Vinganca - Camilo Castelo Branco
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Camilo Castelo Branco
Vingana
Publicado originalmente em 1858.
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
(1825 1890)
Projeto Livro Livre
Livro 442
Poeteiro Editor Digital
So Paulo - 2014 www.poeteiro.com
-
Projeto Livro Livre O Projeto Livro Livre uma iniciativa que prope o compartilhamento, de forma livre e gratuita, de obras literrias j em domnio pblico ou que tenham a sua divulgao devidamente autorizada, especialmente o livro em seu formato Digital. No Brasil, segundo a Lei n 9.610, no seu artigo 41, os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1 de janeiro do ano
subsequente ao de seu falecimento. O mesmo se observa em Portugal. Segundo o Cdigo dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, em seu captulo IV e artigo 31, o direito de autor caduca, na falta de disposio especial, 70 anos aps a morte do criador intelectual, mesmo que a obra s tenha sido publicada ou divulgada postumamente. O nosso Projeto, que tem por nico e exclusivo objetivo colaborar em prol da divulgao do bom conhecimento na Internet, busca assim no violar nenhum direito autoral. Todavia, caso seja encontrado algum livro que, por alguma razo, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentileza que nos informe, a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo. Esperamos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam repensadas e reformuladas, tornando a proteo da propriedade intelectual uma ferramenta para promover o conhecimento, em vez de um temvel inibidor ao livre acesso aos bens culturais. Assim esperamos! At l, daremos nossa pequena contribuio para o desenvolvimento da educao e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obras sob domnio pblico, como esta, do escritor portugus Camilo Castelo Branco: Vingana.
isso!
Iba Mendes [email protected]
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BIOGRAFIA
Camilo Castelo Branco nasceu em Lisboa, no Largo do Carmo, a 16 de Maro de 1825. Oriundo de uma famlia da aristocracia de provncia com distante ascendncia crist-nova, era filho de Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco, nascido na casa dos Correia Botelho em So Dinis, Vila Real, a 17 de Agosto de 1778, e que teve uma vida errante entre Vila Real, Viseu e Lisboa, onde faleceu a 22 de Dezembro de 1890, tomado de amores por Jacinta Rosa do Esprito Santo Ferreira. Camilo foi assim perfilhado por seu pai em 1829, como filho de me incgnita. Ficou rfo de me quando tinha um ano de idade e de pai aos dez anos, o que lhe criou um carter de eterna insatisfao com a vida. Foi recolhido por uma tia de Vila Real e, depois, por uma irm mais velha, Carolina Rita Botelho Castelo Branco, nascida em Lisboa, Socorro, a 24 de Maro de 1821, em Vilarinho de Samard, em 1839, recebendo uma educao irregular atravs de dois Padres de provncia. Na adolescncia, formou-se lendo os clssicos portugueses e latinos e literatura eclesistica e contatando a vida ao ar livre transmontana. Com apenas 16 anos (18 de Agosto de 1841), casa-se em Ribeira de Pena, Salvador, com Joaquina Pereira de Frana (Gondomar, So Cosme, 23 de Novembro de 1826 - Ribeira de Pena, Frime, 25 de Setembro de 1847), filha de lavradores, Sebastio Martins dos Santos, de Gondomar, So Cosme, e Maria Pereira de Frana, e instala-se em Frime. O casamento precoce parece ter resultado de uma mera paixo juvenil e no resistiu muito tempo. No ano seguinte, prepara-se para ingressar na universidade, indo estudar com o Padre Manuel da Lixa, em Granja Velha. O seu carter instvel, irrequieto e irreverente leva-o a amores tumultuosos (Patrcia Emlia do Carmo de Barros (Vila Real, 1826 - 15 de Fevereiro de 1885), filha de Lus Moreira da Fonseca e de sua mulher Maria Jos Rodrigues, e a Freira Isabel Cndida). Ainda a viver com Patrcia Emlia do Carmo de Barros, Camilo publicou n'O Nacional correspondncias contra Jos Cabral Teixeira de Morais, Governador Civil de Vila Real, com quem colaborava como amanuense. Esse posto, segundo alguns bigrafos, surge a convite aps a sua participao na Revolta da Maria da Fonte, em 1846, em que ter combatido ao lado da guerrilha Miguelista.
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Devido a esta desavena, espancado pelo Olhos-de-Boi, capanga do Governador Civil. As suas irreverentes correspondncias jornalsticas valeram-lhe, em 1848, nova agresso a cargo de Caadores. Camilo abandona Patrcia nesse mesmo ano, fugindo para casa da irm, residente agora em Covas do Douro. Tenta ento, no Porto, o curso de Medicina, que no conclui, optando depois por Direito. A partir de 1848, faz uma vida de bomia repleta de paixes, repartindo o seu tempo entre os cafs e os sales burgueses e dedicando-se entretanto ao jornalismo. Em 1850, toma parte na polmica entre Alexandre Herculano e o clero, publicando o opsculo O Clero e o Sr. Alexandre Herculano, defesa que desagradou a Herculano. Apaixona-se por Ana Augusta Vieira Plcido e, quando esta se casa, em 1850, tem uma crise de misticismo, chegando a frequentar o seminrio, que abandona em 1852. Ana Plcido tornara-se mulher do negociante Manuel Pinheiro Alves, um brasileiro que o inspira como personagem em algumas das suas novelas, muitas vezes com carter depreciativo. Camilo seduz e rapta Ana Plcido. Depois de algum tempo a monte, so capturados e julgados pelas autoridades. Naquela poca, o caso emocionou a opinio pblica, pelo seu contedo tipicamente romntico de amor contrariado, revelia das convenes e imposies sociais. Foram ambos enviados para a Cadeia da Relao, no Porto, onde Camilo conheceu e fez amizade com o famoso salteador Z do Telhado. Com base nesta experincia, escreveu Memrias do Crcere. Depois de absolvidos do crime de adultrio pelo Juiz Jos Maria de Almeida Teixeira de Queirs (pai de Jos Maria de Ea de Queirs), Camilo e Ana Plcido passaram a viver juntos, contando ele 38 anos de idade. Entretanto, Ana Plcido tem um filho, supostamente gerado pelo seu antigo marido, que foi seguido por mais dois de Camilo. Com uma famlia to numerosa para sustentar, Camilo comea a escrever a um ritmo alucinante. Quando o ex-marido de Ana Plcido falece, a 15 de Julho de 1863, o casal vai viver para uma casa, em So Miguel de Seide, que o filho do comerciante recebera por herana do pai. Em Fevereiro de 1869, recebeu do governo da Espanha a comenda de Carlos III.
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Em 1870, devido a problemas de sade, Camilo vai viver para Vila do Conde, onde se mantm at 1871. Foi a que escreveu a pea de teatro O Condenado (representada no Porto em 1871), bem como inmeros poemas, crnicas, artigos de opinio e tradues. Outras obras de Camilo esto associadas a Vila do Conde. Na obra A Filha do Arcediago, relata a passagem de uma noite do arcediago, com um exrcito, numa estalagem conhecida por Estalagem das Pulgas, outrora pertencente ao Mosteiro de So Simo da Junqueira e situada no lugar de Casal de Pedro, freguesia da Junqueira. Camilo dedicou ainda o romance A Enjeitada a um ilustre vilacondense seu conhecido, o Dr. Manuel Costa. Entre 1873 e 1890, Camilo deslocou-se regularmente vizinha Pvoa de Varzim, perdendo-se no jogo e escrevendo parte da sua obra no antigo Hotel Luso-Brazileiro, junto do Largo do Caf Chins. Reunia-se com personalidades de notoriedade intelectual e social, como o pai de Ea de Queirs, Jos Maria de Almeida Teixeira de Queirs, magistrado e Par do Reino, o poeta e dramaturgo poveiro Francisco Gomes de Amorim, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Antnio Feliciano de Castilho, entre outros. Sempre que vinha Pvoa, convivia regularmente com o Visconde de Azevedo no Solar dos Carneiros. Francisco Peixoto de Bourbon conta que Camilo, na Pvoa, tendo andado metido com uma bailarina espanhola, cheia de salero, e tendo gasto, com a manuteno da diva, mais do que permitiam as suas posses, acabou por recorrer ao jogo na esperana de multiplicar o anmico peclio e acabou, como de regra, por tudo perder e haver contrado uma dvida de jogo, que ento se chamava uma dvida de honra. A 17 de Setembro de 1877, Camilo viu morrer na Pvoa de Varzim, aos 19 anos, o seu filho predileto, Manuel Plcido Pinheiro Alves, do segundo casamento com Ana Plcido, que foi sepultado no cemitrio do Largo das Dores. Camilo era conhecido pelo mau feitio. Na Pvoa mostrou outro lado. Conta Antnio Cabral, nas pginas d' O Primeiro de Janeiro de 3 de junho de 1890: No mesmo hotel em que estava Camilo, achava-se um medocre pintor espanhol, que perdera no jogo da roleta o dinheiro que levava. Havia trs semanas que o pintor no pagava a conta do hotel, e a dona, uma tal Ernestina, ex-atriz, pouco satisfeita com o procedimento do hspede, escolheu um dia a hora do jantar para o despedir, explicando ali, sem nenhum gnero de reservas, o motivo que a obrigava a proceder assim. Camilo ouviu o mandado de despejo, brutalmente dirigido ao pintor. Quando a inflexvel hospedeira acabou de falar, levantou-se, no meio dos outros hspedes, e disse: - A D. Ernestina injusta. Eu trouxe do Porto cem mil reis que me mandaram entregar a esse senhor e ainda no o tinha feito por esquecimento. Desempenho-me agora da minha misso. E,
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puxando por cem mil reis em notas entregou-as ao pintor. O Espanhol, surpreendido com aquela interveno que estava longe de esperar, no achou uma palavra para responder. Duas lgrimas, porm, lhe deslizaram silenciosas pelas faces, como nica demonstrao de reconhecimento. Em 1885 -lhe concedido o ttulo de 1. Visconde de Correia Botelho. A 9 de Maro de 1888, casa-se finalmente com Ana Plcido. Camilo passa os ltimos anos da vida ao lado dela, no encontrando a estabilidade emocional por que ansiava. As dificuldades financeiras, a doena e os filhos incapazes (considera Nuno um desatinado e Jorge um louco), do-lhe enormes preocupaes. Desde 1865 que Camilo comeara a sofrer de graves problemas visuais (diplopia e cegueira noturna). Era um dos sintomas da temida neurosfilis, o estado tercirio da sfilis ("venreo inveterado", como escreveu em 1866 a Jos Barbosa e Silva), que alm de outros problemas neurolgicos lhe provocava uma cegueira, aflitivamente progressiva e crescente, que lhe ia atrofiando o nervo ptico, impedindo-o de ler e de trabalhar capazmente, mergulhando-o cada vez mais nas trevas e num desespero suicidrio. Ao longo dos anos, Camilo consultou os melhores especialistas em busca de uma cura, mas em vo. A 21 de Maio de 1890, dita esta carta ao ento famoso oftalmologista aveirense, Dr. Edmundo de Magalhes Machado: Illmo. e Exmo. Sr., Sou o cadver representante de um nome que teve alguma reputao gloriosa neste pas durante 40 anos de trabalho. Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego. Ainda h quinze dias podia ver cingir-se a um dedo das minhas mos uma flmula escarlate. Depois, sobreveio uma forte oftalmia que me alastrou as crneas de tarjas sanguneas. H poucas horas ouvi ler no Comrcio do Porto o nome de V. Exa. Senti na alma uma extraordinria vibrao de esperana. Poder V. Exa. salvar-me? Se eu pudesse, se uma quase paralisia me no tivesse acorrentado a uma cadeira, iria procur-lo. No posso. Mas poder V. Exa. dizer-me o que devo esperar desta irrupo sangunea nuns olhos em que no havia at h pouco uma gota de sangue? Digne-se V. Exa. perdoar infelicidade estas perguntas feitas to sem cerimnia por um homem que no conhece. A 1 de Junho desse ano, o Dr. Magalhes Machado visita o escritor em Seide. Depois de lhe examinar os olhos condenados, o mdico com alguma diplomacia, recomenda-lhe o descanso numas termas e depois, mais tarde, talvez se poderia falar num eventual tratamento. Quando Ana Plcido acompanhava o mdico at porta, eram trs horas e um quarto da tarde, sentado na sua cadeira de balano, desenganado e completamente desalentado, Camilo Castelo Branco disparou um tiro de revlver na tmpora direita. Mesmo assim,
