o seu prazer e esse direito não emana de uma permissão, de uma concessão, de um respeito a uma ordem

constituída: o libertino constitui sua ordem e essa ordem se esgota na expectativa, no prazer e no gozo: sua vida é se libertar libertando o outro dos seus limites [os

cordeiros têm horror-pânico ao liberto-lobo que lhe devora o bolo].

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O libertino afasta, dilui, destrói os limites. Faz fluir os limites: o limite não é o texto, não é o corpo masculino, feminino (todos dois são

performances de papéis sociais travestidos de gênero natural ou cultural) ou homossexual (outra performance): o limite para o corpo não é nenhuma das

novidades velhas: formicofilia, amalgatofilia, anastemafilia, autopederastia, ecouterismo, frottage, higrofilia, misofilia, acrotomofilia, zoofilia, dendrofilia,

enema, tafefilia, necrofilia: também performances de discursos e de possibilidades de corpo, de desejo, de deslimite, de desrespeito: o limite é a melancia e o

além da melancia; o tronco da bananeira, a banana, a cenoura e o além dos vegetais, além da brecha e da aresta das pedras.

Restam todos os limites sonhados no desejo: e o texto é bem mais que um corpo: o texto é um corpo de papel e tinta ou bits ou qualquer coisa que possa

multiplicá-lo: é um corpo de desejo negativo. Para o libertino a grafia (texto e pré-texto) é porno-grafia. [Nada mais querido e desejado que a pornografia e a

obscenidade e nada mais negado e escondido [a sedução do lobo: ver e viver e desejar aquilo que vê, deseja e vive o lobo]: há sempre muitas coisas sobre o

pornográfico: ele é algo esmagado sobre outras coisas: escondido. Dos textos do mundo nenhum é mais pornográfico que aqueles da literatura: transgressão viva dentro

da linguagem que se põe a gozar, para nada, por safadeza, por pura maldade, por perversa-idade [“Quem ri quando goza/É poesia/Até quando é prosa” (Há lice? Who

is): há uma ofensa maior que escrever? Kafka assim feria o pai.]

A porno-grafia é uma linguagem trans-a-gressiva: é um constante levar ao limite, um intermitente afastar os limites, é um des-velar, mas o ve-lar do des-velar

se faz no limite e no se afastar do limite e não num simples en-cobrir. O ve-lado do porno-grafico é o mais des-velado dos en-cobertos: é o des-velado que não cessa de

se des-velar e des-ve-lar seu próprio velamento: e seu prazer, e seu gozo ad-vém deste des-cobrir.

O libertino é obsessivo e obsceno. Até mesmo a normalidade é para ele uma trans(a)gressão. Sem a trans(a)gressão não há libertinagem, não há leitura, não há

interpret-ação. Sem a pele, sem o buraco da fechadura, sem o esgar de prazer, sem a palavra rasgada em sua normalidade, não há o libertino. O libertino é aquele que

vive com a con-tr-adição, com o i-lógico, o para-doxal, o des-medido: seu fluxo é criar textos para nada, para o gozo, para des-dizer, para contra-dizer: o seu é um dis-

ser.

A Literatura está sempre longe da libertinagem. Como palavra da ordem, é palavra disciplinada. A literatura é pura libertinagem. O escritor escreve a

Literatura enquanto o libertino deixa passar a literatura, simplesmente para seu gozo e de quem quiser ouvir.

3 - Há um engano de “leitor”, ou consumidor, normalmente sem conseqüências para eles, que, naqueles que querem se tornar escritores ou poetas, é um

desastre sem medida. O erro é pensar que a obra literária nasce da mesma maneira como a encontramos, pronta para ser consumida, nas livrarias, nas bibliotecas, na

internet, enfim, no texto. Esse engano é mortal.

Uma obra nasce de várias maneiras, mas vejamos uma delas, a que me diz respeito e a da qual posso falar. Em poucos e fulminantes dias se forma,

exteriorizada, uma massa coerente, legível, insuficiente; uma teia sutil e bruta, articulada, mineral e pulsante. Não tem ainda coração, ossos, sangue, veias, cérebro,

olhos, língua e, completamente, uma alma que a diferencie do mundo e das outras almas (nossa missão será criar, simetricamente, o universo de uma alma). É uma

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coisa viva, que respira, mas não fala; geme e grita mas não pensa; tem uma forma mas não é ainda uma espécie; não pertence, só subsiste; assimétrica, exigi simetria. É

a partir dessa matéria inicial, que nos consumiu semanas de puro deleite, gozo, cansaço e alegria, que se iniciará o trabalho doloroso e gratificante de transformar

aquela substância opaca, ainda sem todas os componentes e sem o devido polimento, sem órgãos e galerias, sem multiplicidades, numa obra literária. Passamos do

momento criador, aquele onde o escritor plasma sua matéria, ao momento de um tipo de leitor, corrigindo, acrescentando, cortando segundo uma perspectiva que não

pode ser a mesma do escritor inicial. Enquanto o primeiro cria, o outro transformará essa substância, dando-lhe vida, história, alma.

Esse texto inicial, a quem o leia, pode parecer um texto normal, inteiro, pronto, mas ali está somente um feto ou um quase feto em formação. Algumas células

multiplicadas, alguns tecidos, carnes, músculos. Falta todo o resto. Enquanto a grande maioria dos literatos e poetastros provincianos, nesse momento, abortam essa

substância, essa coisa quase viva, pensando e convencendo os tolos em volta que aquilo é uma obra, o escritor começa seu prazer, sua virtude, seu deleite em criar a

obra literária [do vômito ele parte: transformar dejeto em alimento].

A quantidade e a qualidade do trabalho do escritor sobre essa massa inicial é o que vai definir seu valor literário, sua qualidade de “texto literário”. Esse

trabalho vai unir veios dispersos e não concluídos das tradições literárias, realizando-as; vai torcer o que estava simetricamente mofando e simetrizar o informe dessas

tradições; vai superar o apontado por essas tradições e inovar, como se essas mesmas tradições não existissem, vai articular os pontos futuros que realmente aquele

texto conseguiu reunir.

É a leitura de toda uma tradição literária, extensa, profunda e repetidamente, na verdade a formatação de uma filosofia, de uma estética e de uma visão de

mundo, que definira os parâmetros da ação literária na formação do texto, sendo constantemente alargada, senão será somente um fóssil inútil. A textualização, que

criara a obra a partir do “informe”, não é uma correção, um complemento, mas uma reescritura estratigráfica pondo a escritura na sua maneira de existir em devires e o

texto com um espírito que o porá livre e fora da vida do autor, da tradição, dos leitores e de uma interpretação unidimencional. O trabalho literário conquista para o

texto inicial a liberdade que somente um texto literário pode desejar. E essa liberdade de corpo maduro [passado e semente], essa plenitude diante de si mesmo e do

mundo, é o maior resultado diante daquele magro e incompleto texto inicial.

4 - A palavra silenciosa da morte, ou a palavra do Caos, o que vem exatamente a desaguar na mesma água. As palavras não significam absolutamente nada.

Não são coisas, não são significantes e muito menos almejam a estranha dignidade de serem significado. Não são mais palavras. Conquistaram a dignidade de serem

entendidas ou sentidas como um tecido muito fino que nada significa: elas deixam passar somente o múltiplo e perverso frio da existência do outro lado do tecido. Elas,

as palavras, são apenas frágeis biombos rasgados, furados, partidos, vergados. A verdadeira literatura não se faz com palavras: ela cria frágeis biombos para que o

imenso calor ou o terrível frio ou o imenso vazio ou o completamente cheio e arestoso do outro lado não nos sidere, não nos cegue, não nos degole, não nos cale, não

nos imobilize: o tipo de artista a que nos referimos é aquele que, morto para as palavras que constrói, que cria, que ensina, que repete, que estrutura, extingui as

palavras e em seu lugar põe o biombo que instaura a literatura: ele é um libertino das palavras: através dele flui o nada que nos faz sentir o nada por baixo do existir, o

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silêncio antes e depois do sentido, as vagas nulas do antes da vida e do depois da vida, os choques de virtualidades ensandecidas dentro dos sonhos: sem essa morte não

seria ele aquele que põe a palavra em seu devido lugar: o lugar nenhum de todos nós: se não fosse assim não sentiríamos por trás, antes, entre e depois dessas palavras

o mysterium tremendum et fascinans: somente sua morte e o desaparecimento material e espiritual das suas palavras é o que garante a presença, bem junto,

sempre colado e sempre distante do mysterium: os escritores e os poetas que ainda estão vivos e que trabalham palavras materializadas podem somente repetir

a palhaçada dos gêneros, dos ritmos, das musicalidades, das formas, das agradáveis e esperadas mesmas coisas: e nos alegramos com essa morte e com esse

cadáver que persevera: isso prova que nada está ainda irremediavelmente corrompido: no meio do legítimo nada, entre lama e rios de lama, cercados por mil

desertos, perfurados por mil mediocridades gritantes e sempre certas, um libertino caminha morto entre nós gerando no caos frágeis biombos que

silenciosamente sussurram que ainda estamos vivos.

5 - A arte não vem da “realidade circundante”: a arte vem das entranhas [as entranhas: o fundamento: os fluxos cristalizados de linguagem que entendemos

como mundo: os fluxos vivos que geram e formatam o existir: a maneira do “nosso” existir], e isso não é provinciano, não é de uma rua, de uma casa, de um barzinho.

Mas também não é universal: todo universal é uma forma de imperialismo, de religião devorando tudo, apagando todos os passos singulares. A arte é a resistência

dessas singularidades: a arte cria guerrilhas contra o mesquinho pensar pequeno, do querer de shopping Center, do fazer medroso, dos tristes buraquinhos de vermes

terrestres. A arte é uma guerra contra o mundo.

Todo artista é um extraterrestre, um ser nojento, infeliz, metafísico e louco para penetrar onde não é chamado. O infinito é sempre menor e o mundo não cabe

em nossa boca.

6 - A Poesia, normalmente, é reacionária e o Poeta um lambe-botas. Isso porque a Poesia é uma maneira cristalizada de dizer, de manipular palavras, sons,

musicalidades, imagens. O Poeta cria a Poesia como um bichinho de estimação, um animal treinado que sabe dar cambalhotas, algo amestrado, domesticado e sempre o

mesmo. Exercita um “gênero literário”: para ele existe Poesia e Prosa. E a Poesia existe através da estrofe, do verso e do ritmo. Por isso a Poesia é reacionária: o Poeta

é aquele que além de reverenciar o hino nacional, chorar com a bandeira e achar que o “parnasianismo” é o máximo, retém a possibilidade de fluxo multidimensional

da poesia, fazendo parte daqueles que estão sempre em volta do poder, das maneiras estereotipadas de dizer, sentir e pensar. O Poeta não consegue entender nem o

poeta nem a poesia: ele consegue somente reproduzir uma coisa asquerosa chamada Poesia (os minimamente atentos já notaram que uso o maiúsculo e o minúsculo

para dizer coisas diferentes com a mesma palavra).

E toda “província” tem em exagero essa perversão poética tanto da poesia quanto do poeta, para não falar do excesso de Poetas. Mas não é por maldade não: é

por burrice mesmo, ignorância e falta de coragem. Mas essa realidade não é hegemônica, não inclui todos, mesmo que o restante não chegue aos dedos de uma mão. E

isso é um prêmio à inteligência. O nascimento tanto da poesia quanto do poeta é um acontecimento da inteligência, uma festa, uma conquista do além da palavra e da

imagem.

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Não haver na poesia a frouxidão, o sentimentalismo besta, a ignorância patente, a mesquinhez de palavras, a não superação do mais reles cotidiano, a expressão

de uma vidinha pequeno-burguesa, a falta de consciência literária, de leitura, de vida e de tragédia. E sim o que há de mais intenso, mais compacto, mais vívido e

vivido. O que se formata ali deve está bem além das palavras.

A poesia, como a prosa, não se faz com palavras. O Poeta é que se engana com o visível, o palpável: nenhuma legítima literatura se faz com palavras ou

sentimentos ou emoções. A literatura é a criação de um hipertexto. É das múltiplas dimensões textuais compactadas num minúsculo espaço formal literário (o poema),

que a leitura deve desdobrar, quadrimensionalizar palavra, signo, sentido e significado, pondo a fluir as várias dimensões, as várias vidas, as várias literaturas, os vários

textos postos em movimento, e só assim o leitor terá o universo que os poemas podem gerar. Esse movimento de entendimento do texto é dado pela leitura.

7 - Há os ratos brancos da arte: aqueles que ficam dentro da garrafa de vidro no laboratório, comendo ração e pensando seriamente que o mundo, que aquele

espaço branco onde às vezes um ratinho branco é brancamente sacrificado por aquelas sombras também brancas, é o horizonte visível; mas há, para nosso sabor, as

ratazanas de esgoto dentro do largo mundo sem fronteiras. Essas sabem que o mundo é cruel, melancólico, perverso, ilusório, temporário, feito de esquecimento, tolice

e dor; e que é preciso correr em busca da comida, do sonho, do desejo. Os primeiros, os ratos brancos, desaparecem como vapor dentro do tempo: são os artistas que

pensam que são artistas: infestam os laboratórios com sua arrogância de salvadores da raça: desaparecem na hora da morte: não deixam nada: nada significam: todo

significado foi somente moda; mas existem as ratazanas: são os verdadeiros artistas: os que sabem que o mundo é um dejeto perigoso mas que é nesse lixo que está o

significado sem significado da sua vida: elas, as ratazanas, ou eles os artistas, que formatam nosso existir: dão-lhe sentido e álibi.

Mas enquanto o artesanato dos ratos brancos existe, é mercadoria desde o início, coisa feita para brilhar e reproduzir, a arte das ratazanas é somente aquele

líquido negro que escorre dos lixões. É uma arte que atravessa o mundo e se derrama inutilmente pela terra. E mesmo que transformem esse líquido novamente em

água cristalina e à venda como água mineral, ainda assim o seu percurso não se apaga.

8 - Alguns artistas, na verdade artesãos, passam a vida inteira engalfinhados com formas batidas, idéias repetidas; com uma atitude diante do mundo que em

nada difere da maioria dos espectadores do mundo em seu trabalho de formigas. O artista de verdade é aquele que se perde dos limites, desrespeita a tradição, inicia

uma modalidade de ser e ver o mundo. Enquanto o escritor inicia uma voz o pintor cria um novo olho. Essa a grandeza do artista: criar outro corpo dentro do corpo

normal e aceito como um verme dentro da fruta. É ele quem gerenciará esse novo e estranho corpo. E há artistas que não conseguem isso simplesmente por uma

covardia inerente ao homem comum e que em vez de ser vencida é continuamente justificada (coisa que o homem comum não faz: ele simplesmente vive como uma

ostra na pedra: somente o artesão que pensa que é artista consegue a tolice de justificar sua incapacidade em se tornar um artista).

9 - A aquele que se diz escritor e a aquele que quer ser escritor, normalmente falta paixão; falta intensidade; falta devoção aos livros e aos livros que só podem

vir através dele; falta uma luta diuturna querendo revelar a “natureza humana”: nós e os outros; falta querer criar uma obra que intensifique o mundo, a consciência, o

sonho, a percepção e a liberdade sem limites do indivíduo; falta disciplina para conquistar o desejado; falta uma crença raivosa, indignada, rebelada contra pai, mãe,

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família, pátria, bandeiras, deus, sentidos e significados; falta criar seus próprios padrões formando seu gosto; falta criar e exercer uma consciência crítica; falta uma

loucura intensa e ininterrupta; falta ler profundamente; falta o isolamento silencioso que isso exige e que filhos, mulheres, pais e amigos não entendem e destroem

como vermes a um pedaço de carne, sempre dando “boas razões”: nada mais perigoso para um escritor do que a família, o círculo medíocre dos amigos e o entorno do

mundo do trabalho e do laser; falta, mas esse saber é inútil. Quase todos os que escrevem são apenas covardes da emoção, covardes da escrita, covardes da loucura,

covardes da memória, covardes da missão, covardes da palavra, covardes da vida, covardes do ritmo, covardes do sentido, covardes do sentimento, covardes do

silêncio, covardes do tempo, covardes da visão.

Como o chamado escritor pode se abster de tal aventura, a aventura real da literatura, sempre pondo sua vidinha de “classe média”, suburbana e nacional “em

texto”? Como não sentir profundamente que a verdadeira literatura engrandece a vida e essa literaturazinha brasileira de terceira categoria que sequer diz ou pode dizer

sua alminha provinciana ou sua regiãozinha, são pastiches medrosos que somente envergonham quem a faz e quem um dia por acaso encontre besteira tão

desnecessária.

Como não sentir a literatura como um conhecimento, e o mais perfeito mecanismo de autoconhecimento, capaz de nos tornar mais vigilantes em relação a nós

mesmos, ativando nossa percepção para o múltiplo dos mundos entre nós e amplificando a consciência? Quanto talento desperdiçado, quanta vida falsa fingindo ser

uma coisa que não é. Algo que reúne todas as ironias, todos os paradoxos, todos os sentidos é transformado pelo escritor de província em uma coisinha, em um

bichinho morto de pelúcia, um joguinho adolescente que passará como um comichão reprodutivo. O amplo prisma giratório da literatura vira um espelhinho de

motorista de caminhão. A fundamental ambivalência querendo a todo custo atingir a plenitude expressiva, que é o mesmo que atingir a vida em sua alma, o sonho em

sua matéria, a matéria em sua virtualidade, transforma-se, na mão dos “poetas” e “escritores” de província, num ridículo balbucio de doentes mentais covardes. A

impossibilidade de dizer o máximo, que todo dia nos dilacera, em vez de ser combatida, é alimentada: quanto mais escrevem esses escrevinhadores menos eles dizem,

menos eles constroem, menos eles se tornam ou tornam alguém melhor, e mais eles publicam.

A literatura, que é o incansável combate entre textos, vindos de uma leitura encarniçada, onívora e carnívora, precisa dessa leitura para viver: mas o escritor

normalmente é um charlatão: ele não lê, ele não lê completamente, ele lê com um vagar medroso, com uma humildade que destrói sua leitura no nascedouro. A

literatura como a solitária, complexa e arriscada experiência da singularidade, essencialmente libertária e libertina gerando portais que facilitam a articulação entre

tempos, lugares, experiências e vidas, se torna uma maneira de ganhar prestígio entre os tolos, uma maneira de mostrar inteligência, talento e cultura para idiotas que

respeitam cultura, talento e inteligência sem saberem o que é inteligência, talento e cultura: burros enganando burros, antas guiando antas e todos somente com um

interesse: mais capim! Sem se tornar um inventor da leitura e da escrita o sujeito não se transforma em escritor: não basta escrever e publicar.

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Se nos tornamos escritores de verdade não estamos livres para desistir como pensam sempre os tolos que se dizem escritores: não há como fugir de uma

ambição vital, de uma fome que devora o mundo, o universo e não se satisfaz: para o escritor todo limite é um desafio. E com isso ele alarga a vida, o sonho e a revolta

contra o insuportável e humilhante peso de existir.

Aqueles poucos que realmente estão escrevendo algo que se pode chamar literatura não escreve numa “região”, nem em português, nem mesmo num brasil

limitante, enfadonho e ridículo: escreve na literatura, isto é, num rastro de nada, numa ausência. Os outros são escrivães e literatos que publicam coisas ao meio do

caminho, incompletas, tragicamente abortadas, onde se pode vê claramente e sem mistério algum, todos os tolos mecanismos literários, os quase métodos, as parcas

leituras, a fragilidade do mergulho e da reflexão.

10 - É mais fácil compreender a literatura de Dante, de Proust, de Joyce ou de Rosas do que a chamada “literatura provinciana”. É uma coisa impressionante! É

um composto bastante complexo onde encontramos sempre as ingenuidades da boa fé e da ignorância; a vontade adestrada e covarde do mundo sonhando ser mais; um

destempero técnico, metodológico e teórico; uma crença piegas em tudo aquilo que é já feito, já pensado, já vivido, já escrito; a admiração, por um círculo de poetas e

escritores do “Estado”, da “Nação”, do “Povo”, da “Língua”, da “Literatura”; um fundamento e uma manifestação facistóide por aderir a bandeiras, hinos, emblemas,

símbolos e amizades que os tomam sempre frágeis e alegres puxa-sacos, inábeis e espertas presas dos poderes dos estados e municípios: assim todos se completam;

uma quase-escrita que é um verdadeiro monstro numa feira de variedades: não se diz ali nada mais que o senso comum; a fezinha ridícula e domingueira; o corpinho

adolescente e seus probleminhas; rimas das mais chulas; frases de inacreditável primarismo; escrita de “segundo grau” num conjunto que não passaria por uma

professorinha primária mais atenta ao seu estropiado machadinho; artificialismo levado ao esquematismo de periferia; nada tem consistência ou é inteiriço ou luta pela

unidade; nenhuma análise ou interpretação convincente: imitações rasteiras; ali não se sente a missão de escrever; extrema desespiritualização; capacidade zero de

reviver qualquer “realidade”; não há nenhuma convicção especial transparecendo; tudo está fora dos domínios da sensibilidade: são róis de lavadeira, recados de

empregada adomesticada; não há amor, prazer ou paixão desvairada; nenhum elo se prende ao outro com clareza ou densidade; sem “unidade de composição”,

estrutura ou ritmo; disformidade, dessimetria e imotivação; sem estilo, o prosaico é levado ao mais chulo estremo; sem concepção estética ou filosófica não há música;

sem ossos, não há músculo, carne ou pele.

Para esses escritores, a literatura é igual a sua fezinha dominical; igual ao mundinho; igual ao seu joguinho de futebol e aos fogos que solta depois; igual ao

pãozinho e seu gostinho de sempre; igualzinho ao sexozinho com a esposa, a prostituta ou a namoradinha: a mesma monotonia ridícula dos que não ousam e pensam

ousar, dos que não ferem mas pensam ferir, dos que não violam mas pensam violar; igual às continhas de todo mês; igual ao seu salário conformado com a exploração;

igual a tudo que o cerca e aos de seus pobres desejos ainda não testados pelo universo de nenhuma libertinagem séria ou palhaça. É sempre um sonho de adolescente

integrado, aquele que não degolou o pai e não violentou a mãe, picando-a depois como a um tubérculo; que não incendiou a casa e assassinou os amigos e os irmãos;

que não lutou pelo mais, pelo não, pelo corte, pelo além que caracteriza qualquer aspecto daquilo que pode ser chamado dissolução, mas que na verdade é a literatura:

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um traço de nada, de revolta, de sonho estranho e perverso, algo que começa depois que tudo termina, sempre em outro lugar. Mas aqueles que acreditam naquilo que

todos acreditam não podem criar algo que não seja um objeto, uma coisa, uma forma, um conteúdo, uma mensagem, um significado: a literatura é o avesso dessa

coisificação: é a criação de um não-corpo, um não-objeto, uma não-forma, um não-conteúdo, de uma não-mensagem, de um não-significado, de um fluir sentido por

dentro ao fluir. E isso não é coisa moderna: a lição para vocês foi uma derrota: o moderno é somente quando o que sempre se fez passou a gritar como fazia: não sejam

anti-modernos: toda literatura sempre, mesmo quando não existia ou se considerava literatura, foi sempre exatamente igual àquela que os modernos disseram fazer:

Joyce e Dante, Rosas e Vieira, Rubião e Homero, Graciliano e Rimbaud são apenas aspectos de uma mesma raiva, de uma mesma paixão, de uma mesma loucura, de

uma mesma exasperação, de uma mesma infâmia escorrendo feito palavra, sem criar instituição, poder, imobilidade ou fluxo. Esqueçam língua, pátria, corpo ou razão:

e virá a literatura como uma doença infecciosa: e, felizes, morram nela!

11 - Como saber se um texto tem ou não “valor literário”? Como saber se um texto é realmente literário ou não passa de uma impostura? A gramática

(normalmente o gramaticamente “correto” carrega uma boa dose de servilismo!) não pode ser aquilo que vai decidir sobre o “valor literário”: a gramática é um

ordenamento de poder, um círculo do já feito, do conhecido e reconhecido: a literatura vai sempre além desse círculo e seu limite; a língua também não pode decidir: a

literatura é indiferente à língua: ela é somente um dos seus suportes: não importa em qual língua a virtualidade literária se configure: ela não marca essa virtualidade; a

região também em nada afeta o nascimento ou florescimento de uma obra, podendo, quando muito, fazê-la definhar por enquadrá-la a um pequeno significado

vivencial, a um comodismo provinciano; uma tradição também não pode servir de parâmetro literário, pois a literatura sempre se fez a um passo depois das tradições,

apesar de servir-se delas como nossa fome de um pedaço de carne; gênero também não interessa: a grande literatura não pertence a nenhum gênero específico: não

existe literatura negra ou branca, heterossexual ou homossexual, macho ou fêmea, moral ou imoral, infantil ou adulta, desenvolvida ou subdesenvolvida, prosa ou

verso: o que há é literatura ou não literatura [parece que ninguém mais sabe o que é literatura e qualquer um que escreve é chamado de escritor]; a história da literatura

também não pode contribuir: as obras nascem sempre antes das outras obras de uma história: a origem de uma verdadeira obra literária é sempre anterior as suas

“influências”; a economia também não resolve a questão: as classes sociais, a riqueza, o capital, a exploração, a mais valia, o roubo, o poder, a miséria, a história, os

partidos, a política, o governo: nada disso cria ou impede a criação de uma grande literatura ou de uma grande obra: o “valor literário” não é uma conseqüência, em

“última instância”, das determinantes econômicas. Então como saber se uma obra tem valor literário ou não?

Todas as obras de real valor literário possuem algo em comum: todas elas partem, sempre com um espírito de negação, de uma filosofia (F), de uma estética (E)

e de uma visão de mundo (V) e constituem, em seus labirintos, uma visão de mundo própria, uma outra filosofia e uma nova estética: mas esses elementos só servem

naquele universo, naquelas obras específicas: dali não nascem mais obras, a não ser como pastiches, reproduções de segunda mão, como em quase todas as obras

provincianas: são reproduções simplificadas dos esquemas, das visões, das facilidades visíveis de uma obra, daqueles elementos que o poder difunde como qualidade e

valor.

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Mas ainda mantemos o mesmo problema: como saber se um texto tem ou não “valor literário”? É um longo caminho. Toda obra realmente literária gera uma

rede de galerias onde se formatam em movimento sua FEV: cria-se uma espécie de “virtualidade singular” e uma forma de “virtualidade social”. Há um intrincado

virtual que é preciso levar em conta antes das análises do leitor, da língua, do estilo, dos discursos, dos gêneros, das formas, das estruturas, das funções. Precisamos,

enquanto hermeneutas da obra literária, pensar sobre a FEV que propõe. É a partir desses componentes (FEV) que poderemos estabelecer se uma obra, em seus

fundamentos, é somente uma reprodução sem valor, porquê mil vezes dita e dita mil vezes melhor, de uma “escola” qualquer, de um “autor” qualquer.

Uma “obra limite” sem história, sem personagem, sem lugar, sem perspectiva, sem narrador, sem temporalidade pode estruturar uma FEV inigualável. Sua

significância nascerá da importância não do estilo, não da gramática, não da tradição, não da língua, não do gênero mas da sua específica FEV. Esse é um começo

porque nenhuma obra literária se resume a sua FEV. Mas é dela que retira toda a sua força, todo a multiplicidade que devora as outras obras e exige a multiplicação da

leitura e da interpretação; é dela que nasce nossa admiração, nosso amor, nosso espanto, nossa busca, nosso desejo, nosso olhar, nossa leitura. Fazer literatura não é

somente escrever, contar uma história, construir um estilo: é criar uma FEV, é constitui-la com toda a nossa singularidade, com toda a sinceridade, coragem e unicidade

que nos for possível. Como essa FEV pôs ao seu serviço um estilo, uma gramática, uma tradição, um gênero, uma história, uma língua é a nossa grande questão. Uma

virtualidade singular que, para existir, precisa de uma outra voz, uma outra forma, uma outra perspectiva.

Daí porque é impossível para o artista ser “normal” e escrever (ou pintar ou esculpir ou criar qualquer coisa realmente em arte). Gerar filhotes, obedecer à

família, entender o governo, participar de um partido político, sentir-se honrado por estar trabalhando ou estudando, amar pai e mãe, amar uma mulher ou à mulher

sobre todas as coisas, defender a pátria, chorar de emoção com a bandeira, respeitar alguma coisa, gostar daquilo que todo mundo gosta, assistir televisão, gostar de

programas de auditório e novelas, ler os autores da moda, ler os autores respeitados pela “escola” e pela “academia”, desejar aquilo que todo mundo deseja e tolices do

gênero são sintomas de uma quase FEV massificada que está há muito estabelecida, servindo somente a um mundo ridículo e cada vez mais pobre e fascista. Um

escritor é aquele que, antes de tudo e depois de tudo, cria uma FEV própria, singular, como maneira de ver, sentir, dialogar, desejar e sonhar, viver e morrer.

Aqui resolvemos a nossa questão? Não! Para desalinharmos um bom pedaço desses fios é realmente preciso muito caminho e muita tinta. Aqui é somente um

dos mil começos de algo sem começo que tem seu fim exatamente em todos os possíveis começos.

12 - Para a grande maioria dos leitores, e até mesmo dos críticos, existe uma só e mesma e grande Literatura. Essa grande Literatura se distingue por ser feita

por línguas diferentes, povos diferentes, costumes e culturas diferentes. É a multidão dos que não sabem que existe também uma literatura. São duas: uma, a Literatura,

se divide por gêneros, é feita em prosa ou verso, pertence a uma língua, a uma cultura, tem escritores, pode ser estudada calmamente por professores de letras e de

línguas; é escrita por homens, mulheres ou homossexuais; negros ou brancos ou amarelos ou vermelhos; jovens ou velhos; doentes ou sãos; de ilhas, continentes,

cidades ou campos: nasce de um gênero, de uma cor, de um lugar: uma máscara sobre uma máscara sobre uma máscara, e se plasma numa máscara sem face por

dentro.

