Artigo Heidegger

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Natureza Humana 4(1): 157-185, jan.-jun. 2002 Heidegger e o outro: a questão da alteridade em Ser e tempo André Duarte Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná – UFPR E-mail: [email protected] Resumo: A presente investigação busca ressaltar a contribuição heideggeriana para a questão da alteridade, contrapondo-se às inter- pretações que enfatizam o “solipsismo existencial” do Dasein resolu- to como o sintoma de que Heidegger teria desconsiderado esse pro- blema em sua analítica existencial. Para tanto, discute-se o movi- mento argumentativo pelo qual Heidegger, partindo da análise do encontro do outro na cotidianidade mediana, chega até o problema do reconhecimento da alteridade que todo Dasein já traz em si mes- mo. Segundo a interpretação aqui proposta, a chave para uma possí- vel leitura ética da analítica existencial se encontra na articulação entre as análises fenomenológicas da angústia e do chamado da cons- ciência, pois é justamente nelas que se revela o estranho apelo de uma alteridade que já habita cada um, e que tem de ser pensada como a condição ontológica do reconhecimento de si e do outro en- quanto singularidade própria, isto é, como alteridade. Palavras-chave: Heidegger, analítica existencial, alteridade, ética pós-metafísica. Abstract: By critically departing from current interpretations that stress the “existential solipsism” of the resolute Dasein, the present investigation emphasizes the Heideggerian contribution to the question of otherness. I discuss the main ‘existentials’ through which

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  • Natureza Humana 4(1): 157-185, jan.-jun. 2002

    Heidegger e o outro:a questo da alteridade em Ser e tempo

    Andr DuarteDepartamento de Filosofia da Universidade Federal do Paran UFPRE-mail: [email protected]

    Resumo: A presente investigao busca ressaltar a contribuioheideggeriana para a questo da alteridade, contrapondo-se s inter-pretaes que enfatizam o solipsismo existencial do Dasein resolu-to como o sintoma de que Heidegger teria desconsiderado esse pro-blema em sua analtica existencial. Para tanto, discute-se o movi-mento argumentativo pelo qual Heidegger, partindo da anlise doencontro do outro na cotidianidade mediana, chega at o problemado reconhecimento da alteridade que todo Dasein j traz em si mes-mo. Segundo a interpretao aqui proposta, a chave para uma poss-vel leitura tica da analtica existencial se encontra na articulaoentre as anlises fenomenolgicas da angstia e do chamado da cons-cincia, pois justamente nelas que se revela o estranho apelo deuma alteridade que j habita cada um, e que tem de ser pensadacomo a condio ontolgica do reconhecimento de si e do outro en-quanto singularidade prpria, isto , como alteridade.Palavras-chave: Heidegger, analtica existencial, alteridade, ticaps-metafsica.

    Abstract: By critically departing from current interpretations thatstress the existential solipsism of the resolute Dasein, the presentinvestigation emphasizes the Heideggerian contribution to thequestion of otherness. I discuss the main existentials through which

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    Heidegger, starting with the question of the encounter of the otherin the everyday world, reaches the crucial point where heacknowledges that otherness is already rooted in each Dasein.According to this interpretation, the key to uncover the ethicaldimension of Heideggers existential analytic is to be found in thetheoretical articulation established between the phenomenologicalanalysis of anguish and the phenomenological analysis of the call ofconscience. This is the locus where Heidegger rends manifest thatthe resolute Dasein already carries within itself the strange appeal ofotherness, considered as the existential condition for theacknowledgment of the other in his own singularity, that is, asotherness.Key-words: Heidegger, existential analysis, otherness, post-metaphysical ethics.

    Eu no sou eu nem sou o outro,Sou qualquer coisa de intermdio.

    (Mrio de S Carneiro)

    Ser outro, outro, outro. Cada um tambm deveria voltar a ver-se como outro.

    (Elias Canetti)

    O estatuto filosfico da alteridade em Ser e tempo d margem ainmeras controvrsias e discusses, as quais, por sua vez, repercutem naavaliao da ontologia fundamental, sobretudo em relao sua possveldimenso tica. Para muitos intrpretes, a despeito de Heidegger terreelaborado a sua herana husserliana, ele ainda teria permanecido prisio-neiro das aporias da moderna filosofia da subjetividade, aspecto que seevidenciaria em sua rgida e insolvel contraposio entre o isolamentosolipsista do si-mesmo autntico e a disperso cotidiana do si-mesmoinautntico em meio aos outros. Tal deficincia terica lhe teria vedado oacesso a uma genuna considerao do outro e da intersubjetividade, obs-

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    truindo, desse modo, a via de uma reconstruo ps-metafsica da tica.Habermas poderia ser citado como um dos principais representantes des-sa corrente de interpretao, quando afirma que Heidegger se viu impos-sibilitado de desenvolver uma reflexo sobre o carter lingstico daintersubjetividade. Segundo o veredicto habermasiano, Heidegger teria

    (...) degradado, desde o princpio, as estruturas fundamentais do mun-do da vida que transcendem o Dasein isolado, ao tom-las comoestruturas da existncia cotidiana mdia, ou seja, do Daseininautntico. Por certo, a coexistncia dos outros parece ser, a princ-pio, um trao constitutivo do ser-no-mundo. Mas a prioridade daintersubjetividade do mundo da vida sobre o carter de ser meu doDasein escapa a todo aparato conceitual ainda tingido pelo solipsismoda fenomenologia husserliana. (Habermas 1995, p. 149)

    Assim, para Habermas, aquilo que Heidegger tinha a dizer arespeito da coexistncia cotidiana no mundo comum ainda seria insufici-ente para que seu pensamento pudesse figurar na origem do ques-tionamento filosfico dialgico e comunicativo, voltado para o reconheci-mento do outro enquanto alteridade nos contextos mundanos einstitucionais. H ainda aqueles intrpretes para os quais tais questessequer constituem objeto de interesse e considerao, visto que eles sevoltam para um esclarecimento ontolgico das estruturas constitutivasdo ser do Dasein, pensando-o enquanto subjetividade, ou seja, exclusi-vamente a partir do horizonte terico das filosofias do sujeito. Segundo ocomentrio de Gnter Figal, a recepo e a interpretao dos pargrafosde Ser e tempo dedicados anlise fenomenolgica do Mitsein e do Mitdaseinforam marcadas por duas posies tericas divergentes entre si, uma de-las enfatizando o enraizamento de Heidegger no mbito da filosofia dosujeito, ao passo que a outra, a despeito de reconhecer a contribuio doautor para um esclarecimento do carter de convivncia mundana doDasein, julga que suas anlises ainda so insuficientes para uma determi-nao completa da intersubjetividade (Figal 2000, pp. 133-4).

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    A presente interpretao, por sua vez, considera questionveisessas duas vias de anlise de Ser e tempo, as quais mostram-se incapazes decompreender a abordagem heideggeriana da alteridade, na medida emque enfatizam, em maior ou menor grau, o solipsismo existencial doDasein resoluto, concebido como o sintoma do aprisionamento da anal-tica existencial no horizonte terico do subjetivismo moderno. Discutin-do algumas passagens privilegiadas da analtica ontolgica da existncia,argumento que Heidegger redefiniu a via de abordagem qual as filoso-fias do sujeito haviam sido conduzidas, em seu intento de resolver o pro-blema da intersubjetividade no mbito de uma concepo da subjetivida-de solipsista e constituinte. Em Ser e tempo, a questo do outro e daalteridade entrevista a partir de um duplo deslocamento terico: emprimeiro lugar, o problema do encontro e do reconhecimento do outro nomundo deixa de ser pensado por meio do recurso atividade especulativado sujeito isolado, ou ainda, por meio da empatia analgica, que transfor-ma o outro em um duplo de mim mesmo. Em segundo lugar, e maisfundamentalmente, tambm argumento que Heidegger pensou oenraizamento da alteridade na prpria ipseidade (Selbstheit), recusando-se a pensar o si-mesmo (Selbst) segundo as categorias da substncia e daidentidade (Identitt), isto , da permanncia do mesmo ou do idnticono tempo, aspecto decisivo e fundamental para uma reflexo tica ps-metafsica. Luiz Bicca expressou um argumento semelhante ao afirmarque em Heidegger, manifesta-se uma diferena entre a identidade quesupe permanncia (ou substancializao) e a ipseidade, diferena estaque uma diferena de modos de ser (Bicca 1999, p. 8).

    Por certo, Heidegger no chegou a explorar detidamente o pro-blema da alteridade em sua anlise ontolgica da existncia, que consti-tua to-somente o ponto de partida para o questionamento do sentidodo ser em geral, a partir do horizonte do tempo. Conseqentemente, oreconhecimento da importncia do tema da alteridade em Ser e tempo,assim como a sua mais adequada compreenso, dependem de uma leituraatenta das entrelinhas dessa obra, em busca de conexes conceituais que

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    no se explicitam primeira vista: trata-se aqui de discutir o movimentoargumentativo pelo qual, partindo da anlise do encontro do outro nacotidianidade mediana, Heidegger chega at o reconhecimento daalteridade que todo Dasein j traz em si mesmo.1 A fim de iniciar o traba-lho de liberao do potencial tico da ontologia fundamental, precisodiscutir em pormenor a tematizao heideggeriana do encontro do outro,tal como ela se apresenta nos pargrafos 26, 27 e 38 de Ser e tempo. Noentanto, contrariamente sugesto de Frederick Olafson, penso que esse apenas um primeiro momento da abordagem heideggeriana do proble-ma da alteridade, ainda que o mais evidente na economia geral de Ser etempo (Olafson 1999). Meu argumento, por outro lado, o de que a des-coberta da dimenso tica da analtica existencial depende de uma dis-cusso do desocultamento da propriedade (Eigentlichkeit) de si mesmo,a qual se inicia apenas no 40 de Ser e tempo, sendo posteriormente reto-mada e aprofundada nos pargrafos decisivos, em que Heidegger propesua investigao fenomenolgica do clamor da conscincia e da escutadecidida do Dasein ( 54 a 60). Segundo a interpretao aqui proposta,a chave para uma possvel leitura tica da analtica existencial se encontranesses pargrafos, nos quais Heidegger nos revela o estranho apelo deuma alteridade que j habita cada um, e que tem de ser pensada como acondio ontolgica do reconhecimento de si e do outro enquanto singu-laridade irredutvel, isto , como alteridade. A anlise dessas sutis articu-laes conceituais de Ser e tempo nos d a compreender que Heidegger nose limitou a transpor o abismo moderno entre o eu e o outro, ao pensar a

    1 Ao argumentar que a alteridade j se enraza ontologicamente no si-mesmo prprio(eigentliche Selbst), o presente artigo mantm um vnculo de complementaridadecom um estudo anterior, no qual procurei mostrar como a modificao existenciriade si-mesmo implica, simultaneamente, uma modificao do ser-com os outros,abrindo com isso a possibilidade tica do encontro do outro enquanto outro, isto ,em sua alteridade ou em sua singularidade, e no apenas como mais um existentecom quem compartilho, nos modos da indiferena ou da deficincia, minhas ativi-dades cotidianas no mundo comum. Ver Duarte, A. 2000: Por uma tica da preca-riedade: sobre o trao tico de Ser e Tempo. Natureza humana, v. 2, n. 1.

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    indissociabilidade de ambos no mundo comum compartilhado nas ocu-paes cotidianas e na prpria linguagem. Heidegger deu um passo te-rico ainda maior, pois pensou a possibilidade do reconhecimento tico dooutro a partir do reconhecimento da condio ontolgica de que j traze-mos o outro em ns mesmos.

    *Para os propsitos deste texto, importa salientar a redefinio

    heideggeriana das bases tericas em que a questo do outro vinha sendodiscutida no mbito da fenomenologia e da hermenutica clssica. Emrelao a Husserl, j no se tratava mais de estabelecer a fundao filos-fica primeira por meio da reduo transcendental, para, ento,compatibilizar o eu transcendental com um outro ego constituinte nocontexto intersubjetivo do mundo da vida. Em relao a Dilthey, j nose tratava mais de compreender as objetivaes humanas em termos datransposio do eu para as vivncias do outro, segundo o pressuposto deque todo encontro com o outro tambm um encontro do esprito consi-go mesmo. Segundo a formulao de Gadamer, tanto em Dilthey quantoem Husserl o problema da intersubjetividade e da compreenso do outrorequeriam um pensamento analgico: o outro era sempre pensado comoum alter-ego apreendido teoricamente, isto , como uma coisa da per-cepo, que, ento, por meio da empatia, torna-se um tu (Gadamer1990, pp. 254-5). Anos mais tarde, nos famosos seminrios de Zollikon,Heidegger afirmaria que a teoria psicolgica usual segundo a qual sepercebe o outro pela empatia, pela projeo de si mesmo no outro, nosignifica nada, porque a representao de uma empatia e de uma proje-o sempre j pressupem o ter compreendido o outro como outra pes-soa, seno eu estaria projetando para dentro do vazio (Heidegger 2001,p. 184). J antes de Ser e tempo Heidegger questionara o privilgio conce-dido pergunta pelo fundamento epistemolgico que garantiria a unidadeessencial intersubjetiva entre duas conscincias que se encontram lado alado, mas que se mantm isoladas entre si no mundo. Na analtica ontolgicada existncia, o outro deixa de ser apreendido como um duplo do si-

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    mesmo (eine Dublette des Selbst) 26 para ser concebido como aquelecom o qual j coexisto no mundo comum das ocupaes e preocupaescotidianas, segundo o modo de ser da abertura que compreende o ser.Com a ruptura definitiva da cpsula epistemolgica da conscincia, ooutro e o mundo deixaram de ser pensados como se fossem territriosaliengenas e alheios ao eu: o mundo se transformou num horizonte desentidos compartilhados por entes que se compreendem e que, portanto,se encontram sempre uns com os outros, e no uns ao lado dos outros nomundo exterior.

    Em Ser e tempo, a desmontagem desses dilemas tericos se tornaclaramente identificvel no 26, no qual se tematiza a co-existncia dosoutros e o ser-com cotidiano. Nesse pargrafo, se demonstra que o en-contro do outro j tem de ser considerado no mbito de uma anlise dalida cotidiana das ocupaes (Besorgen) e preocupaes (Frsorge) mun-danas, instncia que ontologicamente anterior em relao a todoquestionamento terico pela natureza do outro: para que eu possa meinterrogar se aquele que se assemelha a mim apresenta uma constituioontolgica idntica minha, j preciso que eu o tenha descoberto pre-viamente como um outro ser-a num mundo circundante comum. Afinal,como argumentou Olafson, quando, j adultos, simulamos interrogar seexistem outras mentes alm da nossa, estamos na realidade tentando co-locar em questo algo que nos permitiu chegar quele ponto a partir doqual pudemos propor essa questo (Olafson 1999, p. 25). Assim, osoutros no so algo que se acrescenta a uma coisa-sujeito dada em isola-mento por intermdio de suas representaes, nem tampouco so todosaqueles, alm de mim, em relao aos quais eu me encontro isolado. Oque importa salientar que ser-com os outros no significa o somatrioou a mera justaposio de um Dasein ao lado de outro, e assim sucessiva-mente, do mesmo modo como ser-no-mundo no significa que algo me-ramente subsistente esteja inserido em um continente dado. Antes, ser-no-mundo ser-com os outros com os quais se coexiste em um mundocomum, cuja totalidade originria dos nexos de referncia significativos

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    j est sempre e de antemo aberta, isto , compreendida por todos. Oencontro dos outros j se d sempre no mbito de uma familiaridadecom o mundo (Weltvertrautheit) constitutiva da compreenso de ser doser-no-mundo, na concretude das preocupaes e ocupaes cotidianascompartilhadas. Isso tambm significa que o encontro do outro no se dnunca, em primeiro lugar, por meio da atividade terica de um sujeitodisperso, isolado, pairando junto a todas as outras coisas mundanas, poiso outro j , sempre, imediatamente reconhecido enquanto outro Dasein,isto , como abertura estruturada pela compreenso de ser. Assim, mes-mo quando vemos o outro meramente em volta de ns, ele nunca apreendido como coisa-homem simplesmente dada, mas sempre j comooutro que est conosco em um mundo comum compartilhado na lingua-gem, e mesmo pr-lingisticamente (Heidegger 1988a, 26, v. 1,p. 171; 1986, p. 120).

    Os outros so todos aqueles em meio aos quais j sempre seest, e em relao aos quais, o mais das vezes, ningum se diferencia. Nopor acaso, nesse momento inicial da analtica, a prpria meno aos ou-tros se torna ambgua e eles so mencionados, algumas vezes, entre as-pas, pois se trata a de outros que podem ser substitudos por quaisqueroutros, dos quais eu no me distingo e que no se distinguem de mimmesmo. Heidegger chega mesmo a afirmar que esse conviver dissolveinteiramente o prprio Dasein no modo de ser dos outros, de tal modoque os outros em sua diferena e expressividade desaparecem ainda mais(Heidegger 1988a, 27, v. 1, p. 179; 1986, p. 126, traduo modifica-da).2 Tambm no gratuito, portanto, que a preocupao para com osoutros que caracteriza a convivncia cotidiana e mediana se d, predomi-nantemente, nos modos da deficincia e indiferena, descritos gene-ricamente em termos do ser por um outro, contra um outro, sem os

    2 Os outros, assim designados para encobrir que se pertence prpria e essencial-mente a eles, so aqueles que, na coexistncia cotidiana, esto a de incio e namaior parte das vezes (Heidegger 1988a, 27, p.179; 1986, p. 126, traduomodificada).

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    outros, o passar ao lado um do outro, o no se sentir tocado pelos outros(Heidegger 1988a, 26, v. 1, p. 173; 1986, p. 121). Deste modo, MichelHaar tem razo ao afirmar que no h cotidianidade sem que a alteridadedo outro j no esteja implicada, invocada, utilizada, mas, ao mesmotempo, recalcada, negligenciada e, finalmente, negada. A cotidianidadese funda sobre o modo deficiente do ser da convivncia (Haar 1994, p.67). O mais das vezes, e em primeiro lugar, o outro no me em nadaestranho, no o compreendo enquanto alteridade irredutvel, pois ele jfoi sempre reconhecido como um semelhante em relao ao qual sou in-diferente, desconfiado, hostil, bajulador, companheiro, etc. Em meio neutralidade genrica e indiferenciada do cotidiano, em que o eu e o ou-tro se tornam indistintos, ainda que busquem interpor continuamentepequenas diferenas entre si, impe-se a concluso de que cada um ooutro e nenhum ele mesmo, como afirmado no 27.

    Compreendendo a si e aos demais a partir do mundo comparti-lhado nas ocupaes do mundo circundante, no qual todos so o queempreendem 27 ,3 o Dasein existe segundo o modo de ser em queo eu pode vir a se manifestar como o seu contrrio (Heidegger 1988a, 25, v. 1, p. 167; 1986, p. 116). Por certo, no poderamos existirdesapossados da ipseidade, ou seja, desprovidos de um eu, de modo queo contrrio do si-mesmo tem de ser pensado como um modo de serdeterminado do prprio Eu, denominado por Heidegger como a per-da de si mesmo (Selbstverlorenheit) (Heidegger 1988a, 25, v. 1, p. 167;1986, p. 116). Heidegger evita identificar a ipseidade ou o si-mesmo snoes tradicionais de eu e de sujeito, motivo pelo qual elas aparecementre aspas em vrias formulaes do 25. O eu e o sujeito no so maispensados como isolados dos outros e do mundo, pois no so concebidoscomo o substrato da auto-reflexo, como o subjectum que se pensa a simesmo e que, portanto, o suporte que acompanha os diversos atos erepresentaes do sujeito, permanecendo sempre o mesmo no tempo. A

    3 Veja tambm Heidegger 1988b, GA 20, p. 336; 1989, GA 24, pp. 226-7.

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    pergunta pelo ser do eu ou do sujeito deixou de ser a pergunta o que se?, para se transformar na pergunta quem se ?, de sorte que a ipseidadej no podia mais ser pensada como a instncia substancial que proporcio-naria a identidade imutvel do ente que somos. A partir dessa transfor-mao conceitual decisiva, Heidegger buscou destruir os parmetros tra-dicionais da ontologia da coisa, que pensa a existncia como meramentesubsistente (Vorhandenheit). Para garantir o acesso a um ser no coisificadodo sujeito, da alma, da conscincia, do esprito, da pessoa, Heideggervisa a prpria origem da coisificao ontolgica, o que, por sua vez, exigeuma interrogao originria do modo de ser do homem, do ente quecompreende ser em seu prprio ser. Por isso, desde o 10, Heideggerafirma que

    uma das primeiras tarefas da analtica ser, pois, mostrar que o prin-cpio de um eu e sujeito, dados inicialmente, deturpa, de modo fun-damental, o fenmeno do Dasein. Toda idia de sujeito enquantopermanecer no esclarecida preliminarmente mediante uma deter-minao ontolgica de seu fundamento refora ontologicamente oponto de partida do subjectum (hipokemenon), por mais que, do pon-to de vista ntico, se possa arremeter contra a substncia da almaou a coisificao da conscincia. (Heidegger 1988a, 10, v. 1,p. 82; 1986, p. 46)

    O problema todo reside, portanto, em se determinar de manei-ra existencial-ontolgica o ser do eu, recusando as definies antropolgi-co-metafsicas que definem o ser do homem como algo puramentesubsistente, ao qual se acrescenta sua diferena especfica, como quer queela seja pensada: como racionalidade, espiritualidade, intencionalidade,personalidade, etc. Como se sabe, foi justamente no intuito de cortar pelaraiz o perigo da coisificao do eu ou do sujeito que Heidegger introduziuseu prprio conceito de existncia (Existenz), o qual j no designavamais o contedo qididativo, a essentia do ente que sou, mas constitua aindicao formal de que, na medida em que sou, comporto-me em re-