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sobreviveu em coma agonizante at s cinco da tarde. A 3 de Junho, s seis da tarde, o seu cadver chegava de comboio ao Porto e no dia seguinte, conforme o seu pedido, foi sepultado perpetuamente no jazigo de um amigo, Joo Antnio de Freitas Fortuna, no cemitrio da Venervel Irmandade de Nossa Senhora da Lapa. So suas principais obras: Antema (1851), Mistrios de Lisboa (1854), A Filha do Arcediago (1854), Livro negro do Padre Dinis (1855), A Neta do Arcediago 1856), Onde Est a Felicidade? (1856), Um Homem de Brios (1856), O Sarcfago de Ins (1856), Lgrimas Abenoadas (1857), Cenas da Foz (1857), Carlota ngela (1858), Vingana (1858), O Que Fazem Mulheres (1858), O Morgado de Fafe em Lisboa (Teatro, 1861), Doze Casamentos Felizes (1861), O Romance de um Homem Rico (1861), As Trs Irms (1862), Amor de Perdio (1862), Memrias do Crcere (1862), Coisas Espantosas (1862), Corao, Cabea e Estmago (1862), Estrelas Funestas (1862), Cenas Contemporneas (1862), Anos de Prosa (1863), A Gratido (includo no volume Anos de Prosa), O Arrependimento (includo no volume Anos de Prosa), Aventuras de Baslio Fernandes Enxertado (1863), O Bem e o Mal (1863), Estrelas Propcias (1863), Memrias de Guilherme do Amaral (1863), Agulha em Palheiro (1863), Amor de Salvao (1864), A Filha do Doutor Negro (1864), Vinte Horas de Liteira (1864), O Esqueleto (1865), A Sereia (1865), A Enjeitada (1866), O Judeu (1866), O Olho de Vidro (1866), A Queda dum Anjo (1866), O Santo da Montanha (1866), A Bruxa do Monte Crdova (1867), A doida do Candal (1867), Os Mistrios de Fafe (1868), O Retrato de Ricardina (1868), Os Brilhantes do Brasileiro (1869), A Mulher Fatal (1870), Livro de Consolao (1872), A Infanta Capelista (1872), (conhecem-se apenas 3 exemplares deste romance porque D. Pedro II, imperador do Brasil, pediu a Camilo para no o publicar, uma vez que versava sobre um familiar da Famlia Real Portuguesa e da Famlia Imperial Brasileira), O Carrasco de Victor Hugo Jos Alves (1872), O Regicida (1874), A Filha do Regicida (1875), A Caveira da Mrtir (1876), Novelas do Minho (1875-1877), A viva do enforcado (1877), Eusbio Macrio (1879), A Corja (1880), A senhora Rattazzi (1880), A Brasileira de Prazins (1882), O vinho do Porto (1884), Vulces de Lama (1886), O clero e o sr. Alexandre Herculano (1850).
Wikipdia
Janeiro, 2014
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NDICE
CAPTULO 1...................................................................................................
CAPTULO 2...................................................................................................
CAPTULO 3...................................................................................................
CAPTULO 4...................................................................................................
CAPTULO 5...................................................................................................
CAPTULO 6...................................................................................................
CAPTULO 7...................................................................................................
CAPTULO 8...................................................................................................
CAPTULO 9...................................................................................................
CAPTULO 10.................................................................................................
CAPTULO 11.................................................................................................
CAPTULO 12.................................................................................................
CAPTULO 13.................................................................................................
CAPTULO 14.................................................................................................
CAPTULO 15.................................................................................................
CAPTULO 16.................................................................................................
CAPTULO 17.................................................................................................
CAPTULO 18.................................................................................................
CAPTULO 19.................................................................................................
CAPTULO 20.................................................................................................
CAPTULO 21.................................................................................................
CAPTULO 22.................................................................................................
CAPTULO 23.................................................................................................
CAPTULO 24.................................................................................................
EPLOGO........................................................................................................
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CAPTULO 1
... El hombre tiene Cosas bien estrafalarias.
Moratin
Em Agosto de 1850, mesa redonda dos Irmos Unidos, em Lisboa, no largo do
Rossio, jantavam dez ou doze pessoas que se no conheciam.
Um dos convivas, escritor provinciano, e tagarela expansivo, escolhera aquela
hospedaria para ter um auditrio certo. Nos primeiros dias sorrira-lhe a fortuna.
Alcanara, em vsperas de partida, alguns deputados minhotos, que se
desforravam, de tarde, com as belfas rubicundas e palito nos dentes, do silncio
religioso com que assistiram, de manh, aos mistrios eleusinos do parlamento.
A eloquncia do escritor portuense no se acanhava em presena dos Cceros e
Hortnsios sertanejos, mormente depois que o afoutou o convencimento de
que no eram eles homens que lha pudessem desdenhar. Algum desses lhe
assoprara tanto as basfias da loquacidade que o audacioso jornalista chegou a
impor as suas doutrinas econmicas aos ouvintes, e estes aceitaram-lhas como
novidade. certo que, na imediata legislatura com grande pasmo dos oradores
notveis, os procuradores reeleitos do Minho, disseram, com desassombro,
algumas sandices, cuja originalidade pertence de direito ao literato que os
iniciara.
Evacuada a hospedaria de deputados, o escritor achou-se com personagens
estranhos, chegados recentemente de vrias direes. Se dirigia a palavra ao
vizinho da esquerda, oferecendo-lhe uma colher de arroz, o comensal aceitava o
arroz e pedia-lhe uma perna de galinha; se pedia ao da direita o pote da
conserva, acompanhando o requerimento com atestados medicinais da virtude
estomquica do pimento, o vizinho grunhia um arroto aprovador, e
atoucinhava a febra triturando silenciosamente, e envesgando um olho famlico
sobre cada iguaria que vinha entrando.
O escritor estava fulo, e mal podia j conter o insulto aos glutes taciturnos que,
apenas devorado o pudim, apertavam os botes dos coletes, e debandavam
cada um para o seu quarto, com as plpebras descadas para roufenharem em
beatfica digesto.
Um dia, porm, justamente nesse jantar por que principia esta histria, Roberto
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Soares, que assim se chamava o jornalista do Porto, repleto de indignao,
ergue a voz quando todas as atenes se concentravam num pentgono de boi
assado, e diz:
Corre em Lisboa que est hospedado nesta casa um prncipe da Etipia. Eu j
disse que nenhum dos meus companheiros era negro, mas redarguiram-me que
o prncipe mulato branco e s pela fala se denuncia. Qual dos senhores o
prncipe, que quero beber sua sade?
Os convivas encararam-se com srio reparo, suspenderam por instantes o
rugido da deglutio; mas no proferiram um monosslabo. Passado o momento
da surpresa, caram, unidos como um s homem, sobre as talhadas do boi, e
Roberto Soares desceu lentamente o brao que erguera o copo para brindar o
prncipe.
Pelo que vejo tornou ele, rufando no prato com duas facas pelo que
vejo, os senhores so todos prncipes da Etipia disfarados, Declaro que hei de
hoje cometer um regicdio. Qual dos senhores tem a cabea mais vazia de
inteligncia que lhe quero introduzir trs onas de chumbo?
Eu aceito o favor, se nenhum destes senhores quiser disse um homem
magro e trigueiro que estava defronte de Soares, procurando o crebro no
crnio duma pescada. E prosseguiu: Aqui estava eu agora procurando a
inteligncia desta pescada, e acho uma cavidade oca, a qual ofereo ao exame
de Vossa Senhoria que, ao que parece, costuma fazer na espcie humana os
estudos que eu fao no peixe cozido.
Roberto Soares fez uma cortesia ao interlocutor, e disse com gravidade:
Vejo que seria uma barbaridade matar um prncipe que promete reinar
ilustradamente. Pois o senhor sabe dizer cousas dessas, e tem-me, h quatro
dias, privado do seu esprito?! Est o meu amigo convidado para conversar hoje
comigo quatro horas, e ento discutiremos qual dos nossos companheiros o
prncipe disfarado.
Os hspedes soltaram um frouxo de riso, olhando-se com ar palerma. O
convidado para discutir a identidade do monarca africano, fez uma visagem
inteligente, que muito aprouve ao escrito. Os dois trocaram-se um olhar
simptico, fazendo assim tcita aliana e conveno para explorarem o
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ridculo dos seus comensais.
Acabado o jantar, ergueram-se todos, exceto Roberto Soares, e o observador de
crnios de peixe.
Como se chama Vossa Senhoria? perguntou o escritor. O menino no v
que eu sou um homem velho?! Essas perguntas fazem-se com mais respeito...
disse, sorrindo, com o clice de genebra ao p dos beios, o hspede.
O senhor no velho... o mais que pode ter so quarenta anos.
Quarenta e nove. Estou direito e rijo, porque participo do temperamento
fsico de Dom Quixote, e do temperamento moral de Sancho Pana. Tenho duas
naturezas, no acha?
O que eu acho que o senhor tem fina chalaa, e no sei como se pode estar,
com tanto esprito, calado, quatro dias, sem corresponder ao desafio da gente.
Eu pensei que o meu caro senhor era um requerente de provncia, uma espcie
de mestre-escola...
Mestre-escola! atalhou, franzindo o sobrolho, e alongando os beios, o
galhofeiro quinquagenrio. Ora essa! E eu cuidava que a minha figura
inculcava um morgado de aldeia, no terceiro perodo duma tsica de algibeira!...
