Vânia Lúcia Kampff Heidegger e o outro pensar · em 1974 por supervisão de Hermann Heidegger e...

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Vânia Lúcia Kampff Heidegger e o outro pensar: Uma leitura de Que chamamos pensar? Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Orientador: Prof. Edgar de Brito Lyra Netto Rio de Janeiro Abril de 2015

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Vânia Lúcia Kampff

Heidegger e o outro pensar: Uma leitura de Que chamamos pensar?

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Edgar de Brito Lyra Netto

Rio de Janeiro Abril de 2015

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Vânia Lúcia Kampff

Heidegger e o outro pensar: Uma leitura de Que chamamos pensar?

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Edgar de Brito Lyra Netto Orientador

Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof. Luiz Camillo Dolabella Portella Osorio de Almeida Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof. Rodrigo Ribeiro Alves Neto Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial do Centro de Teologia

e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 14 de Abril de 2015

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Vânia Lúcia Kampff

Graduou-se em Letras (Licenciatura Plena – Português / Inglês) pela PUC-Rio em 1988. Cursou Teologia / Filosofia na PUC - Rio. Foi coordenadora executiva da Cátedra Carlo Maria Martini. Área de pesquisa em Filosofia Contemporânea, com estudos desenvolvidos em Martin Heidegger.

Ficha Catalográfica

CDD: 100

Kampff, Vânia Lúcia Heidegger e o outro pensar: uma leitura de Que chamamos pensar? / Vânia Lúcia Kampff ; orientador: Edgar Lyra Netto. – 2015. 148 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2015. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Caminho. 3. Pensamento. 4. Representação. 5. Temporalidade. 6. Metafísica. 7. Origem. 8. Ser. I. Lyra Netto, Edgar. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

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À Therezinha,

por ter me ensinado a sonhar.

Ao Carlos, ao Christian e ao Patrick, por sonharem comigo.

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Agradecimentos

Com a palavra Gedanc, oriunda do alemão arcaico, Heidegger nos fala tanto da memória quanto da gratidão. É, pois, tomada pelo espírito da letra que expresso o coração pleno de gratidão e faço memória a todos aqueles que fizeram parte desta trajetória:

ao professor e orientador Edgar Lyra, pela presença e cuidado constantes em todos os momentos da caminhada;

ao professor Eduardo Jardim, por conjugar sabedoria com generosidade e, ao acolher meu desejo em seguir na Filosofia, apontar o caminho;

aos professores Luiz Camillo Osorio, Luisa Severo Buarque de Holanda, Maria Inês Anachoreta, Tito Marques Palmeiro, Márcia Sá Cavalcante Schuback, Maria Montenegro e José Trindade Santos, pelas mais variadas e tão pertinentes palavras-caminho ofertadas ao longo do percurso;

ao meu marido, Carlos Adolfo Kampff, aos meus filhos, Christian Kampff e Patrick Kampff, e à minha mãe, Therezinha Rey Scaldini, pelo amor, compreensão e amparo, sem os quais o caminho não seria o mesmo;

às amigas Cláudia Lúcia Morais e Silva, Fernanda Aleman, Christina Procópio de Castro, Andréa Salgado e Manuela Brambilla, pelo apoio e amor fraterno.

aos amigos da PUC-Rio Maria Priscilla Coelho, Victor Melo, Isabela Massa, Paulo Barcelos, Beatriz Gross e Leonardo Reis, pela partilha de ideias, filosóficas ou não, no decurso do trajeto;

a todos os meus professores de Filosofia da PUC-Rio, cuja inteireza e coerência de propósito ajudaram a formar minha escuta ao caminho filosófico;

ao Departamento de Filosofia da PUC-Rio, desde sempre abrigo para o livre pensar;

ao Departamento de Teologia da PUC-Rio, lugar em que o caminho teve início;

à Edna Sampaio, à Diná Lúcia de Jesus Santos e ao Daniel, pela prontidão de todos os dias;

à CAPES e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais esta pesquisa não poderia ter sido realizada;

por fim, mas antes de tudo, a Deus, que pela fé foi a Luz que iluminou a totalidade do caminho. !

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Resumo

Kampff, Vânia Lúcia; Lyra Netto, Edgar de Brito. Heidegger e o outro pensar: uma leitura de Que chamamos pensar?. Rio de Janeiro, 2015. 148p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Heidegger e o outro pensar: uma leitura de ‘Que chamamos pensar?’

busca, como o título sugere, percorrer alguns dos caminhos propostos pelo

filósofo nesse escrito central em sua obra, ainda inédito em tradução para o

português. O livro estudado compreende dois cursos ministrados por Martin

Heidegger na Universidade de Freiburg, nos anos de 1951 e 1952. O primeiro

curso ocupa-se com a questão do pensamento representacional e delimita o fim da

metafísica ao apresentar a absolutização da vontade de poder e da temporalidade

presentes no Assim falou Zaratustra e no Eterno Retorno do Mesmo, de Friedrich

Nietzsche. O segundo curso, para o qual esta pesquisa se volta com mais ênfase,

concerne a Parmênides e aos primórdios do pensamento ocidental. Heidegger

vislumbra no momento anterior ao advento da metafísica pistas para o “outro

pensar”, e através da análise do fragmento VI do poema Da Natureza de

Parmênides o filósofo nos encaminha para o caráter primordial daquilo que então

se designou por pensar.

Palavras-chave

Caminho; pensamento; representação; temporalidade; metafísica; origem; ser.

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Abstract

Kampff, Vânia Lúcia; Lyra Netto, Edgar de Brito (Advisor). Heidegger and the other thinking: a reading on What is called thinking?. Rio de Janeiro, 2015. 148p. MSc Dissertation – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Heidegger and the other thinking: a reading on ‘What is called thinking?’,

as the title suggests, seeks to follow some of the pathways proposed by the

philosopher in this central writing of his work, still unpublished in Portuguese.

The studied book consists of two courses taught by Martin Heidegger at the

University of Freiburg, in the years of 1951 and 1952. The first course concerns

the issue of representational thinking and delimits the end of metaphysics in

presenting the absolutism of the will of power and the temporality, present

respectively in Friedrich Nietzsche’s Thus Spoke Zarathustra and The Eternal

Recurrence of the Same. The second course, to which this research focuses with

more emphasis, concerns Parmenides and the dawn of the Western thought.

Heidegger envisions in the moment prior to the advent of metaphysics signs of the

“other thinking”, and through the analysis of the fragment VI of Parmenides’

poem On Nature, the philosopher leads us to the primordial character of what was

then considered thinking.

Keywords

Pathways; thinking; representation; temporality; metaphysics; origin; being.

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Sumário

1. Introdução 11

1.1. “... talvez se possa aprender a pensar...” 13

1.2. Um filho do tempo 18

1.2.1. Um instante no tempo 20

1.2.2. O fio da meada 24

1.3. O dar-curso-ao-aprender 26

1.4. A caminho de Que chamamos pensar? 28

1.5. Uma palavra sobre a palavra “interpretação” 35

2. Que Chamamos Pensar?, as preleções e o escrito 40

2.1. As preleções do inverno de 1951-1952 42

2.1.1. “O mais problemático do nosso problemático tempo...” 43

2.1.1.1. Nas raias da representação 49

2.1.2. O Zaratustra de Heidegger 57

2.1.2.1. Nietzsche e o “fim da metafísica” 65

2.2. As preleções do Verão de 1952 68

2.2.1. O chamado 69

2.2.2. O dizer das palavras 74

2.2.3. Gedanc - o pensar do coração 77

2.2.3.1. O Andenken e a lembrança fiel 85

2.2.3.2 A proveniência do pensar 88

3. O outro pensar 93

3.1. Na aurora grega do pensamento 94

3.2 Da traductio 100

3.3. O impensado de Parmênides 103

3.3.1. A !"#$%&' 103

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3.3.2. O fragmento VI 105

3.3.2.1. O ()ὴ 107

3.3.2.2. O "*+%&, e o ,-%ῖ, 112

3.3.2.3. O ἐὸ, ἔµµ%,'& 119

3.3.3. O .ὸ 'ὐ.ὸ e a determinação do pensar 130

4. Considerações Finais 137

5. Referências Bibliográficas 143

5.1. Os caminhos de Heidegger 143

5.2. Os caminhos que levam a Heidegger 145

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We shall not cease from exploration And the end of all our exploring

Will be to arrive where we started And know the place for the first time.

T.S.Elliot

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1. Introdução

Caminante, son tus huellas el camino, y nada más;

caminante, no hay camino, se hace camino al andar.

Antonio Machado1

Caminhos, não obras (Wege, nicht Werke) – é o título com que Martin

Heidegger, ao organizar a publicação de suas obras completas (Gesamtausgabe)2,

define sua trajetória. Entendemos, com isso, que o filósofo quer preparar um

caminho de Filosofia que passa por um movimento que envolve o abandono da

resposta, um salto que nos coloca numa espécie de perspectiva suspensiva e

rompe com a nossa relação imediata com as coisas do mundo. Nos referimos a

uma trajetória filosófica que descortina, diante do olhar atento, a imagem de um

andarilho que busca no caminho a permanência do encontro; um caminhante que,

no silêncio do mundo, abre pequenas veredas, caminhos fora do trajeto usual, que

fazem jorrar com uma força intempestiva um pensar extraordinário.

O caminho do pensamento de Heidegger que escolhemos trilhar percorre

a trajetória dos cursos intitulados Que chamamos pensar? (GA8), proferidos na

Universidade de Freiburg, no inverno de 1951 e no verão de 1952, e publicados

em 1954. Pensamos que a relevância desse escrito não só se prende ao fato de

situar-se na primeira seção dos livros publicados de Heidegger – fato que aponta

para a importância do texto para o próprio filósofo –, mas, sobretudo, porque

compreende o caminho trilhado pelo pensar do filósofo quando retoma a cátedra

da Universidade de Freiburg, após 6 anos de ausência, quando ficou proibido de

lecionar pela comissão de desnazificação da Alemanha. Nesse momento de

retorno à universidade vamos encontrar Heidegger questionando o que significa

1 Antonio Machado, “Proverbios y Cantares XXIX”, in: Campos de Castilla: Poesias completas, Disponível [online]: http://www.rinconcastellano.com/biblio/sigloxx_98/amachado_prov.html Acesso em 7/1/2015. 2 Gesamtausgabe é o título dado à publicação das obras completas de Martin Heidegger, iniciada em 1974 por supervisão de Hermann Heidegger e originalmente publicadas pelo editorial Vittorio Klostermann de Frankfurt am Main, Alemanha. Para este termo em alemão usaremos as iniciais GA entre parênteses, acrescentadas ao número da ordem em que se encontra a publicação citada.

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pensar nesse tempo de hegemonia da técnica, tempo em que a ciência adquire

estatuto de verdade. Essas preleções nos dão pistas do que seria pensar para além

da metafísica tornada tecnociência e isso significa contemplar os dois umbrais: o

fim e o começo. Consideramos, por isso, ser esse um caminho de fundamental

importância no percurso do pensamento de Heidegger, um divisor de águas no

qual é possível traçar o panorama daquilo que, para o filósofo, significa o fim da

era do pensamento representacional e o anúncio de um outro pensar – um pensar

originário. Não é à toa que os dois pensadores que pontuam o 1o e o 2o curso são

aquele que prefigura o fim da metafísica e aquele que antecede o advento da

metafísica, nomeadamente: Nietzsche e Parmênides. Que chamamos pensar? é

tão relevante que Hannah Arendt, por ocasião da publicação do livro nos Estados

Unidos, afirmou ser esse um escrito “[...] tão importante quanto Ser e Tempo, [...]

a única apresentação sistemática da filosofia tardia do pensador, [...] o mais

emocionante de seus livros.”3 Em carta a Arendt, J. Glenn Gray, tradutor de Que

chamamos pensar? para a língua inglesa, agradece a citação e confirma com a

filósofa que o próprio Heidegger também considera esse seu mais emocionante

livro (das aufregendste meiner Buecher).4

Apesar de sua relevância, Que chamamos pensar? é um texto pouco

explorado e até mesmo negligenciado.5 Circunstância que infelizmente não nos

viabiliza um grande acervo de publicações para pesquisa, mas, sem dúvida, torna

nosso interesse e responsabilidade ainda maiores. Diante de tamanho desafio, nos

resta confessar de início que, se por um lado tivemos grande dificuldade em

encontrar material que nos ajudasse em nosso caminho de modo a aprofundá-lo,

por outro, nos colocou diante da tentativa de desenvolver um trajeto original sobre

o escrito. Não caminhamos em busca de uma compreensão absoluta do texto,

nosso olhar não seria capaz de tal alcance. Engendrar os caminhos de Heidegger é

sempre tarefa árdua. Mas, procuramos por uma compreensão que possa levar-nos 3 Cf. Harpers Collins Publishers [online]: “For an acquaintance with the thought of Heidegger, What is called thinking? is as important as Being and time. It is the only systematic presentation of the thinker's late philosophy and . . . it is perhaps the most exciting of his books.” (Hannah Arendt) Disponível em: http://www.harpercollins.com/book/index.aspx?isbn=9780060905286 Acesso em:16 abr 2014. 4 Cf. The Library of Congress [online] disponível em: http://memory.loc.gov/cgi-bin/ampage?collId=mharendt_pub&fileName=02/020500/020500page.db&recNum=9 Acesso em: 23 abr 2014. 5 Cf. Robert Mugerauer, Heidegger’s language and thinking, Atlantic Highlands, NJ: Humanities Press International 1988, p.192.

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a uma visão clara do que trata o escrito e do percurso nele envolvido. Nesse

sentido, nossos passos se movem inicialmente buscando levantar o contexto, a

época e a importância do texto no pensamento de Heidegger; em seguida,

trataremos da apresentação do livro e da forma como os cursos foram ministrados;

passaremos pelo o confronto do pensar de Heidegger com a absolutização da

vontade de poder de Nietzsche, o que significará para o filósofo o ponto

culminante, a última ideia da metafísica ocidental, sendo Nietzsche seu último

pensador; e, finalmente, caminharemos por uma das veredas do texto, buscando

explorá-la mais amiúde de modo a nos aprofundarmos numa das muitas

possibilidades por ele oferecidas: a que concerne a Parmênides e aos primórdios

do pensamento ocidental.

Temos ciência de que os fragmentos deixados por Parmênides foram lidos

e analisados por diversos estudiosos que, certamente, muito contribuíram para o

enriquecimento do pensamento filosófico. Todavia, não nos atemos aqui a essas

interpretações. O que gostaríamos de ressaltar nesse escrito é a singularidade do

pensar de Heidegger e, nele, a capacidade de trazer à claridade o impensável,

aquilo que subjaz encoberto à espera de alguém capaz de ali encontrar a alteridade

– esse outro que se mostra apenas ocultando-se.

Antes de iniciarmos essa trajetória, no sentido de nos prepararmos para

acompanhar tamanha investida, voltemos nosso olhar para o que consideramos ser

o primeiro passo em direção ao caminho que pretendemos percorrer e que também

nos evidencia, uma vez mais, a importância de Que chamamos Pensar? – o

próprio pensar de Martin Heidegger.

1.1. “... talvez se possa aprender a pensar”

É notório o fato de que Heidegger foi um dos mais influentes pensadores

do século XX. Sua influência é reconhecida por filósofos como Hans Georg

Gadamer, Michel Foucault, Jacques Derrida, Hannah Arendt, Walter Biemel,

entre outros. A reverberação que o pensar de Heidegger exerceu sobre cada um

deles é tão relevante que julgamos importante nos atermos brevemente diante de

tal reconhecimento.

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Gadamer o descreve como “um visionário. Um pensador que vê”6. Para

ele, o pensamento de Heidegger parecia desafiar qualquer comparação em relação

àquilo que a filosofia havia significado anteriormente, uma incomparável

renovação da tradição filosófica, um avanço, algo radicalmente novo. Michel

Foucault nos revela: “Heidegger sempre foi para mim o filósofo essencial. [...]

Todo o meu desenvolvimento filosófico foi determinado por minha leitura de

Heidegger”7. Jacques Derrida também confessa que seu próprio trabalho “não

teria sido possível sem a abertura das perguntas de Heidegger”8 e que mesmo seu

famoso termo “desconstrução” foi parcialmente inspirado no início da Destruktion

que Heidegger fez à tradição filosófica. Todo esse reconhecimento nos coloca

diante da grandeza de um pensar cuja a dimensão da obra soma 102 volumes.

O pensar de Heidegger é certamente grandioso. Mais do que isso, o pensar

de Heidegger é o pensar de um homem que se vê diante da condição extrema de

ser marcado e distinguido pelo destino de pensar, um pensar que o dominava de

tal forma que, por mais de uma vez, confessara ao filho Hermann: “algo pensa

dentro de mim. Não posso defender-me disso.”9 É esse o pensar que pretendemos

encontrar, não o pensar rebuscado da coisa erudita, mas, o da coisa pensada; não o

pensar que se objetiva na esfera do cálculo, da finalidade, mas, aquele que,

segundo o próprio Heidegger, “[...] não chega a um resultado; não produz

efeito”10, todavia tece caminhos para a própria questão do pensar.

Muitas são as visadas oferecidas para o pensar de Heidegger. Entretanto,

nossos olhos para essa tarefa serão os de Hannah Arendt; um olhar que evidencia,

através do texto “Martin Heidegger faz 80 anos”11, não só o percurso do seu

6 Hans-Georg Gadamer, Heidegger’s ways, Albany, NY: State University of New York Press, 1994, p.17. 7 Michel Foucault apud Lee Braver, Heidegger’s later writing – A reader’s guide, New York, NY: Continuum International Publishing Group, 2009, p.127.Tradução nossa. 8 Jacques Derrida apud Lee Braver, ibidem, p.127. Tradução nossa. 9 Rüdiguer Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, São Paulo: Geração Editorial, 2005, p.372. 10 Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os Pensadores - Conferências e Escritos Filosóficos; (tr.) Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.370. 11 Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, São Paulo: Companhia das Letras,1987, p.221. “Martin Heidegger faz 80 anos” foi escrito em 26 de setembro de 1969. Este manuscrito serviu como base para um discurso de Hannah Arendt no dia 25 de setembro de 1969, em Nova York, transmitido no “estúdio noturno” da estação de rádio da Baviera. A versão escrita foi publicada inicialmente na revista Merkur (caderno10, 1969) e, posteriormente, na edição brasileira de Homens em tempos sombrios, em que exclui-se o capítulo sobre Waldemar Gurian e incluiu-se a

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pensar, mas também a sinuosidade desse percurso. O escrito em comemoração aos

oitenta anos do pensador tem um belíssimo tom celebrativo, mas é, sobretudo,

uma síntese do trajeto do seu pensamento. Nele, Arendt nos conta do rumor sobre

um professor que chegara a Freiburg e que havia alcançado as “coisas mesmas”12

que Husserl havia proclamado; um professor que dizia que tais coisas não eram

coisas do mundo acadêmico, mas, desde sempre, coisas do desejo do homem

pensante. A filósofa nos fala de um pensar pulsante, de um questionar constante,

que, por conta dessa indagação, havia rompido o fio da tradição e redescoberto o

passado. Um pensamento que não se restringia à releitura de textos, porém, se

colocava em profundo diálogo com o legado deixado trazendo à tona os tesouros

do passado de forma totalmente revitalizada, de tal modo, que o que emerge é

totalmente outro. Segundo a pensadora, a tradição faz uma ordenação da história

da filosofia de modo a torná-la uma sucessão de etapas, uma ordenação

cronológica das coisas. Ao romper com esse fio, Heidegger faz com que a história

da Filosofia fique desobrigada da visão do autor em uma perspectiva histórica e

pode, com isso, trazer as questões para a contemporaneidade. Essa ruptura é de

certa forma inquietante, mas, ao mesmo tempo, libera o contato direto com o

pensar. Arendt nos adverte: “há um mestre: talvez se possa aprender a pensar.”13

Safranski nos conta que todo esse rumor gerou a imagem do rei secreto,

uma reputação que tomou vulto muito antes da publicação de Ser e Tempo (GA2),

em 1927. Desde o início da década de 1920, em Marburg, Heidegger já era

considerado secretamente o rei da filosofia na Alemanha. Todavia, esse rei não se

movia no mundo das aparências, seu trajar era simples como o de um zelador ou

um técnico, seu reino é o do pensamento; um reino totalmente oculto ao mundo,

mas que, ao mesmo tempo, se estende sobre o pensar de tantos outros e determina

tão marcadamente a fisionomia espiritual do séc. XX. Arendt mesmo indaga:

“Pois como se poderia explicar de outra forma a influência única, muitas vezes

importante homenagem a Martin Heidegger. A versão que Hannah Arendt transmitiu no rádio e enviou a Heidegger por carta por ocasião de seu aniversário diverge de forma insignificante da versão publicada. (cf. Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência 1925/1975, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001 p.259.) 12 Grifo da autora. 13 Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, 1987, p.223.

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subterrânea do pensar e ler pensante heideggerianos que se ultrapassa tão

amplamente o círculo dos alunos e o que geralmente se entende por filosofia?”.14

Para a pensadora, o pensamento heideggeriano não se situa na dimensão

contemplativa buscando um fundamento último, mas lança-se na profundeza

abissal para buscar caminhos. Trata-se de um pensar que é atividade pura e, por

certo, põe tarefas para si, não metas e fins; um pensar que teve como único

resultado o fato de ter desmoronado a cristalizada estrutura da metafísica que jazia

descrente há muito tempo.

O aprender a pensar, ao qual Hannah Arendt se refere, se põe para

Heidegger como uma experiência que acontece não pela vontade ou necessidade

de saber, mas como um movimento vivificante, onde pensar e viver se unificam.

A autora nos fala de um pensar apaixonado que se presentifica pelo simples fato

de estar no mundo e que pensa sobre tudo que é, sem, com isso, se prender a

conceitos e sistemas, mas no sentido de deixar marcas para o caminho do

pensamento, trilhas que indicam e apontam novas direções para o pensar – um

pensar que quebra a visão habitual das coisas e nos libera a uma nova visão, uma

nova paisagem.

Referimo-nos, por fim, com Arendt, a um pensar que se espanta diante do

simples, como dizia Platão no Teeteto, e que permite fazer do espanto uma

morada. Um habitar sereno e silente que torna o que estava ausente, presente; o

que estava distante, próximo. O espanto como morada envolve uma tomada de

distância do nosso envolvimento imediato com as coisas, não de forma a demarcar

uma sina, mas, a possibilidade de um caminho. Em comunicação posterior a

Heidegger, a filósofa ainda acrescenta: [sua] vida e sua obra nos ensinaram o que é PENSAR e [...] os escritos permanecerão paradigmáticos para tanto. Paradigmáticos também para a coragem de se arriscar no interior do extraordinário ainda não desbravado, de se expor completamente ao ainda impensado que precisa ser peculiar àquele que não se dedicou senão ao pensamento e a sua profundeza.15

14 Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, 1987, p.223. 15 Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência 1925/1975, 2001, p.140. Maiúscula da autora.

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O pensamento de Heidegger é, de fato, tão paradigmático para Hannah

Arendt que alguns anos mais tarde, em A vida do espírito16, obra publicada

postumamente em 1978 – Arendt faleceu em 1975, antes de concluir o livro –,

vemos a epígrafe que abre o primeiro volume, com mais de 160 páginas dedicadas

ao pensar, com os dizeres de Heidegger nos apontando caminhos para o

pensamento. Caminhos esses que já estavam bem demarcados em Que chamamos

pensar?. Diz Heidegger: O pensar, à diferença das ciências, não produz nenhum saber. O pensar não traz nenhuma sabedoria de vida utilizável. O pensar não soluciona nenhum mistério do mundo. O pensar não empresta imediatamente quaisquer forças ao agir.17

Ali, a orientação para o pensamento proposta por Heidegger nos

descortina uma visão do pensar como uma experiência que se dá livre de um solo

seguro, uma definição que somente é vislumbrada “quando já não lhe atribuímos

alguma função cognitiva ou instrumental ou quando já não esperamos dele uma

resposta ou uma norma para a vida prática”, diz Eduardo Jardim no prefácio à

edição brasileira de A vida do espírito. A mesma citação encontramos na palavras

de Rüdiger Safranski: “Heidegger está convencido de que seu pensar é desse tipo.

Ele não conduz a um saber como as ciências, não traz nenhuma sabedoria útil de

vida, não resolve enigmas do mundo, não confere diretamente forças para agir,”18

mas se move em uma transitividade direta, o que significa dizer que Heidegger

pensa algo e não sobre algo.19 Nos arriscaríamos mesmo a falar de um pensar

intransitivo, na medida em que nos referimos a um pensar que se move em sua

16 O livro A vida do espírito foi publicado em 1978, entretanto, o capítulo sobre “O Pensar” foi apresentado de forma abreviada nas Gifford Lectures, na Universidade de Aberdeen na Escócia, em 1973. (Cf. Mary McCarthy, “Nota da Editora”, in: Hannah Arendt, A vida do espírito, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p.xix.) Sabemos que a reflexão sobre o pensar proposta por Arendt neste escrito tem como motivação inicial a investigação da relação entre o mal e a ausência de pensamento – relacionados aos crimes de Eichmann – mas, há também o interesse em fazer uma análise do estatuto do pensamento, atividade entendida pela tradição como pura contemplação. Eduardo Jardim nos coloca: “em desacordo com essa posição, Hannah Arendt entendeu que pensar é uma atividade. Porém, essa atividade não se confunde com nenhuma outra. Por essa razão, um dos propósitos de A vida do espírito foi examinar o caráter singular da atividade do pensar.” (cf. Eduardo Jardim, Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.116.) 17 Martin Heidegger, Que chamamos pensar?, (tr.) [em elaboração] Edgar Lyra, a partir de Was hei!t Denken?, Tübingen: Max Niemeyer, 1954. p.134 e Hannah Arendt, A vida do espírito, 2000, “Introdução”, [numeração não demarcada]. 18 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p. 413. 19 Cf. Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência 1925/1975, 2001, p.133.

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própria questão, que está sempre a caminho do próprio pensar – um pensar que

pensa.

Além da importância do pensar de Heidegger evidenciada através dos

escritos de Hannah Arendt, essa breve visada também tornou possível vislumbrar

o caminho filosófico que este pensar sempre buscou trilhar: o de um outro pensar;

fato que nos encaminha para uma compreensão da trajetória do pensamento de

Heidegger ao dialogar com Nietzsche e Parmênides em Que chamamos pensar?.

Nos direcionemos, pois, ao tempo dos cursos em questão.

1.2. Um filho do tempo

Os anos que antecedem o período do curso Que chamamos pensar? foram,

por certo, extremamente difíceis para Heidegger. Com o fim da Segunda Grande

Guerra Mundial, não só a pátria, mas a própria vida e reputação do filósofo

encontravam-se em ruínas. Heidegger estava proibido de lecionar, e apesar de

discutir-se uma espécie de aposentadoria com direito a ensinar, havia uma grande

resistência na universidade de Freiburg quanto ao seu retorno ao mundo

acadêmico. Houve até mesmo a ameaça de confiscarem sua biblioteca particular

para suprir a biblioteca da Universidade de Münster. Além disso, seus filhos Jörg

e Hermann encontravam-se prisioneiros de guerra do regime Soviético, servindo

de mão de obra na reconstrução do país de Stalin. O espírito alemão, que vivera

há pouco a esperança de uma hegemonia, encontrava-se apático, sem vida.

No ano de 1946, Heidegger decidiu se retirar para sua cabana em

Todtnauberg por alguns meses. Consumido pelo interrogatório do comitê de

desnazificação no ano anterior, o filósofo sofreu um colapso mental e chegou a se

internar por três semanas no Instituto Baden, em Badenweiler, para se tratar.

Heidegger, por certo, pagou caro por seu envolvimento com o Partido Nacional-

Socialista, em 1933. Todavia, mesmo recluso e oprimido, o pensar de Heidegger

não se deteve. Enquanto para muitos, o filósofo “estava colhendo o que

semeou”20, segundo Safranski, sua semeadura filosófica haveria de ressurgir

poderosamente. É nesses longos anos de ausência da vida acadêmica – sabemos

que Heidegger foi privado de lecionar por seis anos – que o filósofo escreveu, por

20 Grifo do autor, ao citar a forma como Robert Heiss, colega de faculdade de Heidegger, se refere ao filósofo em carta a Jaspers.

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exemplo, a carta “Sobre o humanismo” (GA9), uma resposta à pergunta

fundamental elaborada por Jean Beaufret: Comment redonner une sens au mot

“Humanisme”?. Uma resposta tão fundamental que, segundo Emmanuel Carneiro

Leão, a discussão de seus pressupostos abre toda uma outra dimensão do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vigência Histórica do humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de questioná-la em seus fundamentos.21

Em verdade, essa carta deve muito de seu conteúdo a Sartre que declarara

seu pensamento completamente destituído de qualquer amparo metafísico, sendo

o seu existencialismo um novo humanismo, o que levou Heidegger a refletir se no

humanismo e existencialismo sartreanos haveria mesmo um desamparo

metafísico. Na carta, Heidegger se refere a algo da ordem de uma ética original

que dispensa qualquer fundamento normativo, mas é capaz de direcionar o

homem a um novo modo de viver. Um pensar que lança um outro olhar sobre o

mundo – um pensar que deixa o ser, ser – e, neste sentido, é esteio para todo o

comportamento. Para Safranski, apesar de Heidegger não se considerar um

orientador político, mas apenas um pensador, a carta “Sobre o humanismo” serve

“[...] como tentativa de recapitular seu próprio pensar e determinar o seu lugar

atual, como abertura de um horizonte onde se visualizam certos problemas da vida

em nossa civilização.”22

Outro abrigo para o pensar de Heidegger teve lugar ao norte da Alemanha,

nas conferências proferidas no Clube de Bremen, em 1949. Essas conferências

foram organizadas por influência da família de seu aluno e historiador Heinrich

Wiegand Petzet e serviram como precursoras do pensamento posterior de

Heidegger, quando o filósofo adentrou mais incisivamente a questão da técnica.

Além do clube de Bremen, as noites de quarta-feira no sanatório de Bühlerhöhe,

logo acima de Baden-Baden, e a academia da Baviera, no início de 1950, em

Munique, também foram palco para Heidegger exercer o seu mais alto pensar. Um

período em que o isolamento imposto ao seu pensamento foi quebrado. Como se

esses lugares e o público, muitas vezes com pouca ou nenhuma tradição

21 Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, (tr.) Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.9. 22 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, pp.425-426.

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intelectual, possibilitasse a ousadia do pensamento do filósofo em meio aos

tempos sombrios do pós-guerra. Segundo Safranski, Heidegger escolhera aquele fórum onde sentia um ar livre para iniciar ali o projeto-piloto de sua futura filosofia [...]. Um relato [publicado] poucos dias depois da primeira conferência, diz que a cidade podia sentir-se orgulhosa porque Heidegger viera a Bremen “para ousar a mais audaciosa manifestação já feita do seu pensar”.23

Uma particularidade ainda em relação a esse período encontramos em

Petzet, que menciona uma carta de Heidegger agradecendo o vinho recebido de

Bremen como uma forma de celebrar o retorno do filósofo às salas de aula em

1951. Enfatiza-se, com isso, o quanto aquela acolhida em Bremen tinha

significado para o filósofo. Diz Heidegger: [...] obrigado pelo presente e pelo pensamento por trás dele. Hoje me lembrei particularmente dos amigos de Bremen, que podem afirmar serem os primeiros a terem arriscado deixando-me falar em público há alguns anos atrás. Mais uma vez, torna-se claro para mim o quão essencial é a palavra falada, mesmo que esta palavra seja recebida por poucos – e, de fato, desconhecidos – entre tantos.24

1.2.1. Um instante no tempo

Voltemos nosso olhar agora para outro aspecto que o retorno à

universidade e o próprio texto nos trazem. Sabemos que esse é um momento

importante na vida do filósofo. Heidegger, por certo, amargou suas escolhas,

chegando mesmo a reconhecer sua empreitada política como um “erro” e seu

reitorado, “uma grande besteira”25. No entanto, o filósofo nunca veio a público

para falar sobre esse capítulo de sua vida. Sabemos também, por outro lado, que

seu pensamento, apesar de se ocupar com a questão do ser, nunca se afastou do

seu tempo, pois é no homem que o destino do ser se cumpre. Há, portanto, uma

imbricada relação entre o ser, a história e o homem bastante presentes nos

caminhos do pensar do filósofo, o que nos leva a indagar se não haveria alguma

relação do texto Que chamamos pensar? com o tempo e a história do próprio

Heidegger.

23 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.456. 24 Heinrich Petzet, Encounters and dialogues with Martin Heidegger 1929-1976. Chicago: The University of Chicago Press, 1993, p.63. Grifo do autor. Tradução nossa. 25 Cf. François Fédier, Anatomia de um escândalo, Petrópolis: Vozes, 1989, p.164.

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Como vimos há pouco, as conferências no Clube de Bremen, em

Dezembro de 1949, se situam já na esfera do que estaria no porvir do pensar do

filósofo. Não só isso, é ali que pela primeira vez encontramos explicitamente uma

relação direta da fala de Heidegger com os acontecimentos do seu tempo. No

primeiro ciclo de quatro conferências intituladas “Visão do que é” (Einblick in das

was ist), diz o filósofo na palestra denominada “Ge-stell” (Das Gestell): A agricultura é agora uma indústria alimentícia motorizada – em essência o mesmo que a fabricação de cadáveres nas câmaras de gás e campos de extermínio, o mesmo que a fome das nações, o mesmo que a fabricação de bombas de hidrogênio.26

Segundo Timothy Clark, essa afirmação aparentemente se insere na conferência

de forma improvisada.27 Todavia, ainda que Heidegger tenha falado

espontaneamente, ao afirmar que a agricultura moderna, o holocausto e a bomba

de hidrogênio têm a mesma essência, o filósofo estaria se referindo ao fato de que

esse conjunto de coisas revelam um mundo em que a tecnologia fundamenta a

maneira como as coisas aparecem. Esse entendimento nos aponta para o germe da

questão sobre o “mais problemático do nosso problemático tempo”28, temática

enfaticamente trabalhada por Heidegger nas primeiras preleções de Que

chamamos pensar?.

Todavia, nem todos vão entender a fala de Heidegger como uma crítica ao

Nazismo. De acordo com Julian Young, todo o criticismo à filosofia do pós-

guerra de Heidegger pode ser associado ao silêncio em relação ao seu

envolvimento com o Partido Nacional-Socialista. Para o autor, o silêncio de

Heidegger não é um silêncio significativo, daquele que por vezes diz mais do que

as próprias palavras podem dizer. Mas, nas palavras de Jean-François Lyotard:

“Um silêncio mudo que não deixa nada ser ouvido. Um silêncio de chumbo.”29

Para Young, esse silêncio poderia ser facilmente identificado como teimosia,

orgulho e, até mesmo, “uma ‘psicologia nacionalista’ de um homem que recusa a

26 Martin Heidegger apud Timothy Clark, Martin Heidegger, Nova York, NY: Routledge, 2002, p.124.Tradução nossa. 27 O autor sugere o improviso baseado no fato de que, mais tarde, quando o texto reapareceu a frase havia sido cortada. 28 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.6. Grifo do autor. 29 Jean-François Lyotard, Heidegger and "the jews”, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990, p.52. Tradução nossa.

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ceder à correção política da ‘moralidade do vencedor’”30. De acordo com Lyotard,

o silêncio de Heidegger tomou essa proporção, exatamente, por se tratar de um

grande pensador. Uma proporção direta entre a grandeza do pensar e o tamanho

do erro. Todavia, segundo Fédier, esse não é o silêncio estéril de um homem

desonrado. Pelo contrário, seu comportamento denota o de um homem que se

sentiu genuinamente caluniado e seu pensar se torna extraordinariamente mais

fecundo.

Apesar dessas conferências terem gerado controvérsias, o silêncio de

Heidegger foi quebrado na conhecida entrevista ao Der Spiegel, acontecida em

1966, mas somente publicada postumamente, a pedido do próprio filósofo. Ali,

Heidegger explicou o porquê do seu envolvimento com o Partido Nacional-

Socialista e o motivo que o levou a assumir a reitoria. A justificativa encontrava-

se na falta de autonomia da universidade, entendida como uma organização

meramente técnica. O filósofo diz que “[...] pretendia que a universidade se

renovasse por meio de uma reflexão própria e assim conquistasse uma posição

firme diante do perigo da politização da ciência [...]”.31 Safranski acrescenta que,

naquele tempo, Heidegger acreditava que na discussão com o nacional socialismo

haveria espaço para uma renovação, para novos rumos. Todavia, segundo Fédier,

a partir do momento em que Heidegger percebeu que o caminho do regime de

Hitler seguia em direção oposta ao seu pensar, o trabalho do filósofo teria buscado

enraizar ainda mais o nexo entre a história e a filosofia, de modo a criticar as

ideologias do regime. É o próprio Heidegger que, se referindo ao período

posterior à sua renúncia, corrobora esse pensamento. Diz o filósofo:

após a renúncia, limitei-me às minhas tarefas de ensino. No semestre de verão de 1934, lecionei “Lógica”, no semestre seguinte 1934/35 dei as primeiras preleções sobre Hölderlin. Em 1936 começaram as preleções sobre Nietzsche. Todos que souberam escutar, ouviram que se tratava de uma tomada de posição frente ao nazismo.32

30 Julian Young, Heidegger, Philosophy, Nazism, Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1997, p.173. Tradução nossa. O autor se refere a Carl Schmitt, que justifica seu próprio silêncio como o de alguém que se comportou honradamente e não se retrataria diante daqueles inclinados a apenas o destruírem. 31 Martin Heidegger, “Heidegger e a política. O caso de 1933”, in: Revista Tempo Brasileiro, N°50, julho-setembro, 1977, p.71. 32 Ibidem, p.76.

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Um testemunho que reforça essa atitude do filósofo é o de Walter Biemel,

aluno de Heidegger de 1942 a 1945, que diz: Heidegger era um dos muito raros professores a jamais começar seus cursos pela “saudação alemã” (“Heil Hitler”), apesar de ser administrativamente obrigatória. Seus cursos... faziam parte dos muito raros realizados onde se arriscavam observações contra o nacional-socialismo. Tive muitas conversas naqueles tempos com Heidegger que nos teriam custado a cabeça. Está totalmente fora de dúvida que ele era um adversário declarado do regime.33

E acrescenta mais adiante:

[...] quando fui convidado à sua casa de Zähringen, a conversa girou em torno da situação política e militar. Heidegger falou da direção do partido como direção de criminosos; a continuação da guerra era um absurdo. A seguir, vim a conhecer outros professores. Em nenhum deles encontrei uma rejeição tão clara e nítida do regime. Quanto a mim, eu não ousava falar com ninguém tão abertamente contra o nacional-socialismo.34

Mas, qual seria a relação entre o que foi exposto e o que ora buscamos

retratar? Segundo George Pattison, o escrito Que chamamos pensar? oferece não

só uma retrospectiva sobre a vida pregressa de Heidegger, como também esboça

parte daquilo que será interesse do filósofo até sua morte, em 1976. Para Pattison,

o erro político do envolvimento de Heidegger com o nacional-socialismo é

decisivo para o entendimento de sua filosofia posterior. Não que sua filosofia se

torne política, mas sua inaptidão política, por certo, reverbera em seu pensamento.

Essa ideia é reforçada por Fédier quando diz: falar de seu reitorado, que ele foi “a maior estupidez” de sua vida, isto não significa precisamente que Heidegger minimiza seu erro, mas ao contrário, que ele lhe dá sua dimensão filosófica extrema: é um erro filosófico – em que a própria filosofia está em jogo. A consequência rigorosa disso é que, uma vez reconhecido o erro, o trabalho deve primeiro retratar aquilo que tornou o erro possível – em outros termos: Heidegger deve mudar seu pensamento.35

Ainda segundo Fédier, não se pode atribuir a mudança de pensamento à

questão política. Todo esse pensar já se encontrava latente desde antes de Ser e

Tempo e já começara a surgir com a conferência “Sobre a essência da verdade”

(GA9).36 Todavia, a experiência do reitorado teria sido fundamental para

33 Walter Biemel apud François Fédier, Anatomia de um escândalo, 1989, p.161. 34 Ibidem, p.161. 35 Ibidem, p.164. Grifos do autor. 36 A primeira edição de “Sobre a essência da verdade” foi impressa em 1943 e encerra o texto de uma conferência pública que foi proferida diversas vezes com o mesmo título desde 1930. (cf.

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Heidegger compreender que ele foi longe demais e assumiu riscos acima do

“razoável”.37

1.2.2. O fio da meada

Fica clara para nós a posição de Heidegger quanto ao equívoco político do

regime político nazista e a medida do seu real envolvimento com o ideário

nacional-socialista de Hitler. Mas, e em relação a si próprio? Haveria em

Heidegger uma motivação outra do que a de tornar a universidade uma trincheira

do pensamento como ele mesmo justificara?

