Visões do cotidiano ii (1)

27
O cotidiano capixaba pede passagem no velho transcol da capital. 14 de maio de 2014. Terminal de Campo Grande. Segunda fila do 519. Horário das 12h e 10min é uma quinta-feira. - Este é o pior carro do transcol! A vigem é longa – Campo Grande a Serra – cadeiras duras e velhas, sem um pingo de conforto. Reclama uma sincera senhora junto ao filho de 04 anos, numa voz sonora e longa, que deu para todos ouvirem. Ela, que surgiu do nada, correu, furou a fila e garantiu seu lugar ao sol, literalmente ao sol, numa das poucas cadeiras vazias daquela longa viagem do meio dia. Enquanto ia andando, o povo ia entrando, gente de todo tipo,

description

Trata-se de um relato baseado em um fato real sobre o cotidiano capixaba que ocorreu dentro do ônibus da linha transcol na Grande Vitória - ES.

Transcript of Visões do cotidiano ii (1)

Page 1: Visões do cotidiano ii (1)

O cotidiano capixaba pede passagem no velho transcol da capital.

14 de maio de 2014. Terminal de Campo Grande. Segunda fila do 519. Horário das 12h e 10min é uma quinta-feira.

- Este é o pior carro do transcol! A vigem é longa – Campo Grande a Serra – cadeiras duras e velhas, sem um pingo de conforto. Reclama uma sincera senhora junto ao filho de 04 anos, numa voz sonora e longa, que deu para todos ouvirem.

Ela, que surgiu do nada, correu, furou a fila e garantiu seu lugar ao sol, literalmente ao sol, numa das poucas cadeiras vazias daquela longa viagem do meio dia.

Enquanto ia andando, o povo ia entrando, gente de todo tipo, idosa, nova, “gente diferenciada”, muitos estudantes, trabalhadores uniformizados, donas de casa. Na entrada de Campo Grande já tinha muita gente em pé, parecia uma “lata de sardinha”. A turma ia entrando e ouvia-se o som da campainha de parada.

Page 2: Visões do cotidiano ii (1)

Enquanto escuta-se outro som corriqueiro dentro dos ônibus:

- Alô!? Tô quase chegando... tô no ônibus meu amor. Pode deixar que vô resolver... te amo! Disse um rapaz para a amada que o aguarda na próxima parada.

- Obrigado! Pode deixar que vou soltar logo ali na frente. Disse a senhora sorridente, agradecendo a gentileza do jovem sentado.

Muitos carros. Buzina, sirene e muita reclamação. É a rua em movimento no quase parado trânsito da Avenida.

A mesma senhora de antes, comentou com um olhar de confiança.

- Se não existisse carro, moto e avião não existiria mortes.

-E o que você sugere então? Disse a outra ao lado.

-Bicicleta e jegue! Respondeu meio que séria e soltou um risada larga.

E a outra continua meio que querendo rir, mais não acreditando no que ouviu.

Page 3: Visões do cotidiano ii (1)

- Mais se fosse para ir para uma cidade mais longe como iria de jegue?

- Silêncio pensativo.

Enquanto isso o ônibus segue parando e seguindo e enchendo cada vez mais, lotando a parte da frente, antes da roleta.

-Obrigado menino! Reposta a gentileza de alguém que pediu para segurar a bolsa.

- Valeu! Tamo aí tia.

Sobre o jegue:

Com a mão na testa, pensou um Ah! E expressou: - Ai não tem jeito né. Você me pegou nesta. E danou a dar risadas.

E despistando, mudou a conversa, mostrando com a mão a situação em que se encontrava o ônibus. E continuou:

-Veja só o ônibus, só tá enchendo, saí um e entra dez e a fila não anda dentro do transcol.

- Isso é um absurdo mesmo! Concordou a colega ao lado.

Page 4: Visões do cotidiano ii (1)

Mãos pra cima e não é um assalto, é preciso segurar pra não cair. E o ônibus segue pulando, batendo nos buracos da BR.

E a falante senhora continua:

-Sou da Bahia, mais dizem que em São Paulo é pior em tudo e andar de ônibus, nem pensar.

- Você já esteve lá em São Paulo?

- Não, mais dizem que o custo de vida lá é muito alto, e o trânsito, basta ver televisão.

- É mais lá tem metrô também. Disse a colega ao lado. Mostrando que o povo lá em São Paulo tem outras formas de transporte, além do ônibus.

É mais eu gosto de andar de ônibus. Nem sei como é andar de metrô. Lá em casa este aqui me puxou e quando chamo ele para andar de ônibus, logo diz: Oba! Oba! Mais quando falo pro mais velho... hum! Ele faz uma cara. É que ele passa mal e vomita.

Enquanto isso o sol das 13h tá queimando e o calor é geral. As buzinas tocam de caminhão, carro ou é a ambulância, com a sirene ligada, pedindo passagem.

Page 5: Visões do cotidiano ii (1)

- Gosto de viajar, mais gosto de ir de dia que é melhor para ver a paisagem. Meu marido gosta da noite para dormir. Eita que dorme aquele cabra e ronca também.

A colega pergunta:

–Onde você mora? – Bem curiosa sobre a vida da colega do ônibus.

–Em Carapina. Moro longe né?!

- Serra! É longe mesmo.

Pensativa diz:

- Tem razão!

- Triste desta vida é quando tenho que acordar cedo e esquentar comida pro meu marido. Senhor tem misericórdia! E o pior é que depois tenho que pegar meu filho na creche. E agora que está em greve e ele tem que sair mais cedo.

A colega: - Aí, ai. Nem me fale. Dá uma vontade de continuar dormindo.

A outra: preocupada se estava no ônibus certo perguntou:

Page 6: Visões do cotidiano ii (1)

–Você sabe o trajeto do ônibus? Ele passa em Maruípe?

–Não. Passa na Reta da Penha.

Respondeu a baiana.

- Hum! Vou ter que soltar e pegar outro transcol. Disse a amiga preocupada.

A baiana logo já estava atenta as belezas do mar, passando pela segunda ponte:

–Maravilhada, lembrou-se da sua querida Bahia.

- Olha lá o mar! E virou o rosto do filho para ver melhor.

-Tá vendo filho como é bonito! O menino ficou encantado e saltitante com os olhos brilhando.

Mais a frente continuou:

- Toda vez que passo aqui – em frente a rodoviária – lembro de Porto Seguro. É igualzinho! Porto Seguro é muito bonito!”

- Você já foi em Porto Seguro?

- Não. Mais gostaria de ir. Tenho boas impressões de lá.

Page 7: Visões do cotidiano ii (1)

- Lá é demais menina. Precisa vê.

Soa a campainha para mais uma parada. Saí e entram mais passageiros. E o ônibus segue.

E ela continua seu papo com a amiga ao lado:

-Fui mãe com 16 anos. Falando com satisfação e orgulho.

- Não parece não. Tá nova ainda hoje! Disse com um ar de espanto.

Ela riu e disse:

- Você também acha que tô nova assim?

- Claro, você é uma menina.

- Engraçado estes dias a professora perguntou se eu era irmã do meu filho. Não aguentei, morri de rir e agradeci.

Preocupada em passar do ponto que ia saltar pergunta.

- Mas me diz uma coisa: aqui é o centro né?

E a baiana que já conhece bem Vitória, apesar do pouco tempo, diz:

– Sim. Aqui é a Vila Rubim.

Page 8: Visões do cotidiano ii (1)

E Felipe, que estava com uma garrafa na mão batendo na janela, responde a mãe que pede para fazer silêncio e ficar quieto:

- Vou Jogar fora então.

E a mãe:

- Não! Hoje em dia não se pode jogar nada fora mais! Deixa chegar em casa e vou usar esta garrafa para guardar água na geladeira.

Enquanto isso entra e sai mais gente no ônibus.

E os professores passam fazendo protesto, pois estavam em greve, já há algum tempo.

– Os professores ainda em greve? Exclamou a colega, que é funcionária pública, depois de ouvir o protesto que começara a passar na Avenida Vitória naquela tarde.

Parece que é né! E continua:

– Mais agora não se pode dar aumento. Eles bobearam. Poderiam ter feito greve antes. Agora que tem eleição não pode mais não!

A outra:

Page 9: Visões do cotidiano ii (1)

- eles escolheram esta profissão e sabiam que iam ganhar pouco.

- Sim, mais os professores podem ter até 03 empregos, manhã, tarde e a noite. É só aguentar o pique.

Concordando com o pensamento a baiana diz:

–Também pudera eles só trabalham poucas horas por dia. Que nem na creche, as crianças entram às 13h e saem as 17h. Enquanto a gente trabalha das 8h as 19h. Como eu na época da padaria.

- É mais eles estudaram muito para ganhar tão pouco. Disse a funcionaria pública.

E a amiga baiana pergunta:

- Você que é do público não recebe os benefícios do ano não?

Que diz:

- Nós não temos direito a carteira assinada.

E a amiga da Bahia pergunta:

- Você pode levar atestado né?!

Page 10: Visões do cotidiano ii (1)

Achando diferente o interesse, numa resposta rápida a amiga diz:

- Se ficar doente tem direito. Temos o abono também que é um tempo de folga.