Nem sequer me fez baro! preciso que tenha uma cara muito desusada o
infeliz que to pouco se recomenda! Ento em que ficamos? O que acha o
senhor que eu sou?
No sei; estou quase a perguntar-lho.
Pois eu lhe digo: sou um cavalheiro de indstria. Se Vossa Senhoria fosse
esperto, tinha-me j adivinhado.
E que indstria a sua? disse Roberto Soares, no mesmo tom de
familiaridade.
A minha indstria tudo o que me forra ao trabalho e me abona mais fceis
recursos de subsistncia. Actualmente exero a indstria de caloteiro de
hospedaria: a mais inocente de quantas sei, e tambm a menos engenhosa.
Reduz-se a minha habilidade a estar trs meses em Lisboa com sofrvel mesa e
sofrvel cama gratuitamente. Em algumas repblicas gregas sustentavam-se,
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assim, a expensas do estado, os meninos; bom que em Portugal se estenda
at aos velhos esta salutar providncia.
Est bom!... disse Roberto, torcendo o bigode. O senhor o homem
mais franco que eu tenho visto.
Por uma razo muito simples. Eu no costumo ser assim franco com Vossa
Senhoria porque o reconheo uma pessoa que no pode ser explorada por
algum ramo da minha indstria. O senhor, economicamente falando,
improdutivo. Averiguei quem o senhor era, e disseram-me, c na hospedaria,
que o meu amvel companheiro era literato. No nasceu ainda o engenho
industrial que soubesse entrar nas algibeiras dum literato portugus. Entendeu
bem a explicao da minha franqueza?
O senhor est caoando comigo... No creio o que me tem dito. Acha-me
indigno de ser tratado seriamente?
No, senhor; pelo contrrio. Se me no merecesse to bom conceito de rapaz
sisudo, natural que lhe escondesse a minha profisso, receoso de que
prevenisse contra mim o dono da hospedaria... Disseram-me que Vossa
Senhoria era da provncia, e creio que se chama Roberto Soares. Eu no lhe
posso dizer donde sou, porque no sei onde nasci, nem tenho a certeza de ter
nascido em alguma parte; se, porm, interessa em saber o meu nome, saber
que me chamo, em Lisboa, Macrio Afonso da Costa Penha; e, se me encontrar,
de hoje a um ms, no Porto ou em Coimbra, ter o incmodo de perguntar-me
o meu nome. Que faz o senhor em Lisboa?
Ando atrs dum ministro pedindo um emprego.
Sem esperanas de o alcanar?
Quase. Porque no h de o senhor empregar-se sem depender dos
ministros?
Em qu? O escritor no se sustenta em Portugal.
Quebre o tinteiro na cara dum credor, e inicie-se no meu ofcio.
Na indstria cavalheirosa?
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Est claro.
O senhor comea a fazer-me...
Cavalheiro de indstria?
No, senhor, comea a fazer-me nojo.
que o seu estmago tem sarro: tome alguns chs amargos... Vejo que o
molesta este novo conhecimento... Aqui tem o que lucrou com a sua
curiosidade! Que lhe importava ao senhor Soares saber quem eu era? No o
impaciente o medo das minhas relaes. De ora em diante conviveremos como
se nunca nos tratssemos.
Macrio Afonso ergueu-se, voltou as costas ao escritor, e saiu da sala.
Ao escurecer desse dia, estava Roberto no Caf Suo, e viu entrar o seu
homem, bem trajado de preto, sentar-se a uma banca, tomar caf, e fumar por
um belo cachimbo, com gentis maneiras.
L est o excntrico disse um amigo de Soares.
Quem o excntrico? perguntou este.
Aquele homem do cachimbo.
Conheces?
De vista: um milionrio.
Ests enganado: o que ele ... sei-o eu disse Roberto, sustando a tempo
uma indiscreta revelao.
Pois que ?! No consentes que ele seja milionrio?!
No tem jeito disso; meu companheiro de hospedaria... e...
E qu? Forte razo ser teu companheiro de hospedaria! Se eu te provar que
este homem, h menos de quarenta e oito horas, apresentou letras de cento e
vinte contos, sacadas em Londres, sobre dois negociantes de Lisboa!...
impossvel... essas letras, se existem, so falsas...
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O interlocutor de Roberto riu extraordinariamente, e o milionrio discutido,
chamado pelo rudo da risada, encontrou o olhar penetrante do escritor.
Sem desconceituarmos a nobre altivez de Soares, diremos que ele estava
olhando com um certo ar de acatamento, que no se esconde, o suposto
cavalheiro de indstria, maneira que o seu amigo guarda-livros lhe ia
destruindo a m impresso com que sara do hotel, horas antes.
Macrio Afonso, se que era Macrio Afonso, saiu do caf; e, passando perto
da mesa do escritor, cumprimentou-o de cabea ligeiramente.
Isto um grande celebro! prosseguiu o guarda-livros. Contam-se
muitas anedotas deste homem...
Donde ele?
No sei: disseram-me que teve um grande estabelecimento em Buenos Aires,
e algum me disse que o conhecera no trfico de negros. Penso que foi
negreiro.
Como se chama, sabes?
Ouvi-lhe chamar comendador Penha...
isso... Penha...
Porque dizes tu isso?
Porque ele me disse o seu nome; mas no me disse que era comendador...
De uma ordem brasileira... creio que do Cruzeiro...
Nada, no.
Que importa! Segue-se que modesto... A vai uma esquisitice deste homem.
Quando chegou, h meses, a Lisboa, para se livrar dum cauteleiro importuno,
comprou um bilhete da lotaria, que foi premiado. Chegando ao Largo das Duas
Igrejas ouviu uma conversao de duas senhoras modestamente vestidas,
caminhando a par com ele. Era uma filha censurando asperamente a me
porque empregara metade do seu montepio na compra de um bilhete da lotaria
que sara branco. A me dizia que fora, com o desejo de a fazer feliz, arriscar
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metade do seu po. A filha redarguia-lhe que ela estava demente. O
comendador meteu-se na contenda, e disse: H pessoas muito infelizes nas
lotarias, minhas senhoras. Eu tambm sou teimoso, e ningum como eu tem
sido to cruelmente tratado pela Santa Casa da Misericrdia. Aqui tenho eu na
algibeira um bilhete, com um nmero de palpite: sete, sete, sete. Est
branco?, atalhou a velha. No sei, minha senhora; mas tanta certeza tenho de
que est branco, que o vou rasgar. Sem ver a lista?!, acudiu a moa. Sim,
menina, sem ver a lista... Se o quer, fao-lhe presente dele. A velha aceitou o
bilhete com sofreguido; e chegando ao Rossio, j apartadas do homem que
elas imaginaram um original desfrutador, viram o nmero sete, sete, sete,
premiado com dois contos de ris, em uma lista de casa de cmbio. Conheo
estas senhoras: a velha viva dum capito e a filha uma costureira muito
honesta. Foram elas as que me mostraram este homem no Passeio Pblico, e
acrescentaram que, dirigindo-se a ele um dia para lhe restiturem parte ou todo
o prmio, o comendador, depois de ouvi-las mui cortesmente, lhes dissera que
no tivera nunca a honra de falar com elas.
Isso verdade?! interrompeu Roberto. Ento o homem esteve a
mangar comigo!
Pois que te disse ele?
Fez-me uma confidncia extravagante... Disse-me que era... Desculpa-me a
reserva... Eu no devo contar a mais estranha das suas excentricidades...
Roberto saiu do caf com a inteno de procurar o comendador na hospedaria,
e perguntar-lhe terminantemente o que queria dizer o embuste com que ele
quisera desonrar-se, sem preciso.
Macrio Afonso passeava no Rossio de brao dado com um caixa do tabaco,
homem que recomenda aos respeitos pblicos todo aquele a quem concede a
honra do seu brao. Novas provas para Roberto, que, ao passar por ele,
maquinalmente lhe fez uma grave cortesia de chapu.
Mal posto advrbio este maquinalmente! Ningum corteja em distrao, um
homem que apresenta letras de cento e vinte contos. A presena dum
milionrio ensina mais cortesia que um compndio de civilidade. Para me no
dar ao enfadonho vezo de fazer mximas, vamos ao captulo segundo.
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CAPTULO 2
Che sia il disegno suo, ben io comprendo
E dirollo anco a voi, ma in altro loco.
Ariosto (Orlondo Furioso)
Anoitecera, e Macrio Afonso entrou na hospedaria, onde Roberto Soares o
esperava.
Facto incompreensvel! O escritor queria apresentar-se ao milionrio,
gracejando; mas dominava-o certo acanhamento, timidez ou conscincia de
inferioridade. Esta baixeza de esprito no deslustra o carcter de Soares;
fraqueza em que se abastardaram os nimos, desde que o dinheiro usurpou as
vnias que, noutros tempos, nobilitavam o indivduo rico doutras espcies. A
degenerao comum. Os que bazofeiam pureza, independncia, e iseno so
factores, noutro gnero, da comdia humana. O que salva o poeta de prostituir
o seu esprito matria, honorificada com a primazia do dinheiro, no a
independncia, o pejo, o receio da mofa pblica, receio protector que tem
salvado muito talento de divulgar a ignomnia do corao.
Soares chegara irresoluto porta do excntrico hspede, e disse em tom srio:
O cavalheiro d licena?
Entre quem . Estava-se barbeando o comendador, e, voltando a face,
exclamou:
Ol! Por aqui?! Eu j o recebo, cavalheiro. Deixe-me dar o ltimo gilvaz
nestes ossos descarnados. Est o meu nobre amigo prosseguiu ele com a face
quase encostada ao espelho admirado de me ver barbeiro de mim mesmo
como Lus dezesseis, e como o ltimo dos maltrapilhos, no verdade?
Gabo-lhe a pacincia...
Pacincia e cautela. Quem o homem notvel que confia o seu pescoo a
uma navalha em mo estranha? O que Vossa Senhoria talvez me no conceda
a notabilidade que faz o perigo dos pescoos...
Pelo contrrio disse Soares reanimado. Sei que Vossa Senhoria uma
pessoa qualificada, com o defeito de zombar da credulidade dos provincianos, e
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ultrajar as suas prprias virtudes, se quer escarnecer a boa f dos outros.
O meu amigo redarguiu o comendador voltando-se todo gravemente para
o escritor o meu amigo disse agora a solenssimas palavras! E
prosseguindo o escanhoamento, acrescentou: Com que ento, meu caro
senhor Soares, diz Vossa Senhoria que eu escarneo a boa f dos outros... Essa
confisso j eu lha fiz, quando confessei o que sou. Um cavalheiro de indstria
de que vive, seno de lograr a boa f dos incautos?
No profira Vossa Senhoria mais essas palavras que lhe ficam pessimamente.
O senhor uma pessoa de bem. Um cavalheiro de indstria no d esmolas de
dois contos de ris, nem dispe de capitais que s a honrada indstria acumula.
Vossa Senhoria d-me licena interrompeu, lavando a face, o risonho
milionrio d-me licena que lhe diga que um inocente, por no lhe dar
uma qualificao mais acertada?