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A chamada “Literatura Brasileira” (católica demais, cristã em exagero, subserviente em excesso, filosófica e esteticamente sempre burra e atrasada demais,

cavalarmente capacho de governos e poderes!) é quase somente Literatura: palavras numa língua, costumes numa cultura, referência de um mundo pré-determinado,

contação de história: é algo que não voa ou tenta voar como um imenso avestruz afoito mas tímido demais para ver que para voar é preciso algo mais que olhos

vendados, vergonha e covardia. Falta intensidade.

Mas a nossa literatura existe. Não vivemos somente de Literatura. O Brasil produziu quase inteiramente Literatura: aquela que é lida nas escolas, aquela que é

filmada, aquela que vende, aquela que é indicada, aquela que diz “a nossa alma”. Coisinha do espírito dos pobres, dos covardes, dos inferiores (já não há, entre vocês

brasileiros, um “complexo de inferioridade”, mas inferioridade mesmo, gritante, dolorosa, estridente). E até mesmo a literatura de vocês é fraquinha, é covardezinha, é

quase um espelhinho, quase um puxadinho, quase boazinha, quase interessantezinha: dá até uma peninha, uma vontadezinha de acarinhar o pelamezinho do

animalzinho tristinho.

Mas qual a diferença entre a Literatura e a literatura? Vejamos. Porque não é uma questão de língua, de “momento histórico”, de cultura, de amadurecimento

ou tolices do gênero. Vejamos.

A Literatura é um espelho; por trás desse espelho só tem a parede: é reflexo, é superfície pintada: nele Alice não entra, não penetra e não é penetrada conforme

seu íntimo mais desejo. A literatura não reflete, não representa, não reproduz: ela não é um espelho, não é espelho de nada, se parece espelhar é somente ilusão. A

literatura é espelhamento, isto é, além de refletir o mundo circundante, como fantasmas em claro escuro, faz pressentir que algo se move por traz, algo vive e se agita

além da nossa imagem e das imagens do mundo: multiplica e faz se mover. Além das palavras: a literatura não escreve com palavras: elas são apenas um artifício para

semi-esconder (ou nos proteger?) aquilo que se move do outro lado, ou aquilo que existe do outro lado, pelo avesso. A literatura é fazer sentir aquilo que se move do

outro lado. Enquanto a Literatura é somente uma história contada com palavras. Alice atravessa o espelhamento que ali é chamado de espelho por falta de um outro

nome. Mas o que se move atrás e além do espelhamento não é aquele mundo de Alice, não é um conto de fadas: o espelhamento não é atravessável: do outro lado

podemos apenas pressentir existência, movimento, algo que escuta, algo que respira, algo que deseja e sonha: e esse algo, estranhamente, diz respeito intimamente a

cada um que chegue perto.

A literatura não diz o visível, o institucionalizado, o já recortado, o social, como a Literatura; diz aquele fluxo discursivo vivencial que está entre o caos e a

Virtualidade. A literatura diz aquilo que ainda não foi dominado, dito ou que pode ser dito: um fluxo que atravessa livremente tanto o informe do caos quanto a

essência e a vivacidade do formatado. Por isso a literatura nos toca tão intensamente, tão profundamente, por isso ela não nos conta uma história: ela somente nos

aproxima cada vez mais dessa coisa do outro lado, dessa coisa que corre entre nós, dessa coisa que somente em momentos extremos e intensos da vida, momentos

perversos e estranhos, nos aparece com sua face sem palavras.

O escritor é o trabalhador da Literatura enquanto o libertino é aquele que faz deslizar intensamente a literatura.

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13 - Como distinguir o charlatão (não o picareta - que é o charlatão que sabe que é charlatão) das letras? Como saber que um poeta, um contista, um romancista

é realmente aquilo que ele e alguns ao seu redor dizem que ele é? Como separar o verdadeiro artista daquele que é apenas uma cópia deformada e simplória? Como

saber se aquilo ali escrito é realmente literatura e não uma reprodução ridícula do existente? Normalmente não podemos saber, mas uma coisa é fundamental para uma

consciência literária: ter se preparado a vida inteira, intensa e obsessivamente, para a escrita e seu mundo. Mas como saber que esse mundo criado por nós é realmente

um mundo legitimamente literário? É preciso leitura e é essa leitura que nos dará um dos parâmetros para a compreensão e o valor daquilo que fazemos. Por isso, aqui

darei uma lista de autores que, se lidos, serão uma garantia de que estamos no caminho certo, de que sabemos o que estamos fazendo, de que não somos charlatões ou

picaretas. Não é uma lista definitiva ou que deva ser seguida, mas que sem ela ter sido devorada, assimilada e superada o escritor não estará escrevendo coisa com

coisa, ou somente se enganando e enganando os outros mais ignorantes que ele. Estará repetindo burramente.

Não é um paideuma, uma lista dos poucos essenciais, mas uma lista de formação, isto é, sem ela o escritor não possuirá uma formação básica para constituir

seu texto e ter consciência literária suficiente para saber a direção da sua escrita, o valor inicial da sua escritura (o tempo do Éden passou!).

Vejamos nossa lista mínima de autores, e alguns livros: Gilgames, Bíblia, As Mil e uma Noites, Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes, Platão,

Ovídio, Petrônio, Agostinho, Dante, Boccaccio, Casanova, Pirandello, Ungaretti, Buzzati, Pavese, Svevo, Guareschi, Calvino, Quevedo, Góngora, Cervantes, Lope de

Vega, Calderon, Lorca, Borges, Cabrera Infante, Neruda, Paz, Lezama, Cortazar, Marques, Chaucer, Shakespeare, Donne, Milton, Swift, Defoe, Fielding, Sterne,

Blake, Dickens, Lewis Carroll, Wilde, Stevenson, Dickinson, Whitman, Melville, Poe, Henry James, Twain, Yeats, Shaw, Hardy, Conrad, D.H. Lawrence, Virginia

Woolf, Joyce, Beckett, Auden, Pinter, Orwell, Pound, Eliot, O’Neill, Fitzgerald, Faulkner, Hemingway, Steinbeck, Bellow, Pynchon, Singer, Villon, Montaigne,

Rabelais, La Fontaine, Moliere, Pascal, Rousseau, Voltaire, Diderot, Sade, Balzac, Hugo, Nerval, Stendhal, Flaubert, Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud,

Lautréamont, Proust, Gide, Céline, Genet, Jarry, Sartre, Camus, Malraux, Ionesco, Artaud, Duras, Yourcenar, Erasmo, Goethe, Schiller, Hölderlin, Hoffmann,

Büchner, Heine, Nietzsche, Rilke, Broch, Kafka, Brecht, Mann, Döblin, Musil, Bernhard, Canetti, Dürrenmatt, Ibsen, Strindberg, Kundera, Puchkin, Gogol,

Turquenev, Dostoievski, Tolstoi, Chekov, Maiakovsky, Kavafis, Seferis, Kazantzakis, Vieira, Eça, Pessoa, Saramago, Pompéia, Machado de Assis, Euclides, Lima

Barreto, Graciliano, Drummond, Rosa, Rubião, Suassuna, Nava.

Essa lista não é exaustiva, principalmente porque é “ocidental” (nem é para ser seguida ou admirada, mas superada pela leitura e com uma obra pessoal), mas

pode servir de parâmetro mínimo para o charlatão saber (se não leu ou leu de raspão ou somente leu alguns) que é um charlatão, podendo criar vergonha e ir ler ou

continuar na senda do crime de burrice militante; ou ainda se transformar em picareta. Ter lido esta lista mínima nos capacita, minimamente, a responder as perguntas

iniciais.

Ainda se acredita numa “literatura parnasiana”, numa poesia “vinda do coração e das emoções”, numa expressão literária “dos sentimentos e da vida”, numa

arte que “vem de dentro”. É de uma ingenuidade, de uma tolice, de uma falta de vergonha sem limites. O resultado é sempre um puxadinho ridículo, uma coisinha sem

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razão de existir: tudo de um provincianismo doloroso, de uma adolescência inescapável. No entanto essa coisa informe, fraca e pobre é publicada a todo instante nos

jornais, em livros, em coletâneas seja pelo próprio autor seja pela proximidade com o poder, que o defende como a um cão caseiro.

Acreditam, os pobres escritores desta terra, que para se tornar um escritor e escrever literatura basta sentar e escrever; basta se acreditar alfabetizado;

basta um comichãozinho entre um filho e um horário de trabalho; literaturas dos feriados e fins de semana; basta ter amigos no poder para publicar suas

asneiras; basta ter lido um Bilacquinho, um Montelozinho, um Coelhinho, alguma seleta secundarista, jornais e algumas raras revistinhas, ou não ter lido

ninguém (para não afetar o “estilo” da cavalgadura). Não! A literatura é muito mais difícil, muito mais complexa, muito mais profunda que qualquer curso

universitário. E além da lista de escritores obrigatórios existe toda uma longa bibliografia teórica sobre literatura que é absolutamente necessária.

Um escritor não se faz com simples amadorismo, com leituras de segunda mão, com pouquíssima leitura, com uma vida integrada no mundo como uma barata

ao esgoto. Não! A literatura é outra coisa.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº51 - MAIO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 51

EFEITOS DO PERFIL MOTIVACIONAL

SOBRE O DESEMPENHO NO TRABALHO DE

EQUIPES DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE

SAÚDE DA CIDADE DE PORTO VELHO-

RONDÔNIA-BRASIL INFORME DE

PILOTAGEM

CLAUDEMIR LEITE DA SILVA

PRIMEIRA VERSÃO

20

Claudemir Leite da Silva

[email protected]

Professor do Departamento de Psicologia - UFRO

EFEITOS DO PERFIL MOTIVACIONAL SOBRE O DESEMPENHO NO TRABALHO DE EQUIPES

DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE DA CIDADE DE PORTO VELHO-RONDÔNIA-BRASIL

INFORME DE PILOTAGEM

Muitos são os fatores que podem afetar o bom desempenho no trabalho, entre eles temos o estilo de direção, o sistema de comunicação entre dirigente e subordinado, o tipo de liderança exercido pelos gerentes ou possíveis líderes e os fatores motivacionais que impulsionam os trabalhadores a terem melhor ou pior desempenho no trabalho para assim satisfazerem direta ou indiretamente suas necessidades.

Um dos assuntos que tem impulsionado grande quantidade de investimentos em pesquisas na área Organizacional desde o início do século XX é “os motivos que levam as pessoas a agirem”.

Não é possível compreender o comportamento das pessoas sem um mínimo de conhecimento sobre o que motiva seu comportamento.

Existem diferenças motivacionais entre as pessoas. É tão importante esse fato que as políticas de uma empresa, os incentivos, o desenho do posto de trabalho, o desenho organizacional e tantos outros mecanismos motivacionais empregados pelas empresas, não alcançam produzir efeitos massivos e uniformes nas preferências, persistência ou vigor de seu comportamento ocupacional. Há razão essencial que as condições motivacionais internas de uma pessoa podem ser diferentes das de outra. Também essas condições internas se modificam com a experiência, a idade e outras circunstâncias. As condições externas tampouco são idênticas para pessoas que trabalham em diferentes grupos ou ambientes laborais, e tanto as primeiras como as segundas incidem nas realidades motivacionais internas dos indivíduos. Se as condições motivacionais internas são mutáveis e também o são as externas e, ademais, uma inter-atua com a outra para afetar as preferências, persistência e vigor do comportamento devemos esperar que as particularidades motivacionais das pessoas sejam diferentes entre indivíduos e em uma mesma pessoa em diferentes circunstâncias.

Para Simon (1957) o comportamento das pessoas na organização é intencional, está orientado para obtenção de metas ou resultados. Por conseguinte, na medida em que as organizações proporcionam possibilidades diretas ou indiretas de obter metas pessoais, nessa mesma medida as pessoas estarão dispostas a considerar sua vinculação como membro. Por sua participação na atividade organizacional, o indivíduo recebe benefícios ou retribuições que lhe interessam, como salário, bom trato, promoção, prestígio e a satisfação de várias necessidades (Toro, 1982). Sua participação ou contribuição consiste em dedicar a empresa tempo e esforço, aceitar que as pessoas investidas de autoridade definam e limitem seu comportamento, ou seja, aceitar as relações de autoridade, dentro de certos limites.

Segundo Toro(1992) o comportamento em geral e o desempenho ocupacional em particular se entendem como um efeito ou condição conseqüente. O comportamento é o efeito de dois tipos de agentes causais denominados condições antecedentes e condições intervenientes. São condições antecedentes a causa ou pré-requisitos da ação, tais como a saciedade e os estímulos ou reforços positivos ou negativos. São condições intervenientes, a habilidade ou capacidade da pessoa, seu conhecimento e experiência, sua orientação ao trabalho, suas expectativas e sua motivação. Estes são processos internos que têm um papel mediador na determinação dos comportamentos. Um desempenho específico ou um comportamento particular constitui a condição conseqüente ou efeito.

ISSN 1517 - 5421 21

A relação entre desempenho e esforço para realizar uma ação é impactada por um conjunto de condições intervenientes cujo efeito na relação consiste em potenciar e em precipitar a ação. A ação a sua vez é um instrumento para obter resultados que permitem a pessoa obter satisfação, recobrar um equilíbrio que se havia alterado ou evitar um efeito desagradável ou nocivo. Este conjunto de fatores ou condições intervenientes está conformado por Condições Motivacionais Internas. Se deve ter em conta que estas condições internas se estruturam, se sustêm ou se modificam pela ação dos outros fatores que determinam a personalidade e das condições sociais, culturais e demográficas das que participa o indivíduo.

A relação entre desempenho e resultado é afetada por diversas variáveis e circunstâncias, embora se destacam um conjunto de variáveis antecedentes do contexto, que fazem parte do que se denomina como Condições Motivacionais Externas, estas condições são em sua vez a expressão concreta e fatual das distintas dimensões do posto de trabalho em que está localizada a pessoa. As Condições Motivacionais Externas, tal como são percebidas e experimentadas pelo indivíduo e tal como se associam ao desempenho, podem ser mais ou menos contingentes com ele. Deste modo se convertem em esforço e recompensa por sua ação (desempenho) e podem chegar a constituir-se, também em efeitos ou resultados de alto interesse para o indivíduo ainda que para a organização do trabalho tenham pouco ou nenhum interesse. Uma pessoa pode aumentar a quantidade de seu desempenho, por exemplo, dado que dentro das condições de seu posto de trabalho está previsto o incremento da retribuição econômica sem isto ocorrer.

O interesse por esse tema e especialmente pela identificação dos fatores que exercem influências sobre o rendimento de trabalhadores é derivado de uma série de estudos que realizo e que têm como objetivos, levantar, identificar e classificar os padrões de identidade da população atual da região Norte do Brasil, especificamente do estado de Rondônia que apresenta um desenvolvimento global bastante diferenciado de outras regiões do Brasil, e para isso é necessário empregar instrumentos padronizados para esta realidade.

MÉTODO

Equipes: As equipes sorteadas são amostras aleatórias de tamanhos proporcionais a dois estratos não superpostos (com alto nível de desempenho e com baixo nível de desempenho) de uma população de equipes de enfermagem prestadoras de serviços de saúde da cidade de Porto Velho-Rondônia-Brasil, sendo do primeiro estrato de um total de 09 equipes foram sorteadas 02 para a amostra, e do segundo estrato de um total de 10 equipes foram sorteadas 03 equipes, com as seguintes estruturas

Equipe 1= 06 sujeitos; Equipe 2= 05 sujeitos; Equipe 3= 06 sujeitos;

Equipe 4= 05 sujeitos; Equipe 5= 08 sujeitos

As comparações realizadas foram as seguintes: Equipes: (01-03); (01-04); (01-05); (02-03); (02-04); (02-05);

Procedimentos e Instrumentos: Levantou-se um total de 23 equipes de enfermagem, prestadoras de serviços de saúde em Porto Velho-Rondônia-Brasil, que preencheram os seguintes requisitos: integrantes das equipes com o ensino fundamental completo e com 04 meses, no mínimo, de tempo de permanência no grupo; que a equipe desenvolva suas atividades em condições de interação constante entre seus membros, de maneira que as diferentes atividades que executem requeiram uma integração por parte de todos seus membros para alcançar o objetivo final; que apresentem similares situações materiais de funcionamento, de organização e de hierarquia; e que cada equipe tenha no mínimo 04 sujeitos;

1. Realizou-se a avaliação de desempenho e após, as equipes foram classificadas em níveis de desempenho (1ª-alto desempenho; 23ª-baixo desempenho);

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2. Aplicou-se em cada membro das equipes um questionário para levantamento das variáveis de controle e depois, realizou-se comparações de duas em duas equipes,

utilizando-se da Prova de Proporção para analisar as diferenças significativas das variáveis de controle. Ao final, de 132 comparações possíveis, encontramos 90 que

não apresentavam diferenças significativas, sendo: 9 equipes com alto nível de desempenho com 10 equipes com baixo nível de desempenho;

3. Para esta pilotagem foram sorteadas duas (02) equipes com alto nível de desempenho (1; 2) e três (03) equipes com baixo nível de desempenho (3; 4; 5) perfazendo

um total de seis (06) comparações;

4. Foi aplicado o QMT em todos os membros da amostra e após a qualificação dos dados por equipe foram aplicadas a “Prova da Mediana” e a “Prova de Fisher” para

analisar se os fatores apresentavam diferenças significativas.

Os três instrumentos utilizados foram:

1º - O Questionário de Avaliação de Desempenho com os respectivos indicadores que foram avaliados foi montado após um estudo criterioso utilizando os

Organogramas e Fluxogramas das empresas que trabalhavam as equipes, o Código Brasileiro de Ocupações e outros questionários utilizados por órgãos do Governo

Federal, assim como, também, tabelas com relações de cargos e seus indicadores.

A amostra a ser utilizada de pessoas que responderiam o questionário de avaliação de desempenho das equipes foi estabelecida em não menos que 50 pacientes

internados.

Para a composição do questionário de avaliação da eficiência (desempenho profissional) das equipes de enfermagem os indicadores estabelecidos foram: 1-

Sociabilidade; 2-Apresentação pessoal; 3-Equilíbrio emocional; 4-Organização; 5-Interação com o cliente; 6- Comunicação; 7- Limpeza e Higiene; 8- Qualidade do

trabalho; e 9-Agilidade no atendimento;

Ao final da aplicação os dados foram organizados em tabelas com a média de cada indicador e eles se movem de 01 ponto até 05 pontos. Com os resultados

levantados foram realizadas as comparabilidades entre os grupos utilizando-se das médias alcançadas em cada indicador e, para verificar se as diferenças apresentadas

foram significativas, foi utilizada a Prova “U de Mann-Whitney”.

2º - O Questionário para controle de variáveis foi necessário para controlar um conjunto de variáveis que pela importância poderiam ser fator de influência nos resultados a serem obtidos e chegando a ser a causa das diferenças produtivas entre os grupos. Para este controle de variáveis foram tomadas as variáveis consideradas por Rojas (1999), sendo: 1-média de idade do grupo; 2-nível de escolaridade dos membros do grupo; 3-tempo médio de experiência de trabalho do grupo; 4-média de tempo de permanência dos membros no grupo; 5-nível de escolaridade do dirigente; 6-tempo dirigindo o grupo; 7-tempo de experiência de direção do dirigente; 8-satisfação com o salário; 9-satisfação com as condições espirituais de vida; 10-satisfação com as possibilidades de superação técnica; 11- satisfação com o grupo; 12-satisfação com o dirigente; 13-cursos de direção; 14-idade do dirigente; 15-satisfação com o trabalho;

3º - O QMT que foi criado por Toro (1982,1990) e é estruturado da seguinte forma: O QMT é dividido em três dimensões (Condições Motivacionais Internas-CMI; Condições Motivacionais Externas-CME; e Meios Preferidos para obter Retribuições desejadas no trabalho-MPR), com 05 fatores cada, representados por 05

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questões com 05 alternativas cada uma, aonde o indivíduo deverá classificá-las por ordem de preferência, e como não é o objetivo deste trabalho uma discussão detalhada do QMT apresentamos a seguir as definições dos 15 fatores medidos pelo mesmo:

CMI- Logro (Log)- Se manifesta através do comportamento caracterizado pela intenção de fazer algo excepcional, alcançar excelência, levar vantagens sobre outros; Poder (Pod)- expressado por ações e intenções orientadas a adquirir ou exercer domínio, controle e influência sobre pessoas ou grupos; Afiliação (Afi)- expressada por ações dirigidas a obter relações interpessoais acaloradas; Auto-Realização (A-R)- manifestada por ações que buscam aperfeiçoamento e utilização no trabalho de habilidades e conhecimentos pessoais; Reconhecimento (Rec)- manifestado em atividades orientadas para obter dos outros atenção, aceitação ou adminiração pelo que a pessoa é, faz ou sabe;

MPR- Dedicação a Tarefa (DT)- expressado por comportamentos ocupacionais orientados a dedicação do tempo, esforço e iniciativa no trabalho. Preocupação por mostrar no trabalho respondabilidade e qualidade; Aceitação da Autoridade (A-A)- inclue modos de comportamento que expressam reconhecimento e aceitação tanto das pessoas com autoridade na empresa como das decisões e atuações de tais pessoas; Aceitação de Normas e Valores (ANV)- inclue comportamentos que refletem aceitação e colocação em prática de crenças, valores e normas para o funcionamento e a permanência da empresa; Requisição (Req)- modos de comportamento que buscam alcançar as retribuições desejadas influenciando diretamente a quem pode concede-las, mediante solicitude direta, confrontação ou persuasão; Expectativa (Exp)- modos de comportamento que mostram uma atitude de espera ou de confiança nas decisões e disposições dos mandos, nas determinações da autoridade formal;

CME - Supervisão (Sup)- comportamentos de consideração, reconhecimento ou retroinformação por parte dos representantes da autoridade organizacional; Grupo de Trabalho (G-T)- possibilidade no trabalho de contato pessoal com outros, de participação em atividades coletivas; Conteúdo do Trabalho (C-T)- variedade, autonomia e retroinformação que fornecem o cargo ou tarefa; Salário (Sal)- retribuição em dinheiro ou espécie, associada ao desempenho de cargo; Promoção (Pro)- possibilidade de movimentação ascendente na organização;

RESULTADOS

Equipes 1-3: número de indicadores a favor da primeira (7 de 9), número de indicadores a favor da segunda (0 de 9). A equipe 1 se apresentou com nível de

desempenho significativamente superior ao da equipe 3.(Teste de Significação – valor calculado: Z= 3,38; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Equipes 1-4: número de indicadores a favor da primeira (5 de 9), número de indicadores a favor da segunda (0 de 9). A equipe 1 se apresentou com nível de

desempenho significativamente superior ao da equipe 4. (Teste de Significação – valor calculado: Z= 2,63; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Equipes 1-5: número de indicadores a favor da primeira (6 de 9), número de indicadores a favor da segunda (0 de 9). A equipe 1 se apresentou com nível de

desempenho significativamente superior ao da equipe 5. (Teste de Significação – valor calculado: Z= 3,00; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Equipes 2-3: número de indicadores a favor da primeira (9 de 9), número de indicadores a favor da segunda (0 de 9). A equipe 2 se apresentou com nível de

desempenho significativamente superior ao da equipe 3. (Teste de Significação – valor calculado: Z= 4,24; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Equipes 2-4: número de indicadores a favor da primeira (9 de 9), número de indicadores a favor da segunda (0 de 9). A equipe 2 se apresentou com nível de

desempenho significativamente superior ao da equipe 4. (Teste de Significação – valor calculado: Z= 4,24; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

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Equipes 2-5: número de indicadores a favor da primeira (9 de 9), número de indicadores a favor da segunda (0 de 9). A equipe 2 se apresentou com nível de

desempenho significativamente superior ao da equipe 5. (Teste de Significação – valor calculado: Z= 4,24; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Controle de variáveis:

Na fundamentação da compatibilidade realizada para cada situação concluímos com a análise das variáveis de controle aplicando a Prova de “Proporções”, que as

comparações 01-03; 01-04; 01-05; 02-03; 02-04; 02-05 resultaram similares por não apresentarem diferenças significativas, sendo:

Equipes 1-3: número de indicadores a favor da primeira (3 de 15); número de indicadores a favor da segunda (1 de 15); número de indicadores similares as duas

equipes (11 de 15). (Teste de Significação – valor calculado: Z= 2,56; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Equipes 1-4: número de indicadores a favor da primeira (1 de 15); número de indicadores a favor da segunda (3 de 15); número de indicadores similares as duas

equipes (11 de 15). (Teste de Significação – valor calculado: Z= 2,56; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Equipes 1-5: número de indicadores a favor da primeira (0 de 15); número de indicadores a favor da segunda (2 de 15); número de indicadores similares as duas

equipes (13 de 15). (Teste de Significação – valor calculado: Z= 1,46; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Equipes 2-3: número de indicadores a favor da primeira (3 de 15); número de indicadores a favor da segunda (0 de 15); número de indicadores similares as duas

equipes (12 de 15). (Teste de Significação – valor calculado: Z= 3,29; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Equipes 2-4: número de indicadores a favor da primeira (3 de 15); número de indicadores a favor da segunda (1 de 15); número de indicadores similares as duas

equipes (11 de 15). (Teste de Significação – valor calculado: Z= 2,56; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Equipes 2-5: número de indicadores a favor da primeira (2 de 15); número de indicadores a favor da segunda (1 de 15); número de indicadores similares as duas

equipes (13 de 15). (Teste de Significação – valor calculado: Z= 3,29; valor tabelado: Z= 1,96; nível de significância α= 0,05).

Comparações dos fatores do Perfil Motivacional: Na Tabelas abaixo apresentamos as comparações de cada fator motivacional das Equipes 1-3; 1-4; 1-5; 2-3; 2-4; 2-5 com os resultados das aplicações da Prova da Mediana e da Prova de Fisher com um nivel de significancia de α= 0,05, que foram empregadas para analisar os dados separados pela mediana.

Equipes: 1-3

Tabela 01 Fator Log Pod Afi A-R Rec DT A-A ANV

Req Exp Sup G-T C-T Sal Pro

p= 0,43 0,32 0,46 0,46 0,43

0,36

0,16 0,55 0,18 0,43 0,32 0,32 0,18 0,43 0,16

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Como podemos observar em todos os fatores comparados das equipes 1 e 3, não encontramos diferenças significativas a um nível de significância de α= 0,05;

Equipes: 1-4

Tabela 02 Fator Log Pod Afi A-R Rec DT A-A ANV

Req Exp Sup G-T C-T Sal Pro

p= 0,32

0,43 0,32 0,43 0,32 0,18 0,45 0,36 0,43 0,43 0,43 0,32 0,06 0,43 0,05

Somente a comparação entre os resultados apresentados para o fator Promoção das equipes 1 e 4 apresentou ter diferença significativa favorável para a equipe 1 a um nível de significância de α= 0,05;

Equipes: 1-5

Tabela 03 Fator Log Pod Afi A-R Rec DT A-A ANV

Req Exp Sup G-T C-T Sal Pro

p= 0,05 0,37 0,34 0,35 0,35 0,05 0,14 0,53 0,37 0,56 0,41 0,21 0,21 0,24 0,14 Nesta comparação, entre os fatores comparados das equipes 1 e 4, somente dois apresentaram ter diferenças significativas a um um nível de significância de α= 0,05, sendo o fator Logro com diferença favorável para a equipe 1 e o fator Dedicação a Tarefa com diferença favorável a equipe 5;

Equipes: 2-3

Tabela 04 Fator Log Pod Afi A-R Rec DT A-A ANV

Req Exp Sup G-T C-T Sal Pro

p= 0,42 0,42 0,48 0,24 0,48 0,24 0,48 0,42 0,40 0,18 0,24 0,42 0,42 0,40 0,48 Nesta comparação podemos observar que em todos os fatores levantados das equipes 2 e 3 não encontramos diferenças significativas a um nível de significância de α= 0,05;

Equipes: 2-4

Tabela 05 Fator

Log Pod Afi A-R Rec DT A-A ANV

Req Exp Sup G-T C-T Sal Pro

p= 0,24 0,48 0,48 0,42 0,24 0,40 0,48 0,42 0,48 0,24 0,42 0,40 0,24 0,40 0,48 Em todos os fatores comparados das equipes 2 e 4 não encontramos diferenças significativas a um nível de significância de α= 0,05;

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Equipes: 2-5

Tabela 06 Fator

Log Pod Afi A-R Rec DT A-A ANV

Req Exp Sup G-T C-T Sal Pro

p= 0,08 0,39 0,44 0,16 0,41 0,41 0,39 0,28 0,44 0,04 0,41 0,41 0,41 0,33 0,41 Somente a comparação entre os resultados apresentados para o fator Expectativa das equipes 2 e 5 apresentou ter diferença significativa favorável para a equipe

05 a um nível de significância de α= 0,05;

CONCLUSÔES

Considerando que as comparações realizadas nesta pilotagem foram entre equipes que apresentaram alto nível de desempenho com equipes que apresentaram

baixo nível de desempenho, não podemos, após análise dos resultados levantados, estabelecer traços que possam ser considerados como um perfil que determinem uma

equipe ser mais eficiente ou menos eficiente.

Os fatores: Promoção (Tabela 02), Logro e Dedicação a Tarefa (Tabela 03), e Expectativa (Tabela 05), que apresentaram diferenças significativas quando da

comparação dos resultados alcançados pelas equipes com alto nível de desempenho com as equipes com baixo nível de desempenho, não foram detectados

aparecimentos nas comparações em quantidades estatísticas significativas para estabelecermos como determinantes favoráveis para alcançar um certo nível de

desempenho.

Estas conclusões se circunscrevem aos grupos estudados. O tamanho pequeno da amostra utilizada (02 equipes com alto nível de desempenho e 03 equipes com

baixo nível de desempenho) se constitui em um fator que limita realizar uma análise mais profunda de algumas das relações possíveis apresentadas pelos instrumentos

porém como estudo piloto se faz necessário continuar estes estudos com uma amostragem maior e com outras populações, também realizando correlações com outros

fatores que podem exercem influência sobre a variabilidade do nível de desempenho da equipe.