Admirada a baiana:

- Nossa! Que bom né! Vocês enrolam o ano todo e ainda tem essa folga toda. E fez uma cara de riso.

A funcionária, já cansada dos poucos direitos, diz com voz arrastada:

- É temos este direito sim e muita gente trabalha sério.

Empolgada, mais meio revoltada a baiana dispara:

- Eu trabalhei em padaria. Olha não aconselho pra ninguém! A gente pega no pesado. Não davam nem cesta básica, nem alimentação. Nada! Só passagem.

- Ouvindo a amiga desabafar, pensou que isso só pode ser da Bahia mesmo.

E a baiana continua:

Page 11: Visões do cotidiano ii (1)

- davam o vale transporte pra gente ir trabalhar. Eles não são burros - e riu um pouco para não chorar lembrando-se da época triste que viveu no trabalho duro da padaria.

O ônibus segue viagem e enquanto isso uns falam ao celular e contam parte da vida. E os professores continuam a protestar, em greve.

Outra senhora, na cadeira da frente, falou:

- Sabiam que iam receber pouco e porque escolheram esta profissão? Tem que ir trabalhar e não ficar aí em greve, atrapalhando o trânsito. – falou em tom de revolta com o trânsito parado devido a greve.

E a baiana, que gosta de dar sua opinião, dispara:

- Eu não acho que professor ganha pouco não! A maioria tem carro! E ainda novo. A gente vê lá na escola.

- colega – disse a amiga ao lado – carro todo mundo pode ter, é só comprar hoje e pagar depois. É por isso que o trânsito está deste jeito, ninguém saí do lugar.

E fala como vê a vida no Espírito Santo:

Page 12: Visões do cotidiano ii (1)

- Aqui – Espírito Santo – é bem melhor. Na Bahia não tem os recursos daqui não. O prefeito na Bahia comprou uma fazenda e não pagou os garis e todos ficaram sem receber. Isso não se faz não! Com ninguém!

E continua falando da Bahia:

- Lá eles recebem um salário só. Quando recebem! Minha mãe falou que fulano saiu da Bahia para trabalhar em São Paulo. E você sabe a diferença? – do salário.

E responde:

É que na Bahia é um salário só. E lá são dois e ticket também.

E o menino sapeca grita:

- Mentira! Mentira! Meentiiira! Da mamãe. Esta mentindo mamãe!

E a mãe, irritada com o corte na fala também grita:

- Cala a boca que vou bater na sua boca em! Seu sem vergonha!

E continua:

Page 13: Visões do cotidiano ii (1)

- La na Bahia é difícil mesmo, minha prima virou agente de saúde e o prefeito não paga a passagem dela não. Ela tem que ir trabalhar e pagar a própria passagem. Vê se pode isso?

- Isso é um absurdo e não pode acontecer.

- Que idade ele tem? Perguntou a senhora ao lado.

- 4 anos. Respondeu a mãe.

E a senhora – olha com um ar sério para o menino – e na tentativa de corrigi-lo diz:

- Você é inteligente em rapazinho, mais não pode responder a sua mãe não. Falou firme e fez um carinho na cabeça do menino.

E o ônibus não para de encher. Um apito da campainha. Sai e entra mais gente. E a viagem segue.

E a senhora pergunta:

- Você tem parente aqui?

- Só uma cunhada. Todos são da Bahia. Respondeu a baiana.

E fala um pouco de como é a vida lá:

Page 14: Visões do cotidiano ii (1)

- Aqui é tão estranho.

- Como assim? Pergunta a capixaba.

- É Diferente da Bahia. Lá em casa acabou sal dias atrás e falei com meu marido. Ele disse que quando chegasse ia comprar. Aí como ia demorar, só comentei que ia pedir emprestado até que ele chegasse.

Mais como estava precisando mesmo do sal, sabe que tem coisas que só dona de casa que sabe. Perguntei a uma vizinha e ela disse que não tinha, depois de ter chamado várias vezes. E para provocar a filha dela passou com uma sacola de sal na varanda.

E comentei com meu marido sobre o assunto. E ele disse que aqui – Espírito Santo – ninguém gosta de emprestar nada a ninguém. E falou que era melhor não pedir, pois o pessoal aqui é estranho.

E a senhora disse estar surpresa, pois nunca teve dificuldades com os vizinhos.

Mais a baiana continuou:

- Muitas vezes o que mais acaba em casa é sal, cebola e tomate. E lá na Bahia, pra gente

Page 15: Visões do cotidiano ii (1)

que mora lá, é só pedir e os outros emprestam. Por que nesta vida um precisa do outro em algum momento.