Será através das palavras de Hannah Arendt que encontraremos novas

pistas. A filósofa nos alerta para a relação perigosa entre o reino do pensamento e

o “mundo das coisas humanas”. Fala-nos das idas de Platão à Sicília “a fim de

ajudar o tirano de Siracusa” e da tendência para a tirania, à exceção de Kant, de

quase todos os grandes filósofos. Para a Arendt, Heidegger também se inseriu

nesse modo destrutivo ao se associar a Hitler e se deixou levar certa vez pela tentação de mudar sua morada e de se ‘interligar’ com o mundo das coisas humanas. E o que aconteceu com ele foi pior do que com Platão, porque o tirano e suas vítimas não se encontravam no além-mar, mas na sua própria terra. [...] O que veio à tona para ele através daí foi a descoberta da vontade enquanto vontade de vontade e com isso da vontade de poder.38

Em Safranski também encontramos o questionamento sobre a suscetibilidade de

Heidegger ao poder. Para o filósofo e historiador, [...] o problema do silêncio heideggeriano não reside em ter calado sobre Auschwitz. Ele silenciou filosoficamente sobre outra coisa: sobre si próprio, sobre a sedução do filósofo pelo poder. E – como tantas vezes na história do pensamento – ele não faz a pergunta: Quem sou afinal, quando penso? O pensante tem pensamentos, mas às vezes é o inverso: os pensamentos o tem. O quem do pensar se transforma. Quem pensa as grandes coisas pode facilmente cair na tentação de julgar-se um grande acontecimento.39

Ernildo Stein, Nota do Tradutor, in: Martin Heidegger, Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.149.) 37 Grifo do autor. 38 Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência 1925/1975, 2001, p.139. 39 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.489.

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Aprendemos com o próprio Heidegger que a vontade de poder é uma

essência que se opõe ao pensamento. Sobre isso, Arendt acrescenta que o próprio

filósofo percebeu, antes de nenhum outro, a incongruência dessa essência em

relação ao pensar e o quanto ela atuava de forma destrutiva sobre si mesmo. O

pensar habita uma outra morada, se assim podemos dizer. A filosofia mesma,

desde seus tempos mais remotos, nos fala que a morada do pensamento é

silenciosa e distante do mundo. Lembremo-nos da imagem de Tales de Mileto que

cai dentro de um poço enquanto contemplava as estrelas, fazendo, com isso, que

nos acostumássemos com a ideia de que os filósofos se cercam apenas de

pensamentos improdutivos, que os afastam das coisas do mundo. Todavia, como

vimos anteriormente, o pensar de Heidegger não estava fora do mundo. Seu

pensar fervilhava exatamente sobre as coisas que, estarrecido, o mundo acabara de

ver.

De fato, a sedução pelo poder é uma questão que se põe se pensamos nos

caminhos que Heidegger escolheu trilhar. Todavia, não encontramos uma

concordância deliberada do próprio filósofo quanto a isso. Sua explicação ao Der

Spiegel, como vimos, prende-se a uma motivação nobre. Mas, parece-nos possível

pensar que ao se voltar para a vontade de poder de Nietzsche, Heidegger

estivesse não só querendo fazer frente ao nazismo, mas também reconhecendo

essa força como a armadilha que enredou seu próprio pensar. Segundo Arendt:

“No entender de Heidegger a vontade de governar e de dominar é uma espécie de

pecado original, do qual ele mesmo se achou culpado quando tentou lidar com o

seu breve passado no movimento nazista.”40 Seria, então, possível falarmos em

uma reverberação entre a obra e a vida de Heidegger?

De acordo com Fédier, essa ressonância é de fato complexa, mas não tão

dissonante a ponto de falar-se em uma incongruência, o que nos faz assentir para a

possibilidade de alguma relação entre ambas. Safranski nos conta que a vida e a

obra estão tão imbricadas que mesmo rejeitando tal ligação, Heidegger desejava

“viver para a filosofia e talvez até desaparecer na própria filosofia.”41 Como

entender, então, essa primazia da obra? Para Fédier,

40 Hannah Arendt, A vida do espírito, 2000, p.316. 41 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.27.

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quando se trata de um autor [...] que deliberadamente coloca a obra acima de sua própria vida – supondo-se que por “obra” entenda-se bem aquilo a que chega a possibilidade essencialmente humana de fazer vir a ser aquilo que sem ela jamais se realizaria – não somente a “vida” passa para segundo plano, mas a relação do biógrafo com a obra é uma relação imediata [...].”42

Sobre isso, o próprio Heidegger nos adverte: “Não é acaso sobretudo a obra que

torna possível uma interpretação da biografia?”43

É, pois, com esse pano de fundo que vamos encontrar Heidegger no ano de

1951, quando finalmente lhe será concedido o direito de retornar às salas de aula

da Universidade de Freiburg. Nos encaminhemos agora, mesmo que brevemente,

para algo que julgamos digno de nota nesse retorno à universidade – o ofício de

ensinar.

1.3. O dar-curso-ao-aprender

As aulas que perfazem o texto Que chamamos pensar? têm um sentido

particular na carreira de Heidegger, pois, como dissemos, foi o primeiro curso

dado pelo filósofo na universidade depois da interdição imposta pelo programa de

desnazificação, como também, o último como professor assalariado antes da sua

aposentadoria, marcando formalmente o fim da sua carreira acadêmica.

Entendemos que esse retorno deva ter reverberado muitíssimo no espírito de

Heidegger. Afinal, lecionar era um grande prazer para o filósofo. Glenn Gray na

introdução à tradução para a língua inglesa de Que chamamos pensar? diz:

o que este longo período de interrupção na atividade docente deve ter lhe custado não é difícil de imaginar, pois Heidegger era acima de tudo um professor. Não é por acaso que quase todas as suas publicações desde Ser e Tempo (1927) foram primeiramente aulas ou seminários. Para ele a palavra falada era muito superior à escrita [...]”.44

Entendemos, com isso, que apesar da ebulição do pensamento de Heidegger não

ter cessado no período do pós-guerra em virtude de sua suspensão, e mesmo

ministrando palestras, era a sala de aula que lhe trazia grande satisfação. Sobre o

retorno de Heidegger à universidade, Hugo Ott descreve:

42 François Fédier, Anatomia de um escândalo, 1989, p.34. 43 Martin Heidegger apud François Fédier, ibidem, p.33. 44 J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What is called thinking?, New York, NY: Harper & Row, 1968, p.xvii. Tradução nossa.

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quando Heidegger lecionou, novamente e em público [...] – um triunfo silencioso – o auditório encheu-se de alunos. Um desejo acumulado de saber, bem como a curiosidade e a saudade da expressão filosófica de Heidegger, tornaram-se notórios. Devia-se ter ouvido Heidegger quando perguntava: o que é pensar?”.45

Vários são os relatos de ex-alunos, tais com Gadamer, Arendt, Petzet,

entre tantos outros, que falam da presença, do olhar e do pensar penetrantes que

Heidegger exercia sobre todos. Karl Rahner credita a Heidegger o título de

“mestre”, o único a quem poderia chamar reverentemente “professor”, e aquele

que o “ensinou a ser capaz de procurar em todas as coisas o ‘segredo

inefável’[...].”46 Walter Biemel descreve que Heidegger incitava os alunos a

pensarem por conta própria e de maneira profunda, não só se preocupando com a

questão filosófica, mas com toda a época e suas diferentes dimensões.

Encontramos o seguinte relato de Biemel: aqueles que conheceram Martin Heidegger somente através de seus escritos, não podem ter uma ideia do seu estilo único de ensinar. Mesmo com os iniciantes, ele era capaz de rapidamente colocá-los no pensamento, não para que aprendessem vários pontos de vista ou reproduzissem o que leram, mas para que entrassem no movimento do pensamento. Parecia que, como se por algum milagre, a prática socrática viesse à vida novamente.47

Para Biemel, foi graças à habilidade pedagógica de Heidegger que ele aprendeu o

significado de “entrar na mente de um filósofo” ou “filosofar-com”, um modo de

caminhar no texto filosófico no sentido de entendê-lo em sua plenitude e

abrangência.48

Permitimo-nos este desvio em nosso caminho, não só porque é nosso

desejo enfatizar a importância do retorno de Heidegger ao mundo acadêmico, mas

também porque o ofício de “dar-curso-ao-aprender” foi lugar para o pensamento

de Heidegger nas aulas inaugurais de Que chamamos pensar?. Ali, o filósofo

debruça-se sobre a tarefa do professor e nos fala que “ensinar é ainda mais difícil

45 Hugo Ott, Martin Heidegger - A caminho de sua biografia, Lisboa: Instituto Piaget, 1992, p.341. Entendemos que a frase final de Ott seja a própria pergunta que nomeia o curso Was hei!t Denken?, aqui traduzido por Que chamamos pensar?. 46 Paul Edwards, Heidegger’s confusions, Amherst, NY: Prometheus Books, 2004, p.13. Grifos do autor. Tradução nossa. 47 Walter Biemel, Martin Heidegger: An illustrated study, New York, NY: Harcourt Brace Jovanovich, 1976, p.7. Tradução nossa. 48 Cf. Walter Biemel, “Le professeur, le penseur, l’ami”, in: Michel Haar (ed.), Cahier de L’Herne no. 45: Heidegger, Paris: Editions de L’Herne, 1983, p.128. Grifos do autor.

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que aprender”49, porque o autêntico professor não ensina nada que não seja o

próprio aprender; ideia que faz ressonância com o relato de Biemel na questão da

autonomia que Heidegger buscava de seus alunos.

O dar curso ao aprender deve se ater a um constante convite ao aprender:

aprender a deixar os alunos aprenderem e aprender a deixar a aprendizagem

acontecer. O deixar aprender circunscreve-se a um acontecimento que se dá na

genuína relação professor-aluno e que se atém, sobretudo, a um consentimento,

uma abertura para que o aprender se instale. Diz Heidegger: na relação entre o professor e aqueles que estão aprendendo, quando verdadeira, não entra em jogo nem a autoridade do sabe-tudo, nem a influência autoritária daqueles que detém cargos. Por isso, permanece uma grande coisa tornar-se um professor, algo que é totalmente diferente do que tornar-se um docente famoso.50

Há, pois, nesse deixar aprender, algo de um conceder, de “deixar a coisa

acontecer”51 por parte do professor, que se põe como fundamental e que

possibilita uma apropriação autêntica – o aprender em si mesmo. É nesse sentido

que entendemos o dar curso ao aprender de Heidegger: lugar para o despertar de

um pensar que, exatamente por sua relevância, inicia o curso que ora nos

propomos a examinar.

1.4. A caminho de Que chamamos pensar?

O que encontramos na trajetória das preleções de Que chamamos pensar?,

além do encaminhamento para as questões filosóficas ligadas à dinâmica interna

do pensamento de Heidegger – que serão abordadas no capítulo seguinte –,

também nos remete diretamente às necessidades do momento histórico.

Concordamos com as palavras de Otto Pöggeler de que o silêncio de Heidegger

não significa que o filósofo tivesse se tornado incapaz de se relacionar com a

realidade, muito pelo contrário, o pensar solitário do filósofo buscava “encontrar

as pegadas da dinâmica arrebatadora dos novos tempos e com isso o motivo mais

profundo do fracasso das próprias ambições político-filosóficas.”52

49 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.16. 50 Ibidem, p.16. 51 Grifo nosso. 52 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.346.

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Como vimos anteriormente, o próprio Heidegger confessara haver em sua

filosofia uma crítica velada ao regime de Hitler. Safranski acrescenta que mesmo

sabendo que estava sob a vigilância da Gestapo e que suas críticas causariam

entraves na publicação de seus escritos, Heidegger não se deteve. Mas, de que

forma podemos entender essas críticas? Para Heidegger, a vontade de poder se

manifesta como uma força que se intensifica e arrasta o homem para uma

realidade embotada, totalmente à mercê da ideologia dominante, que acaba por

reforçar a própria personificação do niilismo. Com isso, a vontade de poder reivindicada pelos ideólogos nazistas não é superação, mas, aperfeiçoamento do niilismo [...]. Assim, as conferências sobre Nietzsche se tornam um ataque frontal à metafísica decadente do racismo e do biologismo. Heidegger admite a aplicabilidade parcial de Nietzsche para a ideologia dominante – e com isso afasta-se dela. De outro lado, tenta ligar-se com Nietzsche, mas de modo a apresentar seu próprio pensar como uma superação de Nietzsche – nas pegadas de Nietzsche.53

Essas pegadas o direcionam a Assim falou Zaratustra, escrito de Nietzsche que

compõe as preleções de inverno de 1951 de Que chamamos pensar?.54 Heidegger

entende que ali Nietzsche manteve para si suas melhores ideias, uma vez que o

mundo ainda não estava pronto para acolhê-las. Segundo Safranski, o desejo de

Heidegger é não somente compreender Nietzsche melhor do que o próprio

Nietzsche se compreendeu, mas, sobretudo, ultrapassá-lo em direção ao

pensamento do ser.

A relação de Heidegger com Nietzsche nos evidência ainda um outro

aspecto importante. Além de ajudar a formular críticas ao sistema político de

Hitler e suas consequentes maquinações tecnológicas, Nietzsche trazia ainda a

vivificação da mais pura identidade alemã. O dilema deixado por Nietzsche, de

53 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.356. Em acréscimo à compreensão de Safranski, encontramos em Sluga que: “o Nietzsche de Heidegger seria um político “anti-política” e as lições políticas a serem derivadas dele deveriam ser, por sua vez, anti-políticas por natureza. Onde Baeumler e Jaspers tinham usado Nietzsche para falar a favor ou contra o nacional-socialismo, Heidegger buscou separar o nacional-socialismo realmente existente da nova e idealizada alternativa de Hitler. Através do exame de Nietzsche, o filósofo não só tentou atacar o sistema vigente, comprometido apenas com uma vontade de poder vazia e com a conseqüente corrida em direção à maquinações tecnológicas, mas também, com a ajuda de Nietzsche, procurou ao mesmo tempo proclamar a mais pura identidade nacional e social alemã.” Tradução nossa. (cf. Hans Sluga, “Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to Heidegger, 2005, p.113. Tradução nossa.) 54 Heidegger, no “Prefácio” escrito em 1961 à edição de Nietzsche I, declara: “esta publicação pode propiciar ao mesmo tempo um olhar sobre o caminho de pensamento que percorri desde 1930 até a Carta sobre o humanismo [...]”, em 1946. (cf. Martin Heidegger, in: Nietzsche I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p.4.)

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que a questão do ser é um mero “vapor e erro” para o homem moderno, estava de

alguma forma ligada ao tema da identidade alemã, e Heidegger entende que

Hölderlin é o único que pode ajudar nesse ponto.

Para o entendimento da questão da identidade alemã percebida por

Heidegger, Hans Sluga nos esclarece que “Nietzsche, ou melhor, Nietzsche em

conjunto com Hölderlin , foram para Heidegger em meados dos anos 1930 e 1940,

os guias a uma concepção mais profunda do que significa ser alemão.”55 Para o

autor, essa questão já estava presente em Heidegger desde seu discurso de posse à

Reitoria e, ainda mais abertamente, desde o escrito Introdução à metafísica

(GA40). Nesse último trabalho, Heidegger argumentou que o dilema da vida

moderna e ocidental manifestou-se mais severamente na Alemanha, “a terra do

meio”. O filósofo teria declarado dramaticamente que o povo alemão estando no

centro, sofria a pressão mais intensa. Diz Heidegger: [...] o nosso povo, as pessoas mais ricas em vizinhos e, portanto, as pessoas mais ameaçadas de extinção, e por tudo isso, as pessoas mais metafísicas. [...] Se a grande decisão sobre a Europa não é a de percorrer o caminho da aniquilação – então, esta decisão pode surgir apenas através do desenvolvimento de novas forças espirituais do centro.56

O filósofo continua, tal desenvolvimento exige o reconhecimento de que Nietzsche diagnosticou corretamente a questão do ser como um mero vapor e erro para o homem moderno. [...] O julgamento de Nietzsche, é claro, entende-se em um sentido puramente desdenhoso [...]. Nós, por outro lado, devemos recuperar essa questão contra toda a tradição metafísica.57

Para Sluga, Heidegger estava convencido de que só dessa forma poderia ser salva

a terra do meio e o dilema do homem moderno ser resolvido. A questão do ser e a

questão da identidade alemã pertenciam, assim, misteriosamente juntas. Nesse

sentido, o confronto entre Nietzsche e Hölderlin torna-se recorrente e necessário58,

55 Hans Sluga, “Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to Heidegger, 2005, p.113. Tradução nossa. 56 Martin Heidegger apud Hans Sluga, ibidem, p.113. Tradução nossa. 57 Ibidem, p.113. Tradução nossa. 58 Sobre a ordem dos cursos sobre Nietzsche e Hölderlin, Sluga nos aponta: Hölderlin’s Hymns “Germania” and “The Rhine”(1934-1935); Nietzsche: The Will to Power as Art (1936 -1937); Nietzsche’s Basic Metaphysical Position in Occidental Thought: The Eternal Recurrence of the Same (1937); On the Interpretation of Nietzsche II: Untimely Meditations: One, The Use and Abuse of History (1938-1939) ; Nietzsche’s Doctrine of the Will to Power as Knowledge (1939) ; Nietzsche: European Nihilism (Second Trimester 1940); Announced but not given: Nietzsche’s Metaphysics. Instead: Hölderlin’s Hymn “Remembrance”(1941-1942); Hölderlin’s Hymn “The

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não só na medida em que recoloca a questão do ser, mas também porque aponta

caminhos para um novo e mais profundo modo de ser alemão.

Segundo o intérprete, o que interessava a Heidegger era a poesia real de

Nietzsche e seu diagnóstico para a falta de moradia moderna encontrados no

poema filosófico Assim falou Zaratustra. Assim, se Nietzsche diagnosticou a

condição moderna, Hölderlin, por outro lado, foi o poeta do regresso à casa, e

Heidegger entende que “[...] este retorno é o futuro da essência histórica dos

alemães”59. Todavia, não devemos entender essa falta de moradia como algo que

se prende a um território específico. Para o filósofo, a “a-patridade”60 do homem

moderno não diz respeito apenas ao povo alemão, mas fala de uma perspectiva

mais abrangente – do homem que vive o abandono do ser, longe de sua origem, e,

portanto, sem moradia. Esquecido do ser, o homem moderno não habita sua pátria

essencial – a proximidade ao ser. Diz Heidegger referindo-se ao poema Regresso

de Hölderlin: o “Alemão” não é dito ao mundo, para o mundo se restabelecer ao modo de ser alemão. É dito aos alemães para que eles, em virtude do destino, que os faz pertencer aos outros povos, integrem, juntamente com eles, a História do mundo. A pátria dessa morada Histórica é a proximidade ao Ser.61

As preleções voltadas para Nietzsche acontecem entre os anos de 1936 e

1941 na universidade Freiburg62. Essas preleções foram reunidas em dois volumes

– Nietzsche I e Nietzsche II – apresentados na Gesamtausgabe como GA6.1. e

GA6.2., respectivamente. Dessa época, ainda encontramos o ensaio “A Palavra de

Nietzsche ‘Deus está Morto’” de 1943, incluído em Caminhos de floresta (GA5).

No pós-guerra, Heidegger volta seu olhar para Assim falou Zaratustra,

apresentado na preleção de 1951 intitulada Que chamamos pensar? (GA8), e, por

Ister” (1942); Announced but cancelled: Introduction to Philosophy: Thought and Poetry (1944- 1945) . (cf. Hans Sluga,“Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to Heidegger, 2005, p.113ss.) 59 Martin Heidegger apud Hans Sluga, ibidem, p.114. 60 Grifo nosso. 61 Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, (tr.) Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.62. Maiúsculas do autor. 62 Segundo Casanova, Heidegger teria retomado, entre os anos de 1944-1946, alguns dos principais pontos apresentados em Nietzsche I e acrescentado em Nietzsche II, no capítulo VI intitulado “A metafísica de Nietzsche”. Ali, Heidegger retoma a “Vontade de poder” e “O eterno retorno do mesmo”, além de outras questões. (cf. Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche II, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p.v.)

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último, o texto “Quem é o Zaratustra de Nietzsche?” escrito em 1953 e publicado

em Ensaios e conferências (GA7).

Por outro lado, a relação de Heidegger com a Grécia já vinha se

fortalecendo em seu pensar desde a década de 1920. Marlène Zarader nos diz que,

no entanto, por volta dos anos de 1930 vamos encontrar em Heidegger “algo

como uma gênese da prevalência concedida aos pré-socráticos tomando forma.”63

O filósofo nomeia “pensadores originários”64, aqueles que pensam no âmbito da

origem e fazem a experiência do início do pensamento.65 Em carta de 1932 a

Elisabeth Blochmann, o próprio Heidegger reconhece que o tempo primevo é

caminho do seu pensar. Diz o filósofo:

quanto mais intenso meu trabalho, mais sou forçado a voltar ao grande início com os gregos. E muitas vezes vacilo sem saber se não será mais essencial deixar de lado todas as outras tentativas e trabalhar apenas para que aquele mundo fique novamente diante dos nossos olhos, não apenas para que o aceitemos, mas pela sua excitante grandeza e exemplaridade.66

Hannah Arendt também aponta para essa característica no pensar de Heidegger ao

afirmar que [...] a tempestade que atravessa o pensamento heideggeriano [...] não é fruto do nosso século. Ela vem do tempo primevo e o que deixa para trás é algo levado ao acabamento; algo que, como tudo o que provém de um acabamento, pertence também ao âmbito primevo.67

Heidegger entende esse início da filosofia grega, origem de toda a cultura

ocidental, como o âmbito da liberdade, o domínio da indeterminidade e o espaço

da questionabilidade, um estar no mundo muito distante daquele presente

opressivo atravessado pelas maquinações da técnica. Nesse sentido, nos últimos

meses da guerra, estarrecido diante dos acontecimentos, Heidegger volta-se para

Parmênides e Heráclito como uma saída para aquele mundo caótico.68 Safranski

relata que “enquanto os acontecimentos disparam para seu fim catastrófico, e os

63 Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann (ed.), Martin Heidegger: Critical assessments, London/New York, NY: Routledge, 1992, p.21. Tradução nossa. 64 Grifo nosso. 65 Martin Heidegger, Heráclito, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p.18. 66 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.261. 67 Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência 1925/1975, 2001, p.140. 68 Cf. François Fédier, Anatomia de um escândalo, 1989, p.163.

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crimes do regime de Hitler atingem um ápice horrendo com o assassinato dos

judeus, Heidegger enterra-se cada vez mais fundo no inicial (Anfängliche).”69

Este inicial grego nos fala de um mundo que é palco para que tudo possa

se tornar visível. Nele, o homem “expressa com especial pureza o traço cósmico

fundamental de tudo que quer aparecer e por isso é ponto da mais alta

visibilidade.”70 Para Heidegger, existe uma ali uma riqueza que vai muito além do

que os próprios gregos compreenderam, uma visão de mundo extraordinária que

permite a atenção à presença daquilo que se faz presente. Por outras palavras: o

lugar aberto do ser. O filósofo nos fala de um lugar que “deixa os entes

aparecerem no seu ser, e mostra cada vez a totalidade de sua condição.”71

Essa mesma questão nos é apresentada por Michael Watts em uma relação

imediata com a linguagem. Segundo o autor, Heidegger considerava a língua

grega arcaica como a língua primordial e original de toda Europa, uma linguagem

que se fundava na experiência do ser e que estava intrinsecamente atrelada àquilo

que nomeia. De acordo com Watts, Heidegger entendia a língua alemã como

descendente direta do grego arcaico. As outras línguas europeias ou derivavam do

alemão, ou haviam se contaminado pelo latim, fato que as teriam afastado de sua

origem, de sua proximidade com o ser. Segundo o autor, para o filósofo, “a

Alemanha possuía este recurso nacional de acesso privilegiado à experiência

grega do Ser”72, uma vez que através da palavra grega arcaica estaríamos na

presença da própria coisa e não de um signo; como se o grego arcaico fosse uma

“extensão da memória do Ser”73. Nesse sentido, ao reavivar o uso desses

vocábulos, a essência e energia dessa experiência original poderia ser recapturada.

Watts ainda nos conta que Heidegger esperava, ao reavivar essa linguagem,

instaurar um outro começo, uma nova era, um outro pensar. Este outro começo

(andere Anfang), segundo Zarader, constitui o movimento do pensar de Heidegger

ao se voltar para as palavras inaugurais pronunciadas na alvorada do pensamento,

as quais, ao resguardarem em si os traços de um começo originário, são

69 Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.387. 70 Ibidem, p.349. 71 Martin Heidegger, Parmênides, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2008, p.132. 72 Michael Watts, Heidegger: a beginner’s guide, London, UK: Hodder and Stoughton, 2001, p.68. Maiúscula do autor. Tradução nossa. 73 Ibidem, p.69. Maiúscula do autor. Tradução nossa.

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portadoras de abertura para um outro começo que será evocado pelo filósofo.

Neste sentido, voltar às palavras pré-socráticas não significa uma releitura, mas a

busca de uma significação originária para o pensar desses primeiros pensadores.

O olhar de Heidegger se volta para os pré-socráticos com as preleções de

verão de 1932 intituladas “O Início da Filosofia Ocidental (Anaximandro e

Parmênides)” (GA35); alguns anos mais tarde, no semestre de verão de 1935,

Heidegger se deterá sobre Parmênides no curso nomeado Introdução à metafísica

(GA40); encontraremos novamente Parmênides nas preleções de inverno de

1942/43, que darão forma ao livro Parmênides (GA54); logo em seguida, no

verão de 1943, Heidegger se debruça sobre Heráclito em “A Origem do

Pensamento Ocidental – Heráclito” e, no de verão de 1944, sobre a “Lógica” e “A

doutrina heraclítica do lógos”, que formarão o livro Heráclito (GA55); em 1946

encontramos o escrito “A Sentença de Anaximandro”, publicado em Caminhos de

floresta (GA5); em 1951, “Lógos” (Fragmento 50 de Heráclito); em 1951/52,

“Moira” (Parmênides, Fragmento 8); e, em 1954, “Alétheia” (Fragmento 6 de

Heráclito), os três publicados em Ensaios e conferências (GA7), em 1954;

Parmênides aparecerá novamente no verão de 1952 nas preleções intituladas Que

chamamos pensar? (GA8) e publicadas sob o mesmo título em 1954 ; por fim,

encontraremos Parmênides na conferência “O princípio de identidade”,

pronunciada por ocasião do quingentésimo jubileu da universidade de Freiburg

em 1957 e publicada no livro Identidade e diferença (GA11).74

Através dessa breve exposição percorremos o caminho do pensamento de

Heidegger entre anos 1930 e 1950, percurso que, certamente, nos conduz às

preleções de Que chamamos pensar?. Segundo Glenn Gray, as preleções de

inverno de 1951 nos apontam para uma espécie de momento decisivo no

pensamento de Heidegger. O tradutor nos assinala que o confronto de Heidegger

com a absolutização da vontade de poder de Nietzsche significará para o filósofo

o ponto culminante, a última ideia da metafísica ocidental, sendo Nietzsche seu

último pensador. Quando do retorno para o curso do verão de 1952, Heidegger

dirige seu olhar para as origens do pensamento grego: Parmênides e o poema

74 Nos detivemos aqui aos escritos mais importantes de Heidegger dedicados a Anaximandro, Parmênides e Heráclito. Todavia, é do nosso entender que devam existir outras ocasiões em que Heidegger revisite os pré-socráticos. (cf. George Joseph Seidel, Martin Heidegger and the Pre-Socratics: An Introduction to his thought. Lincoln, NE: University of Nebraska Press, 1964, p.58.)

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filosófico Da Natureza.75 Aqui, Heidegger estará mais diretamente relacionado

com a forma em que a linguagem se relaciona com o pensamento e sua resposta

ao chamado do pensamento. Glenn Gray entende que, nesse sentido, Que

chamamos pensar? é um sinalizador para o caminho posterior do pensamento de

Heidegger.76

1.5. Uma palavra sobre a palavra “interpretação”

Uma última palavra ainda se faz necessária, antes de encerrarmos esta

primeira parte de nosso caminho. Por inúmeras vezes vimos falando de um pensar

que se volta para os textos filosóficos não como uma interpretação dos mesmos,

mas como uma forma de ressignificar o que foi pensado, como um pensar que se

põe sobre a filosofia de modo a buscar o impensado e, neste salto, apropria-se do

que foi dito e torna-lhe próprio. Hannah Arendt nos conta que no pensar de

Heidegger irrompem inúmeras tempestades. Mas, as tempestades aí encontradas

são compreendidas metaforicamente como um ciclo natural que se manifesta na

medida em que tudo o que atravessa esse pensar passa por uma profunda

transformação, que ocorre justamente por conta do distanciamento que o pensar

deve tomar da coisa a ser pensada, de forma a tornar o que está ausente, presente.

Marco Antônio Casanova, na apresentação da tradução para o português

do livro Nietzsche I, adentra essa questão mais profundamente e nos fala da

hermenêutica heideggeriana como um distanciamento que aponta para uma

aproximação, mas, um aproximar-se que revela a si próprio salvaguardando-se de

uma perspectiva meramente interpretativa. Perguntamos: como isto se dá? Para o

autor, essa hermenêutica acontece a partir do termo alemão Auseinandersetzung,

cuja riqueza semântica impõe uma grande dificuldade na tradução, mas pode ser

entendido a partir da palavra confrontação. Trata-se de um encontro que

pressupõe uma inserção no pensamento do outro filósofo e que possibilita,

sobretudo, uma abertura a determinações próprias. O vocábulo alemão infere

também um afastamento que estabelece uma tensão necessária para que algo

possa surgir, pois é sempre necessário um distanciamento para que se possa ver

algo em sua identidade mais própria. Não nos referimos aqui, portanto, a um

75 Herman Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1960. 76 Cf. J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What is called thinking?, 1968, p.xviii.

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afastamento que permite uma neutralidade sobre aquilo que é observado, mas a

um distanciamento que aproxima, no sentido que traz à tona o próprio de cada um.

Acompanhemos o pensamento de Casanova: de acordo com um velho princípio hermenêutico, interpretar implica incessantemente ver mais do que aquilo que se acha expresso no texto e mesmo do que aquilo que o próprio autor estava em condições de formular com suas intenções específicas.77

O autor nos aponta que essa compreensão hermenêutica já estava

formulada em Friedrich Schleiermacher, cuja “arte da interpretação”, expressa no

escrito Hermeneutik und Kritik mit besonderer Beziehung auf das Neue

Testament, publicado postumamente em 1838, representou para a hermenêutica

moderna um grande legado. Entende-se, a partir de Schleiermacher, que o

objetivo da hermenêutica é a compreensão do texto em seu sentido mais amplo e

isso significa compreender o autor melhor do que o próprio autor se

compreendeu.78 Quanto a essa questão, Friedrich Schlegel já havia ressaltado

anteriormente que os textos “clássicos” expressam muitas vezes significados

inconscientes que abrangem “uma profundidade infinita” de sentido, em grande

parte desconhecida para o autor.79 Para Heidegger, dizer que um pensador pode ser “melhor” compreendido do que ele mesmo se compreendeu não é atribuir-lhe nenhuma falta, mas, bem ao contrário, assinalar a sua grandeza. Pois somente o pensamento originário esconde de si um tesouro que sempre permanece impensável e que pode, a cada vez ser melhor compreendido, isto é, ser compreendido de maneira diferente do seu significado literal.80

O filósofo entende que somente aquilo que é pensado em sua verdade pode ser

compreendido de novo e melhor do que aquilo que foi anteriormente pensado.

Todavia, esse novo e melhor não se atém à competência de quem interpreta, mas

simplesmente à dádiva daquilo que se interpreta.

De acordo com Casanova, não é possível descobrir a verdade de um

escrito somente pela da letra do texto. Qualquer confrontação demanda um

horizonte próprio para sua compreensão. Mas, de que horizonte nos fala

77 Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.viii. 78 Cf. Friedrich Schleiermacher, Hermeneutics and criticism, 1998, p.228. 79 Cf. Stanford Encyclopedia of Philosophy [online]. Disponível em : http://plato.stanford.edu/entries/schleiermacher/#4 Acesso em 12/4/2014. Grifos do autor. 80 Martin Heidegger, Heráclito, 1998, pp.78-79. Grifo do autor.

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Casanova? O autor nos coloca que, para Heidegger, é o mundo que estabelece o

horizonte em que toda a interpretação se realiza. Entretanto, nossa concepção de

mundo não é a mesma de Heidegger. Entendemos por mundo o lugar em que as

coisas se apresentam como aquilo que são – coisa, objeto, utensílio –, lugar de

manifestação do conjunto de entes. Para Heidegger, esse vocábulo não fala desse

conjunto de coisas. O entendimento heideggeriano de mundo ultrapassa o

conjunto dos entes presentes à vista e, por isso, não pode se reduzir a uma parte

desse conjunto, mas deve abranger a totalidade de tudo que é, ou seja, algo que

ultrapassa a medida ôntica. O filósofo nos fala daquilo que transcende a cada vez

essa totalidade, um campo de manifestação que nos encaminha para uma abertura

de mundo que somente pode ser determinada a partir de um horizonte que é a

“medida ontológica dos entes em geral”81: o ser do ente – aquilo que é na

totalidade. Sobre isso, é o próprio Heidegger, em Que chamamos pensar?, que

nos adverte: “pensador não depende de pensador: liga-se, quando pensa, à coisa a

pensar, ao ser. Só na medida em que se une ao ser é que pode estar aberto ao

influxo dos pensadores e do que foi por eles pensado.”82

Nesse sentido, o texto filosófico fala tão somente a partir de um apropriar-

se que se deu primeiro83 e que abre um campo de possibilidades capaz de transpor

esta distância, uma condição prévia que acontece de forma a liberar a visão para

um “ver-através”84. Segundo Casanova, é este o mundo que, para Heidegger,

engloba em si todas as possibilidades de uma interpretação: uma determinada

condição prévia que nos coloca diante de inúmeras possibilidades interpretativas,

de novos horizontes hermenêuticos que se deram a partir de algo que preserva o

inicial – aquilo que foi essencialmente e guarda em si algo que não foi formulado

– o originário que deve ser novamente elaborado de maneira a fazer aparecer o

que ainda não se revelou. O autor acrescenta: um horizonte de constituição de certos acontecimentos intrinsecamente articulados com possibilidades fundamentais, retidas naquilo que um dia se deu de modo tão essencial, que efetivamente nunca chega a se perder no passado, mas sempre

81 Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.xi. 82 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], pp. 80-81. Grifo nosso. 83 Nossa compreensão, a partir da citação de Heidegger, é a de que somente a partir do acontecimento da união ao ser, entendido pelo filósofo como apropriativo (Ereignis), é que haveria uma abertura própria para a hermenêutica heideggeriana sobre o ser. 84 Grifo nosso.

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continua viabilizando a cada vez, no instante, uma decisão quanto ao modo de ser daquilo que está por vir.85

Mas, como é possível alcançar esse horizonte compreensivo? Será por

meio de um salto que esse horizonte de compreensão se abre para os pensadores.

Segundo o intérprete, trata-se de um salto para dentro do horizonte histórico onde

é possível compreender os pensadores como voz da História86, pois é a História

que dá voz aos pensadores e não o contrário. Nesse sentido,

[...] pensar historicamente para Heidegger significa aprender a escutar aquilo que é decisivo no passado, e aquilo que é decisivo no passado não passa, mas [...] arrasta para si o futuro de um tal modo que tudo que possa acontecer, tudo aquilo que possa vir a se dar no futuro precisa necessariamente se articular de alguma forma como o passado.87

Como vemos com Casanova, para Heidegger, o primado dado às aberturas

anteriores do ser do ente na totalidade não fala de uma nostalgia, da contemplação

de algo que ficou no passado, mas, ao contrário, “o que fala nesse primado é,

antes, a percepção de que o modo como o ser historicamente se abre, delimita as

possibilidades de constituição de novos campos de manifestação do ente na

totalidade.”88 Isso significa, por outras palavras, que a confrontação histórica com

a abertura do ente na totalidade pode determinar os acontecimentos que estão por

vir.

Este será o lugar do pensamento de Heidegger em Que chamamos

pensar?: um salto hermenêutico que se coloca em uma dinâmica de confrontação

histórica com Nietzsche e Parmênides, que, todavia, “não se atém ao passado

como aquilo que se encontra distante do presente e do futuro, mas se liga

incessantemente àquela dimensão do passado que continua decisiva para o 85 Cf. Marco Antônio Casanova, [vídeo] Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=XFipFGfZ2uM. Acesso em: 9/9/2013. 86 A respeito da palavra “história” Casanova nos esclarece: “Heidegger estabelece uma distinção fundamental entre os dois termos normalmente tomados como sinônimos na língua alemã e traduzidos consequentemente com o auxilio da palavra ‘história’: o termo latino Historie e o termo germânico Geschichte. Enquanto o primeiro designa para ele a história concebida em sua dimensão ôntica, como a instância relativa aos acontecimentos que se dão no interior de um âmbito subsistente chamado tempo, e funciona para o que podemos denominar historiografia, o segundo é reservado apenas para a dinâmica existencial de temporalização característica do Ser-aí em sua relação originária com o mundo e com o ser.” (cf. Marco Antônio Casanova, nota do tradutor, in: Martin Heidegger, Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.2). Doravante a palavra história será grafada com maiúsculas todas as vezes em que estiver no escopo semântico de Geschichte. 87 Marco Antônio Casanova, [vídeo] Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=XFipFGfZ2uM. Acesso em: 9/9/2013. 88 Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.xiv.

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presente e que encerra em si as possibilidades do futuro.”89 Passemos, agora, à

apresentação das preleções propriamente ditas.

89 Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.xiii.

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2. Que chamamos pensar?, as preleções e o escrito.

Denken ist die Einschränkung auf einen Gedanken, der einst wie ein Stern am Himmel

der Welt stehen bleibt.

Martin Heidegger90

Voltemo-nos, então, ao ano de 1951 e às preleções sobre Que chamamos

pensar?, quando do retorno de Heidegger à Universidade de Freiburg.

Encontramos no livro organizado por Úrsula Ludz algumas cartas em que o

filósofo menciona a relevância do texto para a trajetória do seu pensamento.

Como esses são os únicos relatos do próprio Heidegger que encontramos sobre o

período, consideramos valioso citá-los na íntegra, na medida em que nos

evidenciam a forma como os cursos se deram e a relação que o pensar de

Heidegger estabelece com Parmênides, acentuando, com isso, a significância

desse escrito.

Em carta à Hannah Arendt em dezembro de 1951, Heidegger relata: Entrementes voltei a ler o texto Que chamamos pensar?.91 O seminário acontece uma vez por semana durante uma hora: sextas-feiras das 5 às 6. O auditório principal já começa a ser ocupado à 1 hora e às 4 horas não entra mais ninguém: eu mesmo tenho dificuldade para entrar. A preleção ainda é transmitida para outros dois anfiteatros. No todo, 1.200 ouvintes suportam até o fim. Dentre esses, a preleção toca com certeza de modo simples, imediato. Isso exige de mim contudo muito mais empenho na preparação, onde tive aliás a oportunidade de exercitar a arte de cortar. Muitos ouvintes se deixarão iludir pela simplicidade: pois somente agora chego à correta proximidade em relação às coisas propriamente dignas de serem pensadas.92

Um ano depois, em dezembro de 1952, em outra carta à Arendt, Heidegger

se refere ao texto uma vez mais. O filósofo estaria preparando para impressão a 90 Martin Heidegger, Aus der Erfahrung des Denkens, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1983, p.76. Em tradução livre: “Pensar é a limitação a um pensamento que chega, um dia, a fixar-se como uma estrela no céu do mundo.” 91 No livro de correspondências organizado por Úrsula Ludz, encontramos o título Was hei!t Denken? traduzido por O que significa pensar?. Entretanto, no sentido de manter uma coerência à tradução que vimos utilizando para o português, optamos por modificá-lo aqui para Que chamamos pensar?. 92 Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência 1925/1975, 2001, p.96. Itálicos do autor.

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41 preleção de verão de Que chamamos pensar? e rememora que Arendt teria

participado de algumas seções. Diz Heidegger: Só apresentei parcialmente no curso a difícil interpretação de Parmênides, com a qual termina a preleção. No entanto, essa interpretação estará integralmente no texto impresso. Penso que me aproximei uma vez mais da coisa mesma. Em verdade tudo é inesgotável. Não obstante, continua difícil manter presente para a representação dominante esta riqueza simples.93

Mais um ano, mais uma carta. Nela, a percepção do caminho que se abre

no diálogo travado com os pré-socráticos: Por ora estou novamente com Heráclito. Quanto mais fica claro o diálogo que tenho com ele e com Parmênides, tanto menos consigo me livrar deles. Nosso diálogo está pautado na percepção de uma delimitação fundamental e na compreensão do modo como ao mesmo tempo perguntamos diferentemente o mesmo. Neste sentido, sempre se entende mal os meus diálogos com os dois quando são tomadas como “interpretações”.94

Essas citações se põem para nós como uma memória viva daquele período,

por isso, o desejo de aqui reproduzi-las. Através delas, foi possível vislumbrarmos

que Heidegger retoma o ofício de ensinar com o pensar voltado para os primeiros

pensadores gregos, e que, apesar de ciente da grande dificuldade que esse pensar

impõe, o filósofo está convencido de que, seguramente, havia ali algo de grande

relevância. Sigamos os passos de Heidegger no sentido de mostrar como as aulas

foram organizadas e o escrito apresentado.

As preleções intituladas Que chamamos pensar? aconteceram, como

dissemos, em dois momentos: no inverno de 1951-1952 e no verão de 1952. O

escrito integral, somente publicado em 1954, traz o texto inalterado das aulas do

inverno que foram apresentadas em dez lições, e as do verão, em onze, totalizando

207 páginas. Acrescenta-se a ambos os períodos, aulas de passagem, nas quais

Heidegger oferece uma espécie de resumo da aula anterior e, ao mesmo tempo,

uma transição para o assunto a seguir. Todavia, percebemos que raramente o

resumo é feito nas bases do que foi tratado anteriormente. De uma semana para

outra, Heidegger adensa o seu próprio pensamento trazendo acréscimos

significativos; como se, ao reformulá-lo, pudesse depurar ainda mais a

compreensão daquilo que foi apresentado. Glenn Gray nos aponta que “para um 93 Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência 1925/1975, 2001, p.96. 94 Ibidem, p.101.