Quer dizer que eu sou um tolo?
Roubou-me o pensamento; mas a descoberta fica sendo propriedade de ns
ambos. Deixe-me vestir um chambre, e eu lhe falo com a sisudeza que o caso
pede.
Tudo isto era dito pausadamente, sem afectao, nem ambies de parecer
desusado. Vestido o chambre, o comendador abriu uma caixa de havanos que
ofereceu ao escritor, dizendo:
Isto contrabando... A sua discrio no me h de indispor com o contrato...
Onde Vossa Senhoria tem poderosos defensores, se eu o denunciar...
atalhou, sorrindo, Roberto. Aquele que h pouco lhe dava o brao...
Ah, sim, conhece aquele cavalheiro? Quer o meu amigo dizer com isso que eu
sou homem importante... No tire concluses to seguras de princpios to
incertos. Bem pode ser que eu, na minha conscincia, me sentisse desonrado
pelo contacto daquele sujeito, a quem Vossa Senhoria, na sua ignorncia da
sociedade, concede o poder de nobilitar as pessoas que o tratam ombro a
ombro... Ora diga-me: foi informar-se de mim?
No, senhor; soube casualmente que Vossa Senhoria era uma pessoa distinta
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pela sua fortuna, e pelas suas boas qualidades. Senti que me quisesse afastar de
si, fingindo-se um homem repelente; lembrou-me que o tratei com
desabrimento...
E vem agora pedir-me desculpa?
No direi tanto; venho... entendo que... depois de...
No gagueje, senhor Soares. Vossa Senhoria vem oferecer ao milionrio as
consideraes que negava ao velhaco, ao cavalheiro de indstria. Isso um
erro. Entende que o milionrio sempre digno da venerao negada ao
velhaco? O senhor est corrupto, se me d licena.
Corrupto!... corrupto, no...
Pois transigir com a corrupo o que ?
Vossa Senhoria respondeu, enleado, o escritor rebate-me dum modo tal
que me tolhe a liberdade de responder...
Essa boa!
Acho uma novidade tal no seu carcter, que me parece estar lendo um
romance dos que se no podem fazer neste pas onde tudo trivial.
Outro erro seu. H muitos caracteres de romance na nossa terra. Nenhum
pas tem to rica mina que explorar de cenas trgicas e cmicas. superfcie da
nossa sociedade dos ltimos vinte anos rebenta, todos os dias, um romance.
No h famlia cada e famlia levantada que no tenha um. Os senhores, que
professam as letras, que no sabem, nem estudam na natureza os quadros
acabados que ela lhe oferece.
Que fez Vernet para pintar uma tempestade? Fez-se atar ao mastro dum navio
batido pela tormenta. Que fez Plnio para ver de perto a natureza? Despenhou-
se nas lavas duma cratera. Que fez o anatmico Bichat para estudar os rgos
da vida? Morreu da putrefao dum cadver.
Sem observao no h verdade; sem bases verdadeiras a mais rica imaginao
perde-se no inverosmil. Os escritores portugueses no conhecem da sua terra
seno o potico cu, as saudosas tardes do Estio, e as afeies amorosas que a
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meiguice desta natureza lhes inspira. Isto d-o o corao sem estudo; e o que
convm estudar, para fielmente descrever esta sociedade, tudo o que est
fora do corao, tudo o que pode filiar-se ao materialismo das paixes,
cobia dos gozos corpreos, ambio desenfreada de sacudir os farrapos e a
lama com que por a se entra na carreira da fortuna. Estou-o impacientando?
No, senhor. Ouo-o com religiosa ateno.
Disse o meu amvel escritor que eu lhe pareo um homem de romance. Sou.
Tenho uma histria biogrfica, com que podia fazer-se a reputao dum talento
medocre, porque as cenas da minha vida esto dispostas, acabadas, e atadas,
por um casual maravilhoso, umas s outras. O que faria a desesperao do meu
historiador so os poucos quadros amorosos que eu tenho na minha vida. H
nela uma s paixo doce, um s osis de sentimentos temos. O mais so tudo
reminiscncias turvas, abismos evocando abismos, uma genealogia de desgraas
e crimes, que perderia a unidade da ao, se o meu historiador as quisesse
entremear de paragens agradveis ao esprito fatigado do leitor.
No cuide que lhe vou contar a minha vida. Seria engraada cousa um homem
de cinquenta anos, fazendo seu confidente um moo de... Quantos anos tem o
senhor?
Vinte e quatro.
Pois a tem: h incompatibilidade nos nossos espritos. No nos poderamos
entender; nem... porque no hei de eu ser franco? Nem o senhor exerce em
mim a ao poderosa que obriga o corao a abrir-se.
Nem eu de tal presumia atalhou Roberto Soares. Como h de merecer-
lhe confiana um rapaz que Vossa Senhoria tratou como rapaz? Muito lhe devo
eu j pela seriedade com que, talvez sem o querer, Vossa Senhoria me tem dito
o que realmente creio que sente. A sua estima h de ser difcil de granjear-se; e,
se eu lha no merecer pela simpatia da inteligncia, no tenho esperanas de
alcan-la com outros merecimentos. Sou ao menos digno de saber o seu
verdadeiro nome?
O meu verdadeiro nome! Todos os nomes so verdadeiros, logo que a
sociedade nos reconhece por eles. Chamam-me, j lho disse, Macrio Afonso.
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Vossa Senhoria comendador duma ordem brasileira? Sou; mas isso creio
que no nome; tambm sou comendador de duas ordens portuguesas; e,
ainda mais, chamam-me baro. J v acrescentou ele baixando o sobrolho, e
pousando a mo no ombro de Soares j v que me tem dado umas senhorias
pouco lisonjeiras, e que o seu informador no est ao par das graas que Sua
Majestade faz aos benemritos. Tenho, pois, a honra de lhe apresentar o meu
alter ego, e desculpe o latim, o meu baro da Penha, rogando-lhe que me no
apresente como tal aos nossos companheiros da mesa redonda, que
naturalmente sero todos bares, e eu no quero camaradagem, nem os quero
ouvir, para me no arrepender da igualdade ignbil, que me custou no sei
quanto.
O cavalheiro de indstria metamorfoseou-se. Mostrei-lhe o que se pode ser
antes de ser-se baro; quis dever-lhe uma hora de recreio, porque, em verdade,
estive divertido enquanto tratei o meu jovem amigo com a mesma galhofa com
que o senhor se quis relacionar com os seus comensais. No sei se est
contente com satisfao...
Mais do que devia esperar... Foi uma das excentricidades de Vossa
Excelncia...
Agora vou vestir-me. Tenho o sarau do visconde de Vila Seca. No sei quem
o visconde de Vila Seca; mas fui apresentado ontem viscondessa em casa dum
meu amigo, e hoje recebi um carto. Quer que eu o apresente? V preparar-se.
Se Vossa Excelncia me quer dar essa honra, irei.
O senhor no est relacionado?
Vim a Lisboa como pretendente. Conheo algumas notabilidades que me
prometem proteo; mas no me convidam para sua casa.
O senhor que pretende?
Um emprego numa repartio qualquer.
pobre?
Tenho vivido escassamente do meu trabalho literrio.
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Tem famlia?
Tenho me.
Que vive da sua proteo?
Eu no podia dar-lha. Minha me sustentada por uma irm que est em
pouco melhores circunstncias. H dez anos que est paraltica.
Pobre senhora! Est bom; falaremos muito. V vestir-se, que j a est a sege.
CAPTULO 3
...Nuit de mystre!
V. Hugo (Le Roi sam use)
O visconde de Vila Seca era um fidalgo das ltimas rebentaes da provncia.
Tinha casa no Porto, e achava-se em Lisboa para contentar os caprichos da
viscondessa, que se queixava de morrer de aborrecimento na sua terra.
O visconde chamava-se Antnio Jos, e a viscondessa Maria do Rosrio.
Oravam pela idade um do outro, de cinquenta e cinco a sessenta anos, pouco
mais ou menos.
Maria do Rosrio servira no convento de Monchique desde 1804 at 1808. A
invaso francesa, no Porto, mudou-lhe o destino de vida. Fugindo com a freira,
sua ama, teve o aparente infortnio de ser prisioneira dum oficial francs, que,
tambm cativo dos agrados, e condodo das lgrimas da moa, a levou consigo
na retirada. A ama foi menos feliz, porque, desinfectado o Porto da peste
francesa, entrou no seu convento, onde morreu em cheiro de santidade. Os
contemporneos desta esposa do Cordeiro dizem ser ela a autora das Cartas
duma Religiosa Portuguesa traduzidas pelo presbtero Francisco Manuel do
Nascimento. Isto no est averiguado.
Vamos Mariquinhas, que o essencial.
O francs morreu em Waterloo, e a moa achou-se desamparada. Um cirurgio
portugus, empregado nas ambulncias do exrcito invasor, tomou conta da
formosa patrcia. Feita a paz geral, o cirurgio voltou ptria, e to afeioado
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vinha moa que a fez sua mulher, em Lisboa. D. Maria do Rosrio enviuvou em
1818. Era ainda bela nos seus vinte e oito anos; mas ficara pobre. Anunciou-se
como mestra de francs em casa particular, e foi logo assoldada para educar as
filhas de um fidalgo.
O fidalgo era vivo. Namorou-se da mestra, tentou-lhe a virtude, e apaixonou-
se com a resistncia. Antes de enlouquecer, resolveu casar-se. Pediu perdo da
ignomnia aos indignados avoengos de lona, que o encaravam severos na sala
dos retratos, e declarou-se inflexvel mestra. D. Maria preparava e esperava
este desfecho. Aceitou com desdm, dizendo que a sua nica ambio era a
virtude.
Souberam-no os parentes do fidalgo, e tramaram estorvos de modo que o
casamento foi dilatado.
Entretanto fizeram saber a D. Maria do Rosrio que o fidalgo tinha uma perna
podre. A enojada viva inspeccionou o quarto, e efectivamente descobriu
vestgios de podrido nos unguentos e fios que o noivo escondia. Isto
desanimou-a.
Os parentes conheceram a mudana, e aplaudiram-se do expediente; mas a
viva do cirurgio dava ares de querer transigir com a perna lzara. Os
interessados no desmancho do casamento urdiram nova intriga. Ofereceram
noiva alguns contos de ris para sair da casa, acompanhando a proposta de
razes que a convenceram de que ficaria pobre, por morte do marido, e seria
sempre repelida da convivncia dos herdeiros. Venceram. D. Maria do Rosrio,
inexorvel s lgrimas do fidalgo, saiu com alguns mil cruzados, e foi para o
Porto, onde tinha parentes.
No Porto, informou-se dos parentes, e soube que tinha uma irm casada com
um guarda da alfndega, um irmo anspeada na polcia, e outro barqueiro no
Douro.
Envergonhou-se da parentela, e no se apresentou a nenhum.