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SPIEGEL, M. R. Estatística. [São Paulo-Brasil]: Editora McGraw-Hill do Brasil LTDA, 1997.

ISSN 1517 - 5421 28

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº52 - MAIO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 52

SOLDADINHOS DE BORRACHA

NILZA MENEZES

PRIMEIRA VERSÃO

ISSN 1517 - 5421 29

Nilza Menezes Soldadinhos de borracha

Centro de Documentação - TJRO

[email protected]

Em face da surpresa causada pela observação do grande número de procedimentos envolvendo menores nos processos judiciais, buscamos aqui registrar essa

característica da documentação do judiciário na região onde foi assentado o marco de modernidade na selva amazônica, ao longo dos trilhos da estrada de ferro

Madeira-Mamoré, nas primeiras três décadas do século XX e que oferece a possibilidade de um olhar sobre uma questão que só mais recentemente passou a ter

maior atenção dos juristas e do governo: as crianças.

Grande parte dos escritos sobre a região amazônica, especificamente na região onde hoje está localizado o Estado de Rondônia, são direcionados à

construção da Estrada de Ferro e exploração da borracha. (Nogueira, 1913, Ferreira, 1987) Maior ênfase é dado às características regionais, aos trabalhadores e as

mortes, tudo isso perpassado pela economia e comércio.

Oswaldo Cruz, no seu relatório do ano 1910, observa que as crianças não passavam do tamanho de um sabre, em razão da insalubridade. Rondon também

observou: “a cousa mais notavel dessa villa é não haver criança no lugar. As poucas que para alli são levadas definham fatalmente, como planta exótica que fenece

ao calor terrivel da zona tropical”.

Contudo uma parcela sobreviveu, e pode ser observada através dos documentos judiciários arquivados no Centro de Documentação Histórica do Tribunal de

Justiça de Rondônia.

Não temos documentos dando conta dos casos de mortes infantis, mas encontramos diversos casos de crianças em situação de abandono e miserabilidade na

localidade de Presidente Marques (Abunã), por exemplo, localidade esta de grande fluxo de mulheres e trabalhadores. Grande parte dos processos com desavenças por

causa de mulher ocorriam naquela localidade, percebendo-se uma grande movimentação, consequentemente ocorrendo a incidência de problemas sociais, como casos

de denúncia de crianças abandonadas pelas ruas e maus tratos por parte dos tutores ou mesmo da família.

Da análise dos processos que tramitaram pela justiça na região hoje compreendida pelo Estado de Rondônia, no começo do século XX, quando da instalação

dos serviços judiciários na região (1912), criando-se a Comarca de Santo Antonio do Rio Madeira, percebe-se clara a importância dada as questões de terras e

comércio. Os crimes ocorriam pelos motivos de sempre: dinheiro, bebida e mulher, característica que perdura até os presentes dias como a linha principal dos feitos

judiciais, ao lançarmos um olhar generalizado nas ações da justiça.

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Poucas referências são feitas às crianças das margens do Rio Madeira e do Guaporé. Salvo casos de estupro e tutelas, elas aparecem em alguns momentos,

acompanhando o nome das mães nos processos de inventário. Algumas características da população nos conduzem à conclusão de que as crianças faziam parte do

mundo dos adultos na região, como o número de casamentos realizados e o grande fluxo de homens e mulheres, conclui-se resultar, dos relacionamentos homem-

mulher: crianças.

A maior parte dos escritos fala de localidades cheias de homens trabalhadores e a vinda das mulheres. Não falam do resultado dessa união de homens com

mulheres que por certo resultava em crianças, vez que não se usava, ainda, os métodos contraceptivos tão divulgados e aceitos hoje.

Não podemos deixar de observar que apesar do alto índice de mortalidade, comum à época em todo o país, a presença dos “pequenos’ não passa

desapercebida, anotando-se nos processos relacionados a menores, pedidos de tutela por moradores de Santo Antonio. Existindo, inclusive casos em que alega-se a

necessidade de que a criança possa freqüentar a escola que existia na localidade de Santo Antonio.

Nos escritos sobre crianças no começo do século, observa-se que às crianças não era permitido circular entre adultos. A educação da época delimitava espaços

para os menores. Outra característica era que muito cedo os meninos eram adultos e estavam aptos para o trabalho. Diversos documentos e depoimentos da época dão

conta da chegada de rapazes com 16 anos de idade, que vinham sozinhos para a região, fazendo parte do contingente de trabalho. As meninas casavam-se,

normalmente, com a idade entre 14 e 18 anos, ocorrendo casos com idade abaixo dessa média

De forma lúdica, em “Memórias da Infância na Amazônia”, Aldrin Moura de Figueiredo coloca algumas das condições dos menores na região, realçando o

imaginário vivido pelas crianças na cidades de Belém e Manaus.

As crianças dos vales do Guaporé e Madeira, das quais pouco se sabe, podem ser vistas através da documentação do judiciário, onde os soldadinhos da borracha são apresentados como brinquedos de plástico.

Através da documentação fria e crua do judiciário, a observação da forte presença dessas “alminhas” é percebida em razão da sua marca nos procedimentos judiciais. Num total de 600 processos da coleção resgatada dos anos de 1912 a 1930 são encontrados 49 casos entre eles, tutela, adoção ou comunicação de crianças em situação irregular. As tutelas alcançavam 50 por cento dos casos relacionados a menores.

Processos dão conta dos pedidos de tutela, feitos na maioria dos casos por um homem protetor de crianças cujas mães as davam como brinquedos ou as

deixavam órfãs. Poderíamos sem grandes remorsos, em alguns casos, supor que a bem da verdade os mesmos fossem os pais verdadeiros das crianças e através da

tutela, estavam “regularizando” uma situação, assegurando o futuro dos filhos, tidos fora do casamento e não assumidos.

Os soldadinhos da borracha, aos quais nada foi legado, eram tratados como objetos de borracha, matéria prima da qual eles se compunham em essência. O

número de órfãos e menores em situação irregular é presente nos atos da justiça. Crianças brasileiras, bolivianas, peruanas tinham as mesmas sinas. Os pais morriam,

as mães eram levadas para outros seringais e elas eram repassadas de mão em mão. Há casos de mulheres que após perderem os companheiros, retornaram às origens,

deixando para traz os brinquedinhos de borracha.

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Até o final dos anos 20 as ações de tutela são constantemente percebidas, somando-se 49 casos, ficando em terceiro lugar entre as ações cíveis mais comuns,

acompanhando os processos relacionados com a morte, como os casos de arrolamento que no mesmo período somam 108 casos Ao mesmo tempo somam-se 303

processos cíveis para 306 criminais no período de 1912 a 1930. Levando-se em consideração o fato de que os processos de arrolamento e tutela estão cadastrados

como ações cívei, os mesmos alcançam o índice de quase 20 por cento das ações do material histórico conservado.

Observando detalhadamente os processos envolvendo menores percebemos neles a presença de crianças de ambos os sexos e várias idades, referenciados na

maioria das vezes como órfãos. A nomeação de um tutor vinha regularizar a situação. Casos de adoção também são encontrados, porém em número reduzido.

Os procedimentos eram rápidos, resolviam de forma prática a vida dos pequenos, deixando claro em alguns procedimentos que se buscava muito mais

resolver problemas dos adultos que, com a tutela, tinham em casa uma mão de obra barata. Era um menino para os afazeres da rua, a menina para pajear o filho menor

e ajudar nos trabalhos domésticos.

Diversos processos de tutela apresentam menores sendo tutelados por comerciantes ou pessoas de destaque da sociedade de Santo Antonio do Rio Madeira ou

das vilas próximas a estrada de ferro.

As meninas tinham maiores dificuldades que os meninos para transporem as barreiras. Os garotos tutelados não apresentam alterações ou observações nos

procedimentos, eram apenas explorados como mão de obra. No entanto as meninas, além do abandono, enfrentavam outras situações constrangedoras.

Em um processo observado, no ano de 1917, a denúncia informa o estupro por vários homens da localidade de Santo Antonio, de uma garota que vivia em

companhia de mulheres italianas, francesas e nordestinas. A menor, sem família, prestava serviços domésticos, como buscar água, lavar roupa, em local que se supõe

fosse um prostíbulo em face de ser a casa local onde viviam agregadas mulheres de diversas nacionalidades, embora tenham elas sido qualificadas nos autos como

domésticas. Em razão de a menor viver naquele ambiente, de andar pelas ruas maltrapilha com o corpo exposto não por malícia, mas por miséria, deu a diversos

homens o direito de abusarem dela de forma animal.

Outro processo que gerou grave demanda entre um advogado da Vila e o Curador de Menores, expondo a condição da menor que tutelada prestava serviços

como copeira da casa. O processo acaba expondo o fato da menor de apenas 10 anos de idade não ser mais virgem, o que acaba sendo condição para que a mesma

possa ser explorada e ao final devolvida pelo tutor como não sendo do seu interesse ter sob seus cuidados uma criança que perdera o direito a qualquer cuidado e a

qualquer respeito por ter perdido a inocência, que ela, com certeza, nem devia saber o que era.

Como já observado, era comum no período o fato de mulheres que ao perderem seus companheiros retornaram ao Nordeste ou a Bolívia, locais de origem,

deixando para traz os soldadinhos de borracha, entregues a própria sorte, e também que meninas entre 09 e 12 anos, abandonadas ou órfãs são entregues a todo tipo de

sorte, principalmente o do abuso sexual, que se sabe, à época quase nunca era denunciado. Percebe-se que o maior parte dos casos de abuso sexual era praticado

contra meninas que não possuíam mãe ou pai.

ISSN 1517 - 5421 32

Assim se apresenta a sina das crianças, aqui delimitadas pelos documentos judiciais, pelos trilhos da estrada de ferro, e pelas duas primeiras décadas do século

XX, que sobrevivendo às dificuldades da região enfrentavam outras lutas pela sobrevivência.

BIBLIOGRAFIA

Fontes primárias: Documentos do acervo histórico do Centro de Documentação do Tribunal de Justiça de Rondônia

FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Memórias da Infância na Amazônia. In:História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (Org). São Paulo. Contexto. 1999.

CRUZ, Oswaldo. Relatório. 1910

FERREIRA, Manoel Rodrigues. A ferrovia do diabo; a história de uma estrada de ferro na Amazônia. São Paulo, Melhoramentos, 1987.

MAIA, Alvado. Gente dos Seringais. Rio de Janeiro, 1957.

NOGUEIRA, Julio. Madeira-Mamoré. Typografia do Jornal do Commércio, 1913

PERROT, Michelle, Os Excluídos da História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.

RONDON, Cândido Mariano da Silva. Estudos e Reconhecimento. 1909.

ISSN 1517 - 5421 33

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº53 - JUNHO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 53

GÊNERO E ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO: BACHELARD E OS PODERES

DO ANDRÓGINO

ARNEIDE CEMIN

PRIMEIRA VERSÃO

ISSN 1517 - 5421 34

Arneide Cemin Gênero e Antropologia do Imaginário:

Professora de Antropologia – UFRO Bachelard e os Poderes do Andrógino

Centro do Imaginário Social

[email protected]

A categoria gênero enfoca o processo de construção sócio-cultural da feminilidade e da masculinidade em diferentes sociedades, tendo como parâmetro

algumas teorias sociais. Para o marxismo, por exemplo, o cerne da questão é o fato de sermos explorados - a exploração começaria na família pela subordinação do

trabalho feminino ao patriarcalismo. Tratar-se-ia, nesse caso, de relação social revestida de duplo caráter: material e ideológico. Para a Socioantropologia Francesa, em

sua abordagem simbólica-funcional-estrutural (cito Durkeim, Mauss, Lévi-Straus e Pierre Bourdieu), a resposta estaria no processo de socialização, ou seja, no modo

como mulheres e homens desde o nascimento são incluídos ou excluídos de relações sociais.

As relações sociais estudadas pela Escola Francesa podem ser agrupadas em três grandes temas: a “troca de dons” – bens, mulheres e mensagens -; as relações

do tipo “totem e tabu” – identificação, projeção, repressão, sublimação, lei, idealização – e, as “técnicas corporais”. Nessa última perspectiva, o corpo é a base

material das técnicas corporais e constitui o primeiro instrumento técnico do homem. Sobre ele a sociedade inscreve a sua marca, de modo que o corpo pode revelar a

história social do sujeito.

Do ponto de vista existencial, a finitude do corpo e a possibilidade da infinitude do “espírito” polarizam as reflexões. Para vários autores, sob a influência de

Heidegger, dos quais destaco Gilbert Durand e Edgard Morin, a função do imaginário é erguer, via eufemização, uma barreira contra a finitude, o tempo e a morte. Para

Morin, depois de a sexualidade ter sido incluída, após as revoluções comportamentais dos anos 1960, a morte é o nosso mais recente excluído.

Ainda do ponto de vista existencial, temos aquilo que a Antropologia chama de “pontos fortes da existência”: nascimento, procriação, maturidade e morte.

Vemos então, que o fato de sermos “existentes” implica o enfrentamento das categorias de tempo e de espaço, enquanto topologia e temporalidade mental e física. Ao

abordar esta questão, Durand argumenta que o imaginário deve ser compreendido a partir de uma “fantástica transcendental” que só pode ser espacial.

Quanto a Bachelard, o seu tempo é nostálgico, ele valoriza o devaneio da infância, escolhe o repouso como “locus” da alma, e não desenvolve, por exemplo, o

tema da “subjetividade maquínica”, insistentemente evidenciadas pelos “pós-modernos”, dos quais, cito Guattari e Deleuze. Bachelard é moderno. No âmbito dessa

temporalidade ele nos dá muitas lições sobre a nossa relação com aquilo que imaginamos sobre a materialidade do homem e do cosmos. Ou melhor, sobre a nossa

relação com as substâncias cósmicas já trabalhadas pelas filosofias tradicionais, nos moldes da representação clássica: “As quatro similitudes” de Foucault (1992).

ISSN 1517 - 5421 35

O trabalho do qual fala Bachelard, é o trabalho do pensamento materializado por palavras (o dizer social); processos de fabricação (técnicas – o saber/fazer);

utensílios (os artefatos); afetos (os diferentes modos de sentir). Para ele, o nascimento do homem ocorre com o pensamento e o pensamento é definido pela produção de

tropos, metáfora, sentido figurado.

A categoria de gênero, Bachelard a discute no último livro da série que ele escreveu sobre o imaginário: “A poética do devaneio”, tomando como parâmetro a

“psicologia das profundezas”, proposta por Jung. Considera que o eu é sempre duplo, pois em concordância com Jung, ele postula que o eu é andrógino, e fala sobre os

“poderes da androginidade”. Mas, o que seria isso? Vou seguir Bachelard muito de perto. Ele é um autor por demais instingante, ama os livros e as palavras e elas

jorram cintilantes, precisas, quase insubstituíveis, como nas traduções. Dá pena parafraseá-lo, interpretá-lo; ao mesmo tempo, sua companhia é por demais tentadora e

não dá para ficar apenas desfrutando o prazer de ouvi-lo, assim, nos arriscamos.

O que há por baixo da máscara supermasculina de Zaratustra?

Bachelard começa reafirmando sua condição de “sonhador de palavras escritas” e declara uma de suas “loucuras”: para cada palavra masculina sonha uma

palavra feminina. O autor apresenta ainda, uma tese – o devaneio é um dos estados femininos da alma. O sonho é masculino. Do mesmo modo, distingue os conceitos

como masculinos e as imagens como femininas.

Propõe-se a estudar a situação da mulher apenas do ponto de vista onírico, procurando definir como o masculino e o feminino trabalham os nossos devaneios,

tendo como apoio à dualidade da psique em feminino e masculino, que Jung chamou de anima e animus, respectivamente. Essas polaridades, ora cooperam e ora se

opõem. Distingue o sonho noturno, como pertencente ao animus, e o devaneio à anima. O devaneio sem drama, sem história, nos dá o repouso do feminino, com ele

experimentamos a doçura de viver, a lentidão e a paz. Afirma que no devaneio podemos encontrar os elementos para uma filosofia do repouso e para a compreensão de

um “existencialismo do devaneio”. O sonho noturno pode ser uma luta violenta ou habilidosa contra as censuras. O devaneio nos faz conhecer a linguagem sem

censura, pois nele só falamos a nós mesmos.

Afirma que no devaneio solitário nós nos conhecemos no masculino e no feminino, e que o devaneio idealiza o seu objeto e o sonhador. Desse modo, um

homem e uma mulher falam na solidão do nosso ser em busca de união. Acredita que Jung demonstrou que primitivamente o psiquismo é andrógino e que o

inconsciente é fundamento natural. Para reforço de argumento, indaga: o que há por baixo da máscara supermasculina de Zaratustra? Ele mesmo responde que o

homem em sua pretensão mais viril tem também uma anima. Acrescenta que a fenomenologia da anima, a poética do devaneio, é uma poética da anima.

Extrai conseqüências lógicas de sua escolha teórica e diz: se o homem é polarizado em animus, sonha seu devaneio em anima, e a mulher centrada em anima

sonha em animus. Um dos efeitos desse raciocínio ele mesmo o expressa: opina que o “feminismo” reforça o animus na mulher. Ao animus pertencem os projetos e as

ISSN 1517 - 5421 36

preocupações, a anima pertence o devaneio que vive o presente das imagens felizes e serenas. O calor íntimo, o âmago, é feminino, pois a anima é da profundidade,

desce descida sem queda. É descendo que o ser humano encontra a anima. Trata-se, porém, de profundidade indeterminada, lugar do repouso da alma, e a alma é

feminina. Diz que é no reino das imagens que vamos buscar os benefícios da anima porque o conceito pertence ao animus. Do ponto de vista da imaginação material,

as imagens da água dão a embriaguez da feminilidade. O sonhador da água, portanto, sonha em anima.

Sobre o método

Quanto ao método, Bachelard problematiza: onde colher as imagens, na vida ou nos livros? Ele prefere os livros. Assinala que existem dois tipos de leitura: em

anima – as imagens acolhidas em dons, e em animus, ela são acolhidas em vigilância, em prontidão para a crítica e a réplica. O animus lê pouco; a anima lê muito, mas,

fazer um livro, a ação, cabe ao animus. Por outro lado, uma imagem recebida em anima nos põe em estado de devaneio contínuo, em estado de criação.

Acredita ser necessário esboçar uma filosofia da anima, filosofia da psicologia do feminino profundo. Citando Paul Claudel, lembra que considerada na vida

diária, a anima seria apenas a burguesa associada ao burguês que é o animus. Mas acredita que essa psicologia é por demais evidente e que a psicologia dos homens é

um “obstáculo” à filosofia do homem. Pois ao psicólogo interessa as influências do ambiente sobre a forma de ser homem ou mulher, mas ao filósofo interessa o

“relevo” do ser, o necessário e não o contingente. Fala em “relevo” do ser porque Bachelard situa-se no campo da filosofia elementar, trabalha com idéias elementares.

Desse modo, ele é parte da tradição francesa que busca o elementar. Como exemplo dessa tradição podemos citar as “Formas elementares da vida religiosa”, de

Durkheim; e as “Formas elementares do parentesco”, de Lévi-Strauss.

Ao falar das características elementares da anima, diz que Jung destonaliza seus próprios pensamentos quando ao citar as crises de choro de Bismarck fala que

isso é manifestação da anima. Bachelard discorda, afirma que a anima não é uma fraqueza. Ela é o princípio interior que rege o nosso repouso. A anima repugnam os

acidentes, ela é uma substância suave, é um devaneio das águas dormentes que renova sua pureza no devaneio idealizador, não sendo responsável pelas turbulências do

animus.

Em seguida, aprova Jung nos estudos deste sobre alquimia, definindo-a como animismo estudioso, porque se experimenta, e, portanto, se distingue de um

animismo ingênuo, natural. Diz que a língua da alquimia é a língua do devaneio cósmico, com ela sonhamos o mundo. Para reencontrar tais sonhos é preciso

“dessocializar” a linguagem cotidiana, dando plena realidade à metáfora. A metáfora é definida como a origem de uma imagem que atua diretamente por ser

arqueológica ou, em termos de Pavlov, por utilizar outro sistema de sinalização. O rei e a rainha, por exemplo - que são as metáforas alquímicas para o masculino e o

feminino - não são meros emblemas para a grandeza da obra, são as majestades do masculino e do feminino trabalhando juntos a criação cósmica. De fato os

antropólogos têm reunido documentos etnográficos que reforçam a tese da universalidade da representação do masculino e do feminino como Rei e Rainha. Na

ISSN 1517 - 5421 37

pesquisa que deu origem a minha tese de doutorado em Antropologia, onde analiso o imaginário do Santo Daime, encontrei os seres míticos da religião daimista

reunidos em hierogamos (incestuoso como parecem ser todas as uniões sagradas): a “Rainha da Floresta” e o “Chefe Império Rei Juramidam”. Na Alquimia também as

conjunções não são simples, complexificam-se, e chegam ao incesto.

O autor utiliza-se da imagem do alquimista enquanto construtor da “grande Obra” e estabelece um paralelo com o trabalho do escritor. Diz que a matéria

(anima) aceita a mão (animus) e que a psicologia do alquimista é de devaneios. O animus tem o seu vocabulário típico de imprecações que provocam rupturas, já o

vocabulário da anima é de louvor, pois ela devaneia e canta. A ela pertencem a estrutura e a força do canto. Aqui recordo outra constatação que pude fazer sobre o

imaginário daimista. Nele existe o entendimento de que sua doutrina vem diretamente do astral superior, através de uma linha de trabalho espiritual que a Rainha da

Floresta deu a Mestre Irineu (Chefe Império Rei Juramidam), fundador do culto ao Santo Daime. A doutrina é recebida através de hinos que são cantados na liturgia

daimista.

Voltando ao alquimista, ele possui duplo vocabulário: o que diz respeito à exaltação dos nomes das substâncias (a língua de louvor), e o relativo às experiências

com as substâncias exaltadas (a língua do trabalho, da técnica, da mão, do saber-fazer sobre as substâncias). O ouro, por exemplo, é símbolo da necessidade de

dominação que dinamiza o animus. O devaneio falado das substâncias chama a matéria ao nascimento e, por isso a literatura é atuante, ela dá aos fatos a sua aura de

valores. Ou seja, enquanto “Grande Obra” ela reúne a língua de louvor e a língua de ação manual sobre as substâncias.

Psicologia do amor e projeção psicológica

Para a Antropologia do Imaginário, interessa compreender o homem em sua inclusão no mundo e em sua idealização, esta última trabalha o mundo por

devaneios andróginos, associados e postos sob o signo do adepto e de sua companheira, conforme nos mostra o imaginário alquímico, entre outros.

Assim, ao referir-se a psicologia do amor, Bachelard salienta a projeção psicológica. Nela, quatro seres idealizados são projetados em duas pessoas, visto que o

homem ama a sua anima e a projeta na mulher, e a mulher, por sua vez, projeta o seu animus no homem. Assim, “conquistar uma alma é encontrar sua própria alma”.

Ou melhor, projetar sua própria alma.

O devaneio de comunhão é a vida num duplo. É um processo no qual dobrar e desdobrar trocam reciprocamente suas funções. Ao dobrarmos o nosso ser

(idealizando o ente amado), desdobramos a nós mesmos em nossas duas potências de anima e de animus. Trata-se de “transferência complexa”, pois acima dos

caracteres mais contrários, acima do cotidiano das situações sociais, ela liga o masculino ao feminino e as relações possíveis entre eles, às diversas situações cósmicas.

Logo, não basta o universo biográfico estrito, é preciso atentar para a imaginação cósmica.

ISSN 1517 - 5421 38

Adverte que a androginidade não é a dialética da animalidade, no sentido da criação de uma monstruosidade híbrida, mas apogeu dos devaneios sobre o

supermasculino e o superfeminino, atestados pela recorrente temática do duplo, tanto na literatura quanto na psiquiatria. O ente projetado pelo devaneio é duplo porque

duplos somos nós mesmos.

O jogo das relações quadripolares e os poderes do andrógino

E assim, Bachelard chega ao jogo das relações quadripolares, onde somos anima e animus; e ele é animus e anima. Isto permite ao autor estabelecer um lema: “estou sozinho, portanto somos quatro”. Aqui eu me permito uma interpolação no raciocínio de Bachelard para indagar: dado o caráter central e nominativo das relações de parentesco nas sociedades da tradição, o Édipo primitivo teria que se definir no âmbito da relação quadripolar?

Nas sociedades da tradição cada ego é o epicentro de pelo menos uma das quatro quadripolaridades seguintes: 1) pai, mãe, avô-avó; 2) pai, mãe, tio-tia; 3) pai, mãe, irmão-irmã; 4) pai, mãe, sogro-sogra. Para Freud, apoiado em dados etnográficos acerca do tabu da sogra, a última quadripolaridade atesta a ambivalência dos sentimentos e contribui para elucidar o fundamento da regra do incesto.

Pelo raciocínio de Bachelard, se o homem busca a sua anima na mulher, e, se sua mulher, por sua vez, é uma projeção de sua mãe, sua sogra (de ego) só pode ser a “réplica” da sua mãe.

Qual pode ser o interesse de nos determos nesse tipo de problema? Quem fala em nós? Todas as entidades importantes do grupo parental? Bachelard, com Jung, fala da bi-polaridade dupla do masculino e do feminino, paradoxo onde o duplo é o duplo de um ente duplo.Fala, ainda, do necessário hierogamos para a união dos contrários separados por determinações sociais, visto que o ser em seu fundamento é andrógino e as inflações sociais provocariam oposições, em geral, rispidamente polarizadas.

Investindo na androginia como base de uma antropologia, Bachelard diz que a androginia não é a remota estrutura biológica que nos traria mitos ancestrais, mas que ela continua aberta diante de nós como tarefa própria e imediata do amor.

O poder do andrógino é o equilíbrio das duplas projeções cruzadas, pois ele faz as uniões bem sucedidas. O ponto de partida é conhecer o seu próprio ideal: quem é você em anima, quem é você em animus? Em seguida, alimentar a idealização pelo devaneio criativo e construir o ideal no real, no trabalho de busca da androginidade perdida, pois os valores da feminilidade e da masculinidade são hostis quando separados. Cabe ao imaginário coordená-los, diversificando o devaneio das idealizações recíprocas em uma psicologia criante e atuante, visando superar o que o autor chama de “pobre dialética do cotidiano: o ilogicismo e o lugar-comum”, ou, citando Jung, as personalidades parcelares – o homem inferior e a mulher inferior. Destaca o romance “Séraphita”, de Balzac, como exemplo de harmonização andrógina onde ocorre um ideal de vida na própria vida.

Para bem idealizar a mulher, o homem precisa estar em paz com sua anima. Para bem idealizar o homem, a mulher precisa estar igualmente bem com sua anima, pois a anima é fonte do devaneio no psiquismo, sendo ela quem propicia as sínteses de idealizações. O devaneio, embora sendo uma atividade onírica, nele a consciência permanece clara. O papel da imaginação, função da alma, não é a recusa do real, mas o despertar da vontade para a criação de novas possibilidades.

BIBLIOGRAFIA

ISSN 1517 - 5421 39

BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. São Paulo, Martins Fontes, 1988.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999.

CEMIN, Arneide B. Ordem, Xamanismo e Dádiva – o Poder do Santo Daime. Tese de doutorado em Antropologia Social. São Paulo, USP, 1998.

DURAND, Gilbert.. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo, Martins Fontes, 1997.

DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo, Paulinas, 1989.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro, Imago, 1999.

GUATTARI,Félix. O Inconsciente Maquínico: Ensaios de Esquizoanálise. Campinas, Papirus, 1988.

LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis, Vozes, 1982.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo, EPU/EDUSP, 1974. (vol. I e II).

ISSN 1517 - 5421 40

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº54 - JUNHO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 54

OS SOBREVIVENTES DO BARCO SATÉLITE

NILZA MENEZES

PRIMEIRA VERSÃO

ISSN 1517 - 5421 41

Nilza Menezes Os sobreviventes do Barco Satélite Centro de Documentação Histórica - TJRO

[email protected]

Este artigo tem por objetivo a divulgação de documento do acervo do Centro de Documentação Histórica do TJ/RO, onde se apresentou registro acerca de um

dos tenebrosos episódios da história do começo do século XX.

Em 1911 aportou na localidade de Santo Antonio do Rio Madeira o Barco Satélite, que trazia 444 almas, entre elas aproximadamente 400 homens - ex-

marinheiros envolvidos no episódio que ficou conhecido como A Revolta da Chibata, rebelião de marinheiros ocorrida na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1910 - e

aproximadamente 44 mulheres, qualificadas como prostitutas. O governo brasileiro aproveitou-se da viagem e deportou também todo tipo de indivíduo “incômodo”,

inclusive simpatizantes da causa dos marinheiros que se revoltaram em face do uso da chibata como forma de castigo infligido pelos oficiais.

O relatório do comandante do barco Carlos Storry classificou a viagem como de alto risco, e, após entregar sua carga, elabora relatório, acreditando ter

cumprido seu dever para com a pátria, dando o fato por encerrado.

A carta de Booz Belfort, jovem trabalhador da Comissão Rondon, na época prestando serviço na Vila de Santo Antonio do Rio Madeira, tem olhar mais

apurado, ou, ao menos, um olhar por outro ângulo. Descreve fotograficamente a cena do desembarque e alguns acontecimentos posteriores de maneira mais crítica,

observando o estado de desumanidade a que foram submetidas aquelas pessoas e a crueldade aos que relutavam em sobreviver na região (Morel, 1986).

Os escritos sobre o fato dão os viajantes como engolidos pela região e exterminados como em um campo de concentração.

Toda a documentação, da qual faz uso a historiografia regional, prende-se ao livro A Revolta da Chibata, de Edmar Morel, que narra com detalhes a revolta dos

marinheiros e suas conseqüências, entre as quais a vinda do famigerado barco, sendo clara a intenção do governo do Marechal Hermes que os mais perigosos deveriam

ser eliminados, como foram, e os demais entregues como gado, para uso e desfrute da Comissão Rondon e dos seringalistas.

