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Dilemas da doação de órgãos no Brasil

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Dilemas da doação de órgãos no Brasil

Colaboração: João Benício Aguiar e

Maria Fernanda Dyma

A evolução do transplante no Brasil e no mundo

Desde o início dos tempos, várias lendas e relatos sensacionalistas povoam o

imaginário da população em geral a respeito do transplante. Na Ilíada, de Homero, é

descrito o primeiro transplante de tecidos geneticamente diferentes, uma quimera criada

pelos deuses. A lenda de São Cosme e Damião diz que, após a amputação da perna de

um velho, transplantaram nele a perna de um soldado que havia falecido naquele mesmo

dia. O termo transplante foi utilizado pela primeira vez por John Hunter, em 1778, ao

descrever seus experimentos com enxertos ovarianos e testiculares em animais não

relacionados.

Em 1902, Ullmann, da Escola de Medicina de Viena, realizou o primeiro

autotransplante de rim nos vasos do pescoço de um cão. Em 1906, Jaboulay, na França,

fez dois xenotransplantes (transplantes entre espécies diferentes), a partir de rins de

porco e de cabra, nos vasos do braço e da coxa de seres humanos, os quais funcionaram

por uma hora. Em 1909, Unger, em Berlim, transplantou um rim de macaco para uma

criança que sofria de insuficiência renal aguda. Até este momento, embora

demonstrassem que os transplantes de órgãos sólidos eram possíveis, os diversos

pesquisadores observaram que os órgãos muitas vezes morriam. Tal questionamento

ficou aparentemente sem solução até que Guthrier inferiu, algum tempo mais tarde, que

talvez estes fracassos pudessem estar relacionados com algum tipo de resposta

imunológica.

O primeiro alotransplante (transplante entre indivíduos da mesma espécie) renal no

homem foi realizado em 1933 por um cirurgião ucraniano, para tratar uma insuficiência

renal aguda causada por envenenamento por mercúrio. Infelizmente, o rim não funcionou,

já que foi retirado do doador seis horas após a parada cardíaca, e o receptor morreu 48

horas depois. No início da década de 50, várias séries de transplantes renais em

humanos foram realizadas em Paris e Boston, mas nenhuma droga imunossupressora era

utilizada para prevenir a rejeição, e somente um paciente sobreviveu, por

aproximadamente seis meses.

O aumento crescente da sobrevida dos pacientes transplantados deveu-se

principalmente aos seguintes fatores: aprimoramento da técnica cirúrgica; a constatação 2

de que baixas doses de esteróides são eficazes e mais seguras do que as administradas

anteriormente; e a descoberta de que a transfusão de sangue pré-transplante reduz as

possibilidades de rejeição. A partir daí, os avanços aceleraram gradativamente.

No Brasil, o primeiro transplante foi feito em 1985, no Hospital das Clínicas, em

São Paulo, por Raia e sua equipe, que também realizaram o primeiro transplante

intervivos, em 1988. O transplante de partes do pâncreas para o tratamento de pacientes

diabéticos foi sugerido no início de 1924, mas somente após o uso de uma

imunossupressão efetiva é que se investiram grandes esforços no sentido de tratar o

diabetes mellitus por meio do transplante total de pâncreas. Em 1966, Kelly e equipe

fizeram um alotransplante de rim e pâncreas em um paciente portador de uma nefropatia

diabética em fase terminal. Desde então, centenas de transplantes têm sido realizados

com o pâncreas total, parcial ou com ilhotas pancreáticas.

Os problemas relacionados com a rejeição e as dificuldades cirúrgicas,

particularmente em assegurar uma drenagem efetiva das secreções exócrinas, têm

desestimulado muitas equipes em perseverar com o transplante pancreático, após uma

má experiência inicial. Ultimamente, o interesse tem aumentado em função dos melhores

resultados obtidos e com o advento de técnicas promissoras de transplante de ilhotas.

Atualmente, já podemos dizer que o transplante de órgãos é considerado uma

terapêutica amplamente aceita e recomendada para o tratamento de doenças

degenerativas de órgãos vitais, graças aos avanços anteriormente descritos e aos

contínuos esforços de aprimorar a técnica cirúrgica e a terapia medicamentosa de

controle.

Panorama atual

A doação de órgãos é um tema que está cada vez mais presente na mídia e,

assim, na vida de todos. Nas novelas, propagandas e filmes, os casos de pacientes

esperando um transplante emocionaram os telespectadores. Mas, mesmo com uma forte

campanha de incentivo à doação, muitas pessoas apenas “lavam as suas mãos” e

chegam ao velho pensamento: “Se não acontece comigo, não devo me preocupar”.

O Brasil registrou crescimento nas doações e transplantes de órgãos em 2014, de

acordo com levantamento da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO)

divulgado nesta segunda-feira (23). Foram 7.898 órgãos doados no ano passado, 3% a

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mais que em 2013.