Em doze anos de ausncia, as feies da criada de Monchique estavam
desfiguradas, posto que belas ainda. Os seus parentes, se a vissem, trajada
senhorilmente, no a conheceriam. No obstante, Maria foi morar nos
arrabaldes. Alugou uma casa na Ramada Alta, pouco depois comprou uma
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quinta nos campos de Cedofeita, e deu que sofrer curiosidade dos vizinhos.
Antnio Jos, a por 1827, casou-se com D. Maria do Rosrio.
Quem era, porm, Antnio Jos que venceu a resistncia da dama misteriosa,
perseguida pelos lees distintos daquela poca, Alcoforados, Correias, Cirnes,
Leites e outros cujos descendentes cederam a lia aos filhos dos seus
escudeiros?
o que havemos de saber, quando for tempo, e pode ser que seja logo.
O baro da Penha apresentou-se viscondessa de Vila Seca, dizendo:
Vossa Excelncia vai honrar-me com o conhecimento do senhor Visconde, e
eu lhe rogo que aproveite o ensejo para duas apresentaes: o senhor
Roberto Soares, que eu tenho a honra de colocar no nmero dos admiradores
das qualidades de Vossa Excelncia.
No do Porto este senhor? disse a viscondessa.
Sim, minha senhora respondeu o escritor. Eu conhecia-o j de nome
pelos seus chistosos folhetins, e bonitos versos. Desejava conhec-lo
pessoalmente, e pedi a alguns amigos do Porto que mo apresentassem; mas,
talvez por inveja ou antipatia, disseram-me que Vossa Senhoria alm de ser
muito satrico, era extremamente soberbo.
Caluniaram-me, senhora Viscondessa. A casa de Vossa Excelncia no podia
inspirar-me stiras, e a sua enfraquecida amabilidade com as pessoas inferiores
no provocaria a minha soberba.
Assim mo disseram redarguiu a viscondessa e eu temi-o. Donde se
conhecem? continuou, voltando-se para o baro da Penha.
meu parente disse o baro.
Sim? Pois Vossa Excelncia tem parentes no Porto?
Sim, minha senhora. Roberto Soares pasmou da excentricidade, mas
vangloriou-se do improvisado parentesco. O visconde, que passava, abrindo
caminho aos chares da neve, recebeu os dois apresentados, fazendo uma
profunda reverncia ao baro, e reparando com visvel desagrado em Roberto
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Soares. Os grupos intermearam-se, separando o dono da casa. O baro disse ao
escritor:
Fica na inteligncia de que meu sobrinho?
Esse ttulo mais lisonjeiro que o de amigo. Parece que sinto o corao de
Vossa Excelncia. V-me sem nome, no meio desta gente, e quer dar-me um
nome.
Um outro literato veio apertar a mo de Roberto Soares: era um homem, que
vs conheceis, leitores, se tendes lido duas crnicas de infortnios que vos dei
com os ttulos Onde est a Felicidade? e Um Homem de Brios: era o amigo de
Guilherme do Amaral e da viscondessa de Amares.
Roberto devia favores a este moo, que o tirara da obscuridade, inculcando os
seus ensaios literrios, e o remediara na penria, franqueando-lhe metade dos
seus pequenos recursos. Roberto Soares era grato, e quis dar ao seu amigo o
amigo que o trouxera ali. Em poucas palavras preveniu o baro, e ambos
procuraram o literato para o fazerem do seu grupo.
O carcter franco deste ltimo agradou ao milionrio. Travaram larga
conversao em que predominava o colorido local, e vieram crtica, logo que o
poeta conheceu que falava a um homem que a fazia destramente, aplicando
custicos epigramas a todos e a tudo com uma seriedade que revelava um
homem de boa roda e fino esprito.
lcito sindicar a vida do dono da casa? perguntou o baro.
respondeu o poeta porque o dono da casa o primeiro cidado nesta
repblica.
O senhor conhece este visconde?
Tenho impressos na memria os apontamentos da biografia do senhor
Antnio Jos.
Antnio Jos! interrompeu, como surpreendido, o baro. Conheci um
homem com esse nome econmico.
Ser ele. Veja l Vossa Excelncia. Confronte as suas reminiscncias com os
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meus apontamentos. Antnio Jos foi desde mil oitocentos e nove at mil
oitocentos e vinte e trs, pouco mais ou menos, criado dum desembargador do
Porto, cujo nome tinha nos meus apontamentos.
O baro da Penha deu um sbito sinal de profunda ateno; ia soltar uma
palavra; mas susteve-se num ... em que o historiador no reparou,
continuando:
Este desembargador era rico. Sabia-se que ele escondera num falso um
grande capital, quando os franceses invadiram o Porto. Em mil oitocentos e
vinte e trs ou vinte e quatro, morreu o desembargador, e os filhos, ou
herdeiros no acharam um cruzado para lhe fazerem o enterro. Um amigo
particular do defunto disse que sabia onde estava o dinheiro: desceram ao falso,
e encontraram teias de aranha, exceto no local onde se conhecia que estivera
depositado um caixo. A justia no tinha seno suspeitas para perseguir o
ladro.
Antnio Jos era duma aldeia do Douro. Foi para a sua terra, e negociou em
vinhos, primeiro em pequena escala, depois como grande comerciante,
denominando-se feitor dum nome emprestado. Em mil oitocentos e vinte e
sete, o negociante de vinhos estava relacionado no Porto com os capitalistas, e
representava na companhia um dos maiores acionistas. Dizia-se a meia voz que
era um ladro descarado, mas ningum ousava dizer-lho de frente.
Em mil oitocentos e vinte e sete... Est Vossa Excelncia espantado da minha
memria de datas?
Estou, decerto! admirvel...
A minha pacincia, ou a minha curiosidade?
Tudo.
Isto tem-me custado muito, senhor Baro. um trabalho sem recompensa.
Os contemporneos so sempre ingratos; mas a posteridade abenoar o
homem laborioso, que vai gastando a sua mocidade na inspeo das torpezas
do seu tempo, para poder, como Rousseau, estampar na face dum livro: j'ai vu
les meurs de mon temps. E, depois, meu caro senhor, preciso dar desforra ao
talento. Sinto no o ter para arrastar estes homens em vida pela lama donde
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saram; mas o que posso fazer, fao-o: vou delineando no romance, embora
imperfeito os traos essenciais dos retratos, que um gnio por vir aperfeioar,
desenliado das convenincias de sociedade, que so o freio indecoroso do
talento servil e envilecido.
Dizia, eu...
Que em mil oitocentos e vinte e sete... lembrou o baro.
Em mil oitocentos e vinte e sete, Antnio Jos comprou uma quinta em
Ramalde, nos subrbios do Porto, chamada Vila Seca. Passando amiudadas
vezes para a quinta, viu na Ramada Alta esta mulher, com quem casou. No
pude at hoje colher notcias exactas acerca dela. Sei, porm, quem as possui, e
espero, mais tarde, se houver de historiar esta gente, poder decifrar quem era
Maria do Rosrio. Est discutido o dono da casa.
Agora disse o baro erguendo-se vamos v-lo ao p: a plstica uma
cincia auxiliar da esttica. Quero ver a cara do ladro reabilitado. Os senhores
no imaginam quanto este homem me interessa!
E dali foram em cata do visconde de Vila Seca. O baro da Penha parou em
frente dele, encarando-o imvel, penetrante, terrvel. Roberto Soares viu nos
olhos do seu recente amigo uma expresso sinistra, e segredou algumas
palavras ao ouvido do poeta.
O visconde dirigiu-se ao hspede que o fixava, e disse:
Ento Vossa Excelncia est satisfeito?
Muito satisfeito. Esperava ocasio oportuna de perguntar a Vossa Excelncia
a que horas amanh o encontro em sua casa, com vagar para uma entrevista de
alguns minutos.
Isto foi dito de modo que os dois literatos o no ouviram.
Do meio-dia para uma hora, querendo Vossa Excelncia respondeu o
visconde
Serei pontual hora que me indica e voltou-lhe as costas, logo que algum
o distraiu.
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Em seguida, disse a Roberto Soares:
O senhor, se est bem, deixe-se ficar; eu retiro.
Vamos disse Soares.
Est incomodado?
No: estou aborrecido. Um baile aos cinquenta anos uma violncia
natureza caduca. Meu caro senhor prosseguiu ele, dirigindo-se ao amigo de
Roberto eu no ofereo a minha amizade por delicadeza. Aperte esta mo de
amigo, e honre o meu quarto nos Irmos Unidos quando no tiver cousa melhor
em que se empregue. Eu andaria toda a minha vida a procur-lo, se soubesse
que Vossa Senhoria me contaria a histria de Antnio Jos.
O literato seguiu-o at sege, sem mais lhe ouvir uma s palavra. O mesmo
aconteceu a Roberto at apearem na hospedaria. Querendo acompanh-lo ao
quarto, Soares viu uma notvel alterao de feies no seu amigo. Ia tentar uma
indagao, quando o baro lhe disse:
Deixe-me agora, que preciso ficar s.
O escritor saiu. O baro ps a face entre as mos, pendeu-a sobre a mesa, e
assim permaneceu longo tempo.
Quem o visse, depois, luz amortecida duma vela, tem-lo-ia. Parece que o
fogo de dentro lhe ressequira a epiderme; que o inferno interior lhe chamejava
nos olhos; que, do trabalho aflitivo daquela hora de recolhimento, sara uma
resoluo de homicdio.
CAPTULO 4
Tefles sont les fortunes qu'on peut apefier ridicules,
et qui I'etoient encore plus autrefois qu'aujourd'hui
par le contraste de la persone et du faste dplac.
Duclos (Mwurs)
Temos o baro da Penha na sala de espera do visconde de Vila Seca. Passeia,
como impaciente, duma extrema outra, e v-se que faz sobre si impotente
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esforo para afectar tranquilidade. Ser a demora do antigo Antnio Jos,
criado do desembargador, que lhe fere o amor-prprio? No pode ser to-
pouco. O baro da Penha modesto com grandes e pequenos. Aquele frenesi
deve de ser uma dor muito de dentro convertida em raiva. O homem, que ele
espera, deve ser-lhe um ente muito odioso.
O visconde abriu a porta da sala imediata, culpando-se e desculpando-se da
demora, porque estava ainda recolhido.
Sinto t-lo incomodado, senhor Visconde disse o baro simulando o
sobressalto, e humedecendo com a lngua os lbios que pareciam arados pela
febre mas Vossa Excelncia deu-me esta hora, e eu acusar-me-ia de pouco
respeitador, sendo menos pontual. De mais, urgia a necessidade de falar-lhe,
porque a minha sada de Lisboa est para breve.
Pois vai-se? atalhou o visconde.
Breve, meu caro senhor. Antes de cumprir a comisso que me fez cortar o
sono de Vossa Excelncia, preciso lembrar-lhe que a nossa entrevista no deve
ser interrompida. Rogo-lhe, portanto, que providencie de modo que nos no
estorvem, nem ouam.
Isso fcil; fecha-se esta porta, e diz-se que no estou em casa.