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42 homem que põe tamanha ênfase como Heidegger no caminho em que qualquer

coisa é dita e que reflete sobre o que ele mesmo pensou na semana anterior, a

repetição de um pensamento é algo significante.”95

Quanto às traduções da obra em questão, temos conhecimento de que o

escrito Que chamamos pensar? foi traduzido para o francês, o inglês, o italiano e

o espanhol. Qu’appelle-t-on-penser? foi o título francês dado ao escrito de

Heidegger, publicado em 1967 e traduzido por Aloys Becker e Gerard Granel,

com introdução de Gerard Granel. A língua inglesa ficou com o título What is

called thinking? que foi publicado em 1968 e contou com a tradução de Fred D.

Wieck e J. Glenn Gray, sendo a introdução deste último. A tradução para o

italiano intitulada Che cosa significa pensare? veio em dois volumes: o primeiro,

em 1978 e o segundo, em 1979. Ambos os volumes contaram com a tradução de

Ugo Ugazio e Gianni Vattimo, com o prefácio escrito por Vattimo. Por fim, as

traduções para o espanhol de ¿Qué significa pensar?: a primeira, feita em Buenos

Aires por Haraldo Kahnemann e Pedro de Moura Sá, em 1958; e a segunda, em

Madri, por Raúl Gabás, em 2005.96 As preleções de inverno foram traduzidas para

o português por Paulo Schneider, e estão inseridas no volume O outro pensar:

sobre Que significa pensar? e A Época da Imagem do Mundo, publicado em

2005. A tradução integral para o português encontra-se em elaboração por Edgar

Lyra. Voltemos, agora, nosso olhar para o desenvolvimento do curso.

2.1. As preleções do inverno de 1951 - 1952

Nas preleções do inverno de 1951-1952, Heidegger volta sua atenção para

Nietzsche e o poema filosófico Assim falou Zaratustra97. Todavia, a construção

deste pensar não se coloca a perscrutar os caminhos de Nietzsche de imediato.

Essa primeira parte do livro, apresentada em 10 lições, pode ser dividida em dois 95 J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What’s called thinking?, 1968, p.xviii. Grifo do autor. Tradução nossa. 96 A tradução para o espanhol realizada por Raul Gabás não conta com prefácio. Quanto à tradução argentina, não tivemos acesso ao seu conteúdo. 97 Assim falou Zaratustra é o poema filosófico de Friedrich Nietzsche escrito entre 1883 e 1885. Hans Sluga nos esclarece que, já nas preleções de 1936, Heidegger se volta para a doutrina da “Vontade de Poder”. Em 1937, com o crescente interesse na doutrina do eterno retorno e seu desenvolvimento, Heidegger começa a prestar atenção em Assim falou Zaratustra, escrito que torna-se decisivo para o filósofo, especialmente por conta da concepção nitzschiana do super-homem e da possibilidade deste levar o homem a assumir a sua verdade. (cf. Hans Sluga, “Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to Heidegger, 2005, pp.108-109.)

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43 blocos temáticos: o filósofo nos conduz a Nietzsche através de uma demorada

discussão sobre a relação entre o pensamento, a ciência e a poesia. Vejamos como

se dá esta discussão.

2.1.1. “O mais problemático do nosso problemático tempo...”

Heidegger inicia a sua longa caminhada pela vereda do pensamento

partindo da afirmação: “Chama-se homem justamente aquele que pode pensar – e

com correção.”98 Essa afirmação nos fala de uma atividade que nos distingue

como seres humanos, um genuíno privilégio da nossa condição humana. Todavia,

apesar do homem ser capaz de exercer tal atividade quando quiser, no que tange o

pensamento ao qual Heidegger se dispõe a investigar, o querer pode muito pouco.

Segundo o filósofo, mesmo a Filosofia que se ocupa com esmero e erudição no

desenvolvimento de grandes tratados, não garante a disposição para o pensar.

Apenas aquilo que desejamos verdadeiramente é que podemos alcançar com o

pensamento. A esse desejar, Heidegger acrescenta Aquilo que também nos deseja

e se dirige à nossa essência “de modo a dentro dela nos guardar.”99 O filósofo

entende que há em nosso âmago um desejar que nos chama a guardar na memória

aquilo que é digno de pensamento e somente quando desejamos esse desejar, ou

seja, quando desejamos aquilo que nos guarda em nossa essência, somos capazes

de pensar. O pensar está, nesse sentido, ligado de alguma forma ao desejo.

Paulo Schneider, em O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A

época da imagem do mundo, nos coloca que há um elo de reciprocidade entre o

pensar, o desejo, a memória e a essência do homem, cuja a intenção fundamental

é “reunir conservando o pensado na memória pela recordação dadivosa, que nos

apetece e nos mantém na essência.”100 O autor nos mostra que a tradução da

palavra alemã Wesen aponta para a essência, mas igualmente reporta a ser, deter-

se, acontecer. Derivada de wesan significa ainda demorar-se, morar, passar a

noite. Schneider entende que aquilo que diz respeito ao mais próprio do homem, a

sua essência, é um habitar no acontecimento do pensar. Marlène Zarader, em

Heidegger e as palavras da origem, acrescenta que é na passagem do sentido

98 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.5. 99 Ibidem, p.5. Maiúscula do autor. 100 Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p.76.

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44 nominal ao sentido verbal que wesen evoca a demora ou duração que rege toda a

vinda à presença (an-wesen), um movimento essencial de algo que não é evocado

por nós, mas que, ao contrário, ao abrir-se no que é, nos chama, dirige-se a nós,

nos atravessa e nos diz respeito.

Sendo esse o caminho proposto por Heidegger para o pensar, o fato de o

pensamento e o homem estarem ligados desde o mais remoto tempo, e da coisa-a-

pensar se colocar para o homem na sua forma mais íntima, isso não impede a

constatação de que “o mais problemático no nosso problemático tempo é que

ainda não pensamos”101. Com isso, o que Heidegger quer inferir é que apesar de o

homem se dispor a pensar, ainda não o fazemos de modo apropriado; a coisa-a-

pensar escapa ao pensamento, pois o mais problemático e aquilo que nos dá a

pensar afastou-se do homem desde o princípio.102 Devemos, pois, aprender a

pensar de modo próprio. Mas, o que significa aprender a pensar de modo próprio?

O que é da essência do aprender a pensar?

O modo como o homem do nosso tempo pensa, segundo Heidegger, é o

responsável por toda a problematização dessa questão. Para Schneider, a

dificuldade ao pensar se põe na medida em que nos atemos a resultados teóricos

que nos concedem garantias objetivadas do saber, as quais nos outorgam apenas

um ilusório estatuto de certeza. Ao afirmar que “a ciência não pensa”103,

Heidegger se propõe a discutir a dimensão em que a ciência se move em relação

ao pensamento. O filósofo entende que na seara da ciência o pensamento se retrai.

Essa afirmação não se dá como uma censura, mas apenas como uma constatação,

uma observação sobre a essência da ciência, sua estrutura interna. A ciência não

pensa porque a sua essência é a do método, do passo-a-passo. Segundo Vattimo,

em As aventuras da diferença, Heidegger faz essa afirmação, não porque a ciência

não tenha a capacidade que a filosofia tem no sentido de fundamentar o seu

próprio objeto e discurso, mas porque responde rapidamente ao apelo da razão

com a investigação e a captação, que atuam como fundação e doação de

101 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.6. 102 Zarader nos fala que, por volta dos anos de1930, o pensamento de Heidegger sofre uma mudança. Para a autora, o que ocorre com Heidegger nesse momento é a percepção de que o ser “torna-se esquecido, precisamente porque o ato de ocultar-se pertence ao ser mesmo enquanto tal [...]”. (cf. Marlène Zarader, “The Mirror with a triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin Heidegger: Critical assessments, vol.II, 1992, p.20.) 103 Martin Heidegger, op. cit., p.9.

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45 estabilidade. O autor nos explica que durante toda a tradição metafísica, a ciência,

assim como a própria filosofia, fundou-se na lógica. Segundo Vattimo, a

contagem e o cálculo da ciência não são mera enumeração; contar significa

“contar com”104, em outras palavras, ter certeza sobre um número cada vez maior

de coisas.

Simplesmente pelo fato de cultivarem somente um dos lados daquilo com

que lidam, Heidegger compreende que as ciências exaurem a possibilidade de

contemplar a essência do seu saber. Preso ao tangível da ciência, o homem se

encontra refém do domínio técnico que o interdita e o afasta das questões

essenciais que falam à sua alma, às suas esferas do saber – a história, a arte, a

poesia, a língua, a natureza, o homem, Deus.105 O que reforça ainda mais essa

problematização é a questão da homogeneidade do pensamento. Há um

nivelamento de ideias e opiniões que põe o “pensamento sobre trilhos”106, numa

univocidade de conceitos e significação predeterminados pela essência da técnica.

Para o filósofo, as ciências de hoje pertencem ao domínio da técnica moderna,

cuja potência submete e destina o homem a uma total falta de liberdade.

Segundo Heidegger, o homem deve-se por a caminho, deve aprender a

pensar. O aprender a pensar é, para o filósofo, “levar o que se faz e deixa de fazer

à sintonia com o que cada vez, essencialmente, se dirige a nós.”107; um aprender

que torna-nos próprios ao saber. Schneider entende que, na medida em que se liga

à essência do homem, o aprender a pensar estabelece-se numa relação em que não

existe o aprendiz e o objeto de aprendizagem, não nos encontramos à parte do

objeto. Por isso, devemos suspender todas as possibilidades de explicação para

esse aprender provenientes da cisão sujeito-objeto, pois o aprender a pensar ao

qual Heidegger se refere não se põe como algo separado, à parte do homem. Mas,

ao contrário, como algo muito próximo. Heidegger nos coloca que devemos

buscar “aquilo que não se deixa encontrar por meio de nenhuma descoberta.”108

Nesse caminho, o homem defronta-se com uma tarefa árdua, pois a coisa-a-pensar

104 Grifo do autor. 105 Cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.31. 106 Grifo do autor. 107 Martin Heidegger, op. cit., p.15. Ao entrar na questão sobre o aprender a pensar, Heidegger se volta também para o ofício de ensinar, ao qual nos detivemos brevemente no subcapítulo intitulado “o dar-curso-ao-aprender”. 108 Ibidem, p.9.

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46 escapa-lhe ao pensamento, recusa o encontro. Essa recusa, no entanto, não é

menos, é mais. É, nas palavras do filósofo, Acontecimento109 – “a mais presente

de todas as coisas presentes”.110

Chegar à região do pensamento só é possível através de um salto, um salto

em direção ao abismo que desconcertantemente eleva e desnorteia o homem em

direção à terra da liberdade de juízos, do aberto, para além das cercanias da

opinião comum; um salto que “nos leva de súbito para lá onde tudo é outro”.111

Para Schneider, chegar ao âmago do pensar exige, daquele que trilha o caminho

do pensamento, uma “disposição para a tentativa de uma jornada rastreadora em

direção a um centro que a respeito de nós mesmos desconhecemos”.112 Todavia,

Heidegger nos aponta que a simples referência ao que resiste, já faz o homem

estar em movimento ao apelo pleno de mistério. Para o filósofo, Sócrates

manteve-se nesse movimento. Durante toda a sua vida expôs-se ao vento do

pensamento sem nada ter escrito, sendo considerado, por isso, o mais puro

pensador do Ocidente. A escrita é entendida por Heidegger como um refúgio para

o pensar, e o fato de todos os grandes pensadores depois de Sócrates terem se

refugiado na escrita, acabou por decidir o destino do pensamento ocidental, na

medida em que as ciências se fundaram a partir da Filosofia assim circunscrita.

Neste momento das preleções, Heidegger se acerca de Hölderlin e da

poesia como uma forma de nos mostrar, não só a contraposição entre o pensar

poético e o pensar científico, mas, sobretudo, por entender que o poetar, assim

como o filosofar, percorrem os caminhos outros do pensar. O filósofo nos coloca

que o movimento em direção àquilo que escapa indica um caminho, mas, nesse

movimento, o homem é apenas um signo, um sinal para Algo que não fala a nossa

língua. Aí, nesse lugar, diz Hölderlin em seu projeto de hino: “Somos um signo,

sem referência, / Somos sem dor e quase / perdemos a linguagem na terra

109 No original alemão, Ereignis. De acordo com Inwood, o termo acontecimento é o termo mais geral para Ereignis, porém, seus derivados, tanto nominais quanto verbais, também se circunscrevem à: evento; acontecimento-apropriador; ser-apropriado, pertencer; apropriar-se; (o seu) próprio. (cf. Michael Inwood, Dicionário Heidegger, Rio de Janeiro: Jorge Zaar, 2002, p.2.) 110 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.10. 111 Ibidem, p.14. 112 Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p.74.

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47 estranha.”113 Entendemos, a partir desses versos, que o poeta esteja a nos revelar

que o homem encontra-se sem rumo, perdido de si mesmo. Anestesiado e iludido,

fala e nada diz. Encontra-se ainda na diáspora, longe de casa, em terra estranha ao

pensar. Schneider nos fala que o homem encontra-se suspenso no nada da falta de

sentido, preso somente àquilo que maquinou e produziu. Desaprendeu a trilhar o

caminho do pensamento e esqueceu-se que esse se faz na medida em que

perguntamos por ele. O intérprete compreende que o pensar enquanto sinal, só

pode ser decifrado pelo pensar e o decifrar desse sinal só se dá tornando-se

pensar.

Segundo Heidegger, “Mnemosyne” – nome dado por Hölderlin a um de

seus projetos para o hino – pode ser traduzido por memória. Para o filósofo,

memória é a reunião do pensamento em torno do que, em geral, já de antemão, apreciaria de ser considerado. Memória é a reunião das lembranças (des Andenkens). Ela abriga em si, e dentro de si oculta, aquilo em que previamente e a cada vez tem-se que pensar, em tudo o que vem-a-ser e que, como algo consubstanciado, sopra à alma de forma substantiva […].114

No caso do hino, Mnemosyne (Memória) é filha do Céu e da Terra, noiva de Zeus

e mãe das musas. No mito, ela é a memória da coisa-a-pensar, a reunião do pensar

sobre aquilo que desde sempre deseja ser pensado. É, também, fonte profunda do

poetar. Para Heidegger, a poesia é como um voltar para casa, é como um “leito

d’água que reflui para a fonte, para o pensamento como rememoração”115, pois a

beleza do dizer poético circunscreve-se ao domínio da verdade, na medida em que

revela e faz brilhar o que se encobre. Essa compreensão nos aponta para a relação

do homem com o mais problemático, com aquilo que dá a pensar. Todavia,

segundo o filósofo, nosso entendimento para toda essa questão encontra-se

comprometido, enquanto crermos que a lógica possa nos dar conta do que seja

pensar.116

113 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.18. 114 Ibidem, p.12. Em nota do tradutor, Lyra nos esclarece que na memória, “[...] o pensamento reúne-se em torno de algo, debruça-se sobre algo. A lembrança é [...] em alemão das Andenken, inversão de denken an, “pensar em”. Equivaleria a dizer: a memória como ato de pensar em algo, promove a junção dos pensamentos.” (cf. Edgar Lyra, nota do tradutor, in: Ibidem, p.12.) 115 Ibidem, p.12. 116 Heidegger se refere ao fato de, no Ocidente, o pensar sobre o pensamento ter se desdobrado como “lógica”. O filósofo faz menção ao fato de Kant assim como Hegel terem reconhecido a esterilidade da possibilidade de uma determinação conceitual do pensamento.

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O pensador nos afirma que o dizer de Hölderlin “[...] repousa na sua

própria verdade. Chama-se beleza. A beleza é uma destinação (Geschick) da

essência da verdade, onde verdade significa: o desencobrimento do que se

encobre.”117 Compreendemos, a partir dessa colocação, que a verdade é entendida

aqui como desvelamento e a poesia é a experiência de um vir a ser, o passar da

não presença à presença, o pôr-se-em-obra da verdade.118 Para Schneider, o dizer

do poeta se circunscreve à própria verdade e não carece de uma explicação que a

aprisione numa interpretação. O intérprete entende que a verdade que

encontramos na arte e na poesia tem o seu brilho, a sua própria luz. Além disso, a

arte e o dizer poético não tem aspirações científicas direcionadas à dominação,

mas apenas um caráter expressivo e meditativo como um de seus atributos.

Toda essa discussão, proposta por Heidegger nestes primeiros capítulos, se

mostra para nós como um pensar que se põe em exercício, uma etapa no processo

que continuamente se refaz no caminho do aprender a pensar. Esse é um processo

lento e paciente, não há como avançar para a solução do “mais problemático do

nosso problemático tempo”. Schneider nos faz entender que o demorar-se na

questão vai totalmente na contra-mão da pressa desmedida em que o sistema de

comunicação se dá. Para o autor, Heidegger perfaz o caminho-pensamento na

perseverança da pergunta e na experiência de que nesse caminho subjaz o

impensado. Nesse sentido, permanecer na questão do pensar é a demora do

caminho. Não há construtos ou bases sólidas para esse caminhar, mas apenas o

seguir o fluxo do pensamento que amplia, mas não esgota, a possibilidade de

chegar a si enquanto pensar, pois trata-se, segundo Schneider, de “se estar

inevitavelmente dentro do/junto a/permanecendo com o pensar, sem a mínima

117 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.20. 118 Entendemos a densidade do dito de Heidegger. Todavia, não é nossa intenção adentrarmos na questão da verdade e tudo o que dela possa advir, mas, apenas buscar entendimento para o texto. O por se em obra da verdade foi tema do livro A origem da obra de arte (GA 5). O escrito é fruto de três conferências realizadas em 1936 e publicadas em 1950. Maria da Conceição Costa, tradutora do livro para a língua portuguesa, nos apresenta que: “perguntando ainda e sempre pela dádiva misteriosa do ser e da verdade, Heidegger visita-a através da natureza da obra de arte. A experiência profunda da obra de arte revela e esconde a verdade daquilo que é, de tal modo que a podemos ver. A verdade é artística e a arte poética, na sua essência fundadora. Através da obra, abre-se um mundo que indicia, que desprende o olhar cativo para o outro lado das coisas.” (cf. Maria da Conceição Costa, “Advertência da tradutora”, in: Martin Heidegger, A origem da obra de arte, Lisboa: Edições 70, 1977, p.9.)

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49 possibilidade de sua auto-objetificação ou auto-atropelamento reflexivo.”119 A

dificuldade do percurso é acentuada pela preocupação central de Heidegger: o fato

de que ainda não pensamos de modo próprio. Preocupação expressa pela palavra

alemã Bedenklichste, traduzida por o mais problemático.120

A longa discussão entre pensamento, ciência e poesia, que se estende por

mais de três aulas e suas respectivas recapitulações, acabam por evidenciar, de

forma contundente para o leitor, a questão do “mais problemático do nosso

problemático tempo”. Trata-se de uma temática que se põe para Heidegger em

ressonância com o “deserto cresce”121 de Nietzsche, na medida em que aquilo que

escapa permanece impensado em nosso tempo; não só pelo fato de “a-coisa-a-

pensar”122 escapar ao pensamento, mas, sobretudo, pelo fato da “vontade de agir,

quer dizer, de fazer e efetivar, ter atropelado o pensamento”123. A manipulação

técnica impede uma aproximação e acaba gerando uma subtração do pensar.

Tempos sombrios, obscuros e ameaçadores na medida em que a desertificação

interdita o pensamento – uma aridez que elimina e impede futuras germinações. A

frase nitzschiana “o deserto cresce: ai daquele que abriga desertos!”124 reverbera

no pensar de Heidegger em função do caminho que o pensamento tomou: o da

representação.125 Todavia, antes de adentrarmos o pensamento de Heidegger sobre

Nietzsche, julgamos necessário um desvio em nosso percurso, no sentido de

compreendermos esse rumo que o pensamento tomou.

2.1.1.1. Nas raias da representação

A questão da representação é tão fundamental que Heidegger dedica toda

uma aula, assim como a devida recapitulação, sobre o tema. Nessa parte, o

119 Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, 2005, p.103. 120 Schneider nos fala que a tradução desse vocábulo fica circunscrita ao mais preocupante de tudo e traz, portanto, consequências profundas. O autor entende que “esse gravíssimo não pode ser entendido como resultado de alguma decisão autônoma por reflexão, pois o que preocupa é algo que ocorre no imediato do seu advento. [...] O que se impõe e o que se doa não é alcançável, nem manipulável, mas exerce uma influência em nós, que não é casual: ela faz parte de uma condição, que nos determina essencialmente como seres humanos”.(cf. Ibidem, p.91-92.) 121 Grifo do autor. 122 Grifo nosso. 123 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.25. 124 Grifo do autor. 125 Schneider nos apresenta que a advertência de Nietzsche é feita a partir da devastação promovida pelo cristianismo, mas também a frase “o deserto cresce” pode ser pensada como o “deserto do pensar por representação”. (cf. Paulo Schneider, op. cit., p.107.)

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50 filósofo analisa a concepção há muito concebida de que há uma correlação entre

verdade e representação. Para Heidegger, de tudo o que existe temos em nossa

consciência, em nossa alma, uma representação. Robert Mugerauer, em

Heidegger’s language and thinking, nos apresenta que a representação é o modo

pelo qual formamos as ideias, e que estas são elaboradas através da nossa

capacidade de deter e guardar um aspecto da realidade que tenhamos apreendido.

Segundo o autor, esse processo não se apresenta como uma mera ordenação de

ideias. À representação junta-se, também, o julgamento, ou seja, o juízo no

sentido de formar ideias corretas e adequadas. Segundo Mugerauer, o pensar

assim compreendido se circunscreve à formação de ideias que representam o que

é pensado de maneira que a ideia se conforme com o objeto corretamente, ou

melhor, essa correção e conformação devem partir, por sua vez, de um

pressuposto lógico, não contraditório. Seguindo nessa esteira, podemos concluir

que, se aquilo que formamos a partir de nossas ideias deve partir de um

pressuposto lógico, podemos facilmente afirmar que a lógica determina o

pensamento. Mas, como podemos entender que a lógica esteja a ordenar o pensar?

E, mais, como isso se deu?

Heidegger nos explica que decidiu-se, de maneira bem própria e nada

evidente, que por trás do nome “lógica”126, o pensamento é entendido como

!"#$%.127 Para o filósofo, nessa inaparente equiparação, há milênios

desconsiderada pelo pensar, subjaz o destino do pensamento ocidental. Zarader

nos coloca que examinar o nexo entre o pensamento e a lógica significa apenas

evidenciar e relatar a nossa história, e não a torná-la compreensível tomando-a

como questão. De acordo com a autora, esse questionamento é levantado por

Heidegger ao nos indagar: “o que isso significa, para o destino e curso do próprio

pensamento, que desde há muito tempo, senão desde a origem, é justamente algo

126 Grifo do autor. 127 Heidegger nos chama a atenção para o fato de que o !"#$% e o µ&'$% terem sido usados pelos primeiros pensadores da Grécia com o mesmo significado. Para o filósofo, !"#$% e µ&'$% só deixam de se relacionar a partir de Platão, quando a lógica atravessa o pensamento. Heidegger nos esclarece que a ideia de que o µ&'$% foi destruído pelo !"#$% tem a ver com um prejulgamento, dado pela Filologia e pela História, herdado do racionalismo moderno com base no platonismo. (cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.11.)

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51 como a lógica que se apresenta no pensamento ocidental, como a doutrina do

pensamento correto?”128

Segundo o pensador, a questão do pensamento ter sido compreendido

como lógica remonta o início do pensamento ocidental. O filósofo nos aponta que,

desde Platão – e, com ele, o início da metafísica – inicia-se a correspondência

entre o pensamento e o que veio a chamar-se “lógica”129. Heidegger nos explica

que a ἐ()*+,µ- !$#)., nasceu na escola de Platão e foi essencialmente

desenvolvida por seu maior discípulo, Aristóteles. Zarader complementa essa

afirmação, dizendo que a Lógica nasce da tripartição da filosofia em lógica, física

e ética. Para a autora, mais importante do que essas considerações históricas são

as consequências que daí resultam para o saber do !"#$%. A intérprete nos coloca

que, de acordo com Heidegger, quando isso acontece a filosofia chega ao fim e se

torna assunto de organização e técnica. Isso se dá porque com a tripartição

nascem as disciplinas que, por sua vez, se relacionam diretamente com seus

objetos, e, nessa relação, a determinação se dá da disciplina para o “objeto da

disciplina”.130 Isso significa que é a disciplina que determina aquilo que a coisa é

e, consequentemente, a medida da sua verdade. Nos encontramos, pois, em meio a

uma inversão da relação de determinação. Essa inversão é evidenciada por

Heidegger quando afirma que o que vem à linguagem é mediado pelo

equipamento metodológico determinado pela disciplina, ou seja, é a disciplina a

instância que decide o como e o porquê um objeto é conhecido. Segundo o

filósofo, as disciplinas funcionam como verdadeiros filtros para o conhecimento,

na medida em que só revelam determinados aspectos de seus objetos de estudo.

Heidegger, em Heráclito (GA55), nos aponta que sob o título de Lógica

compreende-se “a doutrina do pensamento correto.”131 A isso, entende-se a

correção do pensar segundo um critério de construção, formas e normas que

regem o pensamento de maneira a ordená-lo. Mas, por que encontramos nessa

doutrina o título de Lógica? Há nesse título algo da essência da linguagem? De

acordo com o filósofo, o !"#$% é para a lógica o enunciado de algo sobre algo, e

128 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.205. 129 Grifo do autor. 130 Grifo da autora. 131 Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.199.

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52 isto aconteceu porque, no período romano e na Idade Média, entendeu-se o !"#$%

como uma proposição da justa determinação do correto juízo sobre conceitos que

se propõem a serem conclusivos. Assim, “como doutrina da enunciação, isto é, do

juízo, a lógica é também doutrina do conceito e da conclusão”132. Entendida desse

modo, a lógica diz respeito ao sujeito do dizer, e é este, segundo Heidegger, o

traço essencial do pensar segundo a lógica: enunciar algo sobre algo. Encontramos

aqui a determinação do pensar como um falar, cujo o traço essencial assenta-se no

enunciado, e isso, segundo o filósofo, determina um fechamento ao campo

original da palavra, pois se pensar é enunciar algo sobre algo, nesse enunciar

sonega-se algo desse pensamento na medida em que algo é dado como verdadeiro.

Heidegger nos coloca que o lógico pode denotar uma coerência com seus

pressupostos, exprimindo, com isso, algo da ordem do racional: um pensamento

correto e em acordo com os princípios fundamentais. Entretanto, uma mesma

coerência correta pode se manifestar de muitas maneiras, e, nesse sentido, falta ao

lógico o peso do verdadeiro. Nos encontramos, aqui, no âmbito da ideia de

verdade por correspondência e o filósofo procura escapar desse campo

gravitacional.133 Diz Heidegger: “o que milhões de vezes se chama de ‘lógico’

nunca oferece ou fundamenta o verdadeiro.”134 Para o filósofo, o apelo do lógico

como obrigatoriedade por toda a parte é sinal de um pensamento que não pensa e

não entende que o lógico pode ser a norma que se molda ao pensar, todavia,

aquilo que fundamenta a norma, nunca pode constituir o domínio do verdadeiro.

Para o pensador, o próprio pensamento ocidental-europeu moderno

percebeu que o pensar como lógica não é suficiente para tudo o que precisa ser

132 Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.234. 133 Entendemos que a questão da verdade permeou o pensar de Heidegger desde o início, tendo, inclusive, tratado dessa questão em algumas conferências, tais como: “Sobre a essência da verdade”, de 1930, e “A doutrina de Platão sobre a verdade”, de 1931-1932, publicadas em Marcas do caminho (GA9). Todavia, encontramos uma compreensão sucinta para a questão da verdade na conferência intitulada “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento” (GA14), apresentada em 1966. Ali, o filósofo nos fala que a verdade, entendida como retitude da representação e da enunciação, fica reduzida ao sentido de orthótes e não ao de alétheia. A alétheia, compreendida pelos gregos como o sentido da certeza e da confiança do que se pode ter, não pode ser identificada à palavra verdade, pois, segundo Heidegger, compreende-se a verdade como concordância e adequação – o acordo da representação pensante e da coisa – sempre relacionadas ao conhecimento como ente. (cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, pp.106-107.) 134 Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.126.

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53 levado em conta135, chegando inclusive a indagar se a representação do pensar

corresponderia, ou não, a algo fora de nós; ou ainda, se a totalidade do real

existiria enquanto representado por nós. Apesar de combatido, Schopenhauer

resume na sentença “o mundo é minha representação”136 o pensamento de seu

século sobre essa questão. Suspeita-se, com isso, que pensar e representar possam

ser o mesmo e que a essência do pensamento tenha sua origem no representar. De

acordo com Heidegger, nossa maneira de pensar ainda se atém ao representar,

ainda não nos encontramos no que é o mais próprio ao pensar. Segundo o

filósofo, a essência do pensar encontra-se oculta, e talvez só na medida em que

nos voltarmos para lá onde a essência do pensar escapou, não mais ludibriados

pela lógica, é que poderemos nos aproximar do que seja pensar.137 Vemos, assim,

que o pensamento ao qual o filósofo circunscreve seu questionar nada tem a ver

com o pensamento representacional e que a lógica, de alguma forma, encobre o

que é próprio do pensamento.

Zarader avança na análise do pensamento representacional e nos conduz

ao pensamento calculador, sendo esse último, uma forma de representação

intrínseca ao modo da técnica. A autora nos coloca que, com base no pensamento

representacional, o pensamento calculador é aquele que afastou-se do seu

elemento original, ordenou-se de outra forma e sujeitou-se a algo que não lhe é

próprio. De acordo com Zarader, para Heidegger: “Quando o pensamento, ao

afastar-se de seu elemento, entra em declínio, compensa essa perda procurando

valorizar-se como +/01-, como instrumento de formação[...].”138 Este desvio é

135 Schneider nos faz entender que essa seria a crítica de Hegel a Kant. Para o autor, “Hegel critica a pretensão kantiana de afastar-se do pensamento para estipular, diagnosticar e descrever a suposição das suas condições e possibilidades.” Segundo Schneider, para Hegel, alargar a compreensão de um conceito não questiona as bases com que este conceito foi construído. (cf. Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, 2005, p.101.) 136 Grifo nosso.“O mundo é minha representação” são as palavras com que Schopenhauer inicia sua principal obra filosófica intitulada O mundo como vontade e representação, composta por quatro livros e publicada em 1819. “A tese básica de sua concepção filosófica é a de que o mundo só é dado à percepção como representação: o mundo, pois, é puro fenômeno ou representação. O centro e a essência do mundo não estão nele, mas naquilo que condiciona o seu aspecto exterior, na “coisa em si” do mundo, a qual Schopenhauer denomina “vontade” (o mundo por um lado é representação e por outro é vontade)” Cf. [online] Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Mundo_como_Vontade_e_Representação Acesso em:20/6/2014. 137 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.41. 138 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.143.

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54 nomeado pelo filósofo como “interpretação técnica do pensamento”139, um pensar

que encontra-se em ação por toda a parte. Origina-se com a lógica e tem a sua

realização máxima na ciência do mundo moderno, ou seja, nos reportamos aqui ao

pensamento científico. Mas, como traçar um paralelo entre +/01- e ἐ()*+,µ-? E,

mais, como entender a relação entre +/01- e pensamento?

Heidegger nos coloca que, desde o mundo grego, fundou-se o nexo entre

todo o saber e a +/01-. A Ἐ()*+,µ- compreendida como o “entender-se com

alguma coisa” e a +/01-, como o “reconhecer-se em alguma coisa” tem um

parentesco tão próximo, que muitas vezes usamos uma palavra pela outra.140

Zarader nos mostra que, para Heidegger, “o coração da ciência moderna é a

ἐ()*+,µ-, e isto tão originariamente que o que está encerrado, de maneira

embrionária, na ἐ()*+,µ-, só vem à luz na figura da ciência moderna”.141 A partir

disso, entendemos que, se no centro da ciência moderna encontramos a ἐ()*+,µ-,

e se essa tem um parentesco antigo com a +/01-, é possível pensarmos que a +/01-

está de alguma forma ligada à ciência moderna. O próprio Heidegger nos diz que

ninguém é capaz de perceber de imediato a indicação de que na composição da

técnica moderna “[...], a +/01- se mostra como uma forma fundamental,

confessada ou inconfessada de saber entendido como ordem do cálculo”.142

Zarader explica esta conexão da seguinte forma: “Se a ciência moderna é [...] de

essência técnica, é porque a ἐ()*+,µ-, de onde deriva, é estreitamente aparentada

com a +/01- e não pode ser pensada fora dessa conexão”.143 Busquemos alguma

compreensão para esta afirmação.

A autora nos coloca que, para Heidegger, “a ciência é a teoria do real”144.

Isso significar dizer que a ciência incide o seu pensar sobre o real, uma

modalidade particular da presença que resulta de uma realização, uma ação que se

deu para trazer algo à luz. Diz a intérprete: “a coisa presente, enquanto real, é a

que foi trazida à presença como um efeito, à luz da causalidade. Mas, é mais

ainda. Com o início da época moderna, [...] ela é objeto para uma

139 Grifo da autora. 140 Cf. Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.215. Grifos nossos. 141 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.150. 142 Martin Heidegger, op. cit., p.216. 143 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, op. cit., p.205. Grifo da autora. 144 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.144.

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55 representação”.145 Segundo a autora, a representação objetivada da coisa presente

constitui aquilo que Heidegger nomeia por teoria. Por outras palavras: teoria é a

elaboração do real, aquilo que busca captar o objeto como ele é. Todavia, sendo a

época moderna a consumação do reino da objetividade, a teoria acaba por

corresponder, como uma espécie de resposta, a esse tipo de comportamento.

Nesse sentido, para Heidegger, o modus operandi que o pensamento científico

moderno responde ao real é o da “representação que segue a pista e que garante

para si todo o real na sua objetividade [...]”.146 Trata-se de uma representação que,

segundo Zarader, se escora sobre uma elaboração prévia do real, efetivada através

de métodos, cálculos e delimitação de domínios distintos, e tem por consequência

o seguinte fato: aquilo que aparece não é mais aquilo que por si mesmo

desabrocha. Para a autora, esse determinado tipo de orientação também serve de

paradigma para o pensamento em sua acepção habitual.

Estamos aqui circunscritos ao horizonte da técnica que, de acordo com

Zarader, é uma produção que nada tem a ver com a ($2-*)% grega, que

simplesmente permitia o ser das coisas desabrocharem por si mesmos, ao

contrário, no âmbito da investigação objetivada pela técnica, nos acercamos de

uma interpelação manipuladora que envolve o homem e o real em uma única

função na qual ambos são apenas partes complementares. Por outras palavras: o

homem guiado pelo domínio do pensamento representacional, ao se colocar

diante do real, o faz de modo a corresponder a um apelo objetivado que subjaz,

segundo Heidegger, à técnica. Assim, tanto o real – que desvelado pelo modo

tecnicista corresponde apenas a fundos disponíveis de material e de energias – ,

quanto o homem – que, nas palavras de Heidegger, nada mais é do que um

zelador desses fundos – aparecem como parte desta engrenagem que é a técnica.

Para Zarader, essa compreensão é fundamental, pois dela derivam tanto a

ciência moderna, como o pensamento que dela se origina – o pensamento

calculador –, ou seja, é a técnica que se encontra por traz da ciência moderna e seu

145 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.144. Zarader, nesse momento de sua análise, adentra o modo de desvelamento que rege a essência da técnica moderna: Ge-Stell. Através da autora, buscaremos entendimento para essa difícil questão na medida em que a mesma é entendida como primordial ao desenvolvimento da análise do pensamento calculador, todavia, sabemos, de antemão, da complexidade do pensamento de Heidegger sobre o tema. 146 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.145.

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56 pensamento, mesmo sendo a ciência da natureza anterior ao aparecimento da

técnica. Assim, a Ge-Stell é, grosso modo, a reunião de dois domínios

aparentemente distintos – a ciência e a técnica –, o lugar em que ambos possuem

uma mesma essência e, por isso, devem ser compreendidos através de um único

termo. Daí a compreensão de que o pensamento calculador já se encontrava

presente tanto na razão clássica, como no mundo grego tardio. Para a autora, ao

abandonarmos a cronologia, com o interesse de enxergarmos aquilo que

veladamente se destinou na história, é possível percebermos que a ciência se

funda a partir da essência da técnica, e que o pensamento ocidental está submetido

à ciência.

Toda essa compreensão nos leva ao entendimento de que na ciência

encontramos vigente a “prevalência da lógica, (a) dominação da representação,

(as) categorias de causalidade e do fundamento, (o) reino do conceito, (a)

utilização da explicação, (a) vontade de rigor concebida como exatidão”147, traços

que, segundo Zarader, regem e definem também o pensamento filosófico já, – e

desde Platão –, dominado pela representação. Assim, sendo a época moderna a

consumação do reino da objetividade, para a autora, a assim chamada

“interpretação técnica”148 do pensamento se funda em última análise no cálculo,

um tipo de pensamento que está destinado a prestar contas no sentido de garantir

o real – aquilo que é – e tem como característica principal o fato de estar

totalmente centrado sobre o ente. Por outras palavras: o pensamento calculador é

um pensamento do ente, sobre o ente e para o ente e tem como traço fundamental

tudo dominar a partir de uma lógica própria. Neste sentido, de acordo com

Zarader, o pensamento calculador condena-se a ser aquele que se fixa no ente, um

pensamento de mão única, incapaz de se relacionar com o mistério, com aquilo

que se deixa entrever senão furtando-se – lugar de onde se instaura a linguagem e

a poesia. Certos estamos de que o pensar é um representar, mas ainda não

chegamos ao que é o mais próprio do pensamento, “no único elemento em que o

pensamento pode ser ‘essencial’: o ser”.149

147 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.151. 148 Grifo da autora. 149 Marlène Zarader, op. cit., p.152. Grifo da autora.

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57

Voltemos, agora, nossos passos ao caminho proposto por Heidegger para o

pensar de Nietzsche, o qual nos evidencia o destino árido do pensamento

caracterizado pela representação.

2.1.2. O Zaratustra de Heidegger

No segundo bloco temático das preleções de inverno, Heidegger

rememora a questão do pensamento na linguagem de Nietzsche. Segundo o

filósofo, é o pensamento de Nietzsche o mais estimulante para esta questão, pois

esse “diz na linguagem tradicional aquilo que é.”150 Para Heidegger, o pensamento

de Nietzsche concilia, na sua verdade própria, todo o pensamento do Ocidente.

Todavia, seu pensamento não está à vista, não o encontramos facilmente ao lançar

dos olhos. Temos que buscá-lo. Sua linguagem impronunciada, aquilo que subjaz

por trás das palavras, deve ser ouvida de modo a nos conduzir ao pensamento no

seu destino mais essencial.

Ao tomar a frase de Nietzsche: “O deserto cresce: ai daquele que abriga

desertos!”, Heidegger faz referência ao caminho pelo qual anda o pensamento, ela

é expressão do que vai dentro do homem. Nela, Nietzsche nada mais quer do que

dizer do atual estado do mundo. Seu grito está no livro intitulado Assim falou

Zaratustra, obra em que o último pensador do Ocidente – nas palavras de

Heidegger – pensa o eterno retorno do Mesmo.151 Ao retomar Nietzsche,

Heidegger nos rememora a modernidade inacabada do pensamento do filósofo

que ainda não foi vislumbrado e a necessidade de descobri-lo, pois somente

absorvemos o impensado de um pensador quando nos aproximamos da sua

verdade original. E a grande verdade é que o pensamento de Nietzsche foi

refutado antes mesmo de ser compreendido.

Encontramos em Schneider a compreensão de que, para Heidegger,

Nietzsche percebe visivelmente, antes do que qualquer outro de sua época, a

imposição de se refletir de forma radical a essência do homem pensante. Segundo

Heidegger, para Nietzsche, há algo na história do homem ocidental que

permanece inacabado e necessita de acabamento uma vez que já chegou ao fim.

150 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.42. 151 Maiúscula do autor.

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58 Nietzsche nomeia como “último homem”152 esta espécie que não consegue

enxergar além de si mesmo, elevar-se acima de si mesmo, pois ainda não alcançou

a sua própria essência. O pensamento de Nietzsche deseja ir além do homem de

sua época, deseja alcançar a plenitude da essência desse homem. Nesse sentido,

aquele que parte em travessia para além de si mesmo é, segundo Nietzsche, o

“super-homem”153. É ele que poderia guiar a essência do último homem à sua

verdade e a assumir no sentido de tomar posse de si mesmo e de toda a Terra, para

a partir daí conformar a técnica e o fazer humano a essa nova realidade. Para

Heidegger, esse que parte só pode ser alguém em decadência, pois é a partir do

declínio que o caminho do super-homem começa. O super-homem é, pois, aquele

que atingiu o seu declínio, o declínio do último homem que parte em travessia,

mas, ao mesmo tempo, é passagem, é ponte.

Schneider entende que repensar o último homem é fundamental para abrir

espaço ao homem do porvir. Zaratustra é este que possui o “poder-de-dizer” e

diz. Em suas primeiras palavras, logo no prólogo, Zaratustra rememora

inversamente o centro da metafísica de Platão, que será, pois, a chave para o

entendimento do livro, mas logo reconhece que ainda não era tempo, nem hora de

falar sobre o mais elevado. Afinal, o povo encontrava-se subjugado ao ainda-não-

pensar, encontrava-se dominado pelo império da representação. O pensamento de

Nietzsche aponta para o fato de que o homem de então, em sua essência

metafísica, não estaria preparado para assumir e gerenciar o poder da Terra como

um todo, e segue ainda trôpego “atrás daquilo que há muito é [...], (pois) [...] a

representação dos objetivos, fins e meios, efeitos e causas à qual todos aqueles

esforços se filiam, é, antecipadamente, incapaz de se fazer aberta ao que é.”154

Schneider coloca que, ainda que circunscrito ao domínio da metafísica, é

Nietzsche quem denuncia a delimitação que tem por característica a definição do

homem como animal racional, animal da representação; uma forma de pensar que

busca explicar e delimitar o homem da mesma maneira que o faz com a totalidade

das coisas. Encontramos em Mugerauer semelhante ponderação. Para esse último,

está para além do escopo de intenções de Heidegger em Que chamamos pensar?

152 Grifo nosso. 153 Grifo nosso. 154 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.56.

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59 se deter no desenvolvimento histórico da lógica iniciada no pensamento de Platão,

ou mesmo da lógica como dialética. Mas, conforme vimos, ao buscar respostas

para a atual determinação do pensamento pela lógica fica claro que essa

determinação parte da ideia de que “o homem é um animal racional e o

pensamento é um processo subjetivo pelo qual percebe-se ou apreende-se objetos

pela razão, e, no qual, forma-se ideias de modo a representar mentalmente esses

objetos e a formar proposições sobre eles”155. O autor compreende que esse traço

fundamental do pensamento tradicional nos trouxe ao atual modo de pensar; uma

forma que persiste e resiste através dos tempos a qualquer tentativa de mudança e

elucidação. Schneider complementa a ideia afirmando que o pensamento

representacional tem uma extraordinária propensão a se perpetuar no tempo, uma

vez que o homem, na qualidade de animal rationale, aceita e conforma-se às

regras determinadas pelo jogo da representação.

A representação recebe de Nietzsche a metáfora do piscar. É, pois, o que

brilha e cintila, uma aparência totalmente superficial, tudo aquilo que se relaciona

com a representação. Para Nietzsche, o último homem pisca. A metáfora do piscar

é entendida por Schneider como uma situação em que o homem, enredado pelo

jogo da representação, se vê diante do brilhoso simulacro que lhe é oferecido: o

labirinto inextricável da “sala de espelhos que por representação reflexiva

continuamente lhe fornece a verdade proposicional objetiva [...]”.156 O autor nos

afirma que o cintilar e o piscar se conformam a um jogo já iniciado que se

estabelece com as cartas devidamente marcadas, cujo o resultado já está

previamente determinado e definitivamente consumado, sem nenhum acerto ou

reflexão anteriores.

De acordo com Heidegger, não encontraremos o super-homem de

Nietzsche na opinião pública, no poder, nos meios de comunicação, ali

encontramos somente a representação dominante e, junto a essa, o bom senso –

abrigo dos que invejam o pensamento. Tudo isso acaba por deixar o pensamento

numa situação conflitante com a sua essência, pois este, o pensamento, vive no

reino do original, do não-pensado, ou, como o próprio filósofo diz, do “im-

155 Robert Mugerauer, Heidegger’s language and thinking, 1988, p.70. Tradução nossa. 156 Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, 2005, pp.108-109.

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60 pensado”157. Nesse sentido, quanto mais singular, mais rico será o pensamento;

quanto mais próximo à representação, mais superficial, pois aqui fica-se preso ao

pensamento vigente. Schneider nos adverte que o regime da representação se

enraíza de modo inevitável e inconteste nas mais diversas áreas da cultura e da

linguagem. Segundo o intérprete, o pensamento do representar inibe qualquer

possibilidade de reflexão profunda sobre as coisas, afetando o juízo quanto ao

certo e ao errado, ao legítimo ou ilegítimo. É justamente a representação que

determina e estabelece o quadro que compõe a realidade, onde fulgurosamente

tudo se apresenta numa trama administrada e engendrada, incapaz de nos fazer

lembrar a conjuntura na qual se instalou tamanho engodo.

Dessa forma, para Heidegger, manter-se no caminho – ou a caminho –

torna-se mister, pois é o caminho que vai conduzir o pensador ao diálogo interno

com o pensamento. Esse diálogo travado no pensamento deve levar,

indubitavelmente, à questão do ser. Segundo o filósofo, toda a doutrina pensante

sobre a essência do homem já é intrinsecamente uma doutrina do ser do ente.

Quanto mais único e genuíno, mais esse pensamento nos desconcertará e nos

abrirá para o seu impensado. Para Heidegger, é o impensado o maior presente que

um pensamento pode nos ofertar, e lançar-se ao ainda não pensado de um

pensador exprime o desejo de tornar o que ali subjaz ainda maior. O filósofo

entende que no caminho do pensamento o relacionamento entre ser e essência do

homem acontecem naturalmente, esse é um caminho interno natural, estamos já

em essência abertos para o apelo do ser. Todavia, só isso não basta, se faz

necessário “[...] rasgar a névoa que se põe diante do ente como tal, [...] e cuidar

para que esse rasgo não seja encoberto.”158

Heidegger passa, então, a perscrutar como o ser foi compreendido na

modernidade. O filósofo nos explica que vários filósofos da era moderna

pensaram o ser como vontade. Schelling, em sua Investigação filosófica sobre a

essência da liberdade humana e correspondentes objetos159, nos fala que não

existe outro ser que não o querer. É o querer a expressão suprema que reúne em si

os predicados do ser primordial, tais como a eternidade – independência do tempo

157 Hífen do autor. Grifo nosso. 158 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.76. 159 Friedrich Schelling, Über das Wesen der menschlichen Freiheit. Stuttgart: Reclam, 1964.

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61 –, e o caráter incondicionado – ausência de fundamento. Heidegger nos coloca,

em “Quem é o Zaratustra de Nietzsche?” (GA7), que Schelling encontra na

vontade todas as qualidades que o pensamento metafísico atribuiu ao ser. O

pensador também nos lembra, que toda essa questão já estava histórica e

precisamente colocada nas formulações de Leibniz, quando esse pensou e

determinou o ser dos entes a partir da mônada e essa como uma unidade de

perceptio e appetitus: o apetite que, enquanto vontade, nos impele continuamente

de uma percepção à outra. Assim como Schelling na esteira de Leibniz, Kant e

Fichte se referiram ao querer racional, também perscrutado por Hegel.

Schopenhauer, como vimos, nos fala em vontade e representação, e Nietzsche

pensa o ser do ente como vontade de poder. Na linguagem da metafísica moderna,

“vontade” e “querer”160 não se referem apenas ao fato da capacidade da alma

humana se expressar pela vontade do querer, mas que o ser em sua totalidade

possui a sua essência através da vontade. Essa manifestação do ser como vontade

só pode ser compreendida através do pensar.

De acordo com Heidegger, no caso de Nietzsche, a vontade de poder se

volta para a redenção face ao espírito da vingança, aqui entendida pela repulsa

contra o tempo e o seu “foi”161. Mugerauer nos conta que a história de Zaratustra é

a história de como o pensar por representação compreende o pensamento em

relação ao tempo. No que tange a representação do tempo, temos em nossa mente

a seguinte concepção: o presente se refere a tudo o que é, o futuro é ainda o

ausente e o passado é o já ausente; esse escoar sucessivo do tempo é o legado

mais certo que o tempo nos concede. Trata-se para Mugerauer, de uma

representação aristotélica da ideia de tempo: o constante passar que demarca uma

contínua sucessão de “agoras” que transformam o “agora ainda não” no “agora

não mais”.162 Miguel de Beistegui, em Thinking with Heidegger: Displacements,

também faz semelhante ponderação, o autor nos fala da essência do movimento

do pensamento que está sempre entre a possibilidade de algo que ainda vai se dar

e a memória de algo que já se deu. Essa compreensão do tempo como um escoar

sucessivo possui sempre um caráter transitório que, para ambos os autores,

caracteriza o modo típico de representação do tempo da metafísica ocidental. 160 Grifo nosso. 161 Grifo do autor. 162 Grifos do autor.

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62

No que diz respeito à vontade, para Heidegger, tudo o que foi não é mais e

fica, portanto, de fora da esfera do querer. Diante do que passou, a vontade nada

mais tem a dizer. Neste sentido, torna-se impossível uma representação de algo

que não é mais, mas quer continuar sendo. Isto significa que o querer, ao esbarrar

em algo que foi, carrega em si uma contrariedade: a vontade que deseja se

eternizar no tempo, deseja continuar querendo, mas esbarra com o tempo que

passou. Nasce, com isso, a essência da vingança, essa repulsa no interior da

própria vontade “contra o tempo e seu ‘foi’”163; nasce o repúdio contra a sucessão

de “agoras” que ao se transformarem em “agora não mais” fazem perecer a

vontade que não pode mais querer. Heidegger nos coloca que, se pudesse ficar

livre da passagem constante do tempo, a vontade estaria liberta da vingança. Isto

significa dizer que a vontade, livre do tempo, torna-se capaz de eternizar-se.

Assim, fazer a travessia significa a própria redenção em face da vingança, uma

vez que nela fica-se liberto do ressentimento de que padece o último homem: a

liberdade da necessidade da vingança contra o tempo e seu “foi”. Isto quer dizer

que a vontade não inclina mais o seu querer em direção ao temporal, pois há uma

presença já presente no homem. Há algo que se encontra primeiro – a vontade que

quer eternamente a vontade de querer. A vontade, uma vez liberta da repulsa, quer

constantemente o retorno do Mesmo164 e, dessa forma, quer a eternidade do que

quis, a vontade de si mesma como fundamento de si mesma. Esse é, segundo

Heidegger, o ápice da metafísica de Nietzsche.

Todavia, Heidegger nos confessa que a doutrina do eterno retorno do

Mesmo não se distingue pela clareza e permanece envolvida em obscuridade para

todos nós, inclusive para o próprio Nietzsche. Antes de encerrar suas preleções

sobre Assim falou Zaratustra, Heidegger levanta ainda uma última questão: na

medida em que considera-se o ser como presentificação, como ficam ser e tempo,

uma vez que este último fica representado como passar e o primeiro como

eternidade na presença? Há, segundo o filósofo, uma contradição nessa questão,

pois se toda a tradição metafísica pensa o ser como eternidade, isso significa que o

tempo concebido como transitório, como um contínuo passar, não pode ser

fundamento do eterno. Busquemos alguma luz para este pensar.

163 Friedrich Nietzsche apud Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.79. 164 Maiúscula do autor.

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63

Sabemos com Zarader que, para Heidegger, em toda a história do

pensamento ocidental, o ser está marcado pela chancela da presença. Essa

afirmação heideggeriana é tão frequente que, segundo a autora, adquiriu estatuto

de evidência. Zarader nos rememora, em breves palavras, que essa afirmação não

sinaliza para o fato do ser ter sido pensado165 desta forma, mas, sim, para o modo

como foi compreendido, interpretado, experimentado. A autora nos explica que a

perspectiva que guiou essa compreensão ao pensamento permanece oculta, mas,

sem a mesma, nada seria possível ou inteligível. A única forma que se manteve e

que adquire algum sentido para se referir ao ser, tem como pano de fundo a

presença e, consequentemente, o tempo. Portanto, a relação entre ser e presença é

a primeira que se dá na história do pensamento ocidental. Todavia, segundo a

autora, embora o ser tenha sido experimentado como presença, essa não é

considerada na sua dimensão temporal, na sua pertença ao tempo. Neste sentido,

Zarader nos coloca que não só o ser mas, também, o tempo continuam

impensados. Em entrevista a Richard Wisser, Heidegger nos dá algumas pistas

para essa questão. Diz o filósofo: Os gregos definiam o ser como presença (Anwesenheit) do que está presente. A noção de presença lembra a de atualidade (Gegenwart), a atualidade é um momento do tempo, a definição do ser como presença refere-se, pois, ao tempo. Se tento, agora, determinar a presença a partir do tempo, e se busco na história do pensamento o que foi dito sobre o tempo, descubro que desde Aristóteles a essência do tempo é determinada a partir de um Ser já determinado. Então: o conceito tradicional de tempo é inutilizável.166

Vemos que, segundo Heidegger, a ideia de tempo que conhecemos não é

suficiente para nos acenar esse horizonte sobre o qual o ser se insere. Trata-se de

uma medida entitativa que se circunscreve a uma presença, ou seja, uma

permanência que não pode ser representada pela transitoriedade do passar do

tempo. Schneider nos explica que o entendimento de tempo que estava presente

em Aristóteles ainda é o mesmo a representar o tempo de Nietzsche. O intérprete

segue nos explicando que, no que diz respeito à experiência temporal, devemos

nos ater ao fato de que o ser deve ser pensado dentro de um horizonte mais

original, uma vez que possui uma temporalidade própria. Por isso, segundo

165 Itálico da autora. 166 Martin Heidegger, “Entrevista ao Professor Richard Wisser”, in: O que nos faz pensar?, 1996, pp.15-16. Grifo do autor.

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64 Schneider, a pergunta essencial heideggeriana seria sobre uma possível concepção

de tempo mais fundamental subjacente àquela tradicional; pergunta essa não

elaborada pela tradição metafísica. Para Heidegger, toda a metafísica repousa

sobre esse impensado, e a contemporaneidade mal tem condições de formular a

questão do ser do ente.

Nos encontramos, pois, face à questão do impensado da metafísica, na

relação do pensador com o ser do ente, uma questão que permanece difícil. A

problemática reside, precisamente, no fato de que a essência da representação

precisa da linguagem para que se possa conhecer o pensamento, e, além da

dificuldade imposta pela representação, que sofre uma forma de redução e

decomposição, somos ainda incapazes de nomear essa experiência do

pensamento, a saber, essa presença que se faz presente, de forma própria e

adequada. Assim, mesmo a mais elevada tentativa de representação, como no caso

de Nietzsche, não garante que tenhamos nos envolvido com o que é dito, ou que o

dito será compreendido. Nossa capacidade de ouvir, iludida pelos os ecos da

história, nos impede de reconhecê-lo. O filósofo reconhece que “na tentativa de

Nietzsche de pensar o ser do ente torna-se claro para nós, contemporâneos, de um

modo quase inconveniente, que todo o pensar, isto é, relação com o ser,

permanece difícil.”167 Trata-se de uma dificuldade que perseguiu toda a tradição

metafísica, uma dificuldade que reverbera ainda em nosso tempo.

Ao finalizar suas preleções de inverno Heidegger rememora Aristóteles,

dizendo:

Assim como os olhos dos pássaros da noite se comportam diante da luz resplandecente do dia, também a percepção que é própria da nossa essência se comporta diante do que a partir de si mesmo – segundo seu presentificar-se – é o mais resplandecente de todos.168

Através desse dizer, Heidegger nos reafirma a compreensão de que, ainda que o

ser do ente seja luminoso e resplandecente, continuamos cegos à luz do ser; não o

enxergamos senão através de um extremado esforço. Concluímos, com isso, a

primeira parte de Que chamamos pensar?.

167 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.92. 168 Aristóteles apud Martin Heidegger, ibidem, p.92. À exceção do trecho entre travessões que, segundo Lyra, seria um comentário de Heidegger e, portanto, não faz parte do fragmento de Aristóteles. (cf. Nota do Tradutor, ibidem, p.92.)

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65 2.1.2.1. Nietzsche e o fim da metafísica

Consideramos relevante voltarmos nosso olhar, nesta parte de nossa

caminhada, para uma questão que julgamos de extrema importância para a

compreensão dos desdobramentos que a hermenêutica heideggeriana sobre o texto

de Nietzsche nos traz: o entendimento de que a filosofia de Nietzsche é

considerada por Heidegger como o fim da metafísica. Todavia, vejamos primeiro

aquilo que o termo metafísica suscita para o pensar do filósofo.

Casanova, na apresentação ao segundo volume do escrito de Heidegger

sobre Nietzsche, nos coloca que, para Heidegger, a metafísica não significa a

mera cisão da realidade no mundo sensível e supra-sensível e nela a ideia de que

num dos lados encontramos “o conjunto de entidades que não se imiscuem na

lógica do mundo dos fenômenos”.169 De acordo com o autor, metafísica é um

termo compreendido por Heidegger como um modo distinto de instaurar a questão

acerca do ser, uma vez que, para o filósofo, o ser mesmo não é questionado. Em

Heráclito, Heidegger se refere a um tipo de pensamento concebido pela tradição

como a “questão do ser”170 que firma-se como um pensar sobre o ser, mas basta

apenas um olhar atento para se depreender que o que está em jogo é o ente e

aquilo que o ente é. O filósofo nos adverte que em relação à “questão do ser”

questiona-se, de imediato e às cegas, o ente e, por assim procederem, quando a

questão do ser e de sua verdade é colocada de maneira distinta “o ouvido não

consegue lhe dar acolhida, porque esse ouvido só escuta o que fala para si

mesmo.”171 Como é possível compreendermos essas afirmações do filósofo?

É o próprio Heidegger que nos coloca, em Introdução à metafísica

(GA40), que a situação da “questão do ser” é confusa uma vez que correntemente

investiga-se o ente enquanto tal e, nessa investigação, não se entra na temática do

ser, mas deixa-o esquecido. Isto significa que, para o filósofo, falar do ente

enquanto tal não nos orienta para a questão do ser. Heidegger entende que na

tentativa de compreender o ente em seu ser, a tradição metafísica, esquecendo-se

da diferença ontológica entre ser e ente, perguntou pelo ser e respondeu

169 Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche II, 2007, pp.vii-viii. 170 Grifo do autor. 171 Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.91.

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66 entitativamente, ou seja, o questionamento sobre o ser partiu sempre de um

horizonte de compreensão determinado pelo ente, e, nesse sentido, a questão

mesma do ser não foi colocada. Para o filósofo, a questão do ser tem a tendência

a se identificar com a questão do ente, exatamente porque a sua proveniência

continua na obscuridade. Por outro lado, falar do ser enquanto tal, tampouco seria

correto, uma vez que isso nos orientaria para uma ordem superior, transcendental,

que não corresponde às exigências do ser pensadas por Heidegger.

Segundo Casanova, Heidegger percebe que toda a história do pensamento

ocidental, desde Platão até Nietzsche, é determinada pelo esquecimento do ser.

Trata-se, como vimos, de um esquecimento que se consolida na própria ausência

sobre a questão acerca do ser. Benedito Nunes, em O Nietzsche de Heidegger,

também entende que a história do ser, pensada ao longo de toda a tradição

metafísica, nos deixa como legado uma grande lacuna. Para o intérprete, ao pensar

o ser, mas deter-se no ente, equipara-se ambos, esquecendo-se do diferencial que

os separa. Nunes também compreende que, para Heidegger, a história do

esquecimento do ser inicia-se com Platão e termina com Nietzsche. O autor nos

mostra que o esquecimento do ser em favor do ente é apresentado ao longo de

toda a história do pensamento ocidental através de uma diversidade de modos, tais

como: a ἰ3/4 de Platão; a $ὐ*24 de Aristóteles; o ens criator da época medieval;

na modernidade, o sujeito pensante – Ego Sum – de Descartes; a relação da

vontade ao saber, com Schelling; Hegel, com o saber absoluto; o eu penso

desdobrando-se no eu quero, em Fichte; e a vontade – Ego Volo – como vontade

de poder, em Nietzsche. Segundo o intérprete, a história do ser passa ainda pela

coisa em si kantiana, reduzida por Schopenhauer à vontade universal. O intérprete

nos coloca que o que há de comum entre essas configurações, ainda que uma ou

outra se articule, é o esquecimento da diferença entre ser e ente.172

No que diz respeito ao pensar de Nietzsche, Hans Sluga, em “Heidegger’s

Nietzsche”, entende que, assim como todos os outros pensadores na busca das

principais causas de todo o pensamento metafísico, Nietzsche também não

172 Apesar de termos nos detido anteriormente à questão do ser na modernidade através da análise de Heidegger sobre a vontade, entendemos que se faz necessária uma visão mais alargada, esboçada aqui em suas linhas essenciais, sobre os diferentes princípios ordenadores invocados pela metafísica, no sentido de caracterizar a história do ser.

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67 conseguiu enfrentar a questão e, por isso, permaneceu na abrangência do

esquecimento do ser. Casanova avança nessa compreensão ao colocar que, para

Heidegger, Nietzsche não entende mais a tarefa da filosofia como a de buscar uma

maneira isenta para definir “o ser do ente enquanto tal [...]”.173 Segundo o autor, o

filósofo compreende que essa pergunta nem mesmo é formulada criticamente por

Nietzsche. Para Heidegger, o ser tornou-se um mero vapor na filosofia de

Nietzsche, tão desvalorizado que desaparece diante da vontade de poder. Por

outras palavras: Nietzsche não equipara mais ser e verdade como valores

supremos, para ele a verdade é apenas tolerada na medida em que é considerada

como um valor indispensável à manutenção da vontade de poder.174 Casanova nos

chama atenção para o fato de que, para Heidegger, subjaz à filosofia de Nietzsche

a ideia de que o ser e a verdade são concebidos “em função da concepção do

caráter soberano do devir e do pensamento da vontade de poder como o fato

último da realidade”175, i.e., ser e verdade se dariam em uma dimensão derivada da

vontade de poder, sendo essa última uma disposição e conformação do mundo

ôntico. Entendido por Nietzsche como um valor de segunda grandeza, o ser fica

ligado à vontade de poder que é o princípio originário da configuração da

realidade. Com isso, a pergunta pelo ser desaparece do pensamento nietzschiano e

cai no esquecimento radical. O fim da metafísica significa, pois, a dissolução

completa da presença do ser em um produto da vontade que quer sempre a si

mesma e controla tudo o que é e pode ser.

Benedito Nunes também apresenta semelhante colocação. O autor entende

que, através do texto de Nietzsche, ficam evidenciados para o pensar de

Heidegger, o declínio e a decadência da época como traços do niilismo e da total

perda de valores. Segundo o autor, para Heidegger, Nietzsche escreve o último

capítulo da história da metafísica ao afirmar que o ser é vapor, erro e ilusão. Este

término se dá, concomitantemente, ao mais profundo esquecimento do ser.

Segundo Nunes, Nietzsche inverte as lentes do platonismo, jogando para o mundo

das aparências aquilo que Platão havia reservado apenas para o mundo inteligível:

o real verdadeiro. Isto significa que a certeza e a verdade, assim como as leis

173 Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Matin Heidegger, Nietzsche II, 2007, p.viii. 174 O autor nos coloca que essa compreensão heideggeriana é apresentada na preleção “O niilismo europeu”, em 1940. (cf. Ibidem, p.ix.) 175 Ibidem, p.ix.

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68 lógicas e científicas, são dadas por medidas e parâmetros de nossas compreensões

do real. A este declínio do mundo subsiste somente o ser como vontade de

potência, e é a vontade que dá a medida para a dominação e determina que só é

real aquilo que pode ser objetivado. O intérprete compreende que a vontade de

potência é apontada por Heidegger como a vontade que continua querendo a si

mesma, a vontade de vontade. Nesse sentido, o eterno retorno do Mesmo seria “o

suprassumo do niilismo”176, pois perpetuaria a vontade de poder que busca

eternizar-se querendo a si mesma. O autor ainda nos coloca que a vontade de

poder, o eterno retorno e o niilismo são peças fundamentais no pensar de

Heidegger sobre Nietzsche, uma vez que expressam a consumação da metafísica e

o fechamento da história do ser.

Concluímos, com isso, a metade do nosso percurso, porém, antes de

iniciarmos as preleções do verão de 1952, ainda uma questão se põe para nós:

qual seria o propósito de Heidegger ao iniciar as preleções sobre Que chamamos

pensar? com Nietzsche, para só então voltar-se para Parmênides? Não apresenta

essa escolha uma inversão histórica? Entendemos, com o que até aqui esforçamo-

nos em apresentar, que a trajetória do pensar heideggeriano busca evidenciar o

caminho que o pensamento ocidental seguiu a partir de Platão – momento em que

se cunhou a identidade entre pensamento e lógica –, chegando até a temporalidade

nietzschiana e o fim da metafísica, para com o retorno à aurora grega, neste caso,

Parmênides e alguns fragmentos do poema Da Natureza, buscar uma nova vereda,

perscrutar um novo caminho em direção ao pensamento do ser. Busquemos, pois,

seguir as marcas do caminho deixadas por Heidegger.

2.2. As preleções do verão de 1952

A segunda parte do escrito Que chamamos pensar? nos leva, como

anunciamos, à análise de alguns fragmentos do poema Da Natureza de

Parmênides. Todavia, essa segunda parte do livro, dividida em onze capítulos, não

adentra o pensamento de Parmênides de imediato. Heidegger, em sua dinâmica

própria, nos conduz ao pensar de Parmênides através de uma longa reflexão sobre

a pergunta: O que é que nos chama a pensar?.Vejamos com isto se dá.

176 Benedito Nunes, O Nietzsche de Heidegger, 2000, p.55.

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69 2.2.1. O chamado

Heidegger retoma a questão “Que chamamos pensar?”177 ciente de que esta

apresenta uma multiplicidade de sentidos possíveis em sua formulação, a saber:

qual é o significado da palavra “Pensar”178?; qual é o traço fundamental da

doutrina do pensar, i.e., segundo a lógica?; qual é a exigência para o bem pensar?;

e, por último, que é isso que nos chama a pensar? Segundo Schneider, a

justificativa para suscitar tais possibilidades para a pergunta resulta do fato de que

a perscrutação heideggeriana sobre a questão do pensar se orienta, em grande

parte, por aquilo que as próprias palavras sugerem e indicam. Nesse sentido,

palavras como – pensar, desejo, memória, cuidado, reflexão, recordação, destino –

se circunscrevem dentro do campo semântico das quatro perguntas levantadas

pelo filósofo. É, para Heidegger, na mútua pertença desses sentidos que a

pergunta pode ser feita e que podemos vislumbrar uma resposta. Com isso,

indagamos: de que forma podemos pensar essa multiplicidade de sentidos em uma

unidade? Haveria uma hierarquia nesses modos de forma a enunciar as partes de

um todo?

O pensador entende que essa unidade é expressa a partir do sentido da

última pergunta, é ela que nos dá a medida: o que é que no pensar nos chama a

pensar?, ou melhor dizendo, que é “Aquilo que no pensar nos solicita (verweist) e

desse modo nos orienta (anweist)”179, não apenas no impulso, mas, sobretudo, no

desejo de pensar? Schneider compreende que nessa requisição haveria uma

exigência, uma inevitabilidade no pensar, algo que se manifesta como uma graça

a acontecer de forma inevitável. Todavia, Heidegger nos lembra que essa

solicitação não tem, de forma alguma, apenas o sentido do impulso para a

efetivação do pensamento. Para o filósofo, aquilo que nos solicita faz com que

desejemos o pensar e, assim, sejamos pensantes. A pergunta “Que nos chama a

pensar?” surge, pois, como uma forma de delinear um caminho, uma diretriz.

Num primeiro momento, Heidegger nos mostra que podemos

inadvertidamente achar que, apesar de envolver o homem, essa pergunta o faz

apenas na medida em que é nele que esse processo acontece, é nele que realiza-se 177 Grifo do autor. 178 Grifo do autor. 179 Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.95. Maiúscula do autor.

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70 o pensar. Entendido dessa maneira, o pensar é visto como objeto de uma pesquisa,

e o homem em sua natureza, aquele que realiza o pensar, fica fora da pergunta,

pois não é coisa que uma pesquisa sobre o pensar deva se deter. Por outro lado, se

na pergunta “Que chamamos Pensar?” nos direcionarmos para Aquilo que de fato

acontece em nós, então, estamos nós mesmos enredados na trama dessa questão e

a pergunta deixa de se relacionar diretamente com o objeto, deixa de ser

genuinamente um problema da ciência, uma vez que nós, em nossa essência,

somos interpelados. Segundo Schneider, a frase “Que nos chama a pensar?” está

intrinsecamente relacionada ao homem. Essa frase nos remete a nós mesmos, uma

vez que não temos como saber o que seja pensar sem que já estejamos inseridos

na própria experiência de pensar. Estamos no âmbito daquilo que nos interpela em

nossa essência. Não há no pensar, como vimos no início do capítulo, uma cisão

entre sujeito e objeto. Trata-se, nas palavras de Zarader, de “reconduzir o

pensamento ao seu elemento, lembrando a sua pertença ao ser”.180 Mas, o que esse

chamado nos diz?

Segundo Heidegger, quando enunciamos a pergunta “Que chamamos

pensar?” imediatamente nossa atenção se dirige à representação que fazemos do

nome “pensar”, por isso, num primeiro momento, chamar significa nomear, ser

nomeado. Entretanto, quando perguntamos por Aquilo que nos convoca a pensar,

então, não mais nos referimos ao significado primeiro, mas a um significado

novo, a uma solicitação, uma exortação que nos dispõe a sermos alcançados por

algo; um chamado que sutilmente nos interpela a uma sintonia com algo que pode

acontecer. Apesar de nos parecer estranho, chamar pode, então, ter o sentido de

“orientar, cobrar, deixar-se alcançar, trazer ao caminho, en-caminhar (be-wegen),

prover caminho”181.

Mas, por que o sentido habitual de chamar, o de ser nomeado, nos parece

natural e preferencial em nosso pensamento? Heidegger entende que fazemos essa

escolha inconscientemente. O filósofo nos orienta para o fato de que é justamente

aquilo que soa o mais estranho, o mais próprio da palavra, que, exatamente por ser

único, é capaz de originar as demais possibilidades de sua acepção. Essa

orientação nos leva, então, à compreensão do chamar como um chamamento, uma 180 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.152. 181 Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.98.

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71 solicitação que se deixa alcançar, um sopro na alma que nos envolve por sua

chegada e presença. Por outras palavras: a pergunta “Que chamamos pensar?” nos

remete diretamente ao questionamento daquilo que nos dirige a palavra a fim de

que pensemos, e isso é, no entender de Heidegger, o inabitual. Não estamos de

forma alguma acostumados a esse dizer da palavra.

Para Heidegger, a essência da língua possui a capacidade de jogar com o

nosso dizer, de tal modo, que há um esforço enorme no sentido de

compreendermos o que é o mais próprio da palavra. Por conta dessa dificuldade, o

homem se vê sempre rendido ao seu sentido habitual, ao dizer corrente, tomando-

o, até mesmo, como o único padrão. Assim, segundo Heidegger, o que seria o

sentido mais próprio torna-se uma transgressão, algo fora do padrão, uma vez que

não atende ao conceito corrente. Schneider acrescenta que aquilo que se mostra

apenas conceitualmente esconde a sua origem. Segundo Heidegger, estamos tão

embriagados pelo sentido habitual das palavras, escorados no uso do senso

comum, que nada percebemos do jogo superior traçado pela essência da língua.

Somente quando prestamos atenção, quando nossos ouvidos estão aguçados,

podemos, de forma cautelosa, nos aproximar daquilo que é o mais próprio do seu

dizer.

Heidegger percebe que “dar nome a alguma coisa”182 – sentido corrente e

habitual da palavra “chamar”183 – não está tão distante do seu sentido mais próprio

e original. Todavia, o filósofo nos adverte que quando nomeamos alguma coisa,

estabelecemos uma relação entre nome e coisa. Nessa relação, o nome passa a ser

considerado como um objeto, assume um caráter objetivo, pois “[...]

representamos a relação entre nome e coisa como uma correlação entre dois

objetos diferentes”.184 Nos encontramos, assim, no reino da representação.

Segundo Heidegger, essa correlação entre a coisa e seu nome acaba por vedar

qualquer outra possibilidade de compreensão.

Para além do nomear, o vocábulo “chamar” pode ser compreendido como

evocar na palavra, e aquilo que é evocado no chamar-a-vir, presentifica-se e, por

182 Grifo do autor. 183 Grifo do autor. 184 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.100.

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72 fim, “chama-se”185. Chamar repousa, então, numa evocação. O filósofo entende

que quando compreendemos a palavra “chamar” em seu sentido próprio, “no

sentido da pergunta por aquilo que a nós apela e, com isso, chama-nos a

pensar”186, a questão “Que chamamos pensar?” pode ser, enfim, formulada como

deveria ser e as três outras vias de formular a pergunta podem ser alcançadas.

Mas, o que realmente nos chama a pensar? O que, nas palavras de Heidegger,

“apela a nós para que pensemos e assim sejamos, como pensantes, aquilo que

somos?”187

Para Heidegger, há no pensar um resgate da nossa essência que é evocada

e que precisa do pensar para ser considerada; o que nos chama a pensar reivindica,

através do pensar, o cuidado com a própria essência. O filósofo nomeia como o

mais problemático Aquilo que nos dá a pensar. Assim, é o problemático por

excelência aquilo que nos determina essencialmente e que, antes de tudo, torna-

nos mais próprios ao pensar. Schneider nos coloca que “o procurado que se

procura elucidar determina de alguma maneira a quem o procura [...]”.188 Para o

intérprete, a maneira pela qual o ser se manifesta requer um caminho de

descoberta, que se firma pelo aprofundamento daquele que o percebe pré-

compreensivamente. Todavia, Schneider nos coloca que essa pré-compreensão

nos leva a conceber o ser a partir de uma reflexão que já se encontra presente na

esfera do pensar, objetivada pelo pensamento representacional, e não aquilo que

torna possível o próprio pensar. O intérprete ressalta que o ser não é

fundamentado e nem gerado ou realizado pelo pensamento. Mas, ao contrário, o

ser desvela-se no pensar, de tal forma que ao fazê-lo dá ao homem o que pensar.

Com isso, consuma “a sua relação com a essência do homem pela oferta de si na

compreensão por meio da linguagem”.189

Por isso, no entendimento de Heidegger, pensar é uma dádiva, a maior

riqueza que possuímos em nossa essência, e na pergunta “Que nos chama a

pensar?” indagamos não só pelo que nos agracia com essa dádiva, como por nós

185 Grifo do autor. 186 Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.101. 187 Ibidem, p.101. 188 Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, 2005, p.14. 189 Ibidem, p.15.

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73 mesmos em nossa essência, pois somente somos capazes de pensar “na medida

em que somos agraciados com o mais problemático, presenteados com o que

desde o princípio e a perder de vista gostaria de ser pensado”190. Uma vez

agraciados, o desejo de pensar torna-se também crucial para que possamos pensar

de modo próprio.

Heidegger percebe que raramente nos envolvemos com o pensar. O

chamado ao pensar é totalmente livre. Nesse chamado, Aquilo que nos chama, o

faz em liberdade para que ali possa existir o humanamente livre, e é nessa

evocação que a essência original da liberdade oculta-se, visto que dá ao homem

algo de sua essência. Mas, o que é para Heidegger a essência original da

liberdade? Em “Sobre a essência da verdade” (GA9), Heidegger volta seu olhar

para a questão da essência da liberdade em sua relação essencial com a verdade.

Essa conexão, segundo o filósofo, nos levará ao domínio no qual se essencializa

originariamente a essência da liberdade. A liberdade assim compreendida é aquilo

que deixa que o ente seja o que ele é. Segundo o filósofo, não há nisso uma

omissão ou indiferença, mas, ao contrário, um “entregar-se ao aberto [...] que cada

ente traz, por assim dizer, consigo”.191 Zarader nos esclarece que a questão da

essência da liberdade é pensada por Heidegger a partir de “uma verdade ‘mais

original’”192. A autora ressalta que não se trata de uma liberdade do homem em

relação às coisas, aos entes. Mas, trata-se da “liberdade do ser no duplo sentido

deste possessivo: liberdade concedida pelo homem ao ser, e, de uma certa

maneira, liberdade concedida pelo ser ao homem – liberdade de ser na verdade”.193

De acordo com a intérprete, a liberdade assim compreendida é o traço de união

entre o ente e o ser, e não é porque ela ocupa um lugar intermediário entre ambas

as verdades – de ser e ente –, que ela é apenas passagem de uma à outra, mas

porque participa de forma enigmática de uma e de outra. Segundo a intérprete, “é

só por esta dupla participação de essência que ela pode ser uma função de

articulação de uma com a outra”.194

190 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.106. 191 Martin Heidegger, “A essência da verdade”, in: Marcas do caminho, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p.200. 192 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.70. 193 Ibidem, p.72. Grifo da autora. 194 Ibidem, p.75. Grifo da autora. Ainda no que diz respeito a essa posição intermediária entre a verdade do ente e a verdade do ser, Zarader acrescenta que este “traço de união é o que separa e

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Segundo Heidegger, no sentido de uma compreensão da palavra “pensar”,

somos remetidos, mesmo que de forma imprecisa, a algo da ordem do espírito

humano: diz-se tanto da ordem de atos de vontade quanto de atos de pensamento.

Neste sentido, na pergunta “Que nos chama a pensar?” indagamos não somente

para o lugar de onde parte o chamamento ao pensar, mas igualmente sobre o

que195 ao pensar nos chama. Denota-se, neste movimento, não só uma evocação,

mas também algo já nomeado, compreendido, mesmo que de modo aproximado.

Heidegger nos coloca que, de um modo geral, a aproximação dada pela língua

habitual é suficiente para o uso corrente. Todavia, o filósofo entende que, nesse

caso, deve-se buscar a palavra como palavra. Assim, na pergunta: o que é

nomeado na palavra pensar?, faz-se necessário nos aventurarmos no jogo da

língua, de forma a compreendermos o que, em nossa essência, o pensar tem a

dizer.

2.2.2. O dizer das palavras

Heidegger concede ao pensar e ao poetizar, ambos com essências

singulares e distintas, o estatuto do dizer essencial. Para o filósofo, a língua é

pensada habitualmente apenas como um meio de expressão. Porém, o pensar e o

poetizar “nunca se valem de antemão da língua para com sua ajuda se manifestar;

são, ao contrário, em si mesmos o falar original, essencial e, por isso,

simultaneamente derradeiro, aquele que a língua fala por meio do homem.”196

Segundo Zarader, os poetas e os pensadores são os únicos que cumprem e

realizam o seu destino, são os que se devotam ao ofício de zelar pela linguagem.

O filósofo entende que o pensar e o poetizar dizem palavras, não termos.

Para o pensador, “as palavras aparecem primeira e superficialmente como

termos.”197 Os termos são da ordem do sensível, do som, algo que nos é dado

imediatamente, na medida em que aparecem como verbalmente ditos na nossa

fala. À palavra une-se o sentido e o significado, algo da ordem do não sensível.

Heidegger nos coloca que é no ato doador de sentido que o termo se abastece e se

que une o Da-sein no meio deste. A liberdade é, no sentido estrito, o que permite ao ‘ser’ ter um ‘aí’, ao Sein ter um Da. E é precisamente porque ela é esta permissão, dada ao ser, de ser ‘aí’, que em troca define e clarifica a essência do Dasein [...].” (cf. Ibidem., p.72.) 195 Itálico do autor. 196 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.107. 197 Ibidem, p.108.

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75 torna significativo, torna-se palavra. Para o filósofo, os termos são preenchidos ou

esvaziados de sentido, da mesma forma que colocamos ou tiramos água de um

balde. Assim, à simples vista, aquilo que se mostra é sempre o habitual, algo que

nos retira do habitar essencial198 da palavra. De acordo com Zarader, estamos

ancorados em ideias preconcebidas que nos delimitam o campo de qualquer

investigação sobre a linguagem, sendo o principal pressuposto o de que é o

homem quem fala e o faz por meio da língua. Dessa forma, ficam estabelecidos

de imediato o estatuto da linguagem e a sua função199. O primeiro, entendido

como instrumento, e a segunda, como exteriorização do pensamento; uma função

de expressão, apenas. Por conta disso, Zarader entende que quando se quer falar

algo sobre a linguagem, o escopo do discurso está logo delimitado por uma

concepção prévia. Diz a intérprete: “Determina-se (a linguagem) como reflexão

de um sujeito sobre um objeto, exigindo um método apropriado, com vistas a

chegar ao único objetivo concebível a partir dessas premissas: o isolamento da

essência do objeto”.200 Para a autora, em se tratando de Heidegger, tudo isso deve

ser abandonado, pois, para o filósofo, a linguagem não pode ser, de forma alguma,

objeto para o pensamento. Na contramão de tudo isso, Heidegger compreende

que é o homem que se encontra a serviço da linguagem. Mas, como entender isso?

Entendemos com Zarader que, para Heidegger, a relação tradicionalmente

determinada entre o homem e a linguagem, expressa na frase “o homem fala”201,

deve ser invertida. Não é o homem que fala, mas a linguagem em si que se serve

do homem para falar. Há, segundo o filósofo, uma correspondência entre o falar

humano e o falar da língua; correspondência entendida no sentido múltiplo do

termo alemão Entsprechen e que define o dizer do homem como uma resposta.

Todavia, “o homem só pode falar na medida em que ‘escuta’ a linguagem.”202

Zarader nos aponta que o dizer dos homens é essencialmente uma resposta.

Todavia, somente aquele que prestou atenção ao chamado e o ouviu é que pode

restituí-lo na palavra.

198 Itálico nosso. 199 Itálicos da autora. 200 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.237. 201 Grifo da autora. 202 Marlène Zarader, op. cit., pp.239-240.

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Segundo Heidegger, entre aquilo que escutamos e a palavra em sua

essência, em seu habitat original, há um abismo enorme.203 Zarader nos aponta que

a escuta à qual o filósofo se atém é a escuta em seu sentido triplo: de audição, de

obediência e de pertença. Assim, para o filósofo: “falar, é antes de mais escutar

[...]. Não falamos apenas a linguagem, falamos a partir dela [...]. Só a ouvimos

porque lhe pertencemos”.204 É, pois, exatamente nesse lugar do jogo da língua,

nessa relação de correspondência entre o que é “falado” e o que é “escutado”205,

que se abre a possibilidade para que as palavras possam se expressar, possam vir-

a-dizer, pois estas não são como baldes,

são poços que o dizer cava, poços novos a achar e cavar de tempos em tempos, que facilmente se fecham, mas de vez em quando também jorram. Sem essa ida contínua aos poços, os baldes e tonéis ou permanecem vazios ou seu conteúdo estagnado.206

Nesse sentido, para que alcancemos o jogo da língua faz-se necessário uma

atenção ao dizer das coisas, faz-se necessário nos desprendermos do habitual, o

que, segundo Heidegger, é muito difícil em nossos tempos. No entender do

filósofo, qualquer tentativa de atenção, como a ora deferida aos verbos pensar e

chamar, será tomada como uma análise parcial e improdutiva, uma vez que não

nos remete ao âmbito do concreto das coisas. Daí, a necessidade de um

envolvimento com a história da língua para acercar-se do espaço de jogo do dizer.

A história da língua abre, por certo, uma possibilidade de caminho.

Entretanto, o filósofo entende que a filologia é uma ciência que não pensa como a

filosofia. O caminho do pensar direcionado e mediado pela atenção ao dizer das

palavras é o caminho da filosofia, mas este é um caminho de conhecimento

203 Heidegger debruçou-se sobre a questão da essência da linguagem em várias conferências e cursos reunidos na obra intitulada A caminho da linguagem (GA12), publicada em 1959. Todavia, na conferência nomeada Língua de tradição e língua técnica (GA80), proferida em 1962 na Academia de Combourg, Heidegger aborda a questão da língua e da técnica, tão presentes em Que chamamos pensar?, e que serve para uma compreensão daquilo que aqui desejamos esboçar. Para o filósofo, é necessário que através do pensamento tenhamos a experiência daquilo que é, pois, do contrário, estaremos presos ao peso de uma ortodoxia acadêmica que não nos coloca em vantagem em relação à força da era industrial. Segundo Heidegger, é preciso nos direcionarmos em sentido oposto ao que possui caráter utilitário e prático, para, com isso, nos aproximarmos do vazio, do inútil, do lugar onde habita o sentido das coisas. Devemos, pois, nos aproximar das palavras não no sentido de suas representações, daquilo que nos é dado, mas sim, de forma a torná-las próprias, harmoniosamente na nossa fala e na nossa mente, com aquilo que é. (cf. Martin Heidegger, Língua de tradição e língua técnica, Lisboa: Passagens, 1995, pp.7ss. Grifos do autor.) 204 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.240. 205 Grifos nossos. 206 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.109.

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77 suprahistórico, que reclama para si uma certeza incondicional, diverso dos

conhecimentos da história que se atém a fatos contingentes. Para Heidegger, é

determinante o fato de que a filosofia não se fundamenta sobre nenhuma ciência,

mas o contrário – que todas as ciências fundam-se na filosofia. Na medida em que

as ciências fundam-se na filosofia, esta fica impossibilitada de obter qualquer tipo

de fundamentação através da elucidação do significado das palavras. Então,

perguntamos: como podemos lançar alguma luz sobre o dizer das palavras?

Segundo Zarader, na interrogação sobre a linguagem, Heidegger não parte

de um pressuposto, “mas de uma proveniência assumida”207. Diz a autora: “porque

se abriu na luz do ser, a linguagem não pode ser compreendida como simples

atividade humana; nesta medida, a única formulação possível é: a linguagem

fala”.208 Todavia, para que a linguagem fale é necessário o falar do homem, e isso

só é possível na medida em que o homem ouve o chamado e lhe responde na

linguagem. De acordo com Zarader, para Heidegger, não nos damos conta da

essência da linguagem, a não ser na medida em que ela nos olha. Nesse sentido, a

linguagem não pode ser de forma alguma objeto do pensamento. No entendimento

do filósofo, não ser possível conhecer a essência da linguagem através dos

conceitos do conhecimento utilizados na representação, não significa uma falta,

mas, pelo contrário, é um “privilégio pelo qual somos reenviados a um domínio

insigne, aquele onde nós, que somos aqueles que somos precisos (die

Gebrauchten) para falar da linguagem, habitamos enquanto mortais”.209 Dessa

forma, no jogo da língua aventado por Heidegger, entendemos com Gadamer, em

Verdade e método, que “o verdadeiro sujeito do jogo não é o jogador, [...] mas o

próprio jogo. É o jogo que mantém o jogador a caminho, que o enreda no jogo e o

mantém no jogo.”210

2.2.3. Gedanc – o pensar do coração

Heidegger passa, então, a jogar o jogo da língua na perscrutação das

palavras pensar, pensado e pensamento. De acordo com o filósofo, embora a

filologia não pense como a filosofia, essa pode produzir algum sinal dado pela

207 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.240. 208 Ibidem, p.240. 209 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.240. 210 Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p.181.

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78 história da língua, algo que indique um caminho. Assim, interrogamos com

Heidegger: que sinal as palavras pensar, pensado e pensamento nos dão? Ou

melhor, a quê, propriamente, essas palavras nos remetem?

Abre-se com as perguntas uma nova vereda para o pensar. Sob o escopo da

história dessas palavras, mesmo presumidamente insuficiente, Heidegger encontra

na palavra Gedanc, oriunda do alemão arcaico, uma pista para o dizer original

desses vocábulos. O sentido inferido pelo pensador para o termo funda-se tanto na

memória como na gratidão, algo que essencialmente se avizinha, se assenta e está

presente em nós. Indaga-nos o próprio filósofo:

É o pensar um agradecer? Que designa aqui agradecer? Ou é a gratidão que repousa no pensar? A memória é apenas um recipiente para o pensado do pensar, ou será que o pensar repousa ele próprio na memória? Como se relacionam o pensar e a memória?211

Segundo Heidegger, nessa palavra alemã encontramos algo que se reúne

na memória, algo que também diz respeito ao ânimo, ao encorajamento, ao

coração.212 O filósofo nos diz que no Gedanc se consubstancia a memória e a

gratidão. Memória aqui entendida não no mero sentido de capacidade de

recordação, mas no “ânimo como um todo, na acepção da permanente reunião

íntima em torno daquilo que sopra à alma, essencialmente, todo o sentido”213. A

esse estado de perene união do ânimo em torno de algo que dá sentido, junta-se o

traço de um reter que nada deixa escapar do essencial, um enlevamento que dura.

Heidegger nos diz que é “a partir da memória, e em seu interior, (que) a alma

derrama [...] o seu tesouro de imagens”214 que, ali retido, é exumado na memória

pelo relembrar. Essa difícil compreensão, acrescentada da palavra alemã Gemüt –

alma, coração –, também entendida por Heidegger como medida para o pensar, é

analisada por Zarader como “a alma reunida em si mesma”215. Segundo a autora,

não se trata de uma recordação específica, mas de nos voltarmos em fidelidade 211 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.116. Segundo Lyra, em nota do tradutor, “não há como restituir em português os nexos etimológicos que em alemão ligam o pensar ao rememorar e ao agradecer. (cf. Nota do tradutor, ibidem, p.116.) 212 Nas aulas de passagem, Heidegger ainda acrescenta ao significado de Gedanc: “o ânimo, o coração, o fundo afetivo (Herzensgrund), o mais interno ao homem, o que mais amplamente se estende para fora, até o limite mais extremo, e isso de forma tão categórica que, pensada corretamente, não sobra apoio para a representação desse dentro e fora”. (cf. Ibidem, p.121.) 213 Martin Heidegger, op. cit., p.117. 214 Ibidem, pp.117-118. 215 Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, Stanford, Ca.: Stanford University Press, 2006, p.68.Tradução nossa.

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79 para com aquilo que nos chama, “para essa voz silenciosa do ser que fala na

linguagem.”216 Para a intérprete, é por este motivo que o pensamento fiel será

inseparavelmente a lembrança e a memória desse dom que vigora nas palavras.

Heidegger explica que o termo Gedanc une-se também ao sentido de

gratidão (dank), quando visita em rememoração aquilo em torno do que

permanece reunido. Assim, na memória que nos aproxima de nossa essência,

agradecemos na medida em que pensamos o mais problemático. Com a memória,

diz o filósofo, “o ânimo se pensa em relação Àquilo de que faz parte e

depende”217, não como uma sujeição, mas como algo que ouve e atende em

reconhecimento e gratidão por si mesmo. O filósofo nos faz entender que o pensar

nos é concedido como um dote, e, por isso, devemos ter gratidão por aquilo que

possuímos através de uma dádiva. Heidegger compreende que recebemos muitas

dádivas, sendo, a mais digna de todas, a nossa própria essência que na gratuidade

nos faz ser o que somos.

A partir da pista obtida no dizer da palavra Gedanc, Heidegger nos dá a

medida daquilo que vem à fala no jogo da língua para o “pensar”, o “pensado” e o

“pensamento”218. Foi possível, com isso, nos aproximarmos da origem inaudita

daquilo que “memória” e “gratidão”219 inferem. Todavia, Heidegger nos adverte

que ainda não somos capazes de perceber essa unidade essencial presente.

Segundo o filósofo, esse pensar habitando o seio da memória é tão difícil que

raramente dele nos aproximamos. Zarader nos coloca que mesmo sendo a

pertença ao ser a constituição da essência mais próxima do pensamento, essa não

é nada evidente. Para a autora, o que é mais simples e mais essencial é sempre, por causa dessa própria simplicidade, o que não pode ser verdadeiramente habitado senão no termo de um longo caminho; e é, pelo contrário, o que é mais aviltado, mais afastado da origem autêntica.220

216 Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, Stanford, Ca.: Stanford University Press, 2006, p.68. Tradução nossa. 217 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.118. 218 Grifos do autor. 219 Grifos do autor. 220 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, pp.152-153.

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80 Mais à frente, Zarader conclui dizendo que: devolver o pensamento ao seu lugar

mais próprio e mais inaudito é permitir-lhe o retorno ao lugar aonde sempre

esteve, mas que, apesar disso, nunca se edificou.

Sabemos, a partir de Heidegger, que aquilo que foi trazido à luz pelo

gedanc é muito mais precioso do que o significado habitual das palavras em

questão. É, pois, segundo o filósofo, a atenção e o cuidado concedidos ao nomear

da palavra “pensar”221 que nos levam ao quarto modo da formulação da questão

como doadora de medida. Assim, na pergunta – que é isso que nos chama a

pensar? – fazemos memória e agradecemos por algo que nos é dado, uma dádiva

concedida que nos faz ser o que somos, a nossa própria essência: o pensar que dá

a pensar o mais problemático. Heidegger compreende que a gratidão aqui

suscitada não é um ressarcimento, mas um acolhimento, um “trazer a coisa a sua

pertença e aí então deixá-la”.222 Nas palavras de Zarader: “se o pensamento deve

ser fiel ao ser, é em primeiro lugar e antes de tudo porque, situando-se no ser,

deve guardar a memória de si mesmo, permanecer ordenado pela dignidade da sua

própria essência.”223

Heidegger passa, então, à compreensão da palavra ânimo, também

presente na memória. Essa, não compreendida na acepção moderna do lado

sentimental da consciência humana traduzida por animus, mas, no sentido daquilo

“que é essencial na natureza humana como um todo”.224 O filósofo nos coloca que

o sentido de natureza humana, aquilo que determina o homem a partir de sua

essência, tampouco tem a ver com o sentido dado por anima. O vocábulo grego

nos fornece o fundamento de determinação de cada ser vivo, mas, ao mesmo

tempo, situa o homem na ordem das plantas e dos animais, sem levar em conta a

evolução natural concedida pela razão.225 O pensador entende que mesmo quando

221 Grifo do autor. 222 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.123. 223 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.154. 224 Martin Heidegger, op. cit., p.124. 225 A partir do escrito Da Alma de Aristóteles, nos parece não ser possível afirmar que o homem possua alguma faculdade que o distinga de todos os demais viventes. De fato, uma vez que o homem possui todas as faculdades explicitadas por Aristóteles, parece haver uma relação de continuidade entre o homem e todos os outros viventes no que se refere às faculdades de sua alma. De um lado, o intelecto não poderia ser dito sua distinção, pois este é também faculdade de seres análogos ao homem, como também de Deus. As palavras de Aristóteles, “ [...] outros detentores da faculdade pensante e o intelecto, que é o caso do ser humano e de qualquer outro ser, possivelmente existente, de condição análoga ou superior à humana” parece confirmar-nos isso a

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81 esse é compreendido a partir da racionalidade, desconsidera-se o homem em sua

essência. Segundo Heidegger, essa é a concepção há muito tempo usada pela

antropologia filosófica. O filósofo nos aponta que no sentido de pensar o homem

como natureza humana226 temos, antes de mais nada, que perceber que o homem é

“aquele ser que se consubstancia ao apontar para aquilo que é, [...] (e) aquilo que

é, não se esgota imediatamente no que é real ou fático.”227 Todavia, esse traço

essencial do homem jamais foi percebido. Dessa forma, nem a palavra grega

anima e nem o vocábulo latino animus, entendido como sentido e roupagem da

natureza humana, são doadores de medida daquilo que é o traço fundamental da

natureza do homem.

No sentido de adentrarmos algo ainda mais essencial, Heidegger nos

coloca que devemos nos direcionar, a partir do que é nomeado por Gedanc, ao

domínio daquilo que se mostra não apenas como palavra, mas na própria coisa-a-

pensar. A partir dessa pista, precisamos nos encaminhar para aquilo que ela

aponta. A memória, como algo que acolhe e oculta aquilo que nos dá a pensar,

tem a sua essência no resguardar. Ela aponta para o âmago do que cobre tudo o

que nos dá a pensar e é, por isso, nomeada pelo filósofo como salvaguarda. O

filósofo nos coloca que somente a salvaguarda dá como livre dádiva a coisa-a-considerar, o mais problemático. A salvaguarda não é, todavia, nada vizinho e exterior ao mais problemático. Ela é ele próprio, sua essência, a partir e no interior da qual o mais problemático dá-se a pensar, a saber, sempre o Mesmo, tempo após tempo.228

A salvaguarda é, pois, aquela que na gratuidade nos doa o mais problemático, que

no mais intrínseco de si mesma oferta sua essência, a partir da qual dá-se a pensar

sempre o Mesmo.229 Entendemos, com Heidegger, que somente aí onde a

salvaguarda do mais problemático existe é que o pensar do coração – o surgir de

cada coisa-a-considerar – se abre para o seu acontecimento.

Considerando a questão da salvaguarda, Zarader nos rememora o dizer de

Heidegger na carta “Sobre o Humanismo”(GA9). Ali, diz o filósofo: “o homem

que Heidegger se refere. (cf. Aristóteles, Da Alma, (tr.) Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2011, p.78.) 226 Itálico do autor. 227 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.124. 228 Ibidem, p.126. Maiúscula do autor. 229 Maiúscula do autor.

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82 não é o senhor do ente. O homem é o pastor do ser.”230 Para Heidegger, entretanto,

ser o pastor do ser é um menos que é mais, na medida em que aproxima o homem

da verdade do ser; um menos que firma a sua grandeza no fato de ser o próprio

ser231 que chama o homem a este destino – o destino da guarda da verdade do ser.

A salvaguarda, nesse sentido, protege e preserva a coisa-a-considerar do perigo do

esquecimento. Todavia, como vimos, não é o homem que gera a salvaguarda, ele

apenas convive com aquilo que lhe dá a pensar. Se assim fosse, o mais

problemático não se encontraria originalmente e, desde sempre, retraído nesse

esquecimento. Zarader, em “The mirror with the triple reflection”, nos esclarece

que a partir dos anos de 1930 Heidegger percebe que, o esquecimento do ser, anteriormente atribuído ao pensamento, volta-se para o próprio ser: é o próprio ser que se “faz esquecer”, mais precisamente porque o ato de retrair-se pertence a seu desvelar-se como tal, ou melhor, constitui seu único meio de desvelamento.232

Entende-se, pois, com Heidegger, que a ocultação do ser é parte de seu modo de

desvelar-se. Todavia, como vimos anteriormente, a partir de Platão e ao longo de

toda a tradição filosófica, além do fato de ocultar-se e retrair-se, o ser é esquecido.

Zarader nos mostra, com isso, que a história do pensamento ocidental é o domínio

de uma dupla ocultação, além de ser local do esquecimento do ser, é, também, o

local de sua retirada – mesmo sendo esse último entendido como inerente ao

próprio ser.

Heidegger compreende que a história do pensamento ocidental não se

inaugura com o pensamento do mais problemático, mas, ao contrário, inaugura-se

com o esquecimento do ser. À luz do esquecimento do mais problemático, a

origem também ficou oculta no pensamento inaugural. O filósofo nos adverte que

“o começo do pensar ocidental não é o mesmo que a origem”233. Segundo Zarader,

230 Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os Pensadores - Conferências e escritos filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.361.Segundo Carneiro Leão, a discussão dos pressupostos da carta “Sobre o ‘Humanismo’” “[...] abre toda uma outra dimensão de pensamento: a dimensão do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vigência Histórica do humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de questioná-la em seus fundamentos”. (cf. Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: ibidem, p.9. Maiúsculas do autor.) 231 Grifo nosso, no sentido de diferenciar o uso verbal, do nominal. 232 Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin Heidegger: Critical assessments, vol.II, 1992, p.20. Tradução nossa. 233 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.127.

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83 isso significa que as palavras “origem” e “começo”234 nos remetem a dois pontos

de partida. Diz a autora: “Um, inaugura o nosso destino, sem no entanto poder ser

definido como começo do pensamento (visto que não pertence à sua ordem), o

outro inaugura a história do pensamento, sem no entanto ser a fonte a que se

destina”.235 De acordo com a intérprete, Nietzsche já havia acentuado esse outro

ponto de partida reconhecendo Heráclito e Parmênides como filósofos autênticos

e a Ideia platônica como início de um declínio. Todavia, em Nietzsche, o fio

condutor histórico ainda é um só. Com Heidegger, o ponto de partida tradicional

também é deslocado, entretanto, o termo “pré-socráticos”236 desaparece, dando

lugar às expressões “pensadores matinais ou inaugurais”237 para aqueles que

recebiam apenas o estatuto preliminar do pensamento ocidental. Com isso,

instaura-se um duplo registro de inauguração: por um lado, o começo inconteste

com Platão que levará a questão do ser ao esquecimento, e por outro, “um ‘outro

começo’ – escondido, encoberto, desconhecido – que tinha ocorrido com os

primeiros gregos”238. Para Zarader, ambos os registros tem função de inauguração,

mas distinguem-se em pensável e impensável, ou seja, aquilo que nos foi trazido

pelos pensadores matinais não foi mais pensado desde de Platão. Portanto, não há

uma continuidade histórica entre um momento e outro, mas, dois momentos

inaugurais.

Heidegger nos coloca que o inevitável encobrimento da origem nos fez ver

o esquecimento do ser sob uma outra luz. O filósofo retoma a questão do !"#$% e,

além das razões elencadas no início do capítulo, nos fala que se não

questionarmos o que nos levou a pensar segundo o !"#$% enunciativo, não

conseguimos vislumbrar a historicidade do nosso destino. Permanecemos cegos,

acreditando que o !"#$% é a única determinação do nosso pensar. Soma-se a isso,

o fato de sabermos claramente que o caminho do pensar ocidental é atravessado

pela fé cristã; que por ser fé, não carece de fundamento e, tampouco, questiona o

pensar regulado pelo !"#$%, Entendemos, com isso, que o reino da fé não depende

de nós e, como dom ofertado, nada questiona. Para o pensador, foi essa a razão

234 Grifos nossos. 235 Marlène Zarader, A dívida impensada: Heidegger e a herança hebraica, Lisboa: Instituto Piaget, 1990, p.48. 236 Grifo da autora. 237 Grifo da autora. 238 Marlène Zarader, op. cit., p.48.

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84 que também nos levou à circunstância de não enxergarmos o destino da nossa

essência, e, consequentemente, não refletirmos sobre o chamado ao pensar

atravessado pelo !"#$% enunciativo.

Segundo Heidegger, a historiografia universal, que ordena os

acontecimentos e descreve o mundo em suas particularidades, igualmente não foi

capaz de fazer-nos ver o nosso destino essencial.239 É, pois, neste sentido, que o

filósofo nos indaga: “não temos então, quando perguntamos pela requisição ao

pensar regulado pelo !"#$%, também que retornar aos primórdios do pensar

ocidental para avaliar qual requisição instruiu esse pensar em seu começo?”240. De

acordo com Heidegger, fica claro que na origem do pensamento não houve a

pergunta por aquilo que nos chama ao pensar. O que distingue a aurora do

pensamento é o fato desses pensadores terem acolhido o apelo ao chamado

respondendo a ele em pensamento.241 Heidegger entende que o pensar é um

caminho e correspondemos ao caminho somente quando ali permanecemos. O

caminho do pensamento começa não só quando enxergamos o horizonte para o

qual o caminho se descortina, mas, sobretudo, quando nos entregamos ao caminho

num questionamento constante de forma a torná-lo caminho. É somente nessa

dinâmica própria do movimento do pensar, envolto por uma solidão plena de

mistério, que o caminho se abre. Ainda assim, sendo esse movimento um

constante indagar, “a resposta à questão “Que chamamos pensar?” é,

propriamente, sempre apenas o questionar, o permanecer no caminho”.242 Mas, o

239 Ao sentido de história (Geschichte), Heidegger acrescenta o de destino (Ge-schick). De acordo com Carneiro Leão, Heidegger pensa a dinâmica da essência da história como destino. Diz o autor: “a essencialização da História é o Ge-schick, (“o destino”) do Ser, [...] em sua Essência, a História é o destinar-se do Ser no homem. Isso quer dizer: é no destinar-se do Ser que o homem se hominiza – isto é, que o homem se constitui como homem – ao articular o destino do Ser, e isso significa: ao dar lugar ao conjunto de referências de ser e ente. Essencialmente pensar não é, portanto, exercer uma faculdade da consciência, entendida como sujeito, nem falar é exprimir atividade e o conteúdo desse exercício. Pensar e falar é articular o destino do Ser. Por isso só o homem pensa. Só o homem fala. Só o homem é histórico. E é histórico, enquanto faz e é feito pela História.” (Cf. Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, (tr.) Emmanuel Carneiro Leão, 1967, p.15. Maiúsculas e grifo do autor.) 240 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.140. 241 Na tradução de Que chamamos pensar? para a língua inglesa, Glenn Gray se refere a uma experiência. Diz o tradutor: “What distinguishes the beginning is rather that those thinkers experienced the claim of the calling by responding to it in thought.” (cf. Martin Heidegger, What is called thinking?, 1968, p.167). A mesma questão da experiência será aventada por Zarader em Heidegger e as palavras da origem. 242 Martin Heidegger, op. cit., p.143.

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85 que vislumbrou Heidegger na aurora do pensamento grego? Permaneçamos,

portanto, no caminho buscando algum entendimento para essa questão.

2.2.3.1. O Andenken e a lembrança fiel

No sentido de trilharmos com Heidegger o caminho do seu pensamento ao

voltar-se para a aurora grega, faz-se necessário, a essa altura de nossa caminhada,

a compreensão do vocábulo alemão Andenken, que significa lembrança,

recordação, memória. Vimos no início do capítulo, na discussão sobre

pensamento, ciência e poesia, que Heidegger já havia se referido à memória como

a reunião das lembranças (des Andenkens). Lyra, aprofundando esse

entendimento, nos coloca que a inversão do vocábulo alemão seria denken an,

“pensar em” – o que equivaleria dizer: “a memória como ato (de) pensar em algo,

promove a junção dos pensamentos.”243 Também vimos com Heidegger, que “a

memória, no sentido da lembrança humana, habita o seio do que recobre tudo que

dá a pensar.”244 Entendemos, com isso, que a lembrança, a reunião dos

pensamentos, habita a memória e nela encontramos a salvaguarda daquilo que dá

a pensar: a rememoração do ser.

Schneider em concordância com Zarader também compreende que, para

Heidegger, o esquecimento do ser provém “da própria essência do ser, [...] (uma

vez que) se retrai e se oculta da, ou até, na movimentação do pensar”.245 Para o

autor, a tarefa da rememoração e da lembrança do ser é um reconhecimento do

pensar de Heidegger sobre a questão do esquecimento. Então, perguntamos: se

entendemos, a partir de Heidegger, que o ser mesmo se oculta e retrai e, além

disso, foi esquecido num determinado tempo histórico, como é possível lembrar

esse esquecimento? É possível rememorar o ser?

Gianni Vattimo, em As aventuras da diferença, nos coloca que o esquecimento do ser, característico da metafísica, [...] não se pode entender como contraposto a um “recordar o ser”, que seja um agarrá-lo como presente. [...] O esquecimento do ser de que fala Heidegger não remete em nenhum sentido para uma possível

243 Edgar Lyra, nota do tradutor, in: Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.12. Grifo do tradutor. 244 Martin Heidegger, ibidem, p.126. 245 Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo, 2005, p.19.

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condição inicial ou final que seja, de relação com o ser como presença desdobrada.246

Vemos, também com o autor, que é próprio do ser esse retraimento em favor do

ente. Para o autor, o ser subtrai-se como dom, como gratuidade. O intérprete nos

concede essa compreensão nas próprias palavras de Heidegger: “Um dar que dá

apenas a sua oferenda e que, ao fazê-lo, contudo se retrai e se subtrai a si

mesmo”.247 De acordo com Vattimo, entender que o ser se doa em favor do ente

como dádiva, mas nesse dar-se permanece em si mesmo, sempre como um dom e

nunca como possibilidade de captura do próprio ser, é fundamental para

aproximarmos o pensamento meditativo, daquilo que nos chama para além desse

apelo. Para Heidegger, o pensamento meditativo é o único capaz de pensar o ser.

Vattimo nos coloca que, desde os gregos, o pensamento se volta para o ser

como presença. Pensar o ser como presença significa, segundo o autor, uma

petrificação metafísica que teve como grave consequência o trágico destino do

domínio técnico e da objetificação do ser. Para o autor, a objetividade do

pensamento do ser como presença, não só exclui a dimensão da ausência que se

plenifica como dom no retrair-se, mas também encobre a possibilidade do “fazer

estar presente”248, ou seja, o desvelamento do ser. O intérprete nos explica que o

que faz com que o pensamento metafísico se torne inaceitável “[...] não é o fato de

o ser se dar como presença, mas a petrificação da presença na objetividade”.249

Segundo Vattimo, o olhar de Heidegger para os pensadores da aurora grega, tais

como Heráclito e Parmênides, se dá exatamente por perceber que em seu pensar

poetizante ressoa ainda o apelo da presença como esse “presentificar-se do que se

faz presente”250. Ressoa ainda o chamamento do ser como desvelamento em seu

caráter eventual, contrário à ideia de pura presença petrificada no curso da história

da metafísica. O autor entende que o pensamento que pretenda superar a

246 Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.123. Grifo do autor. Itálico nosso. 247 Martin Heidegger apud Gianni Vattimo, ibidem, p.122. 248 Vattimo usa a expressão Anwesen-lassen para esse caráter da presença. Segundo o autor, para Heidegger ,“o fazer estar presente quer dizer desvelar, trazer à luz do dia. No desvelar atua um dar-se, e é precisamente aquele dar que, no fazer estar presente, dá o estar presente, isto é, o ser”. (cf. Martin Heidegger apud Gianni Vattimo, ibidem, p.125). Entendemos, a partir de Vattimo, que o Anwesen-lassen se aproxima do termo Lichtung, o aberto da clareira, o lugar que garante ser e pensar e que possibilita a presença se fazer presente. Mais à frente, no 3o.capítulo, retomaremos a questão da alétheia. Grifo nosso. 249 Ibidem, p.125. 250 Grifo nosso.

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87 metafísica não pode “procurar sair do esquecimento agarrando o ser como algo de

presente, [...] mas não pode também voltar a colocar-se na condição do

pensamento dos primórdios”251, uma vez que ali não se pensou o ser como

desvelamento.

Vattimo nos diz que, para Heidegger, somente um salto para um

pensamento do ser sem fundamento (Ab-grund) poderia nos aproximar desse

pensar; somente o pensamento alternativo ao princípio da razão suficiente252

saberia dar o salto. Apesar de ser um salto para o Ab-grund – ausência de

fundamento –, o salto não se dá em direção ao nada, ao vazio, mas, ao contrário,

ele encontra um solo, um Boden. O autor nos aponta para o fato de que Boden

(solo) é compreendido diferentemente do vocábulo Grund (fundamento). O

Boden, segundo Vattimo, remete diretamente à ideia de desvelamento, pois, ao aludir a um fundo donde qualquer coisa pode ‘nascer’ (não: derivar casualmente), ele nomeia a presença no seu caráter de proveniência. É um termo [...] que conduz o pensamento para aquele modo de se relacionar com o ser que sem superar o ‘traço fundamental’ da Schickung, a sua epocalidade, não esquece também o seu aspecto, pensando-a como aquilo que retrai e subtrai no dar do ‘Es gibt’.”253

Entendemos, com isso, que o pensamento que faz o salto em direção ao Boden é

este que deixa de pensar o ser como fundamento e o faz em resposta ao chamado

do ser como um desvelar-se. É isso que, de acordo com o intérprete, Heidegger

entende por memória e rememoração, como Andenken. Não se trata, portanto, de

um mero recordar, mas de um pensamento capaz de pensar o ser como Ab-grund.

O pensamento que se atém ao fundamento é aquele que se detém apenas no ente e

o no seu ser como presença constante, sem pensar a sua proveniência, a sua

origem. Para Vattimo, o ser só pode ser pensado em sua diferença para com a

presença, e o pensamento que pensa sempre “como dádiva em que o dar-se já está

sempre subtraído”254 é a memória, o Andenken.

251 Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.125. 252 O princípio da razão suficiente é uma temática abordada por Gottfried W. Leibniz no escrito Princípios da natureza da graça fundados na razão, de 1714. Segundo o filósofo, este princípio é baseado na ideia de “que nada sucede sem que seja possível [...] fornecer uma razão suficiente para determinar porque é assim, e não de outro modo.” (cf. Gottfried Leibniz, Princípios da natureza da graça fundados na razão, §7, [online] Acesso em 25/08/2014. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/leibniz_principios_da_natureza_e_da_gra_a.pdf ) 253 Gianni Vattimo, op. cit., p.128. 254 Ibidem, p.129.

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A memória que não se resume à capacidade de presentificar aquilo que

está ausente é, segundo Vattimo, essencialmente o encontro do pensar com aquilo

de mais particular e constitutivo de si mesmo, e, no encontro do pensar com o ser,

a memória é “o recolher-se do ânimo”.255 Em relação a isso que a memória

encontra no recolhimento, a conduta do pensamento se caracteriza como um

agradecimento, como Dank. Compreendemos a partir do autor que, para

Heidegger, o Andenken é entendido como o agradecimento do pensar que no

encontro com o ser, e mesmo sustentado por esse, não o dispõe; e é exatamente

porque não o dispõe, que não pode jamais presentificá-lo como um objeto da

representação.

2.2.3.2. A proveniência do pensar

Assim compreendido o Andenken, Zarader nos coloca que se o

esquecimento do ser pode ser desfeito, Heidegger só pode fazê-lo através da

memória, e “de onde poderia o pensador redescobrir a memória, se não a partir

deste momento inaugural em que o ser, enquanto já está acontecendo em sua

retirada, ainda não tinha assumido o véu do esquecimento?”256 Esse é, no

pensamento de Zarader, o privilégio da “aurora grega”257, uma retirada que foi

perdida mais tarde na história, isto é, esquecida e sempre mais decididamente

encoberta.

O ser é certamente entendido como retraído, assim como esquecido.

Todavia, segundo a intérprete, Heidegger parece pensar que não foi assim desde o

início. Entende-se, com a autora, que o ser tenha se revelado em si mesmo, ao

menos como retirada que é, e, nesse ato decisivo, ao menos por um instante, como

um relâmpago258, a verdade do ser tenha tido lugar no registro de uma experiência.

A autora nos diz que, movido por uma estrutura prévia de compreensão da própria

história, Heidegger entende que

é provável que a essência da coisa em si tenha sido dada na origem (e que possa então ser reencontrada nas palavras

255 Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.130. 256 Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin Heidegger: Critical assessments, vol.II, 1992, p.21. Tradução nossa. 257 Grifo da autora. 258 Cf. Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, 2006, p.65. Em nota, a autora nos fala da temática do “raio inaugural” presente no artigo “Logos” (GA7). (cf. Ibidem, p.215.)

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inaugurais), como inversamente também é provável, que as palavras inaugurais quando interrogadas, possam dizer a essência da coisa em si.259

Entendemos, a partir da intérprete, que o Andenken estaria circunscrito

dentro dessa hermenêutica e seria então compreendido como o movimento

retrospectivo do pensamento que se volta para trás como memória. Todavia, como

vimos, não nos referimos aqui ao movimento singular de olhar para o passado em

lembrança, mas um olhar que se põe em direção àquilo que, “na medida em que

ainda não foi pensado, continua proposto ao nosso futuro – mesmo se não

podemos esperar atingir esse futuro senão pelo ‘passo atrás’”260. A autora também

mostra aquilo que seria o movimento inverso a ser explorado pelo pensar de

Heidegger após o movimento do Andenken: o Vordenken. Se o primeiro se

caracterizava por um salto retrospectivo, esse se caracteriza por um movimento

prospectivo, um pensamento que caminha para o futuro. Todavia, o Vordenken

não é um avanço livre, onde o pensamento está totalmente desconectado do

passado, mas uma prospecção que se dá a partir daquilo que nos foi dado pelo

Andenken. Ambos os movimentos são, nesse sentido, complementares e se

orientam para o pensamento futuro. Dito por outras palavras: o Andenken é um

salto retrospectivo em direção aos primórdios do pensamento, que nos afasta do

pensamento da tradição na medida em que busca nesse passado algo que ainda

não foi pensado. Zarader nos coloca que o Andenken “tem como finalidade a

apropriação da nossa herança grega”261. Por outro lado, o movimento que nos

orienta para o futuro é o Vordenken, um pensamento prospectivo que, ao buscar

na origem o impensado, separa-se dessa em proveito de um outro pensamento

ainda a ser pensado. Esse movimento significa, aos olhos da autora, “a superação

da herança grega”262. Entendemos, assim, que os movimentos do pensar

orientados pelo Andenken e pelo Vordenken nos levam, num primeiro momento, à

259 Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, 2006, pp.65-66. 260 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.34. Em nota, a autora apresenta uma citação do próprio Heidegger que julgamos pertinente, no sentido de nos ajudar na compreensão desse movimento. Diz o filósofo: “Se o pensamento, lembrando-se daquilo que foi (das Gewesene), lhe deixa a sua essência e não altera o seu reino usando-o apressadamente como presente, descobrimos então que o que foi, pelo seu retorno no Andenken, se estende para lá do nosso presente (Gegenwart) e vem até nos como um futuro (ein Zukünftiges). Bruscamente, o Andenken deve pensar o que foi como algo de ainda-não-desdobrado (als ein Nochnicht-Entfaltetes)”. (cf. Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.34.) 261 Ibidem, p.35. 262 Ibidem, p.35.

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90 apropriação de um pensar que depois será superado em nome de um pensamento

porvir.

Esse duplo movimento do pensamento heideggeriano – Andenken e

Vordenken – ajuda-nos, também, a esclarecer a noção de um outro vocábulo

alemão, sem o qual não poderíamos entender o movimento do pensar de

Heidegger ao voltar-se para a aurora grega: o Anfang. Como vimos brevemente no

primeiro capítulo, o Anfang corresponderia, então, ao início primordial, ao

começo originário. Mas, como entender esse vocábulo no sentido proposto por

Heidegger?263 Segundo Zarader, a compreensão do termo se dá pelo fato de que o

Anfang tem um caráter pontual, evoca o ponto de partida, a “primeira captura”264

de algo, e, por isso, diferencia-se de Beginn, outro termo alemão que, também

entendido por “começo”265, aponta para algo temporal, uma extensão de tempo

ainda que mínima. Enquanto o primeiro se refere a um ponto inicial específico, o

segundo tem o caráter de um início que se estende temporalmente, dura. O próprio

Heidegger nos coloca que Anfang e Beginn não são idênticos266, apesar de

transitarem dentro do mesmo escopo semântico. Zarader nos explica, nas próprias

palavras de Heidegger, que o Anfang seria, então, algo que precede qualquer

começo. Diz Heidegger: O começo é aquilo com o que alguma coisa se ergue, o Anfang é aquilo de onde alguma coisa jorra. [...] O começo é imediatamente abandonado, desaparece na sequência dos acontecimentos. O Anfang, a origem (Ursprung) pelo contrário, só se torna claro no decurso do processo, e só no fim deste plenamente.267

O Anfang é, assim, entendido como algo que antecede o começo, como uma fonte

velada de onde jorra algo que permanece impensado à espera de um futuro.

Através da leitura de Zarader, fica claro para nós que o pensamento de

Heidegger não é, de forma alguma, um retorno aos gregos no sentido de reacender 263 Em nota, Zarader nos coloca que o termo Anfang se circunscreve ao campo semântico mais extenso da inicialidade “onde se pode fazer prevalecer, segundo os casos (e Heidegger não se priva disso), o registro de origem ou do começo”. Fato que, por vezes, acaba por gerar uma certa ambiguidade. (cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.207.) Apenas a título de diferenciação, usaremos como tradução para o Anfang as palavras origem ou princípio. 264 Grifo da autora. Zarader rememora as palavras de Beaufret para definir o Anfang: “o pontapé de saída”. (cf. Ibidem, p.31). 265 Grifo nosso. 266 Heidegger enfatiza por duas vezes ao longo do texto Que chamamos pensar? que Anfang e Beginn não são idênticos. (cf. pp.102 e 127.) 267 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, op. cit., pp.31-32.

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91 ali a chama do que foi pensado, mas sim, o de um pensar que, dentro de uma

dinâmica temporal própria, relaciona-se com a língua que inaugurou a nossa

história. Diz a autora: Porque a nossa história é grega. Somos descendentes. Ingratos talvez, cegos à sua mais secreta proveniência, mas herdeiros contudo. Não [...] (somente) herdeiros de um pensamento, como de uma língua, até de algumas “palavras”. Palavras nunca meditadas propriamente na sua carga de impensado, e que permanecem, contudo, o único território susceptível de encerrar o mistério do nosso destino”.268

Segundo a intérprete, a palavra alemã Anfang entendida como origem,

apesar de manter-se problemática dada à ideia de fundo que permanece269, se

mantém necessária no sentido de dissociar o começo do pensamento ocidental

daquilo para o qual o pensar de Heidegger aponta e que preserva como inaugural.

Isso significa separar o começo, da origem, na intenção de, uma vez ultrapassada

essa fronteira, buscar realizar ali os movimentos do pensar orientados primeiro

pelo Andenken e depois pelo Vordenken, caracterizando, de fato, um outro

começo, o andere Anfang. Esse outro começo, de acordo com Zarader, nos

assinala dois caminhos: se nos direcionamos para trás, nos deparamos com o

“começo originário”270, o momento inicial da história do ser; se nos direcionamos

para frente, encontramos a possibilidade de um outro começo, com a abertura de

uma nova história, pois “se permite, num percurso de retorno, iluminar o já-

pensado, permite também, num percurso de prospecção, explorar “o que pode ser

pensado.”271 Por outras palavras: essa expressão tanto pode significar a origem

como também algo que, mesmo tendo acontecido posteriormente, é primeiro na

medida em que ressignifica o que veio antes. Fica, assim, entendido o duplo

desígnio proposto como “apropriação” e “superação”272 dos gregos, que se

instaura com o Andenken e o Vordenken no andere Anfang.

Este é, segundo Zarader, o caminho proposto pelo pensar de Heidegger na

segunda parte de Que chamamos pensar?: parte-se da memória, entendida a partir

do termo alemão Gedanc, no sentido de encontrar a essência da coisa em si no

logos original. Segundo a autora, o caminho desse pensar nos sinaliza, por um 268 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.33. 269 Nos reportamos à questão levantada por Vattimo sobre o Grund e o Boden. 270 Grifo nosso. 271 Marlène Zarader, op. cit., p.358. 272 Grifos da autora.

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92 lado, o logos original – um caminho que nos mostra como a essência do

pensamento foi experimentado na aurora da história ocidental – e por outro, a

escuta à língua alemã, que repousa sobre as palavras diretoras de caminho,

Gedanc, Denken, Germüt. E, mesmo sendo as duas vias aparentemente distintas,

ambas se dirigem à coisa em si, tal como ela mesmo se apresenta. São, portanto,

duas vias que no final dizem o mesmo. De acordo com a intérprete, não poderia

ser diferente, e isso, porque “a coisa em si está sempre abrigada nas palavras

inaugurais, e as palavras inaugurais nunca dizem nada mais (na medida em que as

deixamos falar) do que a coisa em si.”273

Mas, como podemos pensar o logos original na esteira do Gedanc?

Zarader nos coloca que, no “sentido de escutar na palavra logos, o eco da

memória e do agradecimento, precisamos [...] partir de um horizonte do

pensamento que não tem origem nesta palavra [...]”274. A autora nos fala de um

horizonte próprio do pensamento de Heidegger, o qual, fiel à escuta da língua

alemã, é capaz de perscrutar o logos no Gedanc. Segundo Zarader, para o

pensador, a etimologia nos dá apenas sinais. Todavia, nos adverte o próprio

Heidegger: “Para notar um sinal, é preciso já ter penetrado no domínio a partir do

qual ele provém.”275 Nos encontramos, pois, dentro da complexa hermenêutica

heideggeriana do salto, e será com Vattimo que encontraremos algum

entendimento para essa questão. O autor nos diz que o Andenken, compreendido

como pensamento hermenêutico, destrói os nexos históricos relacionados com

determinadas palavras-chave, remetendo e sujeitando essas palavras a uma análise

infinita, algo que nos aponta para uma inesgotabilidade na compreensão dos

termos. Para Vattimo, “o regresso hermenêutico in infinitum inverte as prescrições

da lógica, e jamais possui fins ‘construtivos’”276, e isso, segundo o autor, remete

ao caráter de não-fundamento (Ab-grund) tão buscado pelo filósofo.

Nos direcionemos, sem mais, às palavras inaugurais de Parmênides,

procurando, na permanência do caminho, corresponder ao pensar proposto por

Heidegger nesta segunda parte do escrito Que chamamos pensar?.

273 Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, 2006, p.65. Tradução nossa. 274 Ibidem, p.66. Tradução nossa. 275 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.66. Tradução nossa. 276 Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.135.

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3. O outro pensar

A língua é o espelho da existência, mas também da alma […]. Somente renovando a língua é que se pode renovar o

mundo. Devemos conservar o sentido da vida, devolver-lhe esse sentido, vivendo com a língua. [...] O que chamamos

língua corrente é um monstro. A língua serve para expressar ideias; mas a língua corrente expressa apenas

clichês e não ideias; por isso está morta e o que está morto não pode engendrar ideias. […]

João Guimarães Rosa277

Neste momento do escrito Que chamamos pensar? somos lançados pelo

pensar de Heidegger para a aurora grega do pensamento. O filósofo entende que o

destino do pensar deve nos remeter aos primórdios do pensar ocidental como

questão preliminar. Devemos nos colocar diante da história a questionar o que

determinou esse pensar em seu início. Será na perscruta do fragmento VI do

poema Da Natureza278 de Parmênides que Heidegger buscará o sentido mais

condizente a essa questão. O filósofo compreende o pensar como um caminho e

somente permanecendo no caminho é que correspondemos a ele. Devemos, pois,

demorar-nos no caminho no sentido de construí-lo, diferentemente daqueles que

de fora se põem a representá-lo e discuti-lo. Mas, como um caminho se torna

caminho? Por qual caminho nossos passos devem caminhar para que este se

converta em caminho? Sabemos que o caminho do pensamento não se dispõe

numa via, de um ponto a outro como algo preexistente. Com Heidegger, sabemos

também que esse se perfaz “numa solidão plena de mistério”279, um percurso que

jamais permite que nenhum outro invada a sua solidão. Mas é, na visão do

filósofo, com o questionar pensante que o caminho-pensamento se abre. Que

chamamos pensar? é uma dessas veredas que o pensar de Heidegger trilhou. Mais

do que isso, o escrito é um convite à constância do caminho. Demoremo-nos,

pois, um pouco nessa paragem.

277 Günter Lorenz, Diálogo com a América Latina, São Paulo: E.P.U., 1973. Entrevista a João Guimarães Rosa, conduzida por Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos em janeiro de 1965 e publicada em seu livro Diálogo com a América Latina. 278 Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1960. 279 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.142.

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3.1. Na aurora grega do pensamento

O que sabemos sobre esses primeiros pensadores? Seriam eles, de fato,

os primeiros? Temos conhecimento que Parmênides e Heráclito são pensadores

contemporâneos um do outro, que viveram entre os anos de 540 a 460 a.C.; e são

eles que, juntamente a Anaximandro (610 a 547 a.C.), são considerados por

Heidegger como as figuras centrais da aurora do Ocidente. Antes desses, outros

trilharam a senda do pensar, mas, para o filósofo, apenas os três podem ser

considerados pensadores originários. Nos detivemos no capítulo anterior, através

da análise de Zarader, na questão da diferença entre início ou começo (Beginn) e

origem ou princípio (Anfang). Sabemos, com Heidegger, em Parmênides (GA54),

que “o início pensa o iniciar-se deste pensar num determinado ‘tempo’, [...] funda

um lugar para a verdade no interior de uma humanidade histórica [...], (e que a

origem) é o digno de ser pensado e o pensado neste pensar primordial”.280 Para o

filósofo, aquilo que é digno de ser pensado na origem é o pensar do ser281, pois o

“ser é a origem”.282 Todavia, nem todo pensador que pensa o ser pensa a origem.

No entender do filósofo, somente Anaximandro, Parmênides e Heráclito pensaram

a origem. Segundo Heidegger, são eles que, na aurora do pensar ocidental, “[...]

pensam o verdadeiro, (e) pensar o verdadeiro significa experimentar o verdadeiro

na sua essência e, em tal experiência essencial, saber a verdade do verdadeiro.”283

Já demos a conhecer, também, que o olhar de Heidegger não se volta para

os pensadores originários no sentido de interpretá-los, mas, ao contrário, nos

coloca que neste pensar tão longínquo – cronologicamente datado de mais 2.500

anos – esconde-se um pensamento jamais pensado, um pensar que precede e

determina toda a história. Esse pensar é, segundo o filósofo, um pensar que se faz

novo na medida em que oferta aquilo que lhe é o mais próprio e se desdobra como

280 Martin Heidegger, Parmênides, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2008, p.21. 281 Itálico do autor. 282 Martin Heidegger, op. cit., p.21. 283 Ibidem, p.13. A questão da verdade, que no poema de Hölderlin encontrava seu desvelar junto à beleza, vê-se aqui envolta naquilo que diz respeito a uma experiência. Faz-se, portanto, necessário algum clareamento a título de avançarmos no texto. Conforme vimos anteriormente, Heidegger nos coloca que a alétheia foi compreendida pelos gregos como “retitude da representação e da enunciação” e foi, por isso, “experimentada como orthótes”. O filosofo compreende que é na escuta da palavra alétheia que podemos “intuir algo da essência da ‘verdade’ experimentada pelos gregos” (cf. Ibidem, p.32). Essa colocação nos encaminha para a compreensão heideggeriana do vocábulo alétheia, que será tratada mais a frente quando adentrarmos propriamente o poema de Parmênides.

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uma dádiva para o seu tempo. Heidegger nos fala que a sentença “o princípio é o

último”284 pode parecer um contra-senso para o pensamento calculador. Todavia, a

compreensão de que algo que se deu no princípio possa vir depois sugere apenas

que esse princípio surge em seu início de forma oculta e, por isso, permanece

inacabado aguardando sua realização num porvir.285

Encontramos desses pensadores apenas vestígios. No entanto, para

Heidegger, não podemos nos desviar do caminho que, mesmo difícil, nos leva a

perscrutar o legado por eles deixado. Encontramos em Jean Beaufret, em

Dialogue avec Heidegger, que o poema de Parmênides parece ser datado do início

do quinto século a.C e teve seus fragmentos reunidos por Teofrasto, na época de

Aristóteles, e por Simplício, no tempo de Justiniano. Segundo Heidegger, esse

poema revela-se em versos ou sequências de versos e expressam uma “doutrina

filosófica”, por isso, diz-se um “poema doutrinário”.286 No entanto, o filósofo

entende que a densidade do que é enunciado é tão significativa que não se deve

circunscrevê-la a uma doutrina, nem mesmo a uma poesia, pois o que vem à fala

no dito revela-nos o todo do pensar de Parmênides, revela-nos um saber essencial.

Mas, o que é um saber essencial? E, como esse saber desvela-se no pensar?

Para Heidegger, o pensar essencial é aquele que se volta para o ser.287

Não há, segundo o filósofo, um domínio desse saber, apenas se é tocado por ele.

Nesse pensar não se “agarra”288 uma coisa no sentido de um proceder científico,

cujo caráter objetivado visa um produto final. Não há, de forma alguma, um

construto, uma produção organizada pelo pensamento, mas, ao contrário, no saber

essencial “é a origem que origina algo por meio destes pensadores [...]. Estes

pensadores são originados (An-gefangenen) pelo princípio (Anfang), são colhidos

por ele, para dentro dele e reunidos a partir dele”.289 Por isso, Heidegger nos pede

uma recusa à compreensão banal das interpretações acadêmicas. O filósofo

284 Grifo do autor. 285 Entendemos que Heidegger faz aqui referência à dinâmica própria dos movimentos do Andenken e do Vordenken e toda a discussão do andere Anfang levantada no capítulo anterior. 286 Grifos do autor. No original Gedicht Lehr. Segundo o dicionário, Lehr é o que instrui, ensina e forma. Cf. [online] Disponível em: http://pt.pons.com/tradução?q=Gedicht+Lehr&l=dept&in=&lf=de Acesso em: 5/1/15. 287 Cf. Martin Heidegger, Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.16. 288 Grifo nosso. 289 Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.22. Compreendemos que essa frase de Heidegger nos remete à sua hermenêutica: um horizonte de compreensão em que o pensador é aquele que ouve o chamado do ser para, com isso, dar voz à História.

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entende que somente a partir da atenção dada a essa exigência da origem é que o

dito de Parmênides terá algum sentido. Segundo o pensador, perdemos

completamente o saber ouvir das coisas simples que esses pensadores deixaram.

O que, então, vem à fala nesse pensar?

Lembremo-nos que o início (Beginn) do pensamento ocidental tem por

característica a separação entre !"#$% e µ&'$%, quando, a partir de Platão, a lógica

atravessou o pensamento. Todavia, segundo Heidegger, na origem (Anfang) o

!"#$% e o µ&'$% se relacionavam de tal forma, que ambos eram usados com o

mesmo significado, tanto na poesia quanto no pensamento grego. Isso denota que,

na aurora grega, o pensar de Heráclito e de Parmênides ainda se orientava pelo

poético, pelo não-científico, e, nesse pensar, a relevância era dada ao próprio

pensamento que na meditação sobre o ser encontrava medidas próprias.290 Diz

Heidegger: “(&'$% é o que se consubstancia (das Wesende) no seu [próprio] dito:

o que aparece no desvelamento (Unverborgenheit) do seu apelo (seines

Anspruchs) [...]. )"#$% diz o mesmo”.291 Como vemos, para o pensador, o !"#$% e

o µ*+'$% se co-pertencem e, por isso, é possível considerar que nas primeiras

tentativas de pensar o ser, aqueles pensadores ainda encontravam-se circunscritos

ao mítico. Heidegger nos coloca que µ&'$% e !"#$% estão ligados à essência da

linguagem e se circunscrevem ao campo da palavra eloquente, e que o mítico é o

que guarda, na essência da palavra, aquilo que se manifesta primordialmente

revelando-se e ocultando-se, ou seja, o próprio ser.292 Michel Haar, em Heidegger

et l’essence de l’homme, acrescenta que o mythos é a linguagem que traduz a

conversa inabitual do ser com o homem. Para o autor, o !"#$% está enraizado no

µ&'$% e, uma vez que o !"#$% é muito mais do que a linguagem como habilidade

de fala, é o homem que se encontra no interior do !"#$%. É o !"#$% que possui o

homem e não o contrário. Haar nos rememora a maneira rigorosa com que

Heidegger circunscreve o !"#$% no curso sobre Heráclito. Ali, o autor nos coloca

que, para Heidegger, o !"#$% não diz respeito a uma faculdade do homem, nem

tampouco à razão e, muito menos, a uma afirmação ou proposição como foi

entendido mais tarde.293 O !"#$% é aquilo que unifica os seres, os traz à sua

290 Cf. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, 1999, p.168. 291 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.11. 292 Cf. Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.106. 293 Já em Ser e tempo, no §7, Heidegger se volta para o conceito de !"#$% e toda a dificuldade para se “apreender devidamente o conteúdo primordial de sua significação básica”. Ali, o filósofo nos

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identidade mais própria, é a Ver-sammlung294 original. É a linguagem que ainda

não foi dita, mas que reúne em si o mistério de todas as coisas.

De acordo com Heidegger, tudo isso se perdeu quando, na interpretação

romana, o !"#$% torna-se ratio e perde sua essência e seu fundamento para a

razão. Com isso, o dizer do !"#$% que, assim como o µ&'$%, expressava a

experiência da essência primordial da palavra como aquilo que convida, que

chama cada ser humano ao pensamento daquilo que se consubstancia e aparece,

deixa de salvaguardar a relação do ser com o homem e torna-se uma coisa da

linguagem, um fenômeno de expressão295 desdobrado em !"#$% enunciativo.

Desse modo, o !"#$% perde a sua capacidade de acolher e expressar

essencialmente aquilo que nos convoca e nos chama a pensar – essa experiência

que os pensadores da origem fizeram.

Mas, como Heidegger chega a esse pensamento? Zarader nos fala que o

caminho-pensamento de Heidegger se faz em círculos. Uma circularidade que

parte do mais aberto dessa circunferência e busca retroceder em espiral ao seu

âmago, buscando aí encontrar aquilo que foi a experiência grega do ser em sua

origem. Para a autora, sempre envolto pela questão do ser, Heidegger reconhece a

necessidade de retornar ao destino inaugural do ser, à forma como nos foi

concedido na alvorada do pensamento ocidental. Todavia, como vimos, esse

retorno não apenas revisita o pensamento desses pensadores. Segundo Zarader,

Heidegger pretende trazer à luz as experiências (Erfahrungen) inaugurais que

esses pensadores tiveram, experiências que se desdobraram na linguagem grega e

ali foram guardadas e preservadas em algumas palavras fundamentais

(Grundworte).296

coloca que desde Platão e Aristóteles o conceito de !"#$% é polissêmico e, de tal modo, que acaba por dispersá-lo de seu significado fundamental. Heidegger nos explica que entendermos o !"#$% como fala não nos remete ao seu conteúdo primordial. Tampouco, suas interpretações posteriores, tais como: razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação e proporção traduzem o que é o !"#$%. Nesse parágrafo, Heidegger delimita os descaminhos que o !"#$% seguiu ao longo da história da filosofia e nos explicita o porquê deste entendimento. (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012, p.71ss.) 294 Ver.samm.lung Sf, 1. reunião, […]. Cf. [online] Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/escolar/alemao/index.php?lingua=alemao-portugues&palavra=Versammlung Acesso em: 06/10/14. 295 Cf. Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.104. 296 Cf. Marlène Zarader , Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.28. Itálicos da autora.

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Hans-Georg Gadamer, no texto intitulado “Destruktion und

deconstruktion”, também compreende que o interesse de Heidegger teria sido o de

buscar encontrar nos pensadores da origem uma experiência que desse conta da

questão do ser, não mais como pura presença, mas uma experiência do ser envolta

pelo selo do velamento e do desvelamento. O autor nos revela que Heidegger

procurava em Anaximandro, Heráclito e Parmênides “a experiência originária do

Ser, um testemunho da comum pertença entre ocultação e revelação”.297

De acordo com Zarader, a questão mesma da experiência (Erfahrung)

mereceria uma longa e demorada atenção. Também nós assim entendemos.

Apesar de não ser o nosso caminho, entendemos que é necessário um pequeno

desvio, a fim de elucidarmos o estatuto que a palavra experiência ocupa no

vocabulário heideggeriano. Primeiramente, não nos atemos aqui àquela

experiência orientada pelo escopo da ciência. Apesar de todo o histórico sobre

essa questão nos orientar para uma objetivação, o método e o passo-a-passo

passam ao largo da experiência pensada por Heidegger. Gadamer reconhece, em

Verdade e método, que há mesmo uma precariedade em relação a uma teoria da

experiência que se projete para fora da objetivação do método científico. O autor

nos coloca que o próprio Husserl, que dedicou-se a uma genealogia da

experiência, acaba por deter-se na dificuldade de se voltar para a sua essência na

medida em que faz da percepção, compreendida como externa e relacionada à

corporalidade, o fundamento último de toda a experiência. O segundo ponto que

gostaríamos de elencar, é que a experiência pensada por Heidegger também não

trata de uma vivência (Erlebnis) como aquela entendida por Dilthey, cujos estados

internos, sobre os quais estamos conscientes, não podem ser conhecidos senão

através de nexos mediados pelo mundo.298 De que forma, então, o filósofo

compreende a experiência? A julgar pela descrição que Heidegger nos oferece, em

A caminho da linguagem (GA12), entendemos que a experiência à qual ele se

297 Hans-Georg Gadamer, “Destruktion and Deconstruction”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, Heidegger reexamined: Language and the critique of subjetivity, vol.4, New York, NY: Routledge, 2002. p.75. Tradução nossa. Maiúscula do autor. Entendemos que o pensar de Gadamer, em acordo com o de Vattimo, move-se aqui no domínio da clareira, o lugar que, segundo Heidegger, permite-nos saber a respeito do ser, assim como sobre o ser e o pensar. Nos deteremos à questão da clareira mais adiante quando adentrarmos a análise do fragmento de Parmênides. 298 Cf. Charles Bambach, Heidegger, Dilthey and the crisis of historicism, Ithaca, NY: Cornell University Press, 1995, p.153.

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refere abarca o homem em sua totalidade e diz respeito ao espaço de abertura ao

próprio ser. Diz o filósofo:

Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um ser humano, com um deus, significa que esse algo nos atropela, vem ao nosso encontro, chega até nós, nos avassala e transforma. “Fazer” não diz aqui de maneira alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o sentido de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro, harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele.299

Através dessas palavras, vemos que, para Heidegger, uma vez alcançados pela

experiência não há controle, é ela que nos conduz e governa. Estabelece-se, dessa

forma, uma relação em que se sofre a ação ou o efeito de experimentar, e, a partir

desse encontro, algo novo é gerado pela experiência em si. Mas, de que forma

essa compreensão se desdobra na relação do filósofo com os pensadores da

origem?

Zarader nos coloca que a questão da experiência ganha significado para

Heidegger a partir da relação direta com o pensamento e a língua.300 A autora nos

diz que, ainda que a experiência preceda o pensamento e muitas vezes

transborde-o não possibilitando uma apreensão, o experimentar desdobra-se na

linguagem. No caso dos pensadores da aurora grega, Gadamer nos fala que a

íntima relação e unidade entre a palavra e a coisa era tão natural, que “o nome

verdadeiro era experimentado como parte de seu portador, e quando não, ao

representar o outro como substituto, era experimentado como ele mesmo”.301 Isso

significa que no início do pensar, palavra e nome estavam tão imbricados com a

coisa à qual se referiam que, segundo o autor, pareciam pertencer ao próprio ser

da coisa. Gadamer entende que foi a partir da compreensão de que a palavra é

somente um nome a representar uma coisa, que palavra e nome se dissociam e

perdem sua relação imediata com o ser daquela coisa. Zarader acrescenta que a

língua – e sobretudo a grega – guarda riquezas que o pensamento não é capaz de

exaurir e, por isso, permanece como um refúgio para o impensado. Para a autora,

a língua desses primeiros gregos conservou a sua “força original de nomeação”302,

299 Martin Heidegger, A caminho da linguagem, Petrópolis: Vozes, 2003. p.121. Apesar de extensa, entendemos que a citação deve ser feita na íntegra no sentido demonstrarmos a importância que o vocábulo tem no pensamento de Heidegger. 300 Itálicos da autora. 301 Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, 1999, p.590. 302 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.28.

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e isso permite que o impensado seja “experimentado”303 sem que se perca, nessa

experiência, a sua rubrica de impensado. Segundo a intérprete, essas experiências,

feitas na aurora do pensar ocidental, não são sustentadas pelo pensamento e quase

não são percebidas pela consciência, por isso, duram o tempo de um “clarão”304 e

logo são recobertas. Mas as palavras ficaram. Zarader nos diz que essas palavras

chegaram até nós vazias de sua reverberação inicial, e são elas que solicitam um

interlocutor a quem possam falar da experiência que as tornou possível. A autora

compreende, com isso, que o interlocutor é aquele que se direciona à origem para

ouvir aquilo que, ainda oculto, permanece impensado, ou melhor, é o interlocutor

que se põe à escuta das palavras inaugurais, de forma a ali encontrar a experiência

contida e transmitida pelas palavras desses pensadores; palavras que ainda

permanecem à espera de um futuro. Isso implica, no caso da língua grega, numa

tradução; o que nos coloca diante de uma outra questão: como pode uma tradução

aproximar-se daquela experiência vivida pelos pensadores da manhã grega? Ou

melhor, como um redizer pode se circunscrever àquilo que foi experienciado?

3.2. Da traductio

Nesta parte de Que chamamos pensar? Heidegger volta-se, então, para a

questão da tradução propriamente dita. E, nesse caso, para o poema de

Parmênides, um poema escrito no grego arcaico por volta do V séc. a.C., fato que

delimita uma dupla dificuldade: a de verter para o alemão um pensar do grego

antigo e, nesse pensar, encontrar aquilo que permanece oculto. Mas, vejamos

primeiro o que Heidegger entende por tradução. Voltemos nossos ouvidos atentos

às palavras do filósofo.

Sobre a tradução, Heidegger nos pede observar duas coisas, a saber, o

conteúdo do enunciado e a forma pela qual o enunciado é vertido da língua

original para a outra língua. Quanto à primeira, corremos sempre o risco de

sermos muito rápidos e acharmos que logo encontramos a palavra adequada.

Devemos, pois, estar atentos às obviedades – não há nada de óbvio no pensar de

Parmênides. No que diz respeito à segunda, o filósofo nos diz que a erudição não

nos garante nada, devemos “ouvir a sentença a partir do frescor das palavras”305 e

303 Grifo da autora. 304 Grifo da autora. 305 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.148.

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não ficarmos presos à petrificação da forma. Para Heidegger, todas as vezes que

traduzimos um pensamento para nossa língua materna caímos na tentação da

interpretação e, com isso, submetemos aquele pensamento a um olhar atravessado

por algo previamente pensado. Contra isso, a tradução deve sempre lutar. Por

outro lado, adentrar um pensamento sem qualquer pressuposição é, no pensar do

filósofo, uma interpretação ainda mais carregada de pressupostos, pois na visão de

Heidegger, a crença de que se pode dialogar com um outro pensar a partir de uma

ausência de pensamento repousa numa teimosia infundada. A ausência de

pensamento é, neste caso, o reduto daqueles que se acercam da aparência de

parentesco e da adequação na interpretação. Como, então, devemos nos aproximar

da tradução?

Heidegger entende que devemos depositar uma certa confiança naquilo

que nos é legado sobre os pensadores da origem, pois, a cada releitura

encontramos caminhos possíveis e novas diretrizes. Todavia, aqui também

encontramos uma dificuldade. O problema reside na impossibilidade de

reformulação dessas diferentes leituras, que estranhamente se encobrem por

generalizações que petrificam a fala. Sobre isso, Michael Inwood, em suas

palavras iniciais ao Dicionário Heidegger, acrescenta que o filósofo é aquele que

recebe a palavra por herança, mas não vive a experiência a partir da qual a palavra

se origina. O autor compreende que, não só o filósofo não vive a experiência

original, como também a palavra vai se desgastando ao longo do tempo. Assim,

para Inwood, aquilo que foi experimentado e transmitido em primeira mão perde-

se na transmissão. O autor entende que, uma vez que nessa comunicação as

palavras não emergem da experiência, aquilo que é transmitido é visto apenas

como um conceito herdado. Inwood nos mostra que assim como o vocábulo grego

,&-./, traduzido mais tarde por “natureza”306, afastou-se de seu campo original,

muitas outras palavras perderam a cifra da experiência primordial que as originou.

Por isso, conhecer a palavra do pensador não significa a sua compreensão. Nesse

sentido, para Heidegger, o perigo da tradução é ainda maior, uma vez que essa se

expressa em outra linguagem. O filósofo nos adverte sobre o perigo de, em vez de

confrontarmos a palavra grega, tomarmos o seu correspondente já traduzido

apenas porque soa familiar aos nossos ouvidos, sem nos atermos ao fato de que

306 Grifo do autor.

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toda a tradução carrega consigo algo daquele que a traduziu. Vejamos como o

filósofo compreende essa dinâmica.

A tradução se apresenta, inicialmente, como um processo externo, técnico-

filológico. Heidegger nos coloca que a tradução é compreendida como um

transpor, o verter de uma língua em outra através de uma ordenação sintática dos

termos. Todavia, para o filósofo, além da tradução se ater a um domínio entre

duas línguas, estamos já circunscritos dentro de um outro traduzir, o da nossa

própria língua, ou seja, o nosso próprio dizer já passa por um processo de

tradução na medida em que “falar e dizer é um traduzir”307. Trata-se de uma

dinâmica que ocorre na própria linguagem, uma vez que na fala optamos por esta

ou aquela palavra para expressar este ou aquele pensamento. Segundo Heidegger,

isso já é uma transposição. O filósofo nos coloca que somente na poesia e no texto

filosófico nos encontramos circunscritos à singularidade da palavra, pois ali

segue-se apenas uma transposição do ser do poeta ou do filósofo para o horizonte

de uma verdade. Heidegger entende que somente quando somos tomados por essa

transposição é que nos encontramos no âmbito mais próprio à palavra e estaremos

aptos à tarefa da tradução. Isso significa que, no entender do filósofo, a tradução

mais difícil é sempre aquela que se passa no interior da nossa própria língua, pois

na medida em que há o domínio de uma linguagem, julga-se compreender as

palavras de imediato sem ater-se ao fato de que essas possuem um reino original

que lhes é próprio. Por isso, a tradução deve buscar ouvir as palavras nelas

mesmas, de tal forma, que nessa recepção nos coloquemos em sintonia com

aquilo que a palavra diz. Somente aí, diz o filósofo, exercemos a atenção plena e

começamos a pensar.

Diante de tamanha dificuldade e cientes de toda essa problemática,

procuremos seguir os passos do filósofo, ou melhor, empenhemo-nos em

vislumbrar este avanço com Heidegger, que busca “através de uma circunscrição

mais e mais cerrada, possibilitar o salto para o interior do dizer da sentença”308 de

Parmênides.

307 Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.28. 308 Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.144.

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3.3. O impensado de Parmênides

3.3.1. A !"#$%&'

Nossos primeiros passos nos levam, ainda que concisamente309, àquilo que

julgamos ser fundamental para nos aproximarmos do fragmento de Parmênides: a

compreensão da palavra grega ἀ!0'1.2, que no poema é o nome da deusa.

Heidegger nos coloca que, de modo geral, na filosofia dos gregos, a palavra

ἀ!0'1.2 era traduzida usualmente por “verdade”310, e ἀ!3'0% era a palavra usada

na enunciação para expressar certeza e confiança, mas não no sentido de

desvelamento. Segundo Zarader, esse entendimento foi assumido pela filosofia

medieval que condensou na fórmula “Veritas et adaequatio rei et intellectus”311

toda uma compreensão na qual a verdade é concebida como uma adequação do

conhecimento à coisa. Como vimos anteriormente, Heidegger entende que o

círculo iniciado com Platão, cuja a história da essência da verdade é

experimentada metafisicamente, se fecha com Nietzsche. Não há, segundo o

filósofo, nenhuma percepção de que, nesse âmbito, a verdade reine apenas como

adequação e concordância. No entender de Heidegger, a verdade experimentada

como retitude da representação e da enunciação se põe à luz do ente e fica, por

isso, reduzida ao sentido de ὀ4'"53%. A ἀ!0'1.2, pensada por Heidegger como

desvelamento, como clareira da presença, não é a verdade. Todavia, a verdade,

como certeza do saber a respeito do ser, só pode se dar no aberto da clareira, no

desvelamento. Para o filósofo, a ἀ!0'1.2 é o caminho para o qual o pensamento

se abre, é o lugar que garante ser e pensar, é aquilo que possibilita à presença se

fazer presente. É a ἀ!0'1.2 que possibilita a verdade312, é ela que a origina.313

Ernildo Stein, em Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da

interrogação heideggeriana, nos fala que a ἀ!0'1.2 é um elemento essencial e

comanda toda a atitude de Heidegger diante da metafísica ocidental. Ela é,

309 Entendemos a essencialidade da palavra ἀ!0'1.2 no vocabulário heideggeriano, todavia, nosso intuito é o de, apenas, entendermos o caminho do pensar de Heidegger ao nos encaminhar para Parmênides no escrito Que chamamos pensar?. 310 Grifo do autor. 311 A frase “Veritas et adaequatio rei et intellectus” pode ser traduzida livremente por: a verdade é a adequação da coisa ao conhecimento ou a adequação do conhecimento à coisa. 312 Cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.105ss. 313 Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.62.

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segundo o autor, a própria possibilidade de pensarmos o ser não só como

desvelamento, mas, como retenção e velamento; não só como presença, mas,

também, como ausência. Stein nos coloca que, para Heidegger, todo o jogo do

velamento-desvelamento só é possível de ser pensado na ἀ!0'1.2, pois é ali que

“esconde-se [...] o elemento da ausência que presentifica”.314 Isso significa,

segundo o intérprete, que é a possibilidade – elemento fundamental da clareira –

aquilo que ao mesmo tempo vela e desvela. Para Stein, Heidegger nos remete para

o domínio dos primeiros pensadores gregos, pois neles é possível encontrar aquilo

que seria o fundamento da presença, 2-!0'3. É, segundo o autor, esse “alfa

privativo que caracteriza o desvelado que deixou para trás aquilo que se retém em

favor da presença, (que) aponta para a retenção, (para) a retração, para a

possibilidade”.315 É, pois, a ἀ!0'1.2 a palavra-chave que abre, no pensar de

Heidegger, a interrogação pelo ser. Mas, como os pensadores da origem pensaram

a ἀ!0'1.2?

Heidegger nos conta que Parmênides foi o primeiro a meditar o ser do

ente. É Parmênides que, em seu poema, nos fala da ἀ!0'1.2 referindo-se ao

“lugar do silêncio que concentra em si aquilo que primeiramente possibilita

desvelamento”.316 Para o filósofo, a imagem da clareira no meio de uma floresta

densa nos fornece todos os elementos necessários para pensarmos a questão

originária: um espaço onde a livre dimensão do aberto, uma vez contemplada,

venha a falar algo à nossa alma, tanto do que se faz presente como do que se faz

ausente. Na clareira tudo se evidencia, tudo se torna claro. Mas, também se fecha

e se preserva em sua originariedade, “semelhante a uma fonte que só jorra

enquanto se preserva a si mesma”317. De acordo com o pensador, somente do

âmago da clareira pode brotar a possibilidade de um comum-pertencer entre ser e

pensar, ou seja, a articulação entre presença e apreensão. Heidegger entende que

sem a experiência prévia da clareira, não há possibilidade de dizer qualquer

palavra sobre o pensamento.318 Isso significa que, toda e qualquer ideia sobre o

314 Ernildo Stein, Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana, Ijuí: Ed. Unijuí, 2001, p.85. 315 Ibidem, p.87. 316 Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, pp.104-105. 317 Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.32. 318 Cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.105.

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pensar não pode sequer ser levantada em questão, enquanto não entendermos a

ἀ!0'1.2 como desvelamento. Stein acrescenta que é a experiência grega

originária “[....], que contém em si a possibilidade de eclodir numa palavra aquilo

que a resume. Sem a compreensão da experiência grega, a etimologia da palavra

ἀ-!0'1.2 é letra morta”.319

Fica claro, a partir de Zarader, que Heidegger descarta qualquer

possibilidade de uma leitura metafísica do poema, ou seja, uma leitura à luz do

platonismo, cuja interpretação foi seguida por toda a tradição filosófica. O

filósofo não questiona o pensador da aurora grega a partir desse horizonte. Para a

intérprete, o que Heidegger pretende é compreender Parmênides à luz da origem e

daquilo que ali ficou encoberto. Não se trata, segundo a autora, de uma

aproximação “objetiva”320, mas de tentarmos compreender em que medida o

chamado do ser foi direcionado a Parmênides. Trata-se de um caminho de

questionamento bastante árduo de ser percorrido, sobretudo porque “o que é digno

de ser questionado é assumido como o único âmbito de permanência do pensar”.321

3.3.2. O fragmento VI

Voltemos ao escrito de Heidegger e à análise do fragmento VI do poema

Da Natureza de Parmênides: 64ὴ 5" !7#1.8 51 8$1ῖ8 5᾽ἐὸ8 ἔµµ182., traduzido

habitualmente por “é preciso dizer e pensar que o ente é”322. O filósofo nos coloca

que, tão acostumados a uma tradução usual, não nos damos conta que Parmênides

esteja a nos soprar à alma aquilo que chamamos pensar. Vejamos como isto se dá.

Heidegger inicia sua caminhada partindo de uma análise bem elementar e

eliminando as obviedades contidas na estrutura desse fragmento; afinal, um

pensador da grandeza de Parmênides não se ateria a dizer algo da ordem do

trivial. Para o filósofo, dizer que “o ente é”323 pode não só enunciar o fato do ente

ser, mas, sobretudo, o fato de pertencer ao ente como traço fundamental o “é”324.

Assim, “o ente é” significa dizer que ele não-não é. Mas o que esse “é” nomeia? O

319 Ernildo Stein, Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana, 2001, p.94. 320 Grifo da autora. 321 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.155. 322 Grifo nosso. 323 Grifo do autor. 324 Grifo do autor.

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que fica encoberto nesse “é”? O pensador entende que há aí uma densidade

tamanha que mal nos damos conta. Acolhemos esse “é” tão naturalmente que,

nesse acolhimento, permanecemos no abandono da ilusão do uso regular de um

verbo auxiliar que atravessa nossa fala inúmeras vezes ao dia. Nossos ouvidos

estão tão habituados às representações desse “é” que acreditamos que nada mais

fica por dizer. Heidegger percebe que, talvez, nesse aparente vácuo de sentido

habite “a única possibilidade para os mortais de chegar à verdade”.325 Para o

filósofo, o enunciado de Parmênides encerra em si o mais absoluto mistério do

pensar e do dizer. E penetrar neste enunciado é o mais árduo, precisamente,

porque nos encontramos sempre por ele envolvidos.

Segundo Heidegger, o enunciado de Parmênides é algo que lhe é

soprado à alma, pois, logo em seguida à sentença, encontramos o pedido para que

aquele saber seja guardado no coração. Ao que, de imediato, o filósofo indaga:

quem é esse eu que faz tal demanda? Quem é esse eu que fala àquele que pensa?

E, mais, quem é esse que, além de chamar, indica caminhos? Heidegger nos

coloca que aquele que chama a pensar nos remete a três caminhos: o caminho que

devemos seguir, aquele ao qual devemos prestar atenção e a um outro que

permanece inacessível ao pensamento. Segundo o filósofo, nos deparamos neste

dizer com uma encruzilhada: o caminho, o não-caminho e o falso caminho. Essa

encruzilhada, à qual o pensar é lançado, se faz presente a todo o instante desse

caminhar; motivo pelo qual somos eternamente levados ao caminho do

questionamento.

De forma a tornar a estrutura do enunciado de Parmênides mais precisa e

trazer à luz aquilo que ficou ensombreado, Heidegger analisa a sentença

seccionando suas partes por meio de “dois pontos”.326 Em um sentido mais livre

podemos entender o “é preciso”327 por “é necessário”328, de modo que o enunciado

fica assim disposto: “Necessário: o dizer assim como pensar: ente: ser”.329 Para o

filósofo, encontramos nos “dois pontos” um aceno da relação entre os termos. Em

grego, essa relação de ordem e posicionamento chama-se 59:.%. Todavia, não há

nesse ordenamento uma ligação, pois os termos encontram-se justapostos pelos 325 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.146. 326 Grifo do autor. 327 Grifo do autor. 328 Grifo do autor. 329 Martin Heidegger, op. cit., p.153.

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“dois pontos”. Isto torna o ordenamento paratáxico: uma sentença ordenada a

partir do conjunto. É somente com o acréscimo dos termos de ligação que a

ordenação sintática dos termos vem a ocorrer. Segundo George Pattison, em The

later Heidegger, uma frase contém uma unidade de sentido quando expressa uma

relação de sujeito e predicado (x é y). Esta estrutura nos dá o entendimento de que

para tudo o que existe encontramos atributos ou propriedades. Para o intérprete,

em uma sentença paratáxica, os elementos da oração não se reduzem a uma

unidade formal; não há nenhum ordenamento explícito na relação dos termos e,

portanto, nenhuma predicação. Dentro de uma concepção lógica, além de soar

estranha aos ouvidos, essa oração não tem significado algum. Heidegger nos fala

que quando falta o aspecto sintático numa construção linguística, ou entendemos

que há um desvio da sintaxe, ou nos deparamos com um estágio da língua que

ainda não foi alcançado. O linguajar paratáxico é encontrado em linguagens em

que a estrutura sintática da língua não existe, como no caso dos povos primitivos

ou, mesmo, entre crianças, cuja estrutura ainda não foi construída. Mas, como

esse tipo de linguagem pode se adequar ao pensamento de Parmênides?

Heidegger entende que a construção ; “Necessário: o dizer assim como

pensar: ente: ser”330 não é não-sintática e, muito menos, primitiva. O filósofo

concede ao paratáxico um status fora de comparação ao da linguagem primitiva

ou mesmo do falar infantil. Nesse falar, mesmo que num vislumbre, Heidegger

distingue um falar mais original, um falar com uma intencionalidade mais

abstrata. Para ele, há no espaço entre as palavras um falar e desse vazio é que

brota a fala do pensador, um pensar em si mesmo. Vejamos, então, cada uma

dessas palavras. Passemos à análise heideggeriana e busquemos encontrar nesse

pensar um abrigo.

3.3.2.1. O ()ὴ

Sabemos, a partir de Heidegger, que o vocábulo grego 64ὴ é traduzido

por “é necessário”. Apesar de não recusar essa tradução, Zarader nos aponta que o

filósofo esforça-se para entendê-la a partir de um horizonte mais original.

Heidegger nos fala que a palavra 64ὴ pertence ao verbo 649< (usar, manusear), de

onde também deriva o substantivo 61=4 (mão). Com isso – eu uso, eu manuseio –

330 Grifo do autor.

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significa reter algo em mãos, significa precisar de algo. Jaz neste precisar uma

adaptação na medida em que quando manuseamos alguma coisa, nossa mão se

adapta à coisa manuseada e não o contrário. Em acordo com Zarader, Carol

White, em “Heidegger and the greeks”, também compreende que devemos buscar

o significado da palavra grega 64ὴ em sua raiz, segundo a qual os vocábulos 61=4

(mão) e 649< (manusear) sugerem não só o envolvimento com algo ou o alcançar

das mãos, bem como o deixar nas mãos de alguém ou o deixar algo pertencer a

alguém. É, pois, na essência desse precisar que Heidegger vai se deter.

Heidegger entende que é a partir do precisar entendido como brauchen

que nos orientamos para a sua essência. Essa forma do precisar não é criada pelo

homem e, tampouco, significa um simples utilizar (Benützen). O utilizar já é,

segundo o filósofo, uma deterioração do precisar. A tradução proposta por

Heidegger, para a palavra alemã der Brauch, se atém ao sentido de um uso que

guarda na essência e que deixa aquilo que é no seu mais próprio, que deixa ser.

White também se atém ao sentido do termo alemão der Brauch e nos adverte a

não tomá-lo em sua forma puramente pragmática, como a do vocábulo “uso”, pois

na sua acepção verbal, brauchen também significa precisar, empregar, envolver-

se, e, segundo a autora, Heidegger toma a palavra brauchen naquilo que considera

a raiz de seu significado: o de desfrutar, estar satisfeito com algo e tê-lo em uso.

Para a intérprete, o 64ὴ indica um manusear para que nesse uso a coisa seja o que

é, “uma reunião que ilumina e abriga o que é, fazendo que isto seja o que é.”331

Zarader acrescenta que o 649< (manusear), ao qual Heidegger se detém, também

se acerca de uma entrega que deixa algo em mãos certas, no sentido de liberar a

uma pertença. Segundo a autora, na ideia de entrega, liberação e pertença

encontramos uma relação muito obscura que se anuncia a partir de “uma fruição

cuja propriedade essencial é deixar ser”.332 A intérprete nos coloca que, para

Heidegger, não há de forma alguma um abandono ou indiferença nesse deixar,

mas, ao contrário, um cuidado e apego, pois deixa o que é usado em sua essência.

Fala-nos, pois, de uma salvaguarda.

Uma análise mais aprofundada da palavra alemã der Brauch encontramos

com Michel Haar, em Heidegger et l’essence de l’homme. O autor nos apresenta 331 Carol White, “Heidegger and the greeks”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to Heidegger, 2005, p.125. Tradução nossa. 332 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.128. Itálico da autora.

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que o termo Brauch diz respeito não só à necessidade do ser, como também à

maneira pela qual a sua relação com o homem responde a essa necessidade,

“utilizando”333 o homem. Segundo Haar, para Heidegger, “o homem manter-se

(nesta relação) significa a mesma coisa que: o homem, como homem, ser

essencialmente, im Brauch, mantido.”334 O intérprete entende que o ser nos

mantém e, ao mesmo tempo, mantém-se em nós na medida em que somos

necessários para ele, ou seja, expressa-se no apelo do ser (Anspruch)335 uma dupla

necessidade: primeiro, a necessidade de despertar no homem uma resposta ao ser,

e segundo, a própria necessidade do ser dessa resposta. Para Haar, a manutenção

do ser em relação ao homem determina uma necessidade que “compele”336 o

homem ao ser, e que essa relação não se completa enquanto o homem não for

capaz de pensar o ser, pois é no pensar que o homem cumpre essa realização. O

autor compreende que, para Heidegger, é o pensar que realiza (vollbringt) a

relação do ser com o homem.

De acordo com Haar, a palavra Brauch busca encontrar o sentido original

da palavra “necessidade”337, expressa tanto no 64ὴ de Parmênides, como no 5ὸ

641>8 dos fragmentos de Anaximandro. O intérprete nos explica que o 64ὴ,

normalmente associado à ideia do “é necessário”338, refere-se a uma necessidade

extrínseca. Entretanto, na medida em que Heidegger liga-o à sua raiz 61=4 (mão) e

deriva o 641>8 do verbo 649< (colocar em uso ou manusear propriamente), o “é

necessário” de Parmênides deve ser entendido como uma necessidade intrínseca,

uma necessidade interna que governa toda a presença. Haar segue esclarecendo

que esse “é necessário” relaciona-se com o fato de que na medida em que o ser se

inclina sobre os entes presentes, de algum modo ele “lida com”339 o decurso do

tempo, e que o termo alemão Brauch se circunscreve à ampla relação da presença

333 Grifo do autor. 334 Martin Heidegger apud Michel Haar, Heidegger and the essence of man, 1993, p.129. Tradução nossa. 335 An.spruch Sm, [...] 2. reivindicação, exigência, reclamação. (cf. [online] Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/escolar/alemao/definicao/alemao-portugues/anspruch_40594.html Acesso em: 27/9/2014. 336 Grifo do autor. 337 Grifo nosso. 338 Grifo do autor. 339 O tradutor utiliza o termo handle entre aspas, cujo sentido, além de nos direcionar para o “lidar com”, “cuidar de”, “ocupar-se de”, também infere o “manusear”, trazendo, assim, ao Brauch a ideia de “uso e manuseio” inferidos por Heidegger. (cf. [online] Disponível em: http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/handle_1 Acesso em 27/9/2014.)

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para com as coisas presentes. Para Heidegger, a inferência trazida pelo termo

Brauch seria, então, “o modo como o próprio ser está a ser (west) enquanto

relação com o que está presente – uma relação que diz respeito ao que está

presente enquanto tal e que o maneja: 5ò 641>8.”340 Isso significa, segundo Haar,

que o “deixar ser”341 mantém o que é na própria essência, ou seja, mantém o que é

no seu próprio e chama o homem a pensar o que lhe é o mais próprio,

conservando-o como algo presente.

Após essas análises entendemos que subjaz neste precisar um sentido de

captura muito difícil. O próprio Heidegger nos coloca que o precisar inferido pelo

vocábulo grego 64ὴ é dificilmente percebido pelos mortais, pois sua essência

nunca se deixa avistar assim facilmente. Haar nos adverte mais adiante em seu

texto que, diante da racionalidade tecnológica, o “pensamento calculador”342 não

reserva outro destino que não a morte da essência humana, e que “a não

experiência do ser afeta o ser, [...], subjuga-o de tal forma que o ser ‘precisa’ ser

contemplado, ser pastoreado pelo homem”.343

Segundo Heidegger, ao destino dado por Parmênides à forma 64ὴ – sendo

a palavra alocada logo no início da frase – não resta outro sentido senão o de “é

preciso...”344. O enunciado “é preciso” designa uma frase impessoal que nos fala

de algo digno de questionamento. Todavia, o filósofo entende que não há no

enunciado de Parmênides nem uma premência, nem uma demanda no sentido de

uma obrigatoriedade, como comumente a expressão “é preciso” evidenciaria, mas

aproxima-se muito mais do sentido de “dá-se”345(es gibt), uma vez que conjuga

algo da ordem da essência. Daí a necessidade de entender o vocábulo grego 64ὴ

no seu sentido mais elevado. Heidegger nos rememora que tratou desse “dá-se”

em Ser e Tempo e, também, na carta “Sobre o humanismo”, onde encontramos a

frase: “dá-se o ser”.346 O que podemos dizer desse “dá-se”?

340 Martin Heidegger, Caminhos de floresta, Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p.434. 341 Grifo nosso. 342 Grifo do autor. 343 Michel Haar, Heidegger and the essence of man, 1993, p.133. Tradução nossa. 344 Grifo do autor. 345 Grifo do autor. 346 Grifo do autor.

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Para o filósofo, ao dizer “dá-se o ser” evita-se a expressão clássica: “o ser

é”347. Nos encontramos, pois, circunscritos àquilo que o pensador nos evidenciou

anteriormente: o nomear do “é”. Heidegger entende que não se percebe que

quando dizemos que algo é, nos referimos apenas ao ente, falamos das coisas que

são. O ser não é uma coisa, não é um ente. Neste sentido, ao dizer “dá-se” o ser, o

que se dá é o ser ele mesmo. Esse dá “(...) nomeia aquilo que dá, a essência do ser

que garante a verdade. O dar-se ao aberto, com ele mesmo, é o próprio ser.”348

Seguindo na mesma esteira, Heidegger evoca a frase de Parmênides: éstin gàr

eῖnai que significa: “É, a saber, o ser”349. Esta frase, de acordo com o filósofo,

reúne em si um mistério originário para o pensar que, entretanto, permanece

impensado para a Filosofia: a própria verdade do ser. É, pois, nesse sentido, que

Heidegger, já em Ser e Tempo, diz: “dá-se” o ser. Para o filósofo, “este dá-se

impera como o destino do ser, cuja História se manifesta na linguagem pela

palavra dos pensadores essenciais. É por isso que o pensar que pensa, penetrando

na verdade do ser, é, enquanto pensar, Historial.”350 Segundo Heidegger, não há o

pensamento sistemático que se desdobra em interpretações do ser na história.

Mas, ao contrário, o que existe é a própria História do ser que é rememorada na

medida em que esse, ao se fazer destino, se dá em sua verdade.

Sabemos, através de Carneiro Leão, que “por ser Essencialmente destino,

o Ser, ao destinar-se no homem, se retém e esconde como destino”351, ou seja, é

parte do destino do ser essa retenção. Segundo o autor, Heidegger nomeia como

ἐ?$60, à dialética do dar-se e retrair-se, e lança mão da forma adjetiva “epocal”352,

para tratar da relação dialética em que o ser cumpre o seu destino. Carneiro Leão

compreende que é na linguagem, onde mora o homem, que o ser se destina sendo

ser, e é na palavra do poeta e do pensador que vamos encontrar a articulação do

destino “epocal” do ser. Em acordo com o pensar de Carneiro Leão, Zarader

também entende que se o ser encontra-se oculto para o pensar, é preciso que

347 Grifo do autor. 348 Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e Escritos Filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.358. 349 Ibidem, p.358. 350 Ibidem, p.358. 351 Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.15. Maiúsculas do autor. 352 Grifo do autor.

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esteja de alguma forma conservado na linguagem.353 Por outras palavras: mesmo

sendo destino do ser a retração, e ainda que esquecido pelo pensamento,

precisamos encontrar vestígios na língua, pois é na linguagem que o destino do

ser se cumpre. Trata-se, pois, de auscultar de que forma o ser veio à linguagem na

aurora do pensamento. Voltemos à sentença, a fim de aí encontramos mais

elementos para uma compreensão.

3.3.2.2. O "*+%&, e o ,-%ῖ,

O que nos falam o !7#1.8 e o 8$1ῖ8? A partir do dicionário designam

“dizer” e “pensar”354. Todavia, de acordo com Heidegger, o uso habitual nos fala

de um lugar do dizer e do pensar que, mesmo lexicalmente corretos, não trazem à

luz aquilo que !7#1.8 e 8$1ῖ8 significam em si mesmos. Zarader compreende que

Heidegger não se satisfaz em apenas falar do pensamento, mas pretende nos

mostrar que o fragmento 5" !7#1.8 51 8$1ῖ8 51 nos orienta para a essência do

pensar e nos revela o seu ser original. Segundo Inwood, não estamos aqui

circunscritos ao escopo de meras palavras, mas de palavras essenciais, as quais

exprimem ações que nos dão conta daqueles instantes em que uma centelha de luz

ilumina o mundo. De acordo com Heidegger, desde Platão e Aristóteles, esses

verbos se apresentam como caminhos essenciais do pensar.355 Sabemos, contudo,

que o filósofo busca uma compreensão para os termos que antecede os

significados a eles atribuídos pela tradição metafísica. Para Heidegger, há no

!7#1.8 e no 8$1ῖ8 uma relação de pertença mútua que denota algo de essencial. O

filósofo compreende que esses vocábulos não estão no enunciado de Parmênides

de forma impensada ou descuidada. De acordo com Zarader, para termos alguma

compreensão da articulação entre o !7#1.8 e o 8$1ῖ8, e de tudo aquilo que daí

resulta para o caminho do pensar, devemos nos direcionar a essas palavras e

buscar ouvi-las naquilo que originariamente nomeiam.

Analisemos, pois, com Heidegger, o enunciado de Parmênides:

Necessário: o dizer e assim também o pensar, o ente é. Nele, a ordem dos verbos

não soa de forma estranha aos ouvidos? Como pode-se falar algo antes de pensá- 353 Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.126. Itálico da autora. 354 Grifos nossos. 355 Vimos anteriormente como a lógica foi compreendida como a doutrina do !"#$% e, a partir disso, como o !"#$% se relacionou à doutrina do pensar determinando, assim, todo o destino do pensamento ocidental.

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lo? Por certo não é do falar no sentido do uso do aparelho linguístico que

Parmênides se refere aqui. Em que sentido, então, podemos entender o !7#1.8?

Segundo o filósofo, !7#1.8 significa incontestavelmente: dizer, relatar, narrar.

Heidegger também nos aponta que o verbo !7#1.8 é o mesmo que em latim legere

e em alemão legen. Na construção de seu significado, a partir dos elementos que

compõem o termo, o filósofo encontra em seu tronco linguístico as palavras: pôr,

propor, expor e dispor reflexivamente. Segundo Heidegger, é certamente nesse

sentido que os gregos pensavam o !7#1.8. Na esteira desse caminho, faz-se

necessário refletir que há aqui uma ambiguidade, pois o !7#1.8, mesmo

significando “dizer”356, tem no pensamento grego o sentido de “pôr”.357 Uma

forma, sem dúvida, estranha de representação da língua que ressalta a

plurivocidade da palavra grega. Mas, como podemos chegar a essa compreensão?

Segundo Zarader, tanto o !"#$/ quanto o !7#1.8 se circunscrevem a uma

polissemia que dificulta em muito a compreensão de seus significados. Todavia,

para a intérprete, o sentido próprio dos termos deve ser interrogado a partir do

significado fundamental da palavra !"#$/. O próprio Heidegger nos lembra que o

substantivo !"#$/ liga-se ao verbo !7#1.8 e que em sua raiz latina (legere), e no

próprio alemão (lesen), encontramos a ideia de colher, apanhar. O sentido

atribuído a ler é apenas uma variação do ajuntar, embora, segundo o filósofo,

tenha tomado o primeiro plano.358 De acordo com Heidegger, o vocábulo alemão

lesen significa juntar coisas e colocá-las lado a lado como num conjunto.359 Assim,

o primeiro sentido de !"#$/ é colheita. A partir dessa compreensão, Zarader nos

indaga: onde é que a colheita busca a sua essência? Para a autora, entende-se por

colheita “o levantar do chão (aufnehmen), reunir (zusammenbringen) e conservar

(aufbewahren)”360 – atos que perpassam e permeiam uma colheita. Compreende-

se, pois, na essência da colheita, o pôr ao abrigo, o preservar e o conservar.

Segundo a intérprete, Heidegger nos oferece o termo recolha (sammeln) como

aquele que reúne, em seu escopo semântico, a compreensão dos três vocábulos.

Seria, então, recolha (sammeln) o termo heideggeriano para a essência da colheita

356 Grifo nosso. 357 Grifo nosso. 358 Cf. Martin Heidegger, “Logos”, in: Ensaios e conferências, Petrópolis, Rio de Janeiro:Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012, p.185. 359 Cf. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, 1999, p.149. 360 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.217.

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(lesen). Mas, e quanto à essência da recolha? O que é a recolha em sim mesma?

Zarader nos aponta, então, um outro termo derivado do primeiro: Versammlung.361

É essa a palavra que, para Heidegger, indica a multiplicidade de sentidos que

caracteriza a recolha por excelência– algo que “só é o que é quando se reúne,

segundo todas as suas dimensões, naquilo que essencialmente a predetermina,

quer dizer, no pôr ao abrigo”.362 Segundo Zarader, foi a partir do !7#1.8, assim

concebido, que chegamos ao legen alemão, traduzido por estender, pôr.363 Ainda

assim, perguntamos: o que significa esse !7#1.8 como pôr? O que esse pôr diz em

si mesmo, em sua essência?

Heidegger entende que os verbos depor ou propor denotam o resultado de

algo que se assenta diante de nós. Nesse sentido, o mar, as árvores e as montanhas

se assentam de tal forma, que entende-se esse assentar como algo que independe

da ação do homem. No grego, o assentar corresponde à palavra @1ῖ-'2. e não

designa oposição ao que está de pé. Assim, a árvore tombada e a árvore em pé

estão assentadas da mesma forma que o mar. Zarader acrescenta que deixar

qualquer coisa assentar é deixá-la aparecer.364 Para Heidegger, o fundamental no

assentar é o fato de que o que se assenta vem à cena por si mesmo. Por outras

palavras: no assentar de algo, aquilo que se “põe”365 já encontra-se

antecipadamente assentado como marca de uma pertença ao seu próprio modo de

vir a ser. O filósofo se refere àquilo que singular e primeiramente se assenta, antes

mesmo de uma apreensão. Trata-se, pois, da compreensão de que aquilo que em

sua singularidade se assenta diante de nós é, antes de mais nada, algo que

previamente já encontra-se assentado. Assim, o mar, as árvores e as montanhas

“preexistem e manifestam-se a partir do seu assentar-se diante de nós”.366 Mesmo

que de forma impronunciada, isto é, antes mesmo de afirmarmos que algo é, esse

algo já é, já preexiste. A4ὴ: 5" !7#1.8 fica então – é preciso: o pôr, o deixar

assentar-se diante de nós. O filósofo afirma que, para os gregos, é a partir desse

pôr que a essência do dizer se determina, e, nessa mesma medida, que o

361 Michel Haar, em sua aproximação do logos ao mythos, também se refere ao vocábulo alemão Versammlung, como aquilo que reúne em si, a reunião original, a essência da reunião. 362 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.218. 363 Para o jogo da derivação – !7#1.8 – legen – lesen – cf. Martin Heidegger,“Logos”, in: Ensaios e Conferências, 2012, p.185ss. 364 Cf. Marlène Zarader, op. cit., p.134. Itálico da autora. 365 Grifo nosso. 366 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.173.

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significado da palavra !"#$%, forma substantivada de !7#1.8, se circunda. Zarader

nos coloca que o !"#$% não se acerca, em seu sentido originário, de algo da ordem

do “falar”367, mas fundamentalmente daquilo “que recolhendo o presente, o deixa

estendido-junto-diante, e assim o preserva abrigando-o na presença”.368

Heidegger nos fala que é o próprio Parmênides que claramente nos

concede o significado do !"#$%. Segundo o filósofo, no fragmento VII

Parmênides nos alerta para o caminho que o pensar reflexivo deve trilhar, nos fala

do outro caminho habitualmente trilhado pelos mortais, o qual jamais conduz à

coisa-a-pensar, e, por fim, nos alerta para que se tenha atenção a algo, a uma

requisição. Diz Parmênides: “E não te coaja o hábito, muito corrente, nesse

caminho, (a saber) / a deixar passear o olho cego e o ouvido ruidoso / e a língua,

muito mais ponha-se a diferir reflexivamente [...]”.369 Heidegger nos chama a

atenção para a oposição entre o !"#$% e a língua, entre a postura reflexiva e a

dispersão, entre o discernimento e o tagarelar. Pensada, então, a partir de

Parmênides, a essência do !7#1.8 e do !"#$% se circunda dessa postura reflexiva

que deixa aparecer, deixa assentar-diante-de.370 Diz Heidegger: “para os gregos o

dizer é um pôr. (E) a língua consubstancia-se no dizer”.371 Isso significa que no

pôr – nesse algo que se assenta-diante-de – entende-se decisivamente tudo o que

é. Delineiam-se, assim, os primeiros traços daquilo que seria a essência grega da

linguagem: dizer é deixar algo aparecer como aquilo que é, é o deixar ser.

Visamos já o !7#1.8 em relação ao pôr. E quanto ao 8$1ῖ8, o que se passa

no interior desse vocábulo grego? Heidegger entende que o mesmo que ocorre

com o !7#1.8 em relação ao dizer, ocorre com o 8$1ῖ8 quando o traduzimos por

pensar. Para o filósofo, através de uma atitude reflexiva e livre do usual, quando

nos envolvemos com o 8$1ῖ8 percebemos que pensar tampouco se aproxima da

essência dessa palavra. A tradução de 8$1ῖ8 por perceber é muito mais cuidadosa

do que pensar. Mas, como podemos entender esse perceber? Heidegger

compreende o perceber como um recolher, uma receptividade que, no entanto, é

367 Grifo da autora. 368 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.220. Hífen da autora. 369“µ3B7 - ἔ'$% ?$!&?1.4$8 "Bὸ8 @25ὰ 508B1 C.9-'< / 8<µᾶ8 ἄ-@$?$8 ὄµµ2 @2ὶ ἠ601--28 ὰ@$*08 / @2.D #!ῶ--28, @4ῖ82. Bὲ !"#<$. [...].”(cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.167.) 370 Hífen do autor. 371 Martin Heidegger, op. cit., p.173.

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ativa. No 8$1ῖ8, o que é percebido nos interessa de tal forma que o tomamos e

fazemos algo com ele. Trata-se de um perceber que tem como traço o pretender

(des Vor-nehmens). Segundo o filósofo, a forma substantivada de 8$1ῖ8 – 8"$/ ,

8$ῦ/ – nos fala de buscar sentido para algo e fazer isso de coração; não fala, de

forma alguma, daquilo que mais tarde ficou entendido como razão. Heidegger

entende que daí resulta que o 8$1ῖ8 pode significar também o farejar, cujo escopo

semântico associa-se ao pressentir (Ahnen). Todavia, numa dimensão puramente

lógica, esse pressentir perdeu-se de seu sentido original. Para o filósofo, o

vocábulo pressentir em seu sentido primevo se acerca da ideia de que algo vem

até nós, nos sobrevém, e, desse modo, se oferece à atenção para que aí a

retenhamos. Assim, o 8$1ῖ8 possui o traço do reter na atenção, na memória, no

coração, e se aproxima daquilo que anteriormente Heidegger entendeu por

Gedanc: memória, enlevamento. Heidegger traduz, então, o 8$1ῖ8 por “prestar-

atenção-a”372. Zarader nos coloca que o 8$1ῖ8 comporta uma dimensão ativa de

captura. Todavia, nessa apreensão não há uma dominação, o 8$1ῖ8 não se apodera

daquilo que é apreendido. Nessa captura ele apenas guarda em atenção, e, por

isso, é uma salvaguarda.373 Para Heidegger, “a atenção é a guarda que toma o

assentar-se diante de nós em sua verdade, que, todavia, carece em si mesma da

salvaguarda que no !7#1.8 é consumada como reunião”.374

Temos, assim, parte do fragmento compreendido. A sentença 64ὴ 5" !7#1.8 51 8$1ῖ8 51... fica assim traduzida por Heidegger: “é preciso o deixar

assentar-se diante de nós, bem como o prestar atenção a...”375. Para o filósofo, esta

tradução esclarece quatro pontos:

i. primeiramente, o !7#1.8 precede o 8$1ῖ8 para que aquilo que se assenta

diante de nós venha a tomar nossa atenção. A isso, Zarader acrescenta que

“só pode ser tomado à sua guarda pelo pensamento o que já foi deixado

desdobrado-diante pelo dizer”376;

ii. em segundo lugar, não há um sequenciamento de palavras; mas, um

desdobrar-se tanto do !7#1.8 em direção ao 8$1ῖ8, como em sentido

372 Grifo do autor. 373 Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.135. 374 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.174. 375 Grifo do autor. 376 Marlène Zarader, op. cit., p.136.

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inverso, pois prestar atenção àquilo que se assenta diante de nós, já denota

o movimento de um em direção ao outro. Heidegger percebe que a

minuciosa utilização de 51 – 51 articulando os verbos !7#1.8 e 8$1ῖ8 dão

um sentido especial à sentença. Não há aqui uma mera conjunção a unir os

termos, mas uma interação, um entrelaçamento. Segundo Zarader, com o

51 – 51 articulando os verbos !7#1.8 e 8$1ῖ8, não há uma sucessão, mas

uma mútua reciprocidade, uma co-pertença. Aquilo que Heidegger entende

por uma autêntica relação de articulação em que as partes devotam-se

mutuamente uma à outra.

iii. em terceiro lugar, é através dessa tradução que a sentença torna-se audível,

ela nos encaminha para o caráter primordial daquilo que se designou como

pensar. Heidegger nos aponta para o fato de que é na articulação entre o

!7#1.8 e o 8$1ῖ8 que podemos entender o que quer dizer pensar. Zarader

acrescenta que não devemos compreender o !7#1.8 e o 8$1ῖ8, como duas

determinações do pensamento, mas como a sua unidade, o traço de união

que determina a essência do pensar. Para Heidegger, a partir da articulação

de ambos os verbos compreende-se o que mais tarde chamou-se de

ἀ!3'1&1.8: “desvelar e manter desvelado o que se oculta”.377 Esta é,

segundo o filósofo, a essência encoberta do !7#1.8 e do 8$1ῖ8: estabelecer

uma correspondência com aquilo que se oculta. Entendemos, a partir de

Heidegger, que a articulação de ambos não jaz em si mesma. O !7#1.8 e o

8$1ῖ8 se direcionam nessa correspondência àquilo que lhes concerne e

define. O filósofo nos coloca que é exatamente por conta disso que nem o

!7#1.8 e nem o 8$1ῖ8 determinam a essência do pensar. Zarader

compreende que há aqui um direcionamento ao ser. Para a intérprete, não

podemos entender que “o pensamento é determinado pelo dizer se não se

compreendeu primeiro o dizer como instituição no ser, instituição, que por

sua vez, reclama ser salvaguarda no pensamento”.378 Heidegger entende

que esse caminho, no entanto, foi encoberto quando os romanos

entenderam o acoplamento de !7#1.8 e 8$1ῖ8 como ratio. )7#1.8 fica

entendido como “expor algo como algo” e 8$1ῖ8 como “tomar algo como

377 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.177. 378 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.137.

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algo”379, perde-se totalmente o seu sentido original. Aqui a ratio está

relacionada à razão e, consequentemente, à lógica. A partir daí, o

entendimento essencial do pensar dos gregos fica obscurecido e

interditado, pois a partir da filosofia medieval e, depois, durante todo o

período da filosofia moderna, os vocábulos !7#1.8 e 8$1ῖ8 foram

compreendidos a partir do conceito de ratio. O pensar será, pois,

compreendido como o acoplamento do !7#1.8 em sua capacidade de

enunciação e do 8$1ῖ8 no sentido da razão. Com isso, Heidegger percebe

que a pergunta “Que chamamos pensar?” não chegou, sequer, a ser

formulada;

iv. por último, no sentido de mostrar o primeiro traço essencial do pensar,

Heidegger chama atenção para a meticulosa articulação a partir da

tradução de !7#1.8 e 8$1ῖ8. O fato do 8$1ῖ8, “prestar atenção a”380, ser

determinado pelo !7#1.8 nos diz duas coisas: primeiro, que o 8$1ῖ8 tem sua

origem no !7#1.8 e desdobra-se a partir deste, pois num dizer reflexivo, o

“prestar atenção a” nos fala de uma acolhida daquilo que se assenta diante

de nós; e, segundo, que a atenção prestada une-se àquilo que se assenta

diante de nós, ou seja, o 8$1ῖ8 torna-se contido e mantido no !7#1.8.

Zarader entende que o lugar do !7#1.8 no fragmento nos concede a

primazia de sua essência, um caráter de prioridade que indica uma

necessidade, pois se o 8$1ῖ8 necessita que o !7#1.8 o anteceda, isto

significa que o dizer não é apenas uma predicação, nem tampouco um

deixar aparecer, “mas é também e mais fundamentalmente ainda reuni-lo

no que é, instituí-lo na presença – condição sine qua non da captação ou

da apreensão”.381 A intérprete compreende que a nomeação do 8$1ῖ8 em

segundo lugar significa, por sua vez, que esse não se desdobra como uma

mera representação ou como um ato da consciência, mas, é a própria

“manutenção no ser que é captada, o seu abrigo e a sua salvaguarda.”382

É, pois, nessa articulação que se move em essência o traço fundamental do

pensar. Não há, aqui, nenhuma conceituação, nenhuma apreensão, nenhum limite

379 Grifos do autor. 380 Grifo do autor. 381 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.136. 382 Ibidem, p.136.

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demarcatório. Segundo o filósofo, o pensamento grego, em sua origem, não era

conceitual. O pensar permanecia no caminho ou a caminho, de acordo com aquilo

que se tomava como digno de questão do pensamento. Zarader nos chama a

atenção para o fato de que o pensar, assim compreendido, surge originalmente

como uma experiência muito distinta daquilo que veio a ser mais tarde e tem

como principal diferença o fato de não se expressar através de conceitos ou

sistemas, de não ser uma dominação. Essa é a razão pela qual, para a autora,

qualquer tentativa de aproximação do pensamento grego que procure uma medida

interpretativa no conceito e na representação está fadada à inadequação. A

intérprete compreende que aquilo que Heidegger deseja mostrar é que, na sua

abertura original, o pensar “é muito mais uma memória e uma escuta [...]”.383

Mas, onde é que o pensamento vai buscar sua determinação? Segundo

Zarader, não podemos encontrar esta determinação senão naquilo a que o !7#1.8 e

o 8$1ῖ8 nomeiam: o ἐὸ8 ἔµµ182.. Todavia, a autora nos coloca que não podemos

elucidar essa questão sem adentrarmos na relação entre o 8$1ῖ8 e o ser. Questão

que será tratada por Heidegger no fragmento III384 do poema, um pouco mais

adiante. Sigamos, pois, os passos do filósofo que se volta agora para a última

parte da sentença de Parmênides.

3.3.2.3. O ἐὸ, ἔµµ%,'&

Acabamos de ver que o !7#1.8 e o 8$1ῖ8 tomam parte reciprocamente

numa articulação, mas que ainda não caracterizam a essência do pensar. Essa

articulação, segundo o filósofo, nos remete Àquilo385 que se segue na sentença: o

vocábulo ἐὸ8, traduzido de forma habitual por “ente”386. Segundo Heidegger, esse

vocábulo nos encaminha para um variado número de informações que em nada

383 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.138. 384 Fazemos registro da diferença tipográfica ocorrida no escrito Was hei!t Denken? publicado pela editora Max Niemeyer, na edição do ano de 1997, que grafou o fragmento III do poema de Parmênides como V. O mesmo não ocorre na edição do ano de 2002 da editora Vittorio Klostermann, à qual tivemos acesso. Uma possível explicação para essa divergência pode ser encontrada no próprio escrito de Diels e Kranz sobre os fragmentos pré-socráticos. Na edição revisada de 1960, cujo exemplar tivemos acesso, encontramos ao lado do fragmento III uma marcação que diz: früher 5 (anterior 5). A contar pela data da revisão, supomos que Heidegger tenha utilizado uma edição do livro ainda não revisada e, por isso, tenha lançado mão da primeira numeração feita pelos autores. (cf. Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, p.231.) 385 Maiúscula do autor. 386 Grifo do autor.

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facilitam a sua compreensão. Por outro lado, possuímos uma concepção de “ente”

que já nos aponta para tudo o que existe, uma vez que tudo que se assenta diante

de nós é.387 Sabemos, contudo, que a sentença de Parmênides não termina aí,

segue ainda uma última palavra: o vocábulo grego ἔµµ182., também entendido em

sua forma antiga como ἔ-µ182., que, por sua vez, encontra em 1ῖ82. a forma para

“ser”388. Segundo Heidegger, ambos os vocábulos “ente” e “ser” traduzem-se para

nós completamente esvaziados de sentido. Aí nada encontramos, apesar de os

termos se situarem no patamar mais elevado da filosofia e pretendermos já tê-los

compreendido. Zarader acrescenta que no sentido de capturarmos aquilo que “era

o ser na sua primeira destinação”389 devemos buscar entender a topologia desse

dizer, pois, se é fato que entendemos 1ῖ82. por ser, não temos nenhuma pista

daquilo que os primeiros pensadores pensavam ou experimentavam no dizer dessa

palavra. A autora entende que 1ῖ82. é, por excelência, uma palavra enigma, a

própria questão.390 Vejamos, de acordo com Heidegger, o que os vocábulos ἐὸ8 ἔµµ182. designaram no pensamento da aurora grega.

Heidegger coloca que, na sentença de Parmênides, essas palavras nos

indicam uma relação recíproca entre ambos os termos, uma relação de

pertencimento mútuo, parecendo, até mesmo, designarem a mesma coisa. O

filósofo nos diz que o próprio Parmênides em outras passagens usa vocábulo ἐό8 no lugar de ἔµµ182.. Se assim procedêssemos, a sentença ficaria: 64ὴ 5" !7#1.8 51

8$1ῖ8 5᾽ἐὸ8 ἐ"8. Estranha aos ouvidos, certamente, mas não para Heidegger que

vislumbra sentidos diferentes para os vocábulos. Segundo ele, há nessa palavra,

assim como em todas as outras, uma polissemia. O termo “ente” pertence a um

tipo de vocábulo que gramaticalmente compartilha duas significações: uma verbal

e uma nominal. Assim como o vocábulo “florescente” designa aquilo que floresce

e, ao mesmo tempo, o florescer, o vocábulo “ente” designa, de forma análoga,

aquilo que é e, ao mesmo tempo, o ser. O filósofo nos coloca que gramaticalmente

o particípio presente é ambivalente, e que seu dizer mais próprio se encontra

387 Itálico nosso. 388 Grifo do autor. 389 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.42. Itálico da autora. 390 Cf. Ibidem, p.42. Em nota, no sentido de corroborar este pensamento, a autora nos concede uma citação de Heidegger que diz o seguinte: “Que dizemos quando em lugar de 1ῖ82., dizemos “ser”, e em lugar de “ser”, 1ῖ82. e esse? Não dizemos nada. Quer seja grega, latina ou alemã, a palavra conserva-se igualmente obscura.” (cf. A partir de Einleitung zu “Was ist Metaphysik?”, in: Wegmarken, Klostermann, Frankfurt/Main, 1967, p.205.)

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relacionado àquilo que é si mesmo duplo (zwiefältig).391 Heidegger entende, com

isso, que o particípio ἐ"8 incorpora em si um outro, mesmo que de forma oculta.

Há, aqui, o sentido de uma duplicidade que fala de um copertencimento. Um lugar

em que o ente se consubstancia no ser, e este, como o ser do ente. Zarader

corrobora a ideia de que essa “dualidade de significação (Zweideutigkeit) dos

particípios repousa com efeito na duplicidade (Zweifältigkeit) do que eles

nomeiam”.392 A intérprete nos coloca que essa duplicidade não seria possível “se

não tivesse a sua origem no que é ‘eminentemente’ duplo, na duplicidade única e

incomparável – porque absolutamente primeira – que Heidegger chama a Dobra

(Zweifalt) do ser e do ente”.393 Zarader segue explicando que o ἐ"8 é a Dobra

primordial, aquilo que torna possível toda a dupla significação das palavras, a

única capaz de explicar seu caráter polissêmico. Nos deparamos aqui com aquilo a

que nos referimos mais atrás: o dizer das palavras. Segundo Heidegger, “não

somos nós que jogamos com palavras, mas a essência da língua que joga

conosco”394, ou seja, é a língua que joga o tempo todo com o dizer do homem,

tornando, com isso, um verdadeiro empreendimento uma aproximação ao sentido

mais próprio das palavras. É, pois, segundo Zarader, na escuta atenta ao jogo da

língua que é possível ouvirmos que na duplicidade do ἐ"8 revela-se uma

“necessidade Historial”395 e não apenas uma contingência gramatical. Segundo a

autora, isso significa que foi dessa forma, através de uma duplicidade, que o ente

se desvelou àqueles que buscavam nomeá-lo em sua totalidade. Não que tivesse

havido um pensamento sobre essa destinação, mas, certamente, um habitar que os

aproximava da essência da linguagem, cujo manifestar se dava a partir da Dobra

do ser. Zarader entende que essa questão se situa numa obscura região pré-

metafísica, e que na origem isso não era um problema, nem mesmo uma

interrogação, deu-se como um acontecimento, um acontecimento que teve lugar

na aurora da nossa história. Assim, ao dizerem o ser, já o faziam a partir da dobra.

Para a intérprete, a palavra original é privilégio dos pensadores matinais, mesmo

que neles ainda não encontremos esse questionamento.

391 Cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.187. 392 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.177. 393 Ibidem, p.177. Maiúscula da autora. 394 Martin Heidegger, op. cit., p.99. 395 Grifo nosso. Maiúscula nossa.

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Este sentido de copertencimento, Heidegger vai encontrar no pensamento

de Platão. É no Sofista que o participar do que é presente no ente, o 1ῖB$/ ou a

.B72, se mostra e, neste sentido, se consubstancia, é. De acordo com o filósofo,

participium é o nome latino para o µ15$60 grego, e o participar, o fazer parte de

algo, diz-se µ15761.8: palavra fundamental no pensamento platônico. Platão

nomeia µ7'1:.% a essa relação de participação do ente com a sua .B72. Essa

palavra fala precisamente daquilo que o ἐό8 nomeia, a participação do ente no

ser. Segundo o filósofo, nessa participação inferida por Platão “está já pressuposto

que haja a dobra de ser e ente.”396 Ao falar que o ente e o ser “são”397 em diferentes

lugares, Platão nos concede um sinal decisivo para a compreensão da questão da

dobra entre ser e ente. Heidegger nos coloca que Platão “questiona o lugar

inteiramente outro do ser em comparação com o do ente”398, e, nessa

diferenciação, já está implícita a dobra, apesar da mesma não ter sido objeto da

atenção de Platão. Zarader nos coloca que, mesmo impensada, a Dobra era dita

por Parmênides e fazia parte de uma experiência viva na qual a totalidade do seu

pensamento se desenvolvia. Todavia, segundo a autora, com Platão demarca-se o

seu desaparecimento. Ainda assim, isto não significa que a Dobra deixe de existir

e sustentar o pensamento, mas se o faz é apenas como um sinal. Não o faz mais

como com os pensadores originários, na forma de uma experiência desdobrada em

palavra dita.399

Heidegger entende que a questão levantada por Aristóteles: 5= 5ὸ ὄ8, “que

é o ente em seu ser?”400, repercute a permanente questão do pensar que se

desdobra como traço fundamental da filosofia. Essa questão, não há dúvida, segue

atravessando todo o pensar ocidental-europeu. Segundo o filósofo, aquilo que se

assenta-diante-de nós e a partir de si mesmo aparece é nomeado pelos gregos

como ,&-./, e aquilo que vai além, transcende, é chamado de µ159. Nesse sentido,

um pensar que se move do ente em direção ao ser, no sentido de que nessa

transcendência o ente seja representado naquilo que é, lança-se com uma chancela

metafísica, sendo a µ7'1:.% a forma como o ente, em participação ao ser, é por ele

determinado. Para Heidegger, “esse âmbito da metafísica funda-se naquilo que é

396 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.189. Itálico do autor. 397 Grifo do autor. 398 Martin Heidegger, op. cit., p.193. 399 Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, pp.180-181. 400 Grifo do autor.

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nomeado através da µ15$60, e com uma só palavra através do singular particípio

ἐό8: na dobra de ente e ser”.401 Todavia, segundo o filósofo, é necessário que essa

dobra de ente e ser se assente diante de nós, se manifeste, para que a partir da

atenção ao assentar-se possamos tratar da participação de um no outro, do ente no

ser. Essa dobra, no entanto, só pode ser entendida em sua essência se prestamos

atenção ao ser do ente, ao ἔµµ182. do ἐό8 – àquilo que o ente é no seu ser. De

acordo com Heidegger, para que esse pensar possa tornar-se metafísico tem que

partir de um chamado, uma requisição como a de Parmênides - 64ὴ 5" !7#1.8 51

8$1ῖ8 5᾽ἐὸ8 ἔµµ182..

Heidegger entende que é na relação entre o ἐό8 e o ἔµµ182. que somos

chamados a pensar. Todavia, essa relação é na visão do filósofo a mais difícil,

uma vez que as palavras “ente” e “ser” caem, via de regra, na indeterminação.

Como podemos pensar, então, os vocábulos ἐό8 e ἔµµ182.? Para Heidegger,

somente quando o ente se assenta diante de nós como ente e nele prestamos

atenção ao seu “sendo”402 é que o questionamos de forma mais clara e precisa, e é

na forma do particípio da palavra ἐό8 dada em sua ambivalência que chegamos ao

“ente sendo”.403 Com isso, o filósofo entende que os simples vocábulos “ente” e

“ser” não são formas garantidas de tradução para ἐό8 e ἔµµ182., uma vez que não

expressam a singularidade da sentença de Parmênides. É somente a partir da

conformação desses dois vocábulos que a pergunta doadora de medida “Que é

isso que nos chama a pensar?”404 pode ser colocada. Na visão de Heidegger é o

“ἐὸ8 ἔµµ182. que solicita em sua essência aquilo que perfaz o traço fundamental

do pensar, o !7#1.8 e 8$1ῖ8”405, de forma a colocar em curso aquilo que nos chama

ao pensar. Mas, voltemos à questão: como traduzir, então, ἐό8 e ἔµµ182. ?

Segundo Heidegger, é preciso uma transposição dessas palavras para

aquilo que seu dizer diz; somente num salto é que podemos avistá-las em sua

forma grega. Todavia, aquilo que é avistado jamais deixa-se comprovar, uma vez

que não vem à palavra. Para o filósofo, o máximo que conseguimos aqui é divisá-

lo e nomeá-lo naquilo que é avistado – um nomear que fica entendido, entretanto,

401 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.190. 402 Grifo do autor. 403 Grifo nosso. 404 Grifo do autor. 405 Martin Heidegger, op. cit., p.196.

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como forma arbitrária de uma mera afirmação. Nesse salto, ἐό8 nomeia a coisa

presente (das Anwesende) e ἔµµ182., a antiga forma de 1ῖ82., nomeia o

presentificar-se (anwesen). Heidegger entende que ao menos nesse nomear o ἐό8 e o ἔµµ182. não se dissolvem nas formas indeterminadas notadamente

pertencentes a “ente” e “ser”, pois tanto aquilo que se faz presente quanto o

presentificar-se designam uma duração, algo que permanece diante de nós.

Todavia, o filósofo nos coloca que esse sentido não vem à palavra em sua forma

clara, muito menos se decide sobre Aquilo406 em que repousa esse “presentificar-

se do que se faz presente”407, pois nem tudo se presentifica do mesmo modo.

Heidegger nos mostra que a palavra “presentificar-se”408 em alemão diz-se

anwesen e essência, wesen. Essência, entendida em sua forma verbal409, tem o

sentido de estabelecer-se, morar, permanecer. O verbo wesen nos fala, pois, de

uma permanência duradoura. No entanto, Heidegger nos explica que para os

gregos a palavra essência não tem apenas o mero sentido de duração. Ela é

entendida como um “continuar-a-ser”410 (währen) que envolve em seu fazer-se

presente uma presença e uma ausência, pois o vocábulo grego 1ῖ82. tanto está

relacionado ao vocábulo ?241ῖ82. quanto ao ἀ?1ῖ82., sendo o prefixo ?249 uma

aproximação e ἀ?" um distanciamento. Segundo o filósofo, a essência daquilo

que se presentifica surge a partir de uma ausência, surge de uma desocultação,

mas o que surge da desocultação – o presentificar-se do que se faz presente – não

chega ao âmbito do desocultado. Isso quer dizer que ali, onde tudo surge, algo

permanece oculto em contraste com o que foi desocultado. Heidegger nos coloca

que “a essência, em seu fazer-se presente, envolve a luta da presença com a

ausência”411 e que essa luta pertence ao modo de vir-a-ser do presentificar.

Encontramos em Jean Beaufret, em Dialogue avec Heidegger, algo desse embate

406 Maiúscula do autor. 407 Grifo do autor. 408 Grifo nosso. 409 Anteriormente detivemo-nos brevemente no vocábulo alemão Wesen. Todavia, nesta parte de Que chamamos pensar?, Heidegger o retoma em sua forma verbal. Para o filósofo, o uso verbal de wesen no alemão antigo pode ser entendido com o sentido de duração. Heidegger nos conta que o antigo termo alemão tem origem no antigo hindi “vásati”, e quer dizer: ele mora, ele permanece. O verbo alemão fala de uma permanência duradoura. Em nota, Lyra acrescenta que: “o substantivo alemão Wesen, […], aceita a forma verbal wesen (algo como ‘consubstanciar’ ou ‘substancializar’), de todo implícita na ideia de anwesen como ‘presentificar-se’.” Para o tradutor, “anwesen pode conotar, de fato, ‘propriedade efetivamente demarcada’, lugar que se possui […]”. (cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.200.) 410 Grifo do autor. 411 Martin Heidegger, op. cit., p.201.

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entre ausência e presença. O autor nos fala que nada é mais íntimo ao ser, ao

menos naquilo que os gregos experimentaram nessa relação, do que aquilo

expresso pelos prefixos ?249 e ἀ?". Segundo Beaufret, essa diferença é tão

essencial que, sem esse contraste, a palavra ser, isoladamente entendida, perderia

totalmente o seu sentido fundamental. O intérprete entende que o ser é a essência

daquilo de que falam esses prefixos: o jogo incessante da presença e da ausência,

cuja oposição se dá apenas superficialmente, pois, mesmo aquilo que está ausente

está presente de certa maneira.

Mas, a partir de onde encontramos a determinação do presentificar-se do

que se faz presente? Heidegger nos coloca que é no fazer412 do “fazer-se

presente”413 que devemos prestar atenção. É, pois, no processo de vir-a-ser da

presença que devemos procurar entender a essência. Isto significa, segundo

Heidegger, que no movimento do “presentificar-se do que se faz presente” há um

demorar-se que se assenta diante de nós a partir de uma desocultação. Este

“presentificar-se do que se faz presente” não só requer a desocultação, mas é a

partir dela que o presentificar-se surge, ou seja, é na demora da desocultação que

o presentificar se presentifica. Essa demora não significa uma falta de movimento

como acontece na “permanência duradoura”414, mas, ao contrário, ela é chegada,

reunião, proximidade, acontecimento. O acontecimento era experimentado pelos

gregos como automanifestação, um brilho luminoso daquilo que na desocultação

se assenta diante de nós. É, pois, neste caminho que os gregos pensaram o que se

faz presente: desocultação, proximidade e distanciamento, repouso e demora,

brilho e ausência, reunião. Beaufret acrescenta que, no sentido de pensarmos esse

acontecimento, é necessário que nos afastemos das meras oposições que os termos

nos trazem e, de tal forma, que “possamos nos abrir a uma dimensão onde até

mesmo a ausência torna-se um modo da presença”.415 O autor entende que a

dimensão do ser é tal que se desdobra tanto como ausência quanto como presença,

e, por isso, a região do ser não pode ser nada menos do que uma presença

permeada por uma ausência e uma ausência na qual resplandece uma presença.