A taxa de doadores também subiu de 13,5 por milhão de pessoas para 14,2 por

milhão, no entanto, ficou abaixo da meta proposta pela associação para 2014, que era de

15 por milhão. Além disso, o índice está longe de alcançar o objetivo de 20 doadores por

milhão pessoas até 2017.

O procedimento de doação

O termo transplante é empregado no sentido de retirada ou remoção de órgãos,

tecidos ou partes do corpo de um ser, vivo ou morto, para aproveitamento, com finalidade

terapêutica. Para Maria Helena Diniz, renomada jurista do direito civil, “transplante é a

amputação ou ablação de órgão, com função própria de um organismo para ser instalado

em outro e exercer as mesmas funções”. A matéria relativa aos transplantes de órgãos é

regulada pela Lei Federal nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997.

Na doação de órgãos temos o doador, que é o indivíduo que consente na retirada

de órgãos, tecidos ou partes de seu corpo, para fins de transplantes, o receptor que é o

indivíduo que recebe tecidos, órgãos ou partes do corpo humano. É a pessoa que se

busca favorecer com a liberalidade, com a intenção de salvar ou melhorar a sua condição

de vida e o médico e sua equipe.

As doações de órgãos podem ser provenientes de doador vivo (indivíduo saudável

que concorde com o ato da doação) que são regidas pelo art. 9 da Lei dos Transplantes,

e se por acaso não tenham grau de parentesco com o receptor, só poderão doar

mediante autorização judicial. Os órgãos que são possíveis de doação por indivíduos

vivos são: medula óssea, um dos rins, parte do fígado e parte do pulmão. Outra fonte de

captação de órgãos são os doadores post mortem (pacientes que tiveram morte

encefálica diagnosticada), regido pelo art. 3 da Lei de Transplantes, que possibilitam a

doação de coração, pulmões, rins, córneas, fígado, pâncreas, ossos, tendões, veias e

intestino.

A partir da identificação do momento exato da morte foi possível permitir a

transplantação de forma ética e o não desperdício de insumos, no entanto, é necessário

salientar as divergências no conceito de morte encefálica discutidos até os dias atuais, no

qual se diferencia a morte do tronco encefálico e a cerebral. Em decorrência desta

celeuma os conceitos de morte encefálica diferem em todo o mundo, contudo servem

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como critério para obtenção de órgãos para transplantes. Abaixo, seguem resumidos

alguns aspectos e critérios sobre a doação.

Para ser doador: No Brasil, para ser doador de órgãos e tecidos, não é necessário

deixar nada por escrito. Basta avisar sua família, dizendo: “Quero ser doador de órgãos”.

A doação de órgãos e tecidos só acontece após a autorização familiar documentada.

Quando a pessoa não avisa, a família fica em dúvida, o que muitas vezes impede que os

órgãos que poderiam ser doados assim sejam.

Doador vivo: É qualquer pessoa saudável que concorde com a doação de rim ou

medula óssea e, ocasionalmente, com o transplante de parte do fígado ou do pulmão,

para um de seus familiares. Para doadores não parentes, há necessidade de autorização

judicial, aprovação da Comissão de Ética do hospital transplantador e da CNCDO, assim

como de comunicação ao Ministério Público.

Doador falecido: É um paciente internado em unidade de terapia intensiva (UTI)

com morte encefálica, em geral depois de traumatismo craniano (TCE) ou derrame

cerebral (AVC). A retirada dos órgãos e tecidos é realizada no centro cirúrgico do hospital

e segue toda a rotina das grandes cirurgias. A retirada de córnea pode ser realizada até

seis horas após a parada cardíaca.

Órgãos que podem ser doados por um doador falecido: Um único doador pode

salvar até 25 vidas. Doando os dois rins, os dois pulmões, o coração, o fígado e o

pâncreas, duas córneas, três válvulas cardíacas, ossos do ouvido interno, cartilagem

costal (cartilagem ligada às costelas na parte anterior do tórax), crista ilíaca (parte do osso

da bacia), cabeça do fêmur, tendão da patela (estrutura do joelho que liga a patela à

tíbia), ossos longos, fascia lata (tecido conectivo da parte lateral da coxa), veia safena e

pele.

Para quem vão os órgãos e tecidos? Os órgãos são transplantados para os

primeiros pacientes compatíveis que estão aguardando em lista única da central de

transplantes da Secretaria de Saúde de cada Estado. Esse processo, além de justo, é

controlado pelo Sistema Nacional de Transplantes e supervisionado pelo Ministério

Público.

Após a doação de órgãos, como fica o corpo? A retirada dos órgãos e tecidos

segue todas as normas da cirurgia moderna. Todo doador pode ser velado de caixão

aberto, normalmente, sem apresentar deformidades.

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A morte encefálica

Conceito de mortePara a simples e clássica definição de morte, sempre foi utilizado o conceito de

morte clínica, pois, este por si só durante muito tempo preencