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Revista de @ntropologia da UFSCar Vocês, brancos, são peixes: sobre os equívocos na pesca e na piscicultura entre os Karitiana, Rondônia 1 Felipe F. Vander Velden Professor do Departamento de Ciências Sociais (DCSo/UFSCar) [email protected] Resumo Os brancos são peixes, dizem os Karitiana a respeito dos opok, os não índios – porque saíram de dentro de um rio –, estabelecendo uma conexão entre humanos, animais e espíritos (uma vez que estes, com seus corpos muito brancos, também são associados às águas). Estas são conexões históricas – os brancos, canibais na origem, emergem do rio, atraídos por carne humana assada; nesta apreciação bizarra pela devoração de outros humanos eles se encontram com os psam’em, os perigosos espíritos dos mortos. Mas são também conexões cosmológicas – brancos, espíritos e peixes são seres aquáticos por definição, além de partilharem de uma natureza predatória e deletéria: no caso dos peixes, em função de sua hipóstase, Ora, o trickster traiçoeiro e agressivo que é irmão do criador Botyj. Ora é uma enorme serpente que vive no fundo dos rios e é dona de todas as criaturas que vivem nos corpos d’água. Todos, não índios, espíritos, certos animais aquáticos e Ora, são, a seu modo, ‘bichos’ (kida), criaturas com que o estabelecimento de relações é difícil e que merecem ser aproximadas com cautela. O que acontece, então, 1 Este trabalho foi apresentado no XVI Congreso de Antropología de Colombia/V Congreso de la Asociación Latinoamericana de Antropología, realizados simultaneamente em Bogotá, Colômbia, em junho de 2017. Agradeço aos comentários de Celeste Medrano, Juan Martin Dabezies e Thiago da Costa Oliveira, na ocasião do evento, e de Milena Estorniolo e Verónica Lema, que emitiram pareceres muito dedicados ao artigo. Agradeço, ainda, à Clarissa Martins Lima pela gentileza em ler, comentar e revisar este texto. R@U, 10 (2), jul./dez. 2018: 164-194.

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Revista de @ntropologia da UFSCar

Vocês, brancos, são peixes: sobre os equívocos na pesca e na piscicultura entre os Karitiana,

Rondônia1

Felipe F. Vander VeldenProfessor do Departamento de Ciências Sociais (DCSo/UFSCar)

[email protected]

Resumo

Os brancos são peixes, dizem os Karitiana a respeito dos opok, os não índios – porque saíram de dentro de um rio –, estabelecendo uma conexão entre humanos, animais e espíritos (uma vez que estes, com seus corpos muito brancos, também são associados às águas). Estas são conexões históricas – os brancos, canibais na origem, emergem do rio, atraídos por carne humana assada; nesta apreciação bizarra pela devoração de outros humanos eles se encontram com os psam’em, os perigosos espíritos dos mortos. Mas são também conexões cosmológicas – brancos, espíritos e peixes são seres aquáticos por definição, além de partilharem de uma natureza predatória e deletéria: no caso dos peixes, em função de sua hipóstase, Ora, o trickster traiçoeiro e agressivo que é irmão do criador Botyj. Ora é uma enorme serpente que vive no fundo dos rios e é dona de todas as criaturas que vivem nos corpos d’água. Todos, não índios, espíritos, certos animais aquáticos e Ora, são, a seu modo, ‘bichos’ (kida), criaturas com que o estabelecimento de relações é difícil e que merecem ser aproximadas com cautela. O que acontece, então,

1 Este trabalho foi apresentado no XVI Congreso de Antropología de Colombia/V Congreso de la Asociación Latinoamericana de Antropología, realizados simultaneamente em Bogotá, Colômbia, em junho de 2017. Agradeço aos comentários de Celeste Medrano, Juan Martin Dabezies e Thiago da Costa Oliveira, na ocasião do evento, e de Milena Estorniolo e Verónica Lema, que emitiram pareceres muito dedicados ao artigo. Agradeço, ainda, à Clarissa Martins Lima pela gentileza em ler, comentar e revisar este texto.

R@U, 10 (2), jul./dez. 2018: 164-194.

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quando os brancos sugerem aos Karitiana projetos para a instalação da piscicultura em suas aldeias, ausentes de toda criação doméstica de animais? Este trabalho investiga os múltiplos potenciais descompassos e equívocos – ou diferentes facetas ou atravessamentos de um único e complexo equívoco – colocados em jogo com os projetos para a introdução da criação de peixes nas aldeias indígenas Karitiana no sudoeste da Amazônia brasileira, tendo como ponto privilegiado as visões Karitiana a respeito desses outros ao mesmo tempo engenhosos e temíveis que são os brancos.

Palavras-chave: peixes; piscicultura; Karitiana; criação animal; brancos.

Abstract

White men are fish – the Karitiana say about the opok, the non-Indians, because they came out of the river, creating a connection between humans, animals and spirits (these last ones, with their very white bodies, are also associated to the water). Those are historical connections – white men, cannibals since their origins, emerge from the river attracted by roasted human flesh, and in this bizarre fondness for human meat they are like the psam’em, the dangerous spirits of the dead. But those are cosmological connections too – whites, spirits and fishes are aquatic beings, besides having the same rapacious dispositions: regarding fishes, because of their hypostasis, Ora, the mischievous and aggressive trickster, always in opposition to his brother, the great creator Botyj. Ora is a huge snake that lives in the bodies of water and is the owner of all aquatic beings. And all – non-Indians, spirits, some aquatic animals and Ora – are, in a certain way, ‘bichos’ (beasts, kida, in Karitiana), creatures with whom is difficult to engage and must be approached with caution. What happens, then, when white men suggest to the Kariana the implementation of pisciculture in their villages? This paper addresses the multiple potencial mismatches and equivocations – or different facets of a single and complex misunderstanding – involved in the introduction of fish-farming in the Karitiana villages in southwestern Brazilian Amazon, having as a privileged standpoint the Karitiana visions regarding whitemen, those others at the same time ingenious and dreadful.

Keywords: fishes; pisciculture; Karitiana; animal husbandry; whitemen.

Felipe F. Vander Velden

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Este texto é uma homenagem a André Martini (em memória)

Introdução

Este artigo tem uma tripla motivação, embora a reflexão aqui exposta tenha natureza tão somente preliminar. A primeira, de caráter etnográfico, pretende discutir brevemente o que são, para os Karitiana2, as criaturas que a biologia científica e muito do senso comum ocidental denomina como “peixes” – animais agrupados sob a classe Pisces dentro do filo Chordata do reino Animalia (para a ciência), cuja principal característica compartilhada é o fato de terem virtualmente todo seu ciclo de vida desenvolvido em ambiente aquático (para o senso comum)3. Nesse sentido, espero demonstrar que “peixes”, para os Karitiana, para além de estarem subsumidos em uma categoria que agrega um conjunto mais heterogêneo – do ponto de vista científico, naturalmente – de seres (ainda que a inteligibilidade desta categoria nos seja acessível, posto que seu critério organizador é a água, ou o fato de viverem em ambientes aquáticos), têm sua densidade conceitual constituída também por um conjunto – este sim, bastante heterogêneo do nosso ponto de vista – de associações que transcendem o que entendemos por conhecimento zoológico (ou ictiológico) e que incluem a nós próprios – os “brancos”, não índios (opok) – em sua definição. Só assim poderemos compreender porque os Karitiana podem dizer: “vocês, brancos, são peixes”. Desnecessário dizer que a heterogeneidade e aparente estranheza desta associação entre os não índios ou brancos (e não os índios não Karitiana, pois outros povos indígenas não são peixes4) e seres aquáticos – ao embaralhar natureza e cultura –

2 Os Karitiana são um povo de língua Tupi-Arikém que habita cinco aldeias na região norte do estado de Rondônia, sudoeste da Amazônia brasileira. Três de suas aldeias situam-se no interior da Terra Indígena Karitiana, área oficialmente reconhecida de 89 mil hectares para seu uso exclusivo. Outras duas aldeias localizam-se fora da área indígena, frutos do processo que tenta reaver territórios que o grupo considera tradicionalmente seus e que lhes foram tirados no processo de colonização de Rondônia. Atualmente os Karitiana são cerca de 320 indivíduos (CIMI/RO 2015: 24).

3 Falo “virtualmente” porque várias espécies de peixes podem viver por alguns períodos – em geral curtos, mas por vezes bastante longos, como na ocorrência de secas prolongadas – fora d’água, como é o caso dos peixes pulmonados (Dipnoi) e outros (como os mussuns, Synbranchiformes). Da perspectiva do conhecimento geral a respeito dos peixes – o que estou denominando “senso comum”, mas que poderíamos chamar também do conhecimento folk ou popular, ou uma espécie de “ciência (biologia) popular” – é evidente que peixes vivem o tempo todo na água. Como diz a canção popular brasileira (registrada em Câmara Cascudo 1968: 354): “como pode um peixe vivo viver fora d’água fria...”

4 Se os brancos (opok) são peixes, os outros índios (opok pita) são presas de caça: os Karitiana frequentemente fazem referência aos ataques a grupos inimigos no passado como expedições de caça; além disso, costumam descrever esses grupos vizinhos com a expressão “não é gente, é índio”, sugerindo que não se tratam, propriamente, de humanos. Mas pertencem ao domínio terrestre, da caça (himo), ao passo que os não índios remetem ao domínio das águas.

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não assombra o pensamento Karitiana do mesmo modo como confunde nossas próprias imagens do que seja o mundo natural.

A segunda motivação é, digamos, política: trata de interrogar de que forma a categoria “peixe” (e, mais especificamente, também a categoria “criação” na sua particular relação com os peixes: criação de peixes, piscicultura ou aquacultura5) entre os Karitiana pode infletir os projetos que atualmente almejam e desenham, juntamente com os não índios, para a implementação da piscicultura em suas aldeias. Neste caso, se a ideia da criação de peixes foi uma atividade introduzida após o contato com os brancos e é um projeto a ser discutido com e instalado em colaboração com técnicos e administradores brancos, tais contingências inserem-se no modo como os Karitiana concebem suas próprias relações históricas e atuais com os não índios. Com efeito, se os brancos são peixes, eles foram tirados da água por uma criatura muito ativa nos tempos míticos – e que ainda hoje vive nos rios da região: em certo sentido, Ora, a serpente-peixe irmão do grande demiurgo criador do mundo Karitiana (Botyj) criou os brancos. Os mesmos brancos que, agora, incentivam e auxiliam os Karitiana na instalação da piscicultura.

Tais cruzamentos de sentidos e histórias apontam para uma série de equivocações envolvidas na relação entre índios e brancos no tocante a atividades de criação animal e, num plano mais geral, no cruzamento e interpenetração de práticas e conhecimentos indígenas e científicos aplicados ao manejo de animais aquáticos em cativeiro, conforme algumas etnografias recentes têm investigado (Martini 2008; Estorniolo 2014, ambas sobre a piscicultura indígena no alto rio Negro). De um modo geral, trata-se, aqui, de refletir sobre como é, para os Karitiana, a extensão de princípios agrícolas aos corpos d’água: parafraseando Marianne Lien (2015: 2), trata-se de investigar um contexto em que a água deixa de ser um lugar apenas de pescadores, mas passa a ser também lugar de fazendeiros (farmers), ou, melhor, de criadores.

Por fim, a terceira motivação deste artigo tem um viés comparativo. Talvez em função do espetacular crescimento da aquacultura e da criação industrial de peixes no mundo contemporâneo (Ramalho 2012; Lien 2016) – aliada à crescente preocupação com a brutal diminuição dos estoques pesqueiros naturais nos rios e mares do mundo (Foer 2011; Marques 2015) – peixes e outras criaturas marinhas, e suas relações com coletivos humanos (notadamente sua domesticação), têm se convertido em um objeto

5 Em Português pode-se dizer aquicultura ou aquacultura, ambas significando a produção em cativeiro de organismos com habitat predominantemente aquático (peixes, moluscos, crustáceos, quelônios e

mesmo algas). Nesse sentido, é mais abrangente do que o termo piscicultura, que se refere unicamente ao cultivo de peixes em cativeiro. Existe também a maricultura: “cultivo” de espécies marinhas.

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antropológico importante nos últimos anos (cf. Helmreich 2009)6. A criação (reprodução artificial ou controlada pelo engenho humano) de peixes, sobretudo, tem sido etnografada por vários autores preocupados com as brutais transformações sócio-ambientais que muitas vezes têm seguido os projetos de instalação de piscicultura e aquacultura em grande escala (Swanson 2015; Smith 2012; Lien & Law 2011; Lien 2007 e 2015) e com as complexas redes sociotécnicas que agregam agências humanas e não humanas, além de técnicas, tecnologias e informações (Franklin 2011). Este trabalho quer refletir sobre como os Karitiana têm verbalizado a escassez de peixes nos rios e igarapés que cortam seu território, e de que modos têm se engajado em projetos de criação de peixes, tendo em vista as recentes discussões antropológicas sobre o lugar da piscicultura e da aquacultura nos dramáticos processos de degradação ambiental e, por conseguinte, de reorganização social, econômica e territorial em escala global, cujos impactos têm sido descritos como caracterizando a era do Antropoceno (Human Animal Research Network 2015).

Estas três motivações constituem as bases para um conjunto de equivocações – ou de diferentes facetas ou atravessamentos de um único e complexo equívoco, que pode ser resumido pela ideia de criação animal em aldeias indígenas – produzidas nas negociações relacionadas à introdução da criação de peixes entre os Karitiana. No que se segue, estabeleço a conexão que os Karitiana fazem entre os peixes e os brancos (não índios), argumentando que “os brancos são peixes” porque provêm da água, domínio da monstruosa serpente aquática Ora, irmão do demiurgo criador Botyj e considerado “dono das águas e dos peixes”7. A associação com Ora torna os brancos criaturas perigosas e pouco confiáveis, e é nesta base que são eles acusados de serem os principais agentes causadores da alegada escassez de (certos) peixes nos igarapés que cortam a Terra Indígena Karitiana, articulando-se, deste modo, discursos cosmológicos e de cunho ambientalista8. Esses

6 Deve-se apontar também para uma produção crescente do que poderíamos chamar de uma história ou ciência sociais dos peixes (Delort 1984: 285-313; Kurlansky 2000; Murray 2015), que não se confunde com uma história e uma ciência sociais da pesca, esta um objeto mais tradicional nas humanidades (Acheson 1981).

7 A expressão “os brancos são peixes” tem, entre os Karitiana, o mesmo estatuto de sentenças indígenas que permitem entrever a natureza do passado absoluto encenado nas narrativas míticas, “passado que nunca foi presente e que portanto nunca passou, como o presente não cessa de passar” (Viveiros de Castro 2006: 323), um passado que não passou, não se encerrou. Não se trata, assim,de os brancos serem peixes hoje pois eles são, do ponto de vista Karitiana, obviamente humanos – e até mais humanos do que os outros índios (opok pita), associados, como vimos, à caça. Mas eles foram peixes – tirados da água por Ora – e continuam trazendo em si um devir-peixe, uma potência que os associa permanentemente aos seres aquáticos e os conecta a estes por várias rotas, entre elas, a moral: os brancos pertencem ao domínio ambivalente e perigoso de Ora, partilhando, deste modo, de seus atributos morais (cf. Londoño Sulkin 2005), como veremos.

8 Ambientalista, aqui, no sentido de uma tradução (em geral simplificada) dos conceitos indígenas à linguagem – politicamente sensível para os não índios e inteligível para significativa parcela deles – da

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mesmos brancos vêm propondo, nas últimas décadas, a introdução da criação de peixes nas aldeias Karitiana como forma de promoção da segurança e da soberania alimentar e como alternativa de geração de renda.

No entanto, os projetos aqui elencados jamais deixaram o papel – por isso, minha análise concentra-se sobre os debates em torno das propostas. Pode-se, por isso, ler este texto como um conjunto de diretrizes sobre o que fazer – e, sobretudo, sobre o que não fazer – no sentido da implantação da piscicultura entre os Karitiana. Meu objetivo, ademais, é defender que a falha em fazer os planos se tornarem realidade pode ter a ver com o modo como esta sociedade indígena compreende a criação de animais, assim como a especificidade desses animais, os peixes, que se assemelham aos brancos, estrangeiros que, muito paradoxalmente – para os Karitiana, mas também, creio, para aqueles de nós com alguma sensibilidade ecológica –, ao mesmo tempo destroem as espécies aquáticas e buscam reproduzi-las.

Vocês, brancos, são peixes

As criaturas que nós chamamos de “peixes” os Karitiana agregam sob a categoria ‘ip, que traduzem como “peixe”. ‘Ip, no entanto, inclui seres que a zoologia não considera peixes (pisces), como caranguejos (are) e camarões (jopiparat) de água doce (crustáceos, para a biologia), além dos botos (‘ip’hy, “peixe grande”), mamíferos aquáticos para a taxonomia científica. Desta forma, ‘ip deve ser mais propriamente traduzido como “animais da água” ou “seres aquáticos”, que vivem nos rios, poços e lagos, “e que não saem da água”. Em geral considera-se como ‘ip todas as criaturas criadas pelo poder da fala de Ora a partir de objetos inertes flutuando nas águas de um rio, tal como narra o mito de origem das águas e dos animais aquáticos: os peixes, por exemplo, foram feitos das folhas que boiavam. Uma exceção importante refere-se às serpentes (boroja): mesmo as espécies de hábitos ripários não são peixes, ainda que Ora seja descrito como uma monstruosa serpente, um “bicho” (kida) frequentemente associada às sucuris, que são como avatares de Ora9. A categoria também exclui arraias (o~jy), mussuns (dyk, que são cobras) e poraquês (~jyngty)10 – e há

ecologia e da necessidade de proteção do meio ambiente (cf. Albert 1995).

9 Formas atuais de Ora, sucuris (so~jbap) são também ditas “chefes de peixe”, pois moram dentro d’água. Para se pescar deve-se pedir para elas por meio de “reza” ou “oração” (ver abaixo).

10 Esses, como as sucuris, são “bichos” (kida), seres perigosos e/ou monstruosos que costumam atacar e ferir pessoas. Do poraquê (peixe-elétrico) diz-se que “não tem pena da gente, quando ele pega, mata mesmo”. Os peixes propriamente ditos (‘ip), como “peões” (subordinados) de seus donos aquáticos são seres geralmente inofensivos e, em larga medida, sem maiores efeitos na vida cotidiana dos Karitiana.

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dúvidas quanto aos jacarés (sara) e aos quelônios aquáticos como o tracajá (byypo)11 –, ainda que todos esses tenham sido criados pela poderosa fala de Ora convertendo galhos, folhas e tocos de madeira flutuantes nos habitantes vivos dos cursos d’água. Talvez a definição mais apropriada para a categoria ‘ip seja de “criaturas aquáticas que se pesca para comer”12.

Além de Ora, existe um outro ser dito “dono dos peixes”, chamado Taosibma, mas sobre o qual muito pouco ouvi13. Ambos são criaturas muito perigosas, de quem se diz que “não pode ver não, senão morre na hora, tremendo. Como malária”14. Importa reter que a relação dos peixes com essas criaturas é de subordinação: “peixe é como peão. Como peão, entendeu?” – disse-me certa vez Cizino, equacionando, à relação entre Ora e os peixes, o nexo entre fazendeiros e seus empregados, qualificando uma particular relação de maestria e identificando o “dono dos peixes” (cf. Fausto 2008), Ora, como um fazendeiro, assim como vários dos poderosos brancos que habitam o entorno das terras Karitiana.

Como um dono ciumento de seus “peões”, toda vez que se pesca deve-se respeitosamente pedir a Ora (e a Taosibma) pelos peixes, conforme me afirma o pajé Cizino:

Quando vai pegar peixe, pede. Pede pra Ora. Quando peixe não vem, quando a gente pescando, na linha também, a gente fala: “eh cunhado”, a gente fala assim: “estou com fome, cunhado, minha mulher está com fome, cunhado, meu filho está com fome, chorando por causa do peixe. Eu

11 A ausência de consenso quanto ao que conta como um “peixe” foi registrada entre pescadores no Brasil e em Portugal (Dias Neto 2014). Entre pescadores na costa central portuguesa, Dias Neto (2014: 44-46) sugere que peixes (“bichos da água”) são definidos como “bons nadadores”, o que inclui lulas e polvos, por exemplo. A variedade de seres denominados “peixes” que são conhecidos e empregados por pescadores artesanais é geralmente enorme (Silvano 2004). Outros povos indígenas categorizam peixes, crustáceos e moluscos conjuntamente, como é o caso dos Sanöma e sua categoria salaka pö (ISA 2016). Botos também são agrupados na mesma categoria que inclui os peixes, como entre os Tikuna, por exemplo (Duque 2009). A cultura popular brasileira também reflete as ambiguidades (pós-Sistemática, obviamente) da categoria “peixe”, conforme refletido na canção infantil “caranguejo não é peixe / Caranguejo peixe é / Caranguejo só é peixe / Na enchente da maré” (Cascudo s/d: 244).

12 Estando, assim, em relação complementar com a categoria himo, que agrega “o que se caça para comer” (mesmo seres aquáticos, como quelônios e jacarés, ainda que estes sejam raramente abatidos e consumidos pelos Karitiana).

13 Também registrei menções a outros “bichos” (kida) ou “chefes que têm dentro da água”, que matam pessoas e leva aquelas que morrem afogadas: Mori, ~Jangpa, Opapãmãm e Papari. Debaixo d’água eles são vistos como pessoas, eles “são gente”, mas não podem estar no seco pois não respiram fora d’água. Eles também fornecem peixes aos Karitiana, pois, diz-se, “não têm ciúme do pessoal [os peixes] deles”

14 É interessante que a carne de mamíferos e aves de hábitos aquáticos ou ripários não é consumida pelos Karitiana porque podem matar a pessoa de frio, acometida por “tremores” corporais sempre associados á malária.

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quero jatuarana, eu quero tambaqui, eu quero surubim, você tem, você pode me dar, pode me dar pra mim, eu aceito”. A gente fala com ele, ele dá na hora. Né? Não é mentira, não. É verdade. Ele escuta tudo, peixe, o dono de peixe.

Esta solicitação, endereçada ao “dono do rio” ou “dos peixes” – tratado, aqui, como “cunhado” –, deve ser feito sem brincadeiras, na forma de uma “oração”, cujo texto (cantado sempre em voz baixa) sempre se assemelha, em linhas gerais, o que está destacado no trecho acima. Uma oração endereçada a Taosibma pede:

Taosibma, me dá peixe, estou com fome, minha família está com fome (e ele “manda peixe rápido”, de acordo com Antônio Paulo).

Ora (e Taosibma) é “mau”, e não parece ter um senso de humor particularmente destacado, mas, como um típico dono amazônico, ele dá os peixes esperando dos pescadores certas restrições sobre a quantidade de pescado e, sobretudo, o respeito estrito aos restos dos peixes consumidos (ossos, espinhas), que não podem ser descartados de qualquer modo, o que pode levar à ira da serpente e ao estado panema, neste caso, o “azar na pesca”15. Não se trata, pois, de qualquer forma de compaixão. Cizino prossegue, afirmando que Ora cede os peixes, mas não sem caprichos:

Ele dá. Não escapa, não. Tem que pedir, [mas] não é alegre, não. É sério mesmo, não é brincando, não. Como oração, pede, como oração. A gente fala tudo, tudo coisa importante, a gente tudo respeitado, tudo respeitado, não pode brincar, não pode, não. [Se] a gente brinca, [se] a gente está mangando ele. Entendeu? Aí ele não dá nada. Dá nada! Por que ele não dá [para] criança? Não dá [para] criança, não. Agora, criancinha pescando, respeitando, aí ele deu. Ele não gosta [de] pessoa besta, não.

15 A maioria dos Karitiana afirma que as sobras dos peixes consumidos não podem ser descartadas de qualquer modo, tendo de ser ajuntadas e atiradas em locais distantes, onde não exista circulação de pessoas. Se alguém pisa ou passa sobre esses despojos, o pescador se torna panema, ou seja, não consegue pescar nada porque os peixes “não vêm para ele”. Alguns pescadores, porém, discordam do imperativo desses cuidados, informando que os espinhos de peixes podem ser descartados de qualquer modo porque “peixe é fácil de pegar”.

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Mas se é o modo de vida aquático que agrupa um conjunto dessas criaturas controladas por Ora na categoria ‘ip, os brancos, originários das águas – do rio ou do mar, de acordo com distintas versões –, podem ser também incluídos: “vocês, brancos, são peixes”, diziam-me os Karitiana, e assim conta o mito de origem dos não índios:

Boty~j, o criador de tudo, tem irmão, Ora. Boty~j tem um filho, Otada, que tem filho Byyjyty, que é neto de Boty~j. Diz que, antigamente, Byyjyty foi com o pessoal dele até o rio grande [alguns afirmam ser o mar] para achar os brancos. Eles vão andando, e em cada lugar Byyjyty pára e constói chiqueiro [cercado] para deixar pessoal dele, e fala para eles não saírem porque senão índio bravo vão matar eles. Byyjyty vai em cada aldeia de índio, para pegar cinco crianças que ele mata para dar de comer ao pessoal dele, e mais cinco crianças vivas para dar de presente aos bichos [kida] que ele encontra. Aí ele vai encontrando vários [grupos de] índios [de características exageradas ou monstruosas] no caminho, até encontrar syt’syt’, gente da água. Byyjyty chegou ao rio grande [ou “água grande, mar”] depois de passar pelos bichos [os índios de características monstruosas]. Lá Byyjyty colocou carne assada de índio [as crianças capturadas anteriormente] em abanos de palha igual ao que se põe nas portas das casas dos túmulos, em frente a um banco comprido [~jomby, o banco cerimonial Karitiana] feito de jatobá. Vários tipos de gente subiu das águas para comer: primeiro syt’syt’, depois ir~ir~inopa, depois owojsepipito, diz que é mapínguari da água, bicho que vive no rio. Muita gente saiu da água, tudo sentado no banco comendo a carne humana a comida, presente de Byyjyty. Os que acabavam de comer voltavam para o rio. Aí Byyjyty jogou uma criança viva no rio, de presente para Ora [que Byyjyty chama de avô, e é chamado de neto]. Ora é irmão do avô de Byyjyty; Ora é o chefe do rio. Ora pegou criança e agradeceu. Byyjyty deu presente para Ora e para o pessoal dele, os brancos, ficarem mansos para os Karitiana. Aí Byyjyty ficou alegre, voltou para sua aldeia e disse para o pessoal dele que aqueles para quem ele tinha dado comida iriam aparecer como gente, mas não iam falar como gente; seriam como os Karitiana, mas diferente, de pele diferente16. Um tempão depois apareceram os brancos. Diz-se que o sangue dos brancos é igual ao dos Karitiana,e por isso estes sabem falar a língua dos brancos, mas não sabem falar as línguas de outros índios.

Detalhes do mito foram acrescentados em uma conversa posterior, com Valter e Gumercindo Karitiana, em 2003:

Branco surgiu assim, só um pouquinho eu vou falar. Aí, de novo, Byyjyty, Byyjyty, agora, terminou Byyjyty também, Byyjyty também, aí ó, Byyjyty

16 Ver notas 4 e 7 acima.

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também deu também pro pessoal branco, também, o pessoal branco existiu dentro d’água. Vocês são peixe. É. Vocês são peixe. Aí tem, tem lagoa grande assim ó! Não tem mar? Ali existiu assim, ali ele, vocês brancos cantavam, cantavam, o chefe de vocês não subia. Nada. Só brabo. Nada. Aí ele pegou filho do índio, né, cada filho do índio, o Byyjyty pegou para dar pra vocês, pro chefe de vocês. Com medo do vocês! Nós também vimos, Karitiana também viu esse daí. É nós, Byyjyty, cercou nós aqui, pra nóis não saí, né. Aí, Karitiana, aquele que trabalha junto com Byyjyty, ficou preso. Pra não sair. Se ele sair, bicho come. Entende? Aí só o Byyjyty vai lá pra dar comida pra vocês. Pro chefe de vocês.

Os brancos, como os peixes, são seres aquáticos17. Opok é a palavra Karitiana para designar os brancos, não índios, ou, mais precisamente, os outros não indígenas, em contraposição à yjxa, “nós”, pronome da primeira pessoa do plural, que faz referência aos Karitiana, e à opok pita, “outro índio”, que pode ser traduzido como “o verdadeiramente outro, o outro por excelência”18. O termo opok parece poder ser traduzido como “cabeça branca” (o- “cabeça”, ou qualquer objeto arredondado, e -pok, “branco”), ainda que esta tradução não seja evidente aos Karitiana. Não obstante, a “brancura” parece ser o critério definidor da não-indianidade: de pele clara, os brancos são associados aos peixes e aos espíritos (psam’em), estes também sem cor, “muito brancos”, porque desprovidos de sangue, além de serem criaturas perigosas e canibais. Os brancos, assim como os mortos, “não têm sangue”, uma afirmação de conteúdo antes moral do que fisiológico, por assim dizer: não ter sangue é não ter parentes e, sobretudo, não viver de maneira adequada e pacífica e comportar-se como um ser humano pleno, independente, respeitoso, não violento e autônomo; o sangue conecta todos os humanos plenos, os Karitiana (que se referem ao próprio grupo pelo pronome da primeira pessoa do plural Yjxa, “nós”), por sua dupla acepção, moral e biológica e, de fato, separa estes dos brancos, que têm corpos (assim como hábitos e comportamentos) distintos19. De fato, a categoria ‘ip, ao separar os

17 A narrativa Karitiana, assim, acelera o desenvolvimento do “peixe de Darwin” (the Darwin fish), que pula da água para a terra e dá o impulso primordial para a evolução que culminará nos seres humanos (Haraway 2008: 307). Os brancos, deste modo, são como anfíbios, algo entre a humanidade e a “peixidade”. Notemos que entre os grupos de língua Tukano no alto rio Negro todos são “gente peixe” (wai masã), resultado das transformações passadas no ventre da Cobra-canoa; os brancos são diferentes porque se separam dos demais povos logo depois de se transformar; de todo modo, antigamente “peixe era gente e gente era peixe”, e os peixes de hoje são aqueles que não transformaram seus corpos em corpos humanos: por isso, atormentam, invejosos, a vida dos povos indígenas na região (ver Cabalzar 2005).

18 Note que os outros de verdade não são os brancos invasores, mas os outros povos indígenas (via de regra inimigos) com quem os Karitiana convivem há muito mais tempo.

19 Diz-se que os corpos dos brancos são diferentes, mais fracos, em função de sua alimentação distinta, baseada especialmente em “carne vacinada” ou “tratada” (que se opõe à carne de caça). Não obstante, os brancos são humanos, mas humanos com um devir-peixe, como já disse.

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peixes em um conjunto distinto daqueles classificados como himo (literalmente “carne”, mas também “caça”, categoria que agrega os animais terrestres comestíveis; diz-se que “peixe não é himo porque não vive na terra, vive na água”) talvez faça referência, também, ao fato de que os peixes não têm sangue20.

Ademais, como “pessoal de Ora”, os brancos compartilham com este ser – e com os mortos – perigoso e canibal que ainda habita os corpos d’água do território Karitiana algo de sua essência: ambos são, de certo modo, “bichos” (kida), categoria que agrega seres monstruosos ou que se comportam ou podem se comportar de maneiras agressivas e predatórias. Não é fortuito que os não índios emerjam da “água grande” para devorar a carne assada de crianças indígenas. Os brancos, então, “são peixes”, pois vieram da “água sem fim, água grande” ou “rio-mar”21; Ora é “chefão dos brancos, além de ser “chefão da água” ou “chefe do rio”. É ainda mais instigante constatar que, de acordo com as narrativas dos atuais Karitiana, os primeiros homens brancos com quem travaram contatos (possivelmente por volta dos anos de 1950, a crer nas idades dos mais velhos) chegaram à aldeia pelo rio, remando em canoa: Epitácio e Valdemar contaram-me que “Lope [Lopes?] veio para a aldeia pelo igarapé. Ele veio de canoa, ele amansou os Karitiana” (cf. Moser 1993); os Karitiana, por seu turno, parecem sempre ter preferido viver longe dos grandes cursos d’água, território este dos brancos e “mundo aquático dos mortos” (cf. Vilaça 2006, sobre os Wari’, que associam os não índios e os mortos por seu gosto por carne humana). Minha hipótese, assim, é que os brancos, como subordinados de Ora, assemelham-se a ele não apenas no controle agressivo sobre corpos d’água e suas criaturas, como também no potencial para a criação e reprodução dessas mesmas criaturas.

Da escassez de peixes

Os Karitiana pescam e consomem uma grande variedade de peixes nos rios, igarapés, lagos e poços de seu território, empregando, para tanto, várias técnicas: arco

20 O que aproximaria a lógica Karitiana do nosso saber popular, para quem os peixes não têm sangue (ou são animais de sangue frio), ao contrário dos mamíferos e aves que sangram o fluido quente e vermelho em profusão, quando feridos ou abatidos, e que produzem carne, alimento que, na maioria das vezes, se opõe à [carne de] peixe. Na antiguidade greco-romana a pesca de grandes peixes (com arpões e porretes) era associada à caça, especialmente porque implicava no combate – sempre perigoso – entre humanos e não humanos no mar (Linant de Bellefonds 2006: 154). Lien (2015: 126-147) mostra como

peixes vêm sendo contemporaneamente transformados em animais por meio de sua inclusão (pela filosofia ou pelas neurociências) entre os seres sencientes e, daí, merecedores de proteção legal.

21 Ao narrar-me sua versão dessa história, Delgado afirmou que os brancos vieram do “rio-mar”, “lá na Bahia”, provavelmente aludindo à narrativa fundadora da história do Brasil, a chegada dos portugueses ao litoral atlântico bahiano em 22 de abril de 1500 e o encontro com os povos Tupi costeiros.

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e flechas (de pesca, sem emplumação), zagaias (arpões), vara, linha e anzol, malhadeiras e peneiras, timbó (tin)22, tapagens (“armadilhas de pesca”) e mesmo utilizando as próprias mãos (para peixes que buscam abrigo em buracos nas margens dos igarapés). Entre os mais apreciados estão as jatuaranas (pojpok)23, porque, além de saborosas, são considerados peixes “limpos”, conforme asseverou Inácio: jatuarana não tem doença nem sujeira, tudo gordo, tem saúde, é peixe saúde [saudável], por isso é bom para festa. Jatuarana é diferente dos outros peixes: a casca [escamas] dela é miúda”. Diz-se também que “a casca ou corpo dela é limpo, não tem machucado nem doença. Por isso é bom para festa, para dar saúde”. Não à toa, um ritual, chamado festa da jatuarana (pojpok myyj), realizado no início do verão, quando as águas começam a baixar, é destinado a trazer saúde e vitalidade para a comunidade (assim como outros rituais ou “festas” Karitiana), no qual se consome exclusivamente este peixe, além de outros com eles aparentados – iwity (piau), pojpok ogyty (sardinhão), pojpok’i (matrinchã, lit. “jatuarana pequena”), pojpokogy, kyryhydna, syp, papeek, ojogot e outros.

Jatuarana em rio rondoniense (fonte: http://revistaaruana.blogspot.com.br/2015/09/roteiro-o-vale-das-jatuaranas-ro.html, acesso em 25/06/2017). Noto que utilizo uma imagem extraída da web porque eu

mesmo jamais fotografei ou mesmo vi este peixe entre os Karitiana.

22 Há um timbó específico, mais forte, para a pesca de poraquês (topyk). As cascas de madeira bosojopa e osipaty (espécies não identificadas) podem ser colocadas no meio dos feixes de timbó para tornar o veneno mais poderoso.

23 Jatuaranas são, para a ictiologia científica, vários peixes Characiformes do gênero Brycon, e conhecidos também como matrinxãs (Cella-Ribeiro, Torrente-Vilara, Lima-Filho & Doria 2016: 147).

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Festas da jatuarana, contudo, não são realizadas há muito tempo pois, dizem os Karitiana, quase não há mais desses peixes nos igarapés da área. Espera-se sempre, no verão – estação seca na Amazônia –, que as jatuaranas venham quando “as águas crescerem”, quando a chuva enche os igarapés. Mas, contam, nos últimos anos não estão aparecendo muitas delas no igarapé Sapoti, que banha a aldeia Kyõwã – a maior e mais antiga aldeia Karitiana, também chamada de aldeia Central: pois os índios desconfiam, em 2003, que o fazendeiro proprietário das terras logo ao norte da Terra Indígena barrou o igarapé para fazer um lago, impedindo as jatuaranas de subirem o rio (o que foi verificado, posteriormente, por foto de satélite)24. Eu mesmo, em 15 anos de pesquisas ali, jamais vi, fotografei ou saboreei uma única jatuarana.

Mas não são apenas as jatuaranas: os Karitiana reclamam da escassez de peixes em geral, assim como verbalizam da falta de animais de presa e da crescente dificuldade – epitomizada nas cada vez maiores distâncias a serem percorridas na floresta – em encontrar caça. Luis, por exemplo, assevera que o peixe está acabando nos rios da reserva indígena. Segundo ele, até o ano de 2002 “pegavam muitas jatuaranas, agora já não tem muito”. Inácio, por seu turno, afirma que os peixes não estão diminuindo nos outros pequenos rios que correm pela área, apenas no igarapé Sapoti que corta a aldeia Kyõwã, onde quase não há mais jatuaranas. A rarefação dos estoques pesqueiros, enfim, parece ser da percepção comum a todos os Karitiana, que dizem que “agora tem menos peixe e caça, porque tem muita gente na aldeia, muito Karitiana pra comer”. Diz-se que, antigamente, com poucos Karitiana no mundo, havia muita fartura. Hoje em dia, é preciso caminhar cada vez mais longe de Kyõwã para uma boa pescaria, uma vez que, dizem os Karitiana, os igarapés mais próximos (especialmente o Sapoti) estão esgotados pela exploração intensiva. Note-se que a aldeia vem sendo continuamente habitada pelo grupo desde o final dos anos de 1960, ou seja, por mais de 40 anos. Por isso, o pescado escasseia – conforme Epitácio, em 2009 – e se torna mais “bravo”, acostumado à presença dos pescadores humanos e, por isso, arisco e reativo:

Tempo tinha muita jatuarana, mas agora, com barragem lá na fazenda para cima do rio, não tem muita mais. Usava, tempo, fruta da seringa amassada, de isca, que jogava no rio, aí jatuarana vem mansa, aí a gente flecha de perto (meu destaque).

24 Nos mercados de Porto Velho as jatuaranas são considerados peixes de 1ª. categoria, sua carne sendo comercializada pelo preço médio de R$ 5,94/kg. O peso médio do peixe fica em 1,3 Kg (Doria & Lima 2015: 147). Em Tabatinga (Amazonas), as matrinxãs estão entre os “peixes nobres” ou “especiais” (segundo critérios de sabor, aparência, tamanho, pequena oferta e preço elevado), custando, em média (em 2014), R$ 8,11/kg nos mercados locais (Pinto 2017: 114-115).

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A ideia de que as jatuaranas “vêm mansas” sugere que elas aparecem em grande quantidade e são facilmente abatidas – porque se aproximam demasiadamente dos pescadores – com distintos métodos de pesca. A introdução da piscicultura parece ter, como objetivo principal, a reinvenção de uma oferta abundante de pescado, por meio do amansamento dos peixes, como veremos com as tapagens, que servem para “amansar” os peixes para que sejam pescados com mais facilidade. Manso (syjsip ou pyhoko), aqui, fala especialmente de abundância, de grandes números: daquilo que, em grande quantidade, apresenta-se acessível dos predadores humanos – podendo ser capturados com facilidade –, além de sobre uma tolerância (um acostumar, como dizem os Karitiana) diante da presença humana: mansos são aqueles animais que, desconhecendo as ações de caçadores e pescadores, aproximam-se curiosos e são, via de regra, abatidos; os seres que conhecem os humanos, aqueles ditos bravos (sohop, ou, em certos casos de agressividade expressa, pa’ira), em geral fogem deles, e são predados somente com muito mais esforço e engenho despendidos. A escassez de peixes nos igarapés da Terra Indígena Karitiana (especialmente o Sapoti), assim, fala (também) de criaturas que, há tanto tempo acostumadas à predação humana, e sabedores das intenções de pescadores, não se oferecem com facilidade à atividade de capturá-los. Amansar os peixes, então, é também fazê-los multiplicarem.

As demais aldeias Karitiana não parecem enfrentar escassez semelhante: a aldeia de Cizino, Byyjyty ot’soop aky, por exemplo, situa-se às margens do rio Candeias, um rio bastante piscoso – cheio de peixes mansos, portanto –, ainda que seus estoques pesqueiros venham sofrendo com a ação de pescadores não índios da região de Candeias do Jamari, que costumam fechar igarapés na sua boca e coletar todos os peixes de grande ou médio porte, conforme reclamam os moradores da aldeia. Ainda assim, os moradores desta aldeia também manifestam desejo e interesse em implementar a piscicultura em seu território. O igarapé Preto e o rio Caracol – que abastecem outras duas aldeias – também são bastante piscosos, mas seus moradores igualmente pensam em tanques de piscicultura.

Não se pretende, é óbvio, desconsiderar a percepção dos Karitiana de que o pescado está se tornando raro. Mas sempre observei relativa abundância de peixes em suas aldeias, especialmente naquelas mais novas (rio Candeias, Igarapé Preto e Caracol), que se encontram nas margens de corpos d’água relativamente bem preservados. Os Karitiana reconhecem isso – e sabemos, de outros coletivos de pescadores, que carência e abundância podem frequentar o mesmo discurso, apontando para os múltiplos caminhos por onde se pode ou não conseguir alimento (cf. Reedy-Maschner 2010); alguns pescadores são mais bem sucedidos do que outros, o que faz com que suas famílias sejam com frequência melhor aprovisionadas (Reedy-Maschner 2012: 113), e o mesmo se revela entre os Karitiana,

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entre os quais é possível, em certas ocasiões, que peixes congelados adquiridos na cidade de Porto Velho sejam enviados para familiares residentes na aldeia Kyõwã. Deve-se notar ainda, como vimos acima, que a forma dos pedidos (“orações”) por peixes endereçados à Ora e aos outros donos das água sempre enfatizam a fome enfrentada pelo pescador e sua família: é, pois, o discurso da escassez que convence os “donos dos peixes”, posto que deve-se ressaltar que o poder da multiplicação está do lado deles (como está, também, nas mãos dos brancos, conforme será visto adiante). Seguindo esta linha, a verbalização da falta de peixes pelos Karitiana adquire uma dimensão propriamente cosmopolítica: se é certo que os Karitiana percebem, juntamente com os técnicos locais, certos motivos da escassez – a exploração desenfreada dos rios, a construção descontrolada de barragens –, essa mesma “escassez” é provocada, do ponto de vista indígena, pela deterioração das relações com Ora, a quem aborrece a destruição de seus domínios e de “seu pessoal”. Assim, oferta reduzida de pescado descortina um outro equívoco, no qual “escassez” transmite sentidos algo distintos para índios e brancos. Ato contínuo, a solução para este problema igualmente constitui evidente equivocação – mote principal deste artigo – porque é certo que, se os Karitiana e seus aliados não índios desejam solucionar a “escassez” por meio de “projetos”, os sentidos assumidos por esta estratégia são bastante divergentes, como veremos.

A bacia do rio Madeira abriga talvez a mais impressionante variedade de espécies de peixes do mundo (Jardim de Queiroz et al. 2013; Cella-Ribeiro et al. 2016) bem poucos deles de consumo interdito aos Karitiana25, e a pesca de um grande número de espécies tem crucial relevância social e econômica para a região (Doria, Ruffino, Hijazi & Cruz 2012; Doria & Lima 2015). Obviamente, a visão da escassez de peixes pelos Karitiana pode estar vinculada não à raridade desses seres de um ponto de vista ecológico (e, nesse sentido, puramente numérico), mas à questão política da relativa falta de acesso aos peixes – provocada, entre outras razões, pelo barramento de cursos d’água que nascem fora da terra indígena ou pela intimidação por parte de pescadores ilegais (cf. Kasten 2012, p. 67-68). As difíceis relações com os brancos, que espelham as conturbadas interações com Ora, o dono das águas, parecem, assim, explicar ao menos em parte a escassez. Nesse sentido, a piscicultura aparece como um recurso quase óbvio. A criação de peixes, assim, não parece destinar-se apenas à solução do problema da alegada falta deste alimento e da escassez das jatuaranas favorecidas pelo ritual. Talvez esteja em jogo, também, o impulso

25 A maioria dos peixes interditos constitui-se de espécies diminutas, muitas caracterizadas por levarem a vida no fundo dos rios (bentônicos), sendo impróprios para o consumo por tornarem as pessoas preguiçosas.

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por dominar uma técnica introduzida e favorecida pelos brancos26. Brancos que, como vimos, são seres originalmente aquáticos – brancos são peixes.

Da criação de peixes

Desde que iniciei minhas pesquisas entre eles, os Karitiana manifestam o desejo de introduzir a piscicultura em suas aldeias. Na verdade, distintos projetos para começar a criação de várias espécies – galinhas, cabras, bois e até mesmo coelhos – foram planejados ou efetivados na aldeia Kyõwã, mas, nos últimos anos, o desejo dos Karitiana parece ter esquecido esses outros seres domesticados, para concentrar-se nos peixes. Disse-me Cizino em 2009 sobre a vontade de criar peixes:

Pra comer. Comer a família, nosso filho, nossa mulher, né? Aí, né, Felipe, mas é bom. Nós queremos criar também peixe. Peixe. Peixe para sempre, não é nada assim [diferente], entendeu, peixe [de] rio mesmo.

A forma do criatório de animais – um espaço cercado onde seres não humanos são mantidos nas proximidades dos humanos – não é desconhecida dos Karitiana27. O que sugeri (Vander Velden 2012: 152-155) tratar-se do mito de origem da caça narra como, após criar os animais da floresta, Botyj (“Deus”) colocou “todos num curral” – também referido como “chiqueiro” (poon) – construído por ele, “como branco faz com boi”; este cercado de animais confinados foi desastradamente aberto por Ora, irmão de Botyj, o que propiciou a fuga dos animais de presa e seu espalhamento pelo mundo. Mas a manutenção de animais confinados – ao menos temporariamente – também fazia parte das práticas de subsistência Karitiana e, neste caso, especificamente aquelas relativas aos peixes. Trata-se do que os índios chamam de “tapagens”, barreiras de troncos finos de madeira amarrados com cipó erguidos no meio do curso dos rios de maior volume d’água para direcionar e confinar os peixes em cercados feitos de palha e cipó ambé, peixes que, em seguida,

26 Devemos estar atentos, também, ao fato de que o discurso do “colapso da pesca” é um dos principais sustentáculos da expansão da aquicultura industrial mundo afora (Ramalho 2012: 334). As iniciativas de introduçao da (e de incentivo à) criação de peixes por parte de órgãos públicos devem, então, ser objeto de escrutínio.

27 E nem de outras populações amazônicas: relatos dos séculos XV e XVI mencionam enormes “cercados” de peixes e quelônios na calha do rio Amazonas (cf. Fiori & Moraes dos Santos 2015: 48-61). Erickson (2000) aponta para enormes obras de manejo hidráulico que, na região de Baures (Bolívia) destinavam-se a servir como represas (weirs) para a produção de massivos volumes de pescado.

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são facilmente abatidos com flechas ou mesmo recolhidos com as mãos. Tapagens, diz Antenor Karitiana, não são apenas “armadilhas de peixes”, mas servem para “amansá-los”, ao criar, como vimos, a abundância, além, obviamente, da necessária proximidade – em outras palavras, fazer coincidirem as trajetórias de peixes e humanos (Whitridge 2013), modo por meio do qual as ações predatórias Karitiana parecem operar.

Uma tapagem construída no Igarapé Preto. Note-se o “curral” (poon) formado pelas varas de madeira amarradas com cipó (foto: Laura Karitiana, 2008).

Conta-se que, antigamente, pegavam muito peixe em tapagens: cruzavam o rio, fazendo um “curral” para pegar jatuaranas. Como não havia como os peixes saírem do cercado após entrarem, uma estrutura denominada “porta” era fechada e “aí era muito peixe”. Cizino completa:

Peixe do rio mesmo a gente tinha, não tinha peixe criado, a gente não viu, não, tempo [antigamente]. A gente não pensava. Aí, aí, eu vi primeiro só tapagem, muito peixe, jatuarana, pacu, piau, pintado, surubim, jundiá. Eu não pensava [que o] pessoal criava peixe. Agora que eu estou sabendo isso.

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Cizino estava sabendo disso em 2009. Mas os Karitiana têm estado às voltas com projetos de criação de peixes há tempos. Em 2003, durante minha primeira estadia em campo, soube que a EMATER-RO28 prometera um tanque de peixes para Kyõwã, onde seriam criados carás, tambaquis e curimatás. Um buraco foi cavado ao lado da casa do finado Bené, numa das extremidades da aldeia, mas ali não havia água disponível e, portanto, não deu certo. Na ocasião, falava-se que no roçado de Delgado havia um olho d’água propício e, assim, o tanque para os peixes seria deslocado para lá. Numa das extremidades do Kyõwã, junto à estrada que leva à Porto Velho, a água das enchentes de inverno usualmente acumulava em buracos, aprisionando peixes que eram rapidamente recolhidos pelos moradores – outro local considerado, na época, propício à instalação dos tanques para piscicultura.

Mas não foi. Em 2009 voltei a escutar sobre os projetos de implantação da piscicultura na aldeia de Kyõwã, ainda não instalados pela mesma EMATER. No mesmo ano, soube que o chefe do posto indígena Karitiana elaborara o croqui de um projeto de criação de peixes na aldeia Central, em que cinco tanques (a serem escavados em julho e agosto daquele ano) abrigariam jatuaranas (certamente a pedido dos Karitiana), tambaquis e tilápias (esta uma espécie exótica). O projeto, desenhado numa parceria entre a FUNAI-Porto Velho, a EMATER e a Secretaria Estadual de Agricultura de Rondônia, deveria, inclusive, promover a reprodução por indução hormonal das tilápias na própria aldeia. A EMATER traria as técnicas e promoveria o treinamento aos índios interessados. Já no ano seguinte, um grupo de rapazes Karitiana estava envolvido com um curso de capacitação desenvolvido pelo SEBRAE de Porto Velho, e que visava a ensinar os índios a “explorar atividades econômicas e a desenvolver projetos de sustentabilidade, como piscicultura e avicultura”29. Muito bom no papel, mas tratou-se de outro projeto que não decolou.

Enquanto isso, no mesmo ano, na aldeia do rio Candeias (Byyjyty ot’soop aky, na língua Karitiana), o líder e xamã Cizino também expressava seu desejo de ter uma criação de peixes, ressaltando, mais uma vez, a ubiquidade dos projetos e as ausências e deficiências técnicas como principais motivos para a não efetivação dessas propostas que têm como objetivo atender aos anseios da “comunidade”.

Peixe criado? Não. Ainda não, a gente está fazendo agora projeto. Tem que fazer, tem que fazer, para valer, e a gente ia fazer [há] muito tempo,

28 Entidade Autárquica de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia.

29 Disponível em https://sebrae-sp.jusbrasil.com.br/noticias/2439928/em-rondonia-indios-karitiana-e-karipuna-aprendem-a-gerir-associacao, Acesso em 20/06/2017.

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pessoal branco, também, JOCUM30, muito tempo, não fez nada até hoje. Três vezes foram na aldeia fazer reunião com a gente e não foi fazer nada. Aí chefe de posto pegou trator, fizemos, cavamos o chão, aquele [tanque] para criar peixe, até hoje não criaram. Até hoje não tem a ferramenta para criar peixe. Não tem. Eu não moro lá não, Felipe [na Aldeia Central]. Se fosse eu morasse lá, rapaz! Eu ia fazer mesmo, eu não aquieto, não. Não fico parado, não, Felipe, tem que fazer mesmo. A gente pode trabalhar pela comunidade, comunidade muito forte, muito bom para trabalhar. Sozinho não tem nada. Então isso eu estou pensando, eu estou pensando lá agora aonde eu estou [no rio Candeias], fazer projeto bom, eu fazer projeto, dentro do projeto eu vou trazer técnico para ensinar a gente, quando a gente já sabe tudo ele vai embora, fazer lembrança, né? Fica bom para a gente.

Conforme a fala de Cizino, vemos que o treinamento dos Karitiana é pensado como fundamental para o sucesso do projeto de piscicultura, caso implantado: deve-se “trazer técnico para ensinar a gente”, técnicos que deverão deixar a aldeia quando a instrução for concluída. Os Karitiana não são criadores de peixes. Isso é coisa dos brancos, que devem ensinar aos Karitiana como proceder. É interessante constatar que a própria ideia de criatório de peixes difundida entre os Karitiana – a tapagem de um igarapé – é, ao que parece, mais adequada à criação de jatuaranas, peixes que apreciam a água corrente: nesse sentido, os chamados “viveiros em canais de igarapé” – que se utilizam dos cursos d’água para formar o espaço de criação (Fim et al. 2009) – são muito mais adequados do que viveiros de barragem ou tanques escavados; contudo, nunca soube (e nem vi) discussões a respeito desta técnica: tudo o que se falava, entre técnicos e indígenas, era sobre cavar poços.

Em 2015, na minha última visita aos Karitiana, voltei a saber que mais um poço para criação de peixe foi cavado com trator na aldeia Central, mas a piscicultura, novamente, não foi iniciada: o referido poço encheu com a água de um igarapé próximo onde alguns meninos pescavam; estes jogaram no poço “filhote de peixe cará, jiju e traíra”, e estavam pescando ali, mas ouvi que “as jatuaranas estavam muito magras, porque não comem, não tem comida, porque não tem criação, só comem lodo e borboletinha que cai na água”.

Este ponto da alimentação dos peixes toca em uma questão sensível, talvez a barreira mais significativa ao sucesso dos projetos de criação animal em toda a Amazônia

30 Jocum – Jovens com uma Missão. Trata-se de uma organização internacional e interdenominacional fundada em 1960 e empenhada na mobilização missionária de jovens de todo o mundo para intervenções de caráter social “no cumprimento da ordem de Jesus” (http://www.jocum.org.br/na-cabeca/quem-somos/, Acesso em 13/05/2017). A missão possui um escritório em Porto Velho, e vários jovens Karitiana estiveram envolvidos com ela em algum momento.

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indígena31. Em outro trabalho (Vander Velden 2016), mostrei que um projeto de criação de galinhas “brancas, de granja” em um enorme galinheiro que chegou a ser construído em Kyõwã teria falhado – as aves todas morreram em massa – porque os Karitiana não teriam recebido dos órgãos responsáveis pelo projeto as instruições técnicas para gerir a iniciativa. Alegam, ainda, que não sabiam como alimentar corretamente as aves, argumentando que certos animais domésticos não precisam receber comida, mas devem “se virar”, como dizem, buscando seu sustento por conta própria. Tais animais de criatório em grande número constituem uma categoria própria de seres, definidos pelo adjetivo by keerep, na língua Karitiana.

Os Karitiana traduzem o termo by’keerep como “criação de longe”; assim, os seres ditos “criação by’keerep” permanecem afastados das residências, fora das casas e do convívio próximo e cotidiano com as pessoas. Se se emprega a afirmação ym’et para fazer referência à “minha criação” – neste caso, de filhos humanos e de animais (esses “como filhos” não humanos), a apropriação de uma criação de peixes deve, necessariamente, incorporar o termo keerep – ‘ip’am keerep tyjã (“minha criação de peixes”) – que sinaliza uma multidão de animais “fechados” – neste caso, em um “curral” (tapagem) ou lago de peixes, distante, por definição, dos locais cotidianamente frequentados pelos indvíduos. Peixes de criatório, assim, são criados longe ou de longe – ‘ip by keerep, “peixes de criação” ou “criação de peixes” – assim como as galinhas: opok ako by keerep, “criação de galinhas”, porque as galinhas – como os peixes, e ao contrário de cães, gatos, macacos e papagaios – não vivem na companhia das pessoas, nas casas e, principalmente, não precisam de cuidados diretos, não necessitam ser alimentados porque “se viram”. Há outras associações possíveis, penso, entre galinhas e peixes no pensamento Karitiana: seres múltiplos por definição, ambos se associam aos brancos, de certo modo, pela origem; ademais, se as galinhas têm seus donos humanos (indígenas), os peixes criados em cativeiro também têm donos humanos, posto que sua introdução está vinculada aos projetos de piscicultura desenhados e introduzidos por obra dos brancos.

Os animais de criação “de longe” (by keerep) se opõem aos seres criados junto aos humanos, no interior de suas casas, e dos quais se diz viverem “junto com as pessoas”. Esses seres – principalmente cães, mas também gatos e animais da fauna nativa (papagaios, araras, quatis e diversos macacos) recebem o adjetivo by’edna, que os Karitiana traduzem como “de criação”, mas cuja glosa mais precisa seria “de casa” ou “doméstico”. Cachorros,

31 Marianne Lien (2015; Lien & Law 2011) aponta que o agenciamento do salmão cultivado como permanentemente “faminto” (hungry) é a chave para o sucesso de sua criação comercial, uma vez que trata-se fundamentalmente de ganhar peso, convertendo alimento em carne.

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pois, são obaky by’edna, literalmente “onças (obaky) de criação”, “onças de (que se cria em ou no interior da) casa”, em suma, “onças domésticas. A diferença crucial, assim, entre os seres criados “de longe” e aqueles cuidados “de perto” ou nas casas, situa-se na alimentação: os animais “de perto” são regularmente alimentados pelas pessoas, e é essa proximidade diuturna, esse coabitar de corpos que trocam afetos e mesmo substâncias, que gera o parentesco, um desses “efeitos enigmáticos dos laços de parentesco” de que fala Marshall Sahlins (2011: 2) ao pensar o fenômeno como “mutualidade de ser” (mutuality of being). Do contrário, aqueles seres criados “de longe” devem cuidar-se sozinhos, à distância das atenções cotidianas de seus donos. Assim são as galinhas, como assim também são os peixes – não se pode dizer ‘ip by edna para se refereir ao criatório de peixes, porque estes não estão junto das pessoas, em suas casas, com proximidade corporal – e é possível que seu número também esteja em evidência aqui, embora um único cavalo que vivia em Kyõwã quando estive por lá em 2003 era também criação “de longe” (by keerep).

O que se alimenta, assim, se torna aparentado; o cuidado constante cria parentesco, e é por isso que diz-se, por exemplo, que “cachorro é como filho” (Vander Velden 2012), ainda que, no geral, apenas filhotes de animais domésticos recebem alguma atenção no que tange à comida. Nós não criamos parentesco com os animais de criatório (bois, vacas, galinhas, porcos e outros, que são sempre coletivos, legião) que alimentamos, mas os Karitiana – como muitos outros grupos indígenas – o fazem, o que tem colocado um limite crucial aos projetos de criação animal em aldeias no Brasil (Vander Velden 2012), incluindo a criação de peixes, como demonstra o caso emblemático dos povos no alto rio Negro (Martini 2008; Estorniolo 2014). Em sua dissertação de mestrado, André Martini (2008) demonstrou que, no rio Negro, o ato de alimentar os peixes de criatório nos tanques em que eram confinados criava um laço entre humanos e não humanos que tornava o consumo direto destes últimos interdito; assim, os peixes despescados eram vendidos nos mercados locais para a contínua aquisição de frangos congelados, muito mais caros: justamente o problema que o projeto de piscicultura intentava solucionar. Vê-se, deste modo, que o cuidado gera proximidade – os peixes se tornam “filhos do homem”, na expressão de Martini – e converte em ato canibal alimentar-se daquilo que se alimenta.

Aqui, então, estamos diante de uma das armadilhas expostas pela equivocação (Viveiros de Castro 2004; Blaser 2009), que gira em torno da tradução que os Karitiana fazem dos termos by’edna e by’keerep para a língua portuguesa. Com efeito, ambas as noções são recobertas, no uso Karitiana, pelo verbo “criar” em português, que tem o duplo sentido de “produzir, fazer” (to make) e de “cuidar” (to nurture), mas que não incorpora a distinção entre a criação de perto e de longe, como faz a língua Karitiana: os animais que se

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cria são aqueles de que se cuida e se alimenta; isso define os nossos animais domésticos ou domesticados, ainda que se possa argumentar por uma distinção entre os animais de casa – os pets ou mascotes, ou animais de estimação, que vivem em nossas casas ou próximos delas – e os animais de criatório (bois, porcos, galinhas e outros) – aqueles criados à distância justamente para que, alijados de nosso cotidiano, possam ser por nós explorados sem maiores preocupações morais. Não obstante, quando os Karitiana se referem a “criar peixes”, eles estão falando de algo muito distinto das responsabilidades envolvidas no que se entende como o correto manejo desses animais aquáticos: a vigilância constante, o cuidado permanente com diferentes variáveis (temperatura da água, população dos tanques, parasitas e predadores e por aí vai), a necessidade de prover medicamentos, vacinas e, principalmente, alimentação. Peixes, by keerep, criam-se longe e, por si mesmo, devem “criar-se a si mesmos”, ‘se virar”. Se Ora os “criou” (os fez, make), talvez Ora os “crie” (cuide, nurture) ainda hoje, mas esta tarefa não cabe aos humanos. Bem, cabe, talvez, aos brancos, que, como Ora, parecem saber “criar” peixes nas duas acepções do termo.

Se os Karitiana se converterem em criadores de peixes seguindo as diretrizes dos projetos de piscicultura, arrisco a dizer que o consumo destes animais será no mínimo problemático: aquilo que se alimenta não se devora, pois se torna “como filho”32. Galinhas que vivem nos arredores das casas, e que são, às vezes, alimentadas pelas mulheres com restos de refeições, parecem jamais – ou só muito raramente – se tornarem, elas próprias, comida. Os Karitiana até “dizem que comem, mas não comem”, na frase lapidar de Francisco Queixalós (1993: 78-79) fazendo referência aos Sikuani (cf. Vander Velden 2012: 271-273). Se têm um dono (ou dona), alguém que lhes cuida, não podem ser convertidas em carne: galinhas, portanto, não são himo (carne). Penso que os peixes, criados em tanques artificialmente construídos, e devendo, por isso, ser alimentados pelos responsáveis pela criação, caminharão no mesmo sentido: embora não sejam himo – termo que se refere aos animais de presa, caçados na floresta – se cuidados de perto, alimentar-se deles constituirá um problema; esses serão peixes “anômalos” (cf. Lien 2007: 214), que escapam de seu domínio técnico ao adentrarem no universo das relações que os Karitiana entretecem com os seres com quem convivem. Incerteza e imprevisibilidade, como se sabe, caracterizam a criação desses seres que se conservam a maior parte do tempo fora do alcance de nossa visão (Lien & Law 2011: 75).

32 Obviamente não pretendo teorizar sobre o futuro, mas apenas explorar tendências. É certo que os Karitiana podem encontrar mecanismos que tornem aceitável o consumo desses peixes criados. Por exemplo, por meio da troca de peixes entre diferentes criadores, ou mesmo do roubo de peixes em viveiros alheios; ou, então, por meio de formas de desfamiliarização, como fazem, vez por outras, com suas galinhas de criação (Vander Velden 2012: 270-272). Agadeço à Milena Estorniolo por esta sagaz observação.

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Brancos, fazendeiros de peixes

Como espero tenha ficado claro, a criação de peixes entre os Karitiana jamais saiu do papel. É óbvio que isso se deve, provavelmente em todos os casos, às conhecidas morosidade e desorganização das políticas indigenistas no Brasil. Contudo, tenho razões para crer que tais projetos, se definitivamente implantados, não decolariam, tal como aconteceu tragicamente com a mencionada criação de aves em galinheiro comunitário, e com uma outra criação de cabras estabelecida, a crer nos documentos disponíveis, nos anos de 1990 – esses, os dois projetos de criação animal que foram efetivamente introduzidos em Kyõwã, e que falharam completamente (Vander Velden 2012: 130-132; Vander Velden 2016). Como disse anteriormente, estamos falando, aqui, de projetos de criação de peixes; da piscicultura, por assim dizer, no papel. Importa, assim, analisar os planos e os desejos, intensamente manifestado pelos Karitiana nos últimos anos, por criar peixes em suas aldeias. Mas por que insistir tanto na piscicultura, em certo detrimento da criação de outros animais domesticados?

Em que pese a escassez de pescado afirmada pelos Karitiana, parece-me que, de seu ponto de vista, apostar nos peixes de criatório encontra justificativa imediata na figura daqueles responsáveis por sua eventual introdução: quem melhor, afinal, para criar – no sentido de “produzir”, “gerar” – peixes do que os brancos, esses subordinados de Ora, o dono das águas que inventou, por assim dizer, os seres aquáticos a partir de objetos inertes? Brancos e peixes são, igualmente, artefatos do gênio de Ora. Todavia, esses brancos que, hoje, propõem projetos de piscicultura ali seriam como que Oras invertidos: ao invés de tornar restos vegetais (folhas e galhos) em peixes, eles convertem os peixes em vegetais, “cultivando-os” em lagos e tanques e fazendo as “colheitas” quando necessário33.

Criar os peixes no segundo sentido do verbo – quer seja, “cuidar” deles, “alimentá-los” (to care) – é outra questão. Como seres criados “de longe” ou “à distância” (by keerep), fora das casas e do convívio cotidiano com as pessoas, peixes devem “se virar”, buscando seu próprio alimento. Peixes em cativeiro, contudo, não fazem isso, e assim, no único caso em que algo semelhante a uma criação de peixes aconteceu em uma aldeia Karitiana, os animais permaneciam “muito magros”34. O problema, então, estaria na necessidade

33 A associação entre a água e seres poderosos, tanto criadores como destruidores (como é o caso de Ora), e que aparecem frequentemente como serpentes aquáticas, tem uma distribuição extensa mundo afora (ver Bernard 2017).

34 Isto talvez venha a operar uma distinção entre os peixes pescados nos rios e lagos naturais (tal como reconhecidos pelos Karitiana) e aqueles criados em cativeiro nos tanques e lagos artificiais (isto é, construídos para a piscicultura), mesmo se tratando, em ambos os locais, de peixes das mesmas espécies (cf. Lavau 2011: 54-55).

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de alimentá-los, o que, seguramente, criaria, ao aproximar os peixes dos humanos (tornando-os seres by’edna), um quiproquó semelhante àquele etnografado por André Martini (2008) no alto rio Negro: aquilo que se alimenta se aparenta; seres cuidados pelos humanos tornam-se “como seus filhos”; seu consumo direto, daí, torna-se interdito, e a própria razão fundadora dos projetos de piscicultura desmonta com enorme facilidade. Os brancos, assim como Ora, são “donos dos peixes”, mas isso não implica no cuidado próximo e atencioso que se dá aos animais que são criados em casa, “de perto” (by’edna): os donos amazônicos, como se sabe, supervisionam, por assim dizer, além de hipostasiarem seus “subordinados” e serem bastante ciosos deles (cf. Fausto 2008); mas não cuidam como uma mãe ou um pai cuidam de seus filhos: um dono não é, necessariamente, um parente. Os brancos zelam por suas criações de peixes, alimentando-os e checando o tempo todo os parâmetros diversos que sustentam o bem estar dos animais; mas tais investimentos técnicos na qualidade de vida dos animais não implica, quase nunca, em afeto: os peixes são números, quantidades, recursos, não são “como filhos” (cf. Lien 2012).

Nisso, os Karitiana – assim como outros povos ameríndios – parecem se contrapor à lógica subjacente à piscicultura ou à aquacultura, que vegetaliza os peixes – tornando-os, nas palavras do historiador Donald Murray (2015: 151), the equivalent of grass – por meio de “metáforas agrícolas” que desenham a piscicultura (isto é, a cultura, o cultivo, de peixes) em paralelo com a agricultura (Smith 2012; cf. também Bérard 1993; Ramalho 2012; Lien 2015)35 ou com a criação de animais terrestres em escalas industriais – Lien (2012: 237) refere-se ao salmão como the chicken of the sea. Se criados (ou seja, cuidados) seguindo os procedimentos, preceitos e técnicas da piscicultura, esses seres jamais poderão tender ao vegetal – na Amazônia a relação com os seres aquáticos não parece redutível nem à agricultura, nem à caça (de animais terrestres). Muito ao contrário, a relação estreita entre humanos e esses não humanos aquáticos converte estes últimos antes em parentes do que em criaturas inertes que se pode, de qualquer modo, cultivar e depois colher ou coletar36.

Transformar os Karitiana em fazendeiros de peixes (ou das águas) – agenciando

35 Os índios Tremembé, no litoral cearense, por exemplo, falam em safras de peixe (Oliveira Júnior 2006).

36 Os peixes (‘ip) certamente não são seres inertes nos dias de hoje; mas é intrigante que eles tenham sido criados por Ora a partir de objetos vegetais inertes – galhos, folhas e tocos de pau. Noto que a ideia aqui expressa – de que as plantas são seres inertes – refere-se à percepção técnico-instrumental da agricultura – a mesma, afinal, que “vegetaliza” os peixes; entre os povos indígenas amazônicos os vegetais são seres dotados de agentividade e com os quais é preciso se relacionar e negociar permanentemente (Oliveira 2016). Os Karitiana, entretanto, embora pratiquem uma horticultura tanto de subsistência (feijão, milho, mandioca e amendoim) como comercial (café e laranja), não elaboram, até onde sei, essa agentividade das plantas, e jamais ouvi qualquer afirmação que aproximasse, minimamente, as agências de “animais” e de “vegetais” ou que “aparentasse” humanos e plantas.

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(enacting), assim, peixes de outra forma, radicalmente distinta daquelas que vêm relacionando seres humanos e não humanos nesta parte da Amazônia brasileira por séculos ou milênios (cf. Law 2012) – demandaria, então, um percurso cheio de obstáculos que só muito diálogo e reflexão poderão, talvez, superar. É possível que, uma vez mais, os Karitiana optem por serem criadores de peixes, mas sem os peixes, tal como sugeri alhures (Vander Velden 2011), mostrando que o desejo de criar gado é, antes de tudo, a vontade de ser fazendeiro, de ter acesso a todos os bens e comodidades de que dispõem os ricos agropecuaristas de Rondônia que os Karitiana conhecem e com quem eventualmente convivem. Fazendeiros sem gado, em suma. E, então, piscicultores sem peixes37. Interessaria, aos Karitiana, antes a captura de um saber técnico dos brancos que, como peixes e associados ao grande dono dos peixes, eles manejam muito bem: isso os permitiria, mais do que efetivamente criar (grow) peixes, ou seja, cuidar deles, criar (make), fazer, fabricar esses seres, produzindo-os e, desta forma, livrando-os dos caprichos dessa serpente aquática raivosa que controla o acesso ao que há nas águas38. De todo modo, cuidar de peixes de criatório faria dos Karitiana homólogos à Ora e aos seus brancos, ambos fazendeiros de peixes. Não teriam compreendido, desta forma, com precisão, de que trata a piscicultura?

Criar peixes na Amazônia parece o mais óbvio movimento na busca pela solução da frequentemente aventada escassez de recursos para subsistência, notadamente, de carne: terra das águas, a região é cortada por uma infinidade de rios, igarapés e lagos, em que se encontra a maior reserva de água doce do planeta e uma riquíssima variedade biológica (de peixes) e cultural (de pescadores e técnicas de pesca; ver Doria & Lima 2015). Cavar um lago ou tanque de água a mais, e povoá-lo de peixes – mesmo que de espécies exóticas – não parece ser nada demais, em contraste com a construção desses mesmos corpos d’água em outras partes, que se tornam, então, símbolos da vida silvestre (cf. Franklin 2011: 23). Entretanto, vimos que a piscicultura apresenta-se como controversa (cf. Callon

37 Até porque, tomando especificamente as tão apreciadas jatuaranas, seria difícil criá-las em tanques, já que consta serem peixes que apreciam águas correntes e limpas (Silva 1968: 72). Vários estudos sobre a criação de peixes amazônicos da subfamília Bryconinae demonstram as dificuldades do empreendimento, sobretudo em função do parco conhecimento da biologia desses animais (Neumann 2008). Não obstante, os melhores resultados na criação de jatuaranas e matrinxãs parecem ser obtidos com os chamados tanques-rede, em que os animais são confinados na água corrente (em um rio); ainda assim, a criação desses peixes é ainda apontada como tão somente “promissora” para a piscicultura amazônica (Gadelha & Araújo 2013). É interessante notar que as tapagens, erguidas no meio da correnteza dos rios, usam o mesmo princípio desses tanques-rede, sustentando a possibilidade da produção do espaço móvel dos rios como espaços imóveis de tapagens e tanques (cf. Sautchuk 2011), partilha técnica que talvez gere efeitos inesperados numa (futura) piscicultura Karitiana.

38 Lembremos que Ora não só cuida dos (cria) os seres aquáticos, mas também os produz (cria) pela transformação de objetos inertes boiando no rio.

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1986) nos casos indígenas analisados – inclusive no tocante à localização, às vezes infeliz, dos espaços escolhidos para os reservatórios (Estorniolo 2014) –, e parece alimentar-se, com frequência, muito mais de um sucesso suposto pelas agências indigenistas do que na definitiva solução dos problemas dos pontos de vista indígenas. Além disso, em muitos contextos estudados na região, é a introdução da criação bovina que parece interessar mais a indígenas e não indígenas, não a piscicultura (Toni et al. 2007; Wood, Tourrand & Toni 2015). Ademais, o “perfeito controle da água” (Bérard 1993: 147), condição técnica crucial para a piscicultura, jamais poderá ser completamente obtido: Ora, o “dono das águas” no mundo Karitiana, como vimos, é uma criatura caprichosa, perigosa e malévola, exercendo cioso domínio sobre o mundo subaquático e as criaturas que o habitam; justamente por isso, o “fator de incerteza” (ou a imprevisibilidade) que caracteriza a pesca (Sautchuk 2008: 14) não me parece facilmente eliminado quando passa-se a criar peixes em cativeiro. E, conforme sugerido por Philippe Descola (2002), não pode haver sobreposição de posses na América indígena: nada, nenhuma criatura, objeto ou local, pode ter mais de um dono39, embora possam, em certos casos, mudar de donos. Isso coloca, de imediato, a questão dos projetos comunitários ou coletivos e de seus fracassos recorrentes entre os Karitiana (ver Vander Velden 2016). Talvez o ponto esteja, justamente, na confusão gerada pela multiplicidade de donos em um contexto em que deve haver apenas um: estaríamos, aqui, diante de outro equívoco, supondo que formas de ação comunitárias são, por suposto, mais adequadas para o que são oficialmente definidas como as “comunidades” indígenas.

Marianne Lien (2015: 110), investigando a impossibilidade do total controle humano sobre os salmões na aquacultura norueguesa, argumenta que “[f]ish are elusive; our relations are partial, fleeting, and contingent”; no que concorda com Bear & Eden (2008: 501), para quem peixes são “distinctly fluid ‘objects’, in distinctly fluid spaces (ou seja, a água, dos oceanos, mas dos corpos de água doce igualmente). Penso que o mesmo possa ser dito de boa parte dos brancos pelos Karitiana. Se os não índios não podem ter a ilusão de controlar totalmente os peixes (sua reprodução e movimentação), como se estes constituíssem “estoques maleáveis” de seres vivos (Smith 2012: 9), os Karitiana partilham de perspectiva análoga: o “controle” dos peixes cabe fundamentalmente à Ora, seu dono. Mas, para além disso, os Karitiana também sabem como é difícil manejar o engenho técnico e a cobiça desenfreada desses mesmos não índios, em seu desejo inextinguível por

39 Thiago Oliveira, em seus comentários a este texto, informou ter conhecido, entre os Baniwa no alto rio Negro, iniciativas de piscicultores individuais com ótimo desempenho. A sugestão, penso, é válida, o que não deve obscurecer dois fatos: primeiro, que a relação com os peixes no alto rio Negro é bastante distinta daquela observada entre os Karitiana e, segundo, que o dono individual de um tanque de peixes ainda confronta Ora, como dono das águas e dos seres aquáticos.

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extrair mais e mais excedente da natureza e de seus habitantes, animados e inanimados, humanos e não humanos. A piscicultura – ou, uma certa concepção e aplicação desta prática/técnica – tem potencial para trazer muitos malefícios que se somarão aos enormes impactos sofridos pela água na Amazônia (Leonel 1998), recolocando, uma vez mais, a questão de seus modos de gestão e de quem tem poder ou direito sobre ela. O melhor, então, neste caso, é manter os brancos mesmo ocupados desenhando projetos que jamais serão implantados.

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Recebido em 17 de agosto de 2017.

Aceito em 19 de abril de 2018.

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