O visconde ordenou ao escudeiro que ningum entrasse na sala, e fechou a
porta.
O baro, depois de mudo intervalo em que relevava desordem ou guerra de
pensamentos contrrios, falou assim:
A comisso espinhosa, senhor Visconde.
Qual comisso?! interrompeu o boal, que tremia do resultado duma
questo de papis de crdito comissionada a indivduos da agiotagem.
A comisso que me encarregou um homem que encontrei no Rio da Prata,
onde fiz, h poucos meses, uma excurso comercial.
algum plano de navegao entre Portugal e Brasil? So negcios muito
arriscados, senhor Baro.
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Rogo-lhe o favor de me no quebrar o discurso, senhor Visconde. No se
trata da cousa mercantil.
Ah! eu pensei... faz favor de dizer...
O homem que encontrei pediu-me uma esmola, favoreci-o porque era
extrema a sua misria, e ouvi-lhe a histria. Disse ser natural do Porto, filho do
desembargador Jernimo de Abreu e Lima.
O visconde descorou, empalideceu, desfigurou-se, e tremia.
O baro fingiu-se estranho ao alvoroo, e prosseguiu:
Perguntei-lhe como descera desgraa de mendigar. Respondeu-me que
sara de Portugal para cumprir degredo de vinte anos em Cabo Verde. Cumprido
o degredo, no quisera voltar ptria, disse ele, porque a ptria a famlia, so
amigos, o torro que d subsistncia; e ele, s e pobre e repelido pelos que o
amavam antes do seu crime, no tinha j agora ptria nenhuma. Sara de Cabo
Verde um navio para a Amrica, e Constantino de Abreu e Lima assim me
disse chamar-se foi como marujo. Enganaram-no as esperanas. Ningum
deu trabalho e po ao condenado de Cabo Verde, e o desgraado chegou aos
cinquenta anos, com a cabea branca, e a decrepitude dos setenta, pedindo
esmola.
Disse-me mais este homem que em casa de seu pai, ao tempo da sua morte,
havia um criado, chamado Antnio Jos... No descore, senhor Visconde,
porque bem v que eu deso a voz, e o que entre ns se passa um segredo.
Vossa Excelncia empalidece talvez por compaixo do filho de seu amo...
nobre essa comoo; gosto dela como prognstico de que hei de sair bem do
meu empenho.
O criado do desembargador, disse Constantino, era um fiel amigo daquela
casa. Esta virtude de Antnio Jos honra muito o actual visconde de Vila Seca.
Tenha Vossa Excelncia um nobre orgulho de ter sido um fiel criado, e um
amigo, que se faz lembrado, depois de vinte e tantos anos, a duas mil e
quinhentas lguas de distncia.
Como Constantino de Abreu e Lima soube que Vossa Excelncia chegou a esta
alta posio na sociedade, isso que eu no sei: o certo que ele o sabe, e duas
-
22
vezes me disse que a base dos grandes haveres de Vossa Excelncia devia
necessariamente ser a virtude, porquanto a probidade de seu nimo era incapaz
de consentir cobia bens de fortuna adquiridos pela desonra. Depois que
cheguei a Portugal, conheci que o amo de Antnio Jos fazia inteira justia ao
seu criado.
Quer Vossa Excelncia agora saber o que falta? Deve t-lo conjecturado. O
filho do desembargador Jernimo de Abreu e Lima encarregou-me de solicitar
de Vossa Excelncia uma esmola para ele, esmola com a qual possa vir morrer a
Portugal, depois de abraar os joelhos do seu benfeitor.
O visconde estava fulminado. O pesadelo era horrvel. O homem queria
convencer-se de que sonhava; mas o olhar penetrante do baro era atrozmente
real. Fazia lstima o aniquilamento deste miservel! A conscincia da
prostrao, que o estava delatando, dera-lhe coragem para falar, quando o
baro se antecipou:
natural o espasmo em que o deixou a triste histria. Vossa Excelncia est a
ver o filho de seu amo, com todos os regalos da vida, h vinte e trs anos, e
imagina-o agora andrajoso, velho, estendendo a magra mo caridade... O
contraste destas duas situaes faz-me doer o corao a mim, que no conheci
Constantino na prosperidade, que far a Vossa Excelncia que o viu crescer nos
regalos de filho nico, esperanoso herdeiro dum grande patrimnio, que se
supe enterrado!? Diz ele que seu pai devia ter o melhor de quarenta contos,
havidos de herana paterna e dos bons lugares que exercera na magistratura,
isto verdade, senhor Visconde?
Sim... ele dizia-se, que havia dinheiro... mas...
No apareceu.
Nem algum deu indcios dele existir escondido?
Parece-me que algum disse... que o desembargador tinha dinheiro...
Sim, num falso, desde a invaso dos franceses; mas...
No havia l nada...
E at foi necessrio esmolar-lhe o enterro, e vender a livraria para pagar o
-
23
aluguer da casa...
verdade. E talvez o dinheiro exista... quem sabe?...
Pode ser... s vezes...
Pois, senhor Visconde, o que certo o infortnio de Constantino, e Vossa
Excelncia vai dar-me urna prova de que tem pena deste homem.
Enfim, o caso faz pena; e eu, se pudesse faz-lo feliz...
Pois no pode?
Alguma cousa posso; mas no tanto como a minha vontade... Entretanto,
alguma cousa darei... Posso pagar-lhe a passagem para c, e depois... veremos o
que se pode fazer.
Depois, concorreremos ambos para lhe segurar a subsistncia com uma
penso, no acha?
Sim... disse, hesitando, o visconde ou arranja-se-lhe um empreguito na
Cmara, ou por a...
verdade... a influncia de Vossa Excelncia decerto conseguir empreg-
lo... numa alfndega, onde h uns lugares de doze vintns... acho que so
guardas...
Justamente...
O filho do desembargador no ter decerto ambies de figurar...
Pois ele... o que faltava!... Est claro...
verdade que eu achei no homem espritos elevados; at me pareceu ter tal
ou qual instruo... Vossa Excelncia h de lembrar-se se ele se dava ao
estudo...
Sim, ele andou em Coimbra dois anos, e dizia o pai que havia de ser um sbio;
mas era extravagantezito... Aquele casamento...
verdade... parece que houve a uma histria de casamento...
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Com uma rapariga pobre...
Que ele no sabe se viva ou morta...
Nem eu... ela por l ficou pelo Porto.
A pedir esmola, talvez!
Acho que sim... o mais provvel.
E Vossa Excelncia talvez a socorresse...
Nunca me apareceu... Se a visse, dava-lhe a minha esmola; mas cuido que
no viveu muito depois que ele foi degradado.
Muito bem. Consegui apiedar a sua generosidade. Eu dou ordem ao meu
correspondente de Buenos Aires para fazer procurar Constantino, e agenciar o
transporte dele para Portugal. A valiosa esmola que Vossa Excelncia se dignou
oferecer, aceit-la-ei quando lhe aprouver...
Quanto ser necessrio? Cem mil ris, creio eu.
Acho de mais! Por trinta a quarenta mil ris... do Rio ao Porto... ou Lisboa...
Mas eu tomo a liberdade de lembrar a Vossa Excelncia o transporte de
Buenos Aires ao Rio, a necessidade de o vestir, porque o vi quase nu, et cetera...
Sim, sim; pois se o senhor Baro quer agora receber, eu dou-lhe ordem para
o meu guarda-livros...
Como queira, senhor Visconde.
E vou pedir-lhe um favor.
Queira mandar.
Segredo a este respeito.
Ento Vossa Excelncia segue em rigor a mxima do Divino Mestre; que a
mo esquerda no sabia o que d a direita?... a excelncia da caridade a sua
recomendao.
E outra cousa... No quero que ele me venha agradecer... O que puder fazer,
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25
fao-lhe; mas nada de agradecimentos.
Sendo a gratido o prazer que o homem caridoso tem neste mundo, o senhor
Visconde, com os olhos postos em Deus, dispensa esse acto de humildade... o
refinamento da grande virtude crist. Tudo se far como Vossa Excelncia quer.
O visconde saiu a escrever a ordem. O baro da Penha, s, comprimindo a
fronte com as mos, murmurou:
Que grande fora tem o homem!... No me abandones, minha coragem!
E sentou-se convulsivo, levando cabea a mo direita fechada, e arrepelando
com a esquerda um feixe de cabelos brancos. Era a reao duma ideia feroz,
que se manifestou em toda a sua fria, quando a prudncia e o clculo se
gloriavam dum triunfo sobre o dio.
E que dio! Que lacerao dolorosa a daquele dilogo! j se ouviam os passos
do visconde ao p da sala, quando o baro proferiu estas palavras:
Este homem est condenado!... As agonias da morte dele principiam hoje.
Aqui est, senhor Baro disse o visconde, com mal disfarado
agastamento.
Esta esmola das que rendem cento por um respondeu o baro, mudando
prodigiosamente o semblante.
A minha fortuna no to grande, como se diz...
S-lo-, senhor Visconde.
O negcio tem reveses...
No importa... Aquele que foi levantado pela virtude no pode ser abatido
pela fortuna.
CAPTULO 5
Oh! no sabe o que tormento, o que inferno neste
mundo,
o que no sofreu destas angstias!
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Garrett (Viagens na Minha Terra)
Agora me levantarei, diz o Senhor,
para acudir aos gemidos dos pobres.
Salmo II, 113
Na Rua da Murta, na cidade do Porto, mora em uma casa, pobre no exterior, e
pobre na moblia, Jorge Ribeiro, que fora empregado na companhia dos vinhos,
e agora no tem emprego, porque cegou. Figura cinquenta e tantos anos; e
casado com uma irm de Leonor Soares, me de Roberto Soares.
Jorge Ribeiro economizara alguns sobejos do seu bom ordenado para a velhice;
mas a necessidade antecipou-se com a cegueira. Ao cabo de trs anos de
inactividade e desamparo, Jorge vendeu as jias de sua mulher, vendeu o
faqueiro, vendeu o bragal, vendeu os melhores mveis, e principia a vender as
camisas, quando o senhorio da casa, desembolsado do quartel de dois anos, lhe
envia um mandado de despejo e outro de penhora.
O cego recebe serenamente esta notcia; estende a mo descarnada mulher
que lha d, chorando, e murmura:
No chores, Helena. Morrer debaixo do cu ou debaixo das cortinas dum
leito rico, sempre morrer. Deus, que nos reduziu a isto, nos d o destino que
for de sua divina vontade.
E a nossa pobre irm?
A nossa pobre irm ir para onde ns formos.
E para onde vamos ns?