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    lao ao ser que sempre meu (Jemeinigkeit) em termos das minhaspossibilidades fundamentais de ser ou no ser um si-mesmo, isto , aspossibilidades de ser no modo da propriedade (Eigentlichkeit) e da im-propriedade (Uneigentlichkeit). Ao pensar a constncia de si (Selbst-Stndikeit) e a inconstncia de si (Unselbstndigkeit) como constitutivasdo modo de ser do Dasein, Heidegger redefiniu a base de considerao doestatuto ontolgico da existncia, ensejando tanto a inovadora perguntapelo quem do Dasein cotidiano, quanto a desconfiana, enunciada no 25, de que, talvez, o quem do Dasein cotidiano no seja sempre justa-mente eu mesmo. (...) E se a constituio do Dasein, cujo ser sempremeu, fosse a razo para que ele, na maior parte das vezes e antes de tudo,no seja ele mesmo? (Heidegger 1988a, 25, v. 1, p. 166; 1986, pp. 115-6). Como bem observou Jean Greish, aventar a possibilidade de que oDasein no seja ele prprio na cotidianidade no significa roubar-lhe aipseidade, mas, sim, confirm-la: afinal, no ser si mesmo ser no mododa impropriedade, o que no o mesmo que ser no modo da pura subsis-tncia (Greish 1994, p. 158). A partir da diferenciao entre os modos deser da existncia e do meramente presente adiante da mo, Heideggertambm pde afirmar a existncia de um abismo entre a mesmidade(Selbigkeit) do si-mesmo propriamente existente e a identidade (Identitt)do eu que permanece na multiplicidade das vivncias (Heidegger 1988a, 27, v. 1, p. 183; 1986, p. 130, traduo modificada). Ou, para usar ostermos de uma anotao marginal do prprio Heidegger, em seu volumede Ser e tempo, tratar-se-ia de opor a autntica ipseidade (echte Selbstheit)a uma egoidade indigente (elende Ichlichkeit) (Heidegger 1988a, nota ao 25, v. 1, p. 442; 1986, p. 306, traduo modificada), pensada como aconstncia de algo que escapa ao prprio tempo. Heidegger explica eretoma essas teses nos seminrios de Zollikon, ao afirmar que

    (...) o si-mesmo aquilo que em todo o caminho histrico do meuDasein se mantm constantemente como o mesmo, justamente nomodo do ser-no-mundo, do poder-ser-no-mundo. O si-mesmo nun-

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    ca est presente como substncia. A constncia do si-mesmo singu-lar no sentido de que o si-mesmo pode sempre voltar para si mesmoe sempre se encontra em sua morada como o mesmo. A constnciade uma substncia s consiste no fato de que ela est sempre presenteno decorrer do tempo, mas nada tem a ver com o prprio tempo. Aconstncia do si-mesmo em si temporal, isto , se temporaliza.Esta mesmidade do Dasein somente no modo da temporalizao.(Heidegger 2001, p. 194)

    Foi por meio dessas distines que o filsofo abriu a via de aces-so ciso ontolgica constitutiva da existncia, bifurcada em seus doismodos fundamentais de ser, suscitando, por sua vez, a questo a respeitoda modificao existenciria da impropriedade em propriedade do Dasein.Antes de abordar essa questo, vejamos como Heidegger aprofunda a suacaracterizao do modo de ser do ser-no-mundo em sua cotidianidademediana. Heidegger responde questo a respeito do quem do Daseincotidiano no famoso 27, afirmando que o quem no este ou aquele,no so eles ou alguns outros, nem tampouco a soma de todos. O quem o neutro, o impessoal (das Man) (Heidegger 1988a, 27, v. 1, p. 179;1986, p. 126, traduo modificada). Se no 26 Heidegger afirmara queenquanto ser-no-mundo todo Dasein existe em funo dos outros, acres-centa-se agora, por detrs do existencial da coexistncia, o modo de sersegundo o qual o si-mesmo da cotidianidade se caracteriza pelaindeterminao annima de um ningum. Absorto em seus afazeresmundanos em meio ao predomnio da interpretao pblica de tudo oque , ocorre que os outros tomam ao Dasein o prprio ser, retirando-lheo peso da responsabilidade de existir. Ao definir esses traos ontolgicosdo Dasein entregue convivncia cotidiana, Heidegger no pretendeuafirmar que esse fosse um modo de ser degradado em sua realidade ouque esse ningum se confundisse com um mero nada negativo. Muitopelo contrrio; no cotidiano, o existente se interpreta o mais das vezescomo um ens realissimum, como o sujeito mais real, isto , como umente pleno de sentido e de realidade. Em outras palavras, ele se interpreta

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    sempre j a partir dos preconceitos institudos historicamente, os quaisprefiguram, regulam e retroagem sobre sua interpretao de si mesmo ede tudo o que h, determinando-lhe sua identidade. Heidegger no estsimplesmente afirmando que o Dasein entrega voluntariamente aos ou-tros o seu poder de decidir e escolher para si o que, evidentemente,tambm uma possibilidade cotidiana sua , mas, antes e sobretudo, queas minhas escolhas e decises so determinadas pelo si-impessoal que eusou na cotidianidade, de modo que fica indeterminado quem propria-mente escolhe (Heidegger 1988a, 54, v. 2, p. 53; 1986, p. 268). Afrmula heideggeriana do 27 lapidar e merece ser citada na ntegra:

    O si-mesmo do Dasein cotidiano o si-impessoal, que ns diferen-ciamos do si-mesmo prprio, isto , do si-mesmo apreendido propria-mente. Enquanto si-impessoal, cada Dasein est disperso no impes-soal e tem, primeiramente, que se encontrar. Essa disperso caracte-riza o sujeito do modo de ser que ns conhecemos como a ocupaoabsorvida no mundo que vem imediatamente ao encontro. Se o Daseinest familiarizado consigo mesmo enquanto si-impessoal, ento issotambm significa que o impessoal prelineia a interpretao mais pr-xima do mundo e do ser-no-mundo. (...) De incio, eu no sou nosentido do si-mesmo prprio, mas sou os outros no modo do impes-soal. a partir deste, e enquanto este, que eu sou dado primeira-mente a mim mesmo. De incio o Dasein impessoal e assim per-manece o mais das vezes. (Heidegger 1988a, 27, v. 1, p. 182;1986, p. 129, traduo modificada)

    Por isso, sem que perceba, todo Dasein envolvido na lida coti-diana das ocupaes preocupadas j est sempre entregue tutela, aoarbtrio, ao domnio, ao poder e ditadura dos outros, segundoos termos do 27. Aqui, a terminologia heideggeriana estritamentepoltica, o que deixa entrever que essas formas determinadas de relaoentre um e outro na coexistncia podem ser, ao menos at certo ponto,modificadas, de tal modo que, talvez, seja possvel coexistir sem sucum-bir, necessariamente, ao imprio dos outros. No entanto, seria um enga-

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    no confundir a modificao possvel desse modo determinado da convi-vncia no mundo comum com a idia de uma completa suspenso dasubmisso a regras socialmente compartilhadas: imaginar uma convivn-cia social no regrada seria to absurdo quanto suprimir a linguagemcompartilhada e, ainda assim, almejar a comunicao com os outros. Nessesentido, Heidegger pretende demonstrar que coexistir j estar sempreentregue a um poder annimo, aquele que pr-define as regras, padres eparmetros histricos de regulao cotidiana da abertura que somos. Daa primazia da interpretao pblica da totalidade dos entes, fundada nodiscurso como existencial constitutivo do ser do Dasein. Segundo TaylorCarman, o discurso estabelece uma ponte entre a normatividade socialannima do das Man e as prticas interpretativas concretas dos agenteshumanos individuais (Carman 2000, p. 20).

