Violencia Urbana e Document a Rio Maria Beatriz Colucci

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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

C723v

Colucci, Maria Beatriz. Violncia urbana e documentrio brasileiro contemporneo. / Maria Beatriz Colucci. Campinas, SP: [s.n.], 2007. Orientador: Adilson Jos Ruiz. Tese(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Cinema brasileiro. 2. Documentrio. 3. Violncia urbana. I. Ruiz, Adilson Jos. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Ttulo. (lf/ia)

Ttulo em ingls: Urban violence and brazilian contemporary documentary Palavras-chave em ingls (Keywords): Brazilian cinema Documentary Urban violence Titulao: Doutor em Multimeios Banca examinadora: Prof. Dr. Adilson Jos Ruiz Prof. Dr. Jos Mrio Ortiz Ramos Prof. Dr. Jos Eduardo Ribeiro de Paiva Prof. Dr. Arthur Autran Franco de S Neto Prof. Dr. Noel dos Santos Carvalho Prof. Dr. Mauricius Martins Farina Prof. Dr. Geraldo Carlos do Nascimento Data da defesa: 02 de Fevereiro de 2007 Programa de Ps-Graduao: Multimeios

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AGRADECIMENTOS

Aos amigos:

Ester Mambrini, primeira leitora, por orientar o caminho da tese. Obrigada pela reviso e pelos pitacos sempre pertinentes;

Valria Bonini, irm de corao, pela parceria, e por toda a fora de sempre;

Fernando Quaresma, pela base em So Paulo e amizade incondicional;

Lvia Lessa, pelo estmulo discusso da violncia e do documentrio;

Hortncia Abreu, pela reviso metodolgica, e Amlia Berger, pela traduo.

Aos mestres:

Adilson Ruiz, pela compreenso e abertura, sem a qual no teria sido possvel concluir o doutorado;

Fernando de Tacca e Bela Feldman-Bianco, pelo direcionamento dado na qualificao que resultou neste trabalho.

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RESUMO

Esta tese analisa a violncia urbana em quatro documentrios brasileiros lanados no perodo de 1999 a 2003: Notcias de uma guerra particular (1999), O rap do pequeno prncipe contra as almas sebosas (2000), nibus 174 (2002) e O prisioneiro da grade de ferro (2003). Como um painel sobre a contemporaneidade, estes filmes conformam uma certa etnografia audiovisual da violncia urbana brasileira, vista como um campo complexo de relaes articuladas a esse contexto histrico especfico. Tais relaes apontam para o rompimento da invisibilidade dos setores sociais que vivem nos espaos de excluso brasileiros; e sua presena na mdia, especialmente no cinema, forma, ento, um conjunto significante acerca do momento histrico vivenciado no Brasil no incio do sculo XXI, e permite identificar diferentes estratgias utilizadas para o filme representar, ou representificar essa realidade histrica. Neste sentido, quatro modos se destacam: (1) as relaes com o contexto histrico, que evidenciam a violncia urbana brasileira no perodo; (2) o tipo de negociaes entre os sujeitos documentaristas e documentados, suas implicaes e determinaes, o discurso construdo e sua articulao na estrutura da narrativa; (3) as passagens entre imagens que permitem nveis diferenciados de recepo do tema e remetem s relaes miditicas inseridas no imaginrio contemporneo; e (4) a superao de modelos e a renovao na linguagem, que manifestam fragmentao, hibridismo e reflexividade, marcas do cinema contemporneo. Tendo por base a trajetria do filme documentrio at a contemporaneidade, suas diversas definies e categorizaes; este trabalho situa seus principais marcos e discusses, levando em conta, ainda, a contribuio da antropologia e das pesquisas e crticas sobre a imagem e o filme documentrio, alm da tematizao da violncia pelo cinema brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: cinema brasileiro; documentrio; cinema contemporneo; violncia urbana.

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ABSTRACT

This thesis analyses urban violence represented in four Brazilian documentaries that were released between 1999 and 2003: News of a private war (1999), Little Princes Rap against nasty souls (2000), Bus 174 (2002), and The prisoner of the iron bars (2003). As an overall view of contemporary times, these films present an audiovisual ethnography of Brazilian urban violence, seen as a complex field of relationships that are articulated in this specific historical context. Such relationships point to the end of the invisibility of social sectors that have lived in spaces of exclusion in Brazil; and the presence of such a subject in the midia, especially in the movies, forms, therefore, a significant set about the historical moment lived in Brazil at the beginning of the XXI century, and it allows identifying different strategies used by the movie to represent or re-represent this historic reality. In this sense, four strategic ways are highlighted: (1) the relationships with the historical context that show Brazilian urban violence in that period; (2) the type of negotiation between the subjects who made the documentaries and the ones represented in the documentaries, their implications and determinations, the discourse that was built and its articulation in the structure of the narrative; (3) the passages between images that allow different levels of perception of the theme and that lead to the media relationships involved in contemporary thinking; and (4) the overcoming of models and the renovation in language that show fragmentation, hybridism and reflection, trademarks of contemporary cinema. Taking the history of the documentary film up to contemporary times as a base, with its diverse definitions and categories, this work presents its main achievements and discussions, even taking into consideration the contribution of anthropology, research, and critique of the image and of the documentary film, going beyond the theme of violence represented by the Brazilian cinema.

KEYWORDS: Brazilian cinema; documentary; contemporary documentary; urban violence

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SUMRIO

1 INTRODUO

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2 SOBRE O CINEMA DOCUMENTRIO 2.1 Marcos da trajetria histrica do documentrio: principais sujeitos e debates tericos2.1.1 O cinema documentrio: conceituao e princpios norteadores 2.1.2 Marcos gerais na histria do documentrio: origens e desenvolvimento do gnero 2.1.3 Breve nota sobre obras e temas: debates tericos acerca do documentrio

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2.2 Realidade e representao no filme documentrio 2.3 Entre o cinema e a antropologia2.3.1 Etnografia e visualidade 2.3.2 Consideraes sobre o documentrio etnogrfico

38 4647 51

3 SOBRE O CINEMA DOCUMENTRIO BRASILEIRO

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3.1 Apontamentos histrico-crticos sobre o documentrio no Brasil: das primeiras experincias ao cinema dos anos 1980 623.1.1 Do cinema etnogrfico e educativo ao proto-cinema novo: o documentrio brasileiro na primeira metade do sculo XX 64

3.1.2 Superao de modelos e renovao de linguagem: a transformao do documentrio brasileiro do Cinema Novo aos anos 1980 71

3.2 O documentrio brasileiro contemporneo3.2.1 Passagens entre imagens: reflexividade e hibridismo no documentrio contemporneo 3.2.2 Os anos 1990 e o cinema da retomada 3.2.3 Notas sobre produo e mercado do filme documentrio no Brasil (1995-2005)

8081 85 90

4 SOBRE O CINEMA DOCUMENTRIO BRASILEIRO CONTEMPORNEO E A VIOLNCIA URBANA 95 4.1 As imagens da violncia urbana no cinema e na mdia 96

4.2 A representificao da violncia urbana: etnografia audiovisual e os modos do documentrio brasileiro contemporneo 1024.2.1 Uma etnografia audiovisual da violncia urbana no Brasil (1997-2001) 4.2.2 Negociao e autoria: as diferentes vozes do filme documentrio contemporneo 4.2.3 Relaes miditicas no documentrio brasileiro 4.2.4 O filme hbrido do sculo XXI: mltiplas influncias entre fico e documentrio 103 117 124 132

5 CONSIDERAES FINAIS

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REFERNCIAS

141

ANEXO A FICHA TCNICA NOTCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR 151

ANEXO B FICHA TCNICA O RAP DO PEQUENO PRNCIPE CONTRA AS ALMAS SEBOSAS 155

ANEXO C FICHA TCNICA NIBUS 174

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ANEXO D FICHA TCNICA O PRISIONEIRO DA GRADE DE FERRO (AUTORETRATOS) 161

APNDICE A RELATRIO SEMESTRAL DE PESQUISA 2004/2

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1 INTRODUO

fato que a produo documentarista brasileira assim como a de outros pases encontra-se em momento de grande expanso, marcado pelo nmero significativo (1) de filmes produzidos ou em processo de produo; (2) de livros, artigos, reportagens publicados, especialmente em lngua portuguesa; (3) de debates, conferncias, mostras e festivais realizados; (4) de recursos e incentivos s produes, comparando-se com outros momentos da cinematografia brasileira; e (5) de espectadores, seja em salas de cinema, escolas e universidades, assinantes de TVs etc. Esse conjunto de fatores marca a forte presena do documentrio na contemporaneidade e convida reflexo. A tese Violncia urbana e documentrio brasileiro contemporneo busca estabelecer relaes entre o documentrio brasileiro e a violncia urbana em quatro obras lanadas no perodo de 1999 a 2003: Notcias de uma Guerra Particular (1999), O Rap do Pequeno Prncipe contra as Almas Sebosas (2000), nibus 174 (2002) e O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003). Tomados em conjunto, tais filmes constituem uma espcie de etnografia da violncia urbana no Brasil do final do sculo XX e incio do sculo XXI, vista como um campo complexo de relaes articuladas a esse contexto histrico especfico. Como um painel sobre a contemporaneidade, estes filmes representificam (MENEZES, 2004) a violncia urbana brasileira atravs de pontos de vista particulares, formando um conjunto significante acerca do momento histrico vivenciado no Brasil. Tambm nos permite identificar diferentes estratgias narrativas e visuais utilizadas para o filme discutir esta realidade. A anlise dos filmes, considerando seu processo de produo e distribuio, buscou pontuar elementos de identidade ligados s especificidades do mercado cinematogrfico brasileiro e aos modos de ser do documentrio contemporneo, em que se destacam: as relaes com o prprio contexto histrico, que foram determinantes em sua construo e que evidenciam a violncia urbana brasileira no perodo; o tipo de negociaes apresentadas entre os sujeitos documentaristas e documentados, suas

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implicaes e determinaes, as vozes presentes e ausentes nos filmes, ou seja, o discurso construdo pelos diretores e sua articulao na estrutura da narrativa; as passagens entre imagens de diferentes suportes fotografia, cinema e vdeo que permitem nveis diferenciados de recepo do tema e remetem s relaes miditicas do imaginrio contemporneo; e a superao de modelos e a renovao na linguagem, com a incorporao assumida dos procedimentos do cinema ficcional e de outras influncias, manifestando conceitos como fragmentao, hibridismo e reflexividade, marcas do cinema na contemporaneidade. Todos os filmes analisados participaram de festivais e mostras no Brasil e em outros pases, recebendo diversos prmios1, e remetem ao cotidiano de grandes capitais brasileiras: So Paulo, Recife e Rio de Janeiro. Ressaltamos que outros filmes documentrios, lanados no perodo de realizao deste trabalho, abordaram direta ou indiretamente a violncia urbana. Um exemplo o tambm premiado Justia (2004), de Maria Augusta Ramos, que trata do universo de um tribunal de justia do Rio de Janeiro a partir dos perfis de seus personagens: os rus, o juiz, a defensora pblica e a promotora, alm da mulher de um dos detentos. Porm, como o foco do filme est centrado especificamente no sistema judicirio brasileiro, optamos por deix-lo de lado na anlise. Dentre as produes mais recentes destacamos Atos dos Homens (2006), de Kiko Goifman, documentrio sobre o massacre que aconteceu em 2005 na Baixada Fluminense, culminando com 19 mortos, e Falco, meninos do trfico (2006), de MV Bill e Celso Athayde, que mostra a vida de jovens das favelas brasileiras que trabalham no trfico de drogas. Porm, pelo fato de o trabalho j estar em fase de finalizao na ocasio de seus lanamentos, no foi possvel inclu-los nesta anlise. A constatao de que o universo de anlise poderia ser mais amplo serve, no entanto, para confirmar a relevncia do tema. De forma a proporcionar uma configurao geral da pesquisa realizada, descrevemos os captulos da tese, conforme especificao a seguir: No Captulo 2 so trabalhadas as principais discusses e os marcos histricotericos do cinema documentrio, incluindo tambm uma aproximao entre antropologia e

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Ver ANEXOS.