Segundo Heidegger, com o tempo, “o presentificar-se do que se faz presente” foi

412 Itálico do autor. 413 Grifo nosso. 414 Grifo nosso. 415 Jean Beaufret, Dialogue with Heidegger: Greek Philosophy, 2006, p.43.

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cada vez mais deslocado desse caminho, tornando-se cada vez menos digno de

questão. Entraram em cena outros traços do ser do ente que, como vimos,

interditaram o caminho e trouxeram o homem ao trágico destino das maquinações

tecnológicas. Vejamos como podemos nos aproximar desta difícil compreensão.

Segundo Zarader, na aurora do pensamento grego o ser se abre na

dinâmica do jogo da presença. Para a intérprete, essa afirmação não nos orienta

para o fato de que o ser tenha sido pensado416 como presença, mas que esse foi

experimentado e compreendido de tal forma que isso o levou a ser, ao longo de

toda a história do pensamento, entendido pelo viés da presença. A autora entende

que o ἐό8 é uma dessas palavras fundamentais que nomearam a experiência grega

do ser iluminada pela presença. Ao traduzir 1ῖ82. como “presença” (Anwesen) em

vez de “ser”, Heidegger propõe uma nomeação do ser “tornada clara no seu

sentido grego”417, de forma que esse clarear possa iluminar todo o caminho do

pensamento. A intérprete compreende que essa nomeação revela a identidade

entre ser e presença. Entretanto, segundo a autora, nessa relação algo permanece

impensado. Zarader nos indaga se aquilo que permanece impensado foi o ser

experimentado como presença ou a presença em sua relação com o tempo? Para a

autora, apesar do ser ter sido experimentado como presença, não consideraram sua

dimensão temporal. Por isso, na medida em que presença e tempo se relacionam,

tanto um quanto outro permanecem impensados. Assim, no sentido de tornar clara

a identidade entre ser e presença devemos nos ater ao tempo. Mas, como entender

esta questão nodal de forma a clarear a sentença de Parmênides?

Vimos, com Heidegger, que o ἐό8 nomeia o que se faz presente (das

Anwesende) e o ἔµµ182., o presentificar-se (anwesen). Vimos, também, que a

presença (Anwesen) não foi experimentada pelos gregos na aurora do pensamento

com o traço da duração, mas como um “continuar-a-ser”, algo que possui em si

uma cifra de ausência e presença. Zarader nos lembra que “a presença foi

experimentada por eles não como uma permanência, não como uma manifestação

horizontal de uma extensão temporal [...], mas como uma irrupção abrupta, como

um acontecimento, [...].”418 A autora conta que Heidegger chegou a criar um

neologismo para dar conta desta modalidade do Anwesen: Anwesung. Esse 416 Itálico da autora. 417 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.294. Grifos da autora. 418 Ibidem, p.296.

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vocábulo falaria, então, da irrupção na presença, diferenciando-o do Anwesenheit,

o estado-de-presença. Esta seria uma forma, segundo Zarader, de demarcar o

inicial daquilo que se seguiu na destinação do ser. A intérprete nos brinda com as

próprias palavras de Heidegger:

Mas é Anwesung que é determinante para o conceito grego de ser: tentamos clarificar numa palavra, o que lhe é mais próprio, dizendo Anwesung, em lugar de Anwesenheit. O que aqui é visado não é a pura e simples subsistência (Vorhandenheit), nem também o que se esgota na simples permanência (Beständigkeit), mas a Anwesung no sentido de uma pro-veniência no desvelado, de uma instalação no Aberto (im Sinne des Hervorkommens in das Unverborgene, das Sichtstellen in das Offene). Pela referência à pura duração a Anwesung não é alcançada.419

Todavia, mesmo tendo feito essa diferenciação, Zarader diz que Heidegger

utilizou o termo nesse sentido apenas entre os anos de 1939 e 1940 e o perde de

vista ao estendê-lo à “presença constante”, própria da tradição metafísica.420

Ainda assim, Zarader entende que, embasada pela definição acima, o termo nos

concede a especificidade do que seja o privilégio do primeiro pensamento grego:

“o ser é então experimentado como presença, e a própria presença como

Anwesung, quer dizer, como vinda a presença”.421 Mas, ainda que possamos lançar

mão dessa compreensão, como entender aquilo que Heidegger nomeou como “a

luta da presença e da ausência”422?

A intérprete explica que permanência e constância são próprias do

presente e, contrariamente a isso, o que é próprio da presença, sua principal cifra,

é o seu surgimento a partir da ausência. Quando a presença é entendida como

permanência há um aniquilamento em favor do presente que faz perder a sua

ligação com a ausência. Zarader acrescenta que a experiência inicial, que se abriu

simultaneamente como presença, não pode ser capturada como o que está

419 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.297. A citação é feita a partir do escrito “Vom Wesen und Begriff der E&-./”, in: Wegmarken (GA9), Klostermann, Frankfurt/Main, 1967, p.342. 420 Em nota, Zarader nos fala que o termo Anwesung é utilizado pela primeira vez na conferência Wie wenn am Feiertge, sobre Höelderlin, em 1939, e depois ocupa um lugar central em dois outros textos: Vom Wesesn und Begriff der "#$%& e Platons Lehre von der Warheit, ambos de 1940. A autora nos coloca que depois disso o termo é abandonado. Zarader entende que o uso demasiadamente amplo o tornou inoperante (cf. Ibidem). Grifo da autora. 421 Ibidem, p.298. 422 Grifo nosso.

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simplesmente presente.423 A autora nos coloca que, para Heidegger, no caso do

presentificar-se do que se faz presente, nunca devemos nos ater ao presente em

seu sentido lato, pois “na verdade, é justamente este ‘presentemente presente’ (das

gegenwärtig Anwesend) e o desvelamento que nele reina, que regem de parte a

parte a essência do que se ausenta (des Abwesenden), quer dizer do presente não

‘presente’”.424 Assim, o simples presente não dá conta de expressar a ocultação

que se encontra circunscrito nessa relação. O que Heidegger está tentando dizer,

segundo a intérprete, é que para os gregos o presentificar-se só se dá a partir do

desvelamento, e é somente na demora com o que se encontra velado que algo se

desdobra como presente. Daí o entendimento de que essa demora não é imóvel,

pois nela há um movimento que se estabelece na relação entre a presença e a

ausência. Segundo Zarader, isso nos fala de uma dinâmica que tanto dá conta do

desvelamento como de uma ocultação; uma abrangência que determina o

surgimento de algo que emerge a partir de uma ausência. Para a intérprete, o que

se faz presente fica, então, entendido por Heidegger como aquilo que se demora

por um tempo (Das Anwesende ist das Je-weilige); uma demora transitória, uma

vez que é passagem entre a chegada e a partida para uma nova ocultação. Isto

significa que o presente enquanto durar transitório manifesta-se neste “entre” que

é o intervalo, o acontecimento que reúne e constitui a sua presença.425

Zarader percebe que a compreensão heideggeriana se contrapõe a tudo

aquilo que a tradição entendeu como permanência, demora, constância. Na

contramão dessa compreensão, Heidegger entende que, por ser indissociável da

ausência, a presença nada tem de permanência, e o que caracteriza a aurora grega

do pensamento é o fato da presença ter sido considerada como presença e não

como coisa presente. Próximo à presença, pensada agora partir da ausência, da

plenitude do nada, o ser era ele mesmo aquele que portava as palavras e o

pensamento. O pensador nos diz que a filosofia “nasce do pensar, no pensar. Mas

o pensar é o pensar do ser. O pensar não é coisa que ‘nasça’. Ele é, na medida em 423 Zarader entende que foi por conta disso que a tentativa de Heidegger em Ser e tempo terminou num impasse. A autora diz que Heidegger buscava, com a analítica do Dasein, chegar ao desvelamento do ser como presença, e, assim, “retroceder até o horizonte da temporalidade”. Mas, “partindo do ser ontologicamente interpretado” encontramos apenas o presente, o qual não nos permite uma captura do tempo autêntico. O presente somente nos concede um tempo que se relaciona com o ente, exatamente porque dele advém. (cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.300.) 424 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, nota 15, p.116. 425 Itálico da autora. Grifo nosso.

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que o ser está a ser”.426 Segundo o filósofo, considerar o ἐ"8 como a presença do

que se faz presente seria, portanto, uma forma de atentar para isso, pois o seu

dizer já fala em nossa língua, antes mesmo que o pensamento lhe dê atenção e o

nomeie. O pensamento apenas conduz à palavra falada aquilo que encontra

manifesto em seu dizer. De acordo com Zarader, o pensamento é a resposta a um

chamado que lhe antecede e que “[...] lhe vem da própria língua na qual se abriga

e reserva ‘a riqueza essencial do ser’”.427 A autora entende que com o advento da

metafísica, o nada que abrigava o ser preencheu-se de ente428 e, com isso, a

presença retira-se em favor do presente não permitindo mais o acesso à dimensão

temporal do ser. O próprio Heidegger, como vimos, nos coloca que com o tempo,

“o presentificar-se do que se faz presente” distanciou-se desse caminho, tornando-

se inquestionado.

Mas, retornemos com Heidegger à questão da essência do pensar de modo

a concluirmos a sentença de Parmênides. Para o filósofo, o !7#1.8 51 8$1ῖ8 5e deve

se direcionar ao ἐό8 ἔµµ182. para que a essência do pensar se revele. Segundo

Heidegger, é somente quando o “deixar assentar diante de nós” e o “prestar-

atenção-a”429 se conformam ao “presentificar-se do que se faz presente” que a

articulação do ἐό8 ἔµµ182. atende à essência do pensar. O filósofo entende que

nesses dois vocábulos gregos está oculto aquilo que nos chama a pensar.

Heidegger nos chama a atenção para o fato de que, em alguns momentos, no lugar

de !7#1.8 51 8$1ῖ8 5e Parmênides diz somente 8$1ῖ8 – “prestar-atenção-a” – e no

lugar de ἐ"8 ἔµµ182. – ora usa 1ῖ82., ora ἐ"8. Esse 8$1ῖ8 entendido por

Parmênides não é, de maneira alguma, o ato de pensar. Há uma relação tão

próxima do 8$1ῖ8 com o 1ῖ82. que o 8$1ῖ8 participa do próprio 1ῖ82.. Esclarece-

se, com isso, que o significado de pensar, evocado por 8$1ῖ8, só é pensar quando

permanece iluminado pelo ser. Zarader também nos coloca que não podemos

deixar de considerar, para a elucidação do pensamento, “aquilo a que ele é

reenviado em última instância, [...] a relação entre 8$1ῖ8 e ser”430. De modo a

concluirmos nosso percurso, vejamos o que o filósofo vislumbrou no elo entre o

8$1ῖ8 e o 1ῖ82.. 426 Martin Heidegger, Caminhos de floresta, 2012, p.411. 427 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.118. 428 Cf. Ibidem, p.302. 429 Grifos nossos. 430 Marlène Zarader, op. cit., p.138.

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3.3.3. O .ὸ 'ὐ.ὸ e a determinação do pensar

Heidegger encontra, nos fragmentos III e VIII de Parmênides, elementos

que nos ajudam a compreender como o 8$1ῖ8 pode se relacionar com o 1ῖ82. e a

ele pertencer. Diz o fragmento III: 5ὸ #ὰ4 2ὐ5ὸ 8$1ῖ8 ἐ-5=8 @2ὶ 1ῖ82., que

traduz-se por “Pois o mesmo é Pensar e Ser”431. Em primeiro lugar, perguntamos:

o que significa esse 5ὸ 2ὐ5ὸ, esse “o mesmo”432? Zarader nos coloca que

precisamos entender o que a “mesmidade”433 significa para a origem do

pensamento ocidental e, com isso, avançar em direção àquilo que seria o mais

enigmático do pensamento de Parmênides. Heidegger entende que reside no 5ὸ

2ὐ5ὸ um enigma, e que “o mesmo” não quer dizer igual. Fὸ 2ὐ5ὸ nunca teve

esse significado. Igual em grego é ὄµ$.$8. Portanto, não podemos trocar ser por

pensar ou vice-versa, apesar da tradução para nossas línguas nos fazer crer que

sim. Ser e pensar são coisas diferentes. Não há uma uniformidade. Há, segundo

Heidegger, precisamente nessa diferença, uma relação de pertença mútua entre os

dois termos evidenciada pelo 5ὸ 2ὐ5ὸ. Diz Heidegger: “Pensar e ser tem lugar no

mesmo e a partir deste mesmo formam uma unidade”.434 Mas, como é possível

pensar que numa diferença pode haver um copertencimento?

Segundo Zarader, para Heidegger, é justamente na diferença que ser e

pensar se copertencem. A autora rememora um texto anterior em que o filósofo se

referia a “esforços antagonistas”435 que seriam característicos de uma unidade

original, cuja relação nos aproximaria do 5ὸ 2ὐ5ὸ grego. Segundo a intérprete,

Heidegger teria melhor expressado a ideia sobre esse “o mesmo” no escrito O

princípio da razão (GA10). Ali, o filósofo teria dito que, pensada em termos de

uma mútua pertença, a relação entre ser e pensar aconteceria justamente na sua

diferença e que “o mesmo” seria o elo capaz de, ainda que na diferença, manter

ambos em relação de copertencimento. Diz o filósofo: “Este manter-se-junto no

431 Grifo do autor. 432 Grifo nosso. 433 Grifo da autora. 434 Martin Heidegger, “Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.175. Em nota, o tradutor nos coloca que este comum-pertencer acentua que, além de estarem imbricados num recíproco pertencer, através desta reciprocidade, ser e pensar “fazem parte de uma unidade, da identidade, do mesmo”. 435 Grifo da autora. Zarader reporta-se aqui ao escrito Einführung in die Metaphysik. (cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.139.)

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manter-se-afastado é um traço a que chamamos o mesmo e a mesmidade”.436

Porém, a intérprete entende que essa aproximação não é suficiente para a

compreensão da frase de Parmênides. A autora ainda nos adverte que não

devemos interpretar a pertença mútua como uma identidade no sentido dado pela

história da metafísica, cujo princípio afirma que “todo o ente pertence a unidade

consigo mesmo”437, instaurando, desse modo, a identidade no ser. Heidegger

mesmo no adverte sobre isso, em “O princípio da identidade”(GA11), quando diz

que “todo o pensamento ocidental-europeu pensa [...] (que) a unidade da

identidade constitui um traço fundamental no seio do ser do ente.”438 Nesse

escrito, Heidegger nos fala de um primeiro princípio em que se pressupõe a

identidade como um traço do ser, e esse como um fundamento do ente. Todavia,

para o filósofo, esse princípio transformou-se numa espécie de “salto exigido pela

essência da identidade”439, um salto no abismo, não no vazio do nada, mas um

salto que nos orienta para o acontecimento-apropriativo, ali onde “vibra a essência

daquilo que a linguagem fala”.440 Assim, pensar o ser a partir da identidade

significa o salto no abismo, que distancia o ser como fundamento do ente, para o

comum-pertencer de homem e ser; uma comunidade que se forma a partir do

acontecimento-apropriativo.441

Segundo Zarader, para o filósofo, a relação do 1ῖ82. com o 5ὸ 2ὐ5ὸ nos

orienta a pensar o ser a partir da identidade compreendida a partir do salto.442

436 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.139. 437 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.140. 438 Martin Heidegger, “Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.174. 439 Ibidem, p.182. 440 Ibidem, p.182. 441 Em nota do tradutor, Stein nos coloca que “o salto no abismo, no sem-fundamento (Ab-Grund), é o jogar-se no ser, assumir o pertencer ao ser”. Segundo o tradutor, compreende-se esse pertencimento quando Heidegger nos diz, em O princípio da razão, que “Ser e fundamento pertencem à unidade. Do fato de fazer parte do ser, o fundamento recebe sua essência. E vice-versa, da essência do fundamento surge o domínio do ser enquanto ser. Fundamento e ser (‘são’) o mesmo, não o igual, o que já indica a diversidade dos nomes ‘ser’ e ‘fundamento’. Ser ‘é’ essencialmente: fundamento. Assim, o ser nunca pode primeiro ter um fundamento que o fundamente. O fundamento fica dessa maneira afastado do ser. O fundamento fica ausente do ser. No sentido de uma tal ausência de fundamento do ser, o ser ‘é’ sem-fundamento (ab-grund), abismo. Na medida em que o ser enquanto tal é fundamento em si mesmo, permanece ele mesmo sem-fundamento.”(cf. Ernildo Stein, nota do tradutor, in: Ibidem, p.178.) 442 Jean Beaufret também nos adverte quanto ao fato de entendermos essa identidade como aquela inferida por Aristóteles: como se pertencesse e fosse uma característica fundamental do ser. Para o intérprete, ao contrário, devemos entender que é o ser que pertence a esse mesmo que é mais elevado – a identidade; que forma, a partir daí, a sua identidade com o pensamento. (cf. Jean Beaufret, Dialogue with Heidegger: Greek Philosophy, 2006, p.40.)

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Nesse sentido, o 5ὸ 2ὐ5ὸ não nos fala de um traço do ser, mas nos diz que ser e

pensamento “só são o que são porque procedem deste ‘mesmo’ que, determinando

a sua relação, é o único a poder conceder-lhes a sua essência respectiva”.443 De

acordo com a autora, a compreensão heideggeriana original do “mesmo” nos leva

ao seguinte entendimento: o 5ὸ 2ὐ5ὸ, ao invés de ser um predicado para ser e

pensar, passa a ser o sujeito autêntico da frase, pois é a partir deste “o mesmo”

que ser e pensar se co-pertencem. O equívoco da interpretação metafísica sobre a

questão da identidade, segundo a intérprete, recai exatamente no fato de que

atribuiu-se ao ser uma identidade como se esse já fosse conhecido. Zarader nos

coloca que, através do 5ὸ 2ὐ5ὸ compreendido por Heidegger, temos nosso

caminho iluminado por aquilo que possivelmente foi a experiência inicial do

ser.444

Robert Mugerauer, em Heidegger and homecoming: The leitmotif in the

later writings, também apresenta uma análise que nos ajuda nessa compreensão.

De acordo com o intérprete, no encontro com o pensar de Parmênides, Heidegger

nos revela que ser igual ou diferente não é o caminho para discernirmos aquilo

que é o mais importante na questão da identidade. O que deve ser salientado é que

o sentido originário do “mesmo” nomeia a dinâmica, na qual aquilo que se co-

pertence chega ao seu mais próprio, somente no encontro do pertencer. O autor

nos coloca que, ainda que aquilo entendido como idêntico seja derivado do

mesmo, esse “mesmo” não é redutível a uma compreensão representacional

daquilo que se apresenta como idêntico. Ao contrário, é esse “mesmo” que

mantém a diferença na mútua pertença daquilo que é o mais próprio de cada um.

Para Mugerauer, o copertencimento aparece na análise de Heidegger como algo

primordial. O autor também entende que a compreensão dada, pela hermenêutica

heideggeriana, para a noção de identidade, ultrapassa toda aquela oferecida pela

história do pensamento ocidental, inclusive a do idealismo alemão, cujo primado

443 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.140. 444 Em nota, Zarader nos coloca a diferença entre as duas formulações sobre a Identidade. Diz a autora: “Notar-se-á em particular as duas formulações por meio das quais Heidegger caracteriza, por um lado, a doutrina da metafísica, por outro, o dito de Parmênides. A primeira enuncia-se Die Identität gehört zum Sein, e a segunda: Das Sein gehört in eine Identität.” Algo, respectivamente, como: “a identidade pertence ao ser” e “o ser parte de uma identidade”. Segundo a autora, esta compreensão nos é dada a partir do escrito de Martin Heidegger, Identität und Differenz, Neske, Pfullingen, 1957, p.16-19. (cf. Ibidem, p.140.)

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recai sobre a questão da unidade.445 Para Mugerauer, Heidegger nos apresenta que

ser e pensar apesar de diferentes pertencem ao mesmo e que, diferentemente da

concepção metafísica que estabelece a identidade como pertencente ao ser, é, ao

contrário, o ser que pertence à identidade. O autor nos chama a atenção, no

entanto, que nos primórdios do pensar ocidental a palavra identidade tem um

sentido diferente. Ali na origem, ser e pensar pertencem mutuamente ao mesmo e

em virtude do mesmo, e esse “mesmo” significa uma pertença. Mugerauer

entende que o pensar, experimentado e pensado a partir dessa pertença, somente

pode se desdobrar em resposta ao chamado do ser. Apesar de já sabermos que há

aí uma co-pertença, como podemos entender exatamente como o 8$1ῖ8 participa

do 1ῖ82.? Como se dá essa pertença?

Heidegger nos coloca que, à luz do fragmento VIII (34 et seq.), podemos

nos aproximar de uma compreensão daquilo que é o pensamento na sua

compreensão parmenidiana do fragmento III. O fragmento VIII anuncia na

tradução do filósofo: “não pois separado do presentificar-se do que se faz

presente, podes buscar e encontrar o prestar-atenção-a.”446 A partir dessa tradução,

Zarader entende que só é possível compreender o pensamento, enquanto um

pensar próprio, quando o encontramos a caminho do ser. Para a autora, esse

caminhar só se torna caminho se já encontra-se no interior do ser.447 Zarader

entende que, com isso, estabelece-se uma ambiguidade, pois se, por um lado, ser e

pensamento pertencem mutuamente ao mesmo, numa identidade que mesmo

distinta os precede e a partir da qual ambos podem se manifestar, por outro, o

pensamento pertence ao ser, faz parte dele. É exatamente nessa dualidade que

reside toda a riqueza do ser e o seu enigma. Para a autora,

na medida em que se dá como ser (1ῖ82.), procede ele próprio de um dom mais alto ainda em origem, e é do âmago desse dom comum que o ser reivindica o pensamento, e que este responde ao seu apelo; mas na medida em que se define, em toda a sua

445 Mugerauer nos apresenta que, para Heidegger, o idealismo alemão compreendeu que o “‘mesmo’ implica uma relação ‘com’, uma mediação, uma conexão, uma síntese: a identidade como a unificação em uma unidade. Apesar de Heidegger reconhecer que o idealismo alemão estabeleceu “um lugar para a essência em si mesmo sintética da identidade”445, essa formulação resulta numa abstração, pois, segundo o filósofo, na relação mediada, a identidade só pode ser representada abstratamente. (cf. Martin Heidegger apud Robert Mugerauer, Heidegger and homecoming: The leitmotif in the later writings, 2008, 293.) 446 “ὀ* #ὰ4 ἄ81* 5$ῦ ἐ"85$/... 1ὐ40-1./ 5" 8$1ῖ8”. (cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.205.) 447 Itálico da autora.

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plenitude de sentido, como diferença (ἐ"8), ele é o próprio dom e, nessa qualidade, o pensamento “faz parte” dele.448

A intérprete entende que a hermenêutica heideggeriana, totalmente fora de toda

uma lógica habitual, nos dá conta de que o pensamento não é pensamento senão

na medida em que responde ao chamado do ser, e é somente onde há ser é que

pode eclodir o pensar. Para Zarader, ao responder ao apelo do ser, o pensar acaba

por definir o próprio ser uma vez que o reconduz a uma identidade que demarca

uma procedência. Para a autora, pensamento e ser se relacionam de tal forma que

o pensamento provém do ser “por desígnio”.449 Todavia, o reino do ser não pode

ser compreendido “sem o co-reino do pensamento”.450 Sendo assim, pensamento e

ser possuem uma identidade que engloba uma procedência, uma pertença.

Sobre esse caráter da pertença, é o próprio Heidegger que nos fala, no

escrito “O princípio da identidade”, que o comum-pertencer entre ser e pensar

significa uma relação que se estabelece no interior do ser451, e que essa relação se

dá na medida em que o pensar do homem se abre em direção ao ser e com ele

forma uma relação de correspondência que o plenifica. Por outro lado, é também a

partir desse evento que o ser se presentifica. Com base nessa mútua pertença,

compreendemos que é somente na abertura do homem ao chamado do ser que o

pensar se torna pleno, e é somente através da visada do pensar em direção ao ser

que, por sua vez, o ser se presentifica. Mas, de que forma pode o pensar ser

remetido à sua essência?

Zarader entende que devolver o pensamento à sua essência significa

colocá-lo em seu lugar mais próprio, entretanto, mais desconhecido; significa o

retorno ao lugar aonde sempre esteve, mas, ainda assim, nunca se alicerçou. A

autora nos fala que a sentença heideggeriana – “o pensamento é o pensamento do

ser”452– deve ser entendida no duplo sentido do possessivo: tanto como

pertencendo ao ser, lugar de onde encontra a sua proveniência, quanto como para

o qual se direciona na escuta ao seu apelo. É por isso que na pergunta “o que é 448 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.142. 449 Ibidem, p.142. 450 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.142. 451 Heidegger nos fala que o pertencer significa estar “inserido no ser”. (cf. Martin Heidegger, “Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.177.) 452 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.154. Esta frase encontra-se na carta “Sobre o humanismo”. Em nota, Zarader nos oferece a frase no alemão original: “Das Denken, schlicht gesagt, is das Denken des Seins.” (cf. Martin Heidegger, “Brief über den Humanismus”, in: Wegmarken (GA9), Klostermann, Frankfurt, Main, 1967, p.148.)

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que nos chama a pensar?”453 Heidegger rememora o vocábulo original que a

palavra “pensar” evoca: o Gedanc – memória, lembrança, pensamento fiel,

gratidão. Subjaz nessas palavras a compreensão de que, porque o pensar pertence

ao ser, deve ser fiel a ele, guardando em si a memória da sua própria essência,

pois não é quando pensa o ser que o pensar é essencial, mas, antes de tudo, porque

é essencial é que não pode pensar outra coisa que não seja o ser. Segundo a

intérprete, o entendimento para o duplo possessivo é explicado nas próprias

palavras do filósofo: “O pensamento é o que é segundo a sua proveniência

essencial, na medida em que pertence ao ser, em que está à escuta do ser”.454 O

pensar o qual, ao longo de todo esse percurso, Heidegger vem buscando se acercar

é este que o Gedanc traz: o “ânimo como um todo, na acepção da permanente

reunião íntima em torno daquilo que sopra à alma, essencialmente, todo o

sentido.”455 É, portanto, nessa memória, que a dobra de ser e ente nos diz, ainda

que veladamente, que o pensar é pensar.

Segundo Heidegger, Parmênides também nos sinaliza para o

pertencimento mútuo entre 8$1ῖ8 e 1ῖ82.. Esse sinal não nos leva ao “como” e ao

“porquê”456 disso acontecer. O filósofo entende que para tal empreendimento

teríamos que considerar a essência da linguagem e, com isso, o !7#1.8 e o !"#$%.

De acordo com Heidegger, o que Parmênides está a dizer, entretanto, é que há um

chamamento ao pensar no presentificar-se do que se faz presente, uma requisição

que chama o pensar à sua essência, e é na dobra entre o ἐ"8 ἔµµ182. que se abriga

essa requisição, é na dobra entre ser e ente que resguarda-se o chamamento ao

pensar. Portanto, pensar só é pensar a partir da dobra de ser e ente, ou melhor, do

ente em seu ser, do ente sendo. É, segundo o filósofo, a dobra que dá a pensar, e

“o que assim se dá é a dádiva do que é mais digno de questão.”457 No escrito

Introdução à metafísica (GA40) encontramos ainda uma última pista sobre a

relação essencial entre o 8$1ῖ8 e o 1ῖ82.. Ali, Heidegger nos fala que esta pertença

se dá através de uma experiência que evidencia, àquele que a perpassa, que o ser

do homem só pode ser determinado a partir do acontecimento que essencialmente

conecta o ser e o prestar-atenção-a. O filósofo nos esclarece que esse prestar-

453 Grifo nosso. 454 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.154. 455 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.117. 456 Grifos do autor. 457 Martin Heidegger, op. cit., p.207.

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atenção-a nada tem de uma faculdade do homem, mas é o acontecimento em que

ser e homem se encontram, em que “o homem mesmo chega ao ser.”458 Heidegger

nos diz que aí se realiza um acontecimento Histórico: cumpre-se o destino do

homem como guardião do ser.

Munidos de todo esse esclarecimento podemos finalmente compreender o

fragmento III de Parmênides, “5ὸ #ὰ4 2ὐ5ὸ 8$1ῖ8 ἐ-5=8 @2ὶ 1ῖ82.”, como “a

saber, o mesmo prestar-atenção-a é assim também presentificar-se do que se faz

presente.”459 Como podemos ver, “o mesmo” estabelece aqui a relação de

pertencimento mútuo entre o 8$1ῖ8 e o 1ῖ82.. Heidegger nos diz que essa co-

pertença é compreendida na medida em que o prestar-atenção-a, nomeado em

primeiro lugar, orienta-se para o presentificar-se do que se faz presente, e este o

mantém junto a si numa salvaguarda. É a partir desse último, também

denominado ἐ"8 por Parmênides, que fala a dobra de ambos, a dobra entre ser e

ente. É a partir daí que se desdobra o chamado ao pensar que, para aí direcionado,

alcança a sua essência nesta salvaguarda. Mas, assim como Heidegger ao encerrar

as preleções do verão de 1952, também nós colocamos a última – e talvez a mais

crucial – pergunta feita pelo autor de Que chamamos pensar?: seria o pensar

capaz de nomear esta dádiva num dizer original?

458 Martin Heidegger, Introdução à metafísica, 1999, p.165. 459 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.205.

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4. Considerações finais

[...] Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Carlos Drummond de Andrade 460

Chegamos ao fim de nossa caminhada. Não entendemos, contudo, que este

seja o fim do caminho. Podemos inferir que a experiência de pensar em Heidegger

se situa na esfera do retorno à questão mesma, um recomeço que se faz necessário

diante do impensado que permanece. Há, de fato, uma circularidade no pensar

heideggeriano e não fosse o salto significativo do pensamento a cada volta,

diríamos que se trata de um caminho sem saída, aporético. Todavia, não

encontramos nesse pensar um ponto final, mas um questionar contínuo nos

colocando sempre diante da possibilidade da pergunta e de toda a promessa que

essa traz. A experiência do pensamento nos diz que pensar é perguntar melhor, é a

capacidade que o pensamento tem em sua estrutura no sentido de formular

questões, levantar problemas. Em Filosofia o extraordinário é a questão, a

potencialidade do questionamento, e somente o pensar pode interrogar. Nesse

sentido, o simples caminhar em direção à pergunta é já estar aberto à questão

mesma do pensamento.

Chegamos, sim, ao fim desta caminhada, ao fim de nossos esforços em

seguir os passos desse grande pensador no escrito Que chamamos pensar?.

Cruzamos um longo caminho, mas, ainda assim, sabemos não termos percorrido

todas as veredas que esse nos oferecia. Tal tarefa, como dissemos no início, seria

inexequível. Todavia, caminhamos. Trilhamos por terras áridas, nada fáceis, em

busca de um pensar essencial: o pensamento do ser; “o pensamento em que os

pensamentos não só não calculam, mas são absolutamente determinados a partir

do outro do ente [...].”461 A dificuldade do caminho não se deu por conta de uma

460 Carlos Drummond de Andrade, “Procura da Poesia”, in: A rosa do povo, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.12. 461 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.153.

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atitude reticente por parte do filósofo, mas devido à própria natureza que a

interrogação impõe: o que é que nos chama a pensar? O que é esse outro que nos

interpela? Zarader nos coloca que apesar do pensamento pertencer ao ser e

constituir a sua essência mais própria, não encontramos aí nenhuma evidência. A

autora nos rememora que é por conta de sua simplicidade462 que o mais essencial

não pode jamais ser habitado, a não ser no destino de uma longa caminhada, uma

caminhada em que o simples nomear da co-pertença do pensamento ao ser

significa uma luta contra toda a história do pensamento ocidental, pois esse “outro

pensamento não pode em absoluto aparecer, e no entanto é”.463

Para Heidegger, “o pensar é o pensar do ser”464 e esse pertencer deve ser

compreendido na duplicidade do genitivo, onde, por um lado, o pensamento

pertence ao ser, é um acontecimento do ser, dele provém e nele fica retido, e, por

outro, está à escuta do ser, se dirige para ele no sentido de o conformar à sua

origem essencial. É exatamente porque deve estar à escuta do ser que o filósofo

define a natureza do pensamento como memória, lembrança fiel, pois na medida

em que situa-se no ser, o pensamento deve guardar memória de si mesmo. Por

isso, não é quando pensa o ser que o pensamento é essencial, mas, antes de tudo,

quando é essencial, em conformidade com a sua essência, é que não pode pensar

outra coisa senão o ser. Zarader acrescenta que é porque a escuta se funda na

pertença que o pensamento se dirige para o ser e o toma à sua guarda. Isto não

significa que o pensamento possa se juntar ao ser por conta ou decisão própria. O

próprio Heidegger, na “Introdução” ao escrito “Que é metafísica?”(GA9)465, nos

coloca que:

O fato e a maneira de o ser mesmo abordar um pensamento nunca dependem primeira e unicamente do pensamento. Se o ser atinge um pensamento e o modo como o consegue, põe-no em

462 Ao final de Que chamamos pensar? o próprio Heidegger nos coloca o paradoxo de que o aprender esse pensar é o mais difícil porque é simples. Diz o filósofo: “Só que aprender o pensar dos pensadores é essencialmente mais difícil, não porque esse pensar seja mais complicado, mas porque é simples, mesmo simples demais para a destreza do representar habitual.” (cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.203.) 463 Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.153. Itálico da autora. 464 Martin Heidegger, ‘Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e escritos filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.348. 465 A introdução ao escrito “Que é metafísica?” foi escrito somente em 1949, enquanto que o texto original, em 1929. Ambos os escritos, juntamente ao posfácio escrito em 1943, foram publicados separadamente em Marcas do caminho (GA9).

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marcha para sua matriz que vem do próprio ser, para, desta maneira, corresponder ao ser enquanto tal.466

Como vemos, é o ser que atinge o pensamento, que em retorno o divisa e o

presentifica. Mas, para que serve este pensar? É o próprio Heidegger que

assertivamente nos fala que “tal pensamento não chega a um resultado; não

produz efeito”.467 Para o filósofo, o cômpito dos ganhos e perdas, fins e resultados

são do domínio do cálculo, e medir o pensar do ser por sua utilidade e eficácia é

considerá-lo por medidas inadequadas. Tal bitola é recusada por Heidegger. Para

o filósofo, esse pensamento não é nem prático e nem teórico, pois acontece antes

disso. Esse pensar, segundo Heidegger, é apenas a lembrança do ser. De acordo

com Zarader, para o pensador, é exatamente o fato de não servir para nada que

clarifica sua força, pois, faz lembrar que “o ente só é o que é na luz desapercebida

do ser”.468 Assim, na medida em que o pensamento o toma à sua guarda, esforça-

se no sentido de edificar a casa do ser. Não no sentido de construí-la, mas no

sentido de habitá-la e, nesse habitar, deixar o ser – ser.469 Essa é a única ação do

pensamento do ser e, segundo a autora, é uma ação decisiva na medida em que é o

pensamento que concede livremente o espaço de manifestação do ser no homem.

Nesse sentido, a única tarefa do pensamento é a de manter-se fiel à escuta

essencial do ser e, nessa dimensão, reconduzido a si mesmo na salvaguarda,

voltar-se para a sua própria essência, para a sua verdade. É, pois, na escuta que o

pensar chega docilmente à sua essência, ao seu destino.

De acordo com Zarader, na visão de Heidegger, esse caminho não pode ser

outro que o da história, uma vez que é no homem que o ser tem a sua destinação.

É, pois, na história, ainda que de modo inaparente, que o filósofo vai buscar as

pistas para esse pensar. Todavia, ao jogar luzes nesse caminho, Heidegger percebe

que a tradição – de Platão a Nietzsche – não se ateve ao mais próprio do

pensamento, pois pensou o ser por medidas entitativas. Além disso, o filósofo

entende que o próprio ser se oculta e retrai. E, quando acontece desse pensar, ao

retrair-se, sair do seu elemento, ele acaba por instrumentalizar-se como !"#$% e se

466 Martin Heidegger, “Que é metafísica?”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.79. 467 Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e escritos filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.370. 468 Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.155. 469 Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: op. cit., p.370.

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torna atividade acadêmica e cultural – a própria Filosofia se reduzirá à capacidade

de fornecer explicações pelas causas últimas. Não se pensa mais. Ocupa-se. E,

com isso, os “ismos” dos tempos modernos aparecem como uma força

determinada pela opinião pública. Em meio a este estado de coisas encontra-se o

ser-homem, não mais essencial e livre, mas subjugado involuntariamente à

ditadura da opinião pública, a uma incondicional objetivação de tudo. Nesse

domínio, também a linguagem abandona-se como instrumento de objetivação da

opinião pública que decide sobre o que é compreensível ou não. Heidegger

entende que a linguagem também contém uma dimensão essencial e que essa deve

ser alcançada. Portanto, não é na história em seu sentido ôntico do desenrolar dos

fatos que vamos encontrar o pensar do filósofo, mas na História em seu sentido

ontológico, numa dinâmica própria de temporalização que caracteriza a relação

originária do homem com o ser. É, na palavras de Lévinas, na “História que se

pensa como retiro, como êpochê, como Lichtung, condicionando por meio deste

retiro a própria luz do aparecer de que o homem é a salvaguarda”.470

Uma vez recusada a interpretação tradicional, Heidegger volta-se para o

início grego, para a origem, o ponto de partida – e no caso de Que chamamos

pensar? – para as palavras de Parmênides, palavras que se encontravam à espera

de uma escuta. Nelas, o filósofo busca meditar o que ali ficou escondido,

impensado. No diálogo travado pelo pensar de Heidegger com o de Parmênides

não vamos encontrar uma conversa trivial. Nos referimos a um salto realizado

através de uma hermenêutica própria que, no confronto com as palavras da

origem, faz emergir algo totalmente outro. Dos vestígios depositados na língua

grega surgirá um outro pensar. Esse movimento, traduzido no jargão

heideggeriano por Andenken e Vordenken, nos leva ao andere Anfang: um outro

começo. Daí entendermos a importância do escrito Que chamamos pensar?,

importância, como vimos, expressa nas palavras do próprio Heidegger em carta à

Hannah Arendt, de que somente agora ele chegara à correta proximidade em

relação às coisas propriamente dignas de serem pensadas. Não há dúvida de que

tais palavras reverberaram no pensar de Hannah Arendt que chegou a afirmar que

o escrito é tão importante quanto Ser e Tempo.

470 Emmanuel Lévinas, “Prefácio”, in: Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, pp.12-13.

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Esse é o caminho que, com grande esforço, conseguimos vislumbrar em

Que chamamos pensar?. Sabemos que a experiência filosófica atravessada pelo

pensar de Heidegger acontece, como dissemos, num salto para fora do dado, do

habitual, da nossa visão acostumada com as coisas despidas do seu mistério.

Acontece com uma suspensão das grades interpretativas e de representação para

que, com isso, se possa chegar ao original em uma forma de reencontro. É isso

que torna esta experiência por vezes tão árida e dificultosa. Mas, ao mesmo

tempo, só ela nos possibilita alçar vôo a novos rumos, à novas paragens, ao

encontro de novas questões que se põem a partir do momento em que esgotou-se

aquele pensar, pois é na impossibilidade da resposta que a Filosofia se põe a

formular novamente a questão, uma questão que sempre nos remete a um

pensamento futuro.

Bem sabemos que “o filósofo […] é alguém que perpetuamente

começa.”471 Heidegger não fez outra coisa em sua vida – a experiência do

pensamento reiterou-se e desdobrou-se num pensar que constantemente indaga e

instaura um outro pensar, um outro questionar. Um ir-e-vir incessante à questão

mesma do pensamento, ao impensado, em uma eterna busca pelo caminho do

pensar: uma experiência que revela sempre a permanência no retorno ao mesmo

do pensamento que é a escuta pelo ser. Neste sentido, segue como tarefa do

pensamento a sua entrega à determinação da questão mesma do pensar, pois,

o Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que desperta está escondido na inaparência do que é sempre o mesmo. As coisas que amadurecem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. 472

É certo que muitos caminhos tornam-se inaudíveis. A lida com a palavra é

dura. Além disso, bem compreendemos que o saber desse pensar nada traz de útil

e produtivo. Aquilo que, de fato, o pensamento nos concede é a permanência no

caminho. E mesmo que a coisa-a-pensar escape ao pensamento, recuse encontro,

essa recusa não é menos, é mais. É, como vimos, Acontecimento, “a mais presente

471 Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.11. 472 Martin Heidegger, O Caminho do campo, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1969, p.69. Maiúscula do autor.

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de todas as coisas presentes.”473 Uma experiência de tamanha essencialidade que

determinou uma inquietude perene no “pensar pensante” de Heidegger. Através

desse Acontecimento, o filósofo pôde dar o salto hermenêutico para o interior

daquilo que nos fala da nossa essência, de um habitar pleno que mesmo silente,

por vezes, na insistência do pensar, dele nos aproximamos num falar hesitante,

porém pleno de sentido e significado.

473 Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.7.

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