- Mais os capixabas são tranquilos. Responde a senhora. E pediu o contato da baiana.

- Caso queira me dar seu telefone para a gente continuar nossa conversa outra hora? Ficou meio desconfiada, mais pensou, vou passar um numero que quase não uso e disse: Claro! E meu nome é Lana – um apelido que costumava ser chamada quando morava na Bahia.

Assim, o contato estava feito. O ônibus está passando na Reta da Penha.

- Vai uma bala? A funcionária pública oferece ao menino, que mais do que depressa pega todo sorridente.

E a baiana lembra-se da sua infância, cm um misto de riso e tristeza.

- Adorava esta bala quando era criança, me fazia esquecer as tristezas. Ela lembrava as doçuras que viveu na infância e ficava triste com o amargor que a vida tinha.

Page 16: Visões do cotidiano ii (1)

Enquanto isso duas amigas conversavam sobre a greve e o protesto dos professores e as eleições para governador. E uma delas disse em tom de revanche:

- Vamos ver na eleição? Casagrande quer se eleger né!?

E a outra:

-Ah vai? Desse jeito? Hum!!

A senhora, funcionária pública, solta e dá adeus, com vontade de continuar a conversa.

- Tchau, fique com Deus você também. Disse a colega baiana.

Duas colegas professoras continuam:

- O sindicato não fez nada. Bando de puxa sacos! Quem está pressionando são os professores.

E outra:

- Se o governo tivesse pelo menos revisto o plano de carreira? Não quer fazer nem isso!

É mesmo, disse a outra e completou:

- Como a Serra fez né! Tá de parabéns!

Page 17: Visões do cotidiano ii (1)

Enquanto isso uma professora aproveita uma cadeira e senta. Estamos saindo da Reta da Penha. Depois de um tempo o papo já muda para os preços e as vitrines das lojas.

- Você viu aquele vestido? Lindo! Se tivesse tempo ia parar para dar uma olhada.

- Nem me fale, a grana esta curta – com cara de preocupada com as dívidas do mês.

Na Reta da Penha o ônibus esvazia.

Enquanto isso, Felipe, o menino, filho da baiana, quer ficar na janela para ver a paisagem. Adorou ficar o tempo todo vendo a paisagem e a cidade.

- Sai daí e deixa o lugar para outra pessoa. Disse a mãe dele.

- Ah mãe! Tem que ser agora? Tava tão legal.

As professoras voltaram a falar de política.

- Hartung vai usar isso contra ele – Casagrande – nas eleições.

- Ele – Hartung – está na frente né? Mais não tem nada certo não minha amiga. Só da pra saber no dia da urna.

Page 18: Visões do cotidiano ii (1)

- O governo está com a máquina na mão e o poder também.

- Ele tem feito muita coisa, mais poderia ter ajudado mais os professores. Você não acha?

- com certeza amiga.

O menino pediu uma moeda pra mãe.

- Por favor, me dá logo! Disse, com uma vontade de chupar um picolé, pois o calor era muito.

E a baiana meia que revoltada com o menino diz:

- Se não parar vou deixar você aqui no ônibus e vou embora. Não me perturbe!

Obediente e carinhoso diz:

-Ah maaãe compra um picolé pra mim.

- Tá bom! Tá bom! Mais espera a gente sair primeiro.

E o sinal de parada mais uma vez toca.

- Até segunda amiga. Disse uma professora, sorrindo e fazendo um gesto com a mão.

- Bjim pra você! Respondeu a outra.

Page 19: Visões do cotidiano ii (1)

E a mãe baiana diz ao menino:

- Fique atento que a gente vai sair no próximo ponto.

E o menino, meio apertado:

- Quero fazer xixi, comprar picolé e...

- vai ser lá fora, aqui não! Disse a mãe.

E educadamente oferece o lugar.

- Quer sentar? Vou soltar ali na frente.

- Obrigado! Responde a senhora agradecida.

A baiana deixa o transcol na Reta da Penha e segue correndo pela calçada com seu filho de 04 anos.

Outras conversas mais curtas, mais longas. Os celulares revelam os diálogos, as emergências, as trocas. E o ônibus segue em silêncio, por enquanto. Uniformes, bolas, malas, bolsas, a viagem é longa e curta, depende pra onde você vai. Entra e saí. Chegou a minha vez. O ônibus para com um freio já cansado. Segue com um motor, quase parando. Bate e barulha, parece uma “maria fumaça”. O velho transcol segue

Page 20: Visões do cotidiano ii (1)

pedindo passagem em meio ao mar de carros da capital capixaba.