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cinema, alm de consideraes especficas sobre as formas possveis ao trabalho etnogrfico. Tambm realizamos uma breve investigao sobre as idias de realidade e representao, especialmente em relao ao cinema documentrio, a partir dos estudos do cinema e das cincias sociais, em que se destacam as reflexes de Bill Nichols, em Representing reality (1991) e Introduction to Documentary (2001), bem como de Paulo Menezes, desenvolvido no artigo O cinema documental como representificao: verdades e mentiras nas relaes (im)possveis entre representao, documentrio, filme etnogrfico, filme sociolgico e conhecimento (2004). O Captulo 3 concentra o foco no cinema brasileiro, passando pelos marcos histricos do documentrio, desde as primeiras experincias no sculo XIX at a dcada de 1980, detendo-se no perodo do Cinema Novo e em sua aproximao com a prtica do documentrio, a partir de fundamentos tericos considerados relevantes. Tambm so discutidas algumas caractersticas do cinema documentrio contemporneo, considerando os dados sobre o mercado e a produo no perodo de 1995-2005, e a aproximao deste documentrio a conceitos como hibridismo e reflexividade. Apontamos, ainda, as transformaes possibilitadas com a digitalizao das imagens. O Captulo 4 discute a representificao da violncia urbana e os diferentes modos do documentrio brasileiro na contemporaneidade, destacando a tematizao da violncia urbana brasileira pelo cinema e as relaes entre violncia e mdia. A seguir so pontuados, nos quatro filmes estudados, elementos que sobressaem do conjunto das obras, como a construo de uma etnografia audiovisual da violncia urbana (1997-2001); as negociaes estabelecidas entre os sujeitos documentaristas e documentados, suas implicaes e determinaes; as vozes presentes no filme e suas relaes com os elementos extra-flmicos; a interface entre as imagens do cinema documentrio e da mdia, especialmente da televiso, com a apropriao, por parte dos documentrios, de caractersticas prprias ao universo jornalstico. Alm disso, analisamos nos filmes as tendncias do documentrio na contemporaneidade, que remetem aos conceitos de hibridismo e reflexividade. Certamente um estudo aprofundado sobre esse momento do documentrio brasileiro ainda est por vir, mas acreditamos, a partir da anlise feita, j ser possvel identificar algumas de suas caractersticas.

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Cabe ressaltar, por fim, que esta pesquisa foi realizada durante cerca de quatro anos, perodo em que passou por diversas etapas e reformulaes. A temtica da violncia urbana se incorporou ao trabalho inicial, centrado numa anlise dos smbolos presentes no documentrio brasileiro contemporneo, j que no universo de filmes brasileiros prselecionados para anlise, produzidos no perodo em que se pretendia abordar o tema (1999-2003), quatro filmes refletiam especificamente sobre a violncia urbana, assim delimitado a partir do Exame de Qualificao ocorrido em maro de 2004.2 Por motivos pessoais e, principalmente, profissionais, este trabalho sofreu diversas interrupes, o que ao final foi bastante enriquecedor, por mais que isto possa parecer um lugar comum, visto que o longo perodo de maturao do trabalho somente fez confirmar a atualidade do tema, alm de ter permitido o acesso a um vasto material de informaes e estudos veiculados nos ltimos anos, que contriburam essencialmente para a finalizao do trabalho.3

Ver relatrio apresentado no final do trabalho (APNDICE A). Cumpre-se aqui o dever de acrescentar que, em julho de 2006, ao finalizar esta tese, a autora tomou conhecimento de uma outra pesquisa envolvendo a temtica da violncia e o corpo de filmes analisados por este trabalho, tambm desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Multimeios. Trata-se do projeto A Imagem Cruel: Intensidade e Horror no Documentrio Brasileiro Contemporneo, coordenado pelo Prof. Ferno Ramos. Certamente, pelo recorte proposto e grande nmero de pesquisadores envolvidos, resultar num trabalho que em muito vai acrescentar as discusses propostas aqui, tornando-se mais uma referncia para o estudo do documentrio brasileiro.3

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2 SOBRE O CINEMA DOCUMENTRIO

A abordagem feita neste trabalho, no que se refere ao cinema documentrio e ao cinema documentrio brasileiro, constituiu essencialmente um recorte, dentre tantos possveis, que pretendeu situar o campo de estudo da tese num conjunto mais amplo de filmes, movimentos e construes tericas consolidadas ao longo da histria do cinema. Sendo assim, preciso considerar que tanto as informaes histricas quanto as elaboraes tericas foram selecionadas segundo critrios de interesse do trabalho e no pretenderam estabelecer uma historiografia completa do cinema documentrio ou de suas teorias. preciso considerar, tambm, que as discusses aqui reproduzidas remetem a debates realizados em contextos especficos, manifestando, por isso, engajamento em um determinado tipo de pensamento predominante nesses contextos. O que foi produzido, por exemplo, na dcada de 1930, como os trabalhos de John Grierson ou Paul Rotha, reflete um momento especfico da histria do documentrio, de afirmao deste enquanto gnero, que guarda relaes estreitas com o pensamento sobre o cinema dominante na poca. A historiografia do cinema brasileiro, construda nas dcadas de 1960 e 1970, nos trabalhos de Paulo Emilio Salles Gomes, tambm reflete as posies ideolgicas dominantes no perodo. E do mesmo modo acontece com as demais referncias. Assim, mais do que discutir a predominncia de uma abordagem sobre a outra, procuramos verificar os pontos comuns que pudessem ser teis ao objeto da pesquisa. Em relao teoria do cinema, vrios pesquisadores j destacaram o fato de a anlise do filme documentrio ter ficado relegada a segundo plano, merc de uma teoria que sempre privilegiou a anlise do filme de fico; e mesmo nas pesquisas mais histricas, poucas obras foram dedicadas exclusivamente aos documentrios. Este panorama parece estar se modificando, sobretudo a partir da dcada de 1990, momento de extrema valorizao do gnero documental, com a consolidao de um campo de estudos que tem afirmado a existncia de uma teoria prpria ao cinema documentrio, inclusive no Brasil.

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Ou melhor dizendo, de muitas teorias, na medida em que o conjunto de obras tericas e de filmes chamados hoje documentrios pode abranger categorias diversas. Verificamos, nos estudos realizados, que as primeiras produes tericas concentraram-se essencialmente em aspectos histricos, como nas pesquisas de Eric Barnouw e Richard Meran Barsan, dentre outros. As discusses tericas mais focadas nas questes epistemolgicas, estticas, discursivas e ticas aparecem a seguir e baseiam-se numa crtica estruturalista. A reao a este tipo de pensamento surge com os estudos culturais e marca-se, ao contrrio das anteriores, por uma postura afirmativa do documentrio enquanto campo especfico e distinto do filme de fico (DA-RIN, 2004). , pois, neste contexto de uma produo feita nos moldes de uma crtica psestruturalista que grande parte dos pesquisadores apresentados aqui so situados, como Bill Nichols, Michael Renov e Brian Winston. Isso se d, da mesma forma, nas discusses sobre os conceitos de realidade e representao no cinema, e nas discusses sobre antropologia e visualidade, embora em todos os casos no se excluam pesquisas que remetem a conceitos formulados em contextos anteriores, visando demonstrar o percurso das imagens e dos filmes at a contemporaneidade. Este captulo realiza, assim, uma abordagem dos marcos histricos e tericos do cinema documentrio, partindo de uma investigao conceitual do termo e da caracterizao de suas especificidades e tambm de suas identidades em relao ao cinema ficcional. Em seguida, destaca uma parcela das discusses sobre as noes de realismo e de representao no cinema e sobre as relaes entre o cinema e a antropologia, e determina a ligao entre etnografia e visualidade para pontuar as formas de se trabalhar imageticamente a pesquisa social, terminando por discutir algumas experincias etnogrficas no cinema.

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2.1 Marcos da trajetria histrica do documentrio: principais sujeitos e debates tericos

So examinadas neste item as principais discusses tericas envolvendo os princpios e as tentativas de definio do cinema documentrio, em que se destacam, especialmente, as contribuies de Bill Nichols. Tal destaque se justifica em funo de ser este pesquisador referncia fundamental nos estudos recentes sobre o documentrio, por propor elementos que determinam uma teoria e uma reflexo crtica especfica para o gnero. Em seguida, so pontuados os principais marcos que determinaram o desenvolvimento histrico do gnero. De forma bem geral, a base dessa histria inicia-se com as obras de Robert Flahert e Dziga Vertov, passando pelo peso das contribuies de John Grierson e chegando a Jean Rouch, nas experincias do Cinema Verdade, resultando numa histria mltipla e controversa at a contemporaneidade, com a introduo do sistema digital de registro da imagem. Neste percurso, trabalhos de autores como Brian Winston, Manuela Penafria e do prprio Bill Nichols sero examinados. Na ltima parte, apresentamos um breve resumo de obras de referncia em relao aos debates tericos sobre o documentrio, elaboradas em contextos diferenciados, desde a dcada de 1930.