E para onde vo as avezinhas que Deus alimenta? Destino certo, nesta vida,
h um s: o da sepultura. Iremos ao acaso. Se os meus antigos amigos me no
negarem a primeira esmola que lhes peo, viveremos da caridade... pouco
tempo ser. Nem eu nem tu temos corao para este golpe. A nossa Leonor, se
a pudermos alimentar no seu leito, dividiremos ao meio o nosso po esmolado;
se no pudermos, vamos Misericrdia pedir que lhe dem uma cama, e um
esquife, pouco depois. Entretanto pode ser que o nosso sobrinho alcance um
emprego; e o pobre rapaz h de ser grato aos sacrifcios que temos feito para a
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27
sua educao literria, que de to-pouco tem valido a ele e a ns. O dinheiro,
que lhe arranjamos para ir a Lisboa, remediar-nos-ia agora... Oxal que ele o
aproveite... Nada de lgrimas, filha. Esto a j os oficiais de justia? Que vo
tomando conta de tudo, e ns sairemos depois...
Oh! Que situao to desgraada a nossa! exclamou, sufocada, D. Helena.
Ao que ns chegamos, Jorge!
Tens razo, Helena, chegamos desnudez e fome; mas vem aqui ao p de
mim, d-me a tua mo... ainda no esgotamos o clice do infortnio, minha
pobre mulher. Tens a tua vista para me guiares porta dos benfeitores. Se Deus
te cegasse, ainda assim, esperaramos que a mo da justia nos fosse tambm a
mo da misericrdia...
Um homem de aspecto duro entrou na sala, quase nua, onde se passava este
lance, e disse que era necessrio despachar que estava o depositrio espera,
e os louvados tinham que fazer.
Pois ento faam a penhora disse Jorge Ribeiro com tranquilidade. Est
neste quarto prximo uma senhora entrevada, e queria eu saber se lhe ho de
levar tambm a cama, para a passarmos para o sobrado.
Isso l com o senhorio respondeu rudemente o oficial de diligncias.
Mande-lho perguntar.
No h por quem; se o senhor tivesse a caridade...
De l ir? No posso, que o senhorio mora longe; mas o que pode fazer-se
avaliar-se o leito, e depois eu digo ao homem o que h, e ele far o que quiser.
Pois sim; mas deixe-me ir prevenir a doente, antes de l entrarem. Podem ir
tomando conta do resto, e oxal que tudo chegasse para o embolso do
senhorio... Helena, vamos ao quarto de tua irm.
Jorge, conduzido pela mulher, entrou no quarto de Leonor. Estava a enferma
sentada em um pobre leito, sem coberta, com o velho cobertor aconchegado
barba.
J sei tudo disse Leonor. Eu tenho mais nimo que a nossa Helena,
mano Jorge. Deus parece que d aos mais desgraados a maior pacincia.
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Arranjai-me um lugar no hospital; irei daqui para l. Ireis l ver-me todos os
dias, e depois nos veremos todos na bem-aventurana dos que choram. Vede se
podeis salvar os poucos livros de meu filho, que so os utenslios do seu oficio, e
tanto vos custaram a vs, e a ele; pelo menos, escondi aquele livro, que ele
estima tanto, por ser o nico objecto que tem de seu pai. Dai-mo para aqui,
andai, que eu escondo-o entre a roupa. O mano Jorge bem sabe qual era; tem
um letreiro por fora que diz: ANAIS DE TCITO. Vai tu busc-lo, Helena, vai
depressa, que eu tenho muito amor quele livro; foi o nico que ele no
vendeu, porque o tinha emprestado.
Helena entrou numa pequena alcova, onde, alm dum velho leito de pau preto,
havia uma mesa de jogo aberta, com um tinteiro de loua, alguns papis
escritos, e duas dzias, ao muito, de livros, sobre a mesa, e uma cadeira que
servia, ao mesmo tempo, de lavatrio.
Procurando o livro no o encontrou; veio diz-lo irm, que exclamou com
alegria;
Ainda bem que o levou meu filho! No vos disse eu que ele sofreria muito se
lhe tirassem aquele livro? Os outros, se lhos levarem, pacincia. Deus o ajudar
a comprar mais. Arranjar ele o emprego? Hoje dia de correio, e, se houver
carta, no pode tardar. Nosso Senhor se compadea de todos ns, e toque em
favor do meu filho o corao do ministro.
Correio! foi uma palavra que fez estremecer os coraes destes trs infelizes.
Vai, vai, depressa, Helena! exclamou a me de Roberto Soares. Tendes
vs com que pagar o porte da carta?
Helena tinha sado sem indagar esta circunstncia. Jorge no respondera
pergunta. que todos estavam em jejum, espera que uma adeleira lhes
trouxesse o importe dum lenol, para comprarem o po do almoo. A mulher de
Jorge voltou, dizendo que a carta vinha j paga.
Bendito seja o Senhor! disse Jorge.
E volumosa!... disse Leonor, abrindo-a, trmula, como se receasse uma
infausta nova. E traz outra dentro...
Para quem? perguntou o cego.
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Para... para... o Ilustrssimo senhor Manuel Jos da Costa Guimares, Rua da
Torrinha.
um negociante disse Jorge. L, Leonor.
A enferma passou a carta a Helena, que leu o seguinte:
Minha querida me
Lisboa 10 de Setembro de 1850
Escrevo-lhe cheio de contentamento. Posso dizer que este o primeiro dia de
completa felicidade na minha vida.
Quando poucas esperanas me restavam j de alcanar um emprego, depois de
dois meses de despesas incomparavelmente maiores que as nossas foras,
encontrei por um feliz acaso um protector, um amigo, um pai, uma Providncia.
Este anjo da nossa ventura o bardo da Penha, um homem excepcional por isso
que para mim o que eu nunca pensei que se pudesse encontrar neste mundo
egosta, e desprezador de tudo que se no faz representar pelo dinheiro.
No contente com apresentar-me como seu amigo, chama-me seu sobrinho, e,
apenas correu a notcia de que eu era sobrinho dum milionrio solteiro, tenho
encontrado nestes oito dias consideraes que me fazem nojo.
O lugar que eu requeri j o no quero, por conselho do meu protector. Diz ele
que me h de fazer despachar para outro mais importante, e aconselha-me que
siga a vida diplomtica. Tenho um futuro, minha querida me! Abrace meus
caros tios, j que eu no POSSO...
A carta foi aqui interrompida pelos soluos da leitura, e exclamaes expansivas
da enferma. Duas a duas deslizavam as lgrimas na face do cego, que estendeu
os braos cunhada, tacteando-lhe a testa, para lhe dar um beijo de arrebatada
alegria. E no proferiam uma palavra. Leonor parecia querer ressuscitar da
paralisia das pernas para ajoelhar sobre o leito. Helena enxugava, uma aps
outra, as lgrimas teimosas para continuar a leitura da carta. Na sala prxima, a
este tempo, revolviam-se os mveis.
Helena prosseguiu, lendo:
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A generosidade deste enviado do cu estende-se at minha pobre famlia.
Disse-lhe que minha me vivia s sopas duma irm to pobre como ela, e o
nosso amigo, que pareceu ouvir-me friamente, acaba de me dar duzentos mil
reis, para eu mandar imediatamente minha famlia. A ordem inclusa para os
irem receber.
Louvado seja Deus! exclamou Leonor, agitando-se na cama, e fazendo
pasmar a irm do grande esforo que fizera. Vai, Helena, vai dizer a esses
homens, que j temos dinheiro para pagar ao senhorio. Depressa, depressa!
Helena foi sala, e disse que no levassem nada, porque naquele mesmo dia
seria paga a dvida. Os oficiais hesitaram; vendo, porm, que os objectos
penhorados mal chegariam para o pagamento das custas, resolveram ir
participar ao credor o que se passara.
Terminava assim a carta:
Esta quantia pode melhorar a situao da nossa casa. Em breve com os meus
prprios recursos viveremos comodamente. Minha me e meus tios tero dias
alegres e fartos na velhice, Eu farei sempre por ter na memria que muitas vezes
me deram para um livro o dinheiro que estava destinado para o po.
Adeus, minha santa me. Diga ao meu bom tio, ao meu verdadeiro pai, que
concebo hoje esperanas de ir com ele a Paris aos oculistas mais clebres; que
tenha esperana de ver ainda o benfeitor de todos ns, que me promete ir ao
Porto,
Seu filho Roberto.
O cego ergueu as mos, e disse:
Misericrdia divina, acolhe as nossas primeiras lgrimas de felicidade, depois
de tantas de amargura em que provaste a nossa constncia.
Fazei, Senhor, que as nossas desventuras continuem; se a luz de alegria que
hoje nos dais, pode um dia desencaminhar-nos a senda da justia.
As duas irms, recolhidas em fervorosa orao, tinham os olhos postos na
veneranda face do cego, que parecia radiar o fulgor do contentamento puro dos
anjos.
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CAPTULO 6
H muito tempo que o mundo perdeu a inocncia,
estamos
na corrupo dos sculos, na idade caduca da
natureza,
tudo malcia e enfermidade no concurso dos homens.
Balzac (Aristippo Verso de Duarte R. De Macedo)
Em poucos dias, as relaes do baro da Penha e visconde de Vila Seca tocaram
a intimidade. Era o baro que diligenciava insinuar-se na confiana desta
famlia: as solicitaes, as deferncias, os agrados eram todos dele. Roberto
Soares e o amigo de Guilherme do Amaral maravilhavam-se desta simpatia. O
segundo alguma vez tentou conhecer o man desta atrao: perguntava que
conformidade de gnios havia entre o baro da Penha e Antnio Jos. O baro
respondia com um sorriso, que tanto podia exprimir o sarcasmo como a
ferocidade.
H naquele riso disse o poeta a Soares alguma cousa sanguinria que
faz lembrar o franzir de beio do co que ameaa.
A mim disse Roberto nunca me fala em tal homem, nem me convida a
acompanh-lo l, levando-me a todas as casas. E, contudo, sei que ele tem feito
valiosos presentes viscondessa. H um segredo aqui. Desconfio que o baro
no gosta que lhe fales em Antnio Jos. Poupa-lhe sorriso, que lhe deve ser
muito doloroso a ele.
Pois sim... outro assunto... Haver romance nisto? Sabes tu, Soares, que as
cousas e as pessoas so as mesmas em toda a parte?! H quatro anos, conheci
Guilherme do Amaral, que entrou no Porto com reputao de rico. As mulheres
de l interrogavam-me a respeito dele. As frases delas eram estas das mulheres
de c, das que hoje me interrogam a teu respeito. Quer-se por a saber se tu s
o presuntivo herdeiro do baro da Penha; a quem amas; quem que te ama;
com que intenes amars; se j amaste; se amarias uma burguesa rica, ou uma
mulher de sangue azul pobre: fazem-te auxiliar do verbo amar, e conjugam-te
em todos os tempos. Eu, na tua posio duvidosa...
Duvidosa!
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Sim, duvidosa. O baro da Penha um esquisito, em que ningum deve fiar o
seu futuro. Chamou-te sobrinho? Se ele morresse hoje, os herdeiros pediam-te
amanh as habilitaes do parentesco. A imaginao romanesca tem caprichos
sobre os quais a vida real no pode contar.
Duvidas que o baro me protege?
