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1 Voltei à Escola Daniel Sampaio O AUTOR Professor na Faculdade de Medicina de Lisboa. Especialista de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria, onde coordena o Núcleo de Estudos do Suicídio. Foi um dos introdutores da Terapia Familiar em Portugal, a partir da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar. Tem os seguintes títulos publicados: Droga, Pais e Filhos (em colaboração), Bertrand, Lisboa, 1978 Terapia Familiar (em colaboração), Afrontamento, Porto, 1985 (2. ed., 1992) Que Divórcio? (em colaboração), Edições 70, Lisboa, 1991 (2. ed., 1992) Ninguém Morre Sozinho, Editorial Caminho, Lisboa, 1991 (5. ed., 1995) Vozes e Ruídos - Diálogos com Adolescentes, Editorial Caminho, Lisboa, 1993 (6. ed., 1996) Inventem-se Novos Pais, Editorial Caminho, Lisboa, 1994 (6. ed., 1996) Voltei à Escola, Editorial Caminho, Lisboa, 1996 COLABORAÇÃO Nazaré C. Santos - Assistente Hospitalar do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria e Assistente na Faculdade de Medicina de Lisboa Eulália Barros - Professora. Técnica de Saúde Mental Infantil do Centro Dr. João dos Santos (Casa da Praia), Lisboa Pedro Strecht - Pedopsiquiatra do Departamento de Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, Lisboa

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Voltei à Escola

Daniel Sampaio

O AUTOR

Professor na Faculdade de Medicina de Lisboa. Especialista de Psiquiatria do

Hospital de Santa Maria, onde coordena o Núcleo de Estudos do Suicídio.

Foi um dos introdutores da Terapia Familiar em Portugal, a partir da Sociedade

Portuguesa de Terapia Familiar.

Tem os seguintes títulos publicados:

Droga, Pais e Filhos (em colaboração), Bertrand, Lisboa, 1978

Terapia Familiar (em colaboração), Afrontamento, Porto, 1985 (2. ed., 1992)

Que Divórcio? (em colaboração), Edições 70, Lisboa, 1991 (2. ed., 1992)

Ninguém Morre Sozinho, Editorial Caminho, Lisboa, 1991 (5. ed., 1995)

Vozes e Ruídos - Diálogos com Adolescentes, Editorial Caminho, Lisboa, 1993 (6. ed.,

1996)

Inventem-se Novos Pais, Editorial Caminho, Lisboa, 1994 (6. ed., 1996)

Voltei à Escola, Editorial Caminho, Lisboa, 1996

COLABORAÇÃO

Nazaré C. Santos - Assistente Hospitalar do Serviço de Psiquiatria do Hospital de

Santa Maria e Assistente na Faculdade de Medicina de Lisboa

Eulália Barros - Professora. Técnica de Saúde Mental Infantil do Centro Dr. João

dos Santos (Casa da Praia), Lisboa

Pedro Strecht - Pedopsiquiatra do Departamento de Pedopsiquiatria do Hospital

Dona Estefânia, Lisboa

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(C) Editorial Caminho SA, Lisboa -1996

Tiragem:10000 exemplares

Conversa sobre a escola

Impressão e acabamento: Tipografia Lousanense, L.

Data de Impressão: Abril de 1996

Índice

Nota Prévia ....................... 11/0

Voltei ao meu Liceu ............... 13/0

Espaços ........................... 17/0

O Dúvidas e o Baldas .............. 25/0

A Professora ...................... 27/0

Outras vidas, outras escolas ...... 35/1

Óscar ............................. 49/1

Débora ............................ 61/2

Voltei mesmo à escola ............. 69/2

O primeiro dia .................... 71/2

A rapariga das lágrimas ácidas .... 79/2

O estrangeiro ..................... 81/2

Os alunos e as aulas .............. 85/2

Os professores e as aulas………… 89/2

Os pais e a Escola ............... 105/3

O último dia ..................... 114/4

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Encruzilhadas .................... 119/4

Reflexões sobre a indisciplina no contexto escolar ....... 121/4

Papel da Escola na prevenção do suicídio adolescente .... 133/4

Professores: consumidores de árvores ............. 141/5

Conversa sobre a Escola .......... 169/6

Um outro clima escolar ........... 207/8

Epílogo .......................... 213/8

Nota prévia

Este livro‚ sobre a adolescência na escola, tomando como ponto de partida as

minhas observações em escolas do 3º Ciclo Básico e do Secundário, que tive

oportunidade de visitar durante três anos. Não‚ propositadamente um livro teórico, já

que o meu campo não é a pedagogia, nem tenho a pretensão de ensinar coisas que

observei mais do que vivi. É um testemunho de uma realidade que inquieta

professores, alunos e pais e para a qual não existem soluções fáceis.

Considero que estamos num momento importante. Já não se pode continuar a

ensinar sem pensar na pessoa do aluno, já não se pode estudar sem pensar no futuro

e já não se pode fingir mais que nada temos a ver com a escola. Este livro‚ dirigido aos

professores que ainda não se transformaram em agentes de instrução, aos estudantes

que olham um pouco para além de si próprios e aos pais que não podem continuar a

pensar que os filhos estão na escola para eles ficarem descansados.

Provavelmente quando acabarem de ler este livro vão dizer que ele nada tem de

novo. Ficarei satisfeito - Às vezes o mais importante são as coisas simples que

deixámos de ver.

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Voltei ao meu liceu

Se eu hoje voltasse para o liceu não o reconheceria. Melhor: sei onde ele fica, já

que continua a estar no mesmo sítio e conserva aquele ar deslavado do meu tempo.

As suas paredes têm oscilado, ao longo dos anos, entre um branco-sujo e um

amarelo-desbotado. A porta conserva aquele ar antigo e descuidado e os muros

mostram buracos semelhantes. Às vezes imagino que vou entrar e encontrar os

empregados de sempre, a que chamávamos contínuos e que eram cúmplices ou

carrascos das nossas brincadeiras. Subo a escada em frente à entrada, sou

empurrado por colegas barulhentos e desemboco no pátio num vozear indescritível.

Assisto do meu canto ao jogo de caricas em que o Martins era mestre, lançando-as a

uma velocidade incrível, marcando golo no intervalo das colunas, apesar do salto dos

outros. Mais tarde vejo desenhar-se um grande círculo de rapazes aos berros. Estou

de certeza no princípio dos anos sessenta.

Um colega comanda com gestos frenéticos, mas em breve já lá estão muitos. Há

um grito que atravessa todo o pátio «Porrada! Porrada! Porrada!», e dezenas de

alunos gritam-no sem cessar. No meio do círculo, há dois em luta, insultam-se e

batem-se com ferocidade. Só acaba tudo quando o sangue escorre ou um dos

contínuos empurra algum para a Reitoria. Vou até lá e espreito o Reitor, homem calvo,

de frios olhos azuis, que puxa a manga do casaco como quem conduz uma

motocicleta. Mais tarde o ferido sai, pergunto o que aconteceu e recebo um sorriso e

um palavrão. Tenho mesmo que ir para as aulas. Ouço uma professora a gritar: «Esta

é uma turma de loucos! Quando chego a esta turma vejo que cheguei a um

manicómio! Loucos! Loucos!» Lembro algumas aulas de debate e confronto de ideias,

testes copiados num sussurro, o Coelho a fechar os estores e o Balbino a trautear

Beethoven. Conversas ciciadas sobre as miúdas do Dona Leonor, os gritos do Padre

de Moral a imitar o arcanjo São Gabriel, «Joséee! Onde vais tu, Josééé» para o pobre

carpinteiro que fugira quando soube que Maria estava grávida...

Lembro o velho professor de Ciências Naturais, com um cigarro pendurado na

orelha como os merceeiros de antigamente, a vociferar «educação é repetição,

educação é repetição», para nos envolver mais tarde num sorriso acolhedor, quando o

procurávamos nos intervalos para falar das coisas da nossa vida. Recordo o

alquebrado professor de Geografia, Raimundo de seu nome, mas a quem

acrescentávamos um subtil t entre as duas vogais para retratá-lo num ápice. Arrastava

levemente os pés, nunca explicava mais de dez minutos seguidos, uma vez que

rapidamente se fartava e dizia: «O livrinho traz o resto! O livrinho traz o resto! E agora

vou chamar!», deixando-nos num terror indescritível. Ratimundo dizia frases

espantosas, como «Palerma, aquele agradece», quando alguém timidamente se lhe

dirigia «Stôr, agradecia que não me chamasse hoje...» ou utilizava expressões muito

próprias, como «je me suis dans les encres», quando alguém lhe tentava confidenciar

um problema. Não me esqueço do professor de Físico-Químicas, que tinha vivido

quatro anos num país onde não havia barulho (a Suíça), sabia o calendário todo de

cor e jurava ter tido vinte e um valores (!) numa espécie de mestrado helvético.

Colocava-nos por ordem de mérito, o que queria dizer que os mais fracos ficavam na

primeira fila e os melhores na última. Este pedagogo, levemente sopinha de massa,

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não morria de amores por mim, no que era retribuído... razão provável por que durante

um ano inteiro fiquei orgulhosamente no segundo lugar da fila da frente! Ficou

surpreendido quando no exame do antigo 7º ano (hoje 11º), lhe respondi sem hesitar a

fórmula do dicromato de potássio, uma das suas manias preferidas, mas não consegui

obter mais que um modesto 11.

Lembro a professora de Filosofia, que me encantou com a Psicologia e contribuiu

decisivamente para a escolha da minha profissão. Levava para a aula livros diferentes

do velho Bonifácio e estimulava o debate entre os alunos a partir das questões que

surgiam nas aulas. Era pequenina e procurava conhecer-nos, mesmo que para isso se

atrasasse um pouco nas matérias, assunto que não parecia afligi-la muito.

Revejo a professora de Inglês, competente e simpática, que impressionou a turma

ao publicar um livro com a tradução em verso dos sonetos de Shakespeare, e a

professora de Francês e Português, aos saltinhos entre as carteiras, exclamando «Ai

filhos, não quero apartes» ou «Tudo menos isso! Aqui na aula, tudo menos isso!»,

frase que repetia incessantemente, deixando-nos com pouca margem de manobra, já

que o «menos isso incluía» um interminável leque de comportamentos... Estas duas

professoras ensinavam bem e os alunos saíam do antigo 5º ano a falar um pouco de

Inglês e Francês, ou ao menos a compreender uma rapariga estrangeira, aspiração

permanente num liceu só de rapazes!

Lembro a minha adolescência no Liceu Normal de Pedro Nunes como se fosse

hoje: revejo o pátio, as casas de banho, os meus amigos e alguns professores. Tenho

desta época uma recordação de grande solidariedade entre os rapazes, género de

antes quebrar do que torcer a amizade e o companheirismo. Houve bons e maus

momentos como sempre, mas o balanço foi positivo.

É talvez por isso que decidi voltar ao liceu. É por essa razão que o Pedro Nunes só

me aparece à noite, lá pelas três da manhã, quando se calhar somos mais verdadeiros

e a infância nos visita.

Acordo finalmente do meu sonho. Hoje o Pedro Nunes está no mesmo sítio, mas é

diferente. Vejo rapazes e raparigas abraçados ou beijando-se sem complexos.

Ninguém usa pasta e há alunos que nem caneta têm. Os cadernos diários, de um

verde-desmaiado, com um título em letras pirosas, «Liceu Normal de Pedro Nunes»,

são às vezes substituídos por dossiers descuidados, onde alternam nomes ou

pedaços de canções. Já não há círculos de «porrada», mas locais afastados onde se

procuram outras intimidades ou se fazem combinações. Fumam-se cigarros à vontade

(para quê fumar nas casas de banho, como outrora) e às vezes passa-se um charro

num local recatado. Ninguém sabe o nome dos professores e a escola é só boa para

conviver, já que as aulas são uma seca e os exames um risco a que não se pode fugir.

No entanto, há também professores diferentes e vale a pena falar com eles sobre a

vida, mas o tempo é escasso e é preciso despejar a matéria.

Procuro melhor. Tento ver por entre as pernas de ganga e os blusões descuidados,

entro disfarçadamente na sala dos professores e vejo velhos e novos conversando

pelos cantos. Parece-me ver sinais de mudança, muitos dizem-me que as coisas não

podem continuar assim. Vou ao bar à procura das bolas-de-Berlim do meu tempo e

recebo uma coca-cola e um croissant ressequido. Então começo de novo a sonhar.

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Sonho que o velho pardieiro se transforma num edifício mais pequeno e cheio de

luz. O Conselho Directivo é formado por professores de ideias abertas que ouvem

constantemente os representantes dos alunos sem medo do Ministério. O velho

campo de futebol ganhou uma bela relva e tem muitos alunos a jogar à bola. O ginásio

perdeu aquele gradeado lá de cima, onde corríamos sem parar nas sessões solenes,

e é agora um local onde muita gente faz ginástica ou joga andebol. Quando os

professores faltam não se foge para o café, porque há coisas a fazer: ver uma

exposição, ir até à rádio da escola, trabalhar nos computadores ou pura e

simplesmente conversar com algum professor num lugar sossegado. Quando há

problemas de indisciplina não se marcam faltas de castigo, porque os alunos são

chamados a resolver o problema e cedo são co-responsabilizados por tudo o que

acontece. Há reuniões mensais com os pais, onde não se fala de faltas, mas se

discutem estratégias comuns para resolver os problemas dos alunos com dificuldades.

Uma vez por mês há uma festa, com uma parte só para os alunos, outra para pais e

professores. Nas primeiras quintas-feiras de cada mês, há debate com alguém que

não é chato e a quem os alunos e professores fazem perguntas.

Acordo outra vez. Será possível? A sério: se os professores e os alunos falassem

sobre a escola, talvez... não sei. Por isso, fui ver. Andei por aí a observar e a discutir.

Espaços

Os espaços são muito importantes nas escolas. Tal como em nossa casa

procuramos, sempre que possível, melhorar o seu aspecto para que nos sintamos

melhor, também a escola necessita de ser um local minimamente agradável para que

as pessoas se sintam lá bem.

Quando decidi voltar à escola, preocupei-me desde logo em observar os espaços

escolares, para ter uma ideia de como os adolescentes passavam longas horas do seu

dia. Encontrei de tudo: edifícios degradados em bairros miseráveis, mastodontes

antiquados nos centros das cidades, prefabricados que parecem cair a todo o

momento; mas também zonas de trabalho de aspecto arejado, escolas com jardins

muito cuidados, pavilhões desportivos acabados de construir para onde apetecia ir

correr ou jogar à bola.

Parece evidente que nada muito sólido se pode construir na adolescência escolar,

se o ambiente à volta for devastador. E é claro que meio caminho estará percorrido se

as pessoas entrarem o portão da escola e gostarem do que vêem. Uma das

prioridades educativas terá de ser, portanto, restaurar o parque escolar. É por isso que

não posso deixar de contar a aventura que se segue.

Cheguei à escola eram sete horas da tarde. Tinha percorrido um longo caminho até

lá chegar, entre pedaços de subúrbios da cidade onde jamais me atrevera a entrar.

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Perdi-me várias vezes em caminhos estreitos e esburacados, ladeados por ferros-

velhos e armazéns de aspecto duvidoso, servidos por delegados da máfia ou rambos

de bairros de lata. Vi crianças negras a chapinhar na lama, pedaços de bonecos a

flutuar impelidos por pontapés descalços e seringas abandonadas junto a boiões de

iogurte. Havia um trânsito infernal: filas de automóveis a buzinar, carros avariados à

procura de oficinas mais baratas e motocicletas de escape aberto que calavam os

insultos dos motoristas. Seguia a custo um esquema que uma amiga me dera para

que me não perdesse, mas várias vezes tive de perguntar o caminho, abrindo

timidamente a janela para receber uma baforada de escape. A certa altura deixei para

trás os ferros-velhos e comecei a ver prédios pardacentos, torres todas iguais, com as

roupas à janela e jardins destruídos. Uma urbanização com aspecto um pouco melhor

era anunciada num quadrado de pedrinhas, circundado por dezenas de carros numa

disposição anárquica e por pessoas em passo apressado a fugir da chuva. Perguntei

onde era a escola e alguém me disse para virar à direita e ir até ao fim, porque no sítio

onde não havia saída era o local da escola.

Quando lá cheguei pensei estar numa paisagem lunar ou num campo depois de

uma catástrofe nuclear. A escola secundária tinha vários pavilhões dispersos por uma

vasta área, todos eles de cor indefinida e de aspecto degradado. O porteiro mandou

seguir o meu carro para a esquerda sem que eu lhe perguntasse nada e sem que

tivesse tempo de dizer ao que vinha. Estacionei num espaço junto a um velho campo

desportivo, onde jazia uma enferrujada baliza de futebol de salão e uma tabela de

basquetebol sem redes. O chão era de cimento esburacado e às vezes deixava

antever umas tímidas plantas ressequidas. Havia bancos de jardim de um vermelho

despintado, latas velhas pelos cantos, dezenas de beatas por toda a parte.

A noite aproximava-se. Era tempo de procurar os professores que me tinham

convidado para uma acção de formação sobre a adolescência. Vi uma luz num dos

pavilhões. Bati à porta e um cão deprimido afastou-se lentamente. Alguém gritou lá de

dentro qualquer coisa e depois a voz transformou-se numa funcionária de ar perdido

que rapidamente me sacudiu sem qualquer informação. Atravessei mais um pátio

deserto e frio e desemboquei noutro pavilhão. Começava com um pequeno corredor

com vários compartimentos de cheiro nauseabundo e alargava depois para uma zona

estranha, espécie de pátio interior com vários andares à volta e onde uma frase um

pouco mais gritada ecoava de modo sinistro. Fui com a minha colega até à sala de

professores, minúsculo compartimento com cartazes na parede que ninguém parecia

ler, mesas de mau aspecto onde alguns professores cochichavam, e um bar

improvisado a um canto para onde se dirigiam muitos outros num vozear disperso.

Estranhei que entrássemos por ali adentro sem que ninguém nos dirigisse palavra, e

mais perplexo fiquei quando cerca de noventa professores se dirigiam ordeiramente

para uma sala, ao que supus para a acção de formação que eu iria coordenar.

Atrasada, lá chegou a professora que me convidou e que estivera à minha espera

no Conselho Directivo que eu não tinha conseguido encontrar. Vencido o meu

sentimento de estranheza, lá dinamizei o seminário o melhor possível. Rapidamente

os professores venceram as lamentações que invariavelmente marcam estes debates,

para se lançarem em sugestões explícitas e concretizáveis.

No fim de tudo fiquei cheio de dúvidas.

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Como se podem sentir bem alunos, professores e funcionários que diariamente

povoam este espaço desolador?

Por que razão os mesmos personagens não são capazes de se organizar de modo

a investir afectivamente na escola, tornando-a sua?

Qual o motivo por que os pais não conseguem agrupar-se para exigir melhores

condições para os seus filhos?

Qual a dificuldade que uma brigada de jovens e professores teria em pintar as

paredes ou em revesti-las de restos de caixas de ovos para evitar a ressonância?

Por que razão não organizam os professores de Ciências da Terra e da Vida um

pequeno espaço verde naquele deserto de cimento velho?

Como é possível esperar que adolescentes respeitem o material escolar se as

pessoas que lá vivem funcionam (?) naquele esterco?

Em suma, como será possível alguém ensinar e aprender naquele gelo emocional?

Outros espaços que muito me inquietam são as casas de banho das nossas

escolas básicas e secundárias. Um daqueles professores que parece topar tudo disse-

me uma vez que esta minha preocupação era qualquer problema meu não resolvido. A

minha terapia pessoal, de facto, nem tudo resolveu e a vida tem-me ensinado muito

mais, mas o certo é que tenho por hábito percorrer todos os espaços das escolas onde

me desloco e não vejo por que razão haveria de excluir as casas de banho (em que

estaria a pensar o professor?). Nestes passeios, lembro-me de muitas coisas.

Recordo então a minha adolescência, o velho Pedro Nunes e as centenas de

aventuras que lá vivi. No liceu do meu tempo não havia meninas. Lembro-me de que o

local eufemisticamente chamado casa de banho ficava do lado direito do pátio

principal. Entrava-se lá por uma pequena porta e do outro lado não havia saída. A

urina escorria ao longo de umas pequenas cabinas de portas quebradas, sem fechos,

e de onde saía um cheiro pestilento.

As paredes estavam esburacadas e continham frases e desenhos obscenos. Íamos

para lá fumar, ou então falávamos das miúdas que tínhamos ido espreitar aos liceus

femininos ou que aspirávamos a conhecer sexualmente. De vez em quando os

contínuos Silva ou Falé entravam para ralhar, porque o Reitor dizia que a casa de

banho era só para fazer as necessidades. Aprendi lá muita coisa, desde alguns

conhecimentos brejeiros até ao sabor do Sagres, CT e SG, não esquecendo um maior

à-vontade com o meu corpo que fui ganhando no confronto com os outros. Quando

agora vou às escolas tenho um estatuto diferente. Se o convite partiu dos alunos, um

dos rapazes leva-me à casa de banho masculina com um sorriso comprometido e um

comentário assim: O Professor não repare... isto está muito sujo... Quando os

professores dinamizam o encontro, sou levado ao longo dos corredores intermináveis

para chegar à casa de banho do Conselho Directivo. É uma pequena sala, em regra

limpa e cuidada, muitas vezes decorada com um vaso donde emerge um cacto

incaracterístico que jamais mostrará flor.

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Às vezes tenho saudades e prefiro a dos rapazes. Num liceu no centro de Lisboa, a

casa de banho estava tão degradada que por momentos me julguei em Sarajevo. O

tecto estava cheio de fissuras e de vez em quando mostrava o tabique em círculos

aterradores, lembrando o chefe do Astérix, já que a possibilidade de o céu nos cair na

cabeça não era fantasia. As paredes oscilavam entre o branco-sujo e o amarelo-porco

e estavam decoradas com inscrições e desenhos. Em frente à porta, por baixo de uma

pequena janela que abria sobre um pátio desolador, cheio de ervas daninhas e de

despojos de balizas de futebol, exibia-se um enorme pénis desenhado a spray preto.

Viam-se muitas coisas escritas, em letra tímida de esferográfica azul, ou numa

desinibição de marcador verde ou preto: I love Serafina, Gil and the perfects (não

percebi onde estava a perfeição) e um aterrador MORTE AOS PRETOS, bem nítido

na sua violência racista. A certa altura vi umas palavras promissoras de mim para ti,

infelizmente sublinhadas por um manguito bem desenhado.

Olhei em volta. As sanitas estavam semipartidas, deixando escorrer para fora um

rio de ferrugem, os autoclismos lembravam os do meu tempo, com aquele depósito

decrépito de onde emergia um pedaço de corrente partida. Um dos apetrechos estava

tão deteriorado na sua cor castanho-avermelhada que lembrava uma velharia numa

casa de província ou numa pensão de maus costumes.

Noutra escola de Lisboa que visitei, as sanitas eram substituídas por buracos no chão, com uns pequenos espaços para colocar os pés na posição necessária, e as paredes dos pequenos cubículos estavam completamente preenchidas com inscrições que o tempo se encarregara de tornar ininteligíveis. Perante o meu espanto por instalações tão primitivas, o Presidente da Associação de Estudantes, que me acompanhava, disse: «Na das miúdas é a mesma coisa, só não há é os “cagadores”»! Mas não tinha razão. Em breve vi outros sinais de masculinidade; testículos em riste, alguns palavrões bem de rapaz e, encimando os urinóis, a genial frase, em enormes letras pretas: OLHA PARA BAIXO E CONTEMPLA A TUA PEQUENEZ.

De regresso à escola que estava a descrever, lembro-me de ver finalmente um

armário de aspecto razoável, ao canto do compartimento, mas rapidamente fiquei

desiludido, já que o seu conteúdo consistia nuns pregos enferrujados, umas caricas,

algumas pedras pequenas e uma montanha de pó.

Como a sessão era à noite, resguardado por uma das alunas espreitei rapidamente

a casa de banho das raparigas. O aspecto era um pouco menos desolador, mas tudo

continuava sujo e decrépito, decorado com alguns nomes de rapazes ou de cantores

rock.

Só encontrei uma escola onde o problema da degradação das casas de banho

estava resolvido. Fui lá uma noite dinamizar um colóquio, ao qual assistiram cerca de

quinhentos pais e professores (estávamos na linha de Sintra). Quando se entrava,

percebia-se rapidamente que a escola funcionava: havia muito espaço à volta de

pavilhões escolares bem conservados, os alunos circulavam no pátio em grupos

alegres, uma esplanada tinha bonitas mesas e cadeiras e as casas de banho... bem,

esta foi a grande surpresa. Encontrei um espaço arejado e limpo, com sanitários de

muito boa qualidade, azulejos de cor discreta sem nada escrito, lavatórios com

sabonete líquido e torneiras a funcionar. Questionei o Presidente do Conselho

Directivo. Afinal isto tudo tinha sido conseguido com muito trabalho. Duas campanhas

de sensibilização, com comunicados aos alunos e esforço permanente dos

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professores, tinham procurado despertar as consciências adormecidas. Depois, tinha

havido um grande investimento na qualidade: o material das casas de banho era do

melhor do mercado. Finalmente, as pequenas degradações provocadas pelo uso eram

imediatamente reparadas.

Esta necessidade de imediata substituição daquilo que está danificado é de

primordial importância. Como as escolas são frequentadas diariamente por várias

centenas de pessoas, mesmo nos casos onde o clima escolar é agradável há

inevitáveis danos de material. É crucial proceder à sua substituição, identificar os

responsáveis se o prejuízo foi intencionalmente provocado e responsabilizar todos os

intervenientes no processo educativo pela melhoria das instalações. Os pais devem ter

um importante papel na luta pela melhoria das condições objectivas da vida na escola,

como veremos mais adiante.

Numa Escola Básica Integrada no Alentejo e numa Escola Secundária de São

Miguel, Açores, pude observar o cuidado posto na conservação do material. Em

ambas vi plantas interiores de belo aspecto, jardins com árvores e flores, esculturas e

quadros em muitas paredes. Os alunos são ensinados a valorizar o espaço onde

estudam e ajudados a produzir peças de arte para o embelezar. Os campos

desportivos estão cuidados e as janelas que os ladeiam têm redes para evitar os

vidros partidos, motivo de tantos conflitos noutras escolas.

Alunos, professores e pais têm de compreender que as escolas do futuro precisam

estar abertas muitas horas, já que vão ser cada vez mais não só locais de estudo mas

também de convívio. É necessário que as estratégias de mudança e as experiências

de inovação que surgem nas escolas portuguesas encontrem um ambiente onde

possam crescer todos os dias.

O Dúvidas e o Baldas

O Dúvidas e o Baldas andam no 8º ano da mesma escola. O Dúvidas tem treze

anos. É pequenino e magro e usa óculos redondos, sem aros, encavalitados na ponta

do nariz. Chega sempre a horas e tem bons resultados nos testes. A mãe é médica de

Clínica Geral e o pai é professor de outra escola secundária. Tem uma irmã mais

velha que acabou de entrar para a Faculdade e é o orgulho de todos, visto que tem

boas notas e nada tem a ver com a galdéria da prima, como recentemente lembrou a

avó num convívio familiar. O Dúvidas tem assim a quem sair e por isso desde há muito

se mentalizou para ter boas notas e não levantar problemas.

O Baldas tem quinze anos. É alto e forte e não pára de pensar nisso desde que

começou a fazer musculação. Tem o cabelo loiro, um pouco às manchas, que usa

pelos ombros ou apanhado com elástico num rabo-de-cavalo. A sua barba começa a

despontar e o bigode, raramente feito, aparece nitidamente sobre os seus lábios

grossos. Anda acompanhado por rapazes do 11º ano e desloca-se de um modo

barulhento, batendo com as botas no chão e rindo muito alto. O pai trabalha num

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Ministério qualquer e a mãe é bancária. Tem um irmão quatro anos mais velho,

toxicodependente, que já uma vez teve problemas com a polícia. Tal como o irmão, o

Baldas sempre vestiu de escuro e a única cor que se concede é a dos grupos musicais

cujo nome decora as T-shirts. Há dois dias assustou a professora, ao surgir

ameaçadoramente na aula com uma camisola onde apareciam uns olhos bem abertos,

por cima de umas letras enormes onde se lia NO FEAR. Só ouve heavy metal e passa

horas a gravar e a desgravar cassetes antes de adormecer.

O Dúvidas e o Baldas conheceram-se no início do ano escolar. Como nunca

tiveram nada para dizer um ao outro, apenas se observam no intervalo das aulas. O

Dúvidas anda mais sozinho. Atrasa-se na saída de cada sala, porque tem perguntas a

fazer ao professor, e por isso quando chega ao pátio já os outros formaram o seu

grupo e iniciaram brincadeiras ou conversas íntimas a que não tem acesso. Fica então

sentado num banco junto ao bar, se permanece sozinho tira da pasta um caderno

impecável e fica a consultá-lo até que volte a tocar. Às vezes tem mais sorte e uma ou

outra rapariga vem falar uns momentos com ele. Puxa o tema dos estudos, não vá a

conversa ir para certos caminhos que o Dúvidas não controla.

O Baldas desloca-se em grupo. Os rapazes vestem de modo semelhante, alguns

têm brinco e pulseira, mas todos falam alto e mandam constantemente bocas às

raparigas. Quando estamos no intervalo grande ou as aulas acabaram por hoje (o que

não quer dizer que se tenha ido a todas), o Baldas e o seu grupo vão para um local

escondido da escola enrolar um charro ou curtir com uma das raparigas.

O Dúvidas e o Baldas ocupam diferentes territórios.

Enquanto o Dúvidas permanece junto às aulas ou nas zonas do pátio facilmente

notadas pelo Conselho Directivo, o Baldas procura os cantos e as zonas interditas

onde dificilmente será vigiado. Quando surge o primeiro toque, o Dúvidas larga o

pouco que estiver a fazer e dirige-se para as aulas, o Baldas grita só mais um golo!, se

por acaso está a jogar futebol, ou acaba lentamente a sua actividade mais escondida.

O Dúvidas nunca falta e chega a ir com febre para as aulas, o Baldas tem metade das

faltas dadas no mês de Novembro. Quanto às notas, já se sabe: o Dúvidas só tem

quatros e cincos, o Baldas limita-se a ter vários dois na esperança de recuperar no

último período (o que não aconteceu já por duas vezes).

O Dúvidas compreende e aceita bem a circunstância de andar a estudar. Receia a

violência da escola, os empurrões na escada, as conversas sexuais ou as partidas aos

professores. Para ele tudo deveria correr sem sobressaltos; afinal a matéria não é

difícil e os professores até se esforçam um bocado. Entende que há alunos como o

Baldas que não estão na escola a fazer nada, porque na realidade não querem

aprender. O Conselho Directivo do velho Liceu deveria proibir comportamentos que

perturbem a disciplina e impeçam os bons alunos de obter mais informação!

Para o Baldas a escola faz pouco sentido. Anda lá porque os pais trabalham todo o

dia e davam-lhe ralhos se ele abandonasse os estudos. Além do mais, pode jogar-se

futebol várias vezes ou encontrar amigos para combinar coisas fora da escola. As

aulas e os testes é que são pior. O Baldas não tem paciência para estudar, e como há

alguns professores mestres a descobrir cábulas ou a interromper o falatório durante os

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testes, vai-se abaixo nas avaliações. O certo é que ninguém falou com ele sobre o que

se está a passar.

Impressionava-o, aliás, ficar a jogar à bola no pátio sem que alguém lhe dissesse

que deveria regressar às aulas.

Quando chega a casa, o Dúvidas toma banho e organiza os seus cadernos. Tem a

matéria sempre em dia e às vezes lê um pouco para a frente, para no dia seguinte

perceber de antemão o que o professor vai explicar. Gosta de falar da escola com os

pais e tem orgulho em mostrar os belos testes que efectua.

O Baldas grita “Não me chateies!” Quando o pai ou a mãe lhe perguntam pela

escola. Sente-se sempre em falta, porque o que verdadeiramente lhe apetecia era

largar tudo e ir surfar todos os dias. Nunca tem cadernos para mostrar, porque só

raramente toma apontamentos com uma Bic roída, ou mesmo só com a carga de uma

caneta que um colega lhe emprestou momentos antes.

O Dúvidas ganhou a alcunha porque desde muito novo gostava de mostrar que

sabia. Vencia muitas das suas inibições quotidianas ao esvoaçar entre os colegas, nos

dias dos testes, a perguntar: "Dúvidas?, quem tem dúvidas?" Naquela ansiedade

habitual destes momentos, os estudantes esqueciam uma certa antipatia e

solicitavam-lhe respostas prontas. Como o Dúvidas conhecia bem as manias dos

professores, acertava muitas vezes nas perguntas, o que aumentava o seu prestígio

de pronto-socorro. Passado o período quente, o Dúvidas perdia aquele êxito fácil e

mergulhava de novo no seu isolamento.

A alcunha do Baldas era generalizada e fácil de entender. Ninguém podia

corporizar melhor o tédio pela escola. Entrava de manhã com o boné enterrado na

cabeça, com a pala virada para trás, e só o tirava à tarde ao chegar a casa, ou quando

algum professor o ameaçava com uma falta se o não fizesse.

Gostava de ténis velhos e desapertados e de roupas pouco cuidadas, excepto

nalguma ocasião especial em que se vestia bem. Às vezes desafiava os professores,

sobretudo os mais novos, e só parava quando o expulsavam da aula ou os via de

rastos. A escola não fazia nenhum sentido, já que não se ensinava nada que achasse

útil ou tivesse a ver com os seus interesses, e mesmo a única disciplina que lhe

interessava – Educação Física - era transformada num martírio, porque o professor

era um ser rígido, permanentemente ocupado em ensinar as regras dos jogos

desportivos.

Há muitos Dúvidas e Baldas nas escolas portuguesas. A mim sempre me apeteceu

meter-me com eles. Ao Dúvidas apetece-me desarrumá-lo um bocadinho, trabalhar a

sua solidão e ajudá-lo a viver outras coisas da vida, sem nunca perder as suas

qualidades de bom aluno. Ao Baldas apetece-me sentá-lo a conversar comigo sem

hora marcada, de modo a compreender aquela instabilidade toda e ajudá-lo a

perceber que muitas coisas boas da vida só se conseguem com esforço.

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A professora

Saiu de casa de manhã cedo, mal tinha tido tempo de engolir à pressa uma torrada

ressequida e um resto de leite. O velho automóvel demorou a aquecer, porque se

recusava a abrir (fechar?) o ar, já que o carro ficava mais acelerado e receava não o

controlar. Finalmente partiu, como todos os dias.

O caminho para a Escola Secundária onde ensinava há mais de vinte anos era um

tormento diário. Filas de automóveis que pareciam não ter fim, ruas pequenas

ladeadas por prédios horríveis, pessoas apressadas em busca do local de emprego.

Depois de mais umas voltas, a viagem terminava. Quando a rua estreitava, tinha de se

virar à direita e lá estava a escola ao fundo. Era um edifício cinzento e sujo ao fundo

de uma rampa íngreme, toda cheia de carros de ambos os lados. Os alunos desciam-

na a correr, riscando às vezes os carros dos professores de que não gostavam, ou

lançavam a bola de cima para baixo, sob os protestos de quem passava.

Sentia sempre qualquer coisa forte quando transpunha o portão da escola. Há

muito que tinha desistido de entrar com o carro, já que o pequeno pátio pouco espaço

deixava disponível (e nunca concordou com entradas só para professores e parques

privativos). Preferia deixá-lo pela rampa abaixo e mergulhar no edifício por entre o

vozear e os empurrões dos alunos e os gritos dos poucos funcionários. A escola

degradava-se dia após dia. Os estores há muito que tinham deixado de funcionar, o

pequeno campo de futebol mostrava balizas sem redes e nalgumas salas de aula

chovia e fazia muito frio no Inverno. Desde há seis anos que o Conselho Directivo

mandava um fax para o Ministério no primeiro dia de chuva, mas tudo permanecia na

mesma.

A sua escola era feia, mas sentia-a cheia de vida. Pequenina e gorducha, saia e

casaco castanho e camiseiro bege onde às vezes aparecia um colar de pérolas, a

professora transformava-se ao entrar na sala de aula. Jamais tivera um problema de

indisciplina e desconfiava dos psicólogos que só falavam de agressividade e

professores vitimados, deixando os alunos fora dos problemas. Para ela, ensinar era

uma festa permanente. Adorava o princípio dos anos lectivos, em que a turma a

olhava de soslaio e em breve a começava a testar, num crescendo de barulho que a

estimulava. Rapidamente definia com os alunos o modo de funcionar e aparentava de

início um ar de fera, que o tempo e o diálogo com os alunos não cessava de açucarar.

A sua palavra-chave era co-responsabilizar. Se alguém tentava boicotar a aula, que

pensavam os colegas disso? Se havia muitas negativas, que alterações propunham os

alunos? Havia violência no pátio, por que não deslocar para lá funcionários ou alguns

professores disponíveis? Se o Director de Turma dizia que não tinha tempo para falar

com os estudantes e com os pais, por que razão não se lutava para lhe arranjar mais

uma hora sem aulas?

Este ano estava muito impressionada com a nova professora de Português do 9º

ano. Como Directora de Turma sabia algumas coisas, mas sentia-se dividida entre a

lealdade à colega e o seu dever de ajudar os alunos.

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A nova professora tinha trinta anos e era a primeira vez que estava na escola.

Tinha o cabelo preto encaracolado, usava calças justas e um blusão largo.

Observando-a de perto, a professora mais velha observava uma penugem negra na

cara que a fez compreender a razão por que os alunos a caricaturavam sempre como

a mulher barbuda. Tentou estabelecer alguma aliança com ela a pretexto de um café e

de um croissant no bar da escola, mas recebeu um apressado não tenho tempo.

Resolveu então marcar uma reunião formal para discutir os problemas da turma

indisciplinada.

A nova colega sentou-se no pequeno gabinete com um ar defensivo. Colocou

vários livros e dossiers em cima da mesa, numa elipse de protecção que a fazia sentir

menos insegura.

Disse então à professora mais velha que a turma era terrível. São insuportáveis,

dizia e remexia constantemente as mãos. A Directora de Turma da nossa história

sabia bem que as turmas têm subgrupos, redes de comunicação e alunos todos

diferentes que tornam difícil um qualificativo global de boa ou má. Esperava

pacientemente e continuou a ouvir. Há drogados na aula, são dois rapazes que estão

na última fila e não param de me provocar. No outro dia recusaram-se a responder à

chamada e tive de marcar uma falta colectiva. Aqui a professora mais velha arregalou

os olhos. Se os alunos estavam na sala e não respondiam, ficando todos com falta, o

problema não era simples. Disse isto à colega mais nova, que lhe respondeu: Aqui é

tudo fácil! O pior é lá, estão sempre a virar-se para trás e a dizerem coisas. A

professora pensou logo que o arranjo espacial da sala era essencial para conseguir

melhores resultados (há muito que deixara as carteiras alinhadas com os alunos de

costas uns para os outros), e que se calhar a colega não gostava muito de gente mais

nova, mas não disse nada. Preferiu propor que discutisse com os alunos o

funcionamento da turma e depois lhe dissesse qualquer coisa.

Sabia que se criticasse a colega iria ficar sem possibilidade de intervir ou

perigosamente aliada aos alunos. Num problema de uma aula não há culpados, todos

são responsáveis pela sua solução. Mas ficou a meditar. Pensou que era importante a

formação dos professores, mas como seria possível vencer dificuldades pessoais,

problemas de personalidade ou simplesmente a falta de amor pelo ensino?

Decidiu então que iria falar com os alunos, estimulá-los a que apresentassem

soluções para o problema da indisciplina nas aulas de Português (interessante,

ninguém mais se queixava, ela própria achava a turma um pouco turbulenta mas muito

viva e interessada) e manter uma relação de proximidade com a colega. No seu

vocabulário não existia a palavra desistir...

Sobretudo, não iria falar da colega na sala de professores. Ficava arrepiada com

aquele espaço onde às vezes não se dizia bom-dia aos colegas mais novos e a má-

língua crescia acerca de qualquer dificuldade de um professor.

Preferia centralizar o problema em si, nos alunos e na colega. Também não iria

contar tudo ao Conselho Directivo, porque receava um ambiente de paranóia acerca

da droga, com observações à socapa dos alunos e a falsa crença de que era um

problema de falta de policiamento. Depois dessa decisão, voltou a pensar em si e nas

dificuldades do seu quotidiano escolar. Afinal, ensinar é reflectir e saber ouvir.

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Dava o programa quase todo, mas sem correrias nem ansiedades, quando alguém

lhe segredava estar muito atrasada.

Todas as semanas falava com os alunos de um tema extra. Tinha a inteligência e a

humildade suficientes para considerar que os alunos sabiam mais do que ela de

computadores, ecologia, desporto e moda. Sobretudo esforçava-se para não ser igual

aos estudantes, odiaria ser uma professora popular. Não esquecia a colega que se

esfalfara a trabalhar com a Associação de Estudantes, a dinamizar o grupo de teatro,

a receber os pais a toda a hora, a falar com psicólogos, a tomar cafés com os alunos e

a dançar com eles em discotecas noite dentro... para terminar com um esgotamento e

criticada por todos.

Gostava dos alunos, mas não era adolescente como eles. Não permitia palavrões

nas aulas, nem conversas laterais, nem piadas grosseiras. Ficou célebre a sua frase

“Todos a falar”, quando algum aluno fugia aos debates que propunha ou fazia

comentários marginais. As suas aulas eram participadas e ordeiras e nos testes não

deixava copiar. O que mais a preocupava era a passividade de alguns alunos, que se

resguardavam na última fila com olhar vazio. Se persistiam na sua atitude de

desistência, chamava-os um a um e tinha uma conversa franca, fugindo sempre à

crítica ou ao comentário intrusivo. Exigia conhecimentos porque achava que ensinava

bem.

Verificava com tristeza que alguns dos seus colegas não eram professores, mas

agentes de ensino (seria esse o caso da colega?). Viviam na esperança de que o

Ministério mudasse e alguém lhes resolvesse os problemas. Mas ela, professora há

tanto tempo, sabia que isso nunca sucederia. A escola só se transforma se

simbolicamente rebentar a vedação às vezes necessária e se se ligar à comunidade.

Só funcionará melhor se os professores, funcionários, alunos e pais trabalharem em

conjunto e fizerem realizações criativas que animem o quotidiano da escola. Os

professores, contudo, tinham de ensinar o melhor possível. Os alunos tinham mudado

muito. Os professores saíam das Faculdades habituados à solenidade académica,

para se confrontarem com alunos tantas vezes em crise de identidade e sem projectos

de futuro. Por isso, a professora tinha mudado as suas estratégias. Cada vez mais

mantinha os alunos ocupados e fomentava o trabalho de grupo. Mantinha com os pais

um diálogo permanente, fugindo às reuniões habituais sobre faltas e testes. Não

acreditava nos colegas que lhe diziam que os pais não vinham à escola, pois há muito

tinha desenvolvido estratégias pessoais (cartas, telefonemas, até telegramas) que

raramente falhavam.

Vivia apenas preocupada com o mal que se dizia dos professores, pois sentia que

se a escola continuasse com uma imagem negativa ninguém a conseguiria

transformar. Por isso, tinha passado a mandar cartas para os jornais a contar as

coisas boas que se faziam na escola: as visitas de estudo, a rádio, a exposição de

pintura, o campeonato de pingue-pongue, o abaixo-assinado contra a lixeira...

Sabia que não ia desistir. Acabava o dia cansada mas feliz. Contente porque sabia

que a escola era para os alunos a segunda casa, por isso o seu esforço era para lhe

dar sentido.

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Outras vidas, outras escolas

Há muitos rapazes e raparigas que deixam a escola tradicional.

Uns perdem-se pelo caminho e vão dar corpo àquele grupo a que desde logo

chamamos excluídos. Outros arranjam uns empregos precários e vão sobrevivendo.

Há ainda aqueles que podem ter a sorte de estar numa escola que desenvolveu um

curriculum alternativo, organizando um projecto para cinco anos a partir do início do 2º

ciclo.

O que parece evidente é que há muitas razões para não ir até ao fim e deixar a

escola. Este livro não é sobre essas pessoas, uma vez que se organizou a partir da

observação da escola mais tradicional. Mesmo assim, quis falar com alguns jovens

que tivessem seguido um percurso diferente do habitual.

Graças à simpatia de Técnicos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pude

falar com o Pedro, o Óscar e a Débora. O Pedro é o mais velho, tem um ar gingão e

parece saído de um filme sul-americano. O Óscar é sensível e fala com desembaraço.

Achei a Débora um pouco triste e inibida, mas havia determinação no fundo dos seus

olhos.

Aqui estão, sem comentários, as conversas:

Pedro

D. S. - Pedro, quer falar um bocadinho da escola desde o principio, desde a

instrução primária, eu não sei o que é que está a estudar. O Pedro tem quantos anos?

Pedro - Tenho 19 anos, o que aconteceu foi desde a primária. Eu também nunca fui

uma pessoa muito ligada aos estudos, não é, e também não havia muita prevenção na

altura, não é, na primária quando eu comecei a andar na escola havia muita droga.

D. S. - Logo na primária?

Pedro - Exactamente, tipo 3ª e 4ª classe.

D. S. - Como é que a droga aparecia lá na escola?

Pedro - Vendiam na escola.

D. S. - Dentro da escola ou à porta?

Pedro - Dentro da escola, e pronto, comecei a fumar as minhas ganzas, e agora

também...

D. S. - Muito novo, não é? para aí com 9 anos?

Pedro - Sim 9, 10 anos.

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D. S. - E antes das ganzas o que é que se passou na primeira e na segunda

classes?

Pedro - Ah! isso aí foi os tempos normais de escola da primária, é quase sempre

tudo igual, só que chegou a uma altura que comecei a conhecer novas coisas e

comecei-me a desligar um pouco dos estudos.

D. S. - A sua escola era onde, era perto de casa?

Pedro - Na Casa Pia era perto de casa, e depois passei para o 1º ano e tal e deu-

se sei lá o que é que se deu, pronto, aí como comecei a desligar-me mesmo dos

estudos e a fumar cada vez mais charros.

D. S. - Isso é que me interessa, é perceber por que é que o Pedro se desligou dos

estudos. Além dos charros, o que se passou na escola, o que não lhe agradava, o que

gostava?

Pedro - O que é que gostava, o que gostava mais na escola era o recreio e o que

eu menos gostava, sei lá, era os contínuos, porque apareciam os contínuos, estavam

sempre em cima do homem, "não faças isto, não faças aquilo, vai para ali".

D. S. - Você fez a preparatória aonde?

Pedro - Na Luís António Verney, mas fui aqui para a escola-oficina aonde é agora o

ano 0 da Universidade.

D. S. - Esteve a fazer algum curso logo no 5º ano?

Pedro - Não, era escola normal.

D. S. - Na primária reprovou algum ano?

Pedro - Reprovei a 4ª classe.

D. S. - Porquê?

Pedro - Era balda, não em estudos mas em comportamento.

D. S. - Faltava ou portava-se mal nas aulas?

Pedro - Às vezes faltava, outras vezes portava-me mal nas aulas.

D. S. - Diga lá o que fazia nas aulas, conte lá umas brincadeiras.

Pedro - O que eu fazia nas aulas?, metia-me com as professoras, metia pioneses

nas secretárias, nas secretárias não, nas cadeiras, e amandávamos assim papelinhos

para o cabelo da Stôra, tirávamos a carga da caneta, e depois a Stôra estava sempre

a coçar, tinha muita piada.

D. S. - Fartavam-se de rir?

Pedro - Sim.

D. S. - E a professora que é que fazia?

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Pedro - Na altura dava-nos reguadas, ainda levei algumas.

D. S. - E vocês faziam isso à professora porquê, não gostavam da professora ou de

estar...

Pedro - Só houve uma professora que eu não gostei, era preta, neste caso era

preta, nem eu nem a turma toda.

D. S. - Acha que isso é importante, a cor.

Pedro - Agora acho que não, mas na altura não me caiu bem.

D. S. - Não estava preparado?

Pedro - Não.

D. S. - Vocês davam piadas por ela ser preta?

Pedro - Muitas vezes.

D. S. - Conte lá uma ou duas.

Pedro - Então a aula começou toda a chorar por ela ser preta e fugimos todos da

sala, ela ficou lá sozinha a chorar.

D. S. - Isso foi nos primeiros dias?

Pedro - Sim, e mais piadas sei lá, em vez de estarmos com os livros de estudo na

mão, pronto, de português ou isso, não, a maior parte das vezes estávamos a ler livros

de desenhos animados e a passar papelinhos a dizer que a Stôra era feia.

D. S. - Mas deixe-me voltar atrás, eu tinha-lhe perguntado por que é que vocês

atiravam essas coisas e punham os pioneses à professora, se era por não gostarem

dela ou por outra razão qualquer, você disse que só não gostou de uma preta,

portanto das outras faziam malandrices e gostavam delas, então por que é que

faziam?

Pedro - Por gosto, éramos miúdos, tínhamos gosto em...

D. S. - Provocar, era?

Pedro - Exacto.

D. S. - Não gostavam é que ela desse a aula, queriam passar ali um bocado de

tempo a rir, era?

Pedro - Exactamente.

D. S. – Se a aula fosse diferente, se fizessem outras coisas, se fizessem saídas ou

outras actividades.

Pedro - Fizemos algumas saídas só que eu não, pronto, fizemos uma ou duas

saídas.

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D. S. - Qual é a recordação que tem disso?

Pedro - Tenho uma recordação, fomos visitar uns submarinos, já não me lembro

bem aonde foi, foi numa saída de estudo que tivemos, foram as turmas todas do 1º e

2º anos e 4ª classe.

D. S. - Isso foi bom ou não?

Pedro - Foi bom, é interessante conhecer um submarino por dentro, andar lá a

rodar com o periscópio, foi interessante mas não tenho grandes recordações.

D. S. - Mas sabe que nalgumas escolas se consegue ensinar de uma maneira

diferente, por exemplo nos jardins e museus, acha que isso funciona melhor?

Pedro - Sim, acho que funciona melhor.

D. S. - Não os ter tão presos dentro de uma sala!

Pedro - Sim, não os ter tão presos e mostrar-lhes coisas novas e interessantes.

D. S. - Agora vamos avançar. No 5º ano, 6º ano, o que é que se passou?

Pedro - Foi a altura pior da escola, foi quando comecei mesmo a desistir de estudar

e...

D. S. - Isso é que eu quero perceber, por que é que o Pedro desistiu de estudar.

Pedro - Desisti de estudar porque comecei a trabalhar muito novo e...

D. S. - Em quê?

Pedro - Em quê? Fui feirante, fazia várias feiras, Relógio, São Pedro de Sintra,

Cascais, Feira da Ladra, Galinheiras.

D. S. - Com que idade é que começou a fazer?

Pedro - Com os meus 9/10 anos.

D. S. - Com os pais?

Pedro - Não, fazia com um casal amigo da minha mãe.

D. S. - Como foi essa experiência, o que é que achou disso?

Pedro - Foi bom, só que depois de passados alguns anos cansei de ser feirante, ou

seja, ao tempo que eu lá estava já podia ter levado um negócio meu para a frente,

pronto, sempre fui...

D. S. - Vocês vendiam o quê? roupas?

Pedro - Eu vendia artigos de bebé, babygrows, botas, essas coisinhas todas, não,

na altura foi uma experiência interessante e não estou arrependido.

D. S. - E essas feiras eram ao fim-de-semana ou nos dias de escola?

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Pedro - Exactamente, como à quarta-feira e à terça, mas à terça eu ia para a

escola.

D. S. - Mas o que acontecia à escola?

Pedro - Sim, à quarta-feira, não ia, a maior parte das vezes baldava-me porque ia

trabalhar.

D. S. - Esse casal pagava?

Pedro - Pagava.

D. S. - E depois começou a desinteressar-se a pouco e pouco da escola?

Pedro - Exactamente, foi aí que eu cortei mesmo com a escola.

D. S. - O dinheiro que eles pagavam na feira era para quê, era para si ou era para

os seus pais?

Pedro - A maior parte do dinheiro era para mim, mas dava sempre algum dinheiro

em casa, mas a maior parte era p'ra mim, para comprar cigarros e para o vício das

máquinas, essas coisas.

D. S. - As ganzas continuaram?

Pedro - Continuaram.

D. S. - Era alguma coisa para isso, as ganzas custam dinheiro.

Pedro - Sim, era alguma coisa para isso.

D. S. - Bom, então o que é que aconteceu a seguir, foi estudar para algum sítio,

algum curso, foi para algum projecto, o que se passou?

Pedro - Aí comecei a trabalhar, estive em vários empregos e tal...

D. S. - Largou a escola com que idade?

Pedro - Com os meus 14/15.

D. S. - Estava em que ano?

Pedro - Estava no 2º preparatório.

D. S. - Nessa altura já era muito grande para estar com os colegas que eram uns

miúdos nessa altura.

Pedro - Sim, já tinha um pensar diferente do deles.

D. S. - Os miúdos que entram são muito novos e depois vocês têm dificuldade em

estar com eles, são uns putos ao pé de vocês.

Pedro - Às vezes, é claro, pronto, há sempre uma diferença de idades e de

conversas.

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D. S. - E de tamanho.

Pedro - Não de tamanho não, não quer dizer nada, aonde chegam os pequenos

também chegam os grandes, não é? como é que eu hei-de explicar isto, só tive um

emprego que gostei.

Trabalhei na Praça de Espanha, era numa firma de tipografia, não é, que faziam

projectos e depois ia lá para baixo para a cave cortar os projectos, pronto, ia-se

distribuir a várias empresas. Era paquete, não gostei, gostei mais de trabalhar com a

mota em paquete também.

D. S. - Em quê, uma empresa também?

Pedro - Numa firma ali na Almirante Reis.

D. S. - Ah! porque ia de mota.

Pedro - Exacto, pronto, e pagavam melhor, também corria mais riscos mas

compensava, e tive lá cerca de quase 7 meses e depois vim-me embora, parti a mota

toda, tive um acidente, a mota foi para a sucata, afinal também não estavam com

ideias de me comprar uma mota nova.

D. S. - Isso aí gostava porque andava de mota pela cidade.

Pedro – Pela cidade, arredores, Sintra...

D. S. - Mesmo fora de Lisboa, também numa empresa de quê?

Pedro - Uma empresa noticiosa, esses livrinhos antigos que haviam do Falcão,

esses livros de guerra e do FBI, pronto, eram empresas que espalhavam esses livros,

pronto, o serviço que eu fazia, só levava as encomendas de mota.

D. S. - Mais empregos?

Pedro - Trabalhei numa tasca, ali no Largo do Intendente, também foi uma

experiência impecável, na altura estava a ganhar, para a idade que eu tinha...

D. S. - Que idade é que tinha na altura?

Pedro - Sei lá 16/17...

D. S. - Numa tasca ou num bar?

Pedro - Numa tasca mesmo, eu chamo àquilo uma tasca, de bar não tinha nada.

D. S. - Era atender as pessoas?

Pedro - Sim, mas depois desisti daquilo porque era de manhã à noite a levar com

bêbados, muita chungaria, não me interessou, desisti, mas ainda lá estive uns

mesinhos a trabalhar, também estava a receber bem compensado só que depois fiquei

mesmo passado da cabeça, era logo de manhã bêbados, quero um copo de vinho,

quero isto, quero aquilo, chegou a uma altura que enchi mesmo o saco e aí vim-me

embora.

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D. S. - O sítio também não era agradável?

Pedro - Não, não era, depois a prostituição, essas coisas todas que a gente sabe,

não é preciso...

D. S. - Entrar em pormenores.

Pedro - Exacto, mais, assim que eu me lembro, trabalhei numa padaria ali em

Alfama, aí estive quase um ano, mas foi porreiro, gostei de lá trabalhar, pronto, porque

estava a subir, não é, subi de posto e ia ganhando bem mas trabalhava à noite, era

um trabalho nocturno.

D. S. - Pela noite fora?

Pedro - Exactamente, até de madrugada.

D. S. - Fazia o quê? Pão?

Pedro - Exacto, carcaças, sei lá, coisa de doze mil, catorze mil por noite.

D. S. - O que é que se passava em casa entretanto, no meio destes empregos, fale

um bocadinho da família, se quiser.

Pedro - A minha família, eu fui criado com a minha avó, não é, a minha avó morreu

e depois fui morar para ao pé da minha mãe, o meu pai separou-se da minha mãe

ainda eu era, andava ao colo, pronto, também não tive na altura, como é que eu posso

explicar isto, na altura não tinha mesmo ninguém que me pudesse travar, pronto, tinha

o meu irmão e a minha irmã que são mais velhos do que eu, mas depois também

cheguei a uma idade que comecei a atinar mais um bocado.

D. S. - Vocês os três viviam com a avó?

Pedro - Não, eu era o único que fui criado com a avó.

D. S. - Porquê?

Pedro - Porque sim, a minha mãe na altura morava em Mem Martins, a minha avó

morava nas Escolas Gerais em Alfama e dava-me mais jeito ficar com a minha avó,

por exemplo a creche, a minha mãe trabalhava para o exército e a minha avó ia-me

levar à creche.

D. S. - A avó faleceu quando, que idade é que tinha?

Pedro - Tinha aí uns treze, foi uma perda difícil, depois fui morar para o pé da

minha mãe e hoje ainda lá estou.

D. S. - Como é que correm as coisas?

Pedro - Agora correm bem, pronto, também cortei com muitas coisas que andava a

fazer e pronto, mudei bastante o meu comportamento em relação a muitas coisas e

isso sempre ajuda em casa.

D. S. - E agora quem é que lá vive em casa?

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Pedro - Vivo eu, o meu irmão e a minha mãe, a minha irmã juntou-se, não casou,

juntou-se, eu acho que sim...

D. S. - A mãe continua a trabalhar?

Pedro - Não, a minha mãe está reformada.

D. S. - E agora como é que é este projecto em que ele está, está a fazer alguma

formação agora?

Técnica da Santa Casa da Misericórdia - Sim, este é o projecto a nível de Alfama, é

um projecto a nível da animação sociocultural, a carga horária é maior a nível da

animação. Eles têm agora um projecto que vão começar no próximo sábado, que são

os ateliers brinca/aprende, três sábados em três locais diferentes de Alfama. Vão

trabalhar com crianças e com pessoas idosas, tudo isto foi proposto por este grupo de

jovens onde o Pedro está, fizeram também uns trabalhos no Palácio Nacional de

Queluz e o Pedro foi um dos jovens que participou mais depois das acções do próprio

projecto. Foi já chamado para participar em actividades do próprio Palácio, algumas

remuneradas outras voluntárias, isto é, um curso em que dão um certificado de

frequência. Pretendia-se que pudesse haver uma continuação e que fosse de carácter

de profissionalização, para que depois eles próprios se pudessem candidatar a

monitores de colónias de férias, pelo menos do primeiro grupo, deste segundo ainda

não foi feita essa avaliação, mas no segundo mostraram muito interesse a esse nível

do trabalho com crianças. Era essa a ideia, este primeiro momento do curso não tem

carácter de profissionalização, fornece as habilitações em como participaram em

diversas áreas e certifica os trabalhos que depois fizeram de animação a nível de

algumas instituições que pediam.

D. S. - Em termos de escolarização ele não tem avançado?

Técnica da SCML - Não, este curso também não tem essa vertente de

alfabetização, de aumentar mais o nível de escolaridade.

D. S. - Como é que tem sido esta experiência, Pedro, com todas estas actividades?

Pedro - Para mim foi uma experiência boa, não estou nada arrependido de fazer o

que fiz, aprendi coisas novas, bastantes...

D. S. - Por exemplo o quê?

Pedro - Conviver com muita gente, sei lá, gostei de fazer animação tanto para

deficientes como para crianças.

D. S. - Gosta de trabalhar com crianças?

Pedro - Gosto e até acho que tenho um certo jeito para isso.

D. S. - O que gostava de ser na vida, um dia mais tarde, quando for mais velho,

quais são os seus projectos?

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Pedro - Os meus projectos, bem, em princípio o projecto que estou a levar para a

frente é uma profissão, que é para mais tarde estar seguro, não é? uma profissão é

sempre bom, o que é que eu gostava mesmo de fazer mas a nível profissional ou...

D. S. - As duas coisas, o que ambicionava ser mesmo que fosse difícil, o que pensa

ser possível fazer.

Pedro - Pronto, pelos estudos que eu tenho e alguma experiência que tive, uma

coisa que eu gostava mesmo de fazer era animação, e uma coisa que eu gosto de

fazer, pronto, é pena é não ter muito dinheiro, senão também não estava aqui, coisas

da vida, gostava de fazer se tivesse papel era ir para o Hawai, curtir grandes praias, ir

surfar.

D. S. - Tem feito surf este Verão?

Pedro - Mais no Inverno do que no Verão, porque no Inverno o mar é mais picado,

entra com mais força na costa.

D. S. - Gosta do risco e aventura, tem amigos com quem vai?

Pedro - Tenho um colega que vai sempre comigo, mas ele é deste género, faz

body, gosto de tudo o que seja aventura, é bom!

D. S. - E em termos da profissão?

Pedro - De profissão eu vou começar a trabalhar amanhã como ajudante de

pasteleiro, mas uma profissão que eu gostava mesmo...

D. S. - Mas essa não agrada?

Pedro - Agradar, agrada-me, senão não ia trabalhar.

D. S. - Esta formação de pasteleiro é onde?

Pedro - Não, não, é mesmo um emprego, é no Largo da Graça.

D. S. - Vai trabalhar na pastelaria?

Pedro - Vou, na fábrica.

D. S. - Isso está mesmo certo?

Pedro - Está, vou começar amanhã às sete da manhã, tenho de me levantar cedo,

coisas da vida.

D. S. - Mas esse é o emprego possível, mas o que gostaria mesmo?

Pedro - Talvez ser mecânico de motas, de motas e também não me importava de

ser de carros, mas motas, gosto mais de trabalhar com motas, nunca tive essa

experiência mas, pronto, sei pegar num motor, sei descobrir a avariazinha no motor se

eu quiser.

Técnica da SCML - Com o dinheiro que vai ganhar na pastelaria poderia dispor de

um pouco e ia para uma oficina aprender, era uma hipótese.

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Pedro - Sim, o meu irmão está a tirar um curso de bate-chapas, não sei se vai

seguir ou não, não gostava muito de seguir bate-chapas, gostava mais de seguir

mecânico e pronto, para a idade que eu tenho, eu às vezes vejo no jornal e eles

pedem mais aprendizes, putos novos com 17/18 anos no máximo, eu já tenho 19, é

um bocadinho mais difícil de entrar assim logo para aprendiz numa oficina.

D. S. - Há assim tanta diferença entre os 18 e os 19?

Pedro - Há pessoas que por um ano fazem uma confusão, não é verdade, eles

preferem ter pessoal mais novo para pagar menos, não é, para chegarem a uma certa

idade, é a realidade deste país, é assim, coisas da vida.

D. S. - Ora bem, para terminar, faltam as tais críticas à escola, o que é que não

funciona na escola?

Pedro - As críticas à escola, o que não funciona na escola, na maioria das escolas

é a segurança, como até se vê nos jornais, até fecharam uma casa de banho duma

escola ali ao pé do Largo da Graça, o pessoal ia todo para lá drogar-se.

D. S. - Como é que se poderia tornar uma escola mais segura?

Pedro - Mais segura? Meter pessoal com uma certa experiência.

D. S. - Não se esqueça que disse que não gostava dos contínuos!

Pedro - Está bem, há muitos contínuos, hoje em dia na escola uma pessoa está a

fumar um charro, passam por a gente e não dão por nada, nem sabem o que é aquilo,

não é, e pronto, parece que não mas ao mesmo tempo os outros putos estão a ver

porque têm olhos na cara.

D. S. - Precisavam de alguém que percebesse melhor o que se passa com os

jovens e pudesse actuar.

Pedro - Exactamente, é isso, e sei lá, arranjar mais convívio dentro das escolas,

que eu penso que é pouco.

D. S. - Por exemplo mais desporto?

Pedro - Sim, mais desporto, e fazerem uns bailes, fazerem um centro jovem para

quando não têm aulas, ou nos intervalos estarem com música, ou fazerem uma rádio,

a Gil Vicente já tem uma rádio, mas há muitas escolas que não têm nada disso.

D. S. - Isso do centro jovem era uma boa ideia, um sítio onde os jovens pudessem

estar.

Pedro - Exactamente, onde pudessem ocupar o tempo em que não têm nada para

fazer e depois vão para a má vida.

D. S. - E sobre a relação entre os alunos e os professores?

Pedro - Os professores falam pouco com o pessoal, só mesmo se for preciso; uma

hora de aulas e tchau até à próxima aula.

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D. S. - Então está de acordo que seria melhor haver, de vez em quando, assim um

tempo em que os professores pudessem falar com os alunos, sobre a vossa vida,

sobre temas que vocês quisessem discutir.

Pedro - Exactamente, arranjassem um espaço, sei lá, numas aulas um determinado

tempo para poderem falar mais abertamente, pronto, para os alunos exporem as suas

ideias. Há muitos alunos que precisam de desabafar, sei lá, coisas da vida.

D. S. - Acho isso muito importante.

Pedro - Não tenho mais nada a dizer.

D. S. - Falámos de muita coisa importante.

Pedro - É o que é preciso, falar, desabafar, descarregar as coisas da vida.

Óscar

D. S. - Podemos começar por contar a história da escola, o que se passou na

escola do Óscar, quais são as impressões que tem assim na primária e depois a

seguir, o que correu bem e o que correu mal.

Óscar - Acho que a minha escola desde a primária não foi assim das melhores,

porque eu estive em várias famílias e isso da primária, prontos, acho que foi só um

passatempo, andava para lá e para cá, fazia a mesma rotina todos os dias, nunca

fazia coisas diferentes.

D. S. - A primária foi em que escola?

Óscar - Foi em Lisboa, na Rua da Rosa, prontos, era sempre aquela maçada, ia

para a creche depois voltava para casa, no outro dia de manhã levantava-me e ia

outra vez para a escola, a escola primária para mim acho que foi somente para passar

de ano para ir para outra escola.

D. S. - Como era o convívio com os colegas?

Óscar - O convívio com os colegas era agradável, mas outras vezes desagradável.

D. S. - Havia rapazes e raparigas?

Óscar - Havia, os rapazes já se sabe que são mais brutos, as raparigas são mais

calmas.

D. S. - Vocês davam-se uns com os outros, ou davam-se mais rapazes com

rapazes?

Óscar - Não, havia mistura rapaz/rapariga, rapaz com rapaz e rapariga com

rapariga, prontos, até hoje é o...

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D. S. - Depois adiante já vamos ver. E assim além das aulas a escola primária tinha

alguma actividade, faziam assim alguma festa ou...

Óscar - Não, tínhamos actividades mas sem ser de festas, as festas eram

conforme, é no Natal ou essas coisas assim, não tínhamos actividades, por exemplo

eu escolhi teatro, o resto era geografia, línguas, e isso não me interessava muito.

D. S. - E o teatro como é que funcionava?

Óscar - Era um clube de teatro em que a gente lia peças e representava para nós e

havia uma vez por ano que representávamos para os nossos pais.

D. S. - Passaste os 4 anos?

Óscar - Não, chumbei na 2ª classe, mas foi por brincadeira.

D. S. - Vamos lá perceber porquê.

Óscar - Andava a riscar muitas carteiras, punha-me em pé nas mesas e fazia

coisas imaginárias, como tirar a cadeira à professora para ela cair, fazia coisas de

miúdos daquela idade.

D. S. - Fazias isso sozinho ou com mais colegas?

Óscar - Não, mais alguns colegas, chumbei por causa disso, era um bom aluno.

D. S. - E como é que a professora reagia às tuas brincadeiras?

Óscar - Marcava faltas e mandava-nos para a rua de castigo, ou então punha-nos

no canto da parede.

D. S. - Não arranjava nenhuma actividade onde vocês pudessem...

Óscar - Não, a escola onde eu estou arranja...

D. S. - Isso já lá vamos, temos que ir passo a passo, como é isso das várias

famílias, o que se passava na tua vida que essa parte eu não sei.

Óscar - É assim, eu não tenho pai nem mãe, sou subsidiado pela Santa Casa,

então prontos, meteram-me numa família que estão a cuidar de mim desde pequeno,

mas houve várias mudanças, porque a minha mãe quando era viva mudava-me

imensas vezes de ama, parecia um saltimbanco, nunca estava bem em nenhuma,

antes de ela morrer fui para esta onde estou até agora, desde os quatro que é assim.

D. S. - Foste para a primeira família com que idade?

Óscar - Desde os quatro.

D. S. - Até aos quatro anos estavas com quem?

Óscar - Estava com a minha mãe, a minha mãe quando eu nasci tinha um

problema, subiu-lhe o parto à cabeça acho eu, então era como aquelas pessoas

maluquinhas, muito nervosas.

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D. S. - E a mãe morreu quando?

Óscar - Em 1989, 24 de Novembro.

D. S. - Tinhas 6 anos.

Óscar - Com um cancro nos intestinos.

D. S. - E o pai, nunca conheceste o pai?

Óscar - Não, nunca conheci.

D. S. - Como é que tens vivido esta história das famílias que não são a tua própria,

como é que tens sentido isso?

Óscar - Tenho-me sentido bem, mas às vezes há aquelas coisas que, tem-se

saudades da mãe e do pai, e vê-se os outros meninos com a mãe e com o pai e não

sei quê, às vezes gostava mais de ter um pai e uma mãe adoptiva do que estar nesta

situação de tutor. Não me sinto assim muito bem e depois tratar pelo nome e não

tratar pelo verdadeiro nome de parentesco, grau...

D. S. - E essa família tem mais filhos?

Óscar - Tem, mais dois, um rapaz e uma rapariga, mais velhos.

D. S. - E dás-te bem com eles?

Óscar - Mais ou menos, não me dou muito bem com ela, com ele dou.

D. S. - Que idade é que eles têm?

Óscar - Ela tem 30, ele tem 24 ou 25.

D. S. - Bom, então voltamos um bocadinho à escola primária, o que gostaste mais,

o que gostaste menos na escola, foi sempre a mesma, não é?

Óscar - Foi, o que eu gostei mais foi a 1ª classe e a 4ª classe, na 1ª estava sempre

desejoso de entrar para a escola, depois entrei e na 1ª classe toda a gente julga que

toda a gente passa da 1ª para a 2ª mas é mentira, há pessoas que ficam, então eu

gostei muito de aprender, prontos, já me estava a imaginar a passar todos os anos

sem chumbar nenhuma vez, mas chumbei 2 anos.

D. S. - Mas isso foi mais pelas questões das brincadeiras e não por não

compreenderes.

Óscar - Não, a segunda vez foi no 5º ano, não foi por brincadeira. A verdade é que

do que eu gostei mais da escola primária foi do clube de teatro, adoro essas coisas,

tudo o que esteja relacionado com o teatro, e prontos, gostei. Também gostava das

professoras da matéria, a matéria da primária é muito engraçada, aquelas coisas

novas...

D. S. - O que não gostaste, ou que gostaste assim menos da escola, aquilo que te

aborreceu mais, a matéria, o convívio…

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Óscar - Uma professora que eu tive. Uma vez, prontos, eu queria ir à casa de

banho, só que ela não deixava ninguém sair, porque não era logo ali e tinha medo que

a gente fugisse das salas, porque havia miúdos da minha sala que fugiam às aulas, e

como ela não me deixava sair eu disse "olhe professora eu faço aqui na aula" e ela

disse "eu não me importo", então eu não fui de modas e fiz chichi na aula, e então ela

castigou-me.

D. S. - Como é que foi o castigo?

Óscar - Estive lá virado para a parede durante duas aulas, dois dias. Acho que,

prontos, os professores devem dar, quer dizer, os alunos têm o direito de ir à casa de

banho, mas os professores têm sempre aquele medo que o aluno faça isto e faça

aquilo.

D. S. - Agora continuando para a frente, foste para o 5º e o 6º em que escola?

Óscar - Na Escola Fernão Lopes.

D. S. - Fica onde?

Óscar - Fica ali ao pé do Calhariz, por detrás dum cinema.

D. S. - Era uma escola muito diferente, o que é que achaste da escola, dos alunos,

dos professores?

Óscar - Os professores eram bons, agora os alunos, prontos, é mais aquele género

nós entramos para o 5º e os do 6º juntam-se e querem bater logo nos do 5º, acham-se

superiores, é sempre isso. Eu estou a falar, mas quando eu fui para o 6º, já estava,

prontos, é aquela fase que uma pessoa entra para um lado e diz assim: há aí miúdos

novos, vamos bater neles, vamos fazer isto, vamos fazer aquilo, e prontos, não gostei

dessa fase.

D. S. - Só havia alunos do 5º e do 6º?

Óscar - Só, eu chumbei no 5º e tive que ficar outra vez no 5º, dois anos.

D. S. - E o que se passou com essa reprovação, por que é que isso foi?

Óscar - Por causa da matéria, não percebia, comecei com o inglês, foi um erro meu

não ter começado aqui na escola primária, porque havia aquele clube de inglês e lá no

5º e no 6º também haviam esses clubes, só que não havia nem teatro nem de inglês,

havia outros de história e de mais não sei o quê, tive dificuldade em inglês e outras

matérias, só se podia passar com duas negativas e eu chumbei.

D. S. - Olha, e em termos de violência nessa escola, queres explicar o que havia?

Isso foi há 6 anos mais ou menos, tinhas 10/11 anos.

Óscar - São aquelas brincadeiras que as meninas inventavam que iam dizer ao

rapaz que era amigo do outro, complicações que depois o outro vinha-nos bater,

aquelas historiazinhas, pronto.

D. S. - Havia jogos violentos?

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Óscar - Havia, que eu ainda cheguei a apanhar um desses jogos que se chamava o

corredor.

D. S. - Explica lá isso.

Óscar - Era assim, todos numa fila e depois tinham que passar e os outros batiam e

o outro tinha de ver quem batia, e aquele que batia tinha que ficar no meio, trocavam.

D. S. - Era um jogo só jogado por rapazes, ou também por raparigas?

Óscar - Não, também jogavam raparigas, mas era mais por rapazes.

D. S. - E assim jogos de futebol, empurrões.

Óscar - Esses há muitos, eu por acaso não gosto de futebol.

D. S. - Não tens nenhum clube?

Óscar - Não, tenho o meu, o meu nome é o meu clube.

D. S. - Olha, Óscar, havia mesmo assim cenas de pancada?

Óscar - Havia, e uma vez eu caí das escadas, foi a queda maior da minha vida, ia a

pôr o pé no 1º degrau e pus no de último lá de baixo, não há-de ser nada aquilo era o

empurra, e chega-te para lá e vê lá se não queres levar, e deves ter a mania que és

muito bom, esse tipo de coisas assim do 6º ano e os dos 5º mais traquinas.

D. S. - Estiveste nesta Escola Fernão Lopes no 5º e 6º ano e depois do 6º ano foste

para onde?

Óscar - Casa Pia de Lisboa, Rua Dona Maria Pia - Xabregas, que é a escola dos

australopitecos, são miúdos fora do normal onde eu me incluo, porque são os que não

têm saída para outras escolas porque não os aceitam. Fui para lá porque aqui

sugeriram para eu tirar um curso e tive 3 opções. Escolhi primeiro cozinha e pastelaria,

o segundo foi corte e confecção e o terceiro foi estofador, não, o primeiro foi artes

gráficas, o segundo cozinha e pastelaria e o terceiro corte e confecção. Agora estou

na cozinha, não havia vagas em artes gráficas e meteram-me na cozinha, mas eu não

gosto de cozinha. Queria tirar artes gráficas, porque eu gosto muito de desenhar.

D. S. - Mas como não havia vaga passaste para o de cozinha?

Óscar - Pastelaria era a 2ª opção e se não houvesse ia para o de corte e

confecção, meteram-me lá. Estou lá há 3 anos, acabei este ano, passei para o 10º. No

7º quando entrei para lá não conhecia ninguém, via aquelas pessoas muito altas,

começavam logo a fazer comentários e este vem para cá e vai levar tantas, não sei

quê.

D. S. - Aí também havia violência?

Óscar - Havia, é muito pior, mil vezes australopitecos, prontos, eu não sou racista

mas aquela escola é, acho que é, mais de pretos do que de brancos.

D. S. - Mas havia conflitos entre os rapazes brancos e negros?

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Óscar - Não, é tudo à mistura, mas às vezes há uns que brigam, olha ó preto, a tua

mãe não sei quê, coisas deste género, uma pessoa não está habituada a ouvir, e

acaba por se habituar e, prontos, lá na escola é tipo isso, quando entrei para o 7º não

conhecia ninguém, mas tive uma grande surpresa, que estava uma rapariga na minha

turma, já tinha frequentado o 5º e o 6º e tinha estado no curso de cozinha e frequentou

agora o Nível II, porque isto é por níveis que dão equivalência ao 9º ano, fiquei na

turma dela, e ela namorava um rapaz que por acaso era o mais forte lá da escola, tipo

chefe, ninguém lhe batia, ele é que mandava. Por acaso ela dava-se bem comigo,

andávamos sempre os dois juntos e depois conheci o namorado dela, prontos, e aí

ninguém me tentou bater.

D. S. - Eras protegido do namorado dela?

Óscar - Era isso, depois eles às vezes chamavam-me olha o do coiso, olha o não

sei quê, olha o filho da Paula, pronto, era o género, comecei a gostar, no 8º ano ele

ficou lá mas depois partiu, ela depois desistiu também. Fiquei assim um bocado

desamparado, depois entraram miúdos novos, mas não houve problema que eu já

estava lá desde o 7º, e prontos, arranjei mais pessoas, aliados.

D. S. - Olha, o que aprendeste nessa escola, quais são as tuas dicas?

Óscar - Na minha escola é assim, gostei da matéria, havia disciplinas novas que

nunca tinha tido e prontos aprendi, e achei giro as disciplinas, os professores gostei,

menos de um deste ano, o professor de matemática, era um horror, que é melhor nem

contar. É que ele fazia cada coisa que uma pessoa fica parva, era daquele género

escreve no quadro, apaga, e depois diz perceberam? uma pessoa fica assim, chega-

se ao pé dum aluno e diz "você estava a falar? ai estava", e manda-lhe um estalo, a

mim teve uma vez o azar de me amandar um estalo, amandei-lhe com a cadeira nas

trombas, não gosto muito de violência, mas já uma vez tinha avisado se alguma vez

me bate também lhe faço alguma coisa, e então apanhei uma falta a vermelho, e

depois descontaram, porque na minha escola pagam o ordenado ao fim do ano, e por

cada falta a vermelho é menos 500$00.

D. S. - Havia vários professores que batiam ou era só esse?

Óscar - Era só este, uma vez a minha directora de turma também, acho que

tratámos mal uma empregada, chamámos nomes à empregada, prontos, foi a única

vez, mas esse professor arranja sempre conflitos com todos os alunos, chumbou dois

colegas meus que não tinham nada que chumbar, porque não dá matéria!

D. S. - Esta escola é diferente das outras escolas, aprendeste para teres uma

profissão, o que é que achaste dessa experiência?

Óscar - Gostei, mas não é a minha área, porque eu não gosto nada de cozinha,

mas de tudo o que seja ligado à moda, essas coisas, assim, eu gosto imenso, sei

desenhar muito bem vestidos, só quando eu fui para lá pensava que o 7º ano era só

para costurar, pegar numa agulha e toma lá, coses isto e não sei quê, e não me

disseram que havia a parte de tecnologia, que era a parte de aprender os tecidos, a

história da moda. O que me interessa mais aprender é a parte do desenho técnico,

fazer uma boneca para depois desenhar por cima, essas coisas assim interessa-me

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imenso, corte e confecção, prontos, pensava que era só naquele género toma lá uma

agulha e linha e toca a coser o pano, por isso é que eu não entrei, porque eu sempre

gostei dessa onda de moda. Acabei por ir parar à cozinha, porque não havia vagas em

artes gráficas, a 2ª hipótese era cozinha e a 3ª era corte e confecção.

D. S. - Mas tu querias fazer corte e confecção, não era o que preferias?

Óscar - Era, só que eu não sabia que havia a parte tecnológica.

D. S. - Acabaste de fazer uma formação de que não gostas muito?

Óscar - Sim, de cozinha e pastelaria, mas passei a todas, tirei o curso agora, já

tenho o certificado.

D. S. - E sabes cozinhar e fazer bolos?

Óscar - Sei, e tudo, quer dizer, há pratos que a gente não faz.

D. S. - Sabes que aí pode-se pôr um bocado de arte, eu acho que tu gostas muito

de coisas de arte, fatos, de moda, de desenhar, mas um bolo também pode ser

artístico.

Óscar - Sim, porque na minha aula de desenho a gente fez a esferovite, depois

metemos massa de cozinha por cima e eu fiz a decoração do bolo, uma passagem da

Chanel tipo assim, picotei, fiz vários remendos, fiz com feitios, depois pus uma boneca

feita em massa assim no meio e pus Chanel em letras pintadas, ficou muito giro.

D. S. - Estás a ver, aí é pôr um bocadinho de arte!

Óscar - Pois, mas não tem nada a ver, cozinha, pratos, vai sempre puxar a esse

lado, lavar loiça e ser chefe de cozinha, cheiro a comida.

D. S. - Foi melhor para ti teres feito essa formação profissional, ou seria melhor

teres estado numa escola das outras?

Óscar - Não, gostei desta de formação, prontos, porque aprendi muita coisa que

não tinha aprendido, disciplinas novas que não ia aprender cá fora, coisas diferentes.

D. S. - Em termos do teu futuro achas que foi vantajoso?

Óscar - Foi, ganhei uma viagem à França.

D. S. - Então conta lá a viagem.

Óscar - Tínhamos uma viagem com a minha turma este ano em Março, a gente foi

a França porque era o último ano, finalistas, a gente fez um restaurante pedagógico

para os professores, os professores iam lá, pagavam esse dinheiro com mais um

almoço dos dos Lyons, que é um clube de tias, clube das nossas amigas que foram lá.

D. S. - O Lyons ajudou-vos?

Óscar - Ajudou, depois a Casa Pia deu dinheiro, depois a companhia onde a gente

está a trabalhar também deu dinheiro. Conseguimos arranjar o dinheiro e fomos para

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França, porque a nossa escola faz intercâmbio com França e com os Açores, vão para

lá meninos nossos e vêm para cá outros. Foi muito giro, visitámos muitos sítios, Dijon,

Lyon, fomos aos Alpes andar de ski, gostei, fiquei com umas calças muito giras, que

eram pretas, eu dei p'raí umas quinhentas quedas nos joelhos, atrás ficou tudo branco,

aquilo agora não sai.

D. S. - Ficaste com uma boa recordação desta viagem?

Óscar - Adorei.

D. S. - Agora para terminar vamos falar um bocadinho do futuro, o que é que se vai

passar agora?

Óscar - Agora, no 10º, 11º e 12º, vou tirar o curso de técnico coordenador e

produtor de moda.

D. S. - Ah, então agora vais fazer uma coisa que te interessa, isso é em que

escola?

Óscar - Na Magestil e dá direito a várias saídas.

D. S. - Quais, por exemplo? Podes consultar os teus apontamentos.

Óscar - Colabora em acções de promoção de imagem de empresas de produtores

e marcas; orienta a compra de acessórios de vestuário em armazéns e firmas de

representações; organiza catálogos de venda de artigos de vestuário, organiza

exposições de artigos de moda em vitrinas; desenvolve acções de consultadoria e

coordenação da imagem e alinhamento de audiovisuais, selecciona matérias para

cadernos de tendências de jornais e revistas especializadas e para outros órgãos de

informação e comunicação social; colabora na organização de salões e exposição de

moda, coordena desfiles de moda desde a secção de fatos até à sequência de

montagem; colabora na escolha de guarda-roupa para o teatro, cinema e televisão,

estas coisas são as que mais me interessam.

D. S. - É uma escola profissional, portanto?

Óscar - É, só que lá em vez da escola nos pagar, nós é que temos de pagar, mas é

o que eu quero.

D. S. - Como é que vais arranjar o dinheiro?

Óscar - Acho que é a Santa Casa que me vai pagar, acho que sim, acho que

mereço, uma pessoa esforça-se tanto, o curso que eu queria tirar é muito caro mas

prontos, já desisti da ideia, era tirar o curso de manequim, eu tenho jeito, já fiz

passagens e vou fazendo de vez em quando, só que para entrar numa agência de

manequins tinha de tirar o curso e o mais barato que eu já vi acho que era 150 contos.

Era o que eu gostava e a começar bem cedo, novo é que é bom, porque eu tenho 16,

1,72m, mas o único problema que tenho é borbulhas, isto pode ficar, porque há base

líquida para disfarçar, é a única coisa que os homens usam para se pintar.

D. S. - O que gostavas de ser era manequim?

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Óscar - Porque eu gosto de moda, gosto muito de ver passagens de modelos,

prontos, acho que gostava de ser um manequim famoso tipo Marcos ou aquele que

acabou de morrer que fazia coisas para o Armani. As pessoas às vezes convidam-me

para fazer passagens e perguntam-me se eu sou manequim e levo com um não,

porque não sou manequim, por isso o curso ajuda imenso e é preciso estar numa

agência, tipo a Central ou a Elite. Fiz duas passagens o ano passado, era para fazer

dois anúncios, não sei se vou fazer, mas penso que não devo fazer, era para a chiclets

e para a cerveja.

D. S. - Olha, uma última questão, que pensas sobre aqueles jovens que deixam a

escola?

Óscar - Fazem mal, porque eles deviam continuar a estudar porque estudar nunca

é de mais. Uma pessoa deve aprender sempre mais, saber mais que os outros. Agora

vou dar uma crítica em relação à minha escola, ou melhor, a crítica é em relação às

outras escolas. Todas deviam ter o mesmo acompanhamento de disciplinas de saídas,

por isso é que a minha escola é muito boa, tem muitas visitas guiadas a vários sítios

sempre que há uma data para comemorar, por exemplo o dia da criança, Natal,

oferece uma coisa, não tou a exigir, a minha escola não é tipo assim Colégio Moderno,

nem Valsassina, nem coisa assim parecida.

D. S. - Mas essa parte de sair achas importante?

Óscar - Acho, as visitas de estudo sempre orienta mais o aluno, acho que o aluno

fica a saber mais.

D. S. - Achas que em muitas escolas os alunos estão tempo de mais dentro da

escola?

Óscar - Acho, cansam-se, por isso é que metade deles desistem de estudar e é

muita maçada, o professor chega à aula e diz já vamos dar isto e não saímos daqui e

blá, blá, blá, metade adormece, outra metade fica atento, os outros nem sabem o que

lá estão a fazer, outros só pensam quando é que toca, quero sair daqui.

D. S. - Obrigado pela tua colaboração, Óscar.

Débora

D. S. - A Débora tem quantos anos?

Débora - Tenho treze.

D. S. - Olha, nós estamos a fazer uma entrevista para um livro que estou a

escrever, sobre o que os jovens pensam da escola, o que gostam e não gostam, as

dificuldades que têm sentido. Então começamos por falar da escola primária, como é

que foi?

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Débora - Foi na Escola 69 de Sapadores, aquela escola era assim um bocado

desleixada, porque os professores muitas das vezes faltavam, quase não tínhamos

aulas, não tínhamos casas de banho como deve ser. Ou eram os autoclismos que

estavam estragados ou eram as pias que estavam entupidas.

D. S. - Havia desenhos nas paredes?

Débora - Alguns.

D. S. - E o edifício da escola como é que era?

Débora - Era bonito, era antigo.

D. S. - Estava conservado ou estava estragado?

Débora - Estava conservado.

D. S. - Foste sempre passando ou tiveste alguma reprovação?

Débora - Reprovei três vezes, na 1ª, na 2ª e na 3ª.

D. S. - E porquê?

Débora - Era eu que dava faltas, umas vezes não estava com atenção, outras

vezes estava com preguiça de fazer as coisas.

D. S. - Por que é que faltavas, o que é que ias fazer quando faltavas?

Débora - Ficava em casa.

D. S. - Como é que era a tua vida familiar nessa altura, vivias com quem?

Débora - Com a minha mãe e com a minha irmã, a minha vida era boa.

D. S. - A tua irmã era mais velha ou mais nova? Que idade é que tem?

Débora - É mais velha, tem 26.

D. S. - Olha, Débora, o que se passava lá em casa, vocês tinham alguma

dificuldade? O que aconteceu ao pai?

Débora - Não, o meu pai morreu quando eu tinha quase quatro anos.

D. S. - Foi de doença?

Débora - Não, foi ele que caiu dum prédio sem querer.

D. S. - Estava a trabalhar?

Débora - Foi ao telhado arranjar uma coisa e caiu.

D. S. - E a tua mãe ficou com vocês as duas?

Débora - Somos de pais diferentes.

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D. S. - A tua irmã mais velha é doutro pai, mas a tua mãe não vive com esse

senhor?

Débora - Não, não, a minha mãe vive sozinha e ainda tenho mais outro irmão que é

do mesmo pai que a minha irmã. Tem 32 anos.

D. S. - Está casado?

Débora - Estava junto, agora está separado outra vez.

D. S. - Olha, então explica lá melhor quais eram as dificuldades que sentias na

escola, achavas que os professores te ajudavam ou eram assim severos para contigo,

como é que era?

Débora - Era as duas coisas, agora ultimamente ajudavam-me mais e assim, mas

tive uma stôra que era muito severa, na primária, era professora, não ajudava nada,

era severa, e acho que foi por isso que eu chumbei. Agora tive um professor na 4ª que

ajudava muito a gente a conseguir perceber as coisas, também brincava connosco.

D. S. - Achas importante um professor brincar com os alunos?

Débora - Torna-se mais simpático.

D. S. - Entendem-se melhor se ele brincar um bocadinho?

Débora - Sim.

D. S. - Tu completaste agora a 4ª classe, foi?

Débora - Foi, passei para o 1º ano, para o 5º, agora estou a terminar o 5º ano.

D. S. - Então mudaste de escola?

Débora - Sim.

D. S. - Foste para uma escola preparatória?

Débora - Dona Maria Pia.

D. S. - Fizeste lá o 5º ano?

Débora - Sim.

D. S. - Então como é que foi essa mudança da tua escola para o sítio aonde estás?

Débora - Ao princípio foi um bocado estranho, não conhecia ninguém, mas agora já

tenho amigas, gosto dos professores, é diferente aquela escola.

D. S. - Há mais alunos ou não? Há mais confusão, mais violência?

Débora - Há sim, um bocado.

D. S. - Explica lá a violência que há, conta uma cena que aches que seja violenta,

da escola onde estás agora.

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Débora - Sei lá, às vezes os rapazes e as raparigas zangam-se, põem-se à tareia,

uns ficam todos negros, outros vão para o hospital.

D. S. - Isso são mais os rapazes?

Débora - As raparigas também.

D. S. - Mas não achas que os rapazes são assim um bocadinho mais brutos, mais

violentos ou não?

Débora - São.

D. S. - Este ano não tiveste dificuldade, passaste bem o ano?

Débora - Eu chumbei o ano, ali tem de se passar a todas as disciplinas e eu

chumbei a matemática.

D. S. - Não gostas de matemática?

Débora - Tem coisas difíceis que eu não consigo compreender.

D. S. - Pensas que és tu que não compreendes ou os professores podiam dar a

matemática doutra maneira?

Débora - Podiam ajudar melhor a compreender. Talvez explicando melhor e

fazendo outras coisas a gente compreendia melhor.

D. S. - Para o ano vais repetir o 5º? Na mesma escola?

Débora - Estou também a fazer um curso, estou no corte e confecções, que já

acabámos há algum tempo porque outras meninas vão para lá fazer provas e nós

deixamos de ter oficina agora, temos só aula.

D. S. - O que tens achado desse curso?

Débora - Acho bom, aprendemos a costurar, fazemos o que queremos, podemos

até mais tarde vir a ser costureiras, se não quisermos fazer outra coisa qualquer.

D. S. - Foste tu que escolheste corte e confecção?

Débora - Fui.

D. S. - Havia outras possibilidades, havia outras escolhas que podias fazer?

Débora - Havia cozinha e depois já era coisas mais para rapazes, como mecânico,

pintura de automóveis, serralharia, por aí, então eu escolhi em primeiro lugar oficinas

de corte e confecções, e em segundo lugar cozinha.

D. S. - Que gostavas de ser quando fosses grande, qual era assim o teu projecto?

Débora - Gostava de ser educadora de infância, gosto muito de crianças.

D. S. - Gostas de tomar conta de miúdos, ensinar-lhes coisas?

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Débora - Sim, também, e como não é possível vou trabalhar para uma fábrica ou

coisa assim, mas primeiro vou fazer até ao 9º ano e depois saio quase com 19

praticamente e tiro a carta, arranjo um carro.

D. S. - Gostavas de tirar a carta?

Débora - Sim, e gostava de ter um carro, assim sempre é melhor.

D. S. - Como é que te dás com a tua mãe?

Débora - Dou-me bem, agora temos lá o meu irmão, e ele tem alguns problemas e

isso é que torna a minha mãe mais nervosa, mas a minha relação com a minha mãe é

boa, com ele é que não.

D. S. - Quais são as dificuldades que tens com o teu irmão?

Débora - Ele é chato, e depois é chato só em alguns bocados, porque ele é

toxicodependente e agora a minha mãe está a querer pô-lo numa clínica para ele se

tratar, nunca mais se trata de nada mas se calhar para o mês que vem ele vai ser

internado, ainda não sabemos. Quando ele é um bocado chato, eu conto tudo à minha

mãe e ele chama-me queixinhas e diz-me se eu disser à mãe que me bate, ele nunca

me bateu, mas se me bater...

D. S. - O que fazes?

Débora - Eu não deixo ele me bater, porque eu também tenho mãos.

D. S. - Mas ele é grande.

Débora - É um bocado alto.

D. S. - Mas acho bem que não te deixes bater, que te saibas defender. Há quanto

tempo está ele na vossa casa?

Débora - Há cerca de um ano, mais ou menos.

D. S. - Ele não trabalha?

Débora - Não, ficou desempregado por causa de ser toxicodependente, o patrão

soube e não o queria mais lá.

D. S. - Não chegaste a conhecer o teu pai, não te lembras dele?

Débora - Não, só tenho lá uma fotografia dele, porque assim lembrar não me

lembro. Coisas dessa altura eu acho que não dá para se lembrar.

D. S. - E achas que ele tem feito falta durante todo este tempo?

Débora - Não sei, ele também era uma pessoa boa, é o que a minha mãe me diz é

que ele era bom, mas também fazia coisas que não devia, sei lá, deixou a minha mãe

grávida de mim, foi viver com outra amante, e foi por causa dessa amante que ele

morreu. Ela disse que se ia embora, trancou a porta do quarto e depois ele foi lá acima

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ao telhado e tirou as telhas para ver se ela lá estava, viu que ela não estava lá e ia

saltar para a varanda e não conseguiu, caiu fora da varanda, como era de noite...

D. S. - Foi a tua mãe que te contou isso?

Débora - Foi.

D. S. - Débora, agora para acabar diz-me o que pensas da escola, como a escola

se poderia melhorar, o que pensas de alguns estudantes que largam a escola, já tens

ouvido falar nestas situações?

Débora - Porque a gente muitas das vezes não percebemos certas coisas e acho

que os professores deviam ajudar melhor a gente a compreender, também não devia

haver tanta violência, como roubarem e essas coisas assim.

D. S. - Achas que isso pode afastar as pessoas da escola?

Débora - Acho, muitas das pessoas até não querem ir à escola, querem é ir

trabalhar, já tive uma colega assim.

D. S. - Obrigado.

Voltei mesmo à escola

Fiquei muito contente com um convite que recebi no último período do ano lectivo

de 1994-1995. Tinha ido a uma Escola Secundária da região de Lisboa para mais uma

acção de formação junto dos professores, precedida por um debate com cerca de 200

alunos. No breve intervalo entre as duas sessões, a presidente do Conselho Directivo

(CD) disse-me: "Estas suas iniciativas são muito importantes, mas por que razão não

vem cá passar quinze dias intensivos no próximo mês de Outubro?" A proposta

sensibilizou-me muito e aceitei rapidamente.

Foi assim que decidi passar quinze dias intensivos numa escola dum bairro de

Lisboa, com entrada pelas 8,30 e saída às 17,30.

O meu plano era viver intensamente o quotidiano escolar, conviver com alunos,

professores e pais e propor algumas alterações que eventualmente pudessem ser

realizáveis.

As aulas já tinham começado há um mês quando cheguei à escola. Entrei um

pouco receoso. Que utilidade poderia ter, para mim, para os outros, um psiquiatra na

escola? Mesmo que lá houvesse uma grande crise, não me consta que os médicos

costumem chamar professores quando não sabem resolver os seus problemas.

Pensei melhor: se eu queria conhecer a realidade escolar, era bom que vivesse um

tempo num estabelecimento de ensino, de modo a conhecê-lo mais por dentro; e

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talvez uma observação por alguém de fora pudesse ser útil aos professores e aos

alunos.

O primeiro dia

Foi muito favorável a primeira Impressão. A escola tinha porteiro e vedação, à

esquerda havia um jardim bem cuidado e ouvia-se música a partir da Associação de

Estudantes (AE). O CD funcionava perto da entrada, num local acessível e com a

porta quase sempre aberta. Havia um campo de futebol não muito degradado, onde se

jogava à bola com alegria. A sala de professores era ampla e arejada, com mesas e

cadeiras confortáveis. Tinha sido atribuída aos alunos uma sala só para as suas

actividades, que estava no início da sua utilização.

Em reunião anterior com o CD e alguns professores, combinámos que as minhas

actividades na escola envolveriam um contacto aprofundado com os docentes e

discentes, através de seminários e debates, e poderia percorrer toda a escola e

assistir a algumas aulas, desde que houvesse um acordo prévio com o professor

respectivo.

Foi assim que, cerca de trinta anos depois, voltei mesmo à escola e fui assistir a

uma aula.

A maioria dos alunos deste 9º ano entram na aula após o segundo toque. Vêm em

pequenos grupos e transportam na mão dossiers e livros em mau estado. Vejo

rapazes com ar de criança, raparigas que parecem no fim da adolescência e

finalmente um grupo que entra em tropel com ar brincalhão. Os rapazes usam camisas

largas e com quadrados, por cima de T-shirts de cores vivas e calças de ganga.

Alguns têm caracóis e um boné de pala bem encavalitado, que tiram à entrada com

pouca vontade. As raparigas abafam risinhos, usam calças semelhantes às dos

rapazes e trazem cadernos e livros mais bem cuidados.

A sala de aula é pobre e triste. À esquerda da porta há um armário vazio. O quadro

ocupa um lado e a parede em frente tem uma espécie de tijoleira que a cobre de alto a

baixo. Não existe um desenho, uma pintura ou uma simples cor forte que torne este

espaço um pouco mais pessoal. Na tijoleira está escrito Susana – true love e Bruno é

rabo a giz branco com grandes letras, mas já ninguém parece reparar. A parede em

frente à porta tem janelas amplas que fecham mal, protegidas com estores de ripas

que flutuam obliquamente. A professora fala de cima do estrado sobre O Crime da

Aldeia Velha, mas a atenção não é muita. Com as carteiras à frente umas das outras,

é frequente os alunos virarem-se para trás, pedirem canetas emprestadas e passar

papelinhos à pressa. "Hoje tenho muita coisa para coleccionar", diz a professora ao

apropriar-se da mensagem que felizmente não lê.

A aula prossegue com pouca participação dos alunos, que contrafeitos respondem

às perguntas com monossílabos enjoados. Olho em volta. Vejo um caixote de lixo, as

mesas dos alunos com rebordo carcomido e tampos com dezenas de desenhos - há

um rapaz que desenha agora uma sereia de mamas grandes - que, ao que me dizem,

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foram limpos há um mês. Observo duas cadeiras desirmanadas a poeirar por ali, uma

capa plástica com umas folhas de apontamentos aparentemente da turma anterior e o

livro de ponto aberto na secretária.

Quando toca, duas alunas ficam de mãos postas a agradecer ao Senhor o fim da

aula, a professora grita uma recomendação mas já ninguém a ouve.

Saio da aula com a professora e faço comentários de circunstância. Desço para a

sala dos docentes ao longo de uma espécie de túneis com alguma inclinação, com

lâmpadas fundidas e janelas minúsculas. Somos ultrapassados por grupos de alunos

que descem as rampas a correr, às vezes vale o empurrão e a rasteira. Continuo a

descer à espera de alguma nota de alegria naqueles túneis tão lúgubres, mas só

encontro uma escuridão impessoal e um barulho de vozes.

Fico a pensar por que razão ninguém decora a escola, a torna mais viva e pessoal,

de modo a fortalecer um sentimento de pertença?

É tudo muito rápido. Chego a um bar com uma bonita esplanada, onde alguns

alunos se sentam a conversar e a tomar qualquer coisa, ao mesmo tempo que outros

se abraçam ao longe e procuram uma intimidade amorosa que a presença de tanta

gente deverá dificultar.

Em breve entro numa sala rodeada de armários com livros, que mais tarde

verifiquei estar quase sempre sem ninguém. Um grupo de cerca de trinta professores

ladeiam uma mesa comprida e preparam-se para um seminário sobre “Sinais de

alarme na adolescência”. São estes elementos do corpo docente que estão

interessados em mudar a escola e prontos para trabalhar comigo em novas

perspectivas de intervenção. A Presidente do CD, senhora firme e afectuosa que tanto

se esforçou pela minha integração no espaço escolar, torna a explicar a minha

presença e a solicitar a participação dos colegas. O seminário dura duas horas e meia

e decorre com muito interesse. Entusiasmo-me ao verificar que há professores atentos

e com vontade de inovar, mas sem perderem a perspectiva de que não podem ser

pais ou técnicos de saúde mental.

Almoço depois no refeitório. Vejo vários alunos a aguardar a sua vez na fila, um

deles fica muito contente quando vê que é salada de atum e grita: "Só mais um

bocadinho, senhora contínua! Só mais um bocadinho!" Converso com elementos do

CD e com a senhora que chefia os Serviços Administrativos, pessoa disponível que

em breve me entregará um dossier com toda a Legislação escolar.

Passeio a seguir pela escola. Percebo que o belo jardim à entrada não é

frequentado por alunos (ao que parece estão proibidos de ir para lá para evitar que o

estraguem) e há amplos espaços desaproveitados. Desço uma pequena rampa e vejo

a cave da escola, com aulas a funcionar num piso térreo com vista para um espaço

deserto de qualquer vegetação, encimado por um pequeno monte de terra vedado

deficientemente. Junto às janelas há umas arcadas sem aproveitamento, já que estão

cheias de mesas e cadeiras partidas, caixotes de lixo com mau aspecto e restos de

outros materiais. Imagino imediatamente mesas de pingue-pongue, um posto de rádio

ou um espaço para convívio, mas sou acordado do meu sonho por uma advertência

de um membro do CD, que manda para cima dois alunos suspeitos de consumos

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tóxicos. Percebo que é naquele local mais abandonado que se encontram os alunos

mais problemáticos, enquanto a maioria prefere a confusão da zona mais acima.

Dou rapidamente comigo a repetir o seminário da manhã, na presença de outro

grupo muito interessado de professores. São outras as questões levantadas e o tempo

passa a correr.

Os alunos

Nos primeiros dias, verifiquei que nenhum aluno parecia dar pela minha presença

na escola. Passavam por mim como se de mais um professor se tratasse, ou talvez

me achassem com cara de inspector do Ministério, uma vez que andava por toda a

parte a observar o que se passava.

Rapidamente fiquei com a ideia de que os alunos se distribuíam por vários grupos.

Havia os da AE, os bons alunos sempre a falar de estudo e aqueles que se

deslocavam de um lado para o outro sem nada de particular. Nos quinze dias que

estive na escola, o que mais me preocupou foi um “deixar andar” que por vezes se

desprendia das suas atitudes. Não havia comportamentos globalmente preocupantes:

um vidro partido durante um jogo de futebol, um aluno em cima de um telhado

encorajado por outros que o incentivavam cá de baixo, cenas de empurrões e insultos

nos intervalos, rapidamente sanadas pela intervenção de terceiros.

Quando começaram os debates - organizados a partir de três inscrições voluntárias

em cada turma do 7º ao 12º ano – os alunos pareceram ter acordado e rapidamente

procuraram potenciar a minha presença na escola.

Nos grupos formados a partir dos mais novos, a participação era um pouco

anárquica. A curiosidade pela minha pessoa era expressa através de perguntas

directas "conte-nos o seu trabalho", "qual a diferença entre um psiquiatra e um

psicólogo)", a evoluírem rapidamente para questões mais gerais (a família, a escola, a

droga e a violência). Eram necessários cerca de dez minutos para conter aquele

turbilhão um pouco infantil que queria falar a todo o custo. Várias vezes pensei o que

se teria passado nos seis anos anteriores nas outras escolas, já que os alunos

pareciam não ter qualquer hábito de estar em conjunto ou partilhar experiências e

pontos de vista diferentes.

Quando se conseguia ordenar um pouco a sessão através de regras muito simples

que, no entanto, os alunos pareciam desconhecer, o interesse da reunião subia e

começavam a surgir temas importantes.

A situação era diferente nos grupos de alunos do 10º ano. Sabiam ao que vinham e

alguns conheciam-me através dos meus livros, de idas à televisão ou mesmo pela

minha presença na escola no ano anterior. Meia dúzia pediu autógrafos nos livros ou

ficou para trás para colocar problemas pessoais.

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Lembro particularmente uma turma de Artes do 11º ano. À minha esquerda ficou

um rapaz de olhos cinzentos, casaco largo de cor preta e corte arrojado, calças

cinzentas de ganga, justas numas pernas magras. A camisa branca, de colarinho à

chinesa, fechava com um estranho lenço de pequenos quadrados roxos. Em frente

sentou-se uma rapariga bem alta, com longos cabelos pretos e olhos castanhos

brilhantes. Os dois dinamizaram a reunião. Discutíamos a decoração das tristes

paredes da escola, particularmente da Sala de Alunos, rectângulo configurando um

espaço razoável até ao momento completamente desguarnecido. O rapaz-artista

propôs em voz muito baixa a elaboração de um painel pintado que cobrisse duas

paredes, enquanto as outras teriam folhas de papel de cenário retiradas após uns

tempos de utilização. Por entre frases tipo "Fala mais alto!, Não se ouve!", alguém

contou uma história curiosa. No ano anterior um projecto para um mural tinha sido feito

por estudantes do 10º ano, com o apoio de uma professora de quem os alunos

gostavam. O trabalho ficou na gaveta porque alguns professores não tinham aprovado

e o CD não resolvera as divergências.

O rapaz-artista não desanima, pede ajuda à rapariga de olhos castanhos e ambos

propõem uma comissão de alunos de vários anos, para elaborarem uma proposta de

decoração da escola e de utilização criativa da Sala de Alunos. Um membro da AE

presente lembra que vai haver eleições, ao que lhe respondem que a Associação não

deve tomar conta da Sala de Alunos, primeiro porque não se compreende uma AE

sempre com os estores fechados, depois porque há dois anos os colaboradores da

Associação ocupavam todos os espaços sem deixarem participar os mais novos. O

ambiente aquecia, resolvi intervir propondo os olhos castanhos para organizar a

comissão e o artista para rapidamente dinamizar as turmas de Artes para novos

murais e outras iniciativas. Alguns alunos ficam no intervalo a falar comigo, saio da

sala a desejar que alguma coisa de novo possa perdurar para além daquele momento.

A rapariga das lágrimas ácidas

Tinha reparado nela no dia anterior. Pequenina e um pouco redonda, estava

sozinha numa mesa da esplanada, com um olhar vago para a cabina do porteiro e um

cachecol avermelhado que a enrolava toda. Uma tarde, depois do almoço, perguntou-

me se iria ficar muito tempo na escola. Percebi que queria falar comigo em particular e

combinámos um encontro para o dia seguinte.

Chegou à hora marcada com o cachecol enrolado à cintura, como quem ostenta

uma faixa eclesiástica. Contou-me então a história que se segue.

Tinha dezasseis anos, andava no 11º ano e era uma aluna razoável. Não se dava

com muita gente na escola, porque entendia ser difícil encontrar alguém a quem fosse

útil contar o seu problema.

Aos 12 anos fora abusada sexualmente por um tio materno. Manteve com ele uma

intimidade física culpabilizante durante três anos. Aos 15, fez uma tentativa de suicídio

com comprimidos e aproveitou a ida ao hospital para contar tudo à mãe.

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Estranhamente não obteve grande alívio com a confissão. Por razões que

desconhece, mas que suspeitava estarem relacionadas com problemas de família, a

mãe protegeu o irmão e não tomou qualquer atitude. A rapariga pensa até que por

qualquer motivo inconsciente, como aprendeu na Psicologia, a mãe a empurra para o

tio. Não consegue libertar-se da situação porque receia o pai, violento e alcoólico; que

jamais perdoaria a todos estas relações secretas. Não sabe o que fazer.

Olho para ela, desprotegida à minha frente. Pela primeira vez reparo que tem uns

sulcos avermelhados que partem dos olhos e ladeiam o nariz.

Pergunto que é isso aí na cara?, é de chorar, responde-me. Observo com atenção

e por momentos pensei que estava a dramatizar. "Pode crer, é mesmo de chorar. O

médico diz que as minhas lágrimas são muito ácidas e ferem a pele".

Falámos longamente num gabinete, depois fui com ela até à porta da escola.

Procurei sobretudo ouvi-la. Falou muito de si, como se odiava por vezes e tinha

vontade de morrer. Descreveu a sua culpa e o seu remorso. Desabafou sobre o medo

dos homens e como jamais seria capaz de arranjar um namorado. Desenvolveu a

conversa sobre o seu próprio corpo, como desejaria renascer, matar aquele pedaço de

si mesma que desejava esquecer para sempre. Mostrou, apesar de tudo, esperança

em ser capaz de se libertar.

Combinámos a marcação de uma consulta no Hospital de Santa Maria, onde me

prometeu seguir uma psicoterapia.

Apareceu mais tarde num debate com os colegas. Fez perguntas como outro aluno

qualquer e parecia que nunca me tinha visto. No fim da discussão deixou-se ficar para

trás, fingindo arrumar os livros e disse-me: "Volte quando puder a esta escola.

Precisamos de alguém que fale connosco"

Quis dizer qualquer coisa, mas o segundo toque fê-la ir-se embora.

O estrangeiro

Reparei no estrangeiro no segundo dia. É um rapaz alto, magro e muito loiro que

anda em grupo, mas que às vezes se deixa ficar para trás a vaguear pelo pátio. Calça

uns ténis enormes, usa calças de ganga esburacadas e uma T-shirt verde por baixo de

um blusão em mau estado. Percebe-se, contudo, que não é pobre, uma vez que anda

com os betos da escola e tem uma moto de boa cilindrada. O seu aspecto meio

perdido, a cara muito branca e os olhos de um azul-forte lembram mais um nórdico do

que um habitante da capital. Deixava-se ficar encostado às esquinas ou a olhar para

fora numa mesa junto ao bar, e uma vez dei com ele cá por baixo, naquela zona onde

se acumulavam os restos de mesas e de material escolar.

Dois dias depois, uma das professoras disse-me num sussurro: "Olhe aquele ali,

parece que está noutro mundo. Dizem que se droga e arrasta outros com ele. O CD

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está muito preocupado". Referia-se ao estrangeiro, que tudo parecia ter compreendido

porque rapidamente se afastou.

Fui vendo por onde ele parava nos dias que se seguiram. Encontrei-o uma vez no

futebol com as aulas a funcionar, noutro vi-o sentado num pequeno grupo onde um

colega tocava viola, até que surgiu num dos debates com os alunos, ficando sentado à

minha frente.

A certa altura levantou o dedo para falar. Apesar de só ter quinze anos, tinha uma

voz forte e bem colocada. Desprendia-se uma raiva enorme de tudo o que dizia e

amarrotava o boné de fazenda cinzenta sempre que se entusiasmava: "Não vale a

pena estarmos aqui a fazer propostas. Os professores não têm respeito nenhum.

Mandaram pôr um vidro à frente da sala deles, criaram uma divisória para ainda

ficarem mais distantes e cada vez nos falarem menos. Tenho uma stôra que diz “não

sou papagaio” quando lhe perguntamos uma dúvida, manda-nos frequentemente para

a Feira da Ladra e não perde a oportunidade para nos chamar burros e preguiçosos.

Para quê falar em diálogo com professores destes? Ei reparou que se fez um jardim

em frente do CD e da Secretaria mas não podemos lá entrar? Um gabinete de

marketing, um gabinete de marketing é o que o CD".

Procurei envolver outros alunos na discussão e em breve surgiram propostas para

alterar as coisas, misturadas com perguntas sobre a droga, o suicídio, a relação pais-

filhos, a SIDA.

Mais tarde vim a saber que o estrangeiro faltava sempre às aulas, mas comparecia

todos os dias na escola. Sempre pensei ser necessário que professores e pais se

empenhassem conjuntamente nestes alunos que não saem da escola nem vão às

aulas. Sugeri por isso que se contactasse urgentemente a família e se falasse com o

rapaz.

Um dia apareceu-me a mãe do estrangeiro. Contou-me que filho e pai jamais se

tinham entendido e que agora não se falavam. A mãe, ao saber que o filho consumia

haxixe, planeara levá-lo de repente para a República da Irlanda, onde uma tia do

rapaz residia há muito. Obtivera informações em conversas com funcionários da

escola e observando disfarçadamente os comportamentos do filho no fim-de-semana.

Pensei que a escola estava demasiado preocupada com a droga. Qualquer

comportamento de turbulência era sentido como potencialmente indicador de um

consumo tóxico, criando-se um clima de suspeição que só agravava as coisas.

Perante esta realidade, os alunos tinham atitudes de completa banalização, género

"mais de 80% dos estudantes consomem haxixe", o que é manifestamente errado

segundo todos os estudos epidemiológicos conhecidos, ou refugiavam-se em grupos,

eventualmente de consumidores, que deambulavam pelas zonas mais isoladas da

escola, desenvolvendo a marginalização que apenas estaria no início.

Pedi à mãe do estrangeiro que aguardasse o fim do primeiro período, até porque

não depositava grande esperança naquela fuga à pressa para a Irlanda. O rapaz

rapidamente perderia as poucas referências que tinha e talvez não se encontrasse

mais. Prometi-lhe tentar junto dos professores um enquadramento diferente do

problema.

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Encontrei uma Directora de Turma disponível e um professor de Educação Física

interessado. Dadas as especiais aptidões que o estrangeiro tem para a prática do

desporto-rei, como costuma escrever-se em A Bola, combinámos entusiasmá-lo a

voltar a jogar futebol regularmente, ao mesmo tempo que alguém o puxaria

delicadamente para as aulas, se mantivesse o seu padrão de permanecer no pátio.

Saí da escola estava este plano ainda em marcha, mas a avaliar pelo que se disse

numa reunião intercalar, havia sinais de melhoria.

Pode ser que o estrangeiro seja agora um dos nossos.

Os alunos e as aulas

O comportamento dos alunos variou muito nas diversas aulas a que assisti. •

Evidente que a minha presença na sala determinou alterações, embora a minha

estada na escola fosse apresentada da forma o mais simples possível, género um

professor que está cá a trabalhar. Algumas linhas de força, contudo, podem ser

entendidas através das minhas observações nesta e noutras escolas:

- Há menos problemas de comportamento nos alunos mais velhos, sendo

claramente os estudantes do 7º e 8º ano que levantam mais questões de indisciplina

(ver secção sobre indisciplina);

- a turbulência e a indisciplina são muito menores quando o professor adopta um

estilo de trabalho partilhado, estimulando a actividade em grupo e a permanente

participação dos alunos;

- as situações de mau comportamento devem ser discutidas com os alunos numa

atmosfera de responsabilidade recíproca permanente;

- o trabalho com a família é essencial para a resolução de situações difíceis. Sem

uma informação correcta sobre o universo relacional dos alunos torna-se ainda mais

complexa uma possível intervenção;

- de uma forma geral, os alunos sentem crescente necessidade que alguém os

ouça e possam falar de outros assuntos fora do campo estritamente curricular;

- problemas de turbulência dos alunos mais novos parecem indicar dificuldades das

famílias actuais em transmitirem normas sociais e valores de tolerância e respeito

pelos outros.

Se estas notas são verdadeiras, tornar-se-á essencial que o professor mude

radicalmente a própria metodologia de “estar na aula”, como o exemplo seguinte

pretende demonstrar.

7º ano de escolaridade da escola em referência. Professora experiente com

cabelos brancos bem cuidados, saco a tiracolo e livros de Matemática debaixo do

braço. Entra na sala e imediatamente pede a colaboração dos alunos para colocarem

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as mesas e as cadeiras em U. Distribui uma ficha intitulada divisibilidade por 5 e por

10, organiza o trabalho e pede rapidamente a designação de um porta-voz em cada

grupo formado.

Quando os alunos começam a trabalhar percorre a sala entre as carteiras, a olhar

para o relógio de modo a controlar o tempo. Os alunos solicitam-na constantemente,

puxam pela manga do casaco e mostram dúvidas ou êxitos. De repente, dois alunos

do fundo da sala gritam "stôra, não temos caneta!" A professora dirige-se para a sua

secretária, abre uma mala-saco enorme e num passe de mágica aparece com cinco

ou seis esferográficas que rapidamente distribui.

Enquanto os alunos trabalham com um barulho de fundo que no meu tempo não

seria permitido, percorro com o olhar as paredes degradadas e vazias, pingos de

chuva que correm das janelas e mais inscrições na parede: Carla Loves Tó, “NÇO

GUERRA”, ou desenhos nos tampos das carteiras, se calhar de valor insuspeitado. A

professora continua a andar de um lado para o outro e não permite que o sussurro se

transforme em gritaria. Observo-a com atenção. Há uma certa tensão no seu andar

apressado, mas a experiência e provavelmente a sua boa saúde mental fazem com

que todos os seus gestos tenham por objectivo a melhoria das condições de

aprendizagem. Tira dúvidas rapidamente sem ditar as respostas, faz uma festa

afectuosa num aluno que lhe agarra o casaco e adivinha mais carente, ou abre os

olhos mais severos a uma rapariga que puxa os cabelos a outra.

Quando os grupos de trabalho se aproximam do final, os respectivos porta-vozes

gritam para serem os primeiros a apresentar o trabalho no quadro.

Reparo que há um aluno atrasado, provavelmente porque escreve apenas com a

carga da sua esferográfica, roído ou perdido que foi o suporte plástico. Tem óculos de

lentes grossas, um estranho boné em cima da mesa de trabalho e restos de uma

revista de automóveis. A professora vai até lá e encoraja-o a terminar com um leve

toque no ombro, uma vez que o primeiro porta-voz já está no quadro a responder à

primeira questão da ficha de trabalho.

A aula continua neste ritmo alucinante. Olho pela janela e vejo o campo de futebol

com alguns alunos que por certo faltaram às aulas, oiço o barulho da cidade ao longe

e o tempo a pedir chuva. A professora não pára: já vamos na última pergunta, parece

muito satisfeita quando olha de novo para o relógio e começa a falar do trabalho de

casa. De repente a campainha desata a tocar, o aluno que escrevia só com a carga

atira-a ao ar sem que a professora veja, outros saem rapidamente com um "boa tarde"

stôra que gostei de ouvir.

Saímos da aula e descemos as rampas a conversar. Pergunto a mim próprio como

poderá ainda haver professores que dispõem as carteiras à antiga, com os alunos de

costas viradas uns para os outros, pedindo-lhes que estejam inactivos durante

cinquenta minutos? A professora diz-me que é essencial transformar a turma em

grupo de trabalho cooperativo não esquecendo, contudo, os ritmos diferentes da

aprendizagem e as particularidades de cada um. Confessa-me que, no 7º ano, o

primeiro mês é um período em que não avança muito na matéria, mas em que ganha

na definição de regras. É assim que trabalho na compreensão dos papéis na turma, na

organização de grupos de trabalho e nas relações professora-aluno E pergunta-me:

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"Como posso dar a divisibilidade por cinco e por dez se eles não se ouvem uns aos

outros? É preciso começar bem, porque os alunos têm poucas normas interiorizadas e

estão sempre a testar até onde poderão ir". Sinto-a um pouco cansada e faço notar

essa minha Impressão, responde-me com um sorriso e um leve encolher de ombros.

Percebo que quem não se quiser cansar a dar aulas deve rapidamente procurar outra

ocupação.

Os professores e as aulas

A Sala de Professores fica à direita de quem entra. Protegida por um vidro que a

separa do barulho da entrada, é designada pelos alunos como “aquário”. Tem uma

forma de lá um pouco esdrúxulo, com um pequeno sofá à esquerda de quem entra e

um sector mais à direita, com mesas e cadeiras onde os professores se encontram

numa conversa de livros e dossiers. As professoras mais velhas pareciam pontificar:

ocupavam os melhores lugares, nem sempre respondiam aos cumprimentos de quem

entrava, mas valia a pena ouvir o que diziam. Trocavam impressões sobre as aulas,

mostravam fotografias umas às outras e diziam mal do Ministério.

Predominavam, como sempre, as mulheres. Os do sexo masculino tinham tendência

a agrupar-se pelos cantos ou a entrar e a sair de um modo apressado. Ouvi falar nas

turmas indisciplinadas, na droga e na violência, mas também na ternura de alguns

alunos ou nos trabalhos que tinham conseguido fazer em conjunto. Pareceu-me,

contudo, que os alunos tinham alguma razão quando sentiam aquele lugar como

inacessível, Impressão que me foi confirmada por alguns professores mais novos. Se

estou de acordo em preservar alguns momentos de privacidade para o corpo docente,

também considero que os professores precisam cada vez mais de se deixar ficar pelos

pátios, para de vez em quando poderem ter momentos inesperados com os alunos,

afinal o sal do convívio na escola.

Impressionou-me também a falta de comunicação dos docentes, traço comum a

tantas escolas que visitei. O Director de Turma frequentemente tem pouca informação

sobre o que de facto se passa nas outras disciplinas, o CD está assoberbado com

reuniões e assuntos burocráticos e os professores raramente se encontram para

definir estratégias comuns. Persistem constatações a priori, género aquela turma é

terrível, o que surpreendentemente me evoca a turma de loucos da professora do meu

tempo. Há muito pouca partilha de situações vividas na aula, como se cada um

necessitasse de resolver sozinho os complexos problemas do quotidiano escolar.

Os professores parecem incapazes de definir um conjunto mínimo de procedimentos

comuns. Embora a legislação preveja um regulamento interno, há inúmeras escolas

que o não têm, ou que perdem muito tempo na sua definição. O regime de faltas é

disto um bom exemplo. Há docentes que marcam falta logo ao segundo toque da

campainha, outros no fim da aula, outros ainda fazem a chamada a meio; alguns

marcam faltas de material, outros são tolerantes nessa questão; e há ainda os mais

obsessivos que marcam faltas de atraso e de material ao mesmo aluno! Mas é

sobretudo nas questões de disciplina que os procedimentos mais diferem, como

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veremos a seu tempo. Não parece ser possível evoluir sem que os professores

ganhem tempo a discutir o seu próprio modo de funcionamento, sem rivalidades

excessivas ou narcisismos bloqueadores.

Na escola em referência, encontrei um excelente grupo de professores dispostos a

aprofundar todas estas questões. Eram os primeiros a inscrever-se nos seminários

que dinamizei e a sua participação foi para mim estimulante. Como tive ocasião de

falar com muitos alunos, rapidamente me apercebi de que estes docentes eram

também aqueles que mais apoiavam as iniciativas dos mais jovens, ponto essencial na

transformação da escola. Não pareciam extremamente preocupados com o programa,

já que consideravam que não se podia avançar sem reflectir. E passavam algum

tempo fora do período de aulas a falar uns com os outros ou a receber alunos.

A escola, contudo, tem mais de cem professores. Estranhamente, muitos entravam e

saíam da escola sem se deter um momento. Não compareceram nos seminários e, ao

que me foi dito, não participavam em nada que fugisse à rotina escolar. Então nesta e

noutras escolas terão de se inventar estratégias de envolvimento de todo o corpo

docente. Os alunos estão bem cientes disto, quando separam os professores "com

quem se pode falar daqueles com quem não vale a pena".

Numa aula do 10º ano, tive ocasião de conversar com os alunos sobre o problema

de indisciplina numa cadeira. A Directora de Turma, organizadora do debate, está na

posição correcta: recusa levar e trazer mensagens entre os alunos e a colega e

aproveitou a minha presença na escola para organizar um debate na sua aula. Peço a

uma aluna que represente o papel da professora em questão e vejo uma bonita

rapariga transformar-se numa mulher gritona: "Não sou um papagaio para andar a

repetir as coisas!" Não pensem que eu abro a porta quando chegam atrasados! Não

olhem para mim como boi para palácio! Entretanto outro aluno, com um boné colorido

em cima da mesa e dois brincos na orelha direita, mostrava um desenho da citada

professora, onde estranhamente aparecia uma mulher com barba.

Perante a minha surpresa, disseram-me que a professora em discussão tinha

mesmo barba e eu andava distraído, porque sabiam que eu já tinha assistido a uma

das suas aulas.

Fiquei a pensar naquele relacionamento. Que se passava naquelas aulas? Para já

era difícil que alunos de agora se interessassem por poesia trovadoresca, quando

curtem a maneira de escrever directa de Miguel Esteves Cardoso ou Bret Easton Ellis.

Depois, ninguém lhes tinha pedido a opinião sobre o funcionamento das aulas,

limitando-se a professora a despejar matéria sem se preocupar com a retroacção. As

carteiras lá estavam alinhadas como há trinta anos no meu velho Pedro Nunes, e o

aluno continuava a ser considerado alguém que ainda não era bem um cidadão.

Sugeri alterações. A delegada devia propor imediatamente um tempo de aulas para

discutir o funcionamento da disciplina. A Directora de Turma falaria com a colega de

modo a reforçar a necessidade de reflectirem em conjunto. Disse claramente aos

alunos que eles também eram responsáveis pelo mau funcionamento da turma na

disciplina e que confiava neles para proporem medidas urgentes. Dias mais tarde

soube que a situação tinha melhorado um pouco.

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Outros professores aproveitavam a minha presença na escola para promover

debates sobre temas que interessavam aos alunos. Fiquei agradavelmente

surpreendido com a profundidade das questões levantadas e com a seriedade posta

na sua resolução, em turmas do 9º ao 12º ano. Nas turmas do 7º e 8º anos, nota-se

que infelizmente os alunos estão pouco habituados a trabalhar em conjunto e a

participação é muito espontânea mas anárquica.

Recordo uma turma do 12º ano. Quando entrei com a professora, já as cadeiras

estavam dispostas em elipse sob a direcção do moderador. Sentado numa das pontas,

era um rapaz muito alto, de barba rala e grandes olhos negros, com um sorriso que

devia deixar alguns corações destroçados. No fim da aula veio falar comigo sobre uma

questão pessoal e pude confirmar a sua maturidade.

Começou por dar a palavra a um colega que falou mais ou menos assim:

- Stôr, ainda bem que está aqui na escola, porque assim podemos falar um bocado.

O ano passado esteve cá, ouvi-o dizer que o diálogo com os pais e professores é

muito importante, mas... às vezes não vale a pena. Eu tive de deitar o meu pai abaixo

para ele me deixar usar o cabelo comprido. E a nossa professora de Filosofia, quando

lhe fazemos uma pergunta, diz: "Eu sou como Sócrates, devolvo a pergunta. Sou pela

dúvida metódica, a uma dúvida respondo com uma pergunta, por isso devolvo a

questão". O Stôr está de acordo com o que eu penso fazer que é devolver-lhe as

perguntas nos testes?

Consegui articular algumas palavras sobre as virtualidades do diálogo por entre

risos que esta intervenção desencadeou. Disse que o lema com os pais e professores

teria de ser "não desistas nunca" e que os alunos poderiam educadamente chamar a

atenção para o que não concordavam. Notei um certo cepticismo nas caras de alguns

alunos, mas já outros saltavam para assuntos mais sérios. Queriam saber qual a

atitude perante um colega toxicodependente, ou o que fazer quando alguém

ameaçava suicidar-se. Ao leitor deste livro posso remetê-lo para o capítulo respectivo,

mas lá tive de deixar algumas mensagens claras, nas quais privilegiei a relação de

ajuda e a proximidade necessária a quem quer ser útil.

Já outro aluno afirmava que os problemas melhorariam se os professores pedissem

opinião aos mais novos, enquanto uma bonita rapariga queria saber coisas sobre a

violência familiar. Volto ao tema da droga, tento saber o que pensam das suas causas,

vejo respostas interessantes: a curiosidade em experimentar, a ausência dos pais

sempre a trabalhar fora de casa, os ídolos com problemas, como Kurt Cobain, que

acabou por se suicidar. É agora a minha vez de alargar o foco da análise, falo da

tríada clássica indivíduo, droga e contexto, e procuro caminhar no sentido da

prevenção. Um aluno magro com óculos de intelectual responde-me: "a prevenção é

só amigos, amigos, amigos", no que não deixa de ter alguma razão, se de facto com

quem andamos privilegiar a amizade verdadeira. Quase não tenho tempo para

respirar, já um rapaz de calças vermelhas e camisa de flanela à Boavista me afirma de

modo convicto que o preservativo não chega para evitar a Sida, porque as pessoas já

sabem isso e continuam a correr riscos. Uma colega provocou um bocadinho, fingindo

não perceber do que ele estava a falar e então houve mais piadas e sorrisos

abafados...

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Olhei o relógio e estava quase a tocar. É fantástico como numa escola tudo está

condicionado pela campainha e as coisas acabam no melhor da festa (ou então o

toque é o gongo que salva alguém de ir ao tapete). Desta vez enganei-me, porque o

moderador continuou a dar a palavra como se nada se tivesse passado. Como era o

último tempo, deduzi que os alunos tinham decidido ficar até mais tarde. E assim foi,

continuámos durante mais meia hora a discutir. Surgiram outros tópicos: a melhoria da

escola, o que fazer na Sala dos Alunos, o relacionamento com os pais, a violência da

televisão, a porrada nos bairros (como dizia um rapaz de fala presa e olho vivo) ou a

camada de ozono. Estou um pouco cansado com tantas questões, o meu olhar mais

uma vez vagueia por toda a sala de aula, só agora reparo que os pequenos cabides

da parede à esquerda estão todos partidos e a secretária da professora ostenta a giz

um enigmático FELIX IS THE BOSS. Ouço um pouco mais, um aluno com dificuldades

de expressão, deixa as frases inacabadas, mas percebo que está preocupado com a

droga na escola e chega a propor uma espécie de F.B.I. de Bronx para apanhar os

toxicodependentes, desencadeando um coro de protestos...

Saio do debate reconfortado. Os tais jovens, a quem alguém moralista chamou

“geração rasca”, têm afinal ideias e propostas. Fico a pensar também que tanta

necessidade de falar com uma pessoa que se não conhece está por certo relacionada

com os poucos canais de comunicação existentes na escola e na família. Os

professores necessitam de criar espaços de diálogo nas suas aulas, de modo a

despertar novos interesses nos alunos e de forma a terem com eles uma relação

afectiva, mediada por qualquer coisa que não seja o tradicional conteúdo curricular.

Nesta escola pude conversar mais longamente com alguns professores, quer nas

aulas quer nos seminários organizados durante a quinzena da minha permanência.

Tive também a sorte de poder assistir a uma reunião intercalar. Estávamos no início

de Novembro e a escola ia parar dois dias para uma primeira avaliação qualitativa.

Entrei na sala da intercalar um pouco atrasado, pelo facto de a mãe de um aluno

me ter solicitado uma entrevista. Os professores estavam todos sentados de um lado,

em semicírculo; do outro estava a Directora de Turma e a representante dos alunos.

Observei um professor de jardineiras de ganga e barba à anos sessenta, uma

professora magrinha com ar assustado, a professora de Educação Física que parecia

pertencer a outro filme e outros docentes que agora não relembro. A aluna estava

rigidamente sentada na cadeira como uma ré num julgamento e a Directora de Turma

moderava (?) uma interminável discussão sobre faltas por doença, faltas de atraso que

outros negavam poder existir, faltas de material e faltas disciplinares. Impressionava

ver como ninguém parecia conhecer muito bem a lei e como cada um parecia

proceder a seu modo. De repente, a aluna é interpelada e dá a sua opinião sobre os

problemas da turma: horários, material de estudo, situações de indisciplina... Os

professores ouvem-na com atenção, mas as respostas são um pouco paternalistas. O

professor das jardineiras desenvolve então uma tese curiosa: "se o professor explicar

bem e os teus colegas estiverem muito atentos, se não aprendem é porque não

querem aprender". Envolvo-me numa discussão amigável, mais tarde completada num

intervalo. Procuro fazer notar que o processo de aprender tem ritmos diferentes, que

dependem de coisas tão diversas como a motivação dos alunos, o seu

desenvolvimento cognitivo e a relação afectiva que estabelecem com quem ensina,

mas só uma professora parece interessada no meu ponto de vista. Já outro assunto

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está em cima da mesa: a turma tivera falta colectiva porque se recusara, por duas

vezes e em bloco, a responder à chamada. A aluna não arranja força para argumentar,

é a Directora de Turma que consegue ver um pouco mais além e introduz a relação

alunos-professora na causalidade da falta. Quanto a mim, que tinha pensado não

intervir mais, introduzi o comportamento dos alunos como um desafio à autoridade da

professora e como um apelo a uma mudança de relacionamento. Olharam todos para

mim com perplexidade e então pensei como é importante sair um pouco do quadro de

referência habitual para poder observar melhor.

Falámos depois de um aluno em risco de abandono escolar e finalmente a reunião

ganhou sentido. O professor das jardineiras fala com interesse do rapaz e discutem-se

algumas estratégias que possam possibilitar a sua permanência na escola. É a altura

em que a aluna e eu saímos, porque era tempo de uma avaliação mais

pormenorizada.

Fico a pensar que nas escolas é preciso ir além das estruturas já definidas. As

reuniões intercalares são essenciais para reflectir, mas não chegam. É necessário

criar pontos de encontro professores-alunos-pais em comissões ad-hoc ou estruturas

flexíveis que sobretudo melhorem a comunicação. Se é correcta a participação dos

Delegados dos alunos em reuniões com o corpo docente, é preciso perceber que a

sua capacidade de intervenção está francamente limitada pela diferença de poder que

possuem as duas gerações em presença.

Na escola em referência conheci vários professores de quem gostei muito.

Professores mais velhos, muito à vontade no seu papel e com aquela segurança

directamente proporcional à experiência. Professores novos, cheios de incertezas

sobre o melhor caminho a seguir, mas permanentemente dispostos a inovar. Lembro

um jovem professor de Matemática, que preparou cuidadosamente o encontro que os

seus alunos iam ter comigo e parecia sempre disposto a questionar-se. Um barbudo

professor de Português, certeiro e irónico nos seus comentários, sempre a lutar contra

a visão corporativa de alguns colegas e capaz de propor alternativas ao lamuriento

rabujar de outros. Duas professoras, outrora responsáveis pelo jornal da escola que

infelizmente tinha deixado de ser publicado, um pouco magoadas com alguma

incompreensão pelo seu esforço, mas ainda disponíveis para continuar de uma forma

empenhada. Três estagiários de Educação Física, bem enquadrados pelos colegas

mais velhos e que se esforçavam por mostrar a importância da disciplina no contexto

da adolescência actual (que diferença em relação ao Professor de Ginástica do meu

tempo, especialista em carolos e comentários grosseiros...). Uma professora de

Ciências da Terra e da Vida, pequenina e muito atenta, que uma vez tinha andado

com lagostins a passear na sala de aula, para que todos pudessem participar de uma

forma mais divertida... e muitos outros.

Fiquei com a certeza de que dar aulas mesmo numa escola secundária é hoje uma

tarefa difícil, pela complexidade dos problemas que diariamente surgem e pela

escassez de recursos disponíveis. Saí desta escola com a certeza de que os alunos

muitas vezes não têm razão, que há alguns que só estão na escola porque lá fora é

bem pior e que há outros que necessitam duma disponibilidade crescente que as

estruturas actuais dificilmente comportam. Permaneci também com uma convicção

que já tinha: há factores pessoais muito importantes no êxito da profissão de

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professor. Não chegam a boa preparação de base, uma sólida formação permanente e

o bom clima escolar; é necessário aquele “gostar das crianças”, que um latagão de

dezasseis anos um dia me disse ser um ingrediente essencial num professor.

Foi a pensar nestas coisas que solicitei uma pequena entrevista a uma professora

desta escola. Tinha reparado nela nos debates e não esqueci também as referências

positivas que muitos alunos lhe faziam. Confirmou-se a minha teoria: apoiava as

iniciativas dos alunos e sabia partir dos seus interesses para dar os conteúdos

curriculares. Como professora de Português, tinha construído com os seus alunos um

autodicionário de aprendizagem, que tinha conjugado a observação de quadros da

pintora Paula Rego, a utilização de computadores na sala de aula e elementos

didácticos da disciplina. As definições obtidas tinham um carácter pessoal em que o

verdadeiro mestre é aquele que tem o significado das palavras. "São os alunos que

nos abrem a porta para o seu universo e nos dão conta da sua carga afectiva e

ideológica", como escreveu no seu pequeno relatório. O imagicionário tinha definições

deliciosas, como se segue:

AZAR - o azar está associado ao destino, mas o destino muda-se e dá-se o azar.

BRUTALIDADE - o carinho foi dar um passeio e não voltou.

SAUDADE - é bom recordar.

RIDÍCULO - não sou eu próprio, quem sou?

ANGÚSTIA - quando os olhos já não podem brilhar.

ENGATAR - olhem para mim, eu estou aqui!

SOBREVIVÊNCIA - resiste! resiste!

etc. (Ver mais adiante as referências da professora.)

Falei com a Drª Maria Teresa Coutinho numa sala com alguns computadores e

muitas ideias no ar. Observei o entusiasmo por detrás de uns olhos brilhantes e de

duas rosetas que lhe alegravam a face, mas gostei sobretudo do seu realismo. Sabia

onde podia ir com os alunos e as dificuldades que as escolas atravessam. Acho

mesmo que me olhou com alguma benevolência, certa de que muitas das minhas

ideias iriam esbarrar com as vicissitudes do quotidiano escolar.

Aqui está o depoimento que recolhi:

D. S. - Quais as questões fundamentais que um professor tem hoje de enfrentar, no

seu trabalho com jovens adolescentes?

M. T. C. - Cada vez mais um professor se interroga diariamente sobre se as suas

atitudes, a sua relação, a sua comunicação na aula ou na escola com os alunos foram

as mais adequadas, as mais justas, pois as alterações sociais trazem-nos de ano para

ano situações novas que temos que enfrentar. Mas para nós, que vamos observando

os comportamentos dos jovens, torna-se claro que temos de saber interpretar o que é

hoje ser-se adolescente. É para mim uma questão fundamental conhecer o seu

mundo, as suas diversas formas de comunicação, a música, o vestuário, os

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interesses, a linguagem... Sem esta disponibilidade da parte do professor, a

possibilidade de “encontros pedagógicos” fica comprometida à medida que se constrói

uma relação baseada no diálogo, apercebemo-nos do desfasamento que existe, a

maior parte das vezes, entre o que o adolescente quer efectivamente e o que a escola

lhe propõe, os planos curriculares completamente desadaptados ao seu querer. A

carga horária impede-os de aprofundar cientificamente duas ou três áreas disciplinares

do seu projecto de estudos e o seu ritmo de trabalho é repartido por um leque de

disciplinas com uma aprendizagem média. Esta razão está muitas vezes na base de

uma desmotivação à partida em relação a determinadas disciplinas que os alunos não

sentem como fundamentais. São estes desencontros que criam nos adolescentes uma

angústia do futuro que particularmente me preocupa.

A ausência de perspectivas que os alunos referem está relacionada com a angústia

de uma saída profissional que passa a dominar o dia-a-dia, e a família muitas vezes

ocupada não se apercebe da importância do seu apoio.

Por outro lado, nas escolas que temos, os professores têm que assumir papéis

diversificados, de educadores, de psicólogos, de orientadores profissionais, de

assistentes sociais, de pais. Estas funções não podem ser desempenhadas por quem

não tem formação específica e por isso há inúmeros sinais, que os adolescentes

transmitem, e que, ou não são em devido tempo detectados ou são interpretados de

uma forma incorrecta. Os problemas familiares, os casos sociais, as situações de

saúde e de droga que atingem as nossas escolas necessitam de profissionais dessas

áreas que trabalhem em conjunto com os professores.

Estas questões, que são determinantes na relação entre professores e alunos,

tornam-se cada vez mais complexas, pois sendo a escola um reflexo da sociedade, a

competição e a violência têm surgido ultimamente como factores extremamente

negativos para o desenvolvimento de um processo de sociabilização.

D. S. - Muitos colegas seus estão preocupados com a indisciplina. Como resolve,

na prática, essa dificuldade? Indique algumas estratégias gerais que lhe pareçam

importantes.

M. T. C. - A indisciplina é de facto uma preocupação constante para os professores,

pois intervém abertamente na relação pedagógica. Parece-me, no entanto, que há

princípios que deveriam ser determinantes no sentido de proporcionarem um clima

pedagógico partilhado e atenuar situações que podem gerar indisciplina. Em primeiro

lugar, a alteração de práticas pedagógicas e a sua diversidade só é possível se o

número de alunos por turma se situar entre quinze e vinte, pois o acompanhamento

das actividades por parte do professor é fundamental. As interacções entre todos os

elementos, determina o ritmo e a concretização dos trabalhos em curso. A relação

com o espaço é muito importante, de modo a criar um ambiente de trabalho que

favoreça as aprendizagens e possibilite a pesquisa. Os alunos, ao entrarem para as

salas, devem sentir que tanto a organização como os materiais de que dispõem se

relacionam com a sua área de trabalho e constituem produto das suas aprendizagens.

Na prática, se estas condições estiverem presentes, o professor e os alunos podem

através do diálogo estabelecer normas de funcionamento do grupo/classe de acordo

com os conteúdos curriculares. As primeiras semanas são fundamentais para um

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relacionamento afectivo, que possibilite um desejo por parte dos alunos de integrar o

novo, relacionar saberes e aprofundá-los pela pesquisa. Nesta reflexão é importante

que sejam os alunos a descobrir e enunciar quer as ambições quer as inquietações

em relação às aprendizagens. Penso que a apresentação de sugestões por parte dos

alunos permite um conhecimento da turma e possibilita a elaboração de estratégias de

acordo com as propostas. Trata-se de estabelecer, desde o início, um contrato

pedagógico que assenta no conhecimento mútuo, na partilha responsável entre alunos

e professor, tendo em conta o ritmo de aprendizagem de cada aluno.

Na minha prática tenho verificado que um contrato com estas características, que

implica regras de organização da disciplina e de participação activa por parte de todos,

permite que se não chegue a situações de ruptura que impossibilitem aprendizagens

posteriores, pois os alunos estão implicados no processo.

Actualmente há situações que pela violência que transmitem são para mim

potenciais factores de indisciplina. Refiro-me à dificuldade que muitos adolescentes

sentem em integrar-se em determinadas turmas, sentindo-se à partida excluídos em

termos sociais. Temos que estar atentos e encontrar estratégias que favoreçam a

aproximação de todos os elementos da turma. No ano anterior, numa turma de vinte e

três alunos com alguns alunos africanos, apercebi-me que sobretudo a linguagem era

motivo de olhares e rejeição por parte de determinados alunos. A integração de outras

culturas está ainda longe de se tornar uma prática comum nas escolas. Comecei por

ler passagens do livro Cada Homem É Uma Raça, de Mia Couto. Pequenas histórias

que todos os alunos começaram a querer ouvir. A simplicidade e a diferença do

vocabulário, o maravilhoso e a presença de valores como a partilha, solidariedade e

respeito pela liberdade foram temas de debates. Os alunos de origem africana fizeram

uma recolha, através dos seus familiares, de lendas que apresentaram à turma e o

estudo da língua, do valor das palavras e da criatividade da formação de novos termos

foi um trabalho extremamente rico do ponto de vista pedagógico. A integração e a

cooperação entre todos começou a desenvolver-se e conseguimos realizar, ao longo

do ano, projectos onde alunos com experiências diversificadas se completavam.

Penso que a indisciplina dever sempre fazer parte de uma preocupação preventiva

e não colocar-se como uma situação que se banaliza e que se vai tentando resolver

temporariamente. Em momentos de desordem do adolescente, que por vezes são

frequentes, é necessário falar-se individualmente, sem perda de tempo e com firmeza,

com os alunos envolvidos e chegar a um consenso. Para mim, são sempre situações

que traduzem o mal-estar do adolescente, que encontra no espaço da sala de aula

condições favoráveis de desenvolvimento. E as estratégias terão sempre de passar

por um conhecimento da situação de conflito e serem adaptadas aos alunos em

questão.

D. S. - Costumo dizer: é preciso trabalhar com os alunos, e não para os alunos.

Quer comentar? Se possível dê exemplos da sua prática.

M. T. C. - Trabalhar com os alunos é partir de uma visão humanista que tem em

conta o individual mas que pretende, através das interacções que se estabelecem ao

longo do processo de trabalho, uma socialização do grupo/turma. Trabalhar com os

alunos exige um respeito pelas suas aprendizagens anteriores para, a partir delas,

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desenvolver metodologias que criem aprendizagens mais elaboradas. Ao trabalhar

com os alunos, o grupo desenvolve várias competências, o desafio instala-se e surge

o desejo de ambas as partes se empenharem no projecto. Trata-se nesse momento de

um trabalhar para quem pretende alargar os horizontes culturais, os conhecimentos

científicos integrados num projecto colectivo do grupo/classe. Os alunos devem

conhecer os factores que entram na sua avaliação e ser elementos activos numa

reflexão sobre o seu saber.

Mas, se o professor trabalha para os alunos sem ter em conta estes elementos,

resulta a maior parte das vezes num esforço inglório, pois os alunos vêem-se

envolvidos por uma série de intenções e de materiais com os quais não se identificam.

A minha prática situa-se no domínio da didáctica da Língua e tem por finalidade

uma maior apropriação linguística e cultural, a par de uma criatividade cognitiva e

relacional. A construção de projectos pedagógicos parte da necessidade comum ao

grupo de integrar o curricular no quotidiano, actualizando-o através da linguagem e

dos temas/inquietações expressos nas obras dos autores que estudamos. Posso

referir, por exemplo, a comoção que sentimos ao revisitar Lisboa a partir dos poemas

de Cesário Verde, conhecer o património sociocultural de Lisboa do século xix, reflectir

sobre o quotidiano na cidade, percorrer a cidade na descoberta de outros espaços - o

mercado, o elevador, os pátios, as ruelas, as varandas, os azulejos... e de outros

tempos – a varina, os calceteiros, as floristas... descobrir um outro sentido para

Lisboa. Ao longo das viagens de pesquisa que qualquer projecto implica, regista-se o

que se observa, em pequenas frases de carácter informativo/emotivo, que irão ser

posteriormente trabalhadas e integradas no projecto dos alunos. Podemos assim

construir, em conjunto, uma temática organizadora do Projecto da turma, a partir da

sedução expressa nos sentimentos e respeito pelas diferentes actividades

profissionais, a relação com a realidade exterior e a dinâmica da cidade.

A expressão escrita encontra uma razão de ser e os alunos aprendem a organizar

o material, a seleccioná-lo e finalmente a produzir. A escrita enquanto comunicação

apresenta-nos novas produções textuais, de originalidade individual reveladora de

todo um sentir adolescente. Em cada elemento do grupo esteve presente o

testemunho de Cesário Verde, a mim o que me rodeia é o que me preocupa. Esta

experiência teve como produto final a realização de um vídeo, Lisboa Enamorada, que

testemunha o percurso do trabalho realizado e os poemas produzidos pelos alunos

fazem parte de um capítulo do livro Tempo Branco, publicado pela Editora

Acontecimento, 1994. Este livro foi uma experiência com grande significado para os

alunos, não só como produto de escrita, mas sobretudo pelo prazer de concretizar um

projecto de sedução pelas palavras ao longo de dois anos de leituras, comentários e

debates críticos partilhados. Ao percorrermos os textos podemos sentir a criação do

mundo da adolescência, que através da linguagem nos anuncia os interesses, as

inquietações, a ironia e uma inteligência aguda perante o que nos cerca. Cada capítulo

resulta de projectos de trabalho que acompanharam a evolução literária que fomos

investigando e revela-nos a afectividade dos alunos através do seu imaginário. Os

vários percursos que fizemos ao longo dos dois anos originaram uma cumplicidade de

comunicação que a escrita revela através de expressões que demonstram a beleza, a

complexidade e a instabilidade afectiva do grupo.

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Num outro domínio, outro projecto interdisciplinar, “Imagicionário”, teve como

finalidade a aprendizagem de um vocabulário científico, da disciplina de Psicologia, a

partir do vocabulário de base dos alunos. O ponto de partida foi uma visita a uma

exposição da pintora Paula Rego. Os alunos identificaram-se com determinados

quadros e livremente criaram em grupo pequenas narrativas de grandes

inquietações... Os textos construídos no computador foram revelando as indecisões, o

retomar de ideias, e finalmente deu-nos a conhecer o mundo das representações dos

alunos. A apresentação dos textos finais à turma, através de estratégias diversificadas

(dramatizações, teatro de fantoches, concurso de imagens e vídeo), fez ressaltar o

vocabulário comum mais significativo e cada grupo deu a sua definição personalizada

relativamente aos vocábulos.

Nesta fase do trabalho trabalhei com o grupo, deixando que os alunos se

envolvessem com as palavras, os seus conceitos, e se apropriassem dos conceitos

dos seus colegas. Na fase seguinte, trabalhei com e para os alunos, fornecendo

documentação no domínio da Psicologia, onde os mesmos conceitos eram

apresentados de uma forma científica e que iriam ser objecto de pesquisa por parte

dos alunos, e fornecendo pequenos textos literários, onde esses mesmos conceitos

surgiam e adquiriam novos significados.

O projecto teve como recurso o computador, através da construção de uma Base

de Dados que apresentava o vocábulo seleccionado, a definição dada pelo aluno e o

seu contexto, a definição científica e a sua integração no contexto científico e um texto

de apoio de carácter literário. O Imagicionário foi para todos nós que participámos no

projecto uma aposta na construção de um dicionário personalizado de um vocabulário

científico.

D. S. - É possível alterar o clima de uma escola? Como proceder?

M. T. C. - A resposta é difícil pois o clima de escola envolve tantas variáveis,

organizativas, legislativas, pedagógicas, sociais, que se torna um processo muito

complexo. Todos sentimos como o clima de escola interfere directamente no modo

como professores e alunos vivem o seu dia-a-dia e se sentem empenhados na

construção de um projecto comum que dê uma determinada identidade à escola.

Apesar disso, acredito que se possam criar condições favoráveis que alterem o sentir

de uma escola, proporcionando uma maior participação de todos.

A experiência que tem havido entre nós tem a ver com os Projectos Educativos de

escola enquanto expressão da identidade da própria escola. Mas esta experiência tem

falhado em muitos casos pelas contradições da própria legislação e também pela

ausência de formação de professores nesta área. A formação de professores ou foi

esquecida, ou foi feita de uma forma irregular, insuficiente, sem critérios e sem

objectivos. Para se alterar um clima de escola é necessário que, a par de uma

formação específica das áreas disciplinares, haja uma reflexão contínua sobre as

práticas e se criem equipas pluridisciplinares que permitam experiências pedagógicas

diversificadas de acordo com as características da escola e dos alunos. Pelo contrário,

ultimamente temos assistido a uma cultura do individualismo que tem bloqueado a

cooperação entre professores, grupos disciplinares, escola/pais/comunidade,

elementos fundamentais na formação de um clima de escola.

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O que pode alterar um outro sentir da escola são sobretudo os factores humanos

que implicam comunicação, responsabilização e uma grande motivação por parte dos

professores, que têm sido sistematicamente postos à margem do processo da pseudo-

reforma. Também os alunos, através das Associações de Estudantes, têm um papel

de dinamização e intervenção extremamente importante, podendo imprimir à escola

novos sentidos de acordo com as suas preocupações e expectativas, mas nem

sempre tem havido uma proximidade de diálogo com a gestão das escolas.

Aprender e socializar são os valores que defendo para a concepção de uma outra

escola, desenvolvendo a cidadania, apostando no espírito crítico e criativo

independentemente das condições de trabalho que devem ser bastante melhoradas.

É neste horizonte que a inovação se inscreve, na capacidade de apoiar núcleos de

renovação que surgem em todas as escolas, procurando sempre recomeçar

adaptando-se a novas circunstâncias. Um clima de escola aberto torna-nos a todos

conscientes de que inovar é sobretudo um processo e não um produto.

Os pais e a escola

Falei com alguns pais nesta minha quinzena escolar.

Lembro-me de uma mãe que me fez perguntas sobre a dislexia do filho, outra que me

questionou sobre questões de indisciplina, para além da mãe do estrangeiro, a que já

fiz referência. Impressionou-me, contudo, a pouca frequência com que os pais se

deslocam à escola. Existem várias razões que explicam este facto. Muitos pais têm

pouco tempo, gastam muitas horas em transportes e não lhes é fácil deixarem os

empregos (onde às vezes estão em situação precária) para irem à escola dos filhos,

em horas pouco convenientes para o seu quotidiano. Outros pais têm desconfiança

em relação aos professores, sentidos como possuidores de maior instrução e talvez

com maior ascendência sobre os mais novos. Há pais que estão de tal modo distantes

dos filhos que não faz sentido preocuparem-se com eles, ou então receiam encontrar

situações difíceis e por isso é melhor ignorarem o que se passa. Também existem pais

que gostam de acompanhar os filhos e vão até à escola. São sobretudo pais-

professores, às vezes com rivalidade com os colegas, ou pais de bons alunos que

querem seguir de perto os êxitos dos filhos.

O panorama não é, em síntese, muito animador. Quando se fala com os pais,

ouvimos queixas pela pouca segurança da escola ou pelas faltas dos professores;

quando se pergunta aos professores, respondem-nos que os pais pouco aparecem e é

difícil colaborar com eles. Parece que pais e professores não se unem no essencial e

se mantêm numa posição de competição simétrica. Tal situação está provavelmente

relacionada com o facto de a função educativa, outrora pertença exclusiva da família,

estar agora também atribuída à escola. As dificuldades do quotidiano de muitas

famílias levam a que estas aprovem a situação, já que muitos pais têm reais

problemas na educação dos seus filhos.

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Vislumbro, todavia, alguns sinais de esperança. As Associações de Pais têm em

Portugal apenas vinte anos de existência. Sendo certo que muitas escolas não sabem

o que isso é, outras há em que as Associações são apenas embrionárias e vivem à

custa do esforço de alguns entusiastas. O seu número cresce, todavia, diariamente, e

neste momento começam mesmo a emergir cada vez mais Federações de

Associações de Pais, que se unem para resolver problemas comuns. Os pais

começam a tomar consciência de que os recursos do Ministério da Educação não são

infindáveis e que se torna necessário unir esforços e definir competências. Quando um

pai tem um filho com dificuldades escolares, a primeira coisa que dever fazer é

procurar o Director de Turma e tentar unir a sua compreensão do problema (através

do que observa em casa) com a leitura que o professor faz da situação (a partir do que

vê na escola). Este esforço conjunto de diagnóstico é essencial para encontrar a

solução, ou pelo menos a forma de minorar o problema. Por vezes os pais estão

demasiado presos a questões que na minha opinião não lhes dizem directamente

respeito, como a didáctica da sala de aula ou as perguntas dos testes. Na minha

experiência como pai, recordo como uma terrível perda de tempo as infindáveis

perguntas que os outros pais faziam sobre as faltas e o aproveitamento dos seus

filhos, levando a que se perdesse a oportunidade de discutir problemas comuns a

todos os progenitores. Também fico um pouco impressionado quando vejo pais a

falarem só de segurança, drogas e polícias, esquecendo-se de que a forma como os

filhos se sentem na escola é essencial para o seu desenvolvimento adolescente.

Quando um filho abandona a escola ou dá sucessivas faltas, é preciso que os pais

e professores unam os seus esforços. Se o pai ou a mãe não conseguem convencer o

filho a voltar, deverão comunicar esse facto à escola o mais rapidamente possível.

Recordo uma rapariga com anorexia nervosa que, após o seu internamento hospitalar,

recusava voltar às aulas, porque receava falhar ou temia o confronto com os colegas,

após a modificação do seu corpo e da sua maneira de pensar. A mãe estava

impotente para alterar a situação e o pai, há longo tempo separado, tentava persuadi-

la sem sucesso. Quando sugeri que contactassem a Escola olharam para mim como

se eu tivesse dito uma blasfémia, mas a verdade é que foi a partir da escola que o

problema se desbloqueou. Começaram por ir lá a casa colegas, depois professores e

a Directora de Turma telefonaram e em conjunto foi preparado o regresso às aulas.

Há muitas coisas que pais e professores podem fazer em conjunto (1). No princípio

do ano, mesmo antes de as aulas começarem, sugiro uma reunião conjunta para

definição de um programa de acção. Pode começar-se por discutir e chegar a acordo

sobre as necessidades dos alunos naquele momento, focando áreas tão diversas

como as instalações, os apoios escolares e os tempos livres. Depois é necessário

inventariar os recursos disponíveis e aqueles a que eventualmente poderão ter acesso

(a partir das famílias em questão, da escola e da comunidade circundante). Deve ser

feito também um balanço do ano que passou de modo a ter-se uma ideia do que

falhou e dos bloqueios que existiram nos programas não realizados. Finalmente, é

1 Para aprofundar este assunto, sugiro a leitura do vol. 7, nº 3, 1994, da Revista Inovação, do Instituto de

Inovação Educacional, onde recolhi sugestões para este capítulo.

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crucial definir as regras de funcionamento com a clarificação de papéis (o que

compete ao CD, ao Ministério, à AE e à Associação de Pais, por exemplo).

Estou assim a propor uma espécie de contrato-programa a ser estabelecido entre

pais e professores, em plenário ou através dos seus representantes, se possível com

a participação dos alunos.

Este contrato, que deverá ser escrito e assinado pelas partes em presença,

vincular pais e professores a uma estratégia comum directamente relacionada com o

projecto educativo da escola e com os problemas reais dos alunos.

São inúmeras as tarefas a realizar. Em primeiro lugar, deverão ser feitos esforços

no sentido da melhoria da comunicação, através da participação conjunta no jornal da

escola, na definição de novas estratégias de convocação para os pais ausentes

(telefonemas, telegramas, visitas) ou em realizações na escola que envolvam toda a

comunidade escolar (a festa do patrono, o convívio de Natal, a comemoração de uma

vitória desportiva da equipa da escola). Os pais, unidos aos professores e aos

estudantes, constituem um fortíssimo grupo de pressão que pode levar o poder a

apressar uma obra prometida ou a fornecer um recurso indispensável à escola. Os

amplos conhecimentos que o conjunto dos pais possui facilita também a realização de

melhorias significativas na escola, já que se vê alargado o campo de influência pelo

sinergismo dos diversos grupos em presença.

É bom não esquecer, contudo, que os pais não podem jamais ser receptores

passivos daquilo que o CD pretende. Nalgumas escolas assisti a uma aliança um

pouco perversa entre grupos de pais e elementos do corpo docente, de modo a

fazerem vingar projectos pessoais que na realidade pouco tinham a ver com a escola.

A esperança aumenta quando se reflecte e podemos partilhar os problemas e essa

deverá ser a meta a alcançar. Muitos pais não vão à escola, além das razões

apontadas, porque na realidade não sabem qual o seu papel no edifício onde os filhos

andam tantas horas. É necessário que não esqueçam que o processo de envolvimento

ajuda os professores mas também melhora a família, porque aproxima os pais dos

problemas dos filhos e determina um maior envolvimento afectivo.

Os pais são essenciais à escola, porque ajudam a definir prioridades e fazem força

em conjunto para a resolução dos problemas, mas são também muito importantes

para o professor, visto que podem ajudar a compreender melhor o aluno e a descobrir

soluções para as dificuldades. São os alunos vulneráveis os grandes beneficiados com

esta aproximação pais-professores, mas toda a escola daí poderá tirar benefícios.

Quando as famílias estão gravemente desorganizadas ou não existem, a situação é

ainda mais complexa. É preciso que os professores não façam um discurso

acusatório, género considerar rapidamente a mãe como incompetente ou o pai como

definitivamente ausente. Há razões seguramente muito fortes que levam a que um pai

se desinteresse de um filho. É preciso compreendê-las e aceitá-las, procurando

soluções que têm de passar por todos.

Na escola que tenho vindo a descrever há evidentes sinais de melhoria. A

Associação de Pais parece começar a ganhar fôlego e o CD começou bem o ano

lectivo, ao disponibilizar uma sala para atendimento dos pais. Mas lembro o

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comentário irónico do professor barbudo, quando lhe disseram que pais e professores

pareciam até aí ser o governo e a oposição. Ajeitou os óculos e disse na sua voz

possante: "MAS O GOVERNO É SEMPRE O MESMO!"

Foram muitas destas questões que debati com a Dr.ª Adelaide Cordovil, Presidente

da Associação de Pais de uma Escola Preparatória da região de Lisboa que tive

ocasião de visitar. Desde logo me impressionaram o seu dinamismo e a clareza das

suas posições. Transcrevo agora parte da nossa conversa, esperando que as suas

palavras sirvam de estímulo a alguns pais distraídos.

D. S. - Como é que tem sido a sua experiência e como é que tem vivido o seu

papel na Associação de Pais, em relação aos pais, aos professores e aos alunos?

A. C. - A experiência de trabalho na Associação de Pais tem sido muito gratificante

para mim e para o conjunto das pessoas envolvidas. Esta Direcção constituiu-se na

base de uma certa continuação das pessoas que vinham da anterior e que pediram

colaboração de outras... e nós, uns tantos pais que tínhamos andado ao longo do ano

nas Assembleias a dar uns palpites sobre como é que deveriam ser as coisas,

sentimo-nos um pouco comprometidos a empenhar-nos no trabalho concreto da

Associação. A linha de intervenção que definimos por consenso era a de parceiro a

intervir na escola: não nos colocarmos numa posição de agressão ou de confronto

com o Conselho Directivo ou com a Escola, queríamos estar a resolver os problemas

de igual para igual, participar na resolução dos problemas que afectam o dia-a-dia dos

nossos miúdos, do ponto de vista de instalações da escola, da falta de equipamentos,

da transição do 6º para o 7º ano, etc.

Pretendíamos participar também na reflexão das questões que têm a ver com

aspectos ligados ao funcionamento interno: não colocação ou absentismo de

professores, qualidade do ensino, entre outros.

Sentimos que o nosso papel como Associação não é só reivindicar quando

necessário, é também discutir os problemas, é intervir, é conquistar o nosso papel na

gestão escolar, que penso dever passar muito pelos professores e pelos pais. À

medida que os alunos vão crescendo a sua participação torna-se também necessária

e enriquecedora.

D. S. - Quando diz como parceiro, como tem sido a sua experiência, visto que se

instaura às vezes alguma rivalidade entre pais e professores?

A. C. - Do ponto de vista da relação Associação de Pais/Conselho Directivo houve

um entendimento óptimo. A escola e o Conselho Directivo entenderam bem a nossa

proposta logo numa reunião. Houve um contacto muito regular, reunimos várias vezes,

desenvolvemos iniciativas conjuntas, debatemos com frontalidade todos os problemas.

Penso que é relativamente fácil trabalhar com os Conselhos Directivos, pelo menos

para nós foi e será eventualmente para todas as Associações quando as questões são

comuns e reivindicativas para o exterior, ou seja, lutar por uma cantina, por um

polidesportivo, contra a falta de professores ou de pessoal.

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D. S. - Essa divisão parece-me importante. É necessário em primeiro lugar haver

acordo sobre questões como instalações, funcionários, que tenham a ver com uma

posição face ao exterior, ao Ministério, à Câmara, à Junta de Freguesia...

A. C. - As questões que mexem mais com o funcionamento interno da escola, com

a relação dos Conselhos Directivos com os professores, são talvez as mais

complicadas, bem como as questões disciplinares.

Embora tenhamos encontrado abertura para a sua colocação, sentimos dificuldade

no que diz respeito a como ultrapassá-las. Estão neste caso o absentismo repetido de

alguns professores, com consequências graves na aprendizagem dos alunos, por

exemplo... São questões que envolvem relações pessoais entre colegas,

condicionantes legais para a acção dos Conselhos Directivos, nomeadamente na

substituição de professores por motivo de doença...

D. S. - Só podem pedir substituição a partir de um mês?

A. C. - Há determinados limites, que nós não tivemos possibilidade de conhecer a

fundo. A legislação existe, a substituição só é possível a partir de certas condições que

se podem arrastar por algum tempo.

Penso que aqui há que repensar o problema e eventualmente criar regras mais

flexíveis e que respondam melhor à necessidade de os alunos terem asseguradas as

suas aulas.

As medidas encontradas para colmatar o problema (aulas compensatórias, muitas

vezes no ano seguinte) dificilmente são a resposta adequada.

Quanto às questões disciplinares, fomos chamados a participar em dois Conselhos

de Turma com carácter disciplinar.

D. S. - Qual a sua vivência desses conselhos?

A. C. - Nos dois em que participei, as situações quando chegaram ao Conselho

revelaram preocupação do Director de Turma na abordagem séria do problema.

Agora uma situação que chega a esta estrutura é normalmente complicada, do

ponto de vista do aluno, do ponto de vista da família, da escola... e à Associação é

pedido um parecer sobre a decisão a tomar. Nós temos de procurar perceber, naquele

momento, se os pais foram ouvidos, qual a sua posição, conhecer os dados da

situação... Não possuímos um conhecimento antecipado do problema, a não ser que

haja uma informação dos pais directamente à Associação, o que não aconteceu.

D. S. - O que é pena!...

A. C. - Nós chegamos à reunião e aí são-nos apresentados os dados pelo Director

de Turma junto dos colegas, pais e alunos ao longo do processo.

D. S. - Por que razão, face a uma situação grave, os pais não pedem o apoio da

Associação?

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A. C. - Penso que as Associações de Pais, do ponto de vista do conjunto da escola,

infelizmente ainda têm um papel muito pouco importante, nós somos uma escola de

680 crianças e sócios da associação eram 80 talvez, e só depois de um certo trabalho

realizado durante este ano.

Um dos principais objectivos da nossa acção foi chegar aos pais, para que

sentissem que era importante estarem organizados e para que participassem mais na

vida da escola. Penso que os pais ainda vêem a sua presença na escola numa

perspectiva muito individual... "eu vou resolver o que se passa com o meu filho, vou às

reuniões de turma, quando vou discuto as notas, as faltas dos professores", às vezes

de uma forma marcadamente reivindicativa. Não se sentem ainda motivados para

quantificar os problemas, discuti-los com os seus pares e estabelecer diálogos e

aprendizagens entre os pais e com a escola.

D. S. - Essa será uma das coisas fundamentais a mudar. A passagem da perspectiva

individual para a perspectiva do conjunto da escola.

A. C. - Fizemos esse esforço, para criar alguns canais de comunicação com os pais,

entre eles uma Folha Informativa publicada ao longo do ano, um horário de

Atendimento de Pais, que se iniciou com uma duração mais prolongada e depois foi

reduzido porque os pais não apareceram.

Fomos contactados apenas uma vez devido a atropelamentos que atingiram crianças

da escola, o que nos levou a desencadear, em conjunto com o Conselho Directivo,

uma Campanha de Prevenção Rodoviária e diversas diligências junto da Câmara de

Lisboa.

D. S. - E os pais compareceram?

A. C. - Dessa vez houve um contacto pessoal com a Associação de Pais, mas a

maior parte dos problemas são apresentados nas Assembleias Gerais que são, ou

poderão ser, espaços privilegiados de encontro, de debate e de procura de soluções.

Já a realização de assembleias sobre temas e abertas a pais e professores, como

aquela que contou com a presença do Prof. Daniel Sampaio, tiveram uma participação

mais elevada e revelaram-se muito enriquecedoras pela troca de experiências e

pontes de comunicação que estabeleceram.

Penso, no entanto, que para todas as Associações de Pais é um pouco pesada esta

fraca participação dos pais nas reuniões, no trocar experiências e vontades. Não é só

no reivindicar que temos um papel importante, temo-lo também na construção de uma

Escola diferente. Há certamente muita coisa que não é preciso ser o Ministério ou a

Câmara a fazer, há muita coisa que pode passar pelos pais. Estamos sempre a

reivindicar o jardim, o banco, a mesa... se calhar, todos juntos éramos capazes de

fazer imenso sobre algumas destas coisas, não era preciso estarmos à espera que a

instituição de fora tratasse disso.

D. S. - Estou muito de acordo com isso. Queria agora voltar um pouco atrás em

relação às questões da indisciplina. Que pensa sobre o papel das associações de pais

nessa área?

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A. C. - Penso que é uma questão muito complicada e que nós enquanto grupo (pais)

temos também mais dificuldade em assumir, até porque os professores normalmente

atribuem aos pais a responsabilidade da indisciplina... os meninos entram na escola,

não são educados, não sabem relacionar-se com os adultos, são malcriados, são

agressivos com os professores, etc.. Não será generalizável esta atitude mas tem um

certo peso.

Nós sentimos que uma parte da indisciplina passa pela educação familiar, pelas

experiências que as crianças foram tendo na família, em socialização mais alargada

nos sítios onde vivem, mas trabalhar estas questões não é fácil, talvez porque nos

questionem profundamente.

Nós, pais, somos educadores e sentimos o peso dessa responsabilidade, na

sociedade actual. Eu sou educadora do meu filho, penso que ele não é malcriado na

escola, mas sei lá, nunca sabemos bem. Há contextos em que eles estão inseridos,

têm importância as suas formas de crescimento e de afirmação face ao grupo e

portanto podem tomar certamente muitas atitudes que não podemos dizer que eles

não tomam.

E depois os pais, ou só o pai ou só a mãe, passam os dias fora de casa, as crianças

ficam muito sós e muitas vezes criam-se distâncias difíceis de ultrapassar.

A indisciplina na escola tem múltiplas causas, estando também associada a

comportamentos agressivos de crianças de meios desfavorecidos, que carregam

desde a primária sentimentos de mal-estar em relação à escola, têm experiências de

vida quase sempre pesadas que o sistema escolar tem dificuldade em integrar, elas

raramente têm na escola experiências que as valorizem, que as ajudem a desenvolver

sentimentos de auto-estima, na escola são muitos professores, são muitos alunos, há

falta de tempo e disponibilidade para aprofundar e trabalhar uma tal diversidade de

problemas.

Todas estas questões são um desafio para as Associações de Pais e não temos

respostas... penso que andamos todos à procura, e só trazendo os pais à escola,

equacionando este problema, poderemos começar a dar alguns passos mais seguros.

D. S. - Vale a pena continuar?

A. C. - Sim, penso que as Associações de Pais têm um papel importante como

impulsionadoras da participação dos pais na vida da escola, como parceiros na gestão

escolar, com os professores e com os alunos, cada um com as suas

responsabilidades. É muito importante todos fazermos esta aprendizagem. Tudo isto

exige calma, capacidade de diálogo, ver que nem sempre temos a razão toda. As

Associações de Pais têm um importante papel reivindicativo, penso que é preciso

mantê-lo, porque há de facto coisas graves ao nível das nossas escolas, estão mal

equipadas, há que criar condições até logísticas para os alunos se sentirem bem na

escola, ter a sua sala de aula, a sua cadeira, o espaço de encontro com os colegas.

Quase todos os alunos têm atracção pela escola, é um sítio onde estão com os seus

amigos... mas está por vezes também carregada de factores de rejeição.

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Compete assim a todos nós conseguirmos criar na escola uma certa dinâmica, uma

maneira de estar, de estimular o gosto e uma maior responsabilização dos alunos pela

criação e manutenção de espaços, cuidarem do material que estragam, por exemplo

colaborarem na jardinagem, criarem actividades dentro da escola que respondam aos

seus interesses... Sabemos que por vezes alguns pais reagem "era o que faltava, que

o meu filho agora ande a apanhar papéis na escola", portanto tudo isto passa por um

diálogo muito grande entre pais e professores, sobre qual o papel da escola, o que

entendemos como educação, o que é isto de responsabilização dos alunos, como é

que se ganha o gosto pela escola e pelo dia-a-dia na escola, como se estabelece a

confiança entre o aluno e o professor...

As Associações de Pais têm aqui um papel a desempenhar nesta difícil mas

estimulante caminhada.

Último dia

Deixei a escola no fim da segunda semana. Era sexta-feira à tarde e os alunos saíam

contentes pelo fim-de-semana que chegava.

A estudante das lágrimas ácidas estava à saída para me dizer adeus. Já tinha

marcado consulta em Santa Maria e parecia mais alegre. Vi ao longe o rapaz artista e

fui à cave dizer adeus a umas funcionárias com quem tinha falado. Às vezes

esquecemo-nos delas, parecendo não querer ver como são essenciais para o bom

funcionamento da escola.

Os professores do último seminário que coordenei pareciam não me querer deixar

sair. Pediram mais formação e que eu voltasse em breve. Disse-lhes as minhas

dúvidas sobre a utilidade da minha presença na escola e partilhei com eles a riqueza

afectiva da minha experiência.

A escola está lá, para quem a quiser mudar. Pela minha parte, adorei lá ter estado.

Encruzilhadas

Há muitas encruzilhadas no normal funcionamento de uma escola. Escolhi duas,

muito diferentes na sua causalidade, mas igualmente importantes para o

estabelecimento do clima escolar.

Decidi então falar de indisciplina e dos problemas ligados à doença mental,

escolhendo para este efeito o exemplo da depressão e do suicídio, com uma leve

referência aos consumos tóxicos no contexto da escola. Termino este capítulo com

dois debates realizados em escolas.

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Começo por dizer que a indisciplina não é uma doença, como por vezes se quer

fazer crer, quando se enviam ao psicólogo e ao psiquiatra adolescentes invulgarmente

turbulentos. Então terá de ser a escola a equacionar e a resolver essa questão. Na

doença mental, o papel do estabelecimento de ensino é apenas preventivo: criar as

condições para que diminua o seu aparecimento, detectar precocemente os casos que

surjam e articular-se eficazmente com um serviço de saúde. Vejo confundirem-se

constantemente questões ligadas à organização da escola e da turma com aspectos

de vigilância de saúde e de tratamento que devem ser resolvidos por entidades

exteriores à escola. Sem esta clarificação inicial, toda a acção que vise a mudança de

atitudes será prejudicada.

Reflexões sobre a indisciplina no contexto escolar

A questão da indisciplina na escola é um mar de equívocos. Embora seja o tema que

mais inquieta os professores nas diversas acções de formação, é difícil criar uma

linguagem comum que contribua para alguma eficácia na acção. Por exemplo, quando

se classifica um comportamento como excessivo, qual o limiar de que partimos?

Quando se designa uma acção como “desadequada”, que referência utilizamos?

Como ter a certeza de que um acto é intencional, se pouca ou nenhuma pessoa o

observou directamente e ninguém sabe exactamente o que vai na cabeça do autor?

Face à possível resolução da situação da indisciplina, qual é o papel da escola, da

família, do Ministério da Educação ou do técnico de saúde?

Professores, pais e alunos parecem contudo de acordo num enunciado deste tipo: "é

necessário um entendimento geral do modo de funcionar em cada escola, que permita

melhores resultados escolares e um clima de razoável bem-estar para os diversos

intervenientes no processo educativo. Cada escola tem assim a obrigação de se

preocupar com o controlo disciplinar, entendido como o conjunto de todas as

actividades que visam exercer alguma espécie de influência sobre o comportamento

dos alunos, procurando ajustá-lo àquilo que é, para cada professor e pelos

professores em cada escola, considerado como padrão de comportamento aceitável"

(2).

Esta definição coloca-nos imediatamente no problema das regras na escola,

debatidas em diversos capítulos do Voltei à Escola.

É uma questão que muito me preocupa e que tem uma difícil resolução.

Em primeiro lugar, temos as regras formais emanadas do Ministério da Educação.

São um conjunto de normas que flutuam um pouco ao sabor das alterações políticas e

que nem sempre estão ajustadas às realidades de cada escola. Se analisarmos com

atenção o conjunto de decretos-leis e portarias sobre o controlo disciplinar, vemos que

2 Domingues, I. (1955), Controlo Disciplinar na Escola - Processos e Práticas. Lisboa: Texto Editora. Para

além da definição, foram utilizados neste livro alguns conceitos expressos nesta obra.

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diversos legisladores podem produzir doutrina legal que não é cumprida na sua

plenitude por muitas e variadas razões.

No segundo plano, surgem as regras não formais, estabelecidas na escola de uma

forma mais ou menos estruturada e que são interpretações das regras oficiais ou

determinações sobre problemas específicos daquela organização escolar.

Por último, a escola é permanentemente pontuada por regras informais, que

constituem um corpo doutrinário pouco explícito, mas muito importante no controlo da

disciplina. São frequentemente confundidas com as regras sociais, já que tentam

determinar um quadro de referência para o relacionamento escolar, por exemplo entre

professores e alunos.

Um exemplo tornará mais claro estes níveis que tenho estado a descrever. A

legislação ministerial regula o regime de faltas, mas o momento da sua aplicação pode

ser decidido em regulamento interno da escola, quer dizer, é esta que define se a falta

de presença é marcada logo ao segundo toque ou no fim da aula. Em seguida, o

professor em cada turma optará por fazer ou não a chamada, confiar no Delegado e

pedir o seu depoimento ou simplesmente não valorizar excessivamente o problema.

Nas questões disciplinares, o problema é ainda mais complexo. O Ministério legisla

sobre as penas disciplinares aplicáveis aos discentes: advertência, ordem de saída do

local onde se realizam os trabalhos escolares, repreensão dada pelo CD através do

seu presidente, suspensão da frequência até oito dias, exclusão da frequência por

período não superior a um ano, exclusão temporária da frequência de todos os

estabelecimentos [...].

O regulamento da escola pode interpretar a lei, tentando definir parâmetros de

aplicação das diversas sanções, mas é o professor, em última análise, quem

determina se deve apenas advertir o aluno ou expulsá-lo da aula. Quando deverá

fazer uma coisa ou outra?

Destes factos resulta que são frequentes as inconsistências normativas nas escolas

do Ensino Básico e Secundário. Nas discussões com professores, vejo que há

frequentes confusões de nível lógico, isto é, falam ao mesmo tempo de uma norma

geral (o regime disciplinar) e de uma acção individual de controlo disciplinar. Não se

podem confundir dispositivos legais válidos para todas as escolas com acções

concretas, resultantes de uma interacção específica a acontecer naquele momento.

Esta dificuldade só pode ser superada com uma melhoria da comunicação entre os

professores, de modo a que tenham contacto com os procedimentos dos colegas na

resolução dos problemas mais difíceis, sem que isso os limite na sua criatividade na

sala de aula. Pretendo, portanto, propor que os professores ganhem algum tempo a

conversar uns com os outros, em reuniões informais e formais, de modo a definirem

consistentemente um conjunto de regras gerais de conduta face ao problema do

controlo disciplinar.

Poderia ser seguida uma metodologia deste género:

a) antes de iniciar o ano lectivo, naquele período em que se estão a fazer os diabólicos

horários e as famílias aguardam o início do ano escolar, os professores e os pais

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debateriam as questões mais prementes da escola, sendo trocadas informações

recíprocas;

b) a escola na sua totalidade elaboraria depois o regulamento interno ou procederia à

sua revisão, SEMPRE com a participação dos alunos;

c) teriam lugar várias reuniões de professores no âmbito dos órgãos da escola, bem

como encontros informais sobre a questão da disciplina (sugiro que os professores

almocem juntos...);

d) os resultados seriam avaliados antes do final do período.

É essencial que o conjunto de regras básicas de cada escola esteja definido antes do

Natal. O primeiro período de aulas compreende aquele tempo em que os alunos

testam os limites do sistema escolar e detectam as suas incoerências.

O regime de “Never smile before Christmas”, posto em prática por alguns

professores, enquanto outros funcionam em roda livre de gratificação e tolerância

excessiva, conduz a inconsistência no funcionamento das aulas que são fonte segura

de um comportamento indisciplinado. "Se a professora de Inglês deixa fazer, por que

razão não hei-de fazer o mesmo em Matemática?", questionam-se os alunos com

alguma razão.

Como muito lucidamente escreve Maria Teresa Estrela, “as regras pedagógicas

subordinam-se aos fins do processo pedagógico e da produção que ele pretende gerar

e são relativas às situações criadas em função de determinados modelos de

intervenção pedagógica. Não são, pois, imperativos pedagógicos, mas imperativos

hipotéticos que adscrevem certos meios à realização de certos fins, revestindo-se, por

isso, de um carácter instrumental e arbitrário. Essa arbitrariedade não exclui, no

entanto, a racionalidade, pois só esta pode justificar a sua razão de ser e, portanto,

legitimar o seu uso. Da compreensão da legitimidade da regra decorre a probabilidade

de ela ser aceite ou respeitada" (3). Se um comportamento menos habitual, por

exemplo levantar-se sem licença e falar alto do fundo da sala, é aceite em Português,

é difícil ao aluno perceber que ele deve ser reprimido em Inglês. A simples recepção

passiva da explicação do professor versus a participação permanente noutra aula,

pode ser motivo de confusão gerador de indisciplina.

O problema da indisciplina não é, obviamente, uma questão apenas de regras. Ele

está directamente relacionado com o processo de comunicação professor/aluno.

Todos sabemos que há situações de indisciplina numas disciplinas que não surgem

noutras.

Há vários processos de melhorar a comunicação docente-discente:

a) não considerar a turma como um todo, género esta turma é péssima, aquela turma

é boa. Trata-se de um sistema humano, cujos elementos são muito diferentes entre si.

Vêm de famílias diversas, têm idades não coincidentes e ritmos de aprendizagem que

3 Estrela, M. T. (1994), Relação Pedagógica, Disciplina e Indisciplina na Aula. Porto: Porto Editora.

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não se sobrepõem (basta pensar nas suas diferentes motivações e desenvolvimentos

cognitivos). Então, é preciso compreender a rede comunicacional da turma, perceber

quem são os elementos fundamentais e qual é a cultura juvenil subjacente (não

confundir cultura com instrução), partir dos interesses dos alunos e adequar o mais

possível os conteúdos programáticos às vivências dos estudantes. É importante não

classificar a turma pelo que se ouviu dizer. Vejo professores mais novos virem

aterrados para as aulas, no início do ano lectivo, porque um colega mais experiente

lhes meteu medo com o comportamento daqueles alunos, a partir da sua experiência

no ano transacto. Como as coisas mudam depressa na adolescência!

É necessário que o professor compreenda que o controlo disciplinar começa no

primeiro dia de aulas, com aquela turma e consigo mesmo;

b) o funcionamento da classe deve ser definido com os alunos, no princípio do ano

lectivo. Impressiona verificar como ninguém questiona os alunos sobre a própria

gestão da sala de aula. Encontrei adolescentes com propostas criativas em muitos

domínios, que tinham um comportamento de grande imaturidade na aula.

Para melhorar a comunicação é preciso que o professor considere que o aluno é um

cidadão, com os seus direitos e deveres; para comunicar com ele é preciso ouvi-lo e

respeitar a sua opinião;

c) o arranjo espacial da sala é decisivo. Consoante a finalidade da aula, o professor

dever adequar as mesas e cadeiras ao seu objectivo educativo. Sou um entusiasta do

trabalho em grupo, muito participado pelos alunos, e desconfio em princípio dos

professores que se agitam durante uma aula, perante uma plateia de alunos

adormecidos. Comunicamos melhor se mantivermos os alunos muito activos. A

passividade e a falta de participação discente está também directamente relacionada

com a indisciplina.

A maneira como o professor conduz a gestão da sala de aula é também um factor

importante na génese de uma comunicação positiva professor-aluno. Na realidade, a

chave de uma boa gestão está, não só no modo de resolver as dificuldades, mas

sobretudo na maneira como estas são prevenidas.

As aulas devem ser cuidadosamente planeadas. Perante um grupo de alunos nem

sempre motivado, a organização da aula, e sobretudo o modo como são conduzidas

as actividades, é factor determinante do seu êxito. O professor poder mesmo estudar

estratégias para manter os alunos interessados e deve ter bem presente que é

essencial diminuir a ocorrência de problemas de comportamento.

Para além do arranjo espacial já referido, o docente tem ele próprio de adoptar

comportamentos que melhorem a comunicação. Para prevenir problemas de

indisciplina, todas as atitudes de escalada simétrica devem ser evitadas, isto é,

quando o aluno provoca, o professor precisa de responder a essa provocação de um

modo diferente daquele que é esperado; ou seja, se o aluno grita, está provavelmente

à espera de que o professor berre mais alto, iniciando-se uma série de

comportamentos desajustados que terminarão quase sempre pela expulsão do

estudante. Se, pelo contrário, o professor responder uma coisa deste género: "eu

estou muito calmo: Se continua a gritar vai ficar cada vez mais sozinho...", é possível

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que a surpresa da resposta produza algum efeito. É evidente que não pode haver

receitas para dificuldades deste tipo; a essência do êxito radica no elemento

inesperado que contém.

Lembro uma professora de meia-idade, um pouco desiludida com uma carreira cheia

de vicissitudes, que mostrava a sua surpresa perante certo comportamento ocorrido

na sala de aula. Tinha por hábito circular entre as carteiras durante os testes, facto

que me lembrou um professor de História do meu tempo, habituado a surpreender-nos

a copiar durante os exercícios escritos. O êxito deste meu antigo mestre estava

relacionado com o seu estrabismo, porque sempre que ele gritava "Tu aí! Estás a

copiar!" levantava-se, aflito, todo um sector da aula... Pois a professora em questão,

que não era estrábica, tinha tropeçado num sapato de ténis francamente saído da

ordem das filas que preconizava.

Tomou este facto como uma partida (atribuiu-lhe uma intencionalidade) e, com o seu

próprio pé, empurrou com vigor o do rapaz. Cinco minutos depois várias dezenas de

sapatos bloquearam definitivamente a passagem. Sucedeu-se uma infinidade de

discursos e recriminações recíprocas, que terminaram com algumas faltas

disciplinares e um teste adiado. Não teria sido melhor que a professora fosse buscar

um dossier e o colocasse delicadamente sob os pés do prevaricador? Ou se não

quisesse ser tão ousada, não resultaria um simples e delicado pedido?

É bom também que o professor olhe para os alunos. Sou a favor de um olhar em

farol, de modo a percorrer toda a turma e captar rapidamente todas as comunicações

verbais e não-verbais, podendo actuar rapidamente nos indícios de mau

comportamento. É possível assim verificar também o modo como está a ser entendida

a explicação ou como evolui o trabalho de grupo. É essencial não haver tempos

mortos numa aula, pois eles conduzirão facilmente a interrupções ou a distracções.

Quando se utilizam mecanismos de entreajuda entre os discentes, é preciso prever

ritmos de trabalho diferentes, de modo a não causar ansiedade nos menos rápidos e a

ocupar os que acabaram primeiro.

O problema da indisciplina não se esgota, todavia, na questão da comunicação.

Examinemos outros factores.

Pode haver importantes diversidades culturais entre os alunos que expliquem

diferenças de comportamento. Um estudante proveniente de um país africano não fala

nem se veste como um rapaz do centro da cidade, e diferenças de discurso e de

vestuário podem ser vistas como propositadamente diferentes para gerar indisciplina,

quando apenas existe uma origem diversa.

Também o modo como se relata a situação da indisciplina levanta questões. Quando

o comportamento disruptivo ocorre fora da aula - o que é frequente - levanta-se o

problema da sua denúncia. O funcionário viu de facto a acção? Foi um estudante que

denunciou, o que coloca a questão da lealdade? Os professores devem vigiar os

intervalos ou isso não é da sua competência? Certo é que muitos comportamentos

não são relatados aos responsáveis, que muitas vezes só recebem a informação

quando a indisciplina aumentou. Alguns professores e auxiliares de acção educativa

temem que a verificação dos factos vá mostrar algumas das suas dificuldades ou

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eventuais culpas no desencadear dos comportamentos indisciplinados, remetendo-se

a um prudente silêncio, que é factor de agravamento do problema.

Outro aspecto interessante reside no facto de se confundir indisciplina com doença

mental. Noutras páginas deste livro procuro dar elementos para tentar esclarecer esta

questão. A verdade é que, frequentemente, psicólogos e psiquiatras são solicitados

para intervir junto de estudantes malcomportados. Embora certas situações

psicopatológicas se possam manifestar por comportamentos disruptivos (as

perturbações ansiosas e depressivas são as mais frequentes), a verdade é que a

maioria das situações de indisciplina não têm correspondência na Psicopatologia. Os

CD e Directores de Turma que enviam alunos ao técnico de Saúde Mental têm a

secreta esperança de que a terapia possa resolver ou minorar a crise de

comportamento. Trata-se de mais uma ideia desresponsabilizante, semelhante às

daqueles pais que aliviam a culpabilidade de nunca falarem com os filhos marcando-

lhes uma consulta no psicólogo. É preciso esclarecer este equívoco. Aos técnicos de

Saúde Mental é pedido que assumam quase uma função administrativa de controlo

disciplinar em vez de tratarem doentes; os responsáveis da escola recomendam

terapia (o que até pode não ser muito ético), em vez de estudarem a competente

acção disciplinar. Estamos assim, mais uma vez, a confundir papéis e níveis de

intervenção. O psicólogo, quer esteja na escola quer fora dela, deve actuar como

consultor do CD e professores sobre várias questões, e encaminhar ou tratar os

adolescentes que de facto necessitem de ajuda psicológica. Que pode fazer um

técnico de Saúde Mental, isolado no seu gabinete, perante uma situação de

indisciplina, seguramente causada por problemas de organização da escola e/ou da

turma?

Se estes factores não chegassem, teríamos de pensar também que é essencial

manter a confidencialidade para o êxito de uma intervenção psicoterapêutica, o que

dificilmente será preservado numa indicação feita a partir de uma situação originada

no contexto escolar. Este ponto de vista não é válido se a situação de indisciplina

estiver directamente relacionada com disfunções psíquicas. Perante uma perturbação

do normal funcionamento das aulas, causada por uma crise suicidária, excesso de

álcool, abuso de drogas ou perturbações psicóticas, os responsáveis da escola

deverão agir sem demora, contactando um serviço de saúde, de modo semelhante ao

que escrevemos a propósito da tentativa de suicídio.

A organização dos tempos livres na escola constitui também um forte factor

preventivo das situações de indisciplina. Impressiona ver tantos jovens sem nada para

fazer na escola quando falta um professor, dando uns desorganizados pontapés na

bola, conversando pelos cantos ou consumindo cigarros e cerveja no café da esquina.

Sei que há escolas que não dispõem de mais do que um simples telheiro para abrigar

da chuva e não têm qualquer espécie de instalações onde se faça desporto, ou

centros de recursos onde se possa ler, fazer fotografia ou trabalhos com um

computador. É necessário que estabelecimentos de ensino nestas condições as

denunciem e, ao mesmo tempo, estabeleçam protocolos com as autarquias e

organizações de bairro para a cedência de instalações. Nas escolas com um mínimo

de espaço, é preciso pensar, em conjunto com os estudantes e os pais, nas medidas a

tomar.

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Numa escola do Ensino Básico da região ribatejana, foram os alunos que me

chamaram a atenção para a violência aí existente. Houve pessoas de bairros

degradados que invadiram a escola (infelizmente não havia portão), mas os

estudantes estavam cientes da sua própria violência. Os jogos do intervalo sugeriam

esses comportamentos: a cachaça, a fila da cachaça, a sarrafada, a à roda bota fora e

a meia. A cachaça era para ver quem dava caldos mais fortes, a variante fila da

cachaça correspondia a uma série dos mesmos “caldos” em alas de estudantes

abertas para o efeito. A sarrafada e o à roda bota fora eram variantes de pontapés e

caneladas que expulsavam os mais fracos, enquanto a meia, certamente inspirada

num filme da televisão, consistia num assalto com a cara tapada a algum estudante

indefeso. Foi possível organizar com estes estudantes de 10-12 anos outros

divertimentos mais inócuos, a partir das suas próprias sugestões e com o apoio dos

professores. Será que é assim tão difícil?

Tal como os alunos desta escola referiam, a violência no espaço escolar pode ser de

vários tipos. Temos a violência exógena, provocada pela infiltração de agentes

externos à escola, mais grave em escolas localizadas junto a bairros de graves

carências socioeconómicas; existe depois a violência na escola, que mostra uma certa

falta de sentido cívico, traduzida por comportamentos disruptivos, quer no pátio quer

na sala de aula; finalmente temos a violência contra a escola, caracterizada por

comportamentos e atitudes claramente antiescolares, assumindo a forma de um

verdadeiro desafio à ordem do estabelecimento.

A violência exógena combate-se com vigilância, colaboração dos pais e ligação da

escola ao meio, através de uma expansão comunitária da ideia de escola e de um

trabalho no bairro, dinamizando os agentes que lá intervêm e aproveitando os

recursos socioculturais existentes na zona. A violência na escola combate-se pela

melhor organização escolar, pela educação para os valores e pela responsabilização

permanente de professores, pais e alunos. A violência contra a escola exige medidas

eficazes de controlo disciplinar, a determinar caso a caso, e sobretudo uma actuação

preventiva ou muito precoce a partir de acontecimentos que a iniciem.

A partir da sua experiência com escolas francesas, Jean Michel Dumay (4) salienta

que o sentimento de insegurança cresce sempre mais rapidamente do que a própria

insegurança, pelo que é essencial prevenir em vez de remediar, quando o medo já se

apossou de nós. Este autor elaborou um quadro dos diversos estádios de degradação

da vida escolar causados pela indisciplina e violência que adapto a seguir pela sua

evidente utilidade:

4 Cf. Dumay, J. M., L'école agressée - réponses à la violence. Paris, Belfond, 1994.

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Degradação da vida escolar

Manifestações principais

Efeitos provocadas no corpo docente

Estádio 1 Recusa de regras na turma. Pouco trabalho

Comportamento barulhento. Apartes agressivos

Desmoralização dos professores

Estádio 2 Violência verbal. Pequenos delitos. Absentismo

Comportamento provocatório. Desafios à autoridade

Pequenos momentos de medo

Estádio 3 Ameaças. Tensão forte dentro e fora da escola. Violência latente

Chantagem. Degradação de material, pequenos fogos, coisas partidas, roubos

Medo crescente. As regras passam a ser as dos grupos violentos

Estádio 4 Actos graves de delinquência

Incêndios graves. Agressões físicas graves. Violação

Medo permanente. Atitudes não reflectidas. Abandono das aulas

É evidente que todo o trabalho deve ser feito antes, ou quando muito, no Estádio 1.

É essencial não deixar crescer a violência dentro da escola e não cessar num só

momento de a discutir e de a tentar resolver. No final deste tópico sobre a indisciplina,

talvez seja útil resumir os meus pontos de vista:

1 - A indisciplina na escola combate-se pela co-responsabilização de professores,

alunos e pais. Não é uma questão de medidas de castigo nem assunto da polícia.

2 - A melhoria da comunicação professor-aluno é essencial. Em situações de

indisciplina na turma, o professor dever parar e ganhar tempo ouvindo os cidadãos

que tem à sua frente sobre o que não está a correr bem.

3 - Os pais deverão fazer corpo com os professores nesta tarefa. As aulas correrão

melhor e o envolvimento pais-filhos será mais próximo.

4 - A escola promoverá a crescente actividade dos alunos, quer nas aulas quer nos

tempos livres. Aluno inactivo e desinteressado pode rapidamente tornar-se

indisciplinado.

5 - Os conteúdos programáticos (e não o Manual, como alguns professores fazem)

deverão, tanto quanto possível, adaptar-se aos interesses dos alunos.

6 - Os professores tirarão da cabeça algumas ideias como turma de loucos, ovelha

ranhosa, aluno drogado e procurarão, face à turma ou à escola, perceber as razões

das condutas indisciplinadas ou violentas. No contexto escolar, toda a conduta

agressiva tem um sentido relacional. Significa uma metacomunicação, isto é, uma

comunicação sobre a comunicação, por paradoxal que pareça. Neste sentido, NÃO

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HÁ AGRESSIVIDADE SEM SENTIDO NO ESPAÇO ESCOLAR. O esforço de todos

nós deverá ser o de a interpretar e combater.

Papel da escola na prevenção do suicídio adolescente

A grande maioria dos adolescentes que frequentam as nossas escolas do Ensino

Básico e Secundário não sofrem de doença mental. Esta constatação resulta de

numerosos estudos epidemiológicos realizados em Portugal e noutros países, que têm

demonstrado que o período da adolescência se caracteriza, na maior parte dos casos,

apenas por turbulência e conflitos no quotidiano dos jovens. Não podemos esquecer,

contudo, aqueles alunos a necessitar de uma intervenção urgente e eficaz, porque na

realidade estão doentes. É essencial que os professores não se transformem em

psicólogos, convencidos de que tudo é perturbação mental ou crise da adolescência,

mas saibam detectar precocemente os sinais de alarme de um comportamento

patológico.

A escola não é um supermercado de aulas, terá de ser um local de educação e de

saúde. É uma organização que interage com o adolescente, evolui com ele e deve

estar pronta para um diálogo esclarecido. Não pode, por isso, considerar que o

problema da depressão e suicídio juvenil é uma questão dos técnicos de Saúde

Mental.

Para lidar com as dificuldades psicológicas dos seus alunos, a escola deve ter uma

nova mentalidade. A educação para os valores, com aumento da tolerância e respeito

pelo outro, numa atmosfera de entreajuda e de menor competitividade, é essencial

para assegurar uma maior estabilidade psicológica a todos os que a frequentam. A

melhoria da própria eficácia da escola, em termos da diminuição do insucesso e

abandono escolares, contribui também decisivamente para a prevenção das doenças

psiquiátricas dos seus membros.

A depressão constitui uma situação patológica bastante frequente nos adolescentes,

embora seja errado afirmar-se que não há adolescência sem depressão. Não

podemos confundir momentos transitórios de perda da auto-estima e tristeza

acentuada (às vezes presentes em jovens) com a depressão-doença, caracterizada

por alteração do comportamento habitual, impulsividade, tristeza com sentimentos de

culpa, desvalorização e ideias de morte e suicídio (5).

É importante que o professor esteja apto a reconhecer os sinais de depressão grave,

que necessitam de encaminhamento urgente para uma consulta.

5 Para mais informação sobre este tema, consultar Vieira, A. P., Sampaio, D., Sinais de Alarme Num

Adolescente Deprimido em Risco de Suicídio. Noesis (56):33-35, 1993.

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O CD de cada escola deve procurar uma ligação com um Centro de Saúde ou uma

Equipa de Saúde Mental, de modo a assegurar o envio urgente e eficaz dos

adolescentes em crise. Não basta enviar burocraticamente, pois sabemos que em

Portugal o peso e a lentidão dos serviços administrativos torna inviável uma resposta

rápida.

•É necessário articular com alguém que se conhece e que assegure à escola um

atendimento personalizado e com experiência no campo.

A depressão grave e o possível risco de suicídio num adolescente na escola podem

ser detectados a partir de uma constelação de factores e nunca após uma única

observação. Alguns destes sinais são inespecíficos, e só o seu conjunto e

permanência temporal podem constituir alarme.

Aqui vão os mais significativos:

- persistente absentismo escolar, não habitual no aluno em questão;

- quebra importante do rendimento escolar, sobretudo se acompanhada de angústia e

tentativas fracassadas de melhoria dos resultados;

- mudança brusca no relacionamento interpessoal, com isolamento extremo, ou pelo

contrário busca de conflitos e atitudes disruptivas persistentes;

- rupturas afectivas, quer familiares quer com namorado(a) (impressiona verificar como

tantos pais e professores têm uma atitude paternalista e sobranceira face às relações

afectivas dos adolescentes, designando-as por namoricos e diariamente

subvalorizando a sua importância no desenvolvimento juvenil);

- doenças físicas graves, quer no próprio quer em pessoas importantes do seu

universo relacional; mortes recentes, sobretudo por suicídio;

- sinais de depressão, por vezes indirectos: negligência não habitual com a roupa e

com a higiene, referência a insónia persistente, abuso de álcool e drogas, fugas de

casa, comportamentos de risco, material escrito ou expressão artística que revele

preocupação com temas como a morte e o suicídio;

- verbalização de queixas depressivas ou ameaças de atentar contra a própria vida,

directamente: "não aguento mais, tenho vontade de morrer" ou "já não te maçarei

muito tempo mais", ou de uma forma mais indirecta "Beltrano suicidou-se. Como eu o

compreendo!", "Estou de acordo com os filósofos que diziam que a vida não tinha

sentido", etc.

Perante a verificação destes sinais de alarme, o professor deve estabelecer com o

aluno em questão uma abordagem individual, discreta e empática, procurando mostrar

a sua preocupação sem dramatismo, e estabelecendo a ponte para novos encontros.

Quem não sentir esta disponibilidade interior deve rapidamente assinalar estes

comportamentos ao Director de Turma – nestes assuntos não se pode fingir um

interesse que não existe ou adiar a resposta.

A avaliação correcta da situação por parte do professor facilita a posterior

intervenção do técnico de saúde e fornece ao aluno uma atmosfera de segurança que

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pode ser decisiva. O docente, contudo, não dever fazer tudo sozinho. É importante

partilhar o que está a acontecer com um número restrito de colegas (ou com o

psicólogo da escola, se o houver), de modo a ser definido, para aquela situação, o

melhor meio de intervenção. Em relação ao aluno, é importante esclarecer desde o

início que ele vai ser ouvido sempre que necessário, mas o voto de segredo deve ser

recusado. Sabemos como os adolescentes suicidas frequentemente verbalizam as

suas ideias de morte e pedem para que se não diga nada, porque então será pior. Se

isto acontecer, o professor dever dizer que não aceita esta proposta. Em vez disso,

proporá conversas frequentes ou ajuda no encaminhamento para uma consulta. Não

pode haver contratos de absoluta confidencialidade numa questão de vida ou de morte

e é necessário desde o início partir deste pressuposto.

Que pode então fazer o professor? Em primeiro lugar, avaliar os sentimentos do

aluno, começando por exprimir preocupação e interesse, para em seguida o convidar

a partilhar os seus problemas. Se o aluno o questionar sobre se é secreta a conversa,

é importante não prometer a confidencialidade e dizer "Farei o que for possível" e ao

mesmo tempo frisar bem a disponibilidade mantida. É também útil dizer "compreendo

o que está a sentir", de modo a criar proximidade e facilitar a eventual verbalização de

questões mais delicadas. À medida que a entrevista avança, devem ser reformulados

alguns conteúdos (Se eu bem percebi, o que mais o preocupa é...), ao mesmo tempo

que se vai obtendo mais informação sem fazer demasiadas perguntas. Se o professor

intuir que o risco de suicídio é elevado, deve agir com ponderação, mas não evitar o

problema. Ninguém se mata por falar com alguém sobre isso, o risco de suicídio é pelo

contrário maior se a pessoa ficar sozinha com os seus problemas. Neste caso, é

preciso perguntar mesmo se a pessoa já pensou em suicidar-se e se tem algum plano

com esse objectivo. A situação é mais grave ainda se houve tentativas de suicídio

anteriores, se alguém na família se suicidou ou se houve algum comportamento

autodestrutivo num amigo ou colega. No relacionamento com o aluno, é importante

não desvalorizar ou desdramatizar excessivamente as suas queixas, nem moralizar ou

gerar mais culpabilidade. Se o professor foi escolhido como confidente, não pode dar a

entender que o assunto é pouco importante e que todos os jovens passam por essas

ideias – é preciso apoiar sem criticar, estimular sem esconder as dificuldades.

Merecem particular cuidado os alunos que verbalizem ideias de suicídio e sejam novos

na escola, estejam isolados ou manifestem traços de impulsividade, refiram ter sido

vítimas de abuso físico ou sexual e/ou consumam álcool e drogas, bem como aqueles

que de algum modo tenham sido envolvidos no suicídio ou na tentativa de suicídio de

alguém próximo.

Se a escola está localizada numa zona de alta taxa de suicídio (em Portugal, no

Alentejo e Algarve), a possibilidade da imitação do gesto suicida é maior. Estão

descritos momentos da vida das escolas em que aumentam as tentativas de suicídio,

quer em alunos quer em professores. Neste último caso, é importante informar o corpo

discente do que se está a passar e quem substitui o professor-vítima. A pior coisa que

pode suceder numa escola é ninguém falar da crise que a atravessa (seja de suicídio,

de violência ou de toxicodependência). Os meios de comunicação social, se por acaso

acorrem ao local, devem ser informados sem pormenores sensacionalistas, sem

referência aos nomes em causa e com notícia dos locais de tratamento. A informação

deve ficar centralizada num membro do CD para evitar dados contraditórios.

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Um professor ou um pai podem ainda ser procurados por um jovem confidente do

plano suicida de um colega ou amigo. Sabemos, aliás, que a maioria dos jovens

escolhe um companheiro da mesma idade para desabafar sobre as suas ideias de

morte, sendo mais raras as conversas com adultos. Devemos então alertar os alunos

para essa possibilidade e ajudá-los a lidar com a situação, sobretudo em zonas ou

momentos de maior risco.

É necessário esclarecer os estudantes de que é preciso ouvir e tomar a sério o

colega, sem prometer segredo. Se a situação for muito urgente, o jovem em risco não

pode ser deixado sozinho e deve ser encaminhado rapidamente para uma consulta. É

preciso também esclarecer que o período de alta letalidade (momento em que o risco

de morte é elevado) é um tempo relativamente curto e que, se aguentarmos a crise, a

situação pode melhorar provisoriamente até se encontrar uma ajuda mais definitiva.

Perante uma tentativa de suicídio na escola, os estudantes não devem ter medo de

falar e as suas dúvidas devem ser esclarecidas pelos professores. A terrível e

pejorativa expressão foi para chamar a atenção, utilizada perante uma crise

autodestrutiva, deve ser banida do quotidiano escolar.

Tenho encontrado muitos estudantes preocupados com questões de lealdade face ao

problema do suicídio. Dizem-me nada poder fazer porque o amigo em risco assim

pediu. Costumo responder que a lealdade é um valor importante, mas o valor da vida

ainda é maior. O que é essencial é criar proximidade com a pessoa que pensa matar-

se e, se for necessário, não a deixar ficar sozinha. Depois é preciso combinar a ajuda.

No meu livro Ninguém Morre Sozinho pormenorizei a importância da família na

prevenção do suicídio adolescente. Apenas considero importante dizer aqui que a

conduta dos pais deve ser semelhante à dos professores. Se um filho diz que não quer

viver, não se pode brincar ou ignorar tal frase por um só instante. É preciso ficar

próximo dessa pessoa, reforçar os aspectos positivos que lhe conhecemos e dizer-lhe

que há hoje consultas de atendimento rápido para esses problemas (Serviços de

Urgência, Núcleo de Estudos do Suicídio do Hospital de Santa Maria). Na questão do

suicídio mais vale pecar por excesso do que por defeito, e todas as tentativas de

suicídio adolescente devem ser avaliadas sob o ponto de vista psicológico.

Existem outras situações ligadas à Saúde Mental que inquietam pais e professores.

Estão neste caso os problemas ligados à toxicodependência. Não sendo um

especialista no assunto, parece-me que a questão da droga suscita alguma

preocupação. Muitos estudantes experimentam substâncias, frequentemente por

curiosidade, às vezes por desafio. Em quase todos parece haver quebras importantes

da auto-estima, que facilitam a procura rápida de soluções mágicas para o mal-estar.

A prevenção deve começar em casa e na família, através da melhoria da

comunicação, da proximidade e do reforço positivo dos comportamentos dos filhos. A

escola deve continuar esse importantíssimo trabalho preventivo (6), através de debates

sobre o assunto e com planificação de acções junto dos alunos e professores, de uma

6 Para desenvolvimento deste tema, consultar as publicações do Programa de Educação para a Saúde

(PES), Ministério da Educação e o livro A Prevenção das Toxicodependências, de Maria Nazaré Baptista.

Lisboa, Texto Editora, 1995.

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forma organizada, na qual a discussão de atitudes a tomar ocupe lugar preponderante.

Impressionou-me detectar nas escolas um permanente clima de suspeição face a

alguns comportamentos ligados (?) aos consumos tóxicos, sem que se tomem

medidas para fazer face ao problema. A droga não acaba na escola só porque há mais

polícia lá fora ou pelo facto de os estudantes consumidores serem castigados ou

enviados para outros estabelecimentos de ensino. Aqui, como noutras questões, é

essencial promover a discussão livre e aberta sobre o problema e respeitar a

privacidade dos eventuais consumidores, que devem ser ajudados em privado e

encaminhados para um apoio especializado. Mais uma vez é importante que a escola

se articule com um serviço de atendimento com experiência em toxicodependência, de

modo a que os seus alunos sejam rapidamente atendidos e ajudados nas suas

dificuldades. No panorama actual da luta contra as dependências no nosso país, não é

fácil conseguir este objectivo.

Escasseiam as consultas e nas comunidades terapêuticas proliferam curas rápidas

de credibilidade científica muito duvidosa. Por isso é necessário que o CD tenha

informações seguras sobre os serviços em questão e os Directores de Turma tenham

alguma disponibilidade para os conhecer mais de perto. A existência de professores-

operadores, no âmbito do PES, sediados na escola e em estreita colaboração com os

seus órgãos, facilita todo o trabalho de prevenção primária e secundária.

Os pais devem compreender também que a escola não pode fazer tudo. Assisto a

reuniões com encarregados de educação que solicitam o fim da droga na escola,

através de simples medidas de controlo. Quem trabalha num estabelecimento de

ensino sabe bem que a vigilância não pode ser a única medida. Temos de

compreender cada vez melhor os mecanismos internos que levam a que alguns

adolescentes aceitem a droga e outros a recusem, assim como precisamos de

modificar as atitudes de todos em relação ao problema. A escola pode ser um

importante local onde a mudança de mentalidades face a este problema encontre o

início do longo caminho que é necessário percorrer.

Professores: consumidores de árvores

Escola C+S no centro da cidade, região ribatejana, Junho de 1995. População de

alunos sobretudo da classe média e baixa. Edifício bem conservado, com sala

polivalente ampla, onde muitos alunos conversam ou jogam pingue-pongue. Circulo

pelo pátio e pela Sala dos Alunos antes de me dirigir ao Conselho Directivo. Eu e a

minha colega Nazaré Cristina Santos (NS) somos recebidos por uma professora e pela

psicóloga, os verdadeiros entusiastas da iniciativa, com o apoio discreto do Conselho

Directivo. No caminho sou abordado por uma estudante que tinha lido os meus livros e

ambicionava ser psiquiatra. Dou aquela resposta parva que é uma profissão de grande

desgaste, mas consigo mesmo assim manter o diálogo e encorajá-la.

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Tínhamos combinado por fax um debate com os professores que o desejassem, já

que estávamos no fim do ano escolar e poderia ser interessante fazer um balanço e

preparar o recomeço das aulas. Entrámos sem demora num anfiteatro um pouco

apertado para tantos professores presentes. Dispunham-se em pequenos grupos,

alguns inclinavam-se e falavam com os colegas das filas de trás, outros consultavam

dossiers com ar cansado. Fomos apresentados em tom entusiástico, o Professor

Daniel Sampaio e a Dr.ª Cristina Nazaré, o que me fez pensar na minha mania de

chamar Nazaré Cristina e não Nazaré Santos, como toda a gente.

Resolvi fazer uma introdução que foi mais ou menos assim:

D. S. - Obrigado pelo convite e pela vossa presença. Vamos ter algum tempo para

falar sobre a escola, por isso queria lançar para já apenas dois temas: a importância

da coesão entre os professores a propósito das normas na escola e a diversidade dos

estabelecimentos de ensino. Começo por este ponto, para dizer que todas as escolas

são diferentes. Mesmo aquelas que estão em locais próximos e que recebem alunos

com proveniências sociais, culturais, semelhantes, podem ser bem distintas umas das

outras. Na minha opinião, isto deve-se sobretudo ao modo como as escolas se

organizam, porque a escola é uma organização.

Então será fundamental percebermos cada vez melhor como vamos trabalhar no

sentido de tornar mais racional, mais afectiva e mais gratificante a organização da

escola. Não poderemos ficar sempre à espera do Ministério ou a acreditar que

melhores dias virão, sem fazer nada no sentido da mudança.

Quanto às normas, espanta-me verificar que há muito poucas escolas do 2º e 3º

Ciclo Básico ou Secundárias que tenham um regulamento interno, como aliás vem

previsto na Lei, no decreto de 1989 sobre a autonomia das escolas. Aquelas que

conseguiram parar um pouco e elaborar algumas regras internas, ouvidos professores,

alunos e pais, vão a pouco e pouco construindo um clima de entendimento afectivo e

relacional que previne muitas situações difíceis.

Lembro-me sempre, a propósito das normas, do modo como os professores lidam

com a questão das pastilhas elásticas e dos bonés. Sabem que em Lisboa -

provavelmente aqui também - cada vez temos mais adolescentes de boné, sobretudo

com a pala virada para trás. Vejo professores que acham graça, outros fingem não

ver, alguns mandam tirar dentro da sala de aula e outros ainda entendem que só

devem permitir às raparigas, numa discriminação sexista fora de moda nos anos

noventa. Com as pastilhas ainda é mais curioso. Aprendi numa reunião de professores

que havia pelo menos cinco maneiras diferentes de lidar com as pastilhas elásticas

dos alunos. Uma professora mais idosa disse-me que não permitia, porque os alunos

precisavam de estar prontos a falar e era má educação falar com a boca cheia. Uma

colega respondeu que a escola tinha que garantir a privacidade do aluno e o que

estava dentro da boca era do foro íntimo, logo jamais faria qualquer comentário.

Retorquiu uma terceira que tudo dependia do modo de mascar a chiclete e por isso

tinha de proibir quando mascavam provocantemente. Gerou-se uma discussão

barulhenta, com um professor a perguntar como se podia definir o mascar provocante

e a autora da expressão a exemplificar, de olho vesgo sobre um maxilar torcido, ao

mesmo tempo que dava estalos com a língua. Tentei recuperar a liderança da reunião

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com um elevar de voz, quando um professor da linha compreensiva disse que era tudo

um problema do stress, por isso ele não permitia no dia-a-dia da escola, mas

autorizava nos testes "porque aí sim, estão nervosos e precisam descontrair".

Quando eu tentava desesperadamente mudar de assunto, surge a quinta opinião,

lançada com vigor por uma professora sanitarista: "É tudo um problema de saúde

física, não tem nada a ver com o stress. Eu só deixo mascar depois do almoço, para

que a pastilha não estrague os dentes! Noutras horas proíbo. E além disso recomendo

sempre sem açúcar!"

Se falo deste pequeno episódio, que vejo provocou o vosso riso, é porque ele

encerra uma contradição permanente entre os professores que diminui a sua

capacidade de actuação e permite, ou encoraja, atitudes mais provocatórias dos

alunos. Os jovens testam frequentemente os limites, para verem até onde podem ir.

Se não há limites, se há clivagens dentro do corpo docente, com cada um a definir a

seu modo o que deve ser dito, não admira que os alunos queiram ir mais além. O

mesmo se poderia dizer de outras situações em que os procedimentos não são

convergentes, como no caso do regime de faltas disciplinares, na importância dada

aos toques de entrada e de saída, na marcação cuidada ou displicente dos testes...

Não estou a defender que todos os professores devam actuar da mesma maneira,

sempre com as mesmas regras, de modo a tentarem ter alunos de bibinho às riscas!

Nada é mais importante do que a liberdade e a criatividade do docente na sala de

aula! Estou apenas a querer dizer que tem de haver um entendimento mínimo sobre o

que é essencial dizer aos alunos sobre normas gerais de comportamento e

organização da escola, jamais sendo possível funcionar bem se as atitudes a exigir

aos alunos não tiverem consistência. Em cada momento é preciso reflectir, tentar

novas estratégias, ouvir os alunos e as suas famílias, estar atento ao contexto onde a

escola funciona.

É difícil ser professor hoje sem um profundo conhecimento das características da

juventude actual, sem compreender que não é possível apenas dar aulas do modo

tradicional, de cima para baixo, como se aprendeu nas nossas velhas Faculdades.

Enfim, já me alonguei mais do que tinha previsto, é altura de generalizarmos a

discussão.

Debate com os professores

(extractos retirados da gravação)

UMA PROFESSORA - Quando falou das cinco respostas que foram dadas à questão

da pastilha elástica, como é evidente estou de acordo com uma delas, eu sou de facto

pelo não consentimento, só que me parece que em relação à pastilha elástica, como a

outras coisas, nós não devemos só proibir. Falta uma coisa, que é explicar, se calhar

até a explicação que eu arranjo é uma que se prende com a formação que tive. Tenho

quase 50 anos, tenho vinte e tal anos de ensino, é que me parece que muitas coisas

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que se fazem hoje na sociedade porque nós não as explicamos ainda que seja

procurando uma lógica para o não consentimento, por exemplo quando os meus

alunos aparecem com pastilha elástica, eu não digo só "nada de pastilha elástica",

explico que aprendi que as pessoas quando falam umas com as outras, se estão a

comer mastigam, engolem para poderem falar, para que enfim a sua participação seja

melhor, para que se possa ouvir o que estão a dizer. Ligo aquilo a uma regra que me

foi ensinada, e a aula é um espaço de diálogo, logo se o outro está a mastigar eu até

posso não o entender. Sinceramente não sou pela pastilha elástica, tenho ouvido dizer

que é prejudicial para a saúde, mas às vezes eu até permito, pela lógica até tenho de

aceitar, é um exercício escrito, o aluno à partida nem me vai perguntar nada...

D. S. - Portanto aceita nos testes (risos).

A MESMA PROFESSORA -... Os meus alunos já sabem que não, mas admitia que

outro aceitasse, mas sou de facto é pelo diálogo e pela explicação das coisas, e há

também uma coisa que eu também acho, e agora me pareceu que mais uma vez eu

não estava errada, é a história do não permitir pequenas coisas... quer dizer, o

indivíduo hoje rouba um livro, ninguém chamou a atenção para o facto, ninguém o

penalizou, embora tivessem tido conhecimento do facto, amanhã está a roubar um

automóvel, portanto eu insisto que as coisas devem ser explicadas.

UM PROFESSOR - Gostava de discutir a importância que o professor tem a moldar

personalidades e a construir pessoas (isto é uma discussão que tenho já há alguns

anos com colegas meus, até nos temos engalfinhado algumas vezes, no bom sentido,

nós não somos violentos), e é a questão de se saber até que ponto temos de aceitar a

nossa posição de criador de personalidade ou desempenhar a nossa função de

técnicos de educação. Penso que é inegável, quer queiramos quer não, deixamos

marcas nos miúdos, agora a minha posição pode ser diferente, as marcas que eu vou

deixar vão existir na mesma, mas eu posso assumir posições diferentes, posso

assumir uma posição na sala sabendo que aquilo que estou a dizer, aquilo que eu sou

e aquilo que eu sinto, vai marcar e moldar as crianças que tenho; ou então posso,

sabendo na mesma que aquilo que eu vou dizer vai marcar, mas assumir uma posição

de tentar passar o mais despercebido possível. Então aquilo que sair já não é da

minha responsabilidade ou não foi por vontade minha...

D. S. - Qual é que escolhe? já falámos de exemplos.

PROFESSOR - Acho que sim, que o professor, por isso é que eu sou professor, não

é por outra coisa, o professor marca e tem de marcar, tem de construir, moldar, e tem

de mexer e a grande magia de ser professor é essa. Desconfio que não há mais

nenhuma profissão como a nossa em termos de construir o presente e o futuro, o

futuro irá ser aquilo que nós fazemos nas aulas. Os miúdos não estão com pachorra

para me estarem a ouvir falar das minhas convicções, das minhas emoções, eu sou

professor de Português, se calhar os miúdos querem que eu leia um poema, alguns

deles querem mesmo que eu leia um poema e que lhes explique e chegue aí e pare,

porque a minha função para eles é ser técnico de informação, ou técnico de educação,

que passa conhecimentos, mas que fica ali. Se calhar há outros que não, que

pretendem usufruir do professor também a emoção da leitura, o gosto do poema... Às

vezes a nós professores é pedido que ajamos como técnicos que passam a

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informação e outras vezes nos é pedido que desenvolvamos maneiras de ser,

maneiras de estar, etc., muitas vezes é preciso parar para pensar e trazer os miúdos

para reflectir na violência, na indisciplina, estava a pensar nas turmas que tenho e se

calhar devíamos ter feito isso este ano, pelo menos numa turma. Mas a verdade é que

se eu quiser responsabilizar os alunos e se os quiser trazer para problemas, para a

discussão da violência ou da indisciplina, eu tenho de estar à partida aberto para

aceitar aquilo que me vão dizer, e aquilo que uma turma me vai dizer pode ser

completamente diferente do que outra turma me vai dizer. Isso pressupõe que eu

possa ter hipoteticamente 20 regulamentos internos dentro de uma escola, porque eu

posso ter uma turma que me diz mais ou menos assim (e já não vou aos exemplos

concretos, vou à atitude na sala), em que eles me dizem: «Acho que nós devemos ser

responsabilizados, mas nós não devemos ser controlados na aula, devemos estar

mais ou menos como queremos, como nos apetece, e se a mim me apetece estar a

fazer um desenho enquanto estou a ouvir o professor acho que devo estar a fazer o

desenho». Isto é uma conduta, uma maneira de ser, uma maneira de ver as aulas, eu

vou para outra turma e eles dizem-me «por uma questão de imaturidade da nossa

parte temos de ser guiados, e se nós estamos a fazer desenhos temos de ser

chamados à atenção». São duas perspectivas completamente opostas, díspares e

provavelmente incompatíveis dentro da mesma escola, dentro do mesmo ano, e eu

não sei se isto depois não cria situações complicadas de gestão e de funcionamento

da própria escola...

D. S. - Há duas questões, vamos começar pela primeira. Achei graça à sua

expressão técnico de educação, um técnico de educação no contexto actual da nossa

adolescência, da nossa organização escolar, não pode ser um gerente de

supermercado de aulas. Um técnico de educação tem de estar extremamente atento

às suas atitudes como pessoa e tem também de estar extremamente atento às

atitudes dos alunos, portanto tem de ter alguma atenção à maneira como vai moldar

ou não moldar os comportamentos. Acho que cada vez vai ser mais assim, cada vez

aquilo que vai ser pedido aos professores é que estejam muito atentos às atitudes e

possam ter uma acção nessa linha. Sou muito a favor do técnico de educação, se

quiser no sentido amplo - um individuo que está preocupado no fundo com os valores

que transmite, porque um professor transmite valores. Se repararem, os alunos dos

primeiros tempos das aulas estão extremamente atentos a tudo o que vocês dizem,

como estão, como estão vestidos, como falam, etc. ...

PROFESSOR QUE FALOU ANTERIORMENTE (interrompendo) – Por estar a dizer

isso agora faz-me lembrar uma das primeiras coisas que disse, que foi a

inconsistência normativa, um problema para a violência e indisciplina nas aulas. Vou

dar um exemplo concreto. Hipoteticamente, se eu for ateu, vou tentar transmitir os

meus valores de ateísmo, mas posso ter outros professores, colegas de Conselho de

Turma, que sejam crentes e vão querer transmitir os seus valores de crença, de fé.

Isto não provoca nos alunos alguma inconsistência normativa?

OUTRA PROFESSORA - Penso que não deves falar disso...

D. S. - Acho que o professor tem de se dar como pessoa e depois depende do que

cada um quer transmitir como pessoa. Não é preciso irmos dizer qual a nossa crença

religiosa, o nosso clube de futebol... agora há um aspecto importante: se somos

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questionados sobre isso não nos devemos esconder, os alunos podem-nos fazer

perguntas directas e aí devemos dar alguma coisa de nós com os limites do bom

senso. Eles às vezes perguntam o «Stôr é casado, tem filhos, tem namorada», às

vezes dizem «Ai! O Stôr Francisco casou, o Stôr de Francês anda a namorar com a

Stôra não sei de quê». São histórias que eles me contam, dizem que estavam a

pensar que o Stôr devia ser solteiro, mas depois viam-no ir esperar a Stôra de não sei

quê à saída da aula! Falam destas coisas, significa que eles estão atentos à vossa

dimensão humana, ao que são como pessoas. Com alunos de 13/14/15 anos é

extremamente importante aquilo que transmitem como pessoas! Agora é evidente que

há um certo limite, que é o da reserva natural da nossa própria intimidade, que não

deve ser devassada. Queria pegar agora no problema das regras, porque acho que

tocou num ponto essencial. Quando se está a falar no regulamento interno da escola

não se está de maneira nenhuma a querer limitar a criatividade e a margem de

manobra do professor na sala de aula.

Não podemos legislar sobre tudo, se nós legislamos sobre tudo e fazemos um

regulamento interno enormíssimo ou fazemos vários regulamentos internos, como

estava a dizer, o professor fica tolhido na sua criatividade, na maneira como tem de

actuar! Quando estava a pensar no regulamento da escola eram normas gerais muito

simples sobre funcionamento dos toques, questões gerais de disciplina, os horários, o

papel da associação de pais, o papel da associação de estudantes. Dentro da escola

há muitas turmas e muitas salas de aula e se calhar há uma infinidade de pequenas

regras que deveriam ficar contidas dentro deste esquema geral, mas que podem ter

muitas configurações. A mim não me repugna nada que numa turma tenham uma

estratégia completamente diferente de outra, acho isso completamente adequado,

desde que tenham o mínimo de consistência dentro da escola. Não há dúvida de que

as turmas são diferentes, dentro de cada turma há uma enorme diversidade individual

dos alunos, portanto o professor tem de estar atento a isso e tem que funcionar de

modo diferente. Os alunos contam isso o “Stôr” naquela turma fez não sei quê, na

nossa turma não faz, para eles isso faz-lhes confusão, mas pode ser importante que o

professor funcione de modo diferente em cada turma, porque há alunos que são mais

interessados numas coisas, outros são mais participativos. Não podemos agora

pensar que vamos ter um protocolo de funcionamento da escola, que os professores

são autómatos e que vão seguir à risca esse protocolo. O que acho importante é que

os professores duma turma discutam entre si determinado tipo de funcionamentos

dessa turma.

Concordará comigo que isso falta muitas vezes aos professores, reunirem-se

informalmente e dizerem - está-se a passar isto na aula de Português, está-se a

passar isto na aula de Matemática, como é que estás a fazer, como está a lidar com a

situação. Se os professores conseguirem fazer isto, então para aquela turma há uma

estratégia comum de funcionamento, que vai melhorar a capacidade de resposta do

professor dentro do quadro geral de funcionamento da escola. Quando eu falava no

regulamento, falava de um quadro de referência para todos os professores, que tem a

ver com o funcionamento da escola em si. Depois acho que cada professor, na sua

sala de aula, deve ter uma margem de manobra que lhe permita actuar junto dos

alunos. Há sempre uma margem pessoal de actividade do professor que tem de ser

um pouco deixada à sua experiência, à sua criatividade.

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N. S. - Estão todos preocupados no sentido de eu vou servir como modelo, no fundo

eles vão olhar para mim. Mas há aspectos que devem ser preservados, são coisas

íntimas que fazem parte de nós e que não vamos expor; mas não se deve ter receio

de se dar de corpo inteiro, eu sou assim, estas são as minhas convicções, porque os

jovens vão ser de facto como uma esponja, nesta fase inicial. Estão com as antenas

completamente atentas, estão a captar tudo, mas vão ser capazes de fazer uma

filtragem e vão conseguir encontrar a sua própria resposta. O mais importante, parece-

me, é não ficarmos amedrontados no sentido de termos de ser muito bons, de ser

modelos, se estamos também muito convictos de nós isso transparece e eles captam

isso muito bem. Ao mesmo tempo precisamos dialogar, eles não nos procuram, mas

esta possibilidade de dialogar com eles mantendo as suas convicções é importante.

Não tenha receio de eles fazerem uma colagem, eles acabam por não a fazer, irão

fazer muitas colagens pelo menos nos quartos, vão buscar muitas coisas onde se irão

encontrar a si próprios. Agora é muito melhor ser assim, do que estarmos a ser muito

neutrais e com muito medo, aí perdemos a hipótese de eles terem qualquer coisa,

continuo a achar que é básico o calor da relação afectiva, passa também por os

castigar, mas é crucial estar de corpo inteiro!

OUTRA INTERVENÇÃO - Eu posso achar, como alguém que está do lado de fora a

observar, que o papel dos pais se apagou porque estão pouco tempo com os filhos.

Nós dizemos a escola está a assumir o papel da 2ª casa, segundo a sua observação,

nalguns casos está já como a 1ª casa, os professores estão a assumir a posição dos

pais. A minha dúvida também é neste sentido, se eles estão dispostos a olhar o

professor, para que o professor assuma uma posição não só de administrador de

conhecimentos como também de técnico de educação.

D. S. - Acho que sim, acho que eles estão à procura, acho que estamos a viver um

momento de indefinição em que eles sentem os seus pais muito inseguros, bastante

pouco presentes de facto, muito assoberbados com o trabalho. As crianças e os

adolescentes, contudo, têm uma enorme necessidade de se aproximar dos adultos,

acho que isto é uma regra de ouro! A maioria das pessoas não pensa assim, julga que

os jovens não querem falar com os adultos, que não vale a pena o diálogo e de facto

não é assim. O contacto que temos tido com os alunos mostra que a queixa é que os

adultos não têm tempo para eles, isto é completamente constante do Norte ao Sul do

País, em todas as classes sociais. A grande queixa é essa, os pais não estão

disponíveis para nós, os professores estão ocupados com os programas e com as

avaliações e não têm tempo para nós. Evidentemente que eles estão à procura e há

bocado estive muito de acordo consigo, eles estão ainda a ver o que é que vai

acontecer e às vezes querem ficar só com o poema, mas se tiver tempo e se puder

avançar um pouco mais, vai ver que alguns querem ir para além do poema e interagir

consigo. Isto vai ser sempre assim, pegando na sua expressão, ir para além do

poema, trabalhar o poema e falar consigo, isso é uma experiência que eu tenho, são

pequenos momentos fundamentais para a adolescência de hoje, porque eles têm

poucos interlocutores.

OUTRA INTERVENÇÃO - Eu acho que isto se prende com aquilo que o meu colega

estava a dizer, sinto que o perigo poderá residir entre aquilo que é relativo e aquilo que

eu acho que continua a ser absoluto, porque penso que eu fazer passar como um

valor absoluto aquilo que é uma convicção pessoal que tenha a ver com o futebol, eu

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sou do Benfica, os meus alunos são do Sporting, às vezes temos discussões

interessantíssimas, aquilo que é do futebol, que é da religião, que é da política ou seja

do que for, é aquilo que eu considero que é relativo e é bom. Procuro que os miúdos

fiquem a saber qual é a diferença entre o relativo e o absoluto, qualquer um de nós,

independentemente da crença, do clube e da cor, deve fazer passar aquilo que

continuo a considerar os valores absolutos, porque nós caímos numa espécie de

relativizar tudo e não sei se será aí que reside a tal crise de valores de que se fala. Há

valores que eu considero absolutos, o respeito pelo outro, o esperar a sua vez, o ouvir,

a justiça, o não fazer juízos de valor acerca do outro, penso que é tudo isto que cada

um de nós deve fazer passar para os miúdos, porque no fundo o que eles precisam é

de segurança, de afectividade da nossa parte.

D. S. - Estamos a chegar a um ponto importante que é assim: os professores podem

veicular algum tipo de normas e de valores que são universais, para próprio

funcionamento da sociedade democrática. Depois há uma latitude que depende da

maneira como cada um vai transmitir isso ou não. Avançando só um bocadinho em

relação àquilo que disse, estar a dizer aos seus alunos que é do Benfica, isso não é

um valor absoluto, eu sou do Sporting, portanto já estaríamos aqui com valores

diferentes. O ponto importante é que se calhar alguma vez como professora achou

que era importante mostrar que era do Benfica, sujeitando-se a haver pessoas que

são doutros clubes, não é?...

A PROFESSORA - Exacto, sempre na perspectiva da tolerância, de aceitarem o

outro como é.

D. S. - Mas ao mesmo tempo aceitando a diversidade, porque temos regras e valores

que são de facto muito universais, não sei se são absolutos mas são universais. Há

um grande consenso sobre eles mas depois temos coisas que são da nossa

intimidade, da nossa escolha, da nossa preferência, que muitas vezes os alunos têm

um enorme interesse em saber. Isto é que é a parte interessante, porque se calhar

eles percebem que os professores se podem entender sobre valores universais, mas

depois gostam de saber coisas, gostam de saber que o professor tem uma filha,

gostam de saber que tem um carro, já repararam que eles se interessam pelos carros,

às vezes é para fazerem uns risquinhos, mas não só.

OUTRA INTERVENÇÃO DUMA PROFESSORA - Penso que um dos problemas com

que hoje nos debatemos é o sentimento de que nós, professores, conseguimos

estreitar cada vez mais os laços afectivos com os nossos alunos. O que penso que

falha, e aí tem de haver uma contabilização de valores, é o distanciamento cada vez

maior desses laços entre os pais e os filhos. Há actuações que nos indignam e quase

que parece que não é real. Tenho uma turma do 10º ano em que uma aluna é

excelente em termos de notas, mas é uma aluna extremamente perturbadora na sala

de aula, porque ri muito, brinca e perturba os outros alunos, não ultrapassando os

limites da boa educação. É uma aluna agitadora e os colegas que têm menor

aproveitamento perdem um pouco com isso, eu entendi que devia aproximar-me do

pai, devia chamá-lo como Directora de Turma e qual foi o meu espanto, quando o pai

ficou muito indignado, por que é que eu o tinha chamado, não encontrou motivo para

isso, porque até preferia ter sido chamado se ela tivesse sido malcriada e não só por

estar a rir nas aulas. Fiquei estupefacta a olhar porque nem tive resposta! Ora eu

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tenho grande dificuldade em exigir a um aluno que tire o pé de cima da cadeira e que

não faça barulho a arrastar a cadeira quando se senta, porque possivelmente em casa

ninguém o vai repreender ou pelo menos orientar. Penso que somos mais um fio

condutor do que propriamente nós invocarmos muito sobre aquilo que somos e que

queremos que a geração seja. A grande falha é que tudo cai sobre nós, temos de ser,

temos de ser, temos de ser, eu penso que nós já somos muito, a família é que está a

ser cada vez menos!

D. S. - Não podemos esquecer que as associações de pais têm, apesar de tudo,

crescido, as associações de pais têm cerca de 20 anos, nasceram em 76, a primeira

lei sobre a associação data de 76. Verificamos que 20 anos em questões de educação

é muito pouco, embora se verifique que as associações de pais crescem, mas o

grande problema é que não está definido qual é o papel dos pais na escola. Os pais

começam a perceber que têm de fazer qualquer coisa na escola dos filhos e ainda há

muito pouca participação, Há associações de pais que são meia dúzia de carolas e a

maioria dos pais não aparecem! Alguns pais acham que têm de interferir na sala de

aula e dizer que a professora tal não ensina bem, outros não, mas a verdade é que há

problemas na escola que só podemos resolver em cooperação com a família, os pais

têm de sentir essa importância e perceber que a vinda deles é importante e que há um

mínimo de eficácia nisso.

PROFESSORA QUE TINHA FALADO ANTERIORMENTE - Não é bem

responsabilizar os pais, é tentar que se autoformem. Há qualquer coisa que falha

dentro da casa, dentro da família, nós aqui tentamos educar os miúdos dentro de

determinados valores, e em casa vai haver uma discórdia muito grande porque eles

não os vão encontrar em casa, se os meus pais não me obrigam, por que é que a

escola me vai obrigar? e por que é que terei de respeitar o outro se em casa ninguém

se respeita? Eu não sou nada conservadora, ainda sou muito nova para o ser, sou

mãe de 4 filhos, e uma das coisas que é regra à mesa, penso que a educação se faz à

mesa, foi o que os meus pais me transmitiram, ninguém sai da mesa sem pedir

autorização. Tenho uma filha com 16 anos que se sente indignada e diz-me: oh mãe,

parece que vivemos aqui há 50 anos atrás - e quando algum se esquece eu faço-o

voltar atrás, tem sido difícil vencer esta batalha, é um exemplo, porque acho que não

se é menos livre por perguntar ao pai ou à mãe se pode levantar-se depois de ter

comido a refeição.

D. S. - Chamo a atenção para outro problema que é importante, que é o da auto-

estima. Muitas das perturbações psicológicas da adolescência estão relacionadas com

a quebra da auto-estima, como por exemplo a depressão, a tentativa de suicídio e

mesmo de certa forma a toxicodependência. É também uma tarefa importante para

pais e professores poderem pensar um pouco na auto-estima dos jovens. O estímulo é

extremamente importante, muitas vezes conseguimos uma melhoria numa

determinada situação de um jovem puxando pelos lados positivos dele. Por exemplo,

recentemente, no Hospital de Santa Maria, acompanhámos um rapaz com insucesso

escolar e conseguimos algum progresso da situação escolar através da valorização de

um aspecto que ele tinha: que era um bom atleta de competição, corria, tinha prémios,

aspecto esse que aparentemente os pais não valorizavam nada.

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Os pais estavam centrados completamente na parte escolar, porque era uma família

que tinha muito a expectativa de que ele pudesse crescer socialmente, estando

realmente focados na escola não reparavam que o rapaz tinha ganho medalhas e

taças na competição de atletismo. Tentámos trabalhar um pouco com a família, o pai

começou a acompanhar o rapaz aos treinos, e às competições, porque ele ia sempre

só com os outros ou com os pais dos outros. Houve uma nítida melhoria na sua

performance escolar quando começou a ser valorizado pelos pais numa dimensão

muito importante para ele, porque não só mexia com o seu corpo, mas também

estimulava o contacto com outros através do desporto.

UMA PROFESSORA - Queria falar de um outro caso de um aluno que tinha e que

estava quase reprovado por excesso de faltas no final do 1º período. Um dia achei que

deveria ter uma conversa com ele fora do espaço de aula, no recreio estávamos a

falar e a certa altura disse-me que não devia falar com ele ali porque era um ex-

drogado, agora não era mas que eu poderia vir a ter problemas com isso. Respondi-

lhe que podia falar com quem quisesse naquele espaço do recreio, e naquela altura

passa uma colega minha e ele disse-me: Está a ver aquela senhora? Amanhã vai-lhe

perguntar qualquer coisa sobre mim. E no dia seguinte a colega abordou-me e disse-

me: Olha, ele foi meu aluno o ano passado, não vale a pena perderes tempo com ele,

é um drogado, acabou, não vale a pena. Na continuação da conversa com o rapaz

disse-lhe: "tu estás quase reprovado por faltas, vamos fazer aqui um acordo: se não

faltares mais até ao final do ano e te mostrares interessado, dou-te a passagem", e o

rapaz nunca mais faltou. Um dia veio ter comigo e disse-me: "Tenho problemas

militares, tenho de ir a Lisboa mas vou trazer um papelinho em como vou ao

recrutamento", "não vale a pena, eu acredito", e o rapaz lá veio com o papelinho e eu

não o quis receber, nem sequer era Directora de Turma para estar a receber aquilo.

Estava a fazer o estágio e o rapaz soube que eu ia ter uma aula assistida. Nesse dia

vai para a aula completamente diferente, andava às vezes um bocado sujo, naquele

dia vai de casaquinho e quando entrou na aula olhou para mim e fez-me um sinal de

que tudo ia correr bem o que, e parecendo que não, me deu uma certa força interior.

Durante a aula o rapaz quando eu pedia um voluntário para ler um texto oferecia-se

para o fazer, eu sabia que ele não ia tirar grande coisa do texto, pois sabia que ele

estava um pouco bloqueado, o certo é que lhe dei a palavra, conseguiu

desenvencilhar-se do texto e chegou ao fim do ano e passou. Esse rapaz namorava

uma rapariga que andava no 12º ano que o ajudou, saiu do mundo da droga,

matriculou-se no 11º ainda, mas foi tirar a carta de mota e no dia em que fica com a

carta, morre próximo de Torres Vedras, foi uma coisa que me chocou muito...

OUTRO PROFESSOR - Poderia contar muitos factos... um dia estava ali ao pé do

lago e um aluno diz-me: "o Stôr não se sente um pouco fora da lei?,” »eu fora da lei,

mas porquê, não estou a fazer nada de mal!", "Não é nesse sentido, é que fala mais

connosco do que os seus colegas, portanto é capaz de sentir um pouco fora da lei",

"não de maneira nenhuma, eu gosto de falar com vocês, é por isto que estou aqui!...".

Para terminar, vou só contar mais um caso aqui da escola. Uma rapariga que estava

na aula começou a chorar e vi que ela não estava bem. Disse-lhe no final da aula que

queria falar com ela, quando acabou a aula ela ficou e outra colega também queria

ficar e eu disse: não, a conversa é a dois, fazes favor de sair mas deixas a porta

aberta por causa das confusões. Então a rapariga esteve a dizer-me que a vida não

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fazia sentido, a mãe não a ouvia. "Então e tu não tens irmãs?", "tenho uma irmã mais

velha mas está em Lisboa, mas aqui na escola é que eu me sinto bem, passo o tempo

todo na escola", "mas tu estás a chorar porquê?", "estou um bocado aflita porque o

período ainda não veio (ela tem 16 anos), depois diz-me: "posso fazer-lhe uma

pergunta?, acha que o Durex é seguro?" e eu: "mas porquê?", "olhe porque eu e o

meu namorado usamos, ele até é meiguinho comigo, mas eu tenho medo da sida..."

Respondi-lhe: "não era a mim que devias perguntar-me isto, devias era perguntar à tua

mãe ou à tua irmã", "não mas eu consigo, tenho confiança e é por isso que lhe estou a

perguntar, se não, não lhe perguntava;" lá estive mais um pouco com a rapariga e há

dias ela veio ter comigo e diz-me: "olhe estou muito satisfeita, olhe, aquilo já veio e por

outro lado já fiz duas conquistas, deixei de fumar, deve-se ao meu namorado que não

fuma e não quer que eu fume, e por outro lado estive a pensar naquilo que me disse e

interrompemos o resto, porque eu acho que sou muito nova e depois fico velha muito

depressa.

Portanto acho que temos é de falar com eles e estar prontos para os escutar, porque

estamos muito preocupados com as provas globais e com o cumprimento dos

programas e esquecemos o resto, a vertente humana, que é tão importante!

D. S. - Acho que valeu a pena termos esperado para ouvir, porque as histórias foram

muito interessantes. Obrigado por as terem partilhado connosco, até porque vai um

pouco na direcção daquilo que temos estado a dizer: a organização da disponibilidade

do professor: Quando estamos disponibilizados por dentro arranjamos algum

bocadinho na confusão da nossa vida, dos horários das turmas, tudo isso, mas acho é

que há uma disponibilidade interior nalgumas pessoas, noutras não há, embora se

possa também ajudar as pessoas a ganhar um pouco essa disponibilidade, essencial

para o trabalho com os alunos em dificuldade.

OUTRA INTERVENÇÃO - Pegando um pouco no que já foi dito, nós, professores,

também estamos a precisar de um certo apoio e digo isto porque acho que todos

temos vontade de fazer as coisas da melhor forma, mas também temos consciência

de que não estamos a conseguir. A reforma está-nos a abanar e penso que a escola

não pode mais ser o que era quando nós fomos alunos. Isto prende-se muito com o

que se passa dentro da sala de aula, por exemplo, eu sou professora de Físico-

Químicas, a reviravolta nos programas que lecciono foi de tal maneira que acho que

foi muito boa, porque agora podemos ter aquelas aulas práticas que tinham sido

praticamente banidas duma disciplina como esta. Podemos trabalhar com os miúdos

de uma forma diferente e eu também gosto muito de pastilhas elásticas, adoro comer

e confesso aqui perante todos, quando estou a comer uma não a deito para o lixo pelo

facto de ir dar uma aula. Tenho alguma dificuldade em dizer aos alunos "deita a

pastilha para o lixo" - não posso fazer isso, não tenho autoridade para fazer isso,

porque já tive uma situação num liceu em Coimbra em que um aluno me respondeu -

só tiro a minha se a “Stôra” tirar a sua - e ele teve toda a razão embora eu não

estivesse a “mascar provocantemente”. Nós somos tão diferentes, estão a acontecer-

me coisas a nível das aulas todos os anos assim em catadupa, coisas novas, com que

eu nunca me tinha deparado e já dou aulas há 12 anos! Por exemplo, ontem tive de vir

chamá-los ao fim de 10 minutos de ter tocado para a entrada para virem fazer o teste,

isto é incrível, "por favor venham fazer o teste, vocês sabem que têm um teste", mas

depois enquanto eles faziam o teste pus-me a pensar: realmente o problema está em

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que exactamente à mesma turma, uma semana antes, tinha sido marcado um teste

doutra disciplina qualquer, ao qual a professora faltou, voltou a marcá-lo dois dias

depois e faltou outra vez. Eles entenderam aquilo como se os professores faltassem

sempre aos testes, o melhor é nós nem irmos e como não desci, eles não me viram

passar e pensaram mais outra que falta, eu fiquei profundamente magoada porque

geralmente não falto, sabem que, a minha atitude é um bocado diferente, mas o facto

onde eu quero chegar é que nós também estamos a precisar de muito apoio, porque

se a indisciplina nos alunos também é gerada pela nossa falta de coordenação de

atitudes, como vamos conseguir coordenar atitudes se nós próprios somos tão

diferentes?

D. S. - Eu acho que já tocou em áreas muito importantes, uma delas é a vossa

coordenação e a vossa comunicação. Têm de fazer um grande esforço no sentido de

se unirem para tentarem definir estratégias comuns como eu falei inicialmente. Outra

área importante, e uma coisa que faz confusão, é a razão por que os professores se

demitem um pouco, como deixaram durante tanto tempo a vossa imagem degradar-se

socialmente, porque na realidade a imagem que nos dão é do professor que falta aos

testes, não é a imagem do professor que vai buscar os alunos ao intervalo. Isso

dificulta extraordinariamente a actuação junto dos alunos e junto dos pais, porque a

imagem negativa que se criou na escola, particularmente em relação aos professores,

não favorece a melhoria da escola.

OUTRO PROFESSOR - A imagem que se tem do Mestre-Escola é um velhinho com

uma turma, fazia os testes sentado à secretária e depois ia para casa escrever

poemas. Não tinha que fazer provas globais, preencher sínteses descritivas, fazer

fichas com cruzinhas, passar relatórios, fazer 4 reuniões por ano para saber se o ano

pode ser repetido ou não; tinha tempo para se dedicar a si próprio e ao seu espaço. O

que sinto como professor, é que tenho de pensar no tempo para os papéis, para as

aulas, para o programa e tentar disponibilizar algum tempo para os alunos, mas

arrisco-me a deixar de ter qualquer tempo para mim. Acho que não chego a ter! Como

é que eu posso ter uma intervenção cultural na sociedade e tentar melhorar a imagem,

mostrar aquilo que eu sou para fora, se eu não tenho tempo? Estamos completamente

submersos, afogados em papéis brancos, não sei se o grupo da reciclagem do papel

tem de fazer alguma coisa, nós gastamos tanto papel que devíamos era plantar

florestas, pelo menos árvores, adoramos papel... somos os maiores consumidores de

árvores do mundo!

OUTRA PROFESSORA - Sem querer ofender ninguém, penso que a carreira dos

professores e a minha em certos aspectos tem alguns bloqueamentos, por exemplo,

conheço muitos professores que nunca faltam e não são os melhores professores.

Penso que o Ministério ou alguém se preocupa demasiado com certas funções que

não são científico-pedagógicas, são burocráticas, são os tais papéis! Vejo muito pouca

gente a preocupar-se com a qualidade de ensino dentro da sala de aula, temos de

saber fazer tudo, hoje sou uma excelente secretária, eu até nem redigia muito bem!

Tenho tido uma evolução extraordinária na escrita, não sei se a tive tão bem na

oralidade, mas na escrita tive, pois cada vez temos mais papéis para escrever que

nada têm a ver com a Geografia! É evidente que não podemos ser especialistas só

numa coisa, está tudo dentro do contexto que é a escola, mas há qualquer coisa aqui

que falha, nunca tive oportunidade de ir assistir a uma acção de Geografia, tenho

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acesso a acções de insucesso, acções de droga, são todas extremamente

importantes, mas dou aulas há 15 anos e só tenho um congresso de Geografia que é

em Barcelona e eu não tenho possibilidades, os 150 contos que ganho não dá para ir

fazer uma semana de férias para Barcelona para assistir ao congresso. Ninguém se

preocupa em formar cientificamente os professores ou actualizá-los!

D. S. - Não esperem que seja o Ministério a organizar a vossa formação, é preciso

auto-organizarem-se e poderem encontrar momentos de convívio. Este momento que

aqui tivemos foi muito agradável, pelo menos pela minha parte, espero que para vós

também. Não houve interferência do Ministério, foi esta vossa colega que escreveu,

portanto é preciso se calhar pensarem assim.

Adorei essa de consumir árvores, vai ficar histórica, nunca ninguém me tinha falado

nisso. Bom, por mim despeço-me, queres dizer alguma coisa à despedida?

N. S. - A professora Eulália, que nos costuma acompanhar mas hoje não está cá,

diria uma frase deste tipo: "a perspectiva pedagógica é um trabalho de bricolage", eu

deixava esta frase para pensarem, talvez as árvores não fossem tão abaixo, porque há

aqui um espaço para a bricolage de imaginação e criatividade. Este debate

demonstrou bem que não vos falta interesse e motivação. Como noutras escolas onde

temos ido, falta organização entre os professores e crença generalizada na mudança

necessária. É preciso que puxem os colegas mais desanimados que, mesmo sem o

quererem, se tornam obstáculo a quem quer alterar as coisas. Obrigado pela vossa

participação.

Escola C + S da mesma cidade (alunos do 3º ciclo do Básico).

Tarde do mesmo dia.

Debate com os alunos (extractos).

UMA ALUNA - Que pensam acerca de um pai que tem um filho toxicodependente,

deixa de lhe falar e acaba por expulsá-lo de casa?

D. S. - Quando um pai tem um filho toxicodependente, e as coisas estão em ruptura,

é preciso ver que a droga destrói uma família, causa tantos problemas em casa, no

entendimento entre as pessoas, nas zangas que provoca, no dinheiro que faz gastar,

nas tentativas de tratamento que não resultam, porque é muito difícil tratar um

toxicodependente. Já se gastou muito dinheiro, as pessoas estão esgotadas, às vezes

o pôr fora é a última solução, já não aguentam mais! A verdade é que quando uma

família põe um filho toxicodependente fora está a agravar o problema, a situação

torna-se muitas vezes pior, só que às vezes as pessoas já não aguentam mais! •

É preciso pensar no sofrimento da pessoa que tem a droga, mas também temos de

pensar no sofrimento dos pais e dos irmãos, porque houve uma série de problemas e

as pessoas começaram a dar-se o pior possível. Então a tendência é pensarem: se

pusermos esta pessoa lá fora o problema fica resolvido; muitas vezes não fica, mas é

a ideia que vem à cabeça das pessoas porque já não aguentam mais. A conclusão

que devemos tirar é que não se devem experimentar drogas, porque as drogas não

dão nada que nós não consigamos obter doutra forma. O prazer que a droga dá, a

satisfação durante um curto período, conseguimos obter doutra forma, podemos

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conseguir com os amigos, com a namorada, ouvindo música, muitas outras coisas que

dão o mesmo prazer no início e que se poder prolongar, ao passo que a droga só dá

prazer no início. Mais tarde as drogas deixam de satisfazer, cada vez mais é

necessário tomar uma dose maior e começam os graves problemas de que vocês

ouvem falar.

UMA ALUNA - É verdade que os homens preferem ter filhos rapazes?

D. S. – Há uma certa tendência para pensar que os homens gostam de ter filhos

rapazes e isso não é sempre assim. A ideia de ter um filho está ligada à ideia de

continuidade, e muitas vezes uma pessoa sente que continua mais com o mesmo

sexo, o pai quer ter um filho rapaz, a mãe quer ter uma menina, mas nem sempre é

assim, não achas, Nazaré?

N. S. - Todos nós gostamos da lei do menor esforço e os homens pensam que um

rapaz é muito mais simples, ir brincar jogando à bola do que estar a brincar com

bonecas se for uma rapariga, mas não penses que é sempre assim, as coisas estão a

mudar muito e há homens que já preferem ter filhas.

UMA ALUNA - Por que é que os rapazes têm mais tendência para o sexo do que as

raparigas?

D. S. - É uma pergunta importante, eu acho que é bom que os rapazes e raparigas

tenham muito, tendência para o amor, isso é que é importante, porque a minha ideia é

que o sexo é a manifestação do amor! O sexo deve estar tanto quanto possível ligado

ao amor:.. voltando ao problema, a educação que os rapazes têm é diferente, de uma

forma geral os pais e os amigos falam mais de sexo com os rapazes do que com as

raparigas, é habitual que o rapaz inicie a sua vida sexual mais cedo, cresce na ideia

que se tiver uma sexualidade muito avançada é um homem com um H grande,

portanto isso é um valor que está tradicionalmente ligado ao sexo masculino. Ora eu

penso que o sexo é tão importante para os rapazes como para as raparigas, é

exactamente igual, as necessidades são exactamente iguais.

UM ALUNO - Qual é o papel da religião na educação das crianças?

D. S. - Isso depende das famílias. Numa família religiosa é muito importante, porque

é um valor da família. Se a criança nasce num ambiente onde a religião é importante,

os pais devem transmitir esse valor aos filhos, porque ajuda o crescimento, e o

entendimento da família. Mas não esqueçam de que há famílias que não são

religiosas e são boas, isso depende de família para família e do modo como a família

se organiza.

UM ALUNO - Há a Associação de Pais, há a reunião de pais com os professores, por

que é que não nos pedem a nossa opinião?

RESPOSTA DO CONSELHO DIRECTIVO - Porque isso só a nível do ensino

secundário, no entanto vocês intervêm muitas vezes quando há conselhos

disciplinares, é uma situação ingrata mas no entanto podem intervir nessas alturas; e

não pensem que o vosso papel na escola não é fundamental, em relação à área

escola vocês sabem que a Matemática e o Português são essenciais e vocês não se

manifestam em relação a isto, porque há outras pessoas que fazem os programas e

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que definem quais as disciplinas a ter e as que são ou não fundamentais, ora a área

escola pela reforma actual é obrigatória para os alunos...

D. S. - Queria dizer uma coisa importante sobre a área escola. É que pode ser muito

gira, não pensem que é só uma maçada, já fui a muitas escolas onde os alunos

fizeram actividades muito interessantes na área escola, foram ver o que se passava na

terra, foram estudar várias coisas. Estas acções abrem a escola para o exterior e

tornam os dias diferentes.

UM ALUNO - Por que é, se aceitam as drogas como o álcool, o tabaco e o café e não

se aceitam as drogas como a heroína?

D. S. - As drogas que referiste são aceites socialmente. A sociedade organizou-se

para aceitar umas drogas e outras não e as drogas também são diferentes. O álcool e

a droga causam muitos problemas, como sabem, o tabaco é sempre desaconselhável

e o café em excesso pode ser prejudicial; mas só o álcool e as drogas tipo heroína

levam à desorganização da pessoa, que passa a centrar toda a sua vida na procura da

droga.

UM ALUNO - Por que razão os rapazes têm mais direitos que as raparigas?, a partir

dos 14/15 anos podem sair, fazer aquilo que eles quiserem...

N. S. - O que tu querias dizer é por que razão os pais permitem mais coisas aos

rapazes do que às raparigas, os pais não se importam que os rapazes cheguem umas

horas mais tarde, à medida que vão crescendo já podem ir até à discoteca, já têm a

chave de casa para quando chegam mais tarde. Em relação às raparigas há muitos

receios que os pais não têm em relação aos rapazes, no caso das raparigas têm por

exemplo muito medo de que elas possam engravidar...

Os rapazes são um bocado mais preparados para a força, para a coragem de

enfrentar as coisas, as raparigas são consideradas mais frágeis. Agora podem é tentar

falar com os pais, tentar arranjar uma maneira de negociar com os pais as saídas, que

os pais olhem para vocês e vejam que vocês estão a crescer, que começam a ser

mulherzinhas, que podem ter namorados que é alguém que gosta muito de vocês,

portanto isso é um trabalho vosso, falarem com os pais e tentarem que eles entendam

também as vossas posições, os rapazes têm mais sorte porque os pais não têm tantos

medos.

UM ALUNO - Acha o desenvolvimento das raparigas mais difícil do que o dos

rapazes?

D. S. - Penso que sim, não sei o que a Dr.ª Nazaré pensa disso, o desenvolvimento

das raparigas é mais difícil, uma das razões são estes medos de que temos vindo a

falar. Os rapazes têm mais liberdade, contactam com mais situações e vão resolvendo

os problemas, as raparigas têm situações por vezes mais difíceis, uma delas é da

gravidez muito cedo, como já falámos. E depois a sociedade é muito crítica em relação

às mulheres.

N. S. - Vou só dizer que as raparigas se desenvolvem mais depressa, o corpo

começa a ficar diferente e logo começam a pensar noutras coisas e já não lhes

apetece estar a brincar, mas vocês também chegam lá, não se assustem! Os pais têm

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mais medo em relação às raparigas porque a sensibilidade é diferente, está mais

inquieta com as mudanças que são mais rápidas nas raparigas do que nos rapazes.

UM ALUNO - Alguns casais, em vez de dialogarem, vivem sob a violência, esse tipo

de vida pode ser um trauma para as crianças e adolescentes. Quais as

consequências?

D. S. - Quando existe muita violência dentro de casa, violência a nível do casal, as

consequências são muito graves nos filhos. Sabemos que uma criança que viva num

ambiente de violência tem tendência a tornar-se mais tarde numa criança violenta,

além do sofrimento que lhe provoca a violência entre pai e mãe. A violência repete-se

na geração seguinte, por isso é muito importante nós ajudarmos os pais que têm

dificuldades.

Esses pais muitas vezes precisam de ajuda, às vezes é preferível esses pais

separarem-se do que continuarem um ambiente violento.

Não quer dizer que não possa haver uma zanga na família, não faz mal nenhum

haver uma zanga, as pessoas podem ficar zangadas uns dias mas depois fazem as

pazes, recuperam, o perigo é haver a violência mantida durante muito tempo.

UM ALUNO - Como é que eu posso ajudar os meus colegas que estão sempre na

bulha, como é que se pode impedir?

D. S. - Tocaste num ponto muito importante. Podes tentar perceber por que é que se

passam essas lutas, muitas vezes quando as escolas estão mais bem organizadas e

têm muito desporto, há menos bulha, quando há vários jogos nas escolas também há

menos bulha, portanto é preciso lutar para que na escola da cidade haja sítios onde os

jovens se possam entreter, fazendo actividades desportivas, musicais...

UM ALUNO - Os problemas em casa podem levar à toxicodependência?

N. S. - As coisas não se podem responder assim tão facilmente, é natural que vocês

achem que os pais são chatos, não vos deixam sair, etc., mas às vezes até vos

apetece que eles vos façam umas festas e vos dêem carinho, porque se os jovens se

isolam, se sentem que não há amor entre os pais e que não há possibilidade de falar,

aí sim, poder haver motivo para talvez experimentarem a droga. Mas é bom não

esquecer que há muitas razões para uma pessoa se tornar toxicodependente.

UM ALUNO - Por que razão é muito difícil largar as drogas?

D. S. - É muito difícil largar as drogas porque elas causam dependência, e a

dependência é física e psíquica. Tens necessidade, o teu sistema nervoso precisa da

droga - dependência física – e tu passas mal sem a droga, não te sentes bem –

dependência psíquica. A única maneira de resolver é tomar mais droga, o que só

agrava o problema. Portanto voltamos ao ponto de partida, bom é não começar,

essencial não experimentar!

UM ALUNO - Por que é que nós desprezamos mais os colegas pobres e mais mal

vestidos?

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D. S. - Essa pergunta deveriam ser vocês a responder! A verdade é que a sociedade

rejeita mais as pessoas pobres, a escola repete essa situação. Devemos lutar contra

isso, devemos dar os mesmos direitos a todos.

UMA ALUNA - Por que é que quando nós andamos com um toxicodependente os

nossos pais nos dizem que nos proíbem de andar com ele, quando no fundo nós

queremos é ajudá-lo?

N. S. - Proíbem porque têm muito medo de que o filho possa envolver-se de tal forma

que comece a tomar droga.

UM ALUNO - Por que é que estando o homem a evoluir em várias coisas ainda não

encontrou alguma coisa para resolver o problema da droga?

D. S. - A droga é causada por tantas coisas, tantas coisas, que não conseguimos dar

resposta a tudo. A droga é causada por problemas familiares mas também pelo mal-

estar da pessoa, a droga é causada pela miséria, é causada pelos traficantes, é

causada por certas sociedades que não funcionam bem... a quantidade de problemas

que nós temos de solucionar para resolver o problema da droga é muito grande, mas

vamos avançar e arranjar solução.

Muito obrigado a todos, até qualquer dia, felicidades para vocês.

Mesma escola, ao fim da tarde.

Discussão com professores

(Extractos da gravação)

INTERVENÇÃO DE UM PROFESSOR - Gostaria que comentassem uma experiência

que nos aconteceu no princípio do ano. Foram postas questões diversas para

trazerem as respostas de casa, na aula seguinte comentávamos as respostas, como

exemplo, que atitudes é que achavam correctas dentro e fora da sala de aula, o que

achavam correcto fazer no intervalo, e outras questões variadas.

D. S. - Em relação às questões de disciplina nós temos de responsabilizar os alunos,

não penso que estas questões possam ser resolvidas só por professores, ou pelos

pais, ou pelo Ministério. Cada vez mais temos de pedir a opinião dos alunos sobre a

disciplina e procurar que eles nos ajudem na solução para o problema, portanto esse

modelo que pôs de colocar questões para trazerem as respostas é bom modelo a dois

níveis; em primeiro lugar aumenta a maturidade dos alunos, faz com que eles possam

pensar numa questão, reflectir para depois dar uma resposta. Muitas vezes os nossos

jovens dão uma resposta imediata sem pensar e o sistema de os ajudar a reflectir é

bom. Depois responsabiliza-os porque se pergunta o que se deve passar na sala de

aulas e o que se deve passar no pátio, eles estão a definir regras e isso é essencial.

Também é preciso ver que numa turma há sempre alunos mais motivados do que

outros, alguns mais participativos do que outros, portanto não podemos pensar que

toda a gente vai responder da mesma forma. Tudo o que seja aumentar a participação

dos alunos é extremamente importante, tudo o que seja tornar a turma num grupo de

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trabalho cooperativo, ajudá-los a trabalhar em conjunto, exprimir os seus sentimentos,

resolverem os seus problemas em conjunto é muito importante para o

desenvolvimento psicológico e responsabiliza-os, porque é evidente que, se eles

definem uma regra de funcionamento na aula ou no pátio e depois eles próprios caem

em contradição, o professor pode dizer: - Então, no princípio do ano nós definimos que

era assim! Por que é que estão a fazer de uma forma diferente? - Há certos

professores que têm aquele slogan “Never smile before Christmas”, fazem aquele ar

extremamente severo nos primeiros meses, os alunos comentam isso de uma forma

muito engraçada, dizem: "a Stôra de química parecia que era muito má, e não, lá para

o fim do ano já era mais baril!..." Não defendo essa técnica do slogan, as pessoas têm

de criar uma boa relação desde o início, agora defendo é que before Christmas, antes

do Natal, é essencial para definir as regras de funcionamento. Se o professor espera

que as coisas vão melhorando com o tempo, receio que à medida que o tempo vai

passando as coisas vão ficando cada vez piores.

Conversa sobre a escola

Noutros capítulos deste livro descrevem-se muitas situações que surgiram nas

escolas, quando lá me desloquei para acções de formação ou debates com

professores, alunos e pais. Nas idas aos diversos estabelecimentos de ensino contei

com o apoio e permanente estímulo de duas grandes amigas, a Eulália Barros e a

Nazaré Cristina Santos. Chamei ao nosso trio brigada das escolas. Íamos de carro ou

de comboio, do Norte ao Sul do continente (eu até fui aos Açores e à Madeira), com

dias lindos ou com céu cinzento.

As acções foram de diversos tipos. Muitas vezes começávamos de manhã com os

alunos, que nos aguardavam em anfiteatros cheios, em salas polivalentes mais ou

menos transformadas, ou até em teatros e auditórios municipais, de várias cidades.

Almoçávamos rapidamente em refeitórios escolares, alguns decorados com quadros

simples ou desenhos dos alunos, outros com regras e dizeres estranhos pendurados

nas paredes, do género "não faças aos outros o que não queres que te façam a ti" ou

"sê um cidadão, respeita o próximo". Às vezes os professores organizadores levavam-

nos ao melhor restaurante da terra, provocando algum ciúme noutros, que nos

confidenciavam eu também trabalhei, devíamos almoçar todos. Tudo se resolvia com

um café no intervalo, por entre a curiosidade dos alunos, que nos observavam de

longe, e a simpatia permanente dos funcionários.

Regressávamos os três a casa com uma sensação de que quase sempre tinha valido

a pena. O desejo de participar, de construir uma realidade escolar diferente, de sair de

uma visão individualista para um conhecimento mais alargado dos problemas, foram

constatações a que rapidamente chegámos. Com ternura, brincávamos com os

presentes que nos davam (raramente pedíamos honorários). A Nazaré, que adora

artesanato, olhava com interesse para as peças oferecidas. Eu e a Eulália preferíamos

os trabalhos dos alunos ou algum livro sobre a terra.

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O tempo não permitiu ainda uma reflexão mais aprofundada sobre esta

investigação/acção, aliás ainda em curso. A experiência é tão profundamente rica que

será necessário continuá-la de uma forma mais organizada para depois tirar as

conclusões mais relevantes. Pareceu-me importante, contudo, conversar desde já.

Convidei as minhas amigas para uma conversa no Verão de 1995 e pedi ao Pedro

Strecht que viesse também.

Para quem não tenha lido com atenção as primeiras páginas do Voltei à Escola, a

Eulália Barros (E. B.) é professora e técnica de Saúde Mental Infantil (área das

dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento), a Nazaré Cristina

Santos (N. S.) é psiquiatra, assistente da Faculdade de Medicina de Lisboa e

fundadora do Núcleo de Estudos do Suicídio e o Pedro Strecht (P. S.) é pedopsiquiatra

e foi professor do ensino secundário oficial e particular.

Querem ouvir a nossa conversa, retirada da gravação?

D. S. - Queria começar por salientar dois aspectos. Nestas nossas deslocações às

escolas impressionou-me, antes de tudo, a sua grande diversidade. Encontramos

escolas que estão na mesma vila, no mesmo bairro, a receber alunos com origens

culturais semelhantes, umas a funcionarem bem, outras mal. Todas pertencem ao

mesmo Ministério da Educação, mas cada uma organiza-se de maneira diferente, o

clima que resulta dessa organização interna é às vezes como num dia de Verão,

noutras ocasiões parece aqueles dias de Inverno que nos obrigam a ficar em casa.

É assim que nalgumas escolas há dificuldades, mas o clima de cooperação permite

ultrapassá-las melhor ou pior, noutras a violência parece crescer todos os dias e o

desespero aumenta.

O segundo aspecto diz respeito às relações entre os diversos intervenientes na

comunidade educativa. Costumo falar de um triângulo fundamental, em que cada um

dos vértices simboliza o aluno, o professor e a família do estudante. Nalgumas escolas

há uma harmonia de funcionamento entre os três vértices e todos participam no

processo educativo, noutras não.

Por exemplo, em certos locais os alunos têm grande criatividade, fazem sugestões e

propostas importantes para o funcionamento da escola, mas estão desorganizados por

falta de enquadramento dos professores ou as iniciativas não resultam por resposta

tardia dos Conselhos Directivos e do Ministério. Há no vértice dos professores um

evidente défice comunicativo, falam pouco uns com os outros e estão demasiado à

espera de uma solução que possa vir de fora. A comunicação pobre entre os docentes

traduz-se, na prática, por atitudes bem diversas em relação a questões básicas, como

o que fazer perante o aluno que chega atrasado ou usa o boné em plena aula. Não

podemos regulamentar tudo numa escola, nada é mais importante do que a liberdade

criativa dentro da sala, mas impressiona ver como um aluno tem falta com «a»

pequenino se chega depois do segundo toque, outro professor não liga e o primeiro

volta a marcar falta de material se ele se esqueceu do livro. É uma situação paradoxal:

o aluno tem falta por atraso (simbolicamente é como se o professor estivesse a dizer

que ele faltou à aula) e depois tem falta de material! Duas faltas?!

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Quanto aos pais, às vezes não vão à escola e quando vão não sabem muito bem o

que lá vão fazer. Vão saber que tropelias o filho fez ou poderão contribuir para a

resolução dos problemas daquela escola? Enfim, é este o meu pontapé de saída. Qual

é a vossa experiência?

P. S. - Estes dois pontos que foram referidos já dão para pensar em muitas coisas.

Primeiro, que actualmente é difícil falar de maneira genérica de uma escola; há que

falar em escolas ou na sua diversidade, como aliás o Prof. Daniel fez muito bem em

lembrar. E passa-se o mesmo quando falamos de adolescentes, porque cada um

deles tem realidades completamente diferentes que transporta para a escola. Por isso,

acho que estes aspectos nos levam a pensar como é que escolas, organizadas à

partida de forma não tão diversa acabam por funcionar de maneiras substancialmente

distintas. Penso que essa diferença parte das características das pessoas que fazem o

seu dia-a-dia: daqueles professores, famílias, alunos, no fundo, daquelas pessoas e

daquela comunicação que rege a dinâmica da relação entre elas.

O segundo ponto parte da constatação que falar de escola está um pouco na moda.

Isso agrada-me, porque pode ter importância e trazer coisas úteis. Enumeram-se

problemas, procuram-se coisas diferentes; de qualquer forma, as pessoas esperam

ainda que muita coisa venha de fora. Esperam passivamente que grande parte da

resolução dos problemas chegue de fora para dentro, o que para além de ser o

sentido mais complicado, pode não ser o melhor. Podemos então perguntar: onde está

ser-se criativo no bom sentido de uma construção? Não haverá muita coisa para fazer,

dentro dos recursos que existem, apesar de todas as dificuldades? Acho que a força

de uma resposta positiva a esta pergunta é capaz de estar na relação construtiva do

tal triângulo aluno/família/professor. Bom, se neste triângulo for preciso dizer uma

ponta por onde começar, eu pensaria nos alunos: as crianças e os adolescentes

procuram e precisam cada vez mais na escola de coisas que não são só as da matéria

dos programas.

D. S. - Que procuram eles na escola? Ora aí está um bom tema para falarmos.

P. S. - Sim. Para já é uma realidade muito concreta é que, actualmente, se passa na

escola grande parte do tempo de um dia, muitas horas ao longo de um ano, para

quem está a crescer. Por isso, penso que a escola é cada vez mais um local onde as

crianças ou os adolescentes põem em jogo muito do que é a dinâmica da sua família.

Podem levar o que têm ou procurar o que lhes falta, mas usam cada vez mais o

espaço da escola para trabalhar um pouco o seu crescimento emocional, que algumas

vezes está longe de ser fácil. É devido a isso que a escola aparece como um espaço

da relação em diferentes níveis. Dos miúdos uns com os outros, com quem se vão

identificar, com quem vão formar grupos, e dos miúdos com os adultos no jogo da

diferença das gerações, de estatuto, de papel. A propósito disto o Prof. Daniel falou do

modo como os professores se colocam em relação aos alunos. Ora, o que acho é que

não convém esquecer que para um aluno, o professor aparece como um modelo.

Modelo como pessoa, modelo para uma relação. Às vezes, vemo-nos confrontados

com dois tipos de extremos. Num, os professores que usam muito o estrado como

uma espécie de distância, as faltas de castigo, os trabalhos de casa, como se fossem

apenas uma defesa, para esquecer uma troca afectiva. Noutro, os professores que,

querendo fazer coisas diferentes, passam para um plano confuso, omitindo regras,

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diferenças de gerações... É claro que isso tem de existir mas também tem de haver

compreensão, empatia, e a percepção de que um aluno precisa de um bom clima

emocional para funcionar no plano da escola; precisa dos seus colegas mas precisa

muito de adultos que olhem para ele. Depois, há os pais que continuam muito

preocupados com as questões da escola. Não são só os curricula em si, o acesso à

faculdade, mas também os problemas mais recentes como a segurança, a violência e

a droga. É com certeza muita preocupação! Mas lá está, no fundo se calhar muitos

deles esperam de mais que as coisas venham de fora.

E. G. - Bom! Eu vou fazer referência a algumas coisas que foram ditas, e depois

colocar outras questões. No que diz respeito às grandes diferenças entre as escolas

do País, estou convicta de que estas se reportam mais ao tipo e ao estado das suas

instalações, condições de conservação ou degradação, mais ou menos existência de

espaços diversificados para actividades extracurriculares, coisas deste tipo. Porque

em relação ao modo de funcionamento, não me parece que encontremos grandes

diferenças estruturais. Nos conceitos fundamentais que concebem e norteiam a escola

em geral, não há diferenças assinaláveis, salvaguardando umas quantas escolas, que

são conscientemente diferentes e que se norteiam por projectos inovadores,

plenamente assumidos. Depois, há escolas que funcionam melhor do que outras no

que toca ao relacionamento entre professores e alunos ou à qualidade pedagógica,

mas isso, como disse o Pedro, deve-se mais à qualidade humana, à vocação, ao

investimento pessoal dos seus professores que, por isso, entendem o seu trabalho de

outra forma proporcionando alterações que são muito positivas mas pontuais.

Isto é lamentável, porque o que seria natural é que as escolas fossem bastante

diferentes umas das outras, conforme são diferentes as pessoas que lá vivem e as

culturas locais onde se inserem.

D. S. - Eu queria salientar há bocado, a propósito da diversidade, que há escolas

com poucos recursos que conseguem ter boas iniciativas, outras não.

E. B. - Exacto. Foi isso que salientei quando afirmei que essas diferenças são

devidas ao investimento pessoal que o corpo docente lhes imprime. Seja pela

qualidade de alguns Conselhos Directivos ou pela vocação e capacidade de

autonomia destes com os seus professores, pela sua formação, pela forma como

gostam de crianças ou, ainda, por particularidades que às vezes se conjugam:

localidades pequenas com escolas mais pequenas, culturas locais fortes e mais

preservadas, etc. O que quero realçar é que as escolas que estão comprometidas com

bons projectos de inovação parecem ser aquelas em que as pessoas estão mais

capazes de assumir a própria Lei da Autonomia. Dantes chamavam-se a estas

pessoas os carolas; será a isto que agora se chamam as elites?...

Porém, o que acontece com mais frequência é a dinâmica de uma escola ser

alterada pela presença de um ou mais professores muito motivados, mas após a saída

destes tudo volta a ser como dantes.

Veja-se, por exemplo, uma escola onde existe um núcleo de estágio, que é uma

situação que cria no professor um acréscimo de entusiasmo que se expressa nas

actividades e na forma como as executa; logo que o estágio termina, toda essa

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motivação acaba, mesmo quando esses professores ficam posteriormente na mesma

escola.

D. S. - Não poderemos ir mais além e definir essas características?

E. B. - Já lá vamos para não baralhar. Embora eu já tenha enumerado algumas

apetece-me dizer sinteticamente assim: quando os professores gostam muito de

crianças (por razões positivas, claro) e quando gostam muito daquilo que fazem, tudo

melhora.

Convém, no entanto, chamar a atenção que sob as palavras Escola ou Sistema de

Ensino estão contidos muitos e diferentes fenómenos sociais que devem ser

destrinçados, que carecem de vários níveis de análise, sob pena de confundirmos

cada vez mais as coisas, embora isso ultrapasse o âmbito desta conversa.

Mas, pelo menos, devemos sublinhar a época complexa que estamos a atravessar,

que traz muitas dificuldades acrescidas a todos os grupos sociais, atingindo

principalmente as instituições de educação e ensino, porque tudo o que é da vida

social se projecta na escola.

Com a nossa experiência nas escolas fui observando a grande confusão em que a

maior parte dos professores se encontra. Distinguiria aqui três níveis a carecer de

aprofundamento: a dificuldade dos professores em assumir a Lei da Autonomia, a

dificuldade em aplicar os novos programas que resultaram da Reforma, cujos

conteúdos e práticas contêm avanços consideráveis e, por último, a um nível mais

geral, quero referir que esta difícil situação deve ser relacionada também com a

desordem actual das nossas sociedades, sobretudo no que toca à alteração dos

valores e dos pontos de referência em que assentavam as instituições e a vida social:

desagregação dos valores fundamentais da cultura tradicional, como os da autoridade,

a diluição das fronteiras ideológicas e morais, a desresponsabilização geral no

processo educativo, o quase desaparecimento da influência educativa da família, a

emergência de uma espécie de neutralidade pessoal a todos os níveis (o que é que eu

tenho a ver com isso?...), o aumento da expressão reactiva e contestatária dos jovens,

o desajuste entre o mundo real e aquele que está presente no plano escolar, etc.

Actualmente tudo está em questão! A própria concepção de escola se alterou e já

nem sequer há consenso sobre o que deve ser a escola e qual deve ser também a sua

função.

Portanto, as linhas básicas que definiam a escola e o papel do professor, que eram

claras e seguras, estão de “pantanas”. Esta crise cultural afecta as relações sociais e

altera as concepções da sociedade e das suas instituições.

Todos opinam sobre tudo, sobretudo a instituição escolar é vítima de uma enxurrada

de teorias que frequentemente se contradizem e anulam. Para ajudar a esta confusão

geral, os professores atiraram-se precipitadamente para o mercado da formação

profissional, na maior parte das vezes com o único objectivo de obter “os créditos”

necessários à progressão na carreira profissional. A formação na sua concepção é

completamente bizarra, no terreno totalmente desarticulada e na prática não tem

respondido às grandes dificuldades com que os professores se debatem. Eu creio que

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o problema é outro e mais fundo: é a própria instituição escolar enquanto concepção

paradigmática da sociedade que está em causa. É preciso pensar a escola enquanto

organização social.

D. S. - Na sua ideia, como se pode inserir a escola na sociedade actual?

E. B. - Partilho a ideia de que é a sociedade que cria um determinado tipo de escola

e não o contrário. Primeiro temos que compreender melhor o tipo de sociedade em

que vivemos para depois se perceber o que está no cerne da concepção da instituição

escolar.

Nós temos vivido na chamada sociedade industrial. O paradigma industrial

caracteriza-se pela racionalidade científica e por uma crença cega no progresso

material. No centro desta concepção está uma educação fortemente estruturada,

orientada para a transmissão dos conhecimentos acumulados e dos modelos culturais

imbuídos desta convicção.

À escola compete a transmissão de verdades objectivas únicas, regularizadas e

reguladoras, apontar a ciência como único modelo de conhecimento credível e

transmitir a estrutura hierárquica dos conhecimentos. Não importa muito o aluno como

pessoa, o que importa é desenvolver-lhe as capacidades intelectuais, iniciá-lo na luta

individual pela competição para ter sucesso, orientar as relações humanas segundo as

exigências do mercado. Quer dizer, adaptar o indivíduo à sociedade. A educação foi-

se confundindo a pouco e pouco com a instrução.

No fundo, é isto que tem estado no centro da concepção educativa por força do

modelo de sociedade que tem dominado.

P S. - Gostaria de reforçar um aspecto de que a Eulália falou. É o da necessidade de

conceber cada vez mais a escola tendo os alunos como o centro da questão. Insisto: a

escola deve ser olhada de dentro para fora, porque é isto que sinto que os alunos

procuram e precisam. É claro que esta ideia implica o respeito por eles como pessoas.

Olhem, para mim violência também é isto: a violação do espaço de cada um enquanto

único e diferente.

E. B. - Olhe, Pedro, a propósito do respeito pelos alunos enquanto pessoas apetece-

me perguntar, não sei bem a quem!?... que se passou com a área-Escola?... Embora

este espaço/tempo não desse resposta total a essa questão, era já uma boa hipótese

criativa para os miúdos, pelo menos para começar.

Depois, esse chavão “violência gratuita” irrita-me um bocado! Não conheço nenhuma

violência que seja gratuita, nem a nossa e muito menos a dos miúdos. As atitudes

agressivas ou violentas são respostas reactivas, profundamente emocionais. Vêm de

dentro. Quando somos sujeitos a circunstâncias muito adversas, que violam a

interioridade, os comportamentos agressivos são o que resta quando já se esgotaram

as defesas mais adaptadas e adequadas. Atenção, eu não estou a subscrever a falta

de educação, isso é outra história...

P. S. - Pois é. E olhar assim a escola é uma necessidade fulcral. Sobre isso, lembro-

me bem do tempo em que fui aluno e depois professor. Recordo, enquanto aluno, que

achei fascinante um dos nossos professores da faculdade conhecer à terceira aula o

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nome próprio da maioria dos alunos. Marcou-me imenso. Lá está, serviu-me como

modelo. Depois, quando fui professor, fazia sempre um esforço, antes de conhecer

uma turma nova, para saber rapidamente os nomes deles. Lembro-me de uma história

com piada! Era a minha primeira aula, numa escola onde estava de novo. Quando

cheguei ao corredor no qual a sala ficava ao fundo, estavam os alunos a fazer uma

espécie de carreira de caldos (de cachaça, diz o Prof. Daniel), fez-se um silêncio

enorme, eu tive que atravessar aquela barreira e quando abri a porta disse-lhes que

não tivessem medo, que podiam entrar. Eu é que estava cheio de medo!... Lembro-me

então de ter começado a aula dizendo, enquanto os alunos tiravam os lápis e os

cadernos, que ia falar-lhes daquilo que para mim seria o mais importante, ao longo do

ano... Todos se preparavam para escrever, estavam a postos, e o que eu fiz foi pôr no

quadro os nomes deles que já tinha aprendido. Foi uma surpresa! Bom, isto são

histórias impossíveis de generalizar. Talvez valesse a pena pensar sobre o seu

significado.

E. B. - Claro que é muito importante conhecer e tratar pelo nome todos os alunos,

mas não podemos esquecer que a maior parte das escolas são de tal maneira

grandes e estão de tal forma organizadas, que não é possível exigir a todos os

professores que tenham uma atitude tão correcta. Essa é uma das tais diferenças

pontuais que às vezes encontramos nalgumas escolas, como excepção.

Uma diferença estrutural seria, por exemplo, perceber, de vez, que a dimensão das

escolas já não pode ser a mesma, face às actuais circunstâncias e características da

vida dos miúdos e dos jovens. Em escolas mais pequenas, já seria exigível que

professores e alunos se conhecessem e relacionassem melhor.

D. S. - Vocês falam da pessoa do aluno. É bom não esquecer, no entanto, que numa

escola oficial dos nossos dias temos alunos muito diferentes...

E. B. - Quando salientei que não é a pessoa do aluno que está no centro do sistema,

não me devo ter feito entender! Não era o Carlos, o Manel, enquanto pessoas

individuais, que eu queria referir. O que quis salientar é que a escola deveria estar

centrada nos alunos enquanto Sujeitos activos. Tê-los como preocupação central.

Vamos lá a ver! A organização educativa é determinada pelas orientações da

sociedade, das suas leis, normas, objectivos, etc. A finalidade da educação é

concretizar essas orientações. De acordo com este modelo de sociedade em que

temos vivido, não é a pessoa enquanto sujeito humano a preocupação nem o valor

central. O que predomina são os interesses económicos, o desenvolvimento

tecnológico e as vantagens materiais que podemos tirar daí, orientadas cegamente

para o consumo ilimitado de bens materiais.

Portanto, as pessoas em si, e neste caso os alunos, os professores e os educadores

têm uma importância muito reduzida e relativa.

O que me parece é que se começou a reagir contra este tipo de sociedade, onde se

sente que ninguém se interessa por ninguém no plano humano e afectivo. Os miúdos

e os idosos são quem mais sente as consequências deste funcionamento

«desgraçado» e os jovens são quem o denuncia melhor, fazendo-o de várias

maneiras. No fundo, a crise da escola também mostra como as gerações mais novas

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nos estão a transmitir qualquer coisa como isto: a gente não atina com esta treta, tal

como está. Trata-se de processos reactivos, o que é natural.

Penso mesmo que, se os ouvíssemos mais atentamente, perceberíamos que eles

são portadores de uma nova visão da sociedade e, portanto, também de outra

perspectiva de escola. Podemos descortinar isso quando os pomos a dialogar

connosco libertos de constrangimentos. Interessa-me mais reflectir sobre isso do que

fazer juízos de valor.

P. S. - Também acho que já se nota outra abertura das pessoas para verem as

coisas sob essa perspectiva. Isso parece-me bom. Nota-se de várias maneiras, mas

parece-me um dado seguro que todos se aperceberam de que chegámos a um ponto

onde alguma coisa vai ter que mudar. Se eu conseguisse sintetizar os aspectos de

que a Eulália esteve a falar e acrescentar algo mais, diria então que há sempre

qualquer coisa que está para além do que tem que ver com a forma como cada um

maneja o que pensa e sente na relação consigo próprio e com os outros, ou seja,

como as trocas afectivas e emocionais também pesam neste espaço. Acho até que as

pessoas já intuíram este ponto embora possam ainda não falar dele assim.

E. B. - Desse ponto de vista, o mal-estar que os miúdos exprimem,

independentemente da forma como o fazem, não é muito diferente do mal-estar dos

professores. Portanto, há um mal-estar comum, expresso de formas diferentes, sendo

os jovens menos autocontrolados, como é natural, são, digamos... mais espontâneos e

espalhafatosos a reagir.

D. S. - Sente-se uma coisa curiosa: a escola não é o que as pessoas querem, mas é

importante para toda a gente.

N. S. - A escola é, de facto, muito importante para todos. Apercebemo-nos bem da

sua importância na relação com os jovens em sofrimento que diariamente nos

procuram. A visão que eu tive durante muito tempo era sobretudo através deles. Ia-me

apercebendo de como nos últimos anos a escola desempenhava um papel

progressivamente maior nas suas vidas. Falam dela com entusiasmo, revolta ou

desinteresse, projectam nela muitos dos seus conflitos e sonhos, mas referem-na

tanto como um local de reforço como de dificuldades para a sua auto-estima. No

discurso dos pais, a escola aparece como um local onde os filhos estão muito tempo e

esperam que estes ali sejam educados e protegidos. Por outro lado, os pedidos

directos dos professores para os jovens em risco manifestam a importância e as

dificuldades da escola em gerir as novas solicitações. E finalmente, a minha

experiência deste último ano e meio, colaborando em acções de informação e ajuda

dentro das escolas, levou-me a consolidar algumas destas ideias e a reformular

outras.

O que me tocou mais, nas várias escolas por onde temos passado, foi verificar que o

mal-estar mútuo é o pano de fundo. Da parte dos jovens existe um grande apelo a

serem entendidos como pessoas, como que a dizer «eu estou aqui, olhem para mim»,

e que alguns professores percebem e tentam responder com criatividade e

imaginação, procurando que a escola seja também um espaço de vida emocional. No

entanto, os jovens parecem pedir mais: que a escola seja uma segunda casa, e outros

há que pedem mesmo que seja a primeira e única casa, o que se compreende pela

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situação de abandono em que actualmente vivem dada a extrema absorção dos pais

na vida profissional, o que torna a situação muito complexa para os professores.

Estes sentem-se entalados e angustiados. Alguns não querem ouvir, falar ou pensar

sobre estas solicitações. Quando isto acontece encontramos os professores

bloqueados, os alunos agressivos e perdidos e os pais mais demitidos ou aflitos.

Outros resvalam para uma atitude de excesso de companheirismo ou mesmo de

substituição dos pais, e outros ainda oferecem-se para uma espécie de terapeutas.

Estas atitudes podem ser extremamente perigosas porque não resultam, diluem e

confundem cada vez mais o perfil do professor. No entanto, alguns tentam parar e

interrogam-se sobre o que fazer e qual o seu papel; talvez sejam estes que, apesar de

tudo, procuram ajuda exterior, estão mais receptivos ao diálogo, tentam implicar mais

os pais e procuram um equilíbrio entre o ensinar e o educar.

E. B. - Temos verificado isso; o problema é que não me parece que a organização

familiar volte para trás. Teremos então de aproveitar a disponibilidade possível que a

família tem, tal como se apresenta actualmente, e sensibilizá-la o mais possível.

Não sei bem se podemos afirmar que as famílias estão demitidas. Acho um pouco

superficiais afirmações desse tipo. Parece-me terem existido razões que levaram a

esta posição da família. Podemos aflorar algumas hipóteses: uma delas, nestas duas

últimas décadas, é que nos deixámos instalar numa espécie de crença em que a

escola se podia encarregar da educação e da instrução como um todo. Por um lado,

os pais foram-se retirando do processo educativo, confiando no pressuposto de que a

escola podia realizar essas funções e, paralelamente, as famílias investiram quase

toda a sua disponibilidade nas carreiras profissionais e na vida social.

Fomos assistindo a uma crescente importância da escola até esta ter acabado por

ganhar uma espécie de... monopólio da educação. Creio que estamos finalmente a

começar a assistir à falência desta situação a que se chegou. Penso que esta é uma

perspectiva em que se deve reflectir com muita atenção.

N. S. - Quando falas em monopólio da escola, não sei se é monopólio da tarefa

educativa que, de certa forma, lhe foi imposta pelas mudanças da família, ou se é

ainda o monopólio da tarefa de ensinar que é a sua base.

E. B. - Quando digo monopólio é porque, sem se dar por isso, foi-se confiando à

escola as duas componentes: a da instrução e da educação. Tentando clarificar: ao

longo das décadas de 60/70, nós assistimos a um crescendo de importância dos

saberes técnicos, de saúde, de educação, entre outros. Com o aparecimento mais

generalizado dos educadores de infância, foi-se criando a ideia de que estes estavam

mais bem preparados para educar. As famílias foram-se deixando convencer de que já

não tinham muita competência para educar e, com o alargamento dos jardins-de-

infância, foi-se generalizando esta ideia. Se queríamos os filhos mais bem educados,

mais bem socializados e preparados para a aprendizagem, o melhor seria confiá-los

aos educadores. A pouco e pouco os pais começaram a descuidar certos aspectos

educativos.

Depois, o problema foi-se avolumando, na medida em que muitos jardins-de-infância

se deixaram invadir por alguns aspectos da aprendizagem escolar tradicional, na

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tentativa ilusória e absurda de que isso era uma garantia para o futuro sucesso escolar

das crianças.

Reparem que se chama com demasiada frequência ao jardim-de-infância «ensino

pré-primário». Com a passagem das crianças do pré-primário para o ensino básico,

estas duas etapas de natureza e objectivos diferentes, e que pedem parceiros

diferentes, parecem ter-se fundido num único processo. O processo

educativo/formativo e a instrução escolar acabaram por tornar-se uma tarefa quase da

exclusiva responsabilidade da escola. O poder educativo deslocou-se da família para

as instituições. E assim, acabou por gerar-se esta espécie de monopólio da instituição

escolar no processo educativo.

Claro que esta explicação não esgota os problemas, são meras pistas de reflexão.

Penso, no entanto, que há por estes meandros muita coisa pervertida que tem de ser

repensada e discutida...

N. S. - Mas essa diversidade de agentes educativos, de que o Daniel também falava,

é-nos referida por certas escolas que vão tendo essa lucidez e esboçam movimentos

nesse sentido.

D. S. - Estamos apenas no começo. As novas maneiras de encarar a escola exigem

grande disponibilidade por parte dos professores, uma nova atitude dos pais e uma

organização dos alunos. No fundo, uma alteração muito radical.

E. B. - Compreendo essas dificuldades. O problema é que, no ponto em que nos

encontramos do mal-estar geral, que naturalmente também se exprime cada vez mais

na escola, não me parece que cheguem os remendos que se vão fazendo, sobretudo

porque nem sequer se percebe o critério a que obedecem. Claro que as pequenas

(alterações de iniciativa pessoal que conduzam a uma maior satisfação dos docentes

e discentes são sempre de aplaudir e incentivar, e também porque vão abrindo

caminhos. É isso que temos ajudado a concretizar. Mas o que realmente está em

causa é de ordem conceptual, por consequência mais estrutural, sob pena de os

problemas se agudizarem cada vez mais.

A realidade mostra que nunca se conseguem fazer mudanças qualitativas com

pequenos atamancos, embora isso seja um hábito muito português. Como somos

bastante conservadores, há sempre muito receio e pouca coragem para fazer

alterações mais profundas.

No entanto, parece acontecer que determinados grupos humanos vão catalisando o

mal-estar geral até um certo grau de suportabilidade, e num dado momento, muitas

vezes quando menos se espera, dá-se uma explosão colectiva e depois é o valha-me

Deus... e agora!?....

Reparem, não foi assim com a queda do Muro de Berlim, por exemplo? De repente,

pela natureza das coisas e da força humana que irrompeu colectivamente, deu-se a tal

alteração estrutural e ninguém tinha previsto que era naquela altura.

No que toca à escola, se repararmos, desde os anos 40 que se vêm fazendo

experiências, que são reconhecidas como válidas e importantes, não só na Europa

como em Portugal. Grandes pedagogos têm chamado a atenção para inúmeros

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aspectos da escola como instituição e dos seus modelos pedagógicos. Rogers,

Freinet, Oury, João dos Santos, entre outros, mas nem por isso as coisas foram

mudando de forma significativa. Em Lisboa, por exemplo, são conhecidas algumas

experiências interessantes e eficazes, embora marginais, de escolas com uma

pedagogia mais personalista, mais centrada na pessoa, desde o Movimento da Escola

Moderna a instituições como a Cooperativa A Torre, A Voz do Operário, entre outras, e

nem por isso se conseguiu passar para o sistema essas experiências bem-sucedidas.

E agora cá estamos à beira de rupturas mais complicadas.

Podíamos resumir quatro níveis de trabalho para uma mudança com alguma eficácia:

ao nível dos dirigentes, porque é daí que partem tanto as normas orientadoras como

os planos de formação, etc.; aprofundar os aspectos que se relacionam com as

dificuldades dos professores na aplicação da Lei da Autonomia, depois a questão das

novas metodologias, que são menos estúpidas e mais construtivistas do que as

anteriores, e disso não vemos quase sinais na maioria das escolas. Perceber também,

de facto, por que falhou a área-Escola, e finalmente repensar a escola como uma

forma particular de organização social, no sentido sociológico do termo. Seria

desejável que os dirigentes fizessem esta reflexão com os restantes actores

representativos.

Claro que isto não põe em causa que se devam aproveitar os recursos possíveis e a

disponibilidade de todos para as pequenas coisas que podem ir melhorando a escola.

Os professores sentem-se demasiadamente sós no terreno e com poucos meios.

Temos que aceitar essa queixa para perceber melhor as coisas. Procurar culpados e

trocar culpas não serve para nada.

P. S. – Acho que o manejo destas questões que a Eulália levantou pode levar,

também, outra vez à constatação de que a escola funciona cada vez mais como o

prolongamento da casa, e é justamente quando as questões se colocam nesta área

que os professores apelam na sua mais íntima inquietação. É mais fácil, há mais

respostas à mão quando os problemas dizem respeito à matéria, às avaliações ou

coisas deste género. Começa a ser mais complicado quando os miúdos levam para a

escola as dificuldades por que passam no seu espaço familiar. Aí é que grande parte

das dificuldades e muitos dos apelos destes professores surgem e é aí que as

pessoas da saúde mental podem ser ouvidas para ajudar a perceber mais qualquer

coisa. Não vejo por que seja contraditório. Atenção: é aqui que temos de saber evitar o

tal risco de os professores serem forçados a ser psicólogos dos seus alunos e a

confundir-se na baralhada de não deixar claro onde acaba uma função e começa

outra.

E. B. - E eu reafirmo que pode criar muitas contradições, se no plano estrutural esses

aspectos não forem claramente definidos. Vejamos, casa e escola não são a mesma

coisa e nunca poderão ser. Não se devem confundir. Mãe/pai são uma coisa,

professor é outra. São personagens indispensáveis mas muito diferentes. Permitir

confusões deste tipo, como por aí andam à solta, é que cria as situações contraditórias

e perigosas. Mal de nós se viesse a acontecer esta fusão de papéis de uma forma

socialmente subscrita. É por isso que estou sempre a alertar para toda esta situação

que carece de uma discussão multidisciplinar mais profunda, mais corajosa e,

sobretudo, despartidarizada.

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P. S. - Mas há muitas coisas simples que se podem fazer, e na segunda parte da

conversa lá iremos.

D. S. - Quanto às funções dos professores, é bom precisar alguns pontos. Há

professores que observam cuidadosamente os seus alunos. Vêem, por exemplo, que

um estudante tem más notas e que a sua família não pode ajudar muito, porque vive

num bairro degradado onde a violência e a toxicodependência abundam. Que fazer?

Não vale a pena explicar tudo de novo, porque esse aluno não tem condições de

estabilidade psicológica para aprender. Alguns professores tomam conta desse aluno,

desenvolvem um trabalho difícil e está fora daquilo que aprenderam. Qual o limite da

intervenção de um professor perante estas situações?

E. G. - Pronto!... Estamos novamente noutra das confusões que estão no centro da

questão: definição e papel do professor. Vocês dizem que não, mas quando

começamos a analisar a realidade no terreno, esbarramos sempre com as mesmas

dificuldades.

Muitas vezes as situações que são projectadas na escola pedem outra preparação

que o professor, de uma maneira geral, não tem. Não quer dizer que os professores se

escudem apenas nas tarefas de dar aulas e avaliar alunos. Com conta, peso e medida

podem ajudar quase sempre, pelo menos como modelo de adulto desejável.

No entanto, ponhamo-nos no lugar deles. No estado actual da organização escolar, o

professor, depois de cumprir o horário lectivo, das horas gastas a preparar aulas, do

tempo que precisa para fazer os seus registos (embora a maior parte deles não os

faça nem compreenda a importância de os fazer), muitas vezes ainda com tarefas na

gestão da escola, tem, para além disso, que ir em socorro deste e daquele miúdo que

se apresenta problemático, deparando com situações que ultrapassam o seu âmbito

de competências e de formação. Mesmo ao nível do bom senso, se ele ajudar um ou

dois, provavelmente terá lá mais não sei quantos... que também precisam.

Por sua vez, os outros colegas terão outro tanto, e por aí fora...

Também não podemos esquecer que quando professor e aluno galgam a relação

pedagógica e criam uma situação de intimidade mais profunda, ficam ambos numa

situação muito delicada de gerir no contexto social escolar. Para além disto, também

há a considerar que somos nós a partir do pressuposto de que os alunos, quando têm

dificuldades ou problemas, querem ter os professores como principais interlocutores

ou aliados. Nada prova que assim seja!

O Daniel às vezes diz-me: proponha alguma coisa que não assuste muito as

pessoas, que não seja muito radical. Claro que há sempre pequenas coisas que cada

um pode fazer, mas o problema é que as situações são cada vez mais complexas e

não se compadecem com pequenos atamancos voluntaristas. Corre-se o risco de

adiar os problemas sob a capa de ter mudado alguma coisa. (Prof. Daniel, eu não sou

contra as propostas radicais.) Nesta conversa, que penso chegará a um grande

número de pessoas através do livro, eu prefiro situar-me mais ao nível das questões

fundamentais do que das pontuais. Para estas últimas, já gastei anos e anos pelas

escolas a ajudar a encontrar pequenas soluções.

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N. S. - Mesmo com algumas mudanças de atitude, os professores correm riscos.

Estava a pensar, por exemplo, naquelas situações em que os professores se

interessam, preocupam com os jovens que estão aflitos. Não só ficam com uma

sobrecarga emocional como também podem criar problemas com outros colegas. O

professor procurado e admirado pode ser o professor invejado pelos seus pares,

desencadeando-se situações de clivagem disfuncional dentro da escola. Seria

preferível que a escola aproveitasse os recursos pedagógicos e directivos que possui,

afinando uma atitude consensual entre o Conselho Directivo, o Pedagógico, os

professores e o pessoal auxiliar, para enquadrar de forma clara, sem ambiguidade, as

situações problemáticas. Por exemplo, numa reunião de avaliação, para lá dos

aspectos que se prendem com as classificações, poder-se-ia também discutir mais

atentamente tudo o que pudesse ser relevante, pelo menos em relação aos jovens que

apresentem sinais de maior dificuldade, aproveitando inclusive as diferentes formas de

apreciação de todos os presentes.

D. S. - Estou de acordo, mas os professores queixam-se de ter pouco tempo para

intervir de forma diferente da tradicional (dar aulas). Algumas escolas conseguem uma

terceira hora para os Directores de Turma, de modo a que eles possam ter mais tempo

para os alunos e pais, outros avançam com medidas ainda um pouco tímidas para

aliviar a carga horária de professores disponíveis para outras tarefas, mas a verdade é

que é muito difícil conseguir um professor a trabalhar na escola em coisas diferentes

das aulas tradicionais. Ora, eu penso que esta mudança de mentalidade é essencial:

não basta dar matéria, é preciso educar, logo é necessário estar muito atento às

diversas necessidades dos estudantes.

E. B. - Nós devemos ter cuidado com algumas afirmações que fazemos. A nossa

posição, por ser dupla, é muito complexa. Por um lado somos professores, mas na

prática somos, sobretudo, técnicos de saúde mental.

Os técnicos de saúde mental têm uma grande tolerância porque se ocupam

principalmente do sofrimento psicológico dos miúdos, mas para reflectir no contexto

escolar devemos colocar-nos, o mais possível, no lugar e no papel dos professores e

analisar nessa perspectiva senão, com a melhor das intenções, arriscamo-nos a criar

alguns efeitos perversos com as nossas mensagens. A nossa enorme compreensão

do comportamento humano, que é útil na ajuda terapêutica, advém dessa situação

específica mas, na escola, trata-se de outra função com outros objectivos.

Por isso, eu reforço que é necessário aprofundar a reflexão sobre os problemas

actuais da escola e procurar soluções, em primeiro lugar na perspectiva de uma

organização social muito particular e, depois, aprofundá-la através dos seus

instrumentos pedagógicos e didácticos.

Devemos, no entanto, frisar que o sujeito psicológico não existe para a escola, mas

apesar disso, é perigoso entrarmos pelo lado das ajudas terapêuticas, etc. Não penso

que esse seja o caminho. É necessário clarificar os conceitos, definir os territórios,

perceber quais as disciplinas que podem trazer contributos à mudança organizacional

e profissional necessária, etc., senão é pior a emenda do que o soneto...

P. S. - Eulália, acho que essa sua conversa vinha na sequência da pergunta do Prof.

Daniel, e por isso gostava de insistir um pouco na ideia de explicar aos professores

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que há um limite na sua intervenção, tal como há para cada um de nós. Isso é justo e

merecido, penso que também os pode tranquilizar nas situações extremas. Portanto,

quando o Prof. Daniel perguntava onde é que eles vão parar, onde está o tal limite,

temos todos que entender que há coisas que se podem fazer funcionar para ajudar os

alunos, há coisas que nos ultrapassam em certos momentos e que ultrapassam

também os professores. Sobre o que pode estar ao seu alcance, já fomos dando

pistas: cumprindo as suas funções pedagógicas, funcionando como modelo nas

relações humanas, estando atentos a casos-problema para os devolver a outras

áreas, etc... Mas que fique claro que há um limite; senão, às tantas, existe o risco de

vir tudo por água abaixo e o professor começar a investir num ou dois casos, ficando

outros de fora, agindo por tudo e por nada com muita ansiedade e confusão e com o

resultado final indecifrável tanto para ele como para os alunos.

E. B. - Está bem. Nós podemos contribuir para a reflexão, dentro das nossas

competências e experiência, mas decidir sobre as alterações ultrapassa-nos. No

entanto, eu arrisco a dizer que, das duas uma: ou percebemos que na escola, como

noutros pilares básicos da sociedade, há períodos em que se têm de enfrentar

grandes alterações, e embora isso seja difícil não é forçosamente uma tragédia bem

pelo contrário! se as coisas forem enfrentadas, podem ser reflectidas e mais bem

planeadas ou faz-se de conta que a escola é uma excepção à mudança social em

curso, e continuam a fazer-se remendinhos bem intencionados, do tipo «apoios

pedagógicos acrescentados», que além de não resolverem nada de significativo

podem gerar efeitos perversos, até que um dia... sei lá!... os alunos venham todos

mostrar o rabo para a rua!... Não será isso pior? Então, é preciso primeiro que

tenhamos a coragem de ver de frente e a fundo; depois, é preciso que os políticos

percebam que não têm a capacidade nem o direito de resolver todos estes problemas

específicos sozinhos. A discussão tem de ser pública, particularmente com os grupos

sociais mais atingidos, com os técnicos a todos os níveis, e não só com os teóricos e

os investigadores em grupos fechados mas, sobretudo, com aqueles que estão no

terreno e têm a experiência da conflitualidade permanente.

D. S. - A questão é saber se pequenas alterações podem mais tarde introduzir

mudança ou se devemos atacar desde já o problema como um todo...

P. S. - Acho que é difícil começar de uma maneira muito global. Devemos ir por

pequenas experiências, torná-las fortes, agitá-las, e facilitar a que progressivamente

se possam depois alargar. Porque senão, arriscamo-nos, como falámos no início da

conversa, a esperar que as coisas não existam, ou só existam nas tais margens que a

Eulália dizia.

E. B. - Uma coisa não impede a outra. Porém o sistema deve ser analisado como um

todo. Pelo feed-back que fomos tendo das pessoas, ao longo deste último ano e meio

em que andámos juntos pelas escolas, creio ter descortinado que muita gente já tem

esta noção, independentemente de o nosso trabalho à volta das pequenas coisas ter

sido muito útil. Para lá dos aspectos formativos, também tivemos um papel importante

na desmistificação de certos equívocos e na agitação de certas consciências

paradas...

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P. S. - E as pessoas ao convidarem-vos estão desejando um pouco essa agitação.

Isso já é muito bom.

N. S. - Nós temos verificado que as pessoas estão interessadas em participar. No

entanto, a nossa experiência também tem mostrado que todos estão desejosos de

falar dos seus problemas, mas querem também apresentar as suas soluções, sendo

curioso reparar que, quem o faz de forma mais espontânea e com maior número de

sugestões, são os alunos. Porém, parece difícil aos grupos em questão, alunos,

professores e pais, conseguirem esse diálogo sem um mediador vindo do exterior,

como tem acontecido connosco. Será porque... santos de casa não fazem milagres!?.

D. S. - Não há dúvida de que um participante exterior ao sistema dinamiza o debate e

ajuda a organizar soluções. Temos de lutar contra a ideia de que a discussão é estéril

e que não leva a nada. No fundo, o que está em causa é a participação cívica, que

faltou nos últimos anos e que leva as pessoas a pensar que não vale a pena fazer

nada. Lembro-me sempre de uma escola, de uma zona degradada de Lisboa, onde os

problemas pareciam não ter solução. A certa altura os professores entenderam que

tinham de parar para reflectir. Então, durante um dia todos os professores e

funcionários da escola se reuniram, aprovaram um regulamento interno e delinearam

um plano educativo. Foi a prova evidente de que vale a pena conversar.

P. S. - Achei muita graça ao seu relato da escola que parou para pensar, porque é o

mesmo que nós dizemos aos meninos do insucesso que temos à nossa frente e vêm à

consulta: há que parar para pensar com eles.

E. B. - Em relação à dificuldade de as pessoas discutirem e cooperarem umas com

as outras, e à ideia de que se discute para nada, podemos perceber o significado

desses bloqueios. Basta reflectir no modo como a escola não nos ajudou a

desenvolver a reflexão crítica, o debate de ideias e o diálogo. Treinámos o empinanço

e a discussão do tipo marialvas de bairro, para ganhar ou perder razões, como quem

soma troféus. Por isso, o modelo de formação em que os professores se entendem

melhor é exactamente aquele que reproduz o modelo interiorizado de escola que eles

próprios tiveram: convidar alguém, a quem se reconhece um poder, normalmente

académico, que vem despejar conhecimentos para uma plateia sentada passivamente

a tirar apontamentos. É este o modelo típico de aprendizagem que interiorizámos e

que de forma geral reproduzimos quando nos tornamos professores.

O mais engraçado é que os professores, quando se encontram na posição de alunos,

por exemplo, em acções de formação, seminários, etc., fazem as mesmas

transgressões que não permitem aos alunos. Senão, vejamos: enquanto o formador

fala, os professores entram e saem da sala sempre que lhes apetece, esperam

ansiosamente as pausas p'ró café, cochicham todo o tempo p'ró lado, e se pedimos

que digam alto para todos ouvirem, baixam o rosto numa atitude infantilmente

envergonhada, etc., é de morte!....

Isto é dramático e mostra o papel castrador que a escola teve sobre uma

mentalidade geral. Reparem! Quando não levamos um discurso preparado e

queremos que as pessoas tomem a iniciativa de falar, expor as dúvidas, é o silêncio

total.

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A instituição escolar desenvolveu uma hierarquização de valor dos saberes

académicos. São grandes os prejuízos desta convicção, porque faz com que certos

grupos sociais e profissionais se sintam desvalorizados intelectualmente, inibindo-se

para a reflexão e discussão dos seus problemas. É urgente alterar esta concepção

valorativa dos saberes, para que o pensamento crítico se desenvolva, e um professor

do ensino básico, por exemplo, não fique em silêncio subserviente perante um

considerado especialista. São apenas saberes diferentes que se não dispensam mas

se completam.

Isto que vou dizer é um bocado cínico mas, enfim... como cada vez mais temos

licenciados desempregados, talvez esta noção de importância social se desmistifique

um pouco.

Acho que a nossa intervenção tem sido estimulante quando a fazemos em conjunto,

quer com os professores e os alunos quer com as famílias, uma certa pedagogia do

«conflito ou da Crise». Além de as pessoas perceberem que têm capacidades,

sentem-se acompanhadas nas suas aflições. Isto tem sido muito aliviador e

esperançoso para todos. Provavelmente, isto só resulta porque nasceu informal, tem-

se mantido informal e tem-se desenrolado à margem de qualquer tutela. Partimos

sempre das necessidades concretas, verbalizadas pelas pessoas, construindo na

altura uma reflexão conjunta. Apetece-me dizer que a nossa intervenção tem duas

dimensões muito necessárias: uma dimensão informativa que visa aspectos da

formação, não no sentido tradicional, porque não levamos um programa

encomendado, alheio às necessidades expressas, mas porque nos disponibilizamos

também para as pessoas se esclarecerem dentro daquilo em que somos competentes

e de que temos experiência. Se calhar, fazem falta mais grupos deste tipo...

D. S. - Cada vez acredito mais em estruturas informais para a resolução de

problemas da escola. É que toda a gente parece permanentemente preocupada em

responder a questões regulamentares! Mas não se esqueça, Eulália, de outro aspecto:

os professores queixam-se de que a inovação é difícil quando se tem trinta alunos e

um programa!

E. B. - O problema não serão os trinta alunos mas antes a acomodação a que estão

habituados. Por isso, não creio que seja tão complicado como parece. Vejamos, os

professores do chamado ensino especial, apesar de tudo, parecem estar mais bem

preparados para lidar com os alunos tal como estes se revelam. Certamente que isto

se deve também à formação inicial. Portanto, é preciso rever a formação dos

professores, depois é necessário reelaborar uma teoria mais realista das práticas

dentro da sala de aula. Os professores têm de ser ajudados e acompanhados no

sentido de reinterpretar o seu habitus, a diferenciar práticas pedagógicas numa

mesma aula, etc.

Na realidade, uma turma pode conter dois ou três grupos de alunos, em termos de

desenvolvimento e capacidades. O professor terá de aprender a funcionar com esses

subgrupos, por exemplo, através da concessão de pequenas parcelas de autonomia

por forma aos miúdos irem aprendendo a trabalhar em conjunto organizadamente,

assumindo o professor para si um papel de gestor, dinamizador e contendor desta

dinâmica.

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Depois, e se repararmos, a discussão em torno dos problemas da escola sempre se

fez pondo o enfoque demasiadamente nas metodologias e nos pedagogismos, não

prestando muita atenção, como já salientei, à instituição como uma forma muito

particular e organização social. Daí que me pareça que disciplinas como Teoria das

Organizações e dos Grupos Humanos, a Psico-Sociologia dos Pequenos Grupos, e

outras disciplinas destas áreas, possam dar contributos muito esclarecedores.

D. S. - Está a falar de uma mudança de mentalidades...

E. B. - A mentalidade é qualquer coisa que vai mudando sempre, ainda que

lentamente. Não é esse o problema, isso é uma das tais frases de treta... Insisto, é na

forma como a escola tem de ser reconcebida, na reorganização da formação e

acompanhamento regular dos professores, que estão os principais segredos.

É urgente redefinir os conceitos estruturadores à luz da vida social actual e observar

a desvirtualização dos novos conteúdos curriculares, sobretudo para que o trabalho

que os miúdos são chamados a realizar adquira sentido.

Agora, eu gostava de levantar também qualquer coisa sobre o chamado insucesso

escolar. Nada nos prova que a maior parte das crianças que falham ou não progridem

nas aprendizagens tenham atraso mental, ou qualquer coisa deste tipo. De uma forma

geral trata-se de crianças com capacidades dentro da média (ainda que algumas de

média baixa) para uma vida escolar normal. Para lá destes aspectos todos que temos

vindo a discutir, sabemos também que há uma série de características do perfil

psicológico das crianças que se têm vindo a alterar ao longo do tempo e o ensino

ainda não levou essas alterações em conta. Depois, há todo um conjunto de outras

causas sobre as quais devemos reflectir. Neste aspecto, seria muito longo estar aqui,

no contexto desta conversa, a dissecá-las. Gostaria, no entanto, de levantar uma delas

que me dá volta à cabeça, e que me parece ser outro equívoco do nosso tempo. Diz

respeito à ideia que dominou as últimas décadas de que somos todos iguais e que

temos todos as mesmas oportunidades. Ora, não somos todos iguais e temos tido

apenas iguais deveres e caminhos. Os professores embalados nisto dizem assim: «Na

minha aula trato-os todos da mesma maneira e a matéria é igual para todos...» Eu fico

com os cabelos em pé! Acho que aquilo que se pretende transmitir é que se aceitam

tão bem as diferenças que isso não tem importância. Bom, esta atitude é muito

manhosa porque ela revela uma total indiferença perante as diferenças dos alunos;

diferenças de personalidade, de património e hábitos culturais, de desenvolvimento

intelectual, de formas de funcionamento mental, social, etc. O sistema permanece

cego e não fornece meios capazes aos professores para manejarem e atenderem às

diferenças. Portanto os alunos em situações iguais obtêm resultados desiguais. Esta é

uma perspectiva geradora de insucesso.

Estou convencida de que se poderiam evitar muitos «casos» através da

diferenciação das práticas pedagógicas desde o início. Isso daria aos professores

possibilidades de cultivar o sucesso da maior parte das crianças e do seu, conforme

referi há pouco.

P. S. - Ora bem, chegámos à questão do sucesso que eu já sei que é uma coisa

muitíssimo importante. Há pouco, quando estava a falar no papel destes grupos - e

vocês, que se constituíram numa espécie de grupo de intervenção, sabem-no bem -,

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estava a pensar na utilidade que estes grupos podem ter nesta fase de transição em

que estamos. Mesmo que fosse por simples concepção teórica, acho que as coisas

funcionariam melhor se a escola fosse mais permeável às coisas de fora.

Mas voltando à questão do «sucesso». Esse é um termo que me assusta muito. Na

escola as crianças e os adolescentes devem, mais do que aprender, encontrar um

destino útil para o que lhes ensinam. É nosso dever, isto é, dos pais, dos professores,

dos alunos, perceber se com isso se sentem mais felizes, pois uma dentro das muitas

coisas que a fachada do sucesso não mede é o verdadeiro gosto de crescer e desejar

aprender em harmonia num bem-estar emocional e afectivo. Às vezes, quando vejo

meninos na consulta ou penso no tempo em que fui professor, lastimo muito que a

avaliação, a nota, o tal sucesso possa ser a única coisa valorizada, e faça esquecer

tudo o resto de mais importante que cada criança ou adolescente tem dentro de si...

Falar do sucesso do insucesso ou, ao contrário, do insucesso do sucesso, era quase

outra conversa. Como é que podemos medir o que é o sucesso para cada um? A

verdade é que começa a haver cada vez mais pais que percebem que podem ajudar a

libertar os seus filhos da enorme pressão do tal «sucesso». Acho que são aqueles que

sabem ou intuem, que não é só importante o seu filho vir a ser doutor disto ou daquilo

(há tantos doutores desempregados!), pois eles têm mais coisas em que podem e

devem ser felizes, mesmo se vistas as coisas só em termos de profissões futuras. E

então, viver como é?

Isto já não é tão utópico assim. Vejo cada vez mais professores e pais sensíveis que

conseguem pensar deste modo.

N. S. - É verdade, felizmente... mas não podemos esquecer a pressão social do

sucesso. Cada vez mais o sucesso aparece associado à procura obsessiva do status

material, da ascensão social, e estes objectivos estão muito ligados à formação

académica. Privilegia-se a competição e a busca do poder, estimula-se o Ter em

desfavor do Ser. Este jogo especulativo e de manipulação emocional continua a ter um

grande impacte, mesmo para os que querem libertar-se dela.

E é a escola que tem o papel fundamental de definir quem pode atingir estes

objectivos de valor académico, definidos socialmente. Os jovens e os pais sabem que

a possibilidade de fazer projectos futuros está intimamente ligada ao seu sucesso

escolar. O insucesso gera a impossibilidade de realizar as suas aspirações. Apertados

nestas contradições, os jovens não sentem a escola como um lugar de aprendizagem,

mas como uma instituição com normas e avaliações que dão acesso a lugares.

Geralmente observamos que os maus alunos, ditos do insucesso, são os que têm

pior imagem de si. Têm uma rápida saturação e uma persistente insatisfação. Então,

parece que todos temos de parar para reflectir nestas várias facetas dos problemas.

Remato com um pequeno episódio: uma jovem de 13 anos que recorreu ao Núcleo de

Estudos do Suicídio, em grande sofrimento. Sobre ela dois acontecimentos eram

marcantes: as conversas com seu pai baseavam-se exclusivamente nas notas

escolares e na necessidade de ela ingressar na Faculdade, coisa que o pai desejou e

não realizou.

Na véspera da sua tentativa de suicídio, foi chamada pelo professor para receber um

teste de nota negativa, e à frente de todos os colegas o professor apontou-a como a

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pior de todas as alunas da aula. Devo acrescentar, para meditação, que esta nota fora

a sua primeira negativa.

P. S. - Pois é, algumas escolas talvez precisassem mesmo de parar, para pensar

com os seus filhos (que graça, chamei filhos aos alunos dos professores!), sobretudo

nas alturas mais problemáticas de cada um deles.

D. S. - Temos experiência de como é importante reflectir em conjunto sobre uma

situação de crise, sem tomar medidas avulso. Quando numa escola a violência cresce

em intensidade, quando há um suicídio ou um agravamento nítido dos consumos

tóxicos, estes comportamentos precisam de ser analisados como mensagens

potencialmente geradoras de mudança. A angústia da crise torna o sistema escolar

permeável a uma nova organização. É por isso que continuar como se nada se tivesse

passado é o pior dos caminhos.

E. B. - Estou agora a lembrar-me de algumas coisas do livro de Joaquim de Azevedo

que me tocaram, porque vão no sentido daquilo que penso: são, por exemplo, as

questões que dizem respeito ao emprego e às profissões. Tudo se apresenta muito

indefinido, actualmente. A própria noção que temos do emprego parece não ser muito

ajustada àquela que se nos está a deparar. É mais prudente pensar em termos de

«qualificações para vários trabalhos». É muito importante ajudar tanto os pais como os

professores e os jovens a pensar por esta via mais realista e sobretudo ajudar a

descobrir e a perceber que, seja como for, uma coisa parece certa: os trabalhos que

aparecem como possíveis saídas exigirão um alto grau de conhecimentos, de saberes

variados e bastante desenvolvidos. Outra coisa que me chamou a atenção: a

importância que J. de Azevedo atribui a certos grupos a que chama massa crítica,

como certos líderes que podem desenvolver acções de vária ordem no sentido da

mudança. Às vezes dou por mim, quando reflicto no trabalho que temos andado a

fazer pelo País, como um grupo desse tipo, que desenvolve um trabalho a nível

intermédio: entre as estruturas político-administrativas do Ministério, a investigação

pura e dura ou muitíssimo especializada e os professores que trabalham na acção

directa estão muito sós no terreno, frequentemente vítimas de uma série de acções de

formação contraditórias, com uma preparação bastante desajustada da realidade, em

relação às competências que lhes são pedidas actualmente. É indispensável esta

análise mais aprofundada porque, para além dos aspectos que já discutimos, creio

que estamos a assistir também a uma mudança para uma outra concepção de

homem, de sociedade, de uma outra organização entre os homens e as instituições, e

a sociedade em geral.

D. S. - Que poderemos então dizer a um professor recém-formado, colocado numa

escola do interior do País, com poucos recursos? Em primeiro lugar, dizer-lhe para

olhar em volta, tentar perceber o que se passa na turma em termos de comunicação e

em cada aluno em termos da sua pessoa. Depois, dizer-lhe também que não pode

estar sempre à espera de Lisboa, esse jovem professor é uma pessoa que pode

estabelecer pontos de contacto com outras estruturas da comunidade onde a escola

se insere. Em terceiro lugar, ajudá-lo a definir prioridades, já que ele sozinho não pode

resolver todos os casos difíceis. E nessa hierarquia é essencial que ele perceba que,

se quer ter algum êxito como docente, tem de arranjar tempo para falar com os alunos

e permitir que eles se aproximem.

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N. S. - Parece-me esta pergunta das mais delicadas porque implica emitir opiniões

acerca do como fazer. Com isso temos que ter muito cuidado. No meu dia-a-dia sou

inundada tanto pelos jovens como pelos pais por perguntas dessa natureza: como ser

pai ou mãe, como gerir os pequenos e grandes conflitos familiares... Esperam

respostas que possam levar no bolso. Estas questões exprimem dificuldades, mas

também estão impregnadas, não só de uma atitude de receio como de demissão,

atribuindo a alguém o poder de decidir por eles. Se os conselhos falharem... é que...

não serão eles os responsáveis! Desta forma perdem-se as hipóteses de reflexão e

descoberta das suas próprias estratégias. Parece que se perdeu o bom senso.

Neste sentido diria primeiro a esse professor que, ao olhar para dentro da sala de

aula, olhasse para dentro dos alunos, para o mundo interno daqueles jovens. Todos

têm evoluções e ritmos diferentes e, portanto, comportamentos e aprendizagens

diferentes, mas características psicológicas próprias e comuns. Comunicam através do

comportamento, são semelhantes a uma esponja muito permeável que absorve tudo e

projecta muito, e crescem vendo-se ao espelho do que os adultos fazem e dizem. A

compreensão deste processo permite entender, descodificar os comportamentos e

descortinar os sinais de alarme. Evita-se desta forma o risco de rotular

comportamentos episódicos e naturais como doença ou, pelo contrário, deixar passar

despercebidos sinais que traduzem um sofrimento a precisar de ajuda. Esta questão

toca-me particularmente porque muitos jovens invadem os nossos serviços

desnecessariamente, tornando-se em casos, o que é sempre estigmatizante, ou

chegam lá tarde de mais. Que os professores lutem por uma formação que contemple

estes aspectos.

Diria ainda que descobrisse, imaginasse uma forma de possibilitar uma participação

maior dos alunos, dando-lhes algum espaço para poderem exprimir as suas opiniões,

não só em relação à matéria mas também acerca de si e das suas vivências. Não nos

podemos esquecer de que os jovens são muito solidários mas muito críticos entre

eles. Nesta perspectiva poder-se-ia criar um espaço mais humanizado, logo facilitador

da criatividade e da aprendizagem de algumas normas e regras de convivência.

Por último, acrescento que perante situações que sinta como difíceis ou

aparentemente incontornáveis não se sinta sozinho nem opte por actuar isolado, mas

antes procure soluções com os colegas ou nas estruturas existentes na escola e com

as famílias.

P. S. - Pensem que para além deles como pessoas à sua frente estão outros 30 que

são diferentes e têm o seu mundo próprio, e que apesar de todas as suas diferentes

características estão, salvo raríssimas excepções, ávidos de receber muita coisa e têm

à partida uma expectativa positiva muito grande em relação a cada uma das pessoas

que como professores lhes aparecem à frente. Que percam tempo, porque esse tempo

há-de depois ser ganho, a tentar perceber e conhecer melhor que alunos têm ali à sua

frente. Na última escola onde ensinei, que era uma escola só de rapazes, perdi as

duas primeiras aulas a jogar futebol com eles, para perceber como é que eram, como

se chamavam e lidavam entre eles, como reagiam.

Depois, que dentro de todas as dificuldades que possam surgir com os alunos não as

vejam como coisas especificamente dirigidas contra eles enquanto professores; que

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as entendam como algo mais alargado e que, portanto, não se sensibilizem

negativamente se isso acontecer.

Que vejam ainda a questão dos programas como algo a respeitar, claro, mas

também como qualquer coisa em que é justo existir uma maleabilidade adaptável a

cada circunstância (meio, condições culturais, etc.), e que em último caso possam

também perceber que «dar matéria» pode ser um meio para um objectivo mais lato e

interessante que é formar. Depois, que possam compreender igualmente que ainda

existem grandes distâncias entre o que são os tais conteúdos programáticos e as

necessidades práticas para o dia-a-dia dos alunos. Para a diminuir, que possam usar

um bocadinho mais a sua criatividade, que pode até ser coisa fácil... A propósito disto,

queria fazer um reparo: acho que ainda há muita insistência em fazer em grupo todo

este tipo de trabalho. Ora, acho que temos de perceber que em determinados

momentos há alunos que podem ter mais dificuldade em trabalhar dessa forma, e

também acho que não podemos diluir o que é individual perante o colectivo. Depois e

ainda, tal como o Prof. Daniel disse, que os professores não trabalhem sozinhos, que

com os colegas procurem uma sintonia para a sua escola. Tenho a ideia de que os

professores se reúnem pouco para falar dos seus alunos; por exemplo, penso que é

fundamental valorizar o que se sente por cada um dos alunos, tirando a avaliação, o

seu restrito aspecto formal de contabilizar testes... E há mais outra pista, que é a de se

esforçarem por olhar mais o positivo dos alunos; isto parece muito simples, mas se

insisto é porque acho que muitas vezes se chega ao ponto de se antecipar o mau e o

negativo. Talvez possam pensar por que é que eles próprios, como pessoas, toleram

mal certos aspectos dos alunos; que se escutem a si próprios para poderem escutar

os alunos identificando-se com eles nos diferentes momentos. Identificar, não

confundir... Por último, que não se esqueçam de que estão sempre a funcionar como

um modelo: portanto, serão respeitados se respeitarem, serão ouvidos se ouvirem, e

por aí fora.

E. B, - Perante tanta coisa que vocês já disseram, aflige-me acrescentar outras. Foi

dita tanta coisa do que é possível e mesmo do que não é possível fazer... Muitas das

ideias afloradas dariam, cada uma delas, um capítulo doutro livro!

A pergunta inicial que o Prof. Daniel colocou é muito armadilhada e eu já não tenho

idade para cair nesse tipo de esparrela. Eu sei lá quem é o professor que me

apareceria? Que tipo de pessoa e, ao mesmo tempo, que tipo de profissional? Que

equipa docente teria essa escola? Qual a cultura própria, globalmente vivenciada

nessa escola? Em que zona do País? Enfim... tudo isso faz variar a atitude de quem é

de repente colocado numa escola!

Depois, se há coisa em que não há consenso neste momento, é exactamente o que

é a escola e para que serve verdadeiramente. Essa é uma grande dificuldade inicial.

Portanto, provavelmente, eu teria tendência para não dizer nada e, primeiro que tudo,

teria de ouvi-lo muito.

As medidas práticas que podem ser tomadas com segurança, pelos professores e

educadores em geral, são coisas a que gosto de chamar medidas de transição e têm

que ver basicamente com a gestão da vida do grupo/turma: devagarinho, ir alterando a

rigidez e passividade da turma, no sentido de permitir o aparecimento dos grupos

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naturais, para ensaiar pequenas parcelas de funcionamento desses subgrupos de

forma cooperativa e com mais alguma autonomia. Depois, fazer a interligação disso

através de um meio próprio como o jornal de parede, que além de poder funcionar

como uma síntese organizativa contempla a possibilidade de devolver aos alunos,

enquanto parceiros sociais, algum direito à palavra e ao exercício do pensamento

crítico. Isto em relação à prática. Do ponto de vista mais teórico, é preciso que se

entenda que em primeiro lugar nós temos um funcionamento interno e que é útil saber

alguma coisa a respeito disso e que a escola também nunca contemplou. Perceber

que o comportamento é para ser entendido como significante dessa vida interna e não

para ser lido de chapa, e imediatamente punível.

Percepcionar as grandes mudanças que se estão a operar nas sociedades e deixar-

se apaixonar, ainda que criticamente, por essa mudança. Não adianta fazer

contravapor e deixar-se abater, deprimindo-se ou odiando o movimento natural da

evolução social.

D. S. - Às vezes não é fácil fazer um jornal de parede, quando os alunos andam a

saltar de sala em sala e não têm um espaço verdadeiramente seu...

E. B. - É a tal história do princípio da sua pergunta... por isso lhe perguntei: que

professor?, que escola?, etc. Não há medidas isoladas para serem aplicadas

pontualmente. As escolas, como já foi dito, não são todas iguais, nem funcionam todas

ao mesmo nível pedagógico, graças a Deus! Algumas medidas que referi,

provavelmente podem ser experimentadas nalgumas escolas, mas em relação a

outras já não seria possível, sem fazer outras coisas primeiro...

Da minha experiência na formação de professores sei que, nalgumas escolas,

trabalhar cooperativamente com os miúdos já começa a ser mais fácil, mas tenho

conhecido outras situações em que os professores não conseguem sequer trabalhar

em equipa, o que coloca todo um outro tipo de problemas a resolver primeiro. Há

ainda muitas e muitas escolas em que temos de começar pelo mais elementar; como

seja a tomada de consciência das atitudes que os próprios professores assumem

entre si, para depois poder chegar à transformação das atitudes perante os miúdos e

perante a própria escola. Há todo um modelo de professor interiorizado que é

inconscientemente reproduzido. Temos que desconstruir esse modelo falido e ajudar

os professores a sair desses lugares defensivos. Todo esse trabalho de formação tem

de ser planeado e faseado, de acordo com o nível em que cada grupo está.

D. S. - Tenho defendido que em muitas questões só poderemos avançar através da

co-responsabilização. Como é possível, por exemplo, considerar que o problema da

indisciplina é uma questão de alguns alunos «desestabilizadores?» Não será através

do confronto e da responsabilidade partilhada que se pode gerar mudança?

E. B. - Exacto. Os professores confundem frequentemente confronto com afronta e a

partir daqui interpretam mal os miúdos e bloqueiam a comunicação, a livre circulação

de ideias e o fluir das relações. Os alunos confrontam os professores de várias formas,

mas em condições normais isto quer dizer ficar frente a frente para procurar boas

imagens de identificação, o que é sentido pelos professores como afronta. Afrontar é

injuriar, são coisas totalmente diferentes. Só há uma forma de evitar que os miúdos

nos afrontem: é permitir, num ambiente pedagógico saudável e com regras claras tão

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consensuais quanto possível, que eles se confrontem connosco. Quando nos

confrontamos estamos a oferecer-nos como modelo de segurança e de identificação

através da relação e do diálogo reflectido colectivamente.

D. S. - Mas na prática o que faria se um dos alunos pegasse numa naifa e estragasse

a sua pasta toda?

E. B. - O Professor adora fazer-me estas provocações! Como se houvesse receitas,

quando sabe bem que as não há. Um episódio desses terá por detrás, seguramente,

uma longa história de uma relação que se entortou (desvirtuou) completamente.

D. S. - Imagine um professor de 24 anos, colocado em Almeida, e um aluno do 8º

ano com antecedentes de insucesso escolar... qual seria a sua reacção?

E. B. - Oh, Daniel!... não vale a pena estar a tentar que eu caia na esparrela de dizer,

numa situação abstracta, o que quer que seja de concreto porque corríamos o risco de

isso ser colado por alguém e aplicado de chapa. Este é o tipo de brincadeira perigosa.

D. S. - É o género de perguntas que os professores fazem.

E. B. - Sei que as fazem, mas temos que ver em que condições podemos dar

sugestões. Por exemplo, numa acção de formação ou num debate, onde podemos

dialogar com o nosso interlocutor sobre o conjunto das razões ou interacções que

levam a situações limite, pode ser proveitoso fazê-lo. Mas não devemos enganar os

professores ou educadores caindo no disparate de dar uma solução linear (simplista) a

situações tão complexas e difíceis como as que se vivem nas escolas.

P. S. - Lembro-me de uma história que vivi com um aluno. Foi num ano em que

também dei aulas a um 9º ano. A história passa-se quando eu ainda mal conhecia a

turma e fomos numa visita de estudo organizada por outro professor. Durante a

viagem esse rapaz, repetente e extremamente indisciplinado, foi todo o tempo a fazer

uma série de provocações. Recordo-me de que quando as coisas chegaram ao limite

lhe perguntei: mas afinal o que é que se passa contigo? Ele não me disse nada.

Depois, continuámos a visita, e passado um grande bocado ele veio ter comigo e

começou a falar de coisas importantes dele e de outras que se passavam lá em casa.

É curioso, tenho muito presente esse miúdo, porque dois ou três meses depois foi

expulso. Quando ele se foi embora deixou-me um bilhete, que ainda guardo, que dizia

qualquer coisa como «obrigado por me ter percebido». Isto é para rematar com uma

ideia importante: temos de estar alerta para os miúdos que mostrem particulares

dificuldades na escola, porque esta é um grande espelho do saudável funcionamento

psíquico. Portanto, não podemos esquecer de relacionar escola e saúde mental.

E. B. - Deixe-me só acrescentar um pequeno segredo de Polichinelo que a

experiência me ensinou, mas apenas como um princípio orientador geral, que se

poder colocar assim: o professor consegue dar a volta a certas situações, quando

responde ou reage fora daquilo que o aluno espera em termos de lógica habitual de

procedimento.

Isto é: de forma geral nós sabemos mais ou menos (adultos e miúdos), por razões

culturais, os comportamentos que são previsíveis num certo tipo de situações. São

essas que os miúdos esperam e ingenuamente são essas que os professores dão;

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reacções simétricas. Portanto, se sairmos desta lógica esperada e passarmos para um

outro registo inesperado (nem que seja surrealista), eles ficam de tal forma

surpreendidos que paralisam, dado o efeito de surpresa ou de imprevisibilidade.

D. S. - Por exemplo, quando o aluno se agita e desata a falar alto na escola, o

professor pode calar-se momentaneamente...

E. B. - Pode ser, porque em princípio o aluno espera uma reprimenda, um grito, uma

bofetada, uma falta disciplinar, etc. Mas imagine que, de repente, eu me ponho a olhar

para o chão como alguém que perdeu alguma coisa muito importante e estou aflita à

procura!?... É divertidíssimo ver as reacções dos miúdos perante cenas que os

desarmam.

N. S. - Apercebi-me de que um dos principais problemas para os professores na

relação com os alunos mais difíceis é o medo de que a sua actuação os vá

traumatizar. Este receio existe também nos pais. Acho que nós e os media

contribuímos para isso com tanto psicologismo. Daí as minhas reticências em relação

às receitas, já há tantas...

Para não traumatizar, e também com receio de se descontrolarem e reagirem de uma

forma simétrica, os professores ficam frequentemente bloqueados em atitudes

defensivas: rejeição, abuso do poder, passividade ou a ingenuidade do excesso de

companheirismo. Que desilusão para o jovem que encontra a não diferença ou a

indiferença quando deseja a confrontação para se descobrir e perceber os limites do

agir. Pelos comportamentos provocatórios, o que ele pretende essencialmente é ser

entendido, protegido e contido pelo professor como alguém mais forte, mais seguro,

mas não esmagador. É isto que ele espera do adulto porque ainda não é capaz de o

fazer sozinho. Se se reage pela rejeição ou impelido pela angústia, perde-se a

hipótese de conter de uma forma justa e afável.

Rebeldia não é doença; claro que há gradações: quando se torna numa violência

mantida, já não se trata apenas de confronto mas sim de sofrimento, é um sinal de

risco, e então é necessário procurar ajuda.

Temos que estar atentos, disponíveis, e encontrar um ponto de equilíbrio entre a

firmeza e o afecto.

D. S. - E agora vamos acabar e pedir às pessoas para fecharem o livro e pensarem

nesta conversa, está bem?

2 Um outro clima escolar

Espero ter transportado o leitor, ao longo deste livro, na fascinante aventura da

escola. Vimos cenários diversos, encontrámos protagonistas desta história e

procurámos desfazer encruzilhadas. Conversámos com a brigada das escolas e

falámos com meninos que aprenderam na escola da vida. Muito se falou da escola e

muito ficou por dizer.

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É altura de um balanço. Onde estamos e o que nos espera?

Não há dúvida de que o sistema escolar português se modificou nos últimos vinte

anos. Assistiu-se a uma baixa de alunos no 1º ciclo do Ensino Básico, deixando

desertos alguns edifícios escolares. Procedeu-se a uma escolarização teoricamente

completa no 2º ciclo, embora com um número significativo de abandonos. A

escolaridade obrigatória alargou-se ao 9º ano, com um crescimento intenso do número

de alunos, pelo menos até 1992. O Secundário tem sofrido sucessivas alterações, das

quais as mais importantes foi a criação do Ensino Técnico Profissional. O Ensino

Superior avança muito lentamente, quer nas possibilidades de acesso quer na

qualidade do ensino.

A escola de hoje não parece cheia de sucesso. Basta ver as pautas de qualquer

escola secundária para verificar que existe um elevado número de reprovações. No 9º

ano, apenas cerca de 30% dos alunos são aprovados em todas as disciplinas e as

taxas de abandono escolar no final do 2º ciclo são muito elevadas, atingindo 25%

nalguns distritos.

A rede do pré-escolar é muito deficiente e desarticulada dos restantes graus de

ensino (7) e todo o sistema carece de uma linha de rumo e de uma filosofia global, que

sucessivas mudanças das equipas ministeriais têm contribuído para acentuar.

Apesar do notável esforço da maioria dos professores, a escola de hoje parece sofrer

de um sentimento geral de frustração. Os docentes, permanentemente preocupados

com as vicissitudes de uma carreira mal remunerada e pouco prestigiada, revelam

muitas vezes insegurança e inquietação, não raro medo e desânimo na sua relação

com os alunos. Os mais novos oscilam entre a resignação e o tédio, às vezes entre o

protesto construtivo e a contestação anárquica. Persistem em slogans como a vida

boa é lá fora ou estou cansado do stress das aulas, como me confidenciaram uns

estudantes numa acção de formação. Os pais mostram desinteresse pela vida escolar

dos filhos ou têm dificuldade em ser eficazes quando surgem problemas. E no entanto

os jovens continuam na escola na sua maior parte e chegam a dizer que se a

deixassem seria o vazio.

Um relance global mostra, como afirmámos ao longo do Voltei à Escola, muitas

dificuldades. Existem muitos edifícios escolares com problemas e falta de recursos,

escasseia o pessoal auxiliar, a escola tem pouca ligação com o exterior e é vista de

um modo negativo por grande parte da sociedade (a propósito, por que razão as

televisões só falam da parte problemática da escola?). Há várias razões de fundo para

esta situação. A cultura juvenil, organizada em volta dos tempos livres e de lazer, está

oposta à da escola, tradicionalmente a privilegiar o esforço e a aplicação. Os pais

oscilam no modelo educativo, agora que deixaram definitivamente para trás aquilo que

viveram como filhos e ainda não sabem bem como fazer de novo. Há alunos de todas

as origens e professores para todos os gostos, mas parecem cada vez mais ter

dificuldade em comunicar entre si.

7 Para estes e outros dados referidos neste capítulo, cf. o excelente livro Azevedo, J., Avenidas de

Liberdade, Porto, Edições Asa, 1994.

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A escola actual não garante a mobilidade social de outras épocas. No meu tempo, os

meninos com mais posses andavam no liceu e sem grande dificuldade poderiam

entrar na Universidade, os mais pobres iam para a Comercial ou Industrial e

arranjavam um emprego. Agora ficam pelo caminho ou chegam ao 12º ano e não

sabem fazer muito. Dizia-me há tempos um aluno do 3º ciclo: «Oiço as professoras,

sei o que hei-de pôr nos testes, tenho boas notas... mas não sei o que aquilo quer

dizer!» Na escola actual, o lema não é, infelizmente, eu tenho vontade de aprender,

mas sim eu sou obrigado a aprender, o que não gosto, o que não quero, o que não me

interessa (8). A escola de hoje perde sentido, porque o modelo educativo que lhe serve

de base está longe de ser claro.

A escola de amanhã terá de ter outro clima. Se considerarmos o estabelecimento de

ensino como uma organização, poderemos considerar que cada escola tem uma

espécie de personalidade e de «maneira de ser» que lhe é própria, determinada por

uma série de variáveis que intervêm na sua composição. De acordo com Brunet (9), as

três grandes variáveis determinantes são a estrutura, o processo organizacional e as

variáveis comportamentais. Na estrutura da escola intervêm, entre outras, a dimensão

da escola, os níveis hierárquicos e a especialização de funções. O processo diz

respeito sobretudo à liderança, à comunicação e à resolução de conflitos, enquanto as

variáveis comportamentais têm de ser entendidas em termos individuais e de grupo.

Para alterarmos um clima escolar sentido como desagradável, teremos de actuar

nestes três níveis de análise organizacional, isto é, tem de se mexer bem a fundo no

modo como funciona a escola.

No 1º nível (estrutura), será necessário lutar pela melhoria das instalações e pela sua

modernização, utilizando os recursos disponíveis e criando novas fontes de

financiamento; determinar a extensão dos diversos departamentos e sectores e

proceder à especialização de funções; estabelecer hierarquias após discussão do

projecto educativo.

No 2º nível (processo), a liderança é essencial. Sou a favor de um Director Executivo

ou de um Presidente do Conselho Directivo que tenha um ROSTO. É preciso saber

quem, de facto, dirige a escola e a quem nos poderemos dirigir em primeira mão.

Sabemos como a muitos adolescentes actuais faltam figuras de referência, na família

ou na sociedade. O Director é alguém que podemos apreciar ou não, mas que

sabemos quem é! Como vimos, nada será possível fazer sem a melhoria da

comunicação na escola, a todos os níveis. Impressiona como às vezes ninguém

parece saber o que foi decidido na véspera, ou como, quando alguns avançam

rapidamente, são acusados de elitismo. Os conflitos na escola terão de ser discutidos

e não negados, e não é possível fazer de conta que eles se resolverão por si.

8 Barros, Eulália, Comunicação em colóquio, Dezembro de 1995.

9 Brunet, L., «Clima de trabalho e eficácia da escola», in Nóvoa, A. (coord.), As Organizações Escolares

em Análise, Lisboa, D. Quixote, 1992.

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Comportamentos disruptivos não nascem naquele momento, têm atrás de si uma

história que urge conhecer.

No 3º nível (comportamento), a escola tem de conhecer os elementos do seu próprio

sistema e compreender os fenómenos do grupo adolescente. Muitas das dificuldades

dos professores resultam da sua distância face aos alunos e do seu desconhecimento

da realidade da adolescência actual.

Diversos autores, citados por Brunet, têm revelado a importância de um clima de

afecto, para o êxito dos alunos e para a eficácia das escolas, conseguido através de

um permanente sinergismo funcional de professores, alunos e pais, como defendemos

em diversos sectores deste livro. Os resultados dos alunos parecem também ser

positivamente influenciados por tomadas de decisão partilhadas com os docentes,

liderança pedagógica clara e implicação dos pais.

Para um bom clima escolar é importante uma preocupação com as relações

interpessoais, bem como a permanente coesão dos professores e o apoio efectivo aos

alunos com estímulo à sua participação. Nas escolas com dificuldades, é preciso

reconciliar o aluno e o professor com o colectivo, desenvolvendo momentos que

permitam o reconhecimento mútuo e a pertença àquela organização. Todo o esforço

deverá ser o de dar sentido a uma condição obrigatória, isto é, fazer com que as

pessoas se sintam bem para aprender (e não como hoje, em que se pensa ser

importante aprender de qualquer maneira para mais tarde, talvez, nos sentirmos bem).

No meu anterior livro Inventem-Se Novos Pais terminava com uma lista de propostas

que foram muito divulgadas. Não tenho a certeza de que o processo resulte desta vez,

mas não se perde nada em tentar. O não está sempre certo, como dizia a minha avó.

Aqui vai, a terminar, uma colecção de esperanças:

1) A democracia na escola é a melhor forma de acabar com a indisciplina e garantir

um projecto comum que não permita o deixar andar. Para isso são essenciais: o

regulamento da escola, a definição partilhada das prioridades da organização escolar

e sentido do seu projecto educativo.

2) O CD e os alunos falarão. O Presidente do CD ou o Director da escola circulará

pelos pátios frequentemente e estará disponível quase sempre. Os outros elementos

do CD tratarão de outras coisas e consumirão mais árvores.

3) Nas escolas existirão comissões e grupos de trabalho não previstos na lei, que se

ocuparão de coisas novas e que dêem prazer (actividades, tempos livres, melhoria dos

jardins, música, etc.).

4) Os alunos pedirão justificação por escrito a todos os professores que marquem

mais de três faltas disciplinares por semana, ou que passem por eles nos intervalos

sem os cumprimentar.

5) O Director de Turma terá mais duas horas por semana para falar com os alunos e

pais e será ajudado por Professores-Tutores, escolhidos de dois em dois anos a partir

de quem se oferecer para o efeito. Estes professores terão menos horas de aulas para

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essas tarefas e desculparão os colegas que os invejarem ou de alguma forma

boicotarem.

6) Os pais verão menos duas horas de televisão por mês para irem à escola dos

filhos. Se a visita coincidir com o horário de trabalho e as empresas não deixarem,

deverão queixar-se ao Presidente da República (garanto que os apoiarei nos próximos

cinco anos).

7) A escola ritualizará momentos significativos: haverá o Dia da Escola, o Natal e o

Carnaval (de preferência sem ovos), a véspera das férias grandes, o dia dos

namorados e o dia dos que passaram à reforma, o day after da visita do Ministro ou o

que apetecer comemorar.

8) A mensagem actual «Submete-te ou desinteressa-te» ser substituída pelas frases

seguintes: para os alunos - o nosso silêncio é o poder deles; para os professores - sei

por que razão estou aqui; para os pais - vamos acordar enquanto é tempo.

9) Em todas as escolas se tentará resolver o problema surgido, antes de mandar um

fax ao Ministério da Educação.

10) Palavra-chave para combater a indisciplina e o absentismo: CO-

RESPONSABILIZAÇÃO.

11) Jamais um aluno ser mandado ao psicólogo e ao psiquiatra só porque se portou

mal mas aulas.

12) Todos os alunos doentes ou que peçam ajuda serão prontamente atendidos,

sendo encaminhados para consultas sempre que necessário.

13) Os professores organizarão grande parte da sua formação chamando à escola

quem goste dela. Mestrados americanos não serão garantia a priori.

14) Será organizada a participação dos pais na escola que, por sua vez, não deverão

pensar apenas no seu filho.

15) As iniciativas jovens com credibilidade serão apoiadas sem demagogia.

16) Deverão ser promovidos valores, atitudes e comportamentos que caracterizem

aquela escola.

Finalmente:

A escola será um lugar social que promove não só a instrução mas também a

socialização.

Epílogo

Já este livro estava concluído quando recebi os primeiros resultados de um vasto

estudo realizado junto de adolescentes portugueses, sob minha coordenação científica

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e com o apoio do Programa de Promoção e Educação para a Saúde do Ministério da

Educação (Dir. Drª Catalina Pestana). Tratava-se de um inquérito intitulado Escola,

Família e Amigos, solicitado a cerca de 10.000 estudantes, em escolas oficiais de

Portugal Continental. São as seguintes as características gerais da amostra:

1 - 10.065 sujeitos, dos quais 4724 rapazes (47,2%) e 5294 raparigas (52,8%).

2 - Idade média 15 anos, desvio-padrão 1,5 anos.

3 - Distribuição por anos de escolaridade: 29,3% dos alunos pertenciam ao 8º ano,

para 30,4%, 26,1% e 14,3% para o 9º ano, 10º e 11º anos, respectivamente.

O inquérito distribui-se por 41 perguntas, focando diversas questões relacionadas

com a escola, as relações familiares e o grupo de jovens, cujas respostas serão

objecto de outra publicação. Para já, pareceu oportuno divulgar algumas conclusões

preliminares, após análise de cinco perguntas relativas à escola e ao seu

funcionamento.

Opinião sobre o funcionamento do Conselho Directivo

Nesta questão, era solicitado ao inquirido que classificasse o modo de funcionamento

do CD da sua escola, utilizando uma escala de cinco itens, de «Muito bem» a «Muito

mal». A categoria «Razoavelmente» é aquela que regista uma maior percentagem de

respostas (46,9%), logo seguida das categorias Bem (33,6%) e Muito bem (7,1 %).

Apenas 12,4% dos respondentes avaliam negativamente o funcionamento do CD.

A análise das diferenças entre sexos põe em evidência diferenças estatisticamente

significativas entre rapazes e raparigas, tendo os primeiros uma opinião menos

favorável e menos consensual.

Opinião sobre seis itens caracterizadores da escola

Solicitados a pronunciarem-se sobre a concordância relativamente a questões sobre

o funcionamento da escola, cujas respostas foram operacionalizadas através de uma

variável ordinal com cinco categorias (desde discordância total a concordância total),

os inquiridos expressam diferenças importantes em cada uma das subquestões (ver

Quadro 1, na página seguinte).

Assim, o 1º item é aquele que regista valores percentuais de concordância mais

elevados, reflectidos no valor médio (3,59), dado que os dois pontos da escala

(concordo e concordo totalmente) reúnem uma maioria de respostas (62,2%).

Analisando outros dados do inquérito não transcritos, pode concluir-se que as

raparigas são mais concordantes com a existência de um porteiro como elemento de

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segurança para a escola, com o imperativo da substituição de um professor na

situação de falta de um outro, bem como exprimem a sua maior concordância quanto

à necessidade de os pais participarem mais activamente na organização e gestão da

escola. Ao invés, são menos concordantes com a afirmação de que é inútil discutir

com os alunos o modo de funcionamento da escola.

Quadro 1

Concordância sobre itens do funcionamento da escola (sexos reunidos)

D T D NC ND C C T To tal Item Sobre a escola,

achas que Fi % Fi % Fi % FI % Fi % Fi %

1 Ter um porteiro ajuda a torná-la mais segura

696 6,9 860 8,6 2238 22,3 4229 42,3 1992 19,9 10015 100,0

2 Os espaços para convívio e para actividades extracurriculares são suficientes e adequados para o teu dia-a-dia na escola

1326 13,3 2629 26,3 2529 25,3 2917 29,1 604 6,0 10005 100,0

3 Quando falta um professor a escola deveria oferecer uma aula de substituição

4150 41,5 2689 26,8 2070 20,7 855 8,5 251 2,5 10015 100,0

4 Os teus pais deveriam ter uma participação activa na organização e gestão da escola

810 8,1 1099 11,1 4055 40,6 3072 30,7 963 9,6 9999 100,0

5 Quando existem graves problemas na escola (por exemplo: indisciplina, violência), esses problemas devem ser resolvidos apenas pelos professores e Conselho Directivo

1505 15,0 3141 31,8 1906 19,0 2484 24,7 1012 10,1 10048 100,0

6 É inútil discutir com os alunos o modo de funcionamento da escola, porque os estudantes mudam todos os anos

2286 22,9 3095 30,9 2672 26,7 1506 15,1 437 4,4 9996 100,0

Legenda: DT – Discordo Totalmente; D – Discordo; NCND – Não Concordo Nem Discordo; C – Concordo; CT –

Concordo Totalmente; Fi – Número de respondentes.

Nota: Valores percentuais calculados em linha.

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Opinião sobre o modo como os professores explicam

Os resultados foram operacionalizados através de uma variável ordinal, desde «Muito

mal» até «Muito bem». Verifica-se que as categorias de resposta Razoavelmente

(40,4%) e Bem (49,6%) absorveram 90% das respostas, tornando as restantes

praticamente residuais. A opinião é claramente favorável, com as raparigas a terem

uma opinião mais positiva que os rapazes.

Frequência dos pais à escola, segundo uma tipologia de situações

As respostas obtidas constam do Quadro 2, sendo a análise dos dados individualizada

por item.

Quadro 2

Deslocações dos pais à escola (sexos reunidos)

Itens Fi %

Às reuniões de pais 7263 72,2

Quando há festas ou convívios 735 7,3

A sessões organizadas 1994 19,8

Por causa do aproveitamento escolar (para verem as notas) 6747 67,0

Por causa do comportamento escolar 3371 33,5

Para te levarem e trazerem 2370 23,5

Noutras ocasiões 1345 13,4

Nunca vão 711 7,1

Nota: Os valores percentuais foram calculados por referência ao universo dos 10065 inquiridos.

Sentimento de segurança na escola

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A pergunta era «Sentes-te em segurança na tua escola?», indo as possibilidades de

resposta desde «Sempre» até «Nunca».

Os resultados obtidos podem ser consultados no Quadro 3.

Quadro 3

Sentimento de segurança na escola (sexos reunidos)

Escala Fi %

Sempre 2766 29,0

Quase sempre 3239 33,9

Às vezes 2491 26,1

Raramente 590 6,2

Nunca 456 4,8

Casos válidos 9542 100,0

A maioria dos inquiridos revela sentir-se em segurança na sua escola «Sempre» ou

«Quase sempre», embora a primeira categoria, que corresponde a uma inequívoca

resposta quanto ao sentimento de segurança, exista apenas em 29,0% de respostas.

De notar que 11 % dos inquiridos não exprime uma opinião favorável quanto à

segurança da sua escola.

Não é possível, no momento em que escrevo, tirar conclusões definitivas e fazer o

balanço deste inquérito. Na ocasião em que este livro chegar à mão do leitor será

melhor consultar directamente o estudo, pois certamente ele fornecerá dados da maior

importância, face à dimensão da amostra utilizada.

Para já, quero terminar o Voltei à Escola com uma nota de optimismo que estes

dados preliminares permitem manter.

No relatório da O.C.D.E. de 1987 (10), são apresentadas as dez características

associadas à eficácia de uma escola, a saber: a) normas e objectivos comuns,

claramente definidos; b) tomada de decisão e participação colegiais; c) atitude positiva

da direcção; d) estabilidade do pessoal; e) formação permanente do pessoal; f)

10 La qualit‚ de lenseignement - un rapport explicatif, Paris, O.C.D.E, 1987.

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planificação e coordenação do programa de estudos; g) existência de valores próprios

ao estabelecimento de ensino; h) utilização correcta do tempo escolar; i) participação e

apoio dos pais; j) apoio das autoridades educativas. Também Brunet (11) vai no mesmo

sentido, ao salientar a importância do clima e da cultura da escola para a eficácia do

estabelecimento de ensino. Este autor define o clima como a percepção que os

membros de uma escola têm acerca do modo como lá são tratados, o que

corresponderia a uma espécie de personalidade dessa escola. A cultura seria

constituída pelo conjunto dominante dos valores e crenças explicativas do sentido

próprio daquela escola, sendo essencial para o desenvolvimento do sentimento de

pertença que advogámos anteriormente.

Quais serão as prioridades, para a mudança da escola, que proponho, feito o balanço

deste livro e da minha experiência de contacto com as escolas, bem como dos

resultados preliminares do inquérito, que divulgo neste epílogo? Apetece-me concluir

que são:

1º - Estabilidade profissional dos professores e actualização da sua formação,

atendendo aos problemas específicos da escola onde leccionam. Cursos de formação

práticos, virados para a resolução dos problemas concretos, ministrados por docentes

exteriores à escola, com grande experiência de trabalho com jovens. Professores-

Tutores no apoio aos Directores de Turma.

2º - Regulamento interno em cada escola, definidor de um conjunto de normas

gerais, construído a partir do trabalho conjunto de professores, alunos, funcionários e

pais. CD de portas abertas, com Presidente/Director assumindo claramente a chefia

do estabelecimento.

3º - Apoio permanente às iniciativas dos estudantes, quer através das suas

Associações quer através de Comissões ad-hoc; despiste precoce dos estudantes em

risco e encaminhamento para consultas especializadas, através de articulações

definidas no início do ano escolar.

4º - Reforço do papel dos pais e encarregados de educação no quotidiano escolar,

com especial realce para a construção de um conjunto de valores comuns à escola e à

família, verdadeiramente definidor de uma cultura específica daquela comunidade

educativa.

Estas medidas não parecem impossíveis de concretizar. E os dados do inquérito

referido desde já mostram que a velha ideia de que os alunos não gostam da escola

precisa de urgente revisão.

Fevereiro de 1997

11 Brunet, L., Climat et culture d'école, Mons, Univ. de Mons, Hainant, 1988.