Booz tece alguns comentários sobre as condições de alguns dos homens que ficaram a disposição da Comissão Rondon, ocorrendo inclusive novos

assassinatos. Essas almas não deixaram rastros. Historiadores regionais buscam informações na documentação existente, não sendo encontrado nada de consistente

sobre o assunto que acrescente nenhuma nova informação sobre o fato.

ISSN 1517 - 5421 42

O documento que ora apresentamos demonstra que ainda por alguns anos viajantes do macabro navio foram perseguidos pela polícia, para que deles nada

restasse. O simples fato de ter sido um dos degredados era motivo para continuar a ser estigmatizado, dificultando-se assim a sobrevivência, conforme observado por

Booz Belfort (Morel, 1996).

A transcrição do documento que segue proporciona a observação da mentalidade militar e do ranço mantido que perseguia qualquer tentativa de retorno a vida

dos viajantes do maldito Satélite.

Exmo Senr. Dr. Juiz de Direito da Comarca.

Antes de entrar no assumpto a que devo, em minha defesa, com a consciencia limpa e tranquila de haver cumprido com o meu dever, no exercicio do cargo de

Sub-Delegado de Policia desta localidade, seja-me licito declarar e deixar patente com as côres firmes da verdade, quem é o individuo que acode pelo nome de

Francisco Pereira.

Francisco Pereira (se é que este seja o seu verdadeiro nome) longe e muito longe de ser um cidadão util por qualquer fórma a sociedade, é um typo menos

pernicioso em qualquer meio, é indiscutivelmente um requintando desordeiro um deslavado gatuno, um bandido enfim.

Quando no governo da Republica, o Exmo. Senr. Marechal Hermes da Fonseca, a policia do Estado do Rio de Janeiro, tendo de proceder a um saniamento na

cidade, expurgando-a, com a eliminação do seu seio de alguns dos mais terriveis elementos da desordem e do crime de toda a natureza, fez uma rigorosa devassa na

classe mais abjecta e della tirou 444 almas danadas perdidas e perigosas, compostas de terriveis desordeiros, gatunos deslavados, marinheiros insubordinados e

meretrizes nojentas, e fez embarcar todo esse pessoal indigno, no vapor “Satélite” deportando-o para os recantos do norte do Paiz á ser despejado nos doentios e

longincuos seringaes do Territorio do Acre.

Essa onde de miseraveis, como que corrompidos desde o primeiro vagido, causava tão inaudito terror que a policia ordenou severamente não fosse permitido

a nem um pisar em terra durante a travecia (sic) do Rio ao extremo norte, o que foi cumprido. Esses selerados vieram escoltados por um grande contingente do

exercito com armas emballadas, sob o comando do Tenente Francisco Mello. Não obstante, o official da escolta durante a viagem vio-se na indeclinada necessidade

de mandar fuzilar alguns, pelo bem que restava com o seu desaparecimento. Pois bem: Fransisco Pereira foi um dos celebres 444 e que por desgraça desta sona,,(sic)

não foi elle tambem fuzilado, como outros seus companheiros de vida perdida. E nem se diga que esse bandido regenerou-se, por quanto, de há muito vem se

constituindo o terror, o espantalho desta Villa. Francisco Pereira (que diga a população desta terra) jurou a sua indole perversa que deveria desrespeitar a tudo e a

todos e assim fez com a própria auctoridade de então. Implicou com a força pública primordial preocupação de todo selerado e desordeiro, tendo já nesta localidade

desarmado e feito correr em pleno dia os soldados aqui destacados.

ISSN 1517 - 5421 43

Antes do baile do dia 1º de Maio a noite Pereira em completo estado de nudez de emboscada, e armado de rewolver, agredio ao cidadão Maia e Mello, este

conductor de trem e aquelle carteiro ambulante do correio, e quando reconhecidos, desculpou-se o desordeiro, allegando que julgava ser algum soldado que ele

esperava para dar um tiro! O respeitável ancião Cel. Vicente Maia, que nesta localidade com os applausos e acatamento da população, exerce o cargo de Agente do

Correio, não escapou da sanha de Pereira, que o insultou publicamente, porque o digno funccionario não lhe quis entregar uma carta de uma mulher, sem ordem da

mesma. Pereira, ainda o crapula, quando nada fazia, agredia e forçava em suas proprias casas, as mulheres publicas para fins libidinosos, conseguindo o seu intento,

dadas as condições de superioridade= sexo, força e arma-. Deste Modo, o deportado do “Satélite” ia levando tudo de vencida, pela impunidade que sempre gozou,

sendo certo e publico nesta localidade, que o ex- Sub-Delegado Senr. Simpliciano, por covardia talvez, depois de desrespeitado e corrido pelo desordeiro, o mandou

chamar para servir de seu agente de policia!!!

Eis o famigerado Pereira, Exmo. Senr.!

(.....) (Segue defesa)

O documento faz parte de processo criminal do ano de 1916, portanto, cinco anos após o ocorrido. Francisco Pereira residia na localidade de

Presidente Marques, hoje conhecida como Abunã, às margens do Rio Madeira. É qualificado como natural do Rio de Janeiro, declara ter a profissão de

Foguista e diz ter 23 anos de idade, o que nos leva a deduzir que possuía apenas 18 anos quando da horrenda viagem.

O processo foi instaurado em razão de ter o Alferez Henrique de Carvalho, em operação policial para captura de Francisco, disparado um tiro contra sua pessoa. Acusado de tentativa de homicídio, o Alferez defende-se alegando ser Francisco Pereira um dos sobreviventes do Satélite, portanto, um bandido.

Instaurado em 1916, o processo encerra-se em 1917, por falta de impulso do Promotor de Justiça da Comarca de Santo Antonio do Rio Madeira, conforme despacho do Juiz.

No ano de 1920 encontramos um processo de homicídio ocorrido na localidade de Fortaleza do Abunã, onde Argemiro Parente é acusado de ter dado fim a vida de um Francisco Pereira, que não podemos afirmar seja o mesmo, por não existir nenhum dado da vítima no processo. Contudo, em sua defesa, Argemiro desfia uma lista dos crimes praticados por Francisco da cidade de Manaus até o Estado do Acre, alegando ser este pessoa conhecida por desordeira, o medo e o terror da região, colocando em pânico toda a população. Nos dois momentos, segundo os réus, a própria polícia morria de medo de Francisco.

O estigma de ter amedrontado a polícia e a população carioca vai perseguir a cada um dos tripulantes do Satélite como marca pessoal. Não nos parece razoável que as intrépidas autoridades da época estivessem realmente amedrontadas frente a um indivíduo ou um grupo de indivíduos vivendo ou tentando sobreviver isoladamente na região, principalmente tendo-se em conta de que cada seringalista, em seu feudo absoluto, exercia poder de polícia e mando quase absolutos sobre o seu território e o que nele habitava.

A questão reside na origem dessas pessoas e de seus antecedentes políticos, isto é, em como o terror infundido a população do Rio de Janeiro frente a ameaça dos revoltosos em destruir a cidade foi transportado para a região pelos meios de comunicação disponíveis à época. Assim, cada cidadão, cada indivíduo se transformou em um agente do interesse governamental em neutralizar e destruir o elemento tido como pernicioso. Para consecução desse objetivo tudo era permitido. O passe de mágica que solucionava ou explicava qualquer violência cometida era apontar um dos “bandidos” do Barco Satélite, complementando a acusação com descrição

ISSN 1517 - 5421 44

fantasiosa de feitos criminais imputados ao indigitado que dispensava qualquer comprovação ou mesmo a utilização dos meios de comunicação da época para confirmação. A acusação bastava-se por si e a tudo solucionava.

Portanto, de forma bastante original e “legalmente correta”, o poder do período conseguiu neutralizar as vozes que, com justiça, exigiam formas mais humanas de serem tratadas. De um modo lento mas definitivo, uma a uma silenciaram ainda nas primeiras décadas do século XX. Resta saber se outros documentos, como o aqui apresentado, serão capazes de resgatar a luta final dos degredados do Barco Satélite.

BIBLIOGRAFIA

Fonte de pesquisa: Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia.

- Autos Crimes movido pela Justiça Pública contra o réu Henrique de Carvalho Santos pelo crime de tentativa de homicídio praticado em Francisco Pereira autuado em dois de junho do ano de 1916 no Juízo da Comarca de Santo Antonio do Rio Madeira em face de crime ocorrido no dia 03 de maio na localidade de Presidente Marques.

- Autos de Habeas Corpus requerido por Argemiro Parente autuado em 02 de dezembro de 1920 pelo Juízo da Comarca de Porto Velho, em razão do crime de

homicídio praticado em Francisco Pereira, na localidade de Fortaleza do Abunã em 21 de outubro do mesmo ano.

Morel, Edmar. A Revolta da Chibata. 4ª ed. Graal.Rio de Janeiro 1986.

Roland, Maria Inês. A Revolta da Chibata. Saraiva.São Paulo 2000.

ISSN 1517 - 5421 45

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº55 - JUNHO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 55

NO GRANDE SERTÃO DE CAICÓ: O CADERNO DE ANOTAÇÕES

ABEL SIDNEY DE SOUZA

PRIMEIRA VERSÃO

ISSN 1517 - 5421 46

Abel Sidney de Souza No Grande Sertão de Caicó: o Caderno de Anotações

Professor de Sociologia

[email protected]

A pequena história que hei de narrar, li-a, ainda manuscrita, em um caderno de notas, que encontrei no meio de um livro, numa biblioteca do centro do Rio.

Levantava dados para a minha monografia de final de curso e passeava os olhos pelas prateleiras quando deparei-me com um livro enorme, capa grossa. O livro, um

dicionário do folclore nordestino, era raro, edição limitada a poucos exemplares, datado de 1929. Editado no Recife, era um primor de impressão. Abri-o ao meio e

encontrei o tal caderno, desses sem espiral, de poucas páginas, muito usado nos primeiros anos de escola pelos alunos de poucos recursos.

Entre as notas de uma verdadeira expedição etnográfica ao sertão do Caicó, no Rio Grande do Norte, capitaneada pelo Câmara Cascudo, encontrei algumas

anotações pessoais do autor. O autor, possivelmente um estudante de antropologia ou sociologia, assinava Luís Felipe Barbosa de Alencar. Presume-se por certas

palavras empregadas em suas descrições, que era de Pernambuco. O sobrenome era de famílias da região. Estudaria no Recife. A data da expedição, felizmente, não foi

necessário deduzir. Estava anotada em muitas das páginas. Segundo a cronologia do caderno, a expedição, ou parte dela, começou no dia 11 de março e teria se

encerrado em 23 de maio. O ano: 1948.

Mais tarde eu confirmaria a suspeita de que ele era realmente do Recife por esse lembrete colocado em destaque num canto de página: ‘Consultar o prof.

Gilberto’. Gilberto Freyre, com certeza, o renomado autor de Casa Grande & Senzala.

O levantamento dos usos e costumes do povo do sertão potiguar surgiam a cada página, vivos. Ele descrevia tudo com muita elegância de estilo. Os mitos, as

superstições, a culinária, o palavreado rústico e poético do sertanejo, estavam ali descritos segundo um plano pré-traçado, através de métodos de coleta de dados. Era

possível mesmo vislumbrar esses marcos de orientação.

Num certo trecho das descrições a sua caligrafia começa a sofrer uns pequenos abalos, à semelhança dos tremores de terra, comuns naquela região. O aprendiz

de cientista começava dar lugar ao escritor. Ou ao poeta. Metódico que era, permaneceu. Por senso de disciplina, tomou o cuidado de demarcar um e outro. Abriu um

grande parênteses e narrou a história que ora transcrevo, por conta da ortografia da época, com minhas palavras, narrado na primeira pessoa (dele).

A estranha frase que continuaria misteriosa

ISSN 1517 - 5421 47

"Na porta da casa uma inscrição quase rupestre. Desenhos feitos pelas crianças, a carvão. E como complemento essa frase enigmática: ‘no lago cheio de

caniços’ escrita com uma caligrafia firme e elegante. Entramos. Móveis rústicos na sala, redes nos quartos, nada diferente das outras casas visitadas. O resto da

expedição ficara no povoado tomando nota das cantigas de roda e brincadeiras infantis. Eu e o professor Cascudo viemos abrir essa nova frente. O ‘lago cheio de

caniços’ também o intrigou. Homem de poucas palavras em campo, dizia que devíamos privilegiar entre todos os sentidos, o da audição, que ele resumia numa frase:

‘são eles que têm muito a nos dizer”.

Colhidos os dados, por insistência de D. Cecília, ficamos para o jantar e o pouso. Ela tinha os seus ‘jardins suspensos’, terraços feitos numa pequena elevação

do terreno, atrás da casa, onde plantava alguns legumes, a despeito da seca da região. Viúva, com cinco filhos para tratar, teimava em não contrair segundas núpcias.

Perguntei-a, com indiscrição reprovada pelo olhar do professor, por quê não se casava de novo, com tantos filhos para cuidar. Disse não precisar de homem p’ra nada.

Podia muito bem ser mãe e pai. E as crianças, além disso, não queriam nenhum homem na sua vida.

Os meninos, como ela os chamava, eram todos mirradinhos. Três meninos e duas meninas. Idades entre cinco e quinze anos. Exatos dois anos entre um e outro.

Ela contou-nos que ditava o ritmo do nascimento dos filhos. Não era uma dessas mulheres parideiras sem métodos, que põe menino p’ra fora como os animais. O olhar

de altivez, com que nos olhava, em certos momentos, me amedrontava. Olhos estranhamente azuis. Não só a mim assustava, mas aos filhos também. Um deles,

flagrado numa arte, ao defrontá-lo paralisou. Ela apenas disse: ‘Menino!’ Ele estatelou, deu meia volta e saiu de mansinho. Rimos muito.

Após o jantar sentamos na sala para conversar. O professor ensinava às crianças menores umas brincadeiras que colhera em outras regiões. Eu conversava com

o filho mais velho, sobre as suas caçadas. D. Cecília, inquieta, arrumava uma coisa e outra, na estante tosca que improvisara com umas tábuas. Uma das meninas, a

menorzinha, correu até a mãe e perguntou se ela não contaria ‘estorinha aquela noite’. Antes que a mãe pudesse repreendê-la, o professor interferiu. Disse que a idéia

era perfeita para uma noite como aquela de lua cheia. A Lurdinha com a concordância da mãe, tomou um grande livro na mão e entregou a ela. O livro, conforme

examinamos no outro dia, ao partir, era a edição antiquíssima de uma coletânea de contos infantis. Lá estavam os irmãos Grimm, Esopo, Andersen, La Fontaine. Os

desenhos, feitos a bico de pena, eram monocromáticos. O que não diminuía o encanto daquela tão cuidada edição. Investigando, soubemos que fora herança de seu avó,

que o recebera como dívida, em Natal.

As histórias que não estavam no livro

D. Cecília abriu solenemente o livro e começou a narrar a mais estranha e encantadora história que até então ouvira. O professor piscou os olhos para mim,

como a me pedir toda a atenção. Ela começou: ‘Ontem nós deixamos o Vitalino em pleno sertão, às voltas com os cangaceiros. Continuemos. O menino procurava o

grande lago cheio de caniços, lembram? Sabia, pela lenda, que se o encontrasse poderia formular três pedidos e seria atendido. Naquele dia ele viajou durante toda a

manhã, com um sol de quarenta graus à sombra. A pouca água que tinha ele reservava para o seu jumento. Bebera uns goles ao amanhecer e resistia. Pelos rumores do

ISSN 1517 - 5421 48

vento, sabia que o seu destino estava próximo. As aves de arribação que voava no sentido contrário em que estava indo, também indicava isso. Parou para descansar e

comeu uns punhados de farinha com rapadura. Deu água ao jumento, cortou um mandacaru, bebeu-lhe parte da água e triturou-o à faca para o seu amigo animal. Era

tarde quando encontrou pelo caminho uma imensa serpente. Era mais uma pista. Quando a noite chegou ele já não resistia. Desmaiou, abraçado ao seu amigo, que

continuou a caminhada, devagar. Quando a madrugada do outro dia era próximo, Vitalino acordou. Fora deixado no chão pelo jumento. Procurou-o com olhos ainda

semi-abertos. O estranho frio da madrugada, úmido, o despertou de súbito. Levantou-se num salto e se deparou com um grande espelho de água. Era o lago cheio de

caniços. O seu pé afundou-se no barro da beira, quando ele lhe penetrou as águas. No fundo, um barro claro, viscoso. Mergulhou, brincou, bebeu toda a água do

mundo. Depois, com o sol nascendo, sentou-se à beira e começou a brincar com o barro. Desejou homenagear o jumento amigo. Esculpiu-o. Mais tarde, meus filhos, de

volta a Caruaru, o Vitalino nunca mais se esqueceria do lago, seus caniços e do barro que melhor nunca mais encontraria. Dizia que era mágico, pois ele que não sabia

esculpir, aprendeu tudo numa só manhã. Ah, os três desejos ele os formulou. Mas nunca revelou a ninguém quais eram. Bem, meninos, foi por isso que a mãe escreveu

lá na porta o mote da história de hoje”.

Dormimos em redes armadas na pequena varanda da casa. Lágrimas nos olhos e uma grande leveza no coração. O professor ainda ficaria até quase a

madrugada, anotando a história, palavra a palavra, à luz de uma vela. Eu sonharia com aquele lago cheio de caniços.

No outro dia tivemos que seguir viagem. Despedimo-nos, agradecidos. Eu e o professor percorremos longos quilômetros mergulhados no mais profundo

silêncio. Ele propôs-me um desafio: ‘Felipe, ao chegar em Caicó, cada qual terá que narrar a versão da história que ouvimos na noite passada. A versão eleita merecerá

edição às minhas custas, seja eu ou você o vencedor.’ A frase que D. Cecília escrevera a carvão, ao amanhecer, seguia comigo, gravada na retina: ‘a chave caiu no

fundo do lago e desapareceu’. "

Essas foram as suas últimas palavras, antes de fechar o longo parênteses.

Procurei notícias do Luís Felipe, através de um amigo pernambucano. Ele conhecia toda a família, mas nunca ouvira falar do seu nome. Prometeu-me dar

resposta no mais curto prazo. Na semana seguinte, recebi a resposta, que faço questão de transcrever: ‘...serei breve. O nosso amigo Luís Felipe morreu há muitos anos

durante uma expedição ao sertão do Caicó. Uma estranha febre o acometeu. A família disse que morrera sob os seus cuidados aqui no Recife. Delirando até o último

suspiro, repetia uma estranha frase: ‘a chave caiu no fundo do lago e desapareceu...’

O caderno de notas devolvi à família. E nesse momento preparo a minha expedição ao sertão do Caicó. Buscarei vestígios do lago misterioso. Sei que só existia

na imaginação de D. Cecília. Mas os seus descendentes, dessedentados graças às suas águas, devem ter coisas interessantes a contar.

ISSN 1517 - 5421 49

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº56 - JUNHO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

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ORGANIZACIÓN DE ASIENTAMIENTOS

CLODOMIR SANTOS DE MORAIS

PRIMEIRA VERSÃO

ISSN 1517 - 5421 50

Clodomir Santos de Morais ORGANIZACIÓN DE ASENTAMIENTOS

Professor de Sociologia Rural - UFRO

[email protected]

El asentamiento constituye un instrumento esencial para la incorporación vertical de las masas rurales al proceso de reforma agraria. El asentamiento es una

organización del grupo de individuos y a la vez un laboratorio vivencial en que por la experimentación se buscan los elementos adecuados necesarios para que, con

base en el desarrollo económico, dicho grupo al alcance el desarrollo social.

En el asentamiento se busca ajustar los sistemas de tenencia, las formas de tenencia y tipos de cultivo a las actitudes y aspiraciones del grupo social. Es decir,

se persigue la introducción de modos y relaciones de producción que corresponderán al universo cultural y al comportamiento ideológico del grupo de trabajadores

agrícolas.

En el asentamiento sus miembros tienen la oportunidad de elegir el modus operandi en las actividades económicas y el modus vivendi del propio grupo social.

Durante el período de asentamiento –de uno a tres ciclos agrícolas- se podrá saber las formas más adecuadas de organización de la producción y de su comercialización

misma. Asimismo, se logra establecer los tipos de cultivos más convenientes.

Sin embargo, lo fundamental en este período es establecer el elemento permanente de sobrevivencia de los individuos como grupo social y económico, es decir,

los modos de producción, ya que los tipos de cultivo constituyen un elemento temporario que puede cambiar según las conveniencias de la planificación sectorial y

global.

De esta manera, en el período de asentamiento se experimentaran principalmente los siguientes modos de producción:

- La Gran Empresa, o sea la Cooperativa de Producción Comunitaria

- La Pequeña Empresa, o sea la parcela de explotación familiar y;

- La Empresa Mixta, es decir las parcelas de explotación familiar acopladas a la Cooperativa de producción comunitaria. En dos palabras: acoplar las

pequeñas a la gran empresa.

LAS ASOCIACIONES EN EL ASENTAMIENTO

En un asentamiento pueden funcionar las más distintas asociaciones pues ellas constituyen elementos de estímulo a la participación social. Estas asociaciones

pueden ser de carácter religioso, político, cívico, laboral, económico y financiero. Desde luego, el mejor sostén del Asentamiento reside en la Asociación de carácter

económico que genera empleo e ingresos a la comunidad, o se la cooperativa de producción.

51

Sin embargo, en una misma asociación, se puede crear elementos del desarrollo económico y a la vez elementos del desarrollo social. Los primeros, son

destinados a generar el flujo de empleo e ingresos; los segundos, se destinan principalmente a mantener a las gentes reunidas en torno de las reivindicaciones y

motivaciones sociales que identifican el grupo a sus estratos. Es el caso, por ejemplo, de un Comité de Asentamiento integrado de comisiones que animan la parte

social y otras que dirigen los sectores económicos del grupo.

El Comité de Asientamiento

La asociación inicial del grupo social es el Comité de Asentamiento que es fundado con la elección directa por todos los asentados hombres y mujeres con más de

15 años de 5 ó 7 directivos. La elección debe ser secreta y enteramente libre.

Después de elegido el Comité de Asentamiento, la Comisión de Reforma Agraria pone a su disposición uno o dos técnicos para ayudar a crear los organismos de

producción y de servicios del asentamiento. La actuación de los funcionarios de la Reforma Agraria debe ser apenas de carácter técnico, pues la orientación

política del Asentamiento es prerrogativa exclusiva de su Comité.

Con la aprobación de la Asamblea General del Comité de Asentamiento (organismo soberano del Asentamiento) el promotor de la Reforma Agraria puede organizar

la producción y servicios según los datos arrojados por las encuestas socioeconómicas.

Primera Alternativa de la Organización Económica

Si los datos de las Encuestas demuestran que la expresiva mayoría del grupo social es formada de obreros agrícolas, o se de personas acostumbradas a participar de

la Gran Empresa (empresa de proceso productivo socialmente dividido) como asalariados, y pretenden seguir trabajando bajo este modo de producción, fácilmente

se puede empezar la cooperativa de producción comunitaria.

Pero, si la consulta de Asamblea General del Asentamiento presenta resultados contrarios a los de la encuesta, o sea, las partes dan preferencia al desarrollo de la

Pequeña Economía Familiar – la parcelación- el promotor social tendrá que actuar con tacto y habilidad. La manera hábil es reservar una pequeña área para uso de

aquellos pocos que se interesan por la cooperativa de producción comunitaria y la otra área se dividirá provisionalmente, asignado a cada familia una parcela. La

postura ideológica misma del grupo se encargará de paulatinamente ir incorporando los parcelarios a la Cooperativa de Producción.

Segunda Alternativa de la Organización Económica

Si el deseo favorable a la parcelación manifestada por el grupo social coincide con los datos de las encuestas, no hay otro camino de inmediato que la de crear las

Economías Familiares, pues se trata de campesinos, o sea pequeños productores agrícolas, o se trata de artesanos rurales de igual comportamiento ideológico.

52

Tercera Alternativa de la Organización Económica

Si el grupo social se manifiesta favorable a la parcelación y la encuesta comprueba una predominancia de semi-obreros agrícolas, se debe proceder de igual modo

que en la primera alternativa, es decir, un área destinada a la parcelación y otra a la cooperativa de producción comunitaria.

ELEMENTOS AUXILIARES DE REAJUSTE IDEOLÓGICO

Se sabe de antemano que el Asentamiento en forma/cooperativa arroja las siguientes ventajas:

- Mayor producción y mayores índices de productividad;

- Menores costos en la producción; y

- Menores costos y más eficiencia de los servicios de los asentados.

Aunque lo admita, el campesino típico no concibe con precisión la estructura de producción diametralmente opuesta a la estructura de producción de la economía

familiar. Por el hecho de no concebirla bien – pues no la ha vivido – opera mal dentro de ella, o más bien, desde el inicio evita participar de dicha estructura de

producción.

Los semi-obreros agrícolas, a su vez, aunque se nieguen a participar de la cooperativa, cuyo proceso productivo es semejante al adoptado en la gran empresa

capitalista que ellos ya conocen, presentan mejores posibilidades de cambios de actitud que los campesinos típicos.

Sin embargo, la aspiración al trozo de tierra está más vinculada a la concepción de la seguridad de tenencia de que al interés miso de dirigir la economía agrícola

familiar. Es que la seguridad de tenencia le da todos los elementos económicos y socio-políticos que conlleva la propiedad o el dominio de la tierra: Crédito,

“status”, etc.

De esta manera nada más conveniente de que utilizar distintos mecanismos que sirvan para introducir al semi-obrero agrícola y al campesino en la forma de

producción cooperativa. Estos mecanismos funcionarán como elementos de reajuste de su comportamiento ideológico.

Por lo tanto, de modo general, se debe estimular toda forma de acción colectiva del grupo, sea en la acción de carácter meramente social y principalmente, en la

económica. De modo particular se debe crear condiciones para que surjan inmediatamente la labor colectiva o comunitaria aunque sea en sus formas más

rudimentarias como el sistema ayuda mutua, corriente en Centroamérica y las brigadas para la construcción de caminos riesgos y pozos, etc.

Estas formas rudimentarias se definen por su carácter espontáneo, por lo informal y la temporalidad de su funcionamiento.

53

Concomitantemente se debe introducir en el Asentamiento las formas cooperativas de tipo primitivo como sean:

Asociación de 3 ó más familias para uso efectivo de yuntas de bueyes, o de tractores.

- La Asociación Mutualista para asistencia médica, funeraria, etc.

- El patronato escolar, de riesgos, de mejora de viviendas, etc.

- La cooperativa de ahorro y crédito, etc.

- Cooperativas de consumo, de comercialización de transportes, etc.

Y así se preparan los asentados para que en su mayoría participen de las cooperativas de tipo superior que son aquellas que abarcan en una estructura orgánica: la

producción agrícola, la industrialización, el transporte, el almacenamiento y la comercialización de los productos, el consumo y los servicios esenciales de la

comunidad.

Por cierto que una cooperativa de tipo superior puede inicialmente abarcar apenas la producción agrícola para gradualmente incorporar las demás actividades,

beneficio, comercialización consumo, etc.

De igual modo, en un asentamiento de predominancia campesina o de semi-obreros agrícolas podrá ocurrir que una modesta cooperativa de tipo primitivo (de

ahorro y crédito y de consumo) se convierta en una cooperativa de tipo superior con la incorporación de la producción, comercialización, almacenamiento, etc.

De ahí que la cooperativa de tipo superior pueda ser constituida desde el comienzo del asentamiento aunque apenas una de sus secciones (consumo, o producción, o

ahorro y crédito) funcione. Esta puede tener el nombre de cooperativa agro-industrial, agro-comercial, etc., o adoptar el nombre de sociedad agrícola industrial, o

comercial, o algo por el estilo.

LA ADMINISTRACIÓN

La organización administrativa del Comité de Asentamiento será reglamentada por la Ley de Reforma Agraria, mientras que la sociedad agrícola industrial

tiene organización administrativa estatuída por Ley de Cooperativas.

De todos modos, la estructura orgánica sencilla o la compleja dependerá de la composición social del Grupo, Los campesinos darán preferencia a la sencilla y

los obreros agrícolas van a preferir la estructura compleja.

54

CRITERIOS GENERALES PARA EL DESARROLLO DEL ASENTAMIENTO

Para el éxito del Asentamiento la condición básica e inexorable es la plena libertad de organizar y actuar en la Organización. Por lo tanto, el promotor u otro

funcionario de la Reforma Agraria puesto a la disposición del Asentamiento debe tener una formación técnica que ayude a los asentados a utilizar al máximo su libertad

para lograr los más elevados a los más adecuados niveles de organización. Sin observar esta condición los Asentados estarán imposibilitados a desarrollar su capacidad

creadora, ya sea a nivel de organización o de producción.

El plan de asentamiento debe tener un cariz marcadamente económico y todos sus objetivos sociales deben ser resultado del grado de desarrollo económico alcanzado

por e propio grupo social.

La inversión del proceso incurrirá inevitablemente en paternalismo, deformación ideológico del grupo y enajenación de su postura social.

Es decir, que lo fundamental es crear las unidades o mecanismos capaces de generar un flujo permanente de empleo e ingresos. Un razonable nivel de empleo

y de ingresos del grupo de Asentados determinará, desde luego, nuevos patrones sociales.

Hay que tomar en cuenta que las campañas de letrinización sanidad ambiental, mejoramiento de la dieta alimenticia, educación sanitaria, educación del hogar y

cosa por el estilo, tiene importancia muy secundaria en un programa de desarrollo rural. Lo esencial reside en la implantación de una infraestructura económica con

base en el empleo abundante e ingresos suficientes. Esta infraestructura económica creará condiciones inmediatas para el desarrollo de superestructuras culturales que

involucrarán las nociones de higiene y otros hábitos del propio desarrollo.

Obrar de manera inversa, o sea empezar por la introducción de superestructuras culturales en vez de esperar que el desarrollo económico del grupo social las

genere, significa someter a las gentes a un proceso de domesticación y de catequesis. Ello implicará de inmediato en la enajenación de la postura social del grupo o en

la liquidación de su capacidad de iniciativa, volviéndole abúlico una vez reducidos sus miembros a sujetos de compasión y a pordioseros.