2.1.1

O cinema documentrio: norteadores

conceituao

e

princpios

Segundo Bill Nichols, para compreender a histria do documentrio, preciso considerar, antes de tudo, que o que entendemos por documentrio hoje resultado das diversas tentativas dos pesquisadores em determinar uma histria, com comeo, meio e fim, para esse gnero. Nas origens do cinema no se tinha conscincia de estar se inventando uma nova tradio; os interesses eram explorar os limites do cinema e descobrir novas possibilidades no experimentadas. E exatamente essa caracterstica que o autor acredita

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que deve ser destacada, pois para ele foi o que permitiu ao documentrio manter-se ao longo do tempo como um gnero ativo. O fato de alguns desses trabalhos terem se consolidado no que hoje denominamos documentrio acaba por obscurecer o limite indistinto entre fico e no-fico, documentao da realidade e experimentao da forma, exibio e relato, narrativa e retrica, que estimularam esses primeiros esforos (NICHOLS, 2005[a], p.11617). Tais consideraes servem para minimizar, neste trabalho, as discusses sobre a definio do gnero, marcadas, durante muito tempo, pelo debate sobre as diferenas entre o filme documentrio e o filme de fico, muito embora em algumas construes tericas contemporneas tal diferenciao fique evidente. Porm, como demonstrado pela histria do cinema, as tentativas de delimitar fronteiras rgidas entre esses gneros mostraram-se por demais inconsistentes, especialmente a partir do neo-realismo italiano. Paolo Zaglalia comenta que com o neo-realismo, os gneros de documentrio e fico tornam-se definitivamente entrelaados: os elementos do real foram fixados em uma histria onde os personagens refletem sobre essa realidade (ZAGAGLIA, 1982). Para Nichols, o neo-realismo, como movimento do cinema de fico, aceitou o desafio do documentrio de organizar sua esttica em torno da representao da vida cotidiana, no s no tocante a temas e tipos de personagem, como tambm na prpria organizao da imagem, da cena, da histria (NICHOLS, 1991, p.167).4 A prpria definio do termo documentrio tambm parece carecer de consenso, podendo abarcar desde o chamado cinema primitivo, com as experincias cinematogrficas dos irmos Lumire e outros cineastas da poca, os filmes de natureza e institucionais, os registros de expedies e acontecimentos histricos at as reportagens exibidas pelas tevs, em canais como o Discovery Channel e outros. Entretanto, para a maioria dos pesquisadores da histria do documentrio, como o prprio Bill Nichols, o

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Neorealism, as a fiction film movement, accepted the documentary challenge to organize its aesthetic around the representation of everyday life not simply in terms of topics and character types but in the very organization of the image, scene, and history (NICHOLS, 2005, p.116-17).

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gnero exigiu um longo perodo de maturao, sendo, portanto, o termo mais restritivo e no adequado a esse cinema das origens. Para Manuela Penafria, as primeiras experincias com a imagem documental, registrando cenas do cotidiano, eventos sociais e atividades urbanas do final do sculo XIX, contriburam para mostrar que a base do documentrio assenta-se nas imagens recolhidas nos locais onde decorrem os acontecimentos. Assim, o registo in loco que encontramos nos incios do cinema que se constitui como o primeiro princpio identificador do documentrio (PENAFRIA, 1999, p.38). Neste trabalho, aceitamos a posio de Bill Nichols, que em suas reflexes demonstra: (1) a indefinio do termo documentrio e as diferentes formas de abordagem que contribuem para sua compreenso; (2) o fato de o documentrio poder ser visto como um discurso de sobriedade; (3) a tradio do gnero documentrio relacionada impresso de autenticidade. Esses pontos sero examinados a seguir. Primeiramente, num exerccio de definio do termo documentrio, Nichols considera este termo sempre relativo ou comparativo, em sntese, um conceito vago, na medida em que no implica a adoo de um conjunto nico e fixo de tcnicas, formas, estilos, caractersticas comuns. A impreciso da definio resulta, em parte, do fato de que definies mudam com o tempo e, em parte, do fato de que, em nenhum momento, uma definio abarca todos filmes que poderamos considerar documentrios (NICHOLS, 2005[a], p.48). Com isso, os limites do gnero so constantemente alterados e redefinidos segundo determinada visualidade predominante. Assim, mais importante que dizer o que ou no o documentrio, examinar modelos, casos exemplares e inovaes. Seguindo seu exerccio, e no intuito de uma compreenso mais ampla do termo, Nichols delimita quatro ngulos diferentes de abordagem: o das instituies, os dos profissionais, o dos textos (filmes e vdeos) e o do pblico (Ibid., p. 49). A estrutura institucional, para Nichols, uma das primeiras formas de considerar o documentrio, pois d ao filme um status de no-fico.

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Levando em conta o patrocinador seja ele o National Film Board canadense, o canal de notcias Fox, o History Channel ou Michael Moore , fazemos certas suposies acerca do status de documentrio de um filme e acerca do seu provvel grau de objetividade, confiabilidade e credibilidade. Pressupomos seu status de no-fico e a referncia que faz ao mundo histrico que compartilhamos, e no a um mundo imaginado pelo cineasta (Ibid., p. 50). Outro ponto de vista para compreender o que os documentrios so v-los a partir da comunidade de profissionais que o fazem. Os documentaristas, ao aceitarem a tarefa de representar o mundo histrico, compartilham problemas comuns. Cada profissional molda ou transforma as tradies que herda, e faz isso dialogando com aqueles que compartilham a conscincia de sua misso. Para Nichols, isso confirma a variabilidade histrica do modelo: nossa compreenso do que um documentrio muda conforme muda a idia dos documentaristas quanto ao que fazem (Ibid., p. 53). A terceira forma de abordagem relaciona-se ao corpo de textos: os filmes. Neste caso, pode-se considerar o documentrio como um gnero, pois h convenes consolidadas que os distinguem dos filmes de fico: voz-off5, entrevistas, som direto, cortes, uso de atores sociais e de pessoas em seus papis cotidianos como personagens principais do filme, etc. (Ibid., p. 54). Tambm a importncia de uma lgica informativa na organizao dos filmes e de suas representaes do mundo histrico pode ajudar a distinguir o filme documentrio e, ao mesmo tempo liber-lo dessas convenes. Diz Nichols:

A lgica que organiza um documentrio sustenta um argumento, uma afirmao ou uma alegao fundamental sobre o mundo histrico, o que d ao gnero sua particularidade. Esperamos nos envolver com filmes que se envolvem no mundo. Esse envolvimento e essa lgica liberam o documentrio de algumas das convenes em que ele se fia para criar um mundo imaginrio (Ibid., p. 55).

A expresso utilizada para referir-se narrao ou comentrio feito por um locutor que no visvel na imagem, tambm chamada voz de Deus, sendo hoje mais usualmente empregado o termo voz-over.

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A ltima forma abordada por Nichols refere-se diretamente ao pblico. Considerando que os limites entre filme documentrio e filme de fico so permeveis, a sensao de que um filme um documentrio est tanto na mente do espectador quanto no contexto ou na estrutura do filme (Ibid., p. 64). Os espectadores, ao assistirem a um filme caracterizado como documentrio, supem que os sons e as imagens desse filme tm origem no mundo histrico. Isso est relacionado prpria capacidade indexadora da imagem fotogrfica e do registro dos sons, de reproduzir aquilo que foi registrado. Os instrumentos de gravao (cmeras e gravadores) registram impresses (vises e sons) com grande fidelidade. Isso lhes d valor documental, pelo menos no sentido de documento como algo motivado pelos eventos que registra. (Ibid., p.64). No documentrio o espectador conserva sua crena na autenticidade do mundo histrico representado na tela, mas isso no impede seu entendimento do filme como um argumento ou perspectiva sobre o mundo, para Nichols uma das principais caractersticas do documentrio. Como pblico, esperamos ser capazes tanto de crer no vnculo indexador entre o que vemos e o que ocorreu diante da cmera como de avaliar a transformao potica ou retrica desse vnculo em um comentrio ou ponto de vista acerca do mundo em que vivemos. Adivinhamos uma oscilao entre o reconhecimento da realidade histrica e o reconhecimento de uma representao sobre ela. Essa expectativa distingue nosso envolvimento com o documentrio de nosso envolvimento com outros gneros de filme (Ibid., p. 68). Esta ltima maneira de compreender o documentrio nos leva ao segundo ponto de reflexo, ou seja, aproximao do documentrio com os discursos de sobriedade. Ao reivindicar uma abordagem e uma capacidade de interveno no mundo histrico, moldando nossa viso de mundo, o documentrio aproxima-se desses discursos de sobriedade, pelos quais falamos diretamente de realidades sociais e histricas, como cincia, economia, medicina, estratgia militar, poltica externa, poltica educacional, dentre outras. Para Nichols, esses sistemas tm poder instrumental de alterar o prprio mundo, efetuando relaes de ao e conseqncia.

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Seu discurso tem um ar de sobriedade desde que raramente receptivo simular caractersticas, eventos, ou mundos inteiros [...]. Os discursos de sobriedade so sbrios porque eles consideram sua relao com a realidade direta, imediata, transparente. Por isso seu poder se mostra. Por isso as coisas acontecem. Eles so os veculos de dominao e conscincia, poder e conhecimento, desejo e possibilidade. O documentrio, apesar de seu parentesco, nunca foi aceito como [um discurso] totalmente igual (NICHOLS, 1991, p.34).6 Uma ltima questo a ser pontuada o fato de a tradio documentarista estar profundamente enraizada na capacidade de o documentrio transmitir uma impresso de autenticidade. Quando acreditamos que o que vemos testemunho do que o mundo , isso pode embasar nossa orientao ou ao nele (NICHOLS, 2005[a], p. 20). O advento dos meios digitais torna esse fato mais contundente, visto que a impresso de autenticidade se mantm mesmo quando no se tem mais garantia de que houve realmente uma cmera e uma cena, embora as imagens possam ser extremamente fiis a pessoas e lugares conhecidos:

Certas tecnologias e estilos nos estimulam a acreditar numa correspondncia estreita, seno exata, entre imagem e realidade, mas efeitos de lentes, foco, contraste, profundidade de campo, cor, meios de alta resoluo [...] parecem garantir a autenticidade do que vemos. No entanto, tudo isso pode ser usado para dar impresso de autenticidade ao que, na verdade, foi fabricado ou construdo (Ibid., 19-20). Para Bill Nichols, a impresso de autenticidade o que parece explicar o atual fascnio pelos formatos reality shows, que exploram a sensao de autenticidade documental, e o sucesso de filmes como Truman, o show da vida e A bruxa de Blair: experimentamos uma forma distinta de fascnio pela oportunidade de testemunhar a vida6

Their discourse has an air of sobriety since it is seldom receptive to "make-believe" characters, events, or entire worlds []. Discourses of sobriety are sobering because they regard their relation to the real as direct, immediate, transparent. Through them power exerts itself. Through them, things are made to happen. They are the vehicles of domination and conscience, power and knowledge, desire and will. Documentary, despite its kinship, has never been accepted as a full equal (NICHOLS, 1991, p.3-4).

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dos outros quando eles parecem pertencer ao mesmo mundo histrico a que pertencemos (Ibid., p. 18).