    Desse modo, o fenmeno positivo ao qual Heidegger alude no 27 que as possibilidades de ser do Dasein, assim como suas interpre-taes a respeito de si, dos outros e dos demais entes intramundanos, j seencontram, o mais das vezes e em primeira aproximao, previamentereguladas, controladas e disponibilizadas pela publicidade que a tudo ni-vela e obscurece, filtrando e controlando o que deve ser considerado comovlido ou invlido, digno de sucesso ou fracasso e assim por diante.Heidegger se refere interpretao pblica de tudo o que em termos deuma fora de nivelamento e degradao do que assim se revela, mas issono implica um juzo estritamente negativo: se a publicidade age no sen-tido da uniformizao, isso se deve ao fato de que ela o meio em que sedo as operaes de compreenso e interpretao medianas do Dasein, asquais, por sua vez, condicionam o projetar do Dasein para suas possibili-dades mundanas, amarrando-o sua impropriedade. No entanto, no sedeve pensar os existenciais da cotidianidade e da impessoalidade no inte-rior da tradicional separao entre as esferas pblica e privada, conformesugeriu Michel Haar ao afirmar que a cotidianidade no inclui de ma-neira alguma a esfera privada e as relaes familiares, por exemplo, quepermanecem indeterminadas quanto sua autenticidade possvel. A exis-

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    tncia cotidiana est sempre fora, ela extrovertida, pblica (Haar 1994,p. 68). Afinal, ambas as esferas j esto sempre sujeitas ao imprio dainterpretao pblica da totalidade do ente, a qual, por sua vez, estfundada na compreenso de ser constitutiva do Dasein e em sua tendn-cia a interpretar-se a partir do mundo.4 Contudo, preciso ressalvarque se a publicidade age no sentido de nivelar todas as possibilidades deser do Dasein, isso no implica a impossibilidade de uma apropriao desi e da linguagem. Afinal, no est descartada por princpio a possibilida-de de que o Dasein apropriado de si possa exprimir publicamente umainterpretao no mediana de si, dos outros e dos entes intramundanos,confrontando-se, no interior mesmo da publicidade cotidiana, com aqui-lo que desde sempre j se diz e j se disse a respeito do que quer que seja.O que se enuncia aqui, portanto, apenas a possibilidade existencial deque o poder-ser que o Dasein se feche numa interpretao de si queapenas se compreende enquanto realidade mundana que se esgota nosseus afazeres e preocupaes dirias consigo e com os outros. Em outraspalavras, na medida em que permanece enfeitiado pelo mundo comumda coexistncia cotidiana ocupada e preocupada, o Dasein exime-se con-tinuamente de vir a si mesmo, mantendo, assim, encoberta aindeterminao ontolgica de sua existncia, que no pode ser resumidaquilo que j se diz cotidianamente sobre ela na publicidade.5 Esse modo

    4 No 5 Heidegger afirma que de acordo com um modo de ser que lhe constitutivo,o Dasein tem a tendncia [Tendenz] de compreender seu prprio ser a partir daqueleente com quem ele se relaciona e se comporta de modo essencial, primeira e conti-nuamente, a saber, a partir do mundo (Heidegger 1988a, 5, v. 1, p. 43; 1986,p.15). Em Histria do conceito de tempo, curso do semestre de vero de 1925, Heideggertambm afirma que na medida em que o Dasein se encontra em primeiro lugar nomundo, e que a publicidade determina os prprios objetivos e apreenses do Daseina partir do mundo das ocupaes compartilhadas, ento bem provvel que todosos conceitos e expresses fundamentais que o Dasein forma para si, em primeirolugar, sejam obtidos em vista do mundo no qual ele se encontra absorvido(Heidegger 1988b, GA 20, p. 342).

    5 O que dado em primeiro lugar este mundo comum do impessoal, quer dizer, omundo no qual o Dasein submerge, de tal modo que ele ainda no veio a si mesmo

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    fundamental de ser do Dasein cotidiano que submerge no mundo dasocupaes preocupadas definido no 38 como o estar perdido(Verlorensein) na publicidade do impessoal, condio existencial positivadenominada por Heidegger a decadncia (Verfallen) do Dasein:

    Primeiramente, o Dasein j sempre decaiu de si mesmo enquantopoder-ser em sentido prprio, e caiu no mundo. O decair nomundo significa o empenhar-se na convivncia [Aufgehen imMiteinandersein], na medida em que esta conduzida pelo falatrio,curiosidade e ambigidade. Aquilo que denominamos a improprie-dade do Dasein experimenta agora, por meio da interpretao dadecadncia, a sua determinao mais forte. A impropriedade no sig-nifica algo como um no estar mais no mundo, visto que, por outrolado, ela justamente perfaz um modo caracterstico do ser-no-mun-do, aquele que totalmente absorvido [vllig benomen] pelo mundoe pela coexistncia dos outros. (Heidegger 1988a, 38, v. 1, p. 237;1986, p. 175-6, traduo modificada)

    O 38 apresenta vrias armadilhas interpretativas, as quaispodem distorcer e mesmo impossibilitar uma compreenso adequada daanaltica existencial. Se, por um lado, o Dasein j se encontra cotidiana-mente decado de si mesmo, e se, por outro, a decadncia no uma meracircunstncia ntica que pudesse ser suprimida, como ento conceber queele possa se apropriar de si mesmo? Uma vez proposta essa questo, j seest a um passo de respond-la, afirmando que o Dasein apropriado de sino mais do que uma quimera, pois se arrancou do mundo comumcompartilhado para experimentar uma existncia impossvel, visto queradicalmente isolada em relao aos demais: temos a a origem da crticaao suposto solipsismo existencial da analtica, tantas vezes realado. Noentanto, o que se faz necessrio mostrar que a condio existencial dadecadncia no contraditria com a possibilidade da modificao

    e no qual ele pode ser, continuamente, sem ter de vir a si mesmo (Heidegger1988b, GA 20, p. 339).

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    existenciria que desencobre a propriedade de si mesmo, visto que asingularizao (Vereinzelung) proposta por Heidegger no isola o Daseindo mundo comum compartilhado e da coexistncia com os outros. Emsuma, trata-se de demonstrar que a decadncia pode ser modulada, de talmodo que seja possvel, na queda, saltar da impropriedade para a proprie-dade de si mesmo, ainda que esse salto no possa se sustentar permanen-temente.6 Em outras palavras, a despeito de a decadncia no ser eliminvelenquanto tal, isso no significa que no seja possvel transformar os tra-os que a intensificam at o ponto em que se opera a perda de si mesmocomo possibilidade existencial cotidiana.

    No mbito de sua anlise da decadncia, definida em termosgerais como o empenho no mundo comum das ocupaes e preocupaescotidianas, Heidegger tambm afirma que o ser-no-mundo prepara parasi a tranqilidade tentadora que acentua [steigert] a decadncia e impele queda constante do Dasein de seu poder-ser mais prprio. O aspectoimportante aqui a meno heideggeriana de que o Dasein prepara parasi as condies que, acentuando a decadncia, mergulham-no em um esta-do de alienao (Entfremdung) que o aprisiona no modo de ser da impro-priedade cotidiana, aferrando-o a uma identidade mundana quecorresponde perda de si mesmo. Em outras palavras, o turbilho amobilidade caracterstica do ente que foi lanado (Geworfenheit) na agi-tao da impropriedade do impessoal regulada pela interpretao pbli-ca. Decair de si mesmo , portanto, manter-se no fechamento(Verschlossenheit) do poder-ser mais prprio, caracterizado enquanto mo-dalidade privativa da abertura, possibilidade da existncia em que tam-bm se mantm fechadas as relaes de ser primrias e autenticamenteoriginrias [primr und ursprnglichechten] para com o mundo, a coexistn-cia e o ser-em (Heidegger 1988a, 35, v. 1, p. 230; 1986, p. 170,traduo modificada). Essas breves observaes deixam entrever, no en-tanto, que se a decadncia considerada uma condio existencial positi-