La labor del asentamiento debe ser racional, centralizada y planificada “in situ” o sea a nivel de terreno mismo.

- Racional, significa decir que esta labor no comporta dilentatismo. El trabajador social debe conocer de facto sus tareas y dominar bien los principales

fenómenos del grupo social. No debe confundir ese tipo de especialista con los aficionados de programas de beneficencia que ven al campesino como un ser digno de

compasión.

- Centralizar, es decir que tan sólo el Organismo de Reforma Agraria debe conducir la labor del desarrollo de los Asentamientos. La interferencia de otros

organismos diversificará y confundirá las técnicas de trabajo; en algunos casos, además, destruye los progresos alcanzados sobre todo cuanto la interferencia es basada

en el paternalismo e inspirada en puros sentimientos humanitaristas.

55

- La planificación “in situ” es decir, en el Asentamiento mismo. Ella permitirá el mayor aporte de ideas, de compromisos, de responsabilidades del grupo

social. Asimismo, ello evitará que el grupo social reciba de la Reforma Agraria planes de trbajo enforma de ocnaciones, o de imosición, lo que es más grave, dicho sea

de paso.

DATOS ESENCIALES DE INVESTIGACIÓN DE LAS COMUNIDADES QUE CONSTITUYEN O EN DONDE SE FORMAN LOS ASENTAMIENTOS

1. Diagnóstico económico de la Comunidad

1.1. Relación Hombre-Tierra

1.2. Nivel de Empleo Rural

1.2.1 Mano de obra activa

1.2.2 Mano de obra ociosa

1.3 Ingreso y Gastos de la Familia Rural

1.4 Salarios

1.5 Inventario de los bienes de capital de la comunidad (individuales de los artesanos) y por empresa familiar.

1.6 La comercialización de la producción

2 El valor y la cantidad de producción

2.3.1 Canales de Comercialización

2.4 Elementos de economía externa

2.4.1 Interferencia

1.3. Diagnóstico social de la Comunidad

2. Diagnóstico Social de la Comunidad

2.1 Pirámide de edades por sexo

2.2 Determinación de las formas de tenencia o relaciones de producciones

2.2.1 Asalariados (%)

2.2.2 Semi-Asalariados (%)

2.2.3 Agricultor (%)

2.3 Determinar los artesanos, inclusive los domésticos.

56

2.4 Investigar los hábitos culturales de los agricultores y artesanos

2.5 Investigar las artesanías decorativas y utilitarias locales

2.6 Investiar los contra-motivos de los estratos-asalariado, patrón o administrador

2.7 Detectar los líderes naturales

2.8 Encuestas sobre aspiraciones

2.9 Grado de capacidad organizativa de los grupos

2.9.1 Porcentaje de personas que han participado en sindicatos

2.9.2 Porcentaje de personas que han participado en cooperativas

2.10 Investigación sobre los mecanismos sociales y económicos que el grupo conoce. Patronatos, confradías, cooperativas, empresas, etc.

57

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº57 - JULHO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

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MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

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REPETIÇÃO E LITERATURA: NOTAS SOBRE UM CONCEITO

ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

58

ALBERTO LINS CALDAS REPETIÇÃO E LITERATURA:

Professor de Teoria da História - Centro de Hermenêutica do Presente – UFRO NOTAS SOBRE UM CONCEITO

www.unir.br/~caldas/Alberto - [email protected]

... variaciones con repetición ilimitada ... (Borges, La Biblioteca de Babel)

1- Para Freud a repetição é um conceito que está disperso mas fortemente constituído sobre o tecido da Psicanálise. A “repetição de antigas

experiências” atravessará a obra de Freud germinando em conceitos como Compulsão, Princípio de Prazer, Pulsão de Morte, Ligação, Inconsciente,

Consciente, Perlaboração sendo, inclusive, uma das buscas do Método Psicanalítico. Os “rituais obsessivos” que não se calam e se dizem entre o dizer; os

sonhos repetidos; os delírios sempre os mesmos; os medos. Esse falar-antigo (traumático) que aflora como espinhos no tecido do discurso, vem tanto no

discurso diurno quanto nos discursos oníricos, do devaneio ou do delírio. À uma “compulsão à repetição” e através dessa compulsão dentro do discurso, das

irrupções dessa compulsão, busca se chegar às razões da repetição, mas não somente o desagradável é repetido. Sendo a essência da repetição, ainda assim o

traumático não se resume a um “sofrimento recalcado”. Depende de quem viveu determinada experiência, em que contexto e em quais relações. A repetição

dolorosa pode esconder um prazer proibido, um gozo, uma fuga, o descortinar de um mistério. Para Freud se procura, sob a máscara de sofrimento, chegar ao

prazer, a uma “realização do desejo”. O resíduo se realiza, aponta para algo maior que o próprio resíduo. A necessidade-de-repetição faz chegar à repetição-

da-necessidade, e “por-baixo” encontramos a repressão, o gesto, o ethos, o teatro-família, o grande-peito. Dizendo necessidade estrutural, em psicanálise,

está se dizendo estrutura psíquica, o consciente e o inconsciente que, sendo linguagem os dois, comungam com a repetição o ser mesmo da sua estrutura,

existência, sentido e funcionalidade. Resolver o “problema da repetição” seria dissolver a própria essência tanto do inconsciente quanto do consciente. Mas

para Freud é o consciente que com sua linearidade racional pode buscar fazer cessar a repetição obscura do inconsciente.

2- Para Lacan (o mesmo para Freud?) o conceito de repetição é fundamental para o funcionamento psíquico. A compulsão como uma recordação, uma “força

demoníaca que sobrepuja o princípio de prazer”, demonstrando como é uma noção que caracterizará o próprio conceito de inconsciente. O encontro com o real. A

repetição seria a tarefa da pulsão de morte na “ordem do real” [e como o real só se diz através do sofrimento, da morte, da compulsão, do “sentimento trágico”, a

repetição (como aquilo que diz obsessivamente o dentro como essência, o fora como aparecência do dentro) é a noção fundamental para dizer esse real que se tornou o

nosso real, não mais o Real lacaniano]. E a brecha e as articulações entre a repetição e o real são reinteradas pelos sonhos num eterno retorno. No entanto o sonho

repetido não encontra nada. Não havendo origem, o texto sem entrada e sem saída de Barthes, o sonho se repete sem encontrar-se, sem nada encontrar a não ser a si

mesmo, descascando a si mesmo e o outro. Mas ao não encontrar nada, a não ser o silêncio traumático em repetição, o repetido vai se misturando com o real num

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circuito de diferença do mesmo. A insatisfação faz parte do eterno retorno da repetição: ali não há nada havendo tudo: e escapa por entre os dedos o sentido, a razão, o

desejo, o gozo: passado e presente escapam ficando somente o silêncio, o vazio, a negativa.

3- Sub-vertendo, re-direcionando Assoun (1979: 67): “... a repetição tem por função (...) inscrever o acontecimento na consciência. (...) em sua primeira

instância, ela não existe ainda senão em si, como um dado na história, (...) na sua segunda edição ela existe para a consciência (...). Não é nada menos que a passagem

do em-si para o para-si que a repetição torna possível.” Instaurada a repetição torna-se a própria história, a narrativa, o tema, o em-torno: a consciência é posta em

teatro: passa-se da ordem do objeto (principal transe tanto da Filosofia quanto da Ciência) para a ordem da consciência, para o des-velado. Citando Hegel Assoun

(1979: 67) diz: “A repetição realiza e confirma aquilo que a princípio parecia somente contingente e possível.” No entanto o “princípio de identidade” afeta a reflexão

de Assoun-Hegel: “... a própria idéia de repetição implica a homologia literal (...). Se é ‘duas vezes’ a mesma coisa que se produz, não pode haver aí determinações

suplementares na segunda unidade em relação à primeira.” A repetição jamais poderá ser, literariamente, a-mesma-coisa-repetida. Cada passagem-repetida, cada verso

reinterado, é diferente. A repetição implica na diferença, não no mesmo, na identidade. É sempre a multiplicidade que encontramos. A sensação simples de repetição é

um efeito da polifonia, da teatralidade, do dialogismo, não da uniformidade: é um artifício da própria repetição em seu mimetismo.

4- No texto literário a repetição de sinais, letras, palavras, frases, imagens, é também “sintoma” “pressentimento”, “presságio”, “indício” de um

signo, um símbolo, de um arquétipo, de uma coerência, de uma profundidade, de uma estrutura que flui e escapa para a superfície, para uma forma de visível

e para um visível da forma, para uma espécie de manifestação, um não se conter que permite visl-umbrar (como possibilidades imaginativas: leituras sempre

múltiplas e não no-texto) a “estrutura de uma existência” e a “rede organizada de obsessões” (Barthes, 1991: 9); mas redes, estruturas e obsessões do texto,

do personagem, não do escritor, do autor, da sociedade. Obsessões que fluem, mergulham e reaparecem exigindo, nos pontos de irrupção, nas configurações

que estabelece com outras conjunturas, momentos, imagens, sempre uma outra interpretação, um outro des-focamento. A repetição, por estar sempre em

outra con-figur-ação, é sempre diferente, com-testando o próprio conceito de repetição, tornando-a somente uma forma da diferença, uma indicação para o

olhar, uma dobra reconhecível em sua estranheza, em sua entranha: o diferente re-dizendo-se. Uma repetição ritual, psicanalítica, mítica, retórica (Vieira,

Euclides, Nava), bachelardiana (matérias, imagens, sonhos, devaneios), biológica (reprodução, divisão, evolução), econômica (produção: distribuição:

consumo: re-produção), cotidiana (as cenas repetidas do dia-a-dia, a rotina), midiática (cinema, televisão, jornal, revista, radiofônica, internet).

5- O signo é referente e referência, significado e significante, sujeito e objeto: na língua a coisa e o que a coisa significa se resume numa mesma

manifestação: e sem a Natureza e sem o “olho de deus” da Ciência é impossível escapar da linguagem enquanto práxis-poiesis do existente.

6- As “significações ocultas” insistentemente reaparecem as mesmas ou com sutis modificações, tanto para dizer-se quanto para ocultar-se. Nesse

mostrar-se e nesse ocultar-se está o “estilo de uma existência”, o “sistema ressurrecional” do personagem (Barthes, 1991: 77). As repetições literárias são

“inescapáveis”, são “escolhas existenciais” (imagens traumáticas, imundas, sublimes, únicas: poli-fonia que se tr-aduz numa mesma ex-pressão), um “tema

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musical” que reaparece em todo o texto-sinfonia, redimensionando o que não aparece como repetição. “O caráter iterativo do tema só é, aliás, eficaz porque

há [...] uma fixidez verbal dos temas: eles são assinalados sempre pela mesma palavra ou a mesma imagem [...] uma náusea particular, a que é associada a

uma substância ...” (Barthes, 1991: 168).

7- A repetição segue padrões mas se abre ao aleatório num processo que é ao mesmo tempo complexo, com interações entre seus componentes que

vão acumulando transformações, e simples porque dizem somente um mesmo sistema e suas possíveis variações. No entanto essas variações se abrem para

um inesgotável se levarmos em consideração o lugar em que ocorrem e as novas com-figurações (figuras, combinação de figuras, constelação de figuras) que

formam, modificando assim as outras com-figurações, pois põem a ler e dialogar as várias modificações e seus com-textos: figuras que dialogam por baixo

do pano, figuras que brigam por baixo do pano, figuras que são por baixo do pano: figura contra figura: luz e sombra: movimentos.

8- Na tese deleuziana a diferença, em seu grau máximo, é o que existe na repetição de algo idêntico. A tradição ocidental mistura o conceito de

diferença com a diferença de conceito: dois entes só são diferentes quando ditos diferentemente; a repetição precisaria ser idêntica mas diferente no tempo.

Para Deleuze o ser é tempo, é diferença, conceito central do seu pensamento. A noção de subjetividade e, principalmente de identidade, é o que desviou a

reflexão sobre a diferença, o que o levou a uma releitura da filosofia ocidental e da obra de Proust e Kafka. Divide o conceito de diferença, enquanto coisa

ocultada, em diferença intrínseca (x e y são diferentes ao se definirem da mesma maneira) e diferença extrínseca (x e x' são diferentes por não ocuparem um

mesmo espaço, mesmo sendo definidos da mesma maneira). Nesta segunda maneira temos a repetição do idêntico, que não é jamais a repetição de uma

origem. Assim é questionado o “princípio de identidade” e o conceito de “sujeito”. A repetição seria uma diferença-sem-conceito. E tudo dependeria da

identidade-de-algo. E tudo se re-envolve nas lógicas da identidade: e um mundo, quase sempre, fica de fora: e a literatura é o próprio mundo, não um mundo

que se re-apresenta: é o mundo antes do mundo. Deleuze põe sua questão, mas não como elemento literário, que não é problema seu, tanto de uma literatura

em construção nem como conceito de “análise literária”.

9- A repetição faz com que pontos do texto entrem em relação com outros pontos, com nós, com laços, com nervuras, com dobradiças: aparecencias e

funduras: se correlacionem, redimensionem arejando, com específicos “buracos de coelho” (Caldas, 2001a), o texto inteiro, abrindo-o a inesperados sentidos,

dimensões, rotações. Inarticuladas galáxias imperceptíveis. Essas galáxias re-lêem o texto, disseminando outros sentidos, re-vêem o conjunto, o que não se

parece repetição e, ao final, é tão somente repetição camuflada, repetição oculta, grandes ciclos de repetição: simplesmente porque falta ao mundo e à

literatura força para produzir novidades que não sejam repetições (a intertextualidade não é mais que uma forma externa de repetição).

10- Como uma semelhança (o filho que espelha um-algo estrutural do pai: por traz dele há um outro rosto: rostos outros em fotos, quadros e

memórias, sem original), uma caricatura (os traços essenciais, o modelo, o transe): a repetição como uma tentativa do personagem, do narrador dizer suas

“preocupações essenciais”. Borges e sua tara por espelhos (o mesmo ao infinito) e pela copula (o diferente vindo sempre do mesmo): o pavor ao idêntico, ao

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gêmeo, às reproduções gráficas, biológicas, escriturais. Laços de repetição que fogem do mesmo voltando sempre a ele. Figuras de repetição que se abismam

nas águas do mesmo lago, nos líquidos dos mesmos olhos que se estranhas mas se reconhecem: medo da bastardia: a procura pelo pai em si mesmo: o

desespero do mesmo mesmo sendo outro.

11- A repetição como uma “essência da vida” (Vico e seus ricorsi germinando na vida de Dedalus, Bloom e Molly, e até mesmo no rio corrente Anna

Lívia Plurabelle; ou a Vontade de Potência fundada pelo Eterno Retorno nietzschiano): essência da ficcionalidade fundante: parte inextirpável da

virtualidade. Se se repete é porque não é “superficial”, não é um “mal-entendido”, não é uma exceção. No entanto a repetição jamais é realmente uma

repetição. Há sim re-agrupamento, re-arranjos, e o conjunto repetido esta sempre em-outro-contexto. A repetição é irrupção des-programada, dissipativa,

irresistível, aleatória. Qualquer gramática da repetição adviria de uma teoria e não da matéria literária. A repetição não como elemento para buscar estrutura,

sistema ou modelo, mas para compreender e avaliar singularidades. A saturação do texto, a repetição e o excesso da escrita (um excesso da leitura?).

12- Há sensações, impressões, vivências, emoções que precisam, para se dizerem em sua dimensão, para dizerem o mundo a partir da sua perspectiva,

se repetirem e tornarem a se repetir. Algo que não se satisfaz com um-dizer; não se define com uma aparição; não aparece com uma descrição; não se

completa numa estilística; não pode obedecer a uma gramática, a uma sintaxe. E esse algo repetido não é, normalmente, simplesmente uma repetição, mas

um complexo em suas várias arestas. Essas arestas (a diferença do mesmo) aparecem pelas modificações provocadas pela repetição, pelo contexto sempre

diferente ou igual em outra circunstância, alargando o repetido e iluminando os veios interiores do texto, ex-pondo “buracos-de-coelho”, in-vertendo o texto

(pondo para fora o que estava dentro e para dentro o que estava fora: ou tornando texto o que era repetição e tornando repetição o que era texto), criando

aberturas, ligações, iluminando planos escondidos (todos re-inventados pela leitura), in-tenções complexas, sentimentos, faces, desejos, corpos, práticas, que

para se demonstrarem exigem repetição. Repetição que também seja utilizada para reforçar a grandeza do acontecido, do vivido, do sentido (a partir desse

ponto, desses nós, se conta algo). A repetição como memorização: contar mais como uma ex-tenção do “trauma”: dizer sempre para não esquecer e não fazer

esquecer: uma tentativa desesperada contra o inescapável esquecimento.

13- O contexto é somente um artifício da repetição. O que se garante com a repetição com a obsessão, com o reinterado desejo, com o gozo adiado

que re-vela, é a diferença em seu fluxo. O contexto esconde, expõe, dissimula, exibe, disfarça as repetições porque sua função é, exibindo, ocultar aquilo que

se joga no redizer-se: o con-texto é segregado pelas repetições, para ex-pôr as repetições.

14- Para Kierkegaard a repetição leva ao ser, ao que nele é perene. Para ele dizia respeito à “vida ética” e não a “vida estética”. Como um

“romântico” via na repetição tanto um caráter trágico quanto um inimigo da Arte, pois está estava em busca da eterna novidade. No entanto as suas dúvidas,

tremores e temores, sua inescapável angústia e medo, tinham muito mais de repetição obsessiva, com sua ampla dimensão estética, do que uma expressão

religiosa ou ética, se bem que nessas instâncias a repetição faz parte constitutiva das suas manifestações.

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15- Aquilo que se repete não foi vivido, não é aquilo-que-foi: é um “texto”, um “nódulo” posterior que exigiu com-texto e seus fluíres (devires em

fluxos circulares ou espiralados) numa história: é narração, articulação narrativa. Não é uma réplica, um clone: o novo é somente a cobertura sumarenta da

repetição (Balzac, Proust).

16- O labirinto (sem entrada, sem centro, sem saída: nem mesmo os labirintos, nem o ser ou o saber possuem mais um centro: somente certos poderes

ainda sonham com o centro e a centralização); os ciclos temporais: o dia e a noite, o verão e o inverno, o outono e a primavera; o Oroboro: cobra que chupa a

ponta do rabo: mitologias onde a criação volta ao pai ou termina num retorno à pureza original como na mitologia cristã; os rituais que fazem sempre voltar

o tempo primeiro: neles o deus retorna, pode ser sorvido seu sangue ou engolido sua carne infinitas vezes: o “regresso periódico ao tempo mítico” de Eliade.

A repetição é um conceito religioso, mítico, ritual, neurótico, portanto, essencialmente estático e erótico: pode dizer-nos muito mais profundamente que

outro conceito, figura, imagem, signo. Purificados da loucura romântica e modernista de confundir arte com novidade, pureza de estilo e irrepetibilidade,

podemos ver melhor o quanto o novo repetia internamente e o quanto repetia escondendo modelos, influencias, arquétipos, padrões.

17- A repetição é um pequeno labirinto aberto para todos os outros labirintos do texto.

18- Proust não escreveu “Em Busca do Tempo Perdido” para “contar sua vida”, seu tempo, seu mundo: mas para contar precisas obsessões, precisos

nós, precisas dobradiças. A Busca torna “sua história”, “seu mundo”, “seu tempo”, artifícios, coberturas, estetizações em volta de um núcleo denso de pura

repetição. Em volta dessas obsessões cresce uma vegetação textual: uma proliferação viral, uma infestação bacteriana: uma erupção: isso é o texto

proustiano: algo que cresceu em torno de uma tensão e criou pontes entre outras tensões e seus casulos, dando-nos a sensação de “texto corrido”: ilusões da

repetição que se esconde na diferença. Sua meta literária é vomitar esses nós; é esconder esses nós; é ex-pôr esses nós; é dobradiçalizar esses nós: sua magia

ad-vem desses artifícios miraculosos. Antes de Proust praticamente ninguém levou este “método” [Baudelaire, Flaubert] ao paroxismo da segregação

absoluta em torno de quase nada: uma cadeia de obsessões que não cessa e no fim, o Oroboro do texto, morde o rabo e começa a se devorar novamente,

sempre diferente, numa repetição sem fim e tão magistralmente orquestrada que praticamente não aparece.

19- Graciliano em “São Bernardo”, com a recorrência do pio da coruja, chama atenção não somente para uma “origem”, mas para uma culpa que não

é somente recordação (restos proustianos), mas que para existir, se mostrar, se explicar põe em funcionamento a própria história como um todo. “São

Bernardo” é o pio da coruja, nasce do imperativo pio de coruja, enrosca-se nos pios das corujas. Não é uma história que tem um pio que se reproduz (aqui

quem se reproduz é o pio e não a coruja). A narrativa inteira é um quiasma, uma simples repetição invertida, que não aparece como repetição, mas com as

repetições dentro, quando, na verdade, o eixo é a repetição e seus artifícios que pro-criam a história (as obsessões criam a história para se dizerem e atraírem

o olhar, a vida do outro para si mesmo: atraírem atenção). O “doce fio” que é a história é um fio de baba, de emoção, de erupção, de conquista, de flu-ir, de

enfim se dizer, se diz-ser: uma condensação em volta de uma obsessão.

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20- “Na torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei em Madalena. [...] ouvi novo pio de coruja – e iniciei a composição de repente [...]. Uma

coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo. [...] Quanto

às corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e acabou com elas a pau. [...] Um assobio, longe. Algum sinal convencionado. – É assobio ou não é? [...] Uma

tarde subi à torre da igreja e fui ver Marciano procurar corujas. Algumas se haviam alojado no forro, e à noite era cada pio de arrebentar os ouvidos da gente.

Eu desejava assistir à extinção daquelas aves amaldiçoadas. [...] Uma coruja gritava. E Marciano surgia dos esconderijos cheios de treva, [...] – Mais uma. É

um corujão da peste [...] e esperava que aqueles pios infames me deixassem enfim tranqüilo. [...] ouvi um grito de coruja e sobressaltei-me.”

Fragmentos de um livro inteiro entre outras obsessões como mulher, charutos, ciúme, traição, dinheiro, terras, morte: sem os con-textos, sem as

articulações, sem as conseqüências, sem interpretação.

21- Em Bernhard a repetição é quase sempre de palavras, que ficam em volta como moscas, indo e vindo. Algumas cenas onde tudo gira em torno e

um ponto fixo narrativo onde tudo fica circulando. Cada fragmento é minuciosamente e paranóica-mente repetido em círculo, até se espatifar completamente

e se tornar outra coisa.

22- A simples obsessão não cabe em si; a compulsão não se contem; a energia não se condensa nem se dissipa; não basta a si mesma: exige fluir,

exige outras palavras, imagens, desejos: exige a narrativa para se cobrir e se dizer. Por isso é livre em suas manifestações. Surge fora de leis e gramáticas,

fora de pontos certos numa estrutura: sua irrupção deve-se ao desejo e às deformações assimétricas de irrupção. No entanto o conjunto particular ou o vasto

conjunto parecem sempre simétricos, sincrônicos, estruturais.

23- A simetria não é nunca da ordem dos objetos (como tanto exercitou Robbe-Grillet, a nouvelle vague ou o Cinema Novo de Glauber): a simetria é

da ordem do caos, da dissipação, da dissolução, da força incontida: sua ordem, sua compreensão exigem outra instância, fora das forças e poderes da

mercadoria: daí a dificuldade em vê-la ou torna-la plenamente compreensível. Toda simetria é repetição.

24- Vieira com uma idéia, uma imagem, uma raiva, uma sensação, um sonho, uma decepção, uma alegria, uma necessidade, um acaso, um vislumbre,

um minúsculo núcleo, um quase nada:- fazia incidir sobre esse ponto tenso, sobre a tensão desse ponto minúsculo, sobre o minúsculo tenso, todas os poderes

da Retórica, todas as palavras da Fé, todas as sutilezas da Escolástica, todas as páginas do mundo, todas as astúcias da Arte Literária, todos os laços dos

Gestos, da Voz e da Escrita e nascia um sermão que era um nada obsessivo cercado de cultura por todos os lados.

25- A repetição não é um “voltar a andar o mesmo caminho”; ou “reviver o já vivido”. Não é a imitação de uma primeira manifestação e nem se

esgota em sua última aparição. Seu primeiro momento é somente formal. Todas as repetições são primeiras e finais: o dentro que se ex-põe.

26- Um não dito, não plenamente vivido se repete, escondendo seu nódulo: a repetição é esse não dito inter-dito. Literariamente só adquire valor

quando transcende a mera cópia; quando guarda uma energia maior, uma força preste a explodir; quando gera a própria polpa-narrativa; quando não é

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somente “estilo”: só poderia ser dita daquela maneira: a repetição não é elemento da obra inteira de uma vida, mas de determinadas obsessões (esse talvez

seja a “deficiência” de Bernhard: tornar a repetição toda a sua obra: nele não há quase nada que não seja repetição repetida).

27- A repetição garante a realidade, a duração, o ser mesmo daquele que repete, pois a essência do ser é repetição (já não podemos ver diferente).

Todo ele adquire significado na exata medida da repetição. Mas a obsessão que moveu o fluir narrativo não se encontra ab origine, mas sempre num

imediato que se abre, se despetala, se gasta enquanto presente: nesse presente o seu sentido, a sua significância.

28- Somente aquilo que se repete tem realidade dentro do texto (deve ser ouvido além do simplesmente lido). O que não se repete só tem sentido em

sua relação viva com o repetido. Só o que não se repete é a repetição; o que não se repete é a mais pura repetição.

29- O repetido é um mobile imóvel aprisionado numa dobra do imediato do presente, projetando em todas as outras dobras réplicas de si mesmo, a

ponto de não se saber onde se encontra o repetido original ou final. Todos eles são origem e fim de algo que se esconde dizendo. A repetição é como

desdobramos o imediato nos imaginários do além-aqui e nos fundamos criando o universo.

30- A repetição rearticula o tempo linear, evolutivo, histórico num inextricável nó: tudo se passa ali dentro (o universo kafkiano é sempre o da

repetição, o de dentro, o circular), ali em volta da repetição (o pai, a justiça, a dor, a injustiça, a doença, a fraqueza, a incompreensão, a incomunicabilidade,

o silêncio, a impotência: kafkianas). O tempo torna-se o tempo presente, o tempo do narrador, o transe do recordar, do gritar e do diz-ser. E o tempo, como o

entendemos e sentimos, desaparece. O narrar o mantém prisioneiro dos seus nós (o homem do subterrâneo, Raskolnikov, Ivã Karamazov). Nada é

irreversível. A repetição o torna sempre presente, mesmo quando é uma única vez (a ilusão do não repetido, quando o narrar já é uma forma de repetição e o

leitor/ouvinte pode sempre voltar, repetir todo o percurso). A repetição é uma fuga da memória, do tempo, da história. Há somente as obsessões repetidas por

dentro da polpa segregada por elas.

31- Parece haver uma espécie de repetição retórica ou poética e uma repetição obsessiva. A primeira pode ser encontrada na literatura antes do século

XVIII; a segunda começa com Hoffmann, Balzac, Poe, Flaubert, Dostoievski, Melville e converge para Conrad, Proust, Kafka e daí para Borges, Beckette,

Bernhard. Na primeira a repetição é consciente, faz parte dos artifícios, é visível, exigida e comunga com o estilo, a gramática e a beleza; a segunda é

interna, condiciona e secundariza o texto (a história, o enredo, a narratividade) aos nódulos que se tornam os condutores do fluxo, os eixos de tensão. Na

primeira a repetição se integra ao conjunto como mais um elemento poético/retórico, trazendo ênfase, destaque, relacionamento, harmonia, tradição e

musicalidade; o segundo cria arestas, clivagens, erupções, obsessões, imobilidades, angústias. Transforma-se em método, em ser, em gnose, em palavra e

imagem.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº58 – JULHO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 58

NOS RASTROS DA LEITURA, AS MARCAS DO AUTOR E DO LEITOR

NAIR GURGEL

PRIMEIRA VERSÃO

Nair Gurgel NOS RASTROS DA LEITURA, AS MARCAS DO AUTOR E DO

LEITOR

Professora de Lingüística - UFRO

[email protected]

“A história das andanças do homem através de seus próprios textos está ainda em boa parte por descobrir”. (Michel de Certeau)

Falar sobre leitura não é uma tarefa fácil, tenho consciência do fato. Afinal, num país onde o professor que valoriza a leitura é taxado de preguiçoso, onde alguns

acham que ler não é trabalho, espera-se, pelo menos, que uma reflexão sobre a teoria da leitura possa circular entre “leitores ideais”. Na verdade, o que me atrai é o

desafio posto ante uma concepção discursiva de leitor, de autor e de texto. As condições de produção, que de acordo com a Análise do Discurso Francesa,

transforma um enunciado em discurso nos autorizam a dizer que o leitor não pode fazer o que bem entender em relação ao texto. Melhor seria dizer que o texto

impõe limites ao leitor. “Uma concepção discursiva de texto e de leitura supõe que jamais se lê um texto na sua qualidade de enunciado (produto), mas sempre na

sua qualidade de discurso. O simples fato de ler impossibilita que o texto esteja aí como produto, já que ler é um processo e ‘ler’ um verbo transitivo”.(Possenti,

1992)

Segundo Umberto Eco (1987), “um texto, na sua superfície lingüística, representa uma cadeia de artifícios de expressões que devem ser atualizados pelo leitor.