No: j beneficiou a tua famlia, e h de fazer-te despachar melhor do que
desejavas; mas o que eu faria, sendo o que tu s, era inspeccionar as mulheres
que esto na feira, e apaixonar-se seriamente por aquela que me segurasse um
bom futuro, independente dos favores incertos deste homem singular.
sombra do baro, podes agarrar a fortuna pelos cabelos. A primeira lio que
ele te deu, tem um sentido mstico e alegrico, que tu no compreendeste,
porque te faltam seis anos de sociedade. Dizer-te ele que era cavalheiro de
indstria foi um elogio figurado que ele fez indstria dos cavalheiros.
O baro tocou a estrema do conhecimento do mundo, e, quando aconselha,
no pode sustentar a mscara da hipocrisia.
Pois crs interrompeu, agastado, Roberto Soares crs que este homem
seja um velhaco?!
Eu sei c o que ele foi e o que ele !
No conheces, como eu, as aes que provam a nobre alma do baro?
Eu distingo entre causas e efeitos. Aqui tenho eu na minha carteira uma
mxima, que copiei dum livro francs: Il ne fiaut par mesurer les hommes par
leurs actions, qui sont trop dependantes de leur fortune, mais par leurs
sentiments et leur genie. Ora, eu no conheo a ndole e os sentimentos do
baro melhor do que tu. Uma ddiva de duzentos mil ris a uma famlia pobre,
uma esmola de dois contos de ris a uma costureira que se encontra na rua
ralhando com a me por gastar o montepio na lotaria, isto no so as virtudes
difceis donde sai incendrado o puro ouro da virtude. Se o baro tem, como
dizem, um milho, ou dois milhes, ou no sei quanto, essas liberalidades no
devem servir de recomendao para aquele que d a um pobre os ltimos seis
vintns com que devia almoar. Nada de idolatrias intempestivas, meu caro
Soares. Conta-me a histria da riqueza deste homem, traz-ma at ns pelo
trilho da honra, e depois eu lanarei no teu turbulo um gro do meu incenso.
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33
Entre ns prosseguiu o poeta com o seu humor pessimista o homem, que
vem rico de longe, tem duas existncias, que se separam, logo que ele salta em
terra. A ptria para ele uma espcie de ilha de Vnus, como a imaginou
Cames. No poema, os cansados navegadores refocilam-se nos braos
deleitosos das ninfas, saboreiam-se nas mais esquisitas sensualidades que o
pecado pode inventar, e, para cmulo de delcias, ouvem no fim o canto
proftico da deusa libidinosa que lhes assegura a imortalidade.
Os bem-vindos do pas do ouro-os nossos irmos de alm-mar aps os
perigos e sustos com que as riquezas rpidas se granjeiam, aportam s praias
natalcias. A lhes vo as ninfas de todos os rios e riachos de Portugal ao
encontro, e rara se esquiva como a Efire do Leonardo, A quem amor no dera
um s desgosto, Mas sempre fora dele maltratado.
Quem pergunta onde tal homem teve feitoria de escravos? Quem lhe pede
contas das colnias que mandou comprar nos mercados da sua terra?
Ningum tem a crueldade de ferir com suspeitas, ou ainda com aluses
certeiras, a reputao dum homem, que estreou o seu amor ptria,
esmolando para um asilo de caridade as migalhas que os jornais, trombetas dos
modernos fariseus, anunciaram ontem. Enxuga muitas lgrimas, dizem eles; e as
de sangue, que eles fizeram chorar, quem as enxuga? O soro das glndulas
lacrimais do preto no pranto de homem; o azorrague que avergoa as
espduas do escravo faz espirrar sangue, e no lgrimas...
Em sangue amassado o po que a se come nos hospitais. No importa.
Venham de l do novo mundo para este pas envilecido os capitais, tudo se
perdoa aos portadores; contanto que eles abram uma sala para os sevandijas da
escola de Petrnio, miserveis que toleram com vil pacincia o sobrecenho do
dinheiro, abjectos vendilhes de cortesias que pensam ter respondido ao
escrnio dalgum estico, dizendo que preciso aceitar a sociedade como ela
est.
E o progresso moral o que , Soares? Estamos cantando, com Juvenal, o
obscena pecnia, ou exacto ter aparecido h mil oitocentos e cinquenta anos,
um homem divino, chamado Jesus, que apostolava a redeno do branco e do
negro?
Quem est aqui a pregar misses?! perguntou o baro da Penha, que
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34
apareceu porta do quarto de Roberto, onde o poeta proferia o estirado
monlogo.
Era eu, senhor Baro, que estava ensaiando um discurso que tenciono fazer
em cmaras, quando for deputado, pedindo um panteo para todos os
benfeitores de hospitais, recolhimentos, e confrarias, ainda quando se prove
que os legados caritativos foram adquiridos na escravatura. D-me Vossa
Excelncia sobre o tema a sua valiosa opinio.
A minha opinio no valiosa; mas ser sincera. Eu tenho lido e ouvido o que
se diz em Portugal acerca das fortunas vindas do Brasil, e por isso entendo a
stira do seu tema, no obstante a gravidade com que Vossa Senhoria o props.
Os folhetinistas, os romancistas, os dramaturgos, ainda os filsofos moralistas
de botequim so injustos e ingratos nas vaias e chocarrices com que ridiculizam
os chamados brasileiros. A primeira alcunha com que os mimoseiam a de
estpidos.
No o so? interrompeu o poeta.
Se mo pergunta, digo que sim, e so o duas vezes, por duas razes:
primeira so estpidos porque a ptria lanou-os de si, no lhes dando po
para o corpo, nem instruo para a alma; estpidos foram; por l andaram
labutando vida de negros, l ganharam o pouco ou o muito que possuem, e de
l vieram, estpidos, sim, mas cansados de fadigas, trazendo madrasta, que
lhes no deu trabalho nem instruo, o capital que faz as indstrias, o capital
que os governos afagam com as baratas consideraes dos ttulos honorficos, o
capital que levantou o preo da propriedade, o capital que sustenta a vida
mercantil dum pas atrasado que as naes da Europa repelem com irriso dos
seus mercados. Segunda razo: so segunda vez estpidos porque tm o baixo
esprito de se deixarem entusiasmar por amor de ptria; de nunca
desprenderem o corao e a saudade do torro que lhes foi sfaro para eles;
estpidos, sim, porque tm a inpcia de trazerem a um pas, sem vida, o capital
que arriscam nas burlas do estado aos particulares; porque renunciam os gozos
que o seu dinheiro lhes proporciona nos pases, onde o brasileiro no
sinnimo de mercador de pretos; estpidos, finalmente, porque subscrevem
com avultadas quantias manuteno dos estabelecimentos pios; e a opinio
dos iluminados, dos espertos, dos sndicos das conscincias, que essas
esmolas so, aqui, uma reparao humanidade sofredora das angstias que
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lhe fizeram sofrer noutro ponto do mundo.
Se me d licena... atalhou o jornalista.
Queira dizer, mas no me replique com alguma faccia. Seja srio nesta
argumentao, se v que ela merece a seriedade.
Eu ia dizer que os brasileiros vm para Portugal, porque Portugal, alm de ser
um excelente clima, o nico pas, depois do Brasil, onde se fala o portugus.
sria a sua contradita, cavalheiro?
Muito sria: equivale a dizer que...
No precisa dizer-me a equivalente: eu tenho, se me d licena, a penetrao
necessria para entender a sua ideia sem comentrios; quer dizer que os filhos
de Portugal vm para Portugal porque em Londres, Blgica, ou Paris se no fala
o portugus. No lhe aceito a rplica na inteno ajuizada que Vossa Senhoria
lhe deu. Isso uma jocosidade de folhetim, meu caro senhor. Diga-me antes
que em Portugal uma dzia de contos uma fortuna: cinquenta contos fazem
um capitalista que trata face a face os regedores da repblica; que cem contos
nobilitam o possuidor, contanto que se faam representar boca do cofre das
graas pelo dinheiro, sendo certo que a individualidade do agraciado uma
cousa nula nessa mercadoria torpe e vil em que os culpados so os governos, e
no os agraciados. um baro, que lhe fala, senhor. Qual de ns o ridculo: eu,
que dei uma esmola ao estado e recebi uma merc; ou o estado que me enviou
um seu agente, pedindo-me a gratificao que foi repartida entre alguns
miserveis que nunca foram ao Brasil?
A delicadeza manda-me calar respondeu o amigo de Roberto Soares.
Pois o senhor tem necessidade de ser grosseiro para me responder?
O governo foi imoral vendendo-lhe um ttulo; Vossa Excelncia foi vulgar
comprando-o.
E, porventura, lhe disse eu que era distinto?! Quando quis eu evadir-me da
esfera vulgar?
No o adulo; considero-o superior ao ttulo.
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Obrigado; mas cr que o meu ttulo fosse comprado com o valor de seis
negros?
No ouso indagar a vida de Vossa Excelncia. Conheo-o h quinze dias, e
dificultosamente me decido por uma de duas conjecturas.
Posso ser um negreiro, e ser um honrado comerciante.
Ao mesmo tempo, no.
Uma das profisses.
Se eu aceitasse alguma das hipteses sem mais reflexo, seria a segunda.
Vossa Excelncia homem de inteligncia; h de s-lo forosamente de
corao. O homem de corao no vende, resgata infelizes.
Se me concede que eu me tenha enriquecido sem desonra, porque no h de
conceder esse favor aos benfeitores dos hospitais, recolhimentos e confrarias
para os quais Vossa Senhoria quer pedir um ridculo panteo s cmaras?
Convena-se, meu caro senhor, que h no Brasil muito portugus honrado,
encontrei-os de grande corao, e inteligncia nenhuma, a duas mil lguas
daqui, onde um homem que diz: sou portugus aperta a mo caridosa que se
estende at aos hospitais da ptria. que a inteligncia atrofia a sensibilidade
do corao? No sei.
O que sei que na ptria, onde h uma falange de homens lcidos, e escritores
de todos os feitios, o homem sem trabalho, no acha salrio, as fbricas das
nascentes indstrias definham em estpido atraso; e os mancebos letrados,
como o seu amigo Roberto Soares, desanimam porta das secretarias pedindo
humildemente um lugar numa alfndega. Que fazem os talentos desdenhosos
desta terra que no dispensam o seu pas dos auxlios que todos os dias pedem
ao brao do comrcio brasileiro? Pois o gnio em Portugal s serve para afiar
chocarrices contra os analfabetos, que s so culpados em no lerem romances
ao mesmo tempo que transportavam fardos s costas, ou consumiram vinte
anos ao p duma balana? O meu paciente amigo vai-me responder
triunfantemente: parece-me que lhe estou ouvindo argumentos sobrepostos
para me provar cousas horrveis. Se o seu fim aniquilar-me, declaro-me
aniquilado sem o ouvir, e fao votos por que a maioria das cmaras, de que
Vossa Senhoria h de ser um digno ornamento, vote na sua proposta dum
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panteo para os testadores em benefcio das misericrdias.
Eu vou passar fora a noite... e no me quero furtar momentos deliciosos duma
bela companhia. Estes meus cinquenta ano