2.1.2 Marcos gerais na histria do documentrio: origens e desenvolvimento do gnero

Como j assinalamos, podemos ver, nos primeiros filmes produzidos pelo cinema primitivo, as bases do que viria a ser o documentrio, na medida em que combinam a capacidade de reproduo do mundo histrico feita pelas imagens cinematogrficas com o fascnio dos pioneiros pela explorao dessa capacidade documental. A combinao da paixo pelo registro do real com um instrumento capaz de grande fidelidade atingiu uma pureza de expresso no ato da filmagem documental (Ibid., p. 118) e levou o cinema a duas direes: o cinema de atraes, com nfase na exibio, e a documentao cientfica, com nfase na reunio de provas (Ibid., p. 122). Porm o amadurecimento de uma narrativa documental s veio se manifestar na dcada de 1920, considerada o primeiro sinal de identidade do cinema documentrio, a partir do trabalho do americano Robert Flaherty (1884-1951) e do sovitico Dziga Vertov (1895-1954). Seus mtodos e seus filmes, respectivamente Nanook, of the North (1922) e O homem da cmara (1929) sem querer estabelecer aqui qualquer tipo de aproximao entre realizadores que percorreram caminhos to diversos , contribuem para a afirmao do cinema documentrio. Com Flaherty e Vertov,

[...] ficou definido que, no documentrio, absolutamente essencial que as imagens do filme digam respeito ao que tem existncia fora dele. Esta a principal caracterstica do documentrio. A segunda, j em estdio, a organizao das imagens obtidas in loco [...] segundo uma determinada forma; o resultado final dessa forma o filme. A organizao fora o filme a no se pautar por uma mera descrio, apresentao descaracterizada ou sucesso sem propsito aparente, das imagens obtidas in loco. O documentarista, por seu lado, cmplice das caractersticas anunciadas (PENAFRIA, 1999, p. 39).

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Flaherty utilizou-se da sintaxe narrativa do cinema ficcional, consolidada desde os primeiros anos do sculo XX com D. W. Griffith, para inaugurar uma narratividade documentria, com mtodo de pesquisa, filmagem e montagem. (DA-RIN, 2004, p. 47). A obra de Flaherty, bastante analisada pelos tericos do cinema e da antropologia, recebeu diversas crticas reducionistas, centradas nos aspectos valorativos dominantes em contextos diferenciados daqueles em que foi produzida. Os questionamentos, especialmente, dos mtodos de representao como encenao de uma realidade, conforme ressalta Ferno Ramos, deixam de considerar que Nanook uma obra inserida num contexto ideolgico focado na valorao positiva de padres de conduta vinculados necessidade da preservao de tradies em vias de desaparecimento. A misso do documentrio est em reproduzir/preservar essas tradies, encenando e recriando procedimentos comunitrios extintos (RAMOS, 2005, p. 169). Em Dziga Vertov, encontramos uma posio mais radical, de recusa ao cinema de fico. Seu trabalho, inserido nos movimentos artsticos do modernismo, foi fundamental no sentido da experimentao de novas formas estticas e linguagens, sendo referncia para muitos trabalhos ainda hoje. Tambm estabeleceu os princpios de um cinema verdade (kinopravda) ao defender o cine-olho, a filmagem da vida de improviso, articulada em torno de um conceito especfico de montagem (BARSAM, 1992, p. 301). Da-Rin lembra que, enquanto Flaherty seguia as regras da continuidade na montagem narrativa,

Vertov seguiu o caminho oposto, baseando-se na descontinuidade. [...] A continuidade procurada a do argumento, atravs de uma cine-escritura dos fatos. [...] Vertov descartou radicalmente a dramatizao, optando por um cinema intelectual que no quer apenas mostrar, mas organizar as imagens como um pensamento, de falar graas a elas a linguagem cinematogrfica, uma linguagem universalmente compreendida por todos, possuindo uma considervel fora de expresso (DA-RIN, 2004, p.127). O marco seguinte do cinema documentrio ocorreu na dcada de 1930, com o movimento documentarista britnico e, especialmente, com o trabalho de John Grierson (1898-1972), que consolidou o documentrio como gnero, com uma base institucional

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definida e uma proposta de linguagem que dominaria toda a produo de filmes at o incio da dcada de 1960. Segundo alguns historiadores do cinema, foi Grierson quem primeiro utilizou o termo documentrio, em artigo do jornal New York Sun, em 1926, num comentrio sobre o filme Moana, de Robert Flaherty. O termo teria sido tomado do francs documentaire, usado para designar os filmes de viagem. Amir Labaki aponta uma verso anterior: a primeira utilizao do termo teria sido feita pelo escritor e fotgrafo etnogrfico Edward S. Curtis, em 1913, para definir a produo narrativa no-ficcional (LABAKI, 2006). Parece certo, conforme discute Manuela Penafria, que a afirmao do documentrio passa necessariamente pelo seu reconhecimento como tal e tambm por uma efetiva produo de filmes, fatos que ocorreram somente na dcada de 1930, na Inglaterra, especialmente com a criao da Film Units, instituio subsidiada pelo governo ingls, e o trabalho do General Post Office (GPO).

O aparecimento e [a] utilizao dos termos documentrio e documentarista e a efectiva afirmao e desenvolvimento de uma produo de documentrios por profissionais do gnero, liga-se, inegavelmente, a esse movimento e sua figura mais emblemtica: o escocs John Grierson (PENAFRIA, 1999, p. 45). Para Grierson, o documentrio deveria ter uma funo educativa e social, podendo ser definido, antes de mais nada, como um tratamento criativo da realidade, conforme postulado em seus textos reunidos em First Principles of Documentary (1932). Esta viso formou uma grande gerao de documentaristas que seguiram um modelo clssico de produo e marcou toda a realizao de documentrios at a primeira metade do sculo XX. Pode-se dizer que ainda segue hoje conformando muitas produes, principalmente os jornalsticos destinados televiso. A viso do documentrio como detentor de uma misso caracterizada como educativa [...] delineia o sistema de valores ticos do primeiro documentrio, a partir do qual o conjunto de espectadores/cineastas desses filmes estabelece valores que norteiam sua conduta com relao ao que est sendo veiculado/produzido. [...] Na escola documentarista inglesa, a

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dimenso educativa do documentrio [...] fica claramente estabelecida, funcionando como base para formulaes sobre a validade do documentrio e sua funo social (RAMOS, 2005, p.170-171). Dentre os cineastas ligados escola documentarista britnica, destaca-se o brasileiro Alberto Cavalcanti, nome que figura entre os pioneiros do gnero em diversos livros sobre a histria do documentrio. Cavalcanti realiza, em 1926, na Frana, o documentrio Rien que les heures, mostrando o cotidiano de Paris numa experincia similar e precedente de Dziga Vertov em O homem da cmera e de Walter Ruttmann, em Berlim, sinfonia da metrpole. Na Inglaterra, Cavalcanti trabalhou para o GPO, rgo onde assumiu, em 1937, a chefia da produo, aps a ida de Grierson para o Canad. Alm de ter dirigido inmeros filmes de fico e documentrios, este cineasta publicou, em 1951, o livro Filme e realidade, em que defende, entre outros pontos, que o conhecimento da realidade no funo somente do filme documentrio, mas do cinema em geral (CAVALCANTI, 1976). Ressalte-se que, na dcada de 1950, Cavalcanti foi chamado ao Brasil para assumir a direo da Vera Cruz. O movimento documentarista britnico consolidou o primeiro estilo do cinema documentrio: O estilo de discurso direto da tradio griersoniana [...] foi a primeira forma acabada de fazer documentrio. Como convm a uma escola de propsitos didticos, utilizava uma narrao fora-de-campo, supostamente autorizada, mas quase sempre arrogante (RAMOS, 2005, p. 48), comumente identificada como voz-overou voz-off, e considerada, como mencionado, a voz de Deus, no sentido de ser a detentora do saber do filme. A partir das consideraes acima, podemos concluir que o surgimento do documentrio como gnero se d somente no fim da dcada de 1920 e incio de 1930, quando se renem as condies para seu reconhecimento. Bill Nichols destaca o papel de Dziga Vertov, mas defende que este, apesar deste ter promovido o documentrio bem antes de Grierson, no reuniu em torno de si um grupo de cineastas da mesma opinio e nem conseguiu nada parecido com a base institucional slida que Grierson estabeleceu, o que

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foi fundamental para dar continuidade produo dos documentrios (NICHOLS, 2005[a], p. 119). As condies apontadas por Nichols e que justificam o aparecimento do gnero, passam por uma combinao de elementos reunidos durante os anos 1920 e incio de 1930, que se relacionam ao surgimento de uma voz do documentrio: (1) as tendncias do cinema primitivo, organizado em torno do cinema de atraes e a documentao cientfica, j apontadas anteriormente; (2) o relato narrativo de histrias, que revela a perspectiva dos cineastas sobre o mundo imaginado e construdo no filme e, conseqentemente, sobre o mundo histrico; (3) a experimentao potica, que surge do cruzamento do cinema com as vanguardas modernistas e est ligada idia de fotogenia e de montagem; e (4) a oratria retrica, a mais distintiva de todas. Para o autor, a retrica, em todas as suas formas e em todos os seus objetivos, que fornece o elemento final e distintivo do documentrio. O exibidor de atraes, o contador de histrias e o poeta da fotogenia condensam-se na figura do documentarista como orador que fala com uma voz toda sua do mundo que todos compartilhamos (NICHOLS, 2005[a]). Em meados da dcada de 1950 e incio dos anos 1960, o cinema foi impulsionado pela revoluo tecnolgica das cmeras portteis e de som sincronizado. Tais instrumentos permitiram, entre outras coisas, a realizao de entrevistas de rua e a produo de novos estilos e alternativas voz de Deus. A introduo do registro simultneo de imagem e som, e a cmera cada vez mais leve e gil, abriram novas possibilidades para a experimentao. A poca marcou-se pelo Cinema Direto, nos Estados Unidos e pelo Cinema Verdade, desenvolvido inicialmente na Frana. Para Richard Barsam, estes movimentos, apesar de distintos, significaram ambos um rompimento com a tradio clssica do documentrio representada pelo documentarismo britnico e por Grierson, pois construram um novo conceito de realidade, influenciados principalmente pelo neorealismo italiano e pela nouvelle-vague francesa (BARSAM, 1992). Brian Winston resume bem a diferena entre Cinema Verdade e Cinema Direto, apoiado na definio feita por Henry Breitose de fly-on-the-wall e fly-in-the-soup, literalmente mosca na parede e mosca na sopa: a primeira observa sem ser percebida, a segunda est no centro da cena (BREITOSE, 1986). Os filmes do Cinema Verdade

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preconizam o uso de equipe enxuta e se vale[m] da tcnica de entrevistas registrando a presena do cineasta e do aparato flmico. J o Cinema Direto no permite o envolvimento do cineasta na ao e tem como uma de suas caractersticas a ausncia de narrao (WINSTON, 2005, p.16). Para Silvio Da-Rin, as diferenas podem ser resumidas s estratgias discursivas, aos diferentes modos de representao: no Cinema Direto predomina um modo observacional, no Cinema Verdade um modo interativo. O Cinema Direto relaciona-se a uma esttica de no-interveno iniciada nos anos 1950 na Inglaterra, com a escola documentarista britnica e o free-cinema; no Canad, com o National Film Board (ou Office National du Film - ONF); e nos Estados Unidos, com a Drew Associates, produtora que tm como principais nomes o reprterfotogrfico Robert Drew e o cinegrafista Richard Leacock. Da-Rin resume este movimento em direo a um cinema de observao na descrio dos princpios da Drew Associates:

Em nome de um respeito absoluto autenticidade das situaes filmadas, o grupo da Drew Associates adotava o princpio do som sincrnico integralmente assumido: qualquer acrscimo imagem e ao som originrio da locao era considerado incompatvel com a realidade captada ao vivo. Seu mtodo de filmagem interditava todas as formas de interveno ou interpelao [...]. A equipe devia ser reduzida ao mnimo indispensvel, os equipamentos adaptados maior portabilidade e agilidade possveis (DA-RIN, 2004, p.137138). Na Frana, no mesmo perodo, foram cineastas ligados pesquisa social, socilogos e antroplogos, quem descobriram os equipamentos portteis e de som sincronizado. O mito da possibilidade de no-interveno, e da objetividade dos equipamentos estava desfeito com o que Edgar Morin chamou de cinema verdade, retomando o termo de Dziga Vertov. O filme emblemtico desse momento Crnica de um vero (1961), uma parceria entre Jean Rouch e Edgar Morin que foi fundamental para o desenvolvimento de um novo cinema, em que se modificam as relaes entre cineasta, tema e espectador. Para Da-Rin, Chronique pode ser considerado o prottipo de uma nova configurao do documentrio, que resultou num modo interativo de representao:

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Neste filme, o som direto integralmente assumido engendrou conseqncias inteiramente distintas daquelas verificadas no modo observacional. Aqui a palavra que predomina, atravs da conjugao de diferentes estratgias: monlogos, dilogos, entrevistas dos realizadores com os atores sociais, discusses coletivas envolvendo a crtica aos trechos j filmados e, por fim, autocrtica dos prprios realizadores diante da cmera (Ibid., p.150). Apoiado nas potncias do falso, de Deleuze (DELEUZE, 1990), Andr Parente fornece uma viso mais ampla do que se convencionou chamar cinema direto ou mesmo cinema de realidade, que inclui tendncias bastante diversas, inclusive o cinema verdade. Ele explica que o termo direto foi mal compreendido pelos cineastas e tericos dos anos 1960 e 1970 especialmente nas crticas de L. Marcorelles e G. Marsolais7 , que o reduziram a uma tcnica, um mtodo de filmagem e uma esttica do real. Mais do que isso, explica Parente, o que importava para o cinema direto era questionar a fronteira que separa o real da fico e a vida da representao (PARENTE, 2000, p. 127). O termo Cinema Direto foi proposto por Mario Ruspoli, em 1963, para designar o cinema que filma diretamente a realidade vivida e o real, substituindo a expresso cinema verdade, lanada por Edgar Morin em 1960. Com efeito,

sendo a expresso de Morin e Jean Rouch bem infeliz, a de Ruspoli se imps rapidamente, designando e reagrupando vrias tendncias diferentes: o free cinema, da escola documentarista inglesa (195659), o candid-eye, do grupo de lngua inglesa do ONF (1958-60), o living-camera, do grupo Drew Associates (1959-60), o cinema do comportamenteo, de Leacock e Pennebaker, o cinemaverdade, de Rouch e Morin, o cinema espontneo e o cinema vivido, de M. Brault, P. Perrault e outros etc. (Ibid., p. 112). Deleuze tambm distinguiu o cinema direto, representado pelos filmes de John Cassavetes e de Shirley Clarke; do cinema do vivido, encontrado nos filmes de Pierre Perrault, e do cinema verdade, cujo maior expoente Jean Rouch (DELEUZE, 1990).

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As obras referidas por Andr Parente so: de Louis Marcorelles, Une esthtique du rel, le cinma direct (Unesco, 1963) e Elments pour un noveau cinma (Unesco, 1970); e de Gilles Marsolais, Laventure du direct (Paris: SEGHERS, 1974).

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Porm, para Deleuze, mais importante que essa distino perceber que a ruptura produzida no cinema dos anos 1960 no foi entre a fico e a realidade, mas entre um modelo de narrativa apoiado na idia de verdade e um modelo apoiado na fabulao. Assim, o prprio Cinema Verdade torna-se, na realidade, produtor de verdade: no ser um cinema da verdade, mas a verdade do cinema (Ibid., p. 183). Antes desse perodo, especialmente no cinema de no-fico, diz Deleuze, se abandonava a fico em favor de um real, mas mantinha-se um modelo de verdade que supunha e decorria da fico. Os anos 1970 foram marcados por um novo perodo, centrado no numa mudana tecnolgica, mas de estilo, na qual os filmes incorporam o discurso direto sob a forma de entrevistas. Nichols exemplifica esse estilo nos diversos filmes polticos e feministas produzidos no perodo, em que os participantes dos filmes davam seu testemunho diante da cmera. s vezes profundamente reveladores, s vezes fragmentados e incompletos, esses filmes forneceram o modelo para o documentrio contemporneo (NICHOLS, 2005[b], p.49). Diz Nichols que o filme de entrevistas ainda se constitui, hoje, a forma predominante dos documentrios, embora se possa ver, na produo mais recente, formas mais complexas que caracterizam um novo estilo: o documentrio auto-reflexivo. Esse novo

[...] documentrio auto-reflexivo mistura passagens observacionais com entrevistas, a voz sobreposta do diretor com interttulos, deixando patente o que esteve implcito o tempo todo: o documentrio sempre foi uma forma de re-presentao e nunca uma janela aberta para a realidade. O cineasta sempre foi testemunha participante e ativa na fabricao de significados, sempre foi muito mais um produtor de discurso cinemtico do que um reprter neutro ou onisciente da verdadeira realidade das coisas (Ibid., p.49). Ressaltamos que uma discusso especfica sobre essa tendncia reflexiva no cinema, bem como sobre o carter hbrido do documentrio na atualidade, ser feita no prximo captulo, quando tratarmos do documentrio contemporneo.

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2.1.3 Breve nota sobre obras e temas: debates tericos acerca do documentrio

Em relao produo terica sobre o documentrio, tambm predomina, na histria do gnero, a diversidade. Porm, grande parte das obras dedicadas exclusivamente ao documentrio aparece somente no incio da dcada de 1990, quando o debate sobre o documentrio assume uma posio expressiva na vasta literatura sobre o cinema. (NICHOLS, 2005[a]). Visando sistematizar a trajetria histrica do documentrio, vrias pesquisas procuraram estabelecer classificaes e categorias que diferenciam estilos, filmes e cineastas. Muitas traam somente um panorama histrico, especialmente marcando os perodos em funo da evoluo tecnolgica e da linguagem documental, outras analisam diferentes vertentes e teorias que englobam questes como o realismo na arte, os modos de representao no documentrio e a tica, dentre outras. Relacionamos, a seguir, algumas dessas obras e discusses, que evidentemente constituem somente uma parte do que j foi publicado ou produzido acerca do documentrio.8 Um dos primeiros trabalhos sobre o gnero foi o do documentarista John Grierson, First Principles of Documentary (GRIERSON, 1932), que definiu o documentrio como um tratamento criativo da realidade, j assegurando que as imagens do documentrio no devem se pautar na idia de reproduo do real, mas antes na transformao criativa dos dados de determinada realidade. Apoiado por uma slida base institucional, para Grierson o documentrio tinha prioritariamente uma funo educativa e, consequentemente, um papel social claro. Em 1935, Paul Rotha publicou Documentary film: the use of the film medium to interpret creatively and in social terms the life of the people as it exists in reality, em que examina a tradio documentarista destacando, primeiramente, essa funo social e educacional do cinema. Como vrios pesquisadores, Rotha aponta, na evoluo do documentrio, o incio do gnero com Robert Flaherty (Nanook, 1920) nos Estados Unidos,8

Para uma relao mais completa dos trabalhos j publicados sobre o documentrio, ver Notas sobre as fontes, indicaes de Bill Nichols includas no final do livro Introduo ao Documentrio (NICHOLS, 2005, p. 220-232).

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Dziga Vertov e seus experimentos na Rssia (a partir de 1923) e John Grierson (Drifters, 1929) na Inglaterra, mas completa a lista com os nomes de Alberto Cavalcanti (Rien que les heures, 1926) na Frana e Walter Ruttmann (Berlim, sinfonia da metrpole, 1927) na Alemanha. A partir desses nomes, Rotha distingue quatro grupos distintos na tradio documentarista: a naturalista romntica, exemplificada em Flaherty; a realista, com os filmes de Cavalcanti e Ruttmann; a neo-realista, com Vertov e a propagandista, na Rssia (Eisenstein), na Inglaterra (Grierson) e na Alemanha (Leni Riefenstahl). Examinando alguns princpios do documentrio, Rotha afirma o que se discutiu durante dcadas na pesquisa cinematogrfica, e que faz com que todo filme seja tambm um documentrio sobre seu contexto histrico: que as tendncias no cinema refletem as caractersticas sociais, econmicas e polticas do perodo e, portanto, o que difere o documentrio do filme de fico so seus motivos e sua forma de interpretao social e filosfica dos fatos (ROTHA, 1952, p. 105). Para Rotha, no bastava seguir um mtodo de observao e interpretao da realidade, o essencial era o senso de responsabilidade social do documentarista, que no deveria ser neutro, nem meramente descritivo ou factual. Surgidas na dcada de 1970 e enfatizando aspectos histricos, sociais, cientficos e educacionais dos filmes documentrios tm-se as obras de Erik Barnouw, Documentary: a history of the non-fiction film (BARNOUW, 1993), e Richard Meran Barsam, Nonfictionfilm: a critical history (BARSAN, 1992), que contriburam para a sistematizao do documentrio no que diz respeito a uma viso histrica da evoluo do gnero. Barnouw divide os cineastas em profetas, exploradores, reprteres, pintores, advogados, etc., para explicar os diferentes tipos de filmes e movimentos. J Richard Barsam traa um panorama da produo documentria em vrios pases, alm de comentar os debates que vo das teorias sobre a persistncia retiniana at o impulso realista na arte. Na vasta gama de autores e obras que analisa, destacam-se cineastas brasileiros da dcada de 1980 (na edio revisada e ampliada de 1992), como Joaquim Pedro de Andrade, Arnaldo Jabor e Leon Hirszman. Tambm da dcada de 1970, destacamos os trabalhos de Alan Rosenthal The new documentary in action: a casebook in film making (ROSENTHAL, 1980) e de Lewis Jacobs The documentary tradition: from Nanook to Woodstock (JACOBS, 1979). Em

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relao a Rosenthal, uma outra obra importante foi a coletnea que organizou no final da dcada de 1980, New challenges for documentary (ROSENTHAL, 1988). Esta antologia procurou explorar os novos desafios impostos ao gnero documentrio na atualidade, confrontando-os com os debates previamente colocados em outras dcadas. Questes como ponto de vista, os diferentes tipos de voz e o docudrama so analisados em obras clssicas da histria do cinema e tambm em trabalhos inovadores das ltimas dcadas do sculo XX. Em relao aos trabalhos mais recentes, publicados desde a dcada de 1990, destacamos a coletnea Theorizing documentary, organizada por Michael Renov. O autor comenta a marginalizao imposta ao documentrio e aponta as srias investigaes feitas sobre o gnero sobre o status ontolgico da imagem, a representao e as potencialidades do discurso histrico no cinema , que contribuem para mudar esse quadro e para a compreenso do cinema, de forma geral. No texto Toward a poetics of documentary, Renov aponta outra classificao possvel para o gnero documentrio, a partir de quatro funes: registrar, revelar ou preservar; persuadir ou promover; analisar ou questionar e expressar. Partindo da concepo de potica de Aristteles, da anlise dos trabalhos de Tzvetan Todorov, Roland Barthes, Andr Bazin, Claude Lvi-Strauss e outros mais contemporneos como Jacques Derrida e James Clifford, Renov distingue quatro tendncias fundamentais do documentrio, que no so excludentes (RENOV, 1993). Para Renov, a funo mais elementar seria aquela que enfatiza o registro, e que conhecida desde os trabalhos dos Lumire. Visando exemplificar tal funo, o autor recorre s discusses sobre o aparato fotogrfico, s idias de Barthes e aos filmes etnogrficos. A funo persuasiva discutida a partir de Derrida e exemplificada nos filmes da tradio de John Grierson e Leni Riensfestahl. Em relao ao documentrio analtico, Renov considera crucial o debate sobre a reflexividade no cinema, e cita Dziga Vertov e Chris Maker, entre outros cineastas que privilegiaram o questionamento da histria e cultura. Por fim, Renov discute a funo expressiva, relacionada esttica propriamente dita. Aqui o autor analisa as limitaes formais impostas ao documentrio e usa como exemplo o trabalho fotogrfico de Paul Strand (Ibid., p.12-36.).

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Tambm Bill Nichols, em Representing reality (1991), prope uma categorizao do documentrio a partir da identificao dos diferentes modos de representao. Falando de forma bastante reduzida, somente para registrar este estudo, Nichols divide os cineastas e filmes em quatro tipos: expositivo, observacional, interativo e reflexivo, estabelecendo, em relao ao ltimo modo, uma anlise detalhada sobre os conceitos de reflexividade. Em Introduction to documentary (2001), o autor reexamina sua classificao, propondo, ento, seis modos de representao: potico, expositivo, observacional, participativo, reflexivo e performtico.

2.2 Realidade e representao no filme documentrio

Como visto, estabelecer limites entre fico e realidade, entre o autntico e a sua representao e se de fato existe essa distino so questes presentes desde a origem da discusso sobre o documentrio como gnero. E mesmo que tenhamos optado por examinar aqui somente os aspectos mais relevantes dessa discusso, precisamos considerar, como lembra Bill Nichols, que o realismo cinematogrfico um conceito dinmico, que se transforma e exige constantemente elaborao de novas estratgias de representao, seja no documentrio ou na fico:

Vale a pena insistir no fato de que as estratgias e os estilos utilizados no documentrio, assim como os do filme narrativo, mudam. Eles tm uma histria. E mudam em grande parte pelas mesmas razes: os modos dominantes do discurso expositivo mudam, assim como a arena do debate ideolgico. O realismo confortavelmente aceito por uma gerao parece um artifcio para a gerao seguinte. Novas estratgias precisam ser constantemente elaboradas para representar as coisas como elas so, e outras para contestar essa representao. (NICHOLS, 2005[b], p.47) O final do sculo XIX viu surgir as imagens tcnicas a fotografia e o cinema e desde ento diversas discusses tericas procuraram discutir o conceito de realismo e a

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impresso de realidade causada por essas imagens. Na tradio terica sobre o cinema, destacam-se as contribuies de Andr Bazin, no clebre texto Ontologia da imagem fotogrfica, includo no livro Quest-ce que le cinma?, no qual discute a objetividade essencial das imagens fotogrficas e cinematogrficas, determinada por sua gnese automtica que lhes confere credibilidade e que subverte totalmente a psicologia das imagens, pois satisfaz completamente a necessidade de iluso, o desejo de substituir o mundo exterior pelo seu duplo (BAZIN, 1991, p.20). Como abordamos no item anterior, a caracterstica indexadora da imagem fotogrfica, que advm da conexo fsica existente entre a imagem e seu referente, o que produz essa sensao de realismo fotogrfico. Para Bill Nichols, o realismo , na verdade, um estilo que se apresenta de trs formas importantes para o cinema documentrio: (1) realismo fotogrfico ou fsico ou emprico, produzido por meio da fotografia de locao, da filmagem direta e da montagem em continuidade, em que so minimizados os usos distorcidos e subjetivos da montagem defendidos pela vanguarda; (2) realismo psicolgico, que implica a transmisso dos estados ntimos de personagens e atores sociais de maneira plausvel e convincente; e (3) realismo emocional, que cria um estado emocional adequado no espectador (NICHOLS, 2005[a], p. 128). Para Gerard Betton, o conceito de realismo no cinema muito amplo e vago. Usando o fenmeno da percepo como ponto de partida, o autor enfatiza que a imagem flmica suscita certamente um sentimento de realidade no espectador, pois dotada de todas as aparncias da realidade, mas o que aparece na tela sempre um aspecto (relativo e transitrio) de uma realidade esttica que resulta da viso eminentemente subjetiva e pessoal do realizador (BETTON, 1987, p. 9). Em relao representao no documentrio, Jacques Rancire coloca em dvida um tipo de diagnstico que se consolidou tambm na pesquisa cinematogrfica e que se fundamentou numa viso simplista da arte, ao considerar certos fenmenos artsticos contemporneos relacionados ao documental como um retorno representao direta da realidade. Para Rancire, tal viso ultrapassada, j que a modernidade artstica no pode ser reduzida simplesmente a um movimento sistemtico de abandono do realismo representativo em benefcio dos formalismos da arte pela arte, inclusive porque o primeiro

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abalo da ordem representativa se chamou realismo e no abstrao. Diz o autor que o realismo no se constituiu [...] uma fuga formalista diante das exigncias da viso, mas, ao contrrio, uma forma de sublinhar as convenes e a hierarquia da representao, aproximando mais a lente tanto do romancista quanto do pintor e do fotgrafo, situando-a num ponto de vista mais ntimo, que suspende a lgica das histrias e a tradutibilidade do legvel em visvel ao se fixar no enigma de um rosto ou de uma vida annimos (RANCIRE, 1998, p. 3). Segundo Rancire, o que d corpo fico no a inveno de uma histria, mas a construo de uma rede de signos capazes de quebrar a lgica das imagens e a associao de palavras s coisas; capazes de romper com os encadeamentos familiares de imagens e de significados ao remeter nudez da imagem e indagao sobre a possibilidade de reunir estes significados num sentido histrico (Ibid., p.3). A idia de representao essencial para o filme documentrio. Conforme aborda Nichols, os chamados documentrios, ou filmes de no-fico, so especificamente aqueles que tratam das representaes sociais. Aqueles que, [...] tornam visvel e audvel, de maneira distinta, a matria de que feita a realidade social, de acordo com a seleo e a organizao realizadas pelo cineasta. Expressam nossa compreenso sobre o que a realidade foi, e o que poder vir a ser. Esses filmes tambm transmitem verdades, se assim quisermos. Precisamos avaliar suas reivindicaes e afirmaes, seus pontos de vista e argumentos relativos ao mundo como o conhecemos, e decidir se merecem que acreditemos neles. Os documentrios de representao social proporcionam novas vises de um mundo comum, para que as exploremos e compreendamos (NICHOLS, 2005[a], p.26-7). Para este autor, o documentrio engaja-se no mundo pela representao, fazendo isso de trs formas: (1) oferecendo uma representao reconhecvel do mundo mesmo que as imagens no possam dizer tudo sobre o que aconteceu e mesmo que possam ser alteradas por meios convencionais e digitais; (2) significando ou representando os

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interesses dos outros; e (3) representando o mundo, colocando diante de ns a defesa de um determinado ponto de vista ou uma determinada interpretao das provas (Ibid., p.28-30). a idia de representao, assim, que leva tal autor a defender que a formao profissional do documentarista deve passar pelo desenvolvimento do respeito tico. Ou seja, as questes ticas so fundamentais nos documentrios, sendo uma medida de como as negociaes sobre a natureza da relao entre o cineasta e seu tema tm conseqncias tanto para aqueles que esto representados nos filmes como para os espectadores. (Ibid., p. 36). Brian Winston, em Claiming the real, prope uma reviso histrica das pesquisas sobre o gnero documentrio, tendo em vista as transformaes provocadas pelo desenvolvimento tecnolgico e pela imagem digital. Para reescrever a histria do documentrio, Winston revisa conceitos sistematizados desde Paul Rotha, a partir das relaes includas na expresso celebrizada por John Grierson, de que o documentrio um tratamento criativo da realidade (WINSTON, 1995). O autor aponta a necessidade de uma discusso sobre a tica, j que para ele o que distingue o filme de fico do documentrio essencialmente a base tica sobre a qual deve se fundar a prtica documentarista. Tambm o trabalho de Carl Plantinga, Rhetoric and representation in nonfiction film segue essa linha de investigao, pois se prope a analisar a natureza e a funo dos filmes documentrios a partir de um exame filosfico de seu discurso e suas formas de representao. O objetivo do autor o de caracterizar os quadros de mudana e estudar o lugar do documentrio no mundo social e nos discursos ideolgicos, cruzando pesquisas da histria, da crtica e da teoria de cinema. Assim, discute importantes instrumentos conceituais, como os aspectos indexicais e simblicos da imagem tcnica, relacionados complexidade da retrica documental. Plantinga tem como referncia os trabalhos de Barthes, Peirce, alm de outros pesquisadores do cinema, como Erick Barnouw, Brian Winston e Michael Renov (PLANTINGA, 1997). No Brasil, um artigo de Paulo Menezes, centrado numa abordagem sociolgica do cinema, tambm vem contribuir para (re)pensar o conceito de representao no documentrio, a partir da idia de representificao, termo considerado mais adequado

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por este autor. Para chegar ao novo termo, em sua investigao sobre os fundamentos da relao entre a imagem e a realidade, mostra os caminhos diversos que os pesquisadores percorreram para dar conta de uma relao que comporta uma dose suficiente de ambigidade [...] e uma flutuao de sentidos na apropriao de conceitos como reproduo, representao e duplo (MENEZES, 2004, p. 33), que ao final se misturam. Menezes no desenvolve o conceito de reproduo, mas deixa evidente tratar-se da idia de uma correspondncia exata entre a realidade e a imagem. J sobre o conceito de representao, refaz o percurso do termo desde a Idade Mdia, perodo em que significava ao mesmo tempo imagem e idia. Em Santo Toms de Aquino, representar conter a semelhana da coisa (Ibid., p. 25). Em Foucault, na obra As palavras e as coisas (1981), encontram-se as diversas concepes que o termo semelhana comportou at o final do sc. XVI, como assimilao, analogia e simpatia, sendo ao final vista como uma qualidade comum, na forma de substrato da representao (Ibid., p. 26). A seguir, examina as formulaes de Gombrich9, para quem a representao construda a partir da relao de uma imagem com outras imagens, em dois sentidos diferentes. Num primeiro sentido, a passagem de uma imagem para outra se faz pela mediao de uma idia, de uma imagem mental. [...] A referncia primeira de uma imagem no seria a coisa representada em si, mas a idia concebida (pr-concebida) sobre a coisa (Ibid., p.26). Num segundo sentido, tomando, por exemplo, a representao de um castelo,

[...] a transposio de imagens se daria por meio de cdigos reconhecveis, uma espcie de vocabulrio da semelhana, onde o ponto de partida seriam outras imagens reconhecveis de castelos e no a observao direta de qualquer castelo. As duas acepes propostas por Gombrich deixam evidente que entre a coisa e a representao da coisa h sempre a mediao de um conceito, uma idia, uma representao mental ou at mesmo uma regra (Ibid., p. 26-27).

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GOMBRICH, Ernst H. Arte e iluso: um estudo da psicologia da representao pictrica. Traduo de Raul de S Barbosa. 3ed. So Paulo: Martins Fontes, 1995.

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Menezes desenvolve, a partir de Pierre Francastel, o conceito de espao de representao dominante a partir do Renascimento: o espao em forma de cubo, o cubo cenogrfico, que transforma completamente a disposio dos elementos em uma representao, a partir da introduo do ponto de vista nico de observao. O ponto de vista nico implica, assim, a existncia de um lugar correto para se obter um olhar perfeito sobre a representao e a partir dela sobre as coisas. No existe, portanto, possibilidade alguma para uma multiplicidade de olhares, para uma interpretao diferencial (Ibid., p. 27). Entretanto, mesmo existindo na predominncia de um olhar fixo e imvel, a representao no se colocaria como mera reproduo do real, mas como uma pista,

[...] um indcio para se compreender como aquele real se constituiria em imagem. Ao mesmo tempo [...], em nenhum momento se coloca em qualquer nvel a questo da parecena, qualquer tipo de necessidade de a representao ser parecida com o que ela retrata [...]. Assim, pensar a representao no significa de modo algum conceb-la como rplica, como clone, como reproduo igual de um real que lhe seria exterior mas que ao mesmo tempo lhe seria idntico, cpia fiel de todos os seus detalhes e, principalmente e mais importante, de todos os seus atributos (Ibid., p. 27). O ltimo conceito apresentado o de duplo, visto como algo que se coloca no lugar de, estando sua significao sempre associada a um valor ritual. Nesta acepo, a semelhana fsica tambm no um atributo objetivado. Como observa Bazin, j citado anteriormente, o duplo visto como categoria psicolgica, como um elemento que estabelece verdadeira ligao e comunicao entre dois mundos (Ibid., p. 28-29). Os significados de reproduo, representao e duplo so alterados no decorrer do sculo XIX, quando h uma transmutao e convergncia de sentidos. Assim, especialmente a partir do surgimento da fotografia, a percepo do que seria o termo semelhana transforma-se radicalmente. A fotografia difundiu, como disse Benjamin, uma obsesso pela semelhana (BENJAMIN, 1985). O que se

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[...] entendia ento por semelhana teve seus sentidos a um s tempo reduzidos e transformados em um outro que no possua, por um processo de sucessivas mutaes, que encontrou no advento e disseminao da fotografia o seu ponto culminante e irreversvel. O semelhante, por fim, transforma-se no parecido. O que at ento no era de forma alguma fundamento das noes de representao e duplo torna-se uma de suas mais indissociveis caractersticas. Ao fim deste processo confundem-se definitivamente representao, duplo e reproduo. [...] Esvaziado de suas caractersticas rituais o duplo se transforma em reflexo, e, por isso, tenta ser parecido. O duplo, finalmente, vira clone (MENEZES, 2004, p. 30). Para Menezes, mesmo que seja claro que o cinema no reproduz a realidade, deve-se levar em conta que a imagem do filme guarda uma relao com o real, diferente da expressa nas trs noes anteriores, fundada que est na ambigidade fundamental desta relao entre imagem e real. (Ibid., p. 30) Menezes chama esta relao de coeficiente de realidade, lembrando o que Morin j havia definido como impresso de realidade, que cria um realismo fundado em um logro de algumas formas aparentes. O autor tambm lembra as acepes de Merleau-Ponty, de realismo fundamental; de Pierre Sorlin, de impresso de verdade; e de Pierre Francastel, dos mecanismos da iluso flmica (Ibid., p. 29-31). Podemos estabelecer certa aproximao das idias de Menezes com a viso de Bill Nichols, quando este ressalta que nosso acesso realidade histrica s pode se dar por meio das representaes, mas estas representaes no impedem a persistncia da histria como uma realidade. Assim, para Nichols, bastante possvel aceitar o gro de verdade sobre a imoralidade das imagens. [...] De crucial importncia que a realidade da dor e perda que no so parte de qualquer simulao, na realidade, o que faz a diferena entre representao e realidade histrica (NICHOLS, 1991, p.7)10. Pensando as imagens do filme documentrio a partir das idias de Benjamin e de Francastel, Menezes aponta um deslocamento do que entendemos como semelhante no filme no importa se visto como reproduo, representao ou duplo de sua relao10

It is quite possible, however, to accept the grain of truth about the immorality of images. [] The reality of pain and loss that is not part of any simulation, in fact, is what makes the difference between representation and historical reality of crucial importance (NICHOLS, 1991, p.7).

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imediata entre imagem e coisa fotografada para o carter construtivo desta mesma imagem (MENEZES, 2004, p. 38). Para Benjamin, o que olhamos no mundo sempre diferente do que olhamos nas imagens; para Francastel, a imagem existe em si, ela existe essencialmente no esprito, ela um ponto de referncia na cultura e no um ponto de referncia na realidade (FRANCASTEL, 1982, p.193). Assim:

Podemos conceber um desvio analtico na investigao das imagens, que se deslocaria de sua prpria realidade como imagem, e de qualquer real exterior a ela que lhe serviria de modelo ou estmulo, para os valores e as perspectivas que orientaram a sua prpria constituio como imagem (MENEZES, 2004, p.39). Para Menezes, em relao ao filme documentrio exatamente essa a questo sempre esquecida. Nas tentativas de classificao do gnero e de legitimao de um discurso autntico, verdadeiro esquece-se do essencial: os elementos constitutivos da percepo desse discurso como construo, sempre como construo, e, portanto, como sendo sempre parcial, direcionado, e, no limite, interpretativo (Ibid., p. 44). O fato de o cinema documentrio ter nascido exatamente num momento de predominncia do positivismo, portanto de um ideal de objetividade que tambm marcou a idia de representao desde o Renascimento, traz embutida a idia de verdade, e no de semelhana entre uma coisa e sua imagem. Assim o autor afirma a impropriedade dos conceitos de representao, reproduo e duplo para pensar as imagens flmicas e especialmente as imagens do documentrio, que, por sua vez, s podem ser pensadas em suas relaes entre cinema, real e espectador.

Proponho que se entenda a relao entre cinema, real e espectador como uma representificao, como algo que no apenas torna presente, mas que tambm nos coloca em presena de, relao que busca recuperar o filme em sua relao com o espectador. O filme, visto aqui como filme em projeo, percebido como uma unidade de contrrios que permite a construo de sentidos. Sentidos estes que esto na relao, e no no filme em si mesmo. O conceito de representificao reala o carter construtivo do filme, pois nos coloca em presena de relaes mais do que na presena de fatos e coisas (Ibid., p.44).

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Apoiado na idia do cinema como acontecimento (Foucault) e do tempo como entrecruzamento e no como sucesso (Benjamin), a representificao seria a forma de experimentao em relao a alguma coisa, algo que provoca reao e que exige nossa tomada de posio valorativa, relacionando-se com o trabalho de nossas memrias voluntria e involuntria que o filme estimula (Ibid., p. 45).

2.3 Entre o cinema e a antropologia

Antropologia visual, antropologia flmica, antropologia do audiovisual, antropologia da imagem... Todos esses termos e tantos outros remontam s tentativas de constituio de um campo especfico na antropologia relacionado ao universo da imagem tcnica.11 A elaborao dos mtodos clssicos da antropologia, que a constituram como disciplina cientfica, e a consolidao da fotografia e do cinema como uma linguagem especfica, remetem originalmente a um mesmo contexto histrico e social: o sculo XIX:

O sculo XIX, em seu contexto social e histrico, marcado pela busca da compreenso e assimilao do mundo pelos europeus, caracteriza o surgimento e a consolidao da etnografia e dos registros visuais, como a fotografia e o cinema, apontando para questes fundamentais sobre essas formas de representao da realidade social. As expedies cientficas multidisciplinares e as tcnicas fotogrficas e flmicas, que se multiplicam a partir dessa poca, vo possibilitar o registro de acontecimentos de um mundo mais amplo que o delimitado pelo continente europeu e permitir a apreenso da diversidade racial e social (BARBOSA; CUNHA, 2006, p.17).

O termo usado no sentido definido por Vlem Flusser, em para designar imagens produzidas por aparelhos, como a fotogrfica e cinematogrfica (FLUSSER, Vlem. Filosofia da caixa preta. So Paulo: Hucitec, 1985).

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Assim, mesmo antes dos termos documentrio e etnografia existirem como categorias, a investigao cientfica e a tentativa de legitimar a organizao do mundo sob um olhar ocidental aproximaram a antropologia das imagens tcnicas, consideradas a princpio como uma questo de mtodo. Como produtos tcnicos, as imagens garantiriam um carter de objetividade ao materializar corpos e hbitos que se tornam assim passveis de catalogao e classificao (Ibid., p. 18). Como discutem diversos autores, entre eles Sylvia Caiuby Novaes, a imagem foi sempre relegada a segundo plano nas anlises dos fenmenos sociais e culturais. Porm, como os textos, as imagens so artefatos culturais que permitem reconstituir a histria cultural dos grupos sociais e compreender os processos de mudana social.

Assim, o uso da imagem acrescenta novas dimenses interpretao da histria cultural, permitindo aprofundar a compreenso do universo simblico, que se exprime em sistemas de atitudes por meio dos quais grupos sociais se definem, constroem identidades e apreendem mentalidades (NOVAES, 1998, p. 116). Para Andra Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha, o desenvolvimento paralelo da pesquisa antropolgica e da linguagem cinematogrfica demarcou pontos de contato e consolidou uma prtica audiovisual diversificada no campo antropolgico:

Imagem como mtodo ou tcnica adotados na pesquisa de campo, dado bruto de pesquisa ou registro, expresso de um processo de pesquisa e ainda a imagem, ou narrativas visuais e audiovisuais, como objeto de anlise para a antropologia so alguns dos caminhos abertos nesse sentido (BARBOSA; CUNHA, op. cit., p. 49).