    6 Tomei a metfora do salto para a propriedade do artigo Must we be inauthentic?,p. 25, de Taylor Carman 2000.

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    va da existncia sendo, enquanto tal, insupervel , ela no torna im-possvel a modulao da impropriedade no modo de ser da propriedade:afinal, a existncia prpria no algo que paire por sobre a cotidianidadedecadente, mas, em sua estrutura existencial, apenas uma apreensomodificada desta (Heidegger 1988a, 38, v. 1, p. 241; 1986, p. 179,traduo modificada). Dessa maneira, se a impropriedade o modo deser do Dasein que se manifesta na maior parte das vezes e o mais proxi-mamente (zumeist und zunchste), isso no significa que ela constitua o seumodo de ser mais originrio e prprio. Se a decadncia constitutiva doser do Dasein, a impropriedade que ela faculta no elimina sua possibili-dade mais originria de ser, nem impede que suas relaes para consigo,para com os outros e para com os entes encontrados no mundo possam sedar a partir de si mesmo. Como se ver, a modificao da condio exis-tencial em que o Dasein se encontra perdido de si na impropriedade doimpessoal tem de ser pensada justamente como uma modificao quetransforma a fuga ou a esquiva cotidianas do Dasein em relao suapossibilidade mais prpria, fenmeno que precisa ser analisado em suarelao com a disposio fundamental da angstia.

    Em primeiro lugar, cumpre observar que os fenmenos da fugaou esquiva do Dasein no mantm qualquer relao com a disposio dotemor (Furcht) ou medo diante de um ente intramundano que se mos-trasse perigoso. Resta, ento, a alternativa inslita de que essa fuga sejauma fuga diante de si mesmo, o que, por sua vez, suscita ainda outrasquestes: por que, estando diante de si, o Dasein acabaria por fugir de si?De que ameaa ele se desvia? O que significa a afirmao heideggerianade que: o desvio da decadncia se funda na angstia que, por sua vez,torna possvel o temor (Heidegger 1988a, 40, v. 1, p. 249; 1986, p.186)? A resposta a essas questes comea a se delinear ao compreender-mos que a angstia, na medida em que no pode ser referida a qualquerente intramundano ou a qualquer outro Dasein que pudesse colocar emrisco a minha existncia, angustia-se com a inexplicvel facticidade doser-no-mundo enquanto tal, cuja origem e destinao permanecem

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    absolutamente velados ao Dasein. Aquilo com que a angstia se angus-tia, isto , consigo mesma, torna manifesto o vazio silencioso e o nadamundano do seu poder-ser mais prprio. Em outros termos, essa a dis-posio afetiva particular em que se suspende a trama total das relaesde conformidade significativa e o Dasein se descobre em seu desampa-ro fundamental (Hilflosigkeit) (Heidegger 1988b, p. 401) em relao aotodo dos entes e interpretao pblica vigente. A esse respeito, LuizBicca observou que a expresso da angstia seu carter un-heim-lich,carter assombroso de ser sem uma ptria ou um lar [Heim], isto , sersem um lugar referencial familiar de amparo, abrigo e segurana (Bicca1999, p. 23). Na angstia, o Dasein sucumbe ao estranhamento dianteda sbita irrelevncia dos entes intramundanos e o mundo comum dasocupaes preocupadas assume o carter da total insignificncia(Heidegger 1988a, 40, v. 1, p. 250; 1986, p. 186). A rede total dasignificncia previamente aberta na compreenso de ser afunda em simesma para aparecer ao Dasein como trama de sentidos desprovida dequalquer amparo ou fundamento identificvel, ao mesmo tempo em quea premncia das ocupaes preocupadas tambm acaba por se mostrarcomo uma frgil proteo identitria que ento se esfacela:

    Na angstia, o manual intramundano afunda, assim como, em ge-ral, os entes intramundanos. O mundo, tanto quanto a coexistn-cia dos outros, j no tem mais nada a oferecer. A angstia toma aoDasein a possibilidade de compreender-se a partir do mundo e dainterpretao pblica na decadncia. (Heidegger 1988a, 40, v. 1,p. 251; 1986, p. 187, traduo modificada)

    A suspenso momentnea da interpretao pblica de si e detudo o mais tambm constitui a possibilidade de uma perturbao do si-mesmo imprprio j sempre significado num todo relacional de confor-midade de sentidos, e justamente diante desse outro da identidade co-tidiana que o Dasein foge. O que a angstia revela aquilo de que oDasein foge cotidianamente, ou seja, da estranha singularidade sem-

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    porque do ser-no-mundo ftico. O Dasein cotidiano foge do outro que elej , esquiva-se do outro do si-mesmo impessoal, ou seja, do seu poder-serem sentido prprio. A angstia, ao dar a compreender o poder-ser pr-prio que somos, desvela a propriedade e a impropriedade como modosfundamentais de ser do Dasein, ao mesmo tempo em que elucida o car-ter derivado da impropriedade em relao propriedade. Compreende-se, ento, que o esquecimento de si na decadncia impessoal das ocupa-es e preocupaes resulta de uma possibilidade mais fundamental quese mantm o mais das vezes encoberta, mas que constitutiva da nossaciso existencial. A familiaridade com o mundo comum proporcionadapela publicidade impessoal do cotidiano decadente no a instncia pri-meira e mais originria do ser-no-mundo, mas derivada, resultandode uma fuga da estranheza (Unheimlichkeit), do no estar em casa(Nicht-zuhause-sein) no mundo comum das ocupaes cotidianas compar-tilhadas, marca singular de uma existncia que, sendo no mundo, nopertence inteiramente a ele de direito.7 O Dasein foge de si, para a perdi-o no impessoal, na medida em que se desvia da estranheza originriaque desestabiliza a certeza de si (Selbstsicherheit) do Dasein familiarizadoconsigo e com tudo o que por meio da interpretao pblica. A fugadiante de si , portanto, um desvio em relao ao abismo (Abgrund) dapositividade existencial do nada da angstia, isto , em relao ao po-der-ser livre para a propriedade de si mesmo, aberto na angstia comodisposio fundamental da estranheza (Heidegger 1988b, GA 20,p. 402):

    A angstia... retira o Dasein de sua imerso decadente no mundo.A familiaridade cotidiana se rompe conjuntamente. O Dasein estsingularizado [vereinzelt], mas isto, no entanto, como ser-no-mundo.

    7 Para uma considerao refinada da estranha singularidade da existncia, ver os en-saios de Juliano Garcia Pessanha em seus livros: Sabedoria do nunca. So Paulo, Ate-li Editorial, 1999; Ignorncia do sempre. So Paulo, Ateli Editorial, 2000; Certeza doagora, So Paulo, Ateli Editorial, 2002.

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    O ser-em aparece no modo existencial do no sentir-se em casa. Isto oque diz o discurso sobre a estranheza. Torna-se agora visvelfenomenologicamente do que foge a decadncia enquanto fuga. (...)A fuga decadente para a publicidade uma fuga diante do no estarem casa, quer dizer, da estranheza inerente ao Dasein enquanto ser-no-mundo lanado para si mesmo em seu ser. Essa estranheza perse-gue o Dasein constantemente e ameaa, ainda que de maneira noexplcita, o seu cotidiano estar perdido no impessoal (...) O ser-no-mundo tranqilizado e familiarizado um modo da estranheza doDasein e no o contrrio. O no sentir-se em casa deve ser compreendido,existencial e ontologicamente, como o fenmeno mais originrio. (Heidegger1988a, 40, v. 1, pp. 253-4; 1986, p. 189, traduo modificada)

    O pleno reconhecimento e a assuno da estranheza originria,isto , da finitude ontolgica do Dasein, justamente o que Heideggerinvestiga em sua anlise fenomenolgica do chamado da conscincia.Essa a instncia em que se atesta a possvel modificao existenciria(existenzielle Modifikation) do si-impessoal da cotidianidade, operando-seo que Heidegger denominou a recuperao de uma escolha: apenasescolhendo escolher o Dasein possibilita para si mesmo o seu poder-serprprio. A despeito das aparncias, no se est no terreno dos atos volun-trios do pensamento e da vontade, de maneira que tambm no se trataaqui de uma defesa do livre-arbtrio, da capacidade de escolher entre es-tilos de vida diferentes. Em Ser e tempo, Heidegger no oferece nenhumaindicao quanto escolha de qualquer possibilidade mundana determi-nada, apenas menciona a necessidade de recuperar para si a possibilidadede escolher. Tambm cumpre observar que, em sua anlise da escuta e daresposta ao chamado da conscincia, Heidegger abandona a fico mo-derna do sujeito soberano capaz de uma deliberao racionalmente fun-dada, isto , capaz de calcular o que melhor para si. Em seu lugar surgi-r uma figura do humano que prima por sua extrema humildade e passi-vidade, sinais fundamentais da irrupo do outro em si mesmo, que des-faz o primado da impropriedade cotidiana. Mas se o Dasein que escuta e

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    responde decidido ao chamado no reage a uma voz que proviria dosoutros, de suas prprias faculdades do esprito ou de Deus, ento quem que chama, quem chamado, o que se diz e como que se diz o que a dito?

    Na medida em que o chamado da conscincia atesta e confirmaa possibilidade da singularizao do Dasein, torna-se evidente que elemesmo aquele que chama e chamado. Heidegger nos mostra que ochamado interpela o si-impessoal e o traz para a propriedade de si mes-mo, interrompendo a escuta ambgua e curiosa do falatrio, de maneira ainstaurar uma outra escuta de si mesmo, que abra a compreenso para opoder-ser mais prprio. O clamor da conscincia atinge o si-impessoalem seu j-se-ter-compreendido na cotidianidade mediana das ocupa-es e preocupaes e, tornando-o insignificante, chama-o para a pro-priedade de si-mesmo. Assim, esse chamado no faz mais do que aclamaro Dasein perdido de si, trazendo-o da certeza de sua identidade, cifradapela rede de sentidos do mundo compartilhado nas ocupaes preocupa-das, para a sua prpria singularidade. Na medida em que constitui ainterrupo do rudo ambguo e curioso do falatrio pblico, o chamadode si para si configura um modo do discurso que prescinde da verbalizao,e Heidegger pode afirmar que o clamor da conscincia opera sempre eapenas no modus do silncio 56. Mas de onde vem esta voz estranha(fremde Stimme), no familiar ao si-impessoal, e que, prescindindo dofalatrio da publicidade, desafia o alarido incessante da interpretaopblica, levando o Dasein a aquietar-se na quietude de si mesmo 60? Essa voz provm de mim e, no entanto, por sobre mim 57 , como que se quer sugerir que ela me atinge de maneira indubitvel e semqualquer mediao; o chamado me d a compreender o dbito de funda-mento que sou, sem que eu seja o agente racional e consciente desseefeito. O chamado se impe a mim num momento de impacto, de so-bressalto brusco 55 , de modo que no posso esper-lo, planej-loou desej-lo. No entanto, ele no em si mesmo misterioso, pois quemquer-ter-conscincia (Gewissen-haben-wollen) 58 compreende o que

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    a se enuncia e responde na deciso existencial, que no possui qualquercontedo, mas apenas modifica formalmente nossa compreenso do tem-po, do mundo, de ns mesmos, dos outros e dos demais entes. Afinal, adeciso que abre a ipseidade em sua constncia de si no mais do queum modo privilegiado da abertura:

    A compreenso do chamado abre o prprio Dasein na estranheza desua singularizao. A estranheza tambm desentranhada na compre-enso abre-se, de maneira genuna, por meio da disposio da angs-tia que lhe pertence. O fato [Faktum] da angstia da conscincia[Gewissensangst] uma confirmao fenomenal de que o Dasein, nacompreenso do chamado, trazido para diante da estranheza de simesmo. O querer-ter-conscincia torna-se prontido para a angs-tia. (...) A abertura do Dasein que subjaz no querer-ter-conscincia ,pois, constituda pela disposio da angstia, pela compreenso en-quanto projetar-se para o ser-em-dbito mais prprio e pelo discursocomo silenciosidade. Chamamos de deciso essa abertura privilegiadae prpria, testemunhada pela conscincia no prprio Dasein, ou seja,o projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se com o ser em dbito mais pr-prio. (Heidegger 1988a, 60, v. 2, p. 85; 1986, p. 296-7, traduomodificada; itlicos do texto)

    O estranho chamado silencioso no proclama nada, pois no fazmais do que anunciar a alteridade perturbadora enraizada no fundo semfundo do Dasein: o que se d a compreender no chamado o Dasein emsua estranheza, o ser-no-mundo originariamente lanado enquanto umno sentir-se em casa... (Heidegger 1988a, 57, v. 2, p. 63; 1986, p. 276).O chamado atesta o dbito originrio de fundamento da existncia paraconsigo mesma, posto que ela no foi dotada de um porqu ltimo efundamental, nem tampouco decidiu por si mesma a respeito de sua vin-da ao mundo. Na medida em que , o Dasein j est sempre lanadoadiante de si mesmo, sem que jamais possa recuperar ou se apoderar deseu fundamento: sendo, ele o fundamento lanado de si mesmo, masno pode ter qualquer domnio sobre seu fundo abismal, restando-lhe

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    apenas assumi-lo enquanto tal. Segundo Michel Haar, existir faticamentesignifica assumir em nosso projeto a anterioridade de um lance origin-rio, de um passado originrio que permanece absolutamente lacrado parans com respeito sua fonte (Haar 1993, p. 43). Apenas na medida emque foi lanado, o Dasein pode escolher entre as possibilidades para asquais se projeta; no entanto, ele no dispe de seu lance, isto , de suafacticidade, nem dos possveis que se lhe apresentam no mundo em quefoi lanado, bem como ainda tem de suportar, aps cada escolha, o fatode no ter escolhido algo outro. Por isso, Heidegger afirma no 58 que oser do Dasein, isto , a cura (Sorge), pensada como projeto lanado quedecai no mundo, est totalmente impregnada do nada (Nichtigkeit) emsua essncia. Em outros termos, o no que envolve a existncia departe a parte constitutivo de seu modo de ser enquanto ser-em-dbitooriginrio. Com essa afirmao no se est estabelecendo uma falta priva-tiva da existncia em relao a qualquer ideal de ser previamente conce-bido, mas, apenas, que o Dasein o ente lanado que se projeta para oque ele pode ser, a partir do seu ser-fundamento (nulo) de um nada 58.