Já Ducrot (1987), postula que um texto distingue-se de outros tipos de expressão por sua maior complexidade, ou seja, pelo fato de ser entremeado do não dito. – não

manifestação em superfície. Portanto, podemos dizer que ler é exercitar um conjunto de estratégias, de hipóteses, a fim de que o não dito possa ser atualizado pelo

leitor, através de movimentos cooperativos, conscientes e ativos. Como numa guerra, quando se projeta um modelo de adversário, escrever um texto, implica em prever

os movimentos dos leitores. Isso não significa que o leitor pode inferir qualquer coisa, nem mesmo estamos defendendo uma teoria da “abertura”. É que a competência

do leitor não é necessariamente a do autor. Para ler um texto, não é necessário apenas que o leitor tenha competência lingüística, mas sobretudo, uma capacidade de

lidar com pressuposições e idiossincrasias. Todo bom estrategista deve considerar, também, os acidentes casuais e trabalhar com a probabilidade.

Como já sabemos que a língua não é um código, podemos dizer, sem medo de errar, que uma das principais tarefas do texto é fornecer “pistas” ao leitor, seja

pela escolha da língua, pelo tipo de enciclopédia, pela escolha do léxico, do estilo ou do gênero utilizados. Assim, escolhendo o alvo a ser atingido, o autor fará com

que toda maneira de dizer seja aquilo que possivelmente o seu leitor pode entender. Empenhar-se-á no sentido de estimular um efeito preciso, dará pistas para a

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interpretação do tipo: Como era de esperar...- para conduzir o leitor a interpretação já pré-formulada por ele ; Foi muita crueldade o que ele fez...- levando a acreditar

firmemente na cruel intenção do personagem; Por mais engraçado que possa parecer...- eliminando qualquer senso de humor do texto, etc.

A ‘abertura’ de uma obra é determinada pelo ‘modo’ de usar o texto, ou seja, por seu exterior. O autor pretende regular a própria estratégia utilizada, decidindo

até que ponto deve controlar a cooperação do leitor, escolhendo os graus de dificuldades lingüísticas, as referências, as alusões e as possibilidades de intertextualidade.

Acontece que, às vezes, a competência do leitor não é prevista com eficiência (seja por preconceito, pela historicidade mal observada ou outro fator qualquer) o que

pode acarretar distorções na leitura.

Devemos distinguir, conforme Geraldi (1991), as razões ‘por que’ vamos a um texto (pesquisa, busca de informação, pretexto ou fruição). Na fronteira entre o

‘uso livre’ de um texto e a sua interpretação, está aquilo que Barthes chama de texto de fruição e gozo. O leitor tem que decidir. Porém, alguns limites devem ser

estabelecidos, pois a noção de interpretação sempre envolve uma dialética entre estratégias do autor e resposta do leitor. Como a cooperação textual realiza-se entre

duas estratégias discursivas e não entre dois sujeitos individuais, o autor não tem papel na interpretação, pois o material da interpretação é o texto e não o autor. Logo, o

sentido vem da prática discursiva.

Podemos entender que a leitura de um texto pressupõe um autor que depende de traços textuais, mas que joga, também, com o que está atrás do texto, atrás do

destinatário e diante do processo de cooperação. Não é possível considerar as condições de leitura sem considerar as condições de produção. Cabe, então, uma pergunta

que nos remete ao que afirmou Geraldi acima: O que quero fazer com este texto? Ou, ainda, a sua similar, sugerida por Sírio Possenti: Por que o leitor leu o que leu?

Resumimos assim: Para que e Por que leio?

Acreditar que existam leituras “erradas” não é, naturalmente, imaginar que apenas determinado grupo seria capaz de fazer a leitura certa e os outros não

saberiam ler. Segundo Possenti (1990), “pode não haver nenhuma casta, mas pode haver leitores com “enciclopédias” que lhes permitem ler corretamente certos textos

e certos leitores que não conseguem ler certos textos senão de forma equivocada. E isso não implica existência de castas, implica apenas leitores com diferentes

especializações ou conhecimentos prévios, ou, com diferentes histórias... se a afirmação implicasse a existência de castas, implicaria tantas castas que a categoria

perderia o sentido.”

Nesse trabalho, pretendo adotar uma postura o mais racional possível, a fim de que não caia no subjetivismo grosseiro. Para tanto, é necessário que se adote

uma teoria minimamente séria a respeito da linguagem. Estou querendo dizer que, embora concorde que haja textos onde é possível fazer várias interpretações,

existem, também, aqueles de leitura única. Para comprovar minha hipótese, vou buscar nos textos humorísticos um certo controle de interpretação. A apreensão do

efeito de humor nos possibilitará dizer se o texto foi devidamente interpretado, segundo a “intenção do texto”, conforme Foucault (1986), ou a “intenção do autor”

69

conforme Freud (1976), quando se refere ao espaço da intenção em sua teoria. Enfim, uma boa teoria da leitura deve encarar, a partir do mesmo ponto de vista, todos os

ingredientes que a compõem, quais sejam: o leitor, o texto e o autor, ressaltando a contribuição de cada um deles.

O conceito de ‘formação discursiva’, visto em Michel Foucault (1986), nos coloca diante do seguinte questionamento: não será porque a palavra ‘leitura’ é

tomada em apenas um sentido que se rejeita a possibilidade de existir uma leitura errada? O fato de existir mais de uma leitura possível não implica em que uma delas

seja errada, ou que o texto deva ser unívoco, apenas que não podem ser adotadas pelo mesmo leitor, numa mesma condição e num mesmo discurso. Uma formação

discursiva permite diversidades, mas não aceita contradições, ou seja, para ler um texto, dentro de uma determinada formação discursiva, é preciso que o leitor se sinta

autorizado a fazê-la, além de mostrar que o texto a suporta, considerando, é claro, o ‘fio discursivo’.

Analisarei, portanto, alguns textos que, para produzirem o efeito de sentido desejado, devem ser interpretados da maneira demandada por eles, sendo

desautorizada qualquer outra leitura. Tomando por base o que disse Leon Eliachar: “Humorismo é a arte de fazer cócegas no raciocínio dos outros. Há duas espécies

de humorismo: o trágico e o cômico. O trágico é o que não consegue fazer rir, o cômico é o que é verdadeiramente trágico para se fazer”, examinemos os textos a

seguir, a fim de verificar se o leitor é capaz de se situar entre o trágico (não rir) ou entre o cômico (trágico para se fazer) trabalhos do autor e do leitor no confronto com

o texto.

1. O Português foi ao médico e depois de vários exames, este último lhe receitou três remédios. Uma semana depois ele tinha piorado consideravelmente e está

na cama agonizante, quando Maria resolve chamar o médico novamente.

- O senhor comprou todos os remédios que eu lhe passei? – pergunta-lhe o médico.

- Mas é claro que eu comprei, doutor!

- E tomou todos direitinho?

- Tomar de que jeito? Se em todos os frascos estava escrito: “Mantenha sempre fechado”?

As piadas que versam sobre o que chamarei nesse trabalho de “leitura errada” de um enunciado, têm tom pejorativo e, quase sempre, estão relacionadas aos

portugueses, às crianças, às louras, ao nordestino, ao caipira ou à mulher, todos discriminados de alguma forma pela ignorância que lhes imputam. Ideologias à parte, o

que interessa, no momento é o trabalho com a linguagem, a interpretação. Ou seja, estou querendo dizer que o que faz a piada acima ser engraçada é justamente o fato

de ter sido feita uma “leitura literal” do enunciado contido no frasco de remédio. Embora não se trate de nenhum texto literário, onde a polissemia é fortemente

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percebível, existem textos onde, ou por economia, ou por considerar que a enciclopédia do usuário é suficiente para “decodificar” a mensagem, o que precisa ser dito,

não está só no texto escrito. Envolve, sobretudo, o contexto, a história do leitor, do autor e a formação discursiva em que estão situados.

O mesmo fenômeno ocorre com as placas de trânsito: “Pare fora da pista” ou “Pare no acostamento” não significa que o motorista deva fazer uma leitura que o

obrigue (imperativamente) a parar, assim que lê a sinalização. Todos, até os que não têm nenhum conhecimento lingüístico e/ou discursivo irão fazê-lo apenas se

tiverem necessidade. Aliás, é isso mesmo que podemos ler através do “não dito”: Caso precise parar, pare fora da pista, pois é perigoso estacionar na pista. No caso

do remédio, o que não estava dito era: Após tomar um comprimido, mantenha o frasco sempre fechado, caso contrário, poderá estragar o produto.

Até agora, mostrei o trabalho do autor que, utilizando a “leitura errada” de um usuário, pretendeu causar riso no leitor. Existe, também a possibilidade do leitor fazer

a “leitura errada” da piada. Neste caso, se o leitor não fizer a leitura prevista pelo autor, certamente terá sido um humorismo trágico, pois ele não vai conseguir rir.

2. Na África, dois canibais estão almoçando juntos e um deles diz:

- Detesto turista!

- Deixa pra lá – diz o outro – coma só o macarrão!

Novamente, a condição de produção do discurso é que determina o gatilho da piada (Onde? na África, Quem? dois canibais, Quando? na hora do almoço). Como é

possível fazer mais de uma leitura, considerando o próprio contexto (África – turistas – canibais), seria esperado (?) entender que a palavra “detesto” estaria se

referindo: 1) a preferência alimentar -não gosto de comer, 2) a antipatia por determinados visitantes – detesto turistas. Entretanto, o humor só é possível se for feita

a primeira leitura, já que a frase seguinte “coma só o macarrão”, é determinante para que tal leitura seja feita.

3. Naquele Hotel 5 estrelas, o camareiro muito solicito pergunta ao jovem casal que acaba de se instalar numa de suas suites:

- Mais alguma coisa, senhor?

- Não, obrigado!

- E sua esposa não precisa de nada?

- Ah, sim! Por favor, me arranje um cartão postal!

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Neste caso é preciso que o leitor da piada seja menos ingênuo (ou mais malicioso) que o camareiro para perceber que quem está com o senhor não é sua esposa. Só

assim faz sentido (?) o cartão postal. Caso não seja esta a leitura realizada, estará desfeito o efeito de humor pensado pelo autor do texto e ele (o texto) será apenas

uma história a mais sobre alguns casais em lua de mel.

Com os exemplos acima espero ter dado uma pequena amostra do que considero ser as marcas do autor e do leitor ante um texto humorístico. Afinal, “ler é adentrar

nos textos, compreendendo-os na sua relação dialética com os seus contextos e o nosso contexto. O contexto do escritor e o contexto do leitor, quando eu leio um

texto”. (Paulo Freire, 1982)

BIBLIOGRAFIA

CERTEAU, M de. (1994). A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994.

DICROT, O (1987). O dizer e o dito. Campinas, Pontes, 1987.

ECO, U. (1987) Lector in Fábula. São Paulo, Perspectiva, 1987.

FOUCAULT, M. (1972). Lórdre du discours. Paris, Gallimard, 1972.

__________. (1986). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1986.

FREIRE, Paulo. (1999). Da leitura do mundo à leitura da palavra.In: Estado de leitura. Campinas, Mercado de Letras, ALB, 1999.

FREUD, S. (1976). A psicopatologia da vida quotidiana. Rio de Janeiro, Imago, 1976.

GERALDI, J. W. (1991). Portos de passagem. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

GINZBURG, C. (1989). Mitos, emblemas, sinais morfologia e história. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

POSSENTI, S. (1992). Pragas da leitura. In: Leitura, escola e sociedade. São Paulo, FDE, pp. 27-30. 1992.

__________. (1990). A leitura errada existe. In: Estudos Lingüísticos. Anais de Seminários do GEL, XIX. Franca, Unifran, pp. 717-724. 1990.

__________. (1998). Os humores da língua. Campinas, Mercado de Letras, 1998.

ROGER, C. (1994). A ordem dos livros. Brasília, Ed. da Universidade de Brasília, 1994.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº59 - JULHO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 59

SOBRE A APRENDIZAGEM DA CONVERSAÇÃO

CLODOMIR MORAIS

PRIMEIRA VERSÃO

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Clodomir Morais SOBRE A APRENDIZAGEM DA CONVERSAÇÃO

[email protected]

Professor de Sociologia Rural - UFRO

A Conversação sempre constituiu um grande problema para alunos e professores dos cursos de idiomas. Com o propósito de superá-lo, as Instituições

especializadas na formação de intérpretes, cicerones e tradutores simultâneos têm procurado desenvolver métodos cuja eficiência se mede também pelo princípio da

racionalidade econômica: a maximização dos resultados mediante a otimização dos meios disponíveis.

A maioria dos que, no Ocidente, se dedicam à Pedagogia Experimental é formada de “behavioristas” (1), cujos métodos em essência, pouco se diferenciam

entre si, pois se resumem em obter um crescente nível de diálogo artificial, mecânico (e às vezes sem sentido) entre os alunos e o professor.

O uso de audiovisuais (cine, vídeo, diaporamas, textos atrativos, etc) funcionam como estímulo para obter como resposta - o diálogo, e assim, conjurar as

possibilidades de bloqueio ou de inibição dos alunos nos momentos destinados à conversação tradicional, conseguida pelo insistente acicatear de perguntas, não raro

inconseqüentes, do professor.

E assim os alunos poderão passar anos e lustros no aprendizado pachorrento da conversação, aprendizado delével que não comporta a menor solução de

continuidade: dois meses de verão e a capacidade de conversar no idioma adventício recua quase à estaca zero, para outra vez ser recuperada pelo método rotineiro do

estímulo-resposta.

Tão somente quando os alunos exercitam a Conversação nas atividades de algum trabalho (como intérpretes de delegações, por exemplo), é que alcançam

perenizar por algum tempo a aptidão ao diálogo automático, frouxo, desembaraçado.

Os institutos de idiomas mais abastados sabem proporcionar aos alunos a oportunidade de visitar o país da língua que estudam na ilusão de que algumas

semanas ou meses sejam suficientes para torná-los aptos para a conversação.

À exceção destas tentativas de perseguir uma prática real e concreta para o aprendizado da Conversação, a todas as etapas do curso de idiomas presidem as

categorias metodológicas tipicamente do ensino, mediante as quais se aprende (a gramática) mas não se capacita em Conversação, ou seja, não geram as aptidões no

indivíduo que, segundo Leontiev, “vai adjunto ao processo do domínio por ele (ou utilizando o termo de Marx:”da apropriação por ele”) do que foi criado pela

humanidade, pela sociedade, em seu desenvolvimento histórico”, e daí que “realizar o processo de apropriação constitui uma função da aprendizagem humana que

distingue qualitativamente de “learning”- aprendizagem dos animais cuja função é a adaptação (2).

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Os métodos de ensino, via de regra, apóiam-se na transferência de conhecimento, mediante “entregas teóricas” que se procedem ao longo de uma série de aulas

programadas. Por esses métodos ensina-se Gramática de qualquer idioma; pelos mesmos métodos, ensinam-se tanto as regras de gramática como as de Matemática e

também as exceções de uma e de outra.

A prática nas duas disciplinas, faz-se por meio de exercícios orais ou escritos e, ao fim se sabe, mercê de uma “praxis reiterativa”(que se cria com a repetição

exaustiva dos exercícios) consegue-se que os alunos “internalizem” os conhecimentos vertidos pelo mestre.

Contudo, tão somente depois de capacitarem-se no uso prático dos elementos teóricos, mediante a conversação, é que terão plena consciência da Gramática

estudada. (3).

A partir de Makarenko (4) ficou assaz definido na Pedagogia o “divortia aquarum” entre as técnicas de ensino e as técnicas de capacitação sem deixar

confundir esta - a capacitação - com a propalada “Educação Funcional” de Claparède.

Funda-se aí a aprendizagem através da capacitação, ou seja, a aprendizagem que emerge do exercício de atividades do trabalho (desenvolvido socialmente):

trabalho imposto por necessidades concretas e orientado para um objetivo comum que inevitavelmente estabelece entre os sujeitos da capacitação “a dependência

responsável” de que fala Predvechni (5), imprescindível nos processos coletivos da capacitação.

Em toda aprendizagem de idiomas é mister saber até onde pode chegar o tratamento do ensino e de onde começam os requisitos dos métodos de capacitação.

Tudo indica que estes aparecem no momento em que se torna indispensável a aplicação prática das teorias gramaticais, quer dizer, no período de aprendizagem da

Conversação.

A Conversação, ou o ato de conversar, exige uma enorme preparação no uso dos “instrumentos” prévios da Linguagem que vão desde a pronúncia de sons

articulados, ao uso e entendimento dos símbolos que eles representam e, em seguida, ao conhecimento gramatical, que sistematiza os fenômenos da Linguagem, seja

considerando as palavras isoladas (lexicologia) e suas combinações para a expressão do pensamento (sintaxe).

Uma pessoa que possa fazer uso (ainda que de forma incipiente, rude) desses “instrumentos prévios” estará em condições de entabular uma conversação efetiva

desde que isto seja fruto de necessidades imperiosas impostas pelas atividades e relações de trabalho. É que o ato de conversar pressupõe a plena consciência do uso

daqueles “instrumentos prévios” em função das representações surgidas de atividades concretas.

Um excelente tradutor que domina plenamente a gramática dos idiomas em que opera, pode não ser capaz de manter uma conversação fora de sua língua

materna, já que para a conversação não bastam os conhecimentos dos “instrumentos prévios” reunidos na Gramática. Há que se capacitar em conversação. A

Gramática, ensina-se e aprende-se,porém no que diz respeito à Conversação, não se ensina, se capacita.

A capacitação, como pode acontecer com tudo o que depende da aprendizagem, emana da aplicação do conhecimento, a atividades concretas, razão pela qual a

prática que se desenvolve no processo da capacitação para a Conversação não deve ser em abstrato e sim uma atividade que permita comparar a imagem (a coisa

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ensinada) com a realidade que ela expressa (7). Isso se deve ao fato de que, tão somente através do trabalho (e das atividades dela decorrentes) é que toma concreção a

consciência de sujeito com respeito ao objeto.(8)

Eis porque a aprendizagem da Conversação, vista através da ótica da capacitação e não da ótica do ensino propriamente dito, só pode ser eficaz, à luz da

categoria da ATIVIDADE OBJETIVADA dos modernos cientistas sociais marxistas (S.L. Rubinstein, A.N. Leontiev, I.Labra Moya e G.P. Previdechni, A. de Faria,

etc.) em diametral contraposição à focagem condutista dos psicólogos não marxistas.

A conduta, segundo Labra Moya, (9) não é uma categoria dialética e nela “ o objeto aparece apenas no caráter do “ estímulo” que faz desencadear uma reação

com a qual não tem vínculos dialéticos. ”Estímulos e respostas são séries paralelas de fenômenos correlacionados, que não têm entre si vínculos orgânicos (10). A

“conduta” se define em função das manifestações externas, observáveis; nega a consciência e o reflexo psicológico” - acrescenta o mesmo autor.

A Psicologia Social não marxista arrima-se no processo da Comunicação na Linguagem; prega que os indivíduos se expressam exclusiva e unicamente

mediante a Linguagem e a esta dedica todo o seu interesse. Evidentemente não leva em conta que as relações sociais de produção da Humanidade, cristalizadas no

objeto em forma de meios de trabalho, transmite ao homem a organização social nelas codificadas (11). Daí crer somente nas apresentações exteriores das atividades à

revelia do reflexo psíquico que elas determinam.

Aqui está, pois, a razão pela qual os métodos de “Educação Funcional” de “Pesquisa-Ação” , de “Educação Popular”, de “ Educação Vivencial” e outros

concebidos em função exclusiva da “conduta” externa dos indivíduos, se apóiam principalmente nas técnicas de “dinâmicas de grupos”, “sociodramas”, “jogos de

salão”, “pantomimas”, etc, como supostos instrumentos de capacitação.

Os moderados resultados desses métodos (a despeito de abundância dos meios disponíveis e dos investimentos em tempo e em mão de obra especializada) só se

justificam quando o ensino de idiomas constitui função puramente subsidiária, acessória de ações (principais) que respondam pelos critérios de racionalidade

econômica.

CONCLUSÃO

Como a aptidão para conversar não parece ser propriamente objeto do ensino (tal como acontece com a Gramática) e sim objeto de capacitação, no nosso

entender, a aprendizagem da Conversação, enquanto objeto das técnicas de capacitação, deveria ser montada sobre atividades concretas de trabalho com fins ou

objetivos determinados e correspondentes a necessidades reais.

Ser intérprete ou “cicerone” de uma delegação é inserir-se de fato em um tipo de trabalho necessariamente ajustado a um fim definido e para cujo desempenho,

a Conversação constitui uma atividade concreta.

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O estudante de idiomas ao qual sistematicamente se lhe der esta oportunidade, avançará no manejo da nova língua, mais rapidamente do que aqueles que

estejam limitados apenas a exercícios práticos em abstrato, a técnicas de animação e de dinâmica dos pequenos grupos.

Com efeito, a atividade que engendra a consciência e sobre qual se processa a capacitação, não se apresenta como fenômeno isolado, sem nexo e sem destino,

mas sim, uma “atividade adequada” aos fins. É aí “onde se revela precisamente o papel específico do reflexo consciente da realidade” (12), pois “a consciência

reguladora da atividade humana é aquela que surge à base do trabalho” e se forma no processo da atividade vital concreta do Homem (13).

Para a aprendizagem de Conversação, em um Instituto de Ensino de Idiomas, o ideal seria criar “mecanismos” ou medidas que vinculem a prática dos

estudantes a atividades laborais organizadas e sistemáticas, o que vale dizer, atividades que exijam a conversação e que estejam enquadrados em planos de trabalho

com objetivos e fins determinados.

Esta preocupação, evidentemente, não é exclusiva das técnicas da Aprendizagem: é também, da moderna metodologia do ensino, cujos “autores centram su

atención en la búsqueda de nuevos procedimientos de organización del trabajo didático-educativo con los estudiantes” (14).

Para isso as instituições especializadas no ensino de idiomas, têm necessariamente que, mediante a pesquisa, determinar em que etapa a nível de aptidão dos

alunos, respeitante à Conversação, as categorias metodológicas do ensino devem ceder lugar às de capacitação. No caso particular da nossa Instituição (15) onde o

ensino de idiomas constitui apenas como atividade acessória para coadjuvar o conhecimento científico da América Latina, somente uma investigação exaustiva de

muitos meses levaria a desenhar os currículos do ensino coerente com as atividades práticas que exijam a Conversação no idioma que se ensina.

Neste caso, ter-se-ia que consultar sobremaneira as necessidades da Instituição quanto ao concurso da colaboração organizada e sistematizada (não eventual) do

corpo discente.

a) nas tarefas preliminares da reelaboração de materiais didáticos impressos e audio-visuais;

b) na ajuda aos esforços de atualizaçãos do fichamento e catalogação da biblioteca do Instituto;

c) no funcionamento de círculos de estudo e discussão que poderiam evoluir para “seminários” realizados em torno de temas programados e desenvolvidos em duas

laudas de papel por alunos nos seus respectivos turnos.

A aula de Anotação, neste caso, seria ministrada pelo professor, em torno do material elaborado pelo aluno, ampliando, se for o caso, conceitos e seus

desdobramentos.

A aula de Conversação se constituiria assim, da discussão por parte - principalmente - dos alunos, tendo o mestre como moderador. Quaisquer dessas

opções só corresponde a atividade objetivada se emanar de norma objetiva estabelecida pela Instituição nos curricula do ensino; em caso contrário, toda a ação só

serviria como passatempo para diletantes - uma terapia para alunos fatigados e não como didática da aprendizagem da Conversação.

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NOTAS

1. Entre eles está o norte-americano E.L.Thorndike, segundo o qual “a conduta do homem consiste simplesmente nas reações externas do organismo provocada automaticamente por estímulos e fixados por reiterados exercícios mecânicos. Desta maneira, toda a educação se reduz ao desenvolvimento, mediante o treinamento de reações desejáveis de acordo a determinados estímulos”. In N.A.Konstantinov e outros, História de la Pedagogia, Universidad Autonoma de Nicaragua, UEAN, Manágua, 1982, p.145.

2. LEONTIEV, A.N., “Sobre a Formação das Aptidões”,Coleção 70, vol.nº36, Grijalbo S.A.Mexico, 1969,p.60-62.

3. “...gramática para principiante é uma coisa, e outra, para quem conhece o idioma (e os idiomas) e o espírito do idioma”, Hegel citado por Lenin em suas “Obras

Completas” Tomo XLII - Ediciones Cultura Popular, México, 1981, p.98.

4. Vide MAKARENKO, A. in “A Coletividad y la Educación de la Personalidad” - Editorial Progreso, Moscú, 1977.

5. PREDVECHNI, G.P. in “Psicologia social”, Ediciones Ciencias del Hombre, Buenos Aires, 1977, p.254.

6. “...el lenguaje nace como la conciencia, de la necesidad, de los apremios del intercambio con los demas hombres”. MARX Y ENGELS, “Ideologia Alemana”,

Ediciones Revolucionarias, La Habana, 1966, p.30.

7. “...os temas da linguagem humana foram inventados pelos próprios homens para lhes dar funções apenas referenciais e significativas, mesmo porque, é pelo

confronto com imagens, nestes termos configuradas, que os homens tomam conhecimento daquilo que nelas é referido”. FARIA, Álvaro de, “Da Babel à

Comunicação”, Editora Matra Ltda., S.Paulo, 1971,p. 157.

8. “Para compreender la naturaleza de la conciencia y las peculiaridades específicas de la actividad refleja del hombre, se ha de caracterizar el nexo de la conciencia

con la actividad”. SHOROJOVA, E.V., “El Problema de la Conciencia”, Editorial Grijalbo S.A., México, 1963, p.54.

9. LABRA MOYA, I., “Mistificaciones de la Psicologia Social Burguesa”, Universidad de Centroamérica, Manágua, Nicarágua, 1983,p.65.

10.”estímulo” que, no caso de uma aula de conversação, poderá estar representado em um texto atrativo com o propósito de obter como resposta uma maior disposição

dos alunos para um intercâmbio de opiniões e comentários em forma de diálogo.

11. LABRA MOYA, opus cit.p.70.

12. SHOROJOVA, opus cit. p.243.

13. LABRA MOYA, idem, ibidem.

14. MARINKO, I, STOLIAROV, I, “Metodologia de la Enseñanza de la Economia Politica”, Editorial Progreso, Moscu, 1982, p.4.

15. Instituto Latinoamericano da Universidade de Rostock, Macklemburg, Pomerania, Alemanha.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº60 - JULHO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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CONSTRUCTOS MOTIVACIONALES EN EL CONTEXTO EDUCACIONAL

FÁTIMA APARECIDA MAIA QUEIROGA

PRIMEIRA VERSÃO

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Fátima Aparecida Maia Queiroga CONSTRUCTOS MOTIVACIONALES EN EL CONTEXTO EDUCACIONAL

DEPTO. DE PSICOLOGÍA – UFRO

Desde la década del 40 cobra interés y auge la temática motivacional, lo cual no supone que con anterioridad no se hubiera tratado el tema en Psicología.

En la década del 60 se presentaron resultados de otro tipo de elaboración conceptual acerca de la motivación, particularmente de la motivación y satisfacción laboral,

donde los eventos motivadores conducen al interés por el trabajo a causa de una necesidad del crecimiento y auto-realización.

En general la comprensión del papel del hombre en el trabajo, se evidenció también que la motivación y la satisfacción juegan un papel cruacial en su

desempeño y su interés por el trabajo. Como consecuencia, ha sido posible comprender por qué unas personas se desempeñan mejor que otras en el trabajo, por qué

unas prefieren establecer relaciones de dirección y control sobre otras, o por el contrario, relaciones de carácter amistoso.

Diversos autores enfatizan que en la función de los directivos educacionales se incluyen aspectos como liderazgo, comunicación y la motivación. Estos

aspectos demandan el desarrollo de habilidades conductuales que posibiliten elevar el nivel de influencia sobre los profesores, miembros de la escuela y colectivo, para

lograr mejores niveles de participación, compromiso y con esto desempeños y resultados educacionales superiores y más eficazes.

Según Uribe (1982), el comportamiento en general y el desempeño ocupacional en particular se entienden como efecto o condición consecuente de la

motivación.

Para Toro (1992), el comportamiento es una función de cierto número de variables entre las cuales figura la motivación.

Cooper, (citado por Toro, 1992) en sus estudios dedujó que no se puede afirmar con certeza absoluta que dado un cierto patrón motivacional la persona exhibirá un

determinado patrón conductual invariablemente. Pero se puede afirmar que cuando se presentan condiciones externas, en el trabajo, congruentes con las características

motivacionales internas, de una persona y, a la vez, la organización refuerza los medios conductuales empleados por la persona para aproximarse a las condiciones

motivacionales externas, es altamente probable que se presenten comportamientos propios de se obtener beneficios deseados en el trabajo y la eficacia organizacional.

El hecho obedece, entre varias razones, a que estos aspectos son dimensiones del mismo fenómeno motivacional. Con fines analíticos y de exploración se

pueden discriminar y considerar separadamente pero ninguna de las dos dimensiones, con independencia de la otra, puede explicar satisfactoriamente la motivación. Un

número impresionanre de investigaciones se han orientado a determinar cúales son los factores que motivan las personas ya que se trata de constructos motivacionales

adquiridos y desarrollados a lo largo de la vida. Muchos teóricos han llegado a la conclusión de que los diferentes tipos de comportamiento requieren diferentes tipos

de motivaciones.

Como en todos los fenómenos psicológicos, las diferencias individuales están presentes, las personas pueden diferir en cuanto a los medios que prefieren emplear para

obtener retribuciones deseadas en el trabajo.

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El comportamiento de las personas en la organización es intencional, está orientado a la obtención de metas o resultados. Por consiguiente, en la medida en que

las organizaciones provean posibilidades directas o indirectas de obtener metas personales, en esa misma medida las personas estarán dispuestas a considerar su

vinculación como miembro. Por su participación en la actividad organizacional el individuo recibe beneficios o retribuciones que le interesan y la satisfacción de varias

necesidades.

Estudios comparativos han demostrado que escuelas que difieren significativamente podrán tener profesores con un perfil motivacional con diferentes índices

en factores relacionados con el trabajo. Los profesores, cuando están motivados a obtener un cierto nivel de excelencia o la búsqueda de metas y resultados, tratan de

idear formas más eficientes de hacer el trabajo, demostrando calidad en los resultados y proporcionando a la escuela un alto nivel de eficacia.

Practicamente todas las teorías actuales sobre motivación para el trabajo reconecen el papel importante que juega la relación entre las condiciones

motivacionales internas y las condiciones motivacionales externas.

Para Locke (1976), mientras las necesidades son objetivas por cuanto existen independentemente de lo que una persona desea, los valores son subjetivos en el

sentido de que están en lo conciente (son estándares en la mente consciente o subconsciente). Mientras las necesidades son innatas (heredadas), los valores son

adquiridos (aprendidos). Así, mientras todos los hombres tiene las mismas necesidades basicas difieren en lo que valoran. Mientras las necesidades los confrontan con

los requerimientos de la acción sus valores determinan sus escogencias actuales y sus reacciones emocionales.

Rand (citado por Toro, 1992) propone que los valores tienen dos atributos básicos: el contenido o aquello que es objeto de deseo o de valoración y la intensidad o la

fuerza con que algo es deseado o valorado. El concepto de valor entendido en los términos en que Locke y Rand lo consideran, describe mejor las variables que las

teorías de la motivación definen como necesidad.

Por tanto cualquiera que sean los constructos motivacionales, si este no está de acuerdo con las expectativas del grupo, resulta contrario a la estrategia

establecida, puede afectar las reacciones y motivaciones del equipo para alcanzar resultados educacionales productivos y cuando esta motivación está integrada en

conjunto con los objetivos de la escuela, cuando todos la comparte, y siguen el mismo curso, entonces es el momento que se crea el ambiente educativo efectivo, donde

cada integrante de la escuela siente que puede aportar ideas al logro de las metas de calidad.

BIBLIOGRAFIA

Locke, E.A. Nature and causes of Job Satisfaction. Chicago, Handbook of Industrial an Organizational Psychology, 1976. Toro, F. Cuestionario de Motivación para el Trabajo. Medelin, CINCEL Ltda, 1992. Uribe, L. C. Determinación de la confiabilidad y validez de una Prueba de Motivación para el Trabajo, Medelin, U. San Buenavetura,1982.

81

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº61 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2002

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 61

HISTÓRIA E LITERATURA: DO PRAZER AO PODER

AVACIR GOMES DOS SANTOS

PRIMEIRA VERSÃO

Avacir Gomes dos Santos HISTÓRIA E LITERATURA: DO PRAZER AO PODER

Professora do Departamento de Educação - UFRO

[email protected]

Os pedestres na rua fazem caminhar a floresta de seus desejos e interesses”. (De Certeau: 1994)

Vivemos num período de transição, não apenas no que se refere ao alvorecer de um novo século, mas também em relação aos valores, as subjetividades, as

crenças, as idéias enfim as percepções de mundo.

Enquanto a sociedade, a família, a Igreja, o Estado e outras formas de instituições estão passando por processos revisionistas, a educação, em termos de

discurso corrobora a sua importância neste o novo milênio. No entanto, muito falta ser feito para que o acesso, a permanência e o sucesso escolar sejam direitos

garantidos de fato para todas as crianças.

No imaginário coletivo existe a crença de que a educação é fator imprescindível à ascensão social, a melhoria de vida. Essa crença é traduzida no esforço dos

pais por manter os filhos na escola durante anos. As pesquisas referentes à educação estão voltadas para temáticas tais como: planejamento, administração escolar,

metodologias, técnicas, formas de avaliação, psicogênese da linguagem, relação professor e aluno e, o que atualmente está fazendo parte das agendas de discussões – a

formação docente. As questões que envolvem o imaginário social, as mentalidades, a história oral, as análises discursivas constituem um terreno pouco explorado na

educação através da pesquisa científica.

Quais as compreensões que os professores formulam sobre o seu trabalho? Como essas construções influenciam no cotidiano profissional, pessoal e nas

relações que são estabelecidas entre professores e alunos na sala de aula e fora dela? Quais as concepções epistemológicas de mundo, homem, natureza e da própria

educação que o professor possui e transfere para os alunos através da sua postura profissional? Como os alunos se apropriam do conhecimento escolar e o transfere

para o seu cotidiano? Como perceber as formas de manifestações discursivas transferidas às práticas pedagógicas? São elas: correspondentes, exclusivas ou

contraditórias?

Esses questionamentos e tantos outros relacionados à subjetividade do fazer pedagógico necessitam ser transformados em objeto de estudo. Porque a

complexidade da práxis pedagógica vai além do entendimento e da aplicabilidade de adequadas técnicas e métodos de ensino.

As idéias de que a relação professor e aluno extrapolam, na sala de aula, os ditames do pragmatismo educacional, que o professor possui uma identidade social

e individual, as quais impregnam sua prática docente são temas fundantes para compreensão da totalidade do processo de construção do conhecimento por parte

daquele que ensina e daquele que aprende.

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Do rol de disciplinas que compreende o currículo escolar a História e a Literatura se apresentam como as mais propícias ao entendimento dessas questões, pois

através da aplicação destas o professor revela as suas ideologias, suas crenças e seus valores, enfim sua compreensão de mundo.

Como afirma Japiassu: “a história, ao desprender-se do mito de uma encarnação do espírito no tempo, ao desvincular-se das ilusões de uma busca dos

“acontecimentos”, constitui-se e se impõe como um grandioso estudo crítico das mentalidades e das atividades comuns dos homens”(1994; 23).

À primeira vista história e literatura são vistas de formas diferentes como áreas do conhecimento. A história é objetiva. A literatura subjetiva. A história tem

por objeto de estudo o passado. A obra literária é reconhecida como tal quando antecipa o devir, o futuro. A história tem por pressuposto a verdade. A literatura é

ficcional. A história forma e informa. A literatura distrai. A história tem um discurso oficial. Na literatura o discurso é polifônico. A história atrai pelo poder do saber.

A literatura pelo prazer. A história conduz o leitor à saída do labirinto. A literatura é o fio de Ariadne.

A relação entre literatura e história não é feita apenas de paradoxo. Ambas, como as concebemos na cultura ocidental cristã, são construções discursivas da

ciência, que ganharam forma durante o século XVII, e se enquadram no ramo das ciências humanas. A literatura e a história se materializam no jogo e no trato das

palavras. A narrativa é a base desses conhecimentos. Tanto a literatura quanto a história fazem parte do rol do currículo escolar, assim, possuem o conhecimento

teórico, que é traduzido em conhecimento escolar.

Literatura e história não se excluem, mas também não se completam. No entanto podem ser consideradas como via dupla do conhecimento humano. Por não ter

um contrato assinado com a verdade absoluta a literatura a tem liberdade da poiésis. .Diferente da história, que mesmo se livrando do discurso oficial não se livra do

monstro da verdade.

Nosso objetivo neste trabalho é demonstrar os elementos que constituem a formação discursiva da história e da literatura, enquanto construções humanas,

práticas discursivas elaboradas pelo homem, através da interação com outros homens. E que assim, revela sua identidade e subjetividade num determinado tempo

histórico e lugar social.

A história compreendida como a ciência do passado é uma idéia ultrapassada. De acordo com Marc Bloch, a história seria antes de tudo uma investigação. O

objeto da história é o homem. “Melhor os homens. Mais do que o singular, favorável a abstração, convém a uma ciência da diversidade, o plural, que é o modo

gramatical da relatividade” (1976; p.28).

O registro dessa investigação, ao ser publicado tende a ser transformar em verdade histórica, única, pronta e acabada. Principalmente nas publicações

destinadas à clientela estudantil. O caráter diverso da história, enquanto conhecimento escolar dependerá da concepção de mundo do professor.

Muitos acreditam que a função do historiador é a de estabelecer o acontecimento e enumerar as suas causas e obviamente as conseqüências do fato histórico.

Esta concepção é reducionista do mister do historiador, que busca a compreensão da história. Como afirma Bloch: “a questão numa palavra, já não é a de saber se Jesus

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foi crucificado e depois ressuscitou. O que se pretende compreender, de agora em diante, é como há tantos homens que crêem na Crucificação e na Ressurreição”

(1976; 33).

A busca dessa compreensão passa pelo entendimento da análise do discurso, como o personagem Jesus foi elaborado, quais as condições de produção que

influenciaram essa construção. Como as escritas dos apóstolos mesmo contraditórias são aceitas como verdades absolutas e analisar como o processo de escrita

transfere as gerações futuras o pensamento das gerações passadas.

Para os que defendem a história como ciência do passado, a fonte é o documento, preferencialmente o escrito e oficial. No entanto essa fonte não é um

postulado de verdade, como pensavam os positivistas. O documento pode ser percebido como um vestígio do passado, mas não sua configuração, pois o documento é

por sua imanência um discurso produzido intencionalmente pelas gerações passadas, geralmente com vista a auto glorificação. O historiador não ressuscita o passado,

ele ainda permanece imutável. O que é plausível de mudança é o conhecimento construído do passado. Cada nova geração direciona um olhar diferente ao seu passado.

Em princípio, é necessário ampliar a noção de documento para as diversas formas utilizadas para marcar os vestígios humano, como a arte, a arquitetura, a

literatura, a linguagem (oral, escrita, simbólica). Sendo o documento resultante da construção humana e social, cabe ao historiador saber ler o que o texto (documento)

deixa entender sem ter tido o interesse de demonstrar. O documento não fala por si. O historiador é que o faz falar. Nesse sentido o mesmo documento pode ser

utilizado para fins diferentes dependendo da posição ideológica do historiador.

Um documento que registra um assassinato, contém um fato. A análise desse fato será diferente tantos quantos forem os seus olhares. Como afirma Bloch, que

um homem tenha assassinado outro homem é um fato, mas castigar o assassino supõe que se considere esse fato como coisa condenável, o que não passa de uma

opinião, (1976; 122), com bem acreditava Raskólnikov, uma opinião em que não estão de acordo nem todas as civilizações nem tão pouco todas as culturas.

Antes do final do século XVIII, toda obra de linguagem existia em função de uma determinada linguagem muda e primitiva. De acordo com Foucault a obra seria

encarregada de restituir essa linguagem muda, linguagem anterior às linguagens, era a palavra de Deus, dos antigos, a verdade, o modelo, a Bíblia, dando a essa palavra

seu sentido absoluto, isto é, seu sentido comum. Havia uma espécie de livro prévio, que era a verdade, a natureza, a palavra de Deus, que, de certo modo, ocultava e

pronunciava toda a verdade. Essa linguagem soberana e resguardada era tal que, por um lado, qualquer outra linguagem, toda linguagem humana, quando queria ser

uma obra, devia simplesmente retraduzi-la; por outro lado, essa linguagem de Deus, da natureza, da verdade era oculta. Era o fundamento de todo desvelamento e, no

entanto, era oculta. Não podia ser transcrita diretamente. (200; 152).

Essa idéia transferida para literatura permaneceu até o advento da ciência que outorgou os vários discursos sobre o homem moderno. A literatura mesmo sem

carregar o peso da objetividade cientificista ocidentalizada, que atormenta o mister do historiador, também é resultante da construção humana e social, e traz consigo

aspectos imanentes de sua caracterização. Há no imaginário coletivo social a crença de que uma obra literária é concebida de forma “naturalizada” pelo seu autor,

assim como Maquiavel se transfigurava num nobre para poder escrever ao príncipe.

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De acordo com Foucault é preciso abandonar a idéia preconcebida de que a literatura se fez de si própria. Segundo a qual ela é uma linguagem um texto feito

de palavras.A literatura é feita de algo inefável, de algo que poderia se chamar de fábula, no sentido rigoroso e originário do termo (2000; 141). Por conseguinte as

fábulas, os mitos, as lendas, as narrativas marcam as gêneses da literatura e da história.

O que faz uma obra ser considerada literatura? O paradoxo da obra reside no fato de só ser literatura no exato momento de seu começo, na página em branco.

Toda obra não é a realização da literatura, mas sua ruptura, sua queda, seu arrombamento. Qualquer palavra é um arrombamento. Para Foucault é obra literária aquela

que ainda não foi escrita (2000; 142).

A literatura e a história, como as percebemos na atualidade são construções formalizadas do século XVIII, através do discurso da ciência. De acordo com

Foucault a institucionalização da literatura, passa pela recusa da própria literatura, em quatros negações: recusar da literatura dos outros, recusar aos outros o próprio

direito de fazer literatura, recusar, contestar a si mesmo o direito de fazer literatura e recusar fazer ou dizer, outra coisa que não o assassinato sistemático da literatura.

(2000; 144). Em suma a literatura é a negação da própria negação, materializada no devir.

Sobre a definição de literatura, Foucault nos dirá que “nada que uma obra de linguagem é semelhante àquilo que se diz cotidianamente. Nada é verdadeira

linguagem. Não há uma única passagem de uma obra que possa ser considerada extraída da realidade cotidiana” (200; 144). Não é preocupação da literatura explicar o

cotidiano do presente. Basta acompanharmos Michel, andando pela Paris no século XX, para compreender que o tempo da literatura é o devir.

A idéia de virtualidade da obra literária é desenvolvida por Jauss em suas teses. Para Jauss o caráter artístico de uma obra não tem de ser sempre e

necessariamente perceptível de imediato no horizonte primeiro de sua publicação. O significado virtual de uma obra de arte permanece por muito tempo desconhecido,

até que a “evolução literária” tenha atingido o horizonte no qual a atualização de uma forma mais recente permita, encontrar o acesso á compreensão da mais antiga e

incompreendida (1994; 44).

Toda obra diz o que ela diz, o que ela conta, sua história, sua fábula, além disso, diz o que é a literatura diz através da unidade conteúdo e retórica. O real e a

linguagem são utilizados como pano de fundo. Para Foucault não há ser da literatura, há simplesmente um simulacro que é todo o ser da literatura (2000; 146).

O fio condutor da linguagem literária pode ser o autor, o narrador e também o próprio leitor. Existem diversos modos de linguagem, tanto quanto os gêneros literários.

No entanto gostaríamos de destacar neste trabalho o estilo polifônico de Dostoievski, tão bem compreendido por Bakhtim.

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, a peculiaridade fundamental dos

romances de Dostoievski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolvem nos seus

romances; é precisamente a multiplicidade de consciência eqüipolentes (Equipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de

igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem o seu ser enquanto vozes e consciências autônomas) e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de

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acontecimentos, mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoievski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso

do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente proferidos pelos seus próprios sujeitos. (BAKHTIN: 1997; 4).

Dostoievski é o criador do romance polifônico, segundo Bakhtin; por isto sua obra não cabe em nenhum limite, não se subordina a nenhum dos esquemas

históricos - literários. Suas obras marcam o surgimento de um herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance

comum. A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor (BAKHTIN: 1997; 5). Na concepção de Jauss, a obra de Dostoievski

definiu um novo desvio na arte literária.

A voz da história é a voz monológica, única, do herói vencedor e moralista, de preferência branco, homem e ocidental. A história necessita dar voz as vozes

que ela mesma fez calar através de sua objetividade científica. Tornar-se um discurso polifônico como nos romances de Dostoiévski, construir um discurso polifônico

eis o desafio para a história e o ensino da história neste novo século.

Procuramos relacionar algumas das questões mais decorrentes da história e da literatura a fim de que possamos compreender a formação discursiva

dessas áreas do conhecimento humano, e de buscar entre elas uma interrelação que pudesse ser materializada no ensino escolar.

Essa relação é algo que tem chamado atenção desde de Aristóteles. Na “Poética”, capítulo IX, ele define essa relação da seguinte forma:

“Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu, é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não difere o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderia ser postos em versos as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história,se fosse em verso o que eram em pros – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por “referir-se ao universal” entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes ás suas personagens; particular; pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu” (1993; 53/5).

Os gregos tinham preferência pela poesia e com certeza a subjetividade da poesia nos fala mais do homem do que a objetividade da história. Porém, não cabe a

história julgar o certo e o errado, a verdade e a mentira, o bem e o mal, as trevas e a luz, como verdades inquestionáveis com base no acontecido.

Ao mister do historiador cabe compreender as ações humanas. Essa busca incessante implica na consideração ao conhecimento das ciências além da histórica.

Pois a história não é uma ciência, mas parte de um discurso outorgado pela ciência ocidental, assim como o discurso da biologia, da matemática, da física, da

lingüística. A ciência, segundo Marc Bloch, “só decompõe o real para melhor poder observar, graças a um jogo de fogos cruzados cujos raios constantemente se

combinam e se interpenetram. O perigo só começa quando cada projetor pretende ser o único a ver tudo” (BLOCH: 1976; 131).

A história precisa aprender com a literatura algumas lições. Uma delas é o de dar voz aos inúmeros autores da história e não apenas aos personagens principais.

E a questão não é apenas de dar voz aos marginalizados ou esquecidos da história, como pretende os defensores da “Escola dos Annales”, mas de demonstrar a

efervescência das vozes no cotidiano social, local de materialidade da história.

87

Na sala de aula o aluno não se identifica com a história, por que a voz que ele ouve é a dos reis, presidentes, militares, religiosos e cientistas, e num tom quase

sempre castrador, moralista e profética. Neste espetáculo cabe ao aluno apenas o papel de expectador. Na literatura, ao contrário, o leitor se identifica com os

personagens, as emoções são afloradas a cada instante. Dificilmente alguém lembrará do primeiro livro de história, mas com certeza mantém vivo na memória o

primeiro livro de literatura. “Cazuza” de Viriacto Correa, guardo-o como um bilhete de entrada no mundo.

O tempo da literatura é o devir, o amanhã, o futuro, pronto para ser materializado. O tempo da história é o tempo passado, o ontem, pronto para ser

ressuscitado. Pensar a história como passado é prende-la num cemitério. Pelo contrário o tempo da história é o tempo presente. Na habilidade de apreender o que é vivo

é que reside a qualidade do historiador. O historiador não pode fechar os olhos para o presente, pois é nele que o passado se materializa.

A lição temporal implicaria á historia uma transformação por completo no seu conjunto epistemológico. No entanto a história precisa transpor-se para o

presente. A história acontece no presente, no aqui e agora. Passado e presente ocupam o mesmo espaço. O tempo passado, como fim em si mesmo não traz grandes

significados, mas a percepção de suas marcas no presente é muito mais elucidativo.

A dinâmica temporal histórica obedece aos ditames da ciência, que procura quantificar e medir algo criado cultural e socialmente pelo homem. O tempo

enquanto imanência não existe. Na literatura essa ótica é ignorada. Um romance pode começar com a morte do personagem, com a cena de um crime, com a revelação

de um mistério, ou com as reminiscências do narrador: “Durante muito tempo, deitava-me cedo”. Início, meio e fim são relativos na obra literária. A história,

principalmente enquanto disciplina apega-se a linearidade a fim de garantir a sua compreensão, através da ótica causa e conseqüência.

A proposta de diálogo entre história e a literatura, é aqui defendida como abertura de possibilidades ao enriquecimento dessas áreas enquanto disciplinas

escolares. E o professor na sala de aula carrega nos ombros o fardo da história que quer ser verdadeira, universal e natural.

A busca do diálogo entre as várias áreas do conhecimento humano não mata suas particularidades, mas faz compreender que a ciência é a fonte dos

conhecimentos oficializados. De acordo com Bloch, o conhecimento dos fragmentos estudados sucessivamente, cada um por si, não proporcionará jamais o

conhecimento do todo; nem mesmo o dos próprios fragmentos (1976; 135).

O ensino interdisciplinar da história, não apenas com a literatura, mas com a geografia, a matemática, a filosofia, a química, a informática, a física quântica, a

economia, a psicanálise (...) abre a possibilidade do aluno construir uma concepção de mundo mais completa, onde todos os fatores estão intimamente relacionados.

Então ele poderá compreender que o holocausto, a globalização, a queimada das florestas, a guerra nas estrelas, o massacre dos sem-terra, a virtualidade, a queda da

economia Argentina, a conquista da Lua, o nascimento de Cristo, o projeto genoma, o pedido de perdão do papa aos índios, as olimpíadas, o sexo, as drogas e o rock,

não são desejos dos deuses ou de seus escolhidos, mas sim resultado das relações sociais estabelecidas entre os homens nos diferentes tempos históricos. O homem

constrói a história e a sua mudança, permanência, transformação ou perpetuação são decisões tomadas pelo próprio homem.

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BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo, Ars Poética, 1993.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiésk. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997.

BLOC, Marc. Introdução à História. Portugal: Publicações Europa – América, 1976.

FOUCAULT, Michel. Linguagem e Literatura. In: MACHADO, Roberto. A Filosofia e a Literatura. Rio de Janeiro Jorge Zahar, 2000.

JAPIASSU, Hilton, Introdução às Ciências Humanas. São Paulo, Letras & Letras, 1994.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação á teoria literária. São Paulo, Ática, 1994.

89

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº62 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

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MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

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O DESAFIO DE ENSINAR

ANDRÉ DE ARAUJO NEVES

PRIMEIRA VERSÃO

André de Araújo Neves O DESAFIO DE ENSINAR [email protected]

A escola é o espaço social que tem como função específica possibilitar aos educandos a apropriação de conhecimentos científicos, filosóficos, matemáticos

etc., sistematizados ao longo da história da humanidade, bem como estimular a produção de um novo saber, que possa ajudar na luta por mudanças nas injustas relações

sociais presentes em nossa sociedade. Por isso, faz-se necessária a compreensão dos problemas que permeiam e envolvem a prática docente hoje, com a intenção de

superá-los. A escola só torna-se democrática na medida em que colabora para a formação de sujeitos críticos e conscientes, voltados para a transformação social.

Entende-se que o conhecimento de um modo geral acontece na interação constante entre o aluno e o objeto a ser conhecido, tendo o professor como mediador

neste processo. O docente precisa, entretanto, contextualizar a sua prática de ensino, considerando o discente um sujeito concreto historicamente situado, com uma

identidade que, além de individual, é também coletiva e que o liga a sua origem de classe. (BERNARD & ÁVILA; 1997: 52).

Nós, acadêmicos dos cursos de Licenciaturas, bem como os estudantes dos cursos de Pedagogia e demais ciências da Educação, temos diante de nós desafios

inerentes à natureza do exercício do magistério. Daqui a pouco estaremos à frente de uma sala de aula, com cerca de quarenta “filhos dos outros”, com os quais

precisaremos interagir a fim de fazer a educação deles.

Faz-se necessário então, na visão do professor Paulo Freire, que o aprendiz de educador (nós, eu e você) venha a compreender princípios ou saberes

necessários à prática educativa. É preciso que nós, futuros professores, desde o princípio da vida acadêmica, nos assumindo como sujeitos também da produção do

saber, reconheçamos que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE; 1996: 26).

Neste ínterim, é importante ressaltar ainda que não há docência sem discência, pois quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. E

essa interação dialética professor-aluno, aluno-professor é que torna a prática pedagógica um desafio maior — não obstante muito mais prazeroso —, e criará laços de

amizade e respeito mui favoráveis ao processo ensino-aprendizagem.

Desejamos que a nossa prática educacional desperte os alunos e os direcione para caminhos mais solidários e democráticos em sua relação com a sociedade,

que percebemos injusta na distribuição desigual dos benefícios sociais devido ao processo de produção desses bens nos moldes do capitalismo. Queremos, entretanto,

que o aluno compreenda o mundo em que vive e se proponha, como cidadão, a mudá-lo na busca de condições de vida plena para todos. Por isso, não nos interessa o

sistema de transmissão-assimilação de verdades acabadas, que forma sujeitos individualistas, alienados, a serviço da continuidade da atual estrutura social. O modelo

tecnicista não serve, portanto, aos nossos propósitos, pois na nossa visão, ensinar exige de nós a convicção de que a mudança é possível. Como declara FREIRE (1996:

87),

91

“É preciso, porém, que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como

expressão da natureza humana de estar sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não para a nossa resignação em face das ofensas que nos destroem o ser. Não é na

resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos.”

Uma outra questão não menos séria do que esta é a necessidade de uma reflexão crítica sobre a prática de ensinar, que deve acontecer desde os cursos de

formação permanente de professores. Uma prática docente crítica envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. Por isso é

fundamental que, na prática do formação docente, o aprendiz de educador assuma que o raciocínio correto e crítico tem que ser produzido pelo próprio aluno em

comunhão com o professor formador. No entanto, o professor Ezequiel Theodoro da Silva, da Unicamp, em suas reflexões, questiona e afirma o que se segue:

“Agora pergunto: Quantos são os professores brasileiros que, ao iniciarem-se no magistério, efetivamente sabem o que e como ensinar? Quantos são

concretamente preparados para analisar as conseqüências de suas opções e do seu trabalho numa escola? Quantos têm uma vivência com crianças reais,

historicamente situadas? Eu diria que poucos, muito poucos… devido ao caráter excessivamente teórico e livresco dos nossos cursos de preparação e formação de

professores.” SILVA (1991:54,55)

É obvio que, tão necessário é, ainda, que o professor possua conhecimento prévio da matéria que se propõe a ensinar. Não que esse conhecimento sirva de

desculpa ao autoritarismo ou como motivo para aulas expositivas, dogmáticas e unidirecionais (o que seria um retrocesso), antes deve ser apenas um ponto de partida a

ser enriquecido com o trabalho com os alunos, como um pré-requisito que dará direção e organicidade ao processo de ensino.

Ensinar exige também respeito aos saberes dos educandos — saberes estes socialmente construídos na prática comunitária —, cujas experiências podem ser

aproveitadas para discutir a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo esteja sendo ministrado, estabelecendo uma necessária intimidade entre

os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a vivência social que eles têm enquanto indivíduos.

Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação; ensinar exige que caia por terra qualquer resquício do velho e

desgraçado ditado — “faça o que eu digo mas não faça o que eu faço” —, pois aquilo que o professor ensina na sala de aula ele seja o primeiro a dar o exemplo;

ensinar exige criticidade e ética; ensinar exige pesquisa; ensinar exige humildade e tolerância; ensinar exige segurança do que se fala, competência profissional e

generosidade; ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo; ensinar exige liberdade e autoridade; ensinar exige querer bem aos

educandos, e disponibilidade para o diálogo. Ensinar exige saber escutar.

Ensinar exige do professor, acima de tudo, bom senso e comprometimento. Bom senso é saber que o educador deve respeito à autonomia, à dignidade, à

identidade do educando, e ser coerente com este saber na prática. Isto exige do professor uma reflexão crítica permanente sobre a sua prática, a fim de avaliar o seu

próprio fazer com os alunos. Além disso, a prática docente é profundamente formadora, logo, ética; portanto espera-se de seus agentes seriedade e retidão.

92

Comprometimento é reconhecer que é impossível exercer a atividade do magistério como se nada estivesse acontecendo conosco; estamos engajados no

processo. É necessário um envolvimento maior com a prática pedagógica, que vá muito mais além do que ensinar o que me mandaram dizer, mas também ensinar o

que eles precisam saber, enquanto sujeitos situados em um determinado estágio histórico, para que assim despertem consciência política e cidadã. Ser professor é mais

do que ensinar fórmulas e técnicas, é também educar, formar. Formar gente pensante, com senso crítico aguçado, capaz de perceber e combater injustiças, que não

aceite passivamente os desparates de uma elite social, antes argumenta criticamente e luta por seus direitos. Esse é o desafio que temos pela frente.

Interessante se nós refletirmos um pouco sobre as qualidades de um bom professor. Necessário faz-se, num primeiro momento, detectarmos as características

de um educador ruim. A maioria de nós já teve a experiência de assistir aulas com um professor incompetente, e sentimos na pele as conseqüências de sua prática de

ensino ruim: certamente lembraremos que o mau professor costuma dissertar diariamente sobre a matéria, sem dar espaço para o diálogo; nunca utiliza uma linguagem

corporal, só fala, fala, fala; critica aberta e freqüentemente o que os seus colegas fazem no âmbito da escola e da comunidade, pois desconhece completamente o

significado da palavra ética… Muitas outras características poderiam ser citadas, mas por agora detemo-nos nestas por achar que bastam para mostrar que tal

“educador” não têm respeito pelos educandos, nem pelos colegas de trabalho, nem pelo magistério.

Como podemos então caracterizar um profissional da Educação sério e competente? Devemos considerar primeiramente que o bom professor sempre é

definido em função das contradições presentes numa sociedade em determinada época. Isto significa dizer que comunidades específicas, em diferentes etapas

evolutivas e frete a desafios diversos, solicitam determinadas posturas daqueles que executam o trabalho pedagógico. Posturas que levem as novas gerações a tomar

consciência das contradições sociais e a lutar por sua superação.

Dentro da realidade educacional brasileira de atualmente, podemos dizer que o bom professor privilegia a transmissão de conteúdos culturais significativos

até serem devidamente assimilados pelos alunos; busca interação com outros professores da escola na qual leciona, para que os conteúdos ganhem especificidade e

aprofundamento; procura constantemente atualizar-se, além de uma dedicação maior à literatura se sua área de atuação, acompanha e inter-relaciona os dados

provindos de outros campos do conhecimento, tais como história, política e economia; luta no sentido de evitar o massacre da repetência e da evasão escolar. Entre

muitas outras qualidades que o bom professor, ciente de seu papel na sociedade, deve ter, damos maior ênfase à necessidade de o educador buscar contínua atualização,

pois como declara SILVA (1991: 25),

“A atualização do professor não visará somente ao conhecimento psicopedagógico e não ao conhecimento do conteúdo específico. O professor, independente

da disciplina que ensina, deverá refletir sobre os fenômenos filosóficos, políticos e econômicos. Justifica-se, dizendo que uma nova sociedade não nasce de

conhecimentos que competem entre si, mas sim de uma visão da totalidade dos fenômenos sociais. Assim, deve-se buscar, (…) a atualização profissional para o

exercício do magistério (…).”

93

Como vemos, é o conhecimento da totalidade do real que aumenta o poder de julgamento e decisão do professor. Assim sendo, a chamada “educação

permanente” é fundamental para todos os indivíduos e mais fundamental ainda para os educadores.

Portanto, vemos agora que o conhecimento — o mesmo que assimilamos na universidade, o mesmo que iremos transmitir aos nossos alunos, todas as partes

desse imenso universo chamado conhecimento — é produto de um enfrentamento do mundo, realizado pelo ser humano, que só faz plenamente sentido na medida em

que o produzimos e o retemos como um modo de entender a realidade, que nos facilite e melhore o modo de viver, e não, pura e simplesmente, como uma forma

enfadonha e desinteressante de decorar fórmulas abstratas e inúteis para a nossa vivência no mundo.

BIBLIOGRAFIA

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Paz e Terra, 1996.

________. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. O professor e o combate à alienação imposta. São Paulo, Cortez & Autores Associados, 1991.

BERNARD, Rosa Maria & ÁVILA, Arita Moraes d' (Orgs.). Construção de uma escola: ousadia e prazer. Passo Fundo, Universidade de Passo Fundo, 1997.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº63 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 63

POR QUE E COMO ORGANIZAR A SOCIEDADE CIVIL, A CIDADANIA

CLODOMIR MORAIS

PRIMEIRA VERSÃO

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Clodomir Santos de Morais POR QUE E COMO ORGANIZAR A SOCIEDADE CIVIL, A CIDADANIA

[email protected]

Professor de Sociologia Rural - UFRO

No último lustro do século e também último lustro do nosso atual segundo milênio, se chega ao epílogo de um longo período, de longas eras, em que os

cidadãos cada dia se tornavam mais dependentes do estado e do Município.

Essa dependência para muitos indivíduos se afigurava como uma dádiva, uma prerrogativa que supostamente lhes atribuíam direitos de exigir do estado ou do

Município, quase tudo. Até o emprego, como se o poder Público fosse dono de todos os meio ou fatores de produção. E foi assim que a maioria das Unidades

Federativas do Brasil e a maioria das cinco mil Municipalidades do nosso País estão ao borde da falência sem poder pagar os seus servidores públicos, pois a despesa

sobrepassa à receita tributária.

O Poder Público passou a ser tratado, nas últimas décadas, como a “vaca leiteira” na qual todos buscam manter-se. Dessarte tornou-se evidente a inviabilidade

da União, da Unidade Federativa e da Municipalidade se não se introduz a racionalidade econômica no manejo da coisa pública.

Esta, a racionalidade econômica, a partir de determinada altura do processo de desenvolvimento tecnológico, independe de decisão política, por que ela

obedece à lógica natural da eterna busca, não somente de maior produção, mas principalmente dos mais altos índices de produtividades. No fundo é a lei do menor

esforço, a lei do mínimo de gastos para manter ou elevar os níveis de rendimento, de benefícios.

“No atual nível de incorporação de tecnologia aos processos produtivos - escreve Marcelo Affonso Monteir - o capitalismo destrói mais posto de trabalho do

que é capaz de criar. Isso significa desemprego crescente e irreversível, ou seja, a geração de um exército planetário cada vez mais numerosos de excluídos. Esse

processo de exclusão social vai ampliar muito os fenômenos do crime organizado na América Latina, do fundamentalismo islâmico no mundo muçulmano, do

neofacismo na Europa, dos conflitos étnicos na América Negra e dos conflitos étnicos lutas raciais nos Estados Unidos, gerando a barbárie generalizada em escala

mundial.”

“E que seja compreendido que a resposta policial pura e simples não é a solução, pois os bárbaros acabam marchando contra os civilizados, esmagando-os.

Atila e Genghis Khan que o digam”.

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O instituto de apoio Técnico aos Países de Terceiro Mundo, IATTERMUND, desde sua fundação em 1988 sob a égide da Universidade de Brasília que adverte

a todos da “Camuflada Guerra Civil do Desemprego” que cada ano mais avassala as populações das grandes cidades brasileiras. Hoje os jornais diários registram

chacinas semanais, enquanto se registram semanalmente rebeliões de detentos nos estabelecimentos penais.

A experiência do IATTERMUND em três continentes tem presente que, ante a incapacidade do Poder Público no que diz respeito atacar a raiz do problema,

que não é outra se não o desemprego, estrutural, cabe à Sociedade Civil exercitar a participação e mando dos mecanismos que passam ser criados para enfrentar os

problemas mais graves de suas comunidades.

Porém, essa mesma experiência tem demonstrado que, nenhum projeto, nenhuma iniciativa terá eficácia se nos seus objetivos não estejam contempladas as

medidas de geração de emprego e renda de tipo participativa e comunitária.

É que o conceito CIDADANIA já não pode continuar usado e abusado definido como um “invertebrado gasoso”, ou seja, sem conteúdo algum. CIDADANIA

não se cria e nem se resgata nem se outorga com distribuição de bolsa escola, renda mínima, alimentos e roupas para excluídos, para os que perderam sua cidadania. A

Cidadania é definida como a capacidade que o indivíduo tem para se manter a si mesmo, manter a sua família, e mediante o pagamento de tributos, remunerar os

serviços que a sociedade põe a seu inteiro dispor, ou seja, os serviços públicos.

O escritor francês, Beaumarchais, em 1774, (nas suas contenda judiciais com o Conselheiro Gusmão) processado pela Justiça, diante do parâmetro, fez sua

própria defesa e um apelo ao público: Eu sou um cidadão, quero dizer, aquilo que devíes ser há duzentos anos e que sereis dentro de vinte anos talvez”. Ele estava de

fato ha duzentos anos da primeira revolução burguesa, na qual surgiram os primeiro cidadãos dos Países Baixos e, apenas vinte anos da quarta revolução burguesa, em

que os franceses usavam o apelativo “citoyens”, cidadãos não para a plege ignara e nem para a nobreza parasitária e sim para aqueles (os burgueses) se dispuseram a

criar o estado democrático concebido pela Ilustração.

Hoje, a definição de CIDADANIA não se refere apenas ao gozo dos direitos civis e políticos do Estado mas também no desempenho de seus deveres para com

a sociedade. Atualmente o principal dever da CIDADANIA não é organizar-se em fila para receber cestas básicas e sim organizar-se para gerar cestas básicas mediante

a produção comunitária de bens e de serviços.

Os núcleos de integração da Cidadania, NICID, portanto, só cumprirão sua função histórica de forma exitosa, se criar em condições para que se estruturarem as

diferentes maneiras, distintas formas de organização dos cidadãos para manter os serviços de que as comunidades necessitam, operando eficiente e autogestioaciamente

com capacidade de auto-manter-se mediante suas atividades

Um laboratório Organizacional de Curso para formar os Técnicos em Desenvolvimento Econômico da Cidadania (e a seguir os seus interlocutores os

Auxiliares de Projetos de Investimentos , os APIS, à nível de comunidades) permitirá o exercício da participação social ativa e que os levará a identificar os

mecanismos e organismos sociais capazes de garantir o resgate da Cidadania dos excluídos dos Municípios e bairros.

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É na aplicação desse tipo de Laboratório de Capacitação Massiva que as comunidades criarão vários sistemas de participação social, de mobilização da

sociedade civil para meter ombros naquilo em que o Estado ou Município se manifesta impossibilitado de operar com eficiência.

Entre eles se poderá citar alguns como o SISAPLAM ( Sistema Alternativo de Planejamento Municipal) com os seus cursos para Auxiliar de Pesquisas

Alternativas Socioeconômicas; APASE; o SISAS, ( Sistema Alternativo de Saúde) com seus cursos de formação de Auxiliares de Proteção Alternativa de Saúde

(profilaxia) APAS; o Sistema Alternativo de Educação Funcional, SEAF, com os seus cursos de Práticas Alternativa da Educação Funcional, APAEF.

Sistemas como estes e outros , todos geradores de emprego e renda a um só tempo que se põe a serviço das comunidades carentes, sem se esquecer de um

sistema Alternativo de Socorro ou Assistência Jurídica, SASAJ, tão necessário à proteção dos direitos das mulheres, das crianças e das vítimas do trânsito.

A participação social gerada nos âmbitos dos Laboratórios Organizacionais fará surgir muitas concepções das formas através das quais a CIDADANIA se

incorpora ao manejo da coisa publica. Exemplo: ninguém pode impedir que um sindicato, uma associação qualquer recolha gratificações de proprietários de autos, ou

de casas comerciais e com elas paguem a desempregados para tapar buracos do asfalto. E assim por diante. Por isso, o primeiro passo para obter a maior dimensão de

todo qualquer projeto socioeconômico está na realização do Laboratório Organizacional de Cursos para formação dos quadros formadores dos interlocutores juntos às

Comunidades, porque somente estas têm mais capacidade para identificar a solução dos seus mais graves problemas e da maneira mais simples e mais barata.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº64 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME IV

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

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PROUST EM DOIS TEMPOS: AS MIRAGENS DO TEXTO

ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

ISSN 1517 - 5421 99

Alberto Lins Caldas

Professor de Teoria da História - Centro de Hermenêutica do Presente – UFRO

[email protected] - www.unir.br/~caldas/Alberto

PROUST EM DOIS TEMPOS:

AS MIRAGENS DO TEXTO

Dedico este “texto” ao querido, distante e sempre próximo, Mestre Gláucio Veiga, que me ensinou a amar Proust, Kafka e Balzac entre as inumeráveis conversas sobre Kant, Hegel e Marx.

Os dois pequenos ensaios iniciais foram publicados no Diário de Pernambuco em 10 e 31 de julho de 1981, quando afrontava, pela segunda vez, a

Busca sem fim de Proust, tendo, em meu primeiro contato em 1975 me provocado um horror apaixonado que não deixou registros maiores que simples

notas no próprio livro. Esses ensaios não honram uma legítima leitura da Busca e representam uma verdadeira derrota diante de pontos de partida que

retinham a obra dentro de teorias insuficientes para deixarem fluir a escritura e seu vazio germinativo: antolhos de uma “literatura” trivial e rasteira

criando olhos cegos como se vissem. Dizem, esses curtos artigos, somente o óbvio, o culturalmente aceito e o esperado: da voltas e não entra: repete e não

sabe: reproduz e não se dá conta. Pude somente ler a Busca em sua plenitude depois de 1989 (a segunda leitura da Comédia Humana em 1988 parou no

quinto volume), quando iniciei a inscrição de “Babel” (Revan, Rio de Janeiro, 2001) e a literatura tomou outro e inesperado rumo, queimando todas as

páginas anteriores, todas as teorias, saberes e práticas. Como Proust está no centro daquilo que considero literatura, e tenho retomado velhos escritos sobre

a questão, voltar às minhas próprias concepções sobre Proust é retomar fios perdidos, caminhos destraçados, leituras sempre recomeçadas e reelaboradas,

para uma escritura que se fará sempre contra os arredores, contra o tempo e contra a língua e, se der tempo, ainda se fará maior que seus inescapáveis

limites, limites da virtualidade, não da Língua, da Cultura, do País. Além disso, acrescento algumas notas bordadas num imediato sem busca, sem

inteligência, sem vergonha, envolvido como estou na teia ridícula dos gabinetes passageiros e das conversas vulgares: talvez Proust seja ligeira mas

profunda tentativa de fuga, principalmente porque nessa noite escura só resta literatura, a mesma de Proust.

O ROMANCE EM PROUST

O papel do romancista em Proust prende-se a relação objeto-consciência. A consciência proustiana não estabelece um contato direto com o objeto,

que permanece inacessível, na sua matéria, a um aprofundamento intelectivo. O objeto se “dissolve” antes que haja este contato. Os sentidos são

ISSN 1517 - 5421 100

impotentes para esta operação que se fará, não na atividade sensória, mas através do artista, que funde, como um todo perceptível, a interioridade à

exterioridade, formando com isso a imagem literária que possibilita a posse do objeto na essência. A imagem literária em Proust é o único elemento capaz

de tornar translúcido a opacidade do objeto.

A vida torna-se secundária enquanto a criação ao congelar o tempo e transforma-lo em coisa palpável, e real possibilidade de aprofundamento,

toma o lugar da vida; os acontecimentos cotidianos, ao serem percebidos, escondem o seu interior, enquanto a imagem literária desencadeia emoções e

aventuras que, em pouco tempo, coagulam uma vida inteira nelas. Em Proust o Dramático só é real à consciência enquanto criação. Proust recria a vida ao

desprezar a vida. O personagem proustiano não é real, real é o que sentimos, o que experimentamos, mentalmente, desse personagem.

O achado do romancista foi substituir, no objeto, as partes inacessíveis por uma totalidade racionalizável, construindo a partir daí uma “ontologia”

que, ao admitir o tempo como dinâmica que impossibilitaria a consciência de chegar até a coisa, se fundamenta na consciência como recriadora do mundo.

Mas em Proust existe uma força que arrasta a consciência ao mundo, como que para ultrapassá-la e chegar até às coisas. Nesse momento,

aparentemente, existe uma igualdade entre o interior que percebe e a coisa percebida. Um frágil momento. Encontra-se realmente o eco da alma, o que

projetou sobre as coisas e não o exterior. Encontra-se a desilusão, pois se esperava um mundo em combinação com a consciência e não a dissociação entre

a criação dele com o mundo.

PROUST E A MEMÓRIA

A temporalidade proustiana é “depositada” em dois “compartimentos” da memória. O primeiro, é o da memória voluntária. Nela, Combray estava

incompleta, como se “consistisse apenas em dois andares ligados por uma estreita escada, e como se nunca fosse mais que sete horas da noite”. O restante

permanecia na treva, escondido e “morto”. O que era lembrado vinha da inteligência que não conserva, segundo Proust, a plenitude vivida. A consciência,

desse modo, é impotente para a posse da vida, sendo apreendida através da obra de arte, tendo como fonte primária a memória involuntária.

A consciência proustiana é a “vergonha” de ser autônoma, de ser ordenadora, e chave mestra do recriar fecundo e constante do mundo humano. Ela

não é reflexo do ser social nem social na sua estrutura; é, antes de tudo, o boneco sem forças do inconsciente, que não entre em relação com o mundo

físico de tempo universal, mas apenas com o tempo psicológico, pessoal. Por isso o romance de Proust tem como personagens e paisagens, a vida do

homem Proust. Ele é o próprio romance, a reinstauração estática da dinâmica desprezada da vida.

Proust nos fala sobre a crença céltica da transmigração das almas, daqueles que amamos e perdemos, para objetos e animais, e que para libertarmos

essas entidades, basta passar por perto ou tocá-lo, quebrando o encanto. “Libertadas por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco”. Essa lenda é

ISSN 1517 - 5421 101

associada ao nosso passado, àquilo que está nas mãos da memória involuntária, e apenas será nosso quando entrarmos em contato com ela. A beleza da

obra de Proust está nessa atmosfera de sonho revivido pela Arte com maestria inigualável.

A Madeleine proustiana é a passagem, o caminho entre o consciente e o inconsciente. É a coisa exterior que faz a ligação entre o percebido

presente e aquele percebido esquecido por vivências mais fortes e presentes. No momento em que Proust toca a Madeleine misturada ao chá, a essência de

Combray, a totalidade perdida é reinstaurada. A ligação entre dois “mundos” é feita, mas não sem um esforço do consciente, e uma sensação de alegria e

bem-estar faz com que cesse a determinação do Ser, fadado à morte, sem saída possível da deterioração constante, e final absoluto como Ser-no-Tempo, a

não ser, pela fixação desse universo pessoal fazendo da domesticação do tempo, obra de arte. Transformar a dinâmica rebelde do mundo em “estática”

artística é papel de Proust e da arte como salvação individual.

Mas a volta dessas lembranças perdidas não induz apenas a uma sensação exploratória por parte da vontade, mas também um criar e recriar desse

momento inconsciente, agora consciente. Essa vontade não se satisfará com o pouco dado pelo toque do objeto, mergulhando em busca do todo escondido

e o desancorará para luz.

OUTRO TEMPO/OUTRO PROUST

1 - Proust não escreveu “Em Busca do Tempo Perdido” para “contar sua vida”, seu tempo, seu mundo: mas para inscrever, num vazio denso, num

deslimite de vácuo, no impreciso de um não existir, precisas obsessões, precisos nós, precisas dobradiças. A Busca torna “sua história”, “seu mundo”,

“seu tempo”, artifícios, coberturas, iscas carregadas de desejo, estetizações em volta de núcleos de pura repetição. Em volta dessas obsessões cresce

uma vegetação textual luxuriante: uma proliferação viral: uma infestação bacteriana: uma erupção: isso é o texto proustiano: algo que cresceu em torno

de tensões criando pontes entre outras tensões e seus casulos, dando-nos a sensação de “texto corrido” (“vasos comunicantes”: a passagem do líquido,

do gás, do magma, da eletricidade, do silêncio, do nada em busca de tudo): ilusões da repetição que escorrem na diferença. Sua meta literária é vomitar

esses nós; é esconder esses nós; é ex-pôr esses nós; é dobradiçalizar esses nós: sua magia ad-vem desses artifícios miraculosos. Antes de Proust

praticamente ninguém levou este “método” ao paroxismo da segregação absoluta em torno de quase nada: uma cadeia de obsessões que não cessa e no

fim, o Oroboro do texto, morde o rabo e começa a se devorar novamente, sempre diferente, numa repetição sem fim e tão magistralmente orquestrada

que praticamente não aparece, pois o Oroboro morde outro rabo, outra cobra entre cobras envolvidas numa orgia semiótica.

ISSN 1517 - 5421 102

2 - A Busca não é uma leitura que exija um tempo comum, o tempo da leitura de um livro: exige uma vida (exigiria vidas!). É a leitura de uma existência, dedicada a

tudo que uma existência precisa, mas com a Busca sempre voltando, sempre indo, sempre mergulhando, sempre sendo re-vista. Na verdade ninguém lê a Busca:

não se pode jamais se dizer que a Busca foi lida.

3 - Não há, na Busca, o tempo: é tanto uma ilusão do narrador, uma pretensão do homem Proust quanto dos teóricos e críticos, levados por aquilo que diz o texto

enquanto algo manifesto: sua função é, assim como a história, as tramas, servir de isca para desviar, nos levando, fisgados, para outro lugar que o leito

encantatório das palavras encadeadas, das imagens, do musgo vivo e sagrado daquele flu-ir. Os nódulos assim se escondem, escondendo a radical ficcionalidade, a

natureza de alegoria e metáfora: o narrador nos faz esquecer a atmosfera onírica, pastosa, irreal de tudo aquilo: a criação se esconde. Ele em muitos lugares nos

convence da racionalidade, da lógica, da perspectiva dele, da recriação do passado: e tudo é somente clivagem, repetição que se esconde e literatura que aparece

como memória (outro conceito inexistente em Proust), como o vivido, a história, o tempo real e histórico, o biográfico. Esse mesmo biográfico que Proust em

“Contre Sainte-Beuve” desenvolveu como um engodo do crítico francês, mas ninguém se dá conta quando “estuda” a Busca. Ali não está, em nenhum momento e

mais que qualquer outro “autor”, nada de biográfico, de vivencial. Em primeiro lugar, da mesma maneira que no “objeto cadeira” (ainda e sempre palavra) não há

nada da palavra “cadeira”; em segundo, porque o vivido não se torna, “assim como foi”, numa narrativa: a narrativa tem lógicas próprias, e mesmo a mais fria

descrição é somente algo separado daquilo que descreve: a ilusão historiográfica é uma marca que, se não des-obstruída, esconde a escrita, a ficcionalidade e sua

própria condição.

4 - Da mesma maneira que nenhum Deus está em nenhuma oração, realidade, céu, inferno, plano ou corpo, - o tempo, a memória, a história ou o vivido jamais estão

em nenhum texto e, principalmente, no texto proustiano: estão lá somente como uma miragem do texto: sem essas miragens não há o texto: sem essas miragens

não há o real.

5 - A Busca não é a escritura de uma “vida lembrada”, mas a escritura de uma vida, a criação de uma vida, uma invenção essencial (é assim que o ser é). A tessitura

não do recordado, mas o avesso do bordado ao se destecer, ou a conquista de Penélope, a ausência do tecido, a liberdade do destecer e do destecido enquanto

tecido, a liberdade substancial do destecido: a Busca é um destecido: o tecido do esquecimento, não um positivista recordar, que é sempre um dizer e não um

dizer-o-que-foi: a ilusão jurídica, policial, científica, a mesma ilusão historiográfica, não pode ser aplicada à literatura (ou à arte): as colméias do texto revelam o

próprio ser: não é que as colméias do ser produzam as colméias do texto, mas que as colméias do texto re-velam o próprio ser.

6 - A Busca não é circular: o fim não remete ao começo; também não é linear: é estruturalmente dissipativa; caos ordenando-se segundo nódulos precisos que

falsamente se articulam; temporalidade delirante, onírica, mítica. Da mesma maneira que o “tempo do mundo” (todos os tempos das galáxias culturais) não é um

tempo científico (físico, histórico, psicológico), mas essencialmente mítico, tempo de desdobramentos singulares no eixo de existência do imediato do presente

ISSN 1517 - 5421 103

(com os desdobramentos que criam o tempo como uma dimensão mítica e tríbia), o tempo proustiano é um desdobramento dissipativo onde nada realmente se

relaciona com nada: o efeito de relação é uma ilusão narrativa.

7 - Todo “conhecimento objetivo” ou “saber” que possa advir de uma obra literária é tão somente uma duplicação da própria teoria (Filosofia, Ciência) que a projeta

na obra como uma substância dela e não como uma projeção.

8 - Dizem que é preciso ter paciência para ler as compactas três mil páginas da Busca, mas não se trata de um livro comum. Da mesma maneira que não se lê a Bíblia

de uma vez, a Busca exige uma vida, idas e vindas, trilhas e caminhos, perdições e achamentos: jamais uma releitura: a Busca não é jamais relida: é sempre lida.

9 - A Busca não é um “retrato de uma sociedade”, “a descrição de uma época”, uma “biografia romanceada”, um “mergulho no universo da burguesia francesa”, um

“exercício de memória”, um “exercício de leitura”, a “reconstrução da história de uma vida”: a Busca, assim como as “mitologias”, são desvendamentos do ser:

assim como o real se constitui, assim como nós somos formatados, assim a Busca se des-dobra: des-vendar o próprio ser é a razão da sua existência.

10 - A Busca é um móbile sem suporte, sem matéria, armado e em movimento, corrigindo a cada plano, num múltiplo diálogo, sua apresentação de existir. Com uma

inteligência daquela leitura diz e desdiz sempre de maneiras diferentes, dependendo sempre do arranjo feito pela leitura, feita-construída pelos movimentos da

Busca: sujeito autônomo, oscilação livre. Como a Busca é viva, a leitura pode mata-la: como é morta, sem forma, sem estrutura, vácuo des-animado, pode ser

posta a viver. In-animada, quando se põe a viver não depende de nós; animada, comunga com as cristalizações do mundo mineral e só existe por nós. O morto

ouvindo a vida; a vida amando a morte.

11 - A obra de arte literária não é algo que conjuga os traços da virtualidade futura a partir do seu-ponto-de-criação, mas sempre do seu-ponto-de-leitura. É a vitória

do nada sobre o tudo; a conquista do vazio sobre o objeto; o avanço do sujeito contra o limite; o frágil sucesso da literatura sobre o mercado; a superação da

pequena-burguesia pela arte.

12 - Marcel Proust é uma dobra vazia da Busca: ela é quem pode tentar explica-lo, preenche-lo, faze-lo viver, existir ou ter existido: jamais a Busca ser explicada ou

preenchida por ele. Marcel Proust não existiu: é um possível personagem da Busca, uma dobra de alguma possível leitura.

13 - A ilusão balzaquiana de Proust e dos proustianos resiste somente se mantido conceitos naturalizados como suporte crítico (Natureza, Sociedade, História). O

retorno balzaquiano, a volta de caracteres, de personagens e de lugares (as específicas repetições de Balzac), na Busca, é uma leitura, uma aplicação metodológica

(um vício crítico). O Swann do “primeiro volume” não é o Swann do “volume segundo”: e não é porque envelheceu, casou com Odete, ou porque é pai de uma

chata: é outro: a densidade vazia da Busca constrói sempre outro (não caiamos na conversa do “narrador”: a ilusão dele é a mesma da crítica e a alegria das

metodologias que encontram o que buscavam): não se envelhece como se envelhece na Comédia Humana: o retorno proustiano não é o retorno balzaquiano: as

crenças de Balzac investiram a Comédia de uma “natureza historiográfica”, de uma “verdade de cartório” inextirpável por quase todas as leituras, mesmo as mais

ISSN 1517 - 5421 104

“esvaziantes”: na Comédia não há o vazio denso, o vácuo que atrai qualquer realidade, não há o contra Sainte-Beuve, o contra a história, o contra a natureza, o

contra a língua: na Busca, tão cheia, tão plena, tão impada de tudo até a náusea, há somente brechas imensas onde corre o vento das linguagens da leitura. A

nobreza ou a burguesia balzaquianas são estudáveis por marxismos, positivismos e teorias literárias; por economias, sociologias e estruturalismos; a nobreza ou a

burguesia proustiana não existe: são dobras falsas, miragens textuais, vícios das críticas, das leituras e das historiografias.

14 - O “eu” balzaquiano é o mesmo dos jornais, das ciências, da filosofia, do senso comum, da “literatura”: o “eu” da Busca mente: síntese e superação dos “pontos

de vista”, é uma nulidade de ser que se torna sempre o “eu” do leitor: sempre fora: sempre além das páginas: como o fora das “Meninas” de Velásquez. É ali de

fora que vem esse “eu”: esse eu é um fora: tudo na Busca está sempre fora.

15 - No entanto há um Proust em Balzac, um horizonte de leitura, de literatura, de vazio e vácuo: quando ele deixa de ser “romancista”, “escritor”, “cronista da sua

época”: da mesma maneira que o Flaubert de “Madame Bovary” e o Nerval de “Silvia”, Proust é o grande mestre de Balzac: aquele de quem nasce o melhor

desses três escritores. Inverter a equação seria não compreender as direções literárias, sempre opostas, dispersivas, radiculares e múltiplas. Ao mesmo tempo não

há a Busca sem mim (leitor, obsessivo numa busca qualquer): portanto, assim como Proust vem antes de Balzac, de Flaubert ou Nerval, venho eu antes de Proust.

16 - Exatamente porque ali não há nada é que podemos ver tudo, ou ver o que sempre se quis ver, ou o que se disse que lá estaria para ver.

17 - A “energia de decifração” e a “procura de essência” da Busca reduzem o universo a uma explosão de palavras, imagens, signos em choque, em fluxo, no tempo.

O “resultado” holográfico da leitura é o vazio (sempre insuficiente): a densidade máxima anula o som, a luz, o significado, o significante: tudo é arrastado para

não-ser: e assim a literatura se realiza: o que parece “retrato de uma época” se torna “buraco negro”: todas as outras realidades são arrastadas ali para dentro:

poíésis.

18 - Aquele que encontra a Busca vai perdê-la, mas quem perdê-la vai achá-la.

19 - A Busca deve coincidir com uma busca para que essa busca infle o vazio, o vácuo que o atraiu. É essa busca que criará a Busca. Não há uma Busca de Proust: é

o único, ou um dos primeiros, escritores sem busca, sem escritura, sem língua, sem matéria.

20 - Uma literatura que nos assalta com uma superabundância de impressões: linguagem sem chaves: essa impossibilidade de achar o fio (labirinto sem centro, sem

entrada e sem saída: sem labirinto), de agarrar o animal, conjugando conflitos, açulando forças, destravando obsessões, compondo linguagens, vozes, dis-cursos.

21 - Na busca não há sequer um narrador: o Marcel é somente um dos múltiplos narradores articulados, camuflados em dobradiças, em aparências: há narradores até

para frases articuladas: essa multiplicidade cria a ilusão de um único narrador: ilusão do próprio “autor”.

22 - A hiperdensidade (o acumulo de duplicidades, de inversões, de fluíres, de multiplicações generalizadas, de descrições galopantes, de minúcias encadeadas, de

articulações distantes ou muito próximas) cria o inverso do denso, do real, do concreto: faz desaparecer o ser: só na aparência há alguma coisa. Obscuridade em

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vez de iluminação; opacidade em vez de transparência, vazio em vez de cheio. A conseqüência para certa leitura é a transformação de tudo em esquemas,

modelos, histórias: algo que facilite a leitura: como se ali houvesse alguma coisa e não todas as coisas, ou a possibilidade de todas as coisas: a própria virtualidade

nua: entre o caos e o ser. Reduzir a Busca a uma história, a uma visão de mundo, a uma filosofia a uma “biografia romanceada”, facilita as coisas, reduz e anula a

Busca a ser uma simples história, mais uma história. Ali há uma filosofia e uma visão de mundo vazias, em desforma de vácuo para atrair outros mundos, criando

um espaço privilegiado de literatura: um hiperespaço, um lugar de todos os lugares, um imenso “buraco de Alice”.

23 - A Busca olha para todos os pontos, quando olha. Por isso não há um olhar proustiano, mas uma “máquina insólita”, um olho-de-mosca ligado a uma seqüência infinita de olhos-de-mosca, movimento alucinante de ver que descria o olhar.

24 - A bibliografia proustiana é uma questão à parte. Uma força a rasga em duas: há os que pré-sentem o nada, o vácuo que atrai toda realidade, re-significando-a, e

os que se entregam descaradamente ao “romance biografia”. O que prevalece é esta segunda perspectiva, principalmente porque os que sentem o vácuo, o ser que

atrai os seres, a literatura na sua essência, a alquimia realizada, a literatura (a arte) como o ritual da caça futura, magia que recria mundos, não conseguem articular

uma concepção de literatura que escape aos “conceitos básicos” da ocidentalidade nem à idéia de literatura como algo-ligado a Língua, a História, a Gêneros, a

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SUGESTÃO DE LEITURA

um papel precisa cumprir o seu papel

aceitar o signo o vazio entre os signos exclamações reticências

parênteses conchas de retalhos estranhamentos sonoros

confissões de uma arquitetura quase louca

fingimentos acima e adentro de tudo transparências que comporão as entrelinhas as traições

do leitor-autor fantasma do fundo da gaveta zumbido cinza no centro

do computador

apesar do enfado da fúria ou do fel

um papel precisa cumprir-se encompridar-se

deste concreto inferno até o utópico céu

CARLOS MOREIRACARLOS MOREIRACARLOS MOREIRACARLOS MOREIRA