2.3.1 Etnografia e visualidade

A etnografia ocupa um lugar central na formao da antropologia social e cultural no mundo contemporneo. Disciplinarmente ela vista como um mtodo, usualmente associado ao trabalho de campo e observao participante, que busca

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reconstituir, de forma mais fiel possvel, a vida dos grupos estudados. Embutidas a esto as contribuies de B. Malinowsky e Lvi-Strauss, por exemplo. Porm, a etnografia assumiu diversas formas e significados, variando segundo suas relaes com o contexto histrico e cultural, de acordo com diversas elaboraes tericas que continuamente repensam o fazer antropolgico. Para este trabalho, e em relao etnografia, tornam-se significativas particularmente as proposies de dois autores: James Clifford e Clifford Geertz. Para James Clifford, a etnografia, por ser uma atividade hbrida, no pode ser definida como um mtodo, mas como um campo articulado pelas tenses, ambigidades e indeterminaes prprias do sistema de relaes do qual faz parte (CLIFFORD, 1998, p.10). Tambm Clifford Geertz problematiza o entendimento da prtica etnogrfica, que para ele uma descrio densa12 voltada para uma complexa hierarquia de estruturas significantes. Assim, o que o etngrafo enfrenta, em todos os nveis de seu trabalho de campo, uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas [...] que ele tem que, de alguma forma, primeiro aprender e depois apresentar (GEERTZ, 1989, p.7). Numa atitude comum entre os antroplogos ps-modernos, James Clifford analisa a multiplicidade de mos e vozes do discurso etnogrfico, ressaltando a diversidade dos seus processos de construo a partir do questionamento da noo de autoridade etnogrfica, que em suas vrias modalidades legitimam formas diversas de conhecimento. Para analisar essas modalidades, Clifford recorre primeiramente Malinowsky, responsvel pela fundao de um modelo hegemnico na primeira metade do sculo XX: a etnografia centrada na experincia do pesquisador que observa e participa. Esta , pois, a primeira modalidade de autoridade, na qual se conjugam, nesta observao participante, a experincia individual e a anlise cientfica. Explica Clifford que a segunda modalidade surge como crtica ao predomnio da experincia e se fundamenta na hermenutica. A prioridade dada interpretao desmistifica a objetividade da construo das descries etnogrficas, e d nfase aos processos criativos pelos quais os objetos culturais so vistos como significativos. Para

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O termo, explica Geertz, foi tomado emprestado de Gilbert Ryle. (GEERTZ, 1989, p.4)

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Clifford, a observao participante deve ser repensada como uma dialtica entre experincia e interpretao (CLIFFORD, 1998, p. 33-34). Nessa segunda modalidade, a etnografia vista como negociao permanente entre etnogrfo-informante, onde ambos so sujeitos conscientes e politicamente significativos (Ibid., p.43). Este modelo recusa a escrita como um monlogo sobre os outros, incorporando elementos intersubjetivos etnografia. Assim, constitui-se uma etnografia discursiva voltada para a interlocuo e os contextos em que a pesquisa se desenvolve, contribuindo para uma crescente visibilidade dos processos criativos [...] pelos quais objetos culturais so inventados e tratados como significativos (Ibid., p.39). Clifford Geertz apontado como o grande expoente dessa proposta: a etnografia a interpretao das culturas (Ibid., p.40). A elaborao da etnografia se faz num espao fora do trabalho de campo, onde os dados coletados so traduzidos num texto e depois numa narrativa. Assim, a cultura tomada como um texto passvel de interpretao, onde comportamentos, crenas, tradies e acontecimentos cotidianos so vistos como um conjunto potencialmente significante (Ibid., p. 39). Essa segunda proposta de autoridade, funda, de acordo com Clifford, um subgnero com duas formas: dialgica um dilogo em que interlocutores negociam ativamente uma viso compartilhada da realidade e polifnica para representar a autoria dos informantes deve-se produzir uma escrita que represente o etngrafo e o nativo com vozes diferentes, que aceite o no-controle dos dados obtidos e a multisubjetividade envolvida no trabalho de campo e na construo do texto (Ibid., p.45-54). Das quatro formas de autoridade descritas sucintamente acima, surge a noo de James Clifford da etnografia como alegoria, uma construo ficcional do outro, e da etnografia como escrita, no sentido utilizado por Jacques Derrida, que vai muito alm do texto, incluindo as mais diversas experincias e prticas sociais (Ibid., p.14). Como vimos, essa problematizao levantada por Clifford e Geertz leva em conta um determinado conceito de cultura, oposto ao de uma entidade isolada e autnoma, que deve ser relativizado.

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Acreditando, como Max Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua anlise; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa, procura do significado (GEERTZ, 1989, p.4). Entretanto, apesar de suas contribuies relevantes para a prtica da pesquisa, a preocupao exclusiva dos etngrafos ps-modernos com a semitica do significado deixou de considerar o fato de que a etnografia tambm reflete e transforma a teoria antropolgica, como afirma Bela Feldman-Bianco (FELDMAN-BIANCO, 1998, p. 290). O prprio Geertz reconhece isso ao afirmar que compreender a etnografia leva a compreenso da prpria antropologia como forma de conhecimento (Id., p.4). na abertura de tais discusses que o uso da imagem na antropologia e no documentrio contemporneo, deva ser pensado como uma possibilidade que no pode mais ser ignorada. Muitos j se debruaram sobre o papel determinante que as imagens assumiram no trabalho antropolgico, mesmo quando s so utilizadas para ilustrar os textos escritos. Esse interesse crescente pelas imagens parece ter razes diferenciadas para os pesquisadores. Para W.J.T. Mitchel, esse pictorial turn foi uma reao ao intenso foco lingstico do estruturalismo ps-guerra, ps-estruturalismo, desconstruo e semitica (Apud MACDOUGALL, 1998, p.61). Outros apontam como razo o questionamento, dentro da antropologia, de formas mais apropriadas descrio etnogrfica. Para Bela Feldman-Bianco, o interesse pela linguagem visual pode ser entendido como uma resposta falncia de paradigmas positivistas e importncia da mdia na vida cotidiana (Ibid., p.11). Esta idia parece pertinente, j que a imagem miditica especialmente fotografia, cinema e vdeo molda valores fundamentais de nossa cultura, influenciando cada vez mais intensamente nossa vida diria. Assim, produzir e analisar imagens pode levar ao entendimento dos valores e transformaes culturais de um grupo ou sociedade. Porm, independente dos motivos, o fato que a representao visual passou a ser vista pelos antroplogos como uma alternativa para o trabalho etnogrfico, seja como tema, como fonte documental, como instrumento, como produto de pesquisa ou, ainda, como veculo de interveno poltico-cultural (Ibid., p. 11). O uso sistemtico das imagens

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incentivou a organizao de acervos de imagem e ncleos de pesquisa e ganhou um significado interdisciplinar que consolidou, na dcada de 1990, o que se convencionou chamar antropologia visual, seguindo o termo usado por Margaret Mead em 1973.13 De forma geral, outros termos se consolidaram, como antropologia flmica, antropologia das imagens, antropologia audiovisual, dentre outros.

2.3.2 Consideraes sobre o documentrio etnogrfico

A produo documentarista sempre foi um dos pontos focais da diversidade de expresses culturais e dos olhares sobre a realidade histrica, estabelecendo um intenso dilogo com as cincias humanas, os movimentos sociais e grupos tnicos, e direcionando as reflexes sobre a organizao social e poltica na educao ou na implementao de polticas governamentais, em vrios pases e perodos. Podemos considerar, assim, que todo filme, como produto da conscincia humana, til histria e antropologia, j que contm informaes que podem se tornar dados para pesquisa e/ou ensino, tanto sobre a cultura do produtor como sobre a cultura do tema, permitindo descobrir o jogo de regras culturalmente especficas que informam sua produo. Entretanto, uma categoria especfica de filmes etnogrficos se firmou na histria do cinema, desenvolvendo-se a partir do trabalho de vrios cineastas-antroplogos. Essas produes, embora diferenciadas,

[...] tm em comum o fato de tomarem como ponto de partida a observao do real, mesmo que, s vezes, essa observao seja algo provocada e que a maneira como o real apresentado possa, de vez em quando, buscar inspirao em alguns procedimentos prprios ao filme de fico (FRANCE, 2000, p. 17).

Publicado no ensaio Visual anthropology in a discipline of words. In: Paul Hockings (org.). Principles of visual anthropology. Haye: Mounton Publishers, 1975.

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O termo cinema etnogrfico foi usado por John Grierson, em 1926, para nomear uma produo criativa, distinta das descries de viagens, dos noticirios e filmes de atualidade. Como dado bruto de registro de uma pesquisa, imagens de uma mulher africana fabricando um pote de cermica, em 1885, estabeleceram as primeiras relaes entre antropologia e cinema. As imagens foram feitas por Flix-Louis Regnault, membro da Sociedade de Antropologia de Paris com o intuito de realizar um estudo comparado do comportamento humano e se inserem nas experincias cronofotogrficas de Jules-tienne Marey e Edward Muybridge, precursores do cinema (BRIGARD, 1975). Regnault havia feito vrios registros na frica e sugeriu a criao de um arquivo de filmes antropolgicos nos museus etnogrficos. Antes de Regnault, segundo Demetrio Brisset, um precedente encontrado na obra de Edward S. Curtis, que por mais de 30 anos realizou documentrios sobre os ndios norte-americanos (BRISSET, 1989). Na mesma linha de anlise, em 1898, so feitos primeiros filmes sobre o trabalho de campo, na expedio ao estreito de Torres que congregou especialistas de diversas reas, coordenados por Cort Haddon, da Universidade de Cambridge (Ibid., p. 16). Entretanto, para Brian Winston, o filme no era ainda considerado parte integrante do trabalho etnogrfico, talvez em funo das dificuldades tecnolgicas (WINSTON, 1995, p. 170). Alguns pesquisadores apontam os antroplogos Patrick OReilly (com o filme Bougainville, 1934) e Marcel Griaule como os pioneiros do cinema etnogrfico, nos anos 1930. Griaule foi um dos primeiros etnlogos a utilizar a imagem animada como auxiliar da pesquisa etnogrfica. Sua obra Masques dogon (1938), primeira tese de doctorat s-lettre em etnologia defendida na Frana, contm, alm de um disco, uma descrio dos ritmos de danas fnebres elaborada graas superposio de uma pauta musical que transpe os ritmos das percusses e de fotogramas desenhados a partir de seu filme Sous les masques noirs. Os fotogramas reproduzem os movimentos dos danarinos e correspondem s indicaes da pauta musical (LOURDOU, 2000, p. 101). Coube a Margaret Mead e Gregory Bateson (1936-38), utilizarem efetivamente a imagem para a anlise cultural do comportamento. Antes de Mead e Bateson, Malinowski dera nfase ao uso do filme como recurso tcnico para a pesquisa, mas no de forma to contundente.

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O fato que, a partir dessas primeiras experincias, os diversos mtodos audiovisuais tm sido utilizados pela antropologia como instrumentos de observao, transcrio e interpretao de realidades sociais diferentes e como instrumentos para ilustrao e difuso das pesquisas, conforme Marc-Henri Piault (PIAULT, 1994). Mas como tcnica antropolgic