    O chamado da conscincia d a compreender a estranheza fun-damental do existente lanado que se projeta para as possibilidades mun-danas de seu ser, mas que tem na morte a sua possibilidade mais prpriae o seu nada positivo de fundamento. Compreender-se a si mesmo en-quanto poder-ser prprio reconhecer-se como o mortal que se , reco-nhecendo a finitude ontolgica como a instncia possibilitadora de toda equalquer possibilidade mundana, escolhida a partir da propriedade de si.A morte, compreendida existencialmente, no , portanto, um eventoexterior ao Dasein, nem tampouco pode ser pensada como o encerramen-to das suas funes biolgicas, como a realidade do colapso vital que ape-nas um dia, mas no agora, ir lhe sobrevir. Segundo o conceito existen-cial da morte, o Dasein morre continuamente durante o tempo em queainda no deixou de viver (Heidegger 1988a, 52, v. 2, p. 42; 1986, p.259), de modo que se trata sempre de pensar o ser-para-a-morte como

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    Heidegger e o outro: a questo da alteridade em Ser e tempo

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    a antecipao de uma possibilidade extrema, que tem de permanecer sem-pre apenas enquanto possibilidade possibilitadora de tudo o mais. Assim,o Dasein que foge e se esquiva continuamente do seu ser-para-a-morteno foge de um evento real e fatdico que um dia, finalmente, h de seimpor, mas se desvia do seu ser-possvel e, assim, da sua possibilidade deser-outro. Por outro lado, o Dasein se decide por sua possibilidade maisprpria quando, no instante (Augenblick) da antecipao angustiada damorte, ele se compreende em sua futuralidade existencial, isto , como ooutro da impessoalidade cotidiana aprisionada na dimenso temporal dapresentificao imprpria (Gegenwrtigen) que possibilita as ocupaespreocupadas no mundo, mas cuja sucesso infinita de agoras encobre opassado, o presente e, sobretudo, o futuro em sentido prprio e origin-rio. Por isto, ser-para-a-morte em sentido prprio, numa antecipaoprontificada para a angstia, implica uma ruptura com o enrijecimento(Versteifung) da existncia enclausurada na dimenso temporal do presen-te, em que se multiplicam as possibilidades ocasionais do ocupar-se epreocupar-se mundano, bem como um descobrir-se livre para o poder-sermais prprio. Essa renncia decidida da impessoalidade , simultanea-mente, o reconhecimento de que as possibilidades mundanas so finitas(endliche), assim como a instncia de uma liberao das possibilidades dosoutros com quem sou no mundo; afinal, enquanto possibilidadeirremissvel, a morte singulariza somente a fim de tornar o Dasein, en-quanto possibilidade insupervel, compreensivo para o poder-ser dos ou-tros, na condio do ser-com (Heidegger 1988a, 53, v. 2, p. 48; 1986,p. 264).

    Restaria ainda demonstrar como a deciso possibilita o instanteno qual o Dasein experimenta a sbita condensao da temporalidadeoriginria futural e finita, na qual se fundam a abertura que ele , bemcomo as suas possibilidades fundamentais de ser, ou seja, a propriedade ea impropriedade da existncia. No entanto, o aspecto que pretendi enfatizarneste texto o de que a anlise heideggeriana da singularizao no esta-belece uma oposio estril e inflexvel entre o si-mesmo imprprio da

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    Andr Duarte

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    cotidianidade e a propriedade de si mesmo, dado que o si-mesmo prpriono repousa sobre um estado excepcional do sujeito separado do impes-soal, mas uma modificao existenciria do impessoal enquanto um existencialessencial (Heidegger 1988a, 27, v. 1, p. 183; 1986, p. 130, traduomodificada; itlicos do texto).8 Se isso no fosse assim, ento Heideggerno poderia afirmar, no 60, que o Dasein, decidido e finitizado, pode setornar a conscincia dos outros, isto , que ele pode ser-com os outrosde modo a liber-los para o seu poder-ser mais prprio, muito emboraseja foroso reconhecer que o filsofo jamais tenha explorado essa possibi-lidade existencial rica de implicaes tico-polticas. Ou seja, o acesso propriedade de si mesmo, concebida como o outro da impessoalidade, acondio existencial por meio da qual se pode esclarecer o enigma doencontro de si e do outro enquanto alteridade.

    luz dessas consideraes, penso que se poderia caracterizar avoz silenciosa que vem de longe e chama para longe (aus der Ferne in dieFerne) 55 da impropriedade cotidiana como a voz amiga do outroque j sou. Caso pensemos esse apelo como a voz annima neutra oubranca da alteridade do ser ou do nada em relao ao todo dos entes,conforme a sugesto de J.-F. Courtine, ento deveremos cuidar para nopensarmos a individuao heideggeriana como indelevelmente marcada

    8 No 53, Heidegger afirma que O Dasein s pode ser propriamente ele mesmo quan-do, a partir de si mesmo, ele torna isso possvel. A falha da ocupao e da preocupa-o no significam, de modo algum, que esses modos do Dasein se descartem dapropriedade de seu si-mesmo. Enquanto estruturas essenciais da constituio doDasein, eles co-pertencem condio de possibilidade da existncia em geral.O Dasein s propriamente ele mesmo na medida em que, enquanto ser junto a...na ocupao e ser-com na preocupao, ele se projeta primariamente para seu po-der-ser mais prprio, e no para a possibilidade do si-impessoal (Heidegger,1988a, 53, v. 2, p. 47; 1986, p. 263, traduo modificada; itlicos do texto). Em outrolugar, Heidegger afirma que a partir da descoberta fenomenolgica do impessoalque ns agora temos de manter a orientao para a propriedade do Dasein, para o si-mesmo que o Dasein pode ser, e isto de tal modo que ele no salte para fora dessacoexistncia, mas, enquanto ser-com, que lhe permanece sendo constitutivo, sejaele prprio (Heidegger 1988b, GA 20, p. 342; itlicos do texto).

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    pelo solipsismo existencial, isto , como necessariamente avessa ao reco-nhecimento da alteridade do outro ftico em sua existncia mundana(Courtine 1990, pp. 350 e 343). Paul Ricoeur parece oferecer uma inter-pretao do chamado da conscincia que corrobora a hipteseinterpretativa aqui defendida, na medida em que, inspirando-se expres-samente em Heidegger, pensa que a alteridade no se acrescenta a partirde fora ipseidade, como que para prevenir a deriva solipsista, mas per-tence ao contedo de sentido e constituio ontolgica da ipseidade(Ricoeur 1990, p. 367). Em consonncia com essa concepo, penso quese poderia interpretar a voz que chama o Dasein para a apropriao de sienquanto ser-no-mundo como a voz que tambm o chama para a possibi-lidade de um ser-com os outros no modo amistoso da preocupao extre-ma e positiva, descrita no 60 como a preocupao que libera numaantecipao (vorspringend-befreienden Frsorge). A escuta estranha vozsilenciosa seria, ento, a escuta voz do amigo 34 que trago emmim, a qual possibilita um coexistir que libera os outros para o cuidadodeles mesmos, como Heidegger deixa entrever no 26.9 Tais considera-es permitiriam reconhecer que, ao pensar a assuno do ser-para-a-morte como o princpio supremo de individuao, Heidegger no mante-ve a ipseidade assim desvelada em radical isolamento em relao aos ou-tros, visto que a deciso que constitui a constncia de si mesmo jamaispoderia arrancar o Dasein do mundo no qual ele sempre com os outros. por meio da escuta e da resposta decidida ao outro que j trago junto amim que eu me torno responsvel, no apenas por quem sou e pelo quefao no mundo, mas tambm pelos outros em sua alteridade. Se certo,como observou Ricoeur, que a ontologia vela sobre o limiar da tica,pois Heidegger jamais deu o passo reverso que o encaminharia daontologia para a tica (Ricoeur 1990, pp. 402 e 403), isso no significaque ele tenha bloqueado, de uma vez por todas, a passagem entre tica e

    9 Desenvolvi esses argumentos em meu texto Por uma tica da precariedade: sobre otrao tico de Ser e tempo, op. cit.

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    Andr Duarte

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    ontologia. A escuta ao chamado do outro que sou tem de ser pensadacomo a condio de possibilidade do encontro de outrem em sua alteridadeprpria, sem o que uma relao propriamente tica entre eu e outro noseria possvel.

    Referncias bibliogrficas

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    Heidegger e o outro: a questo da alteridade em Ser e tempo

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    Recebido em 17 de janeiro de 2002.Aprovado em 29 de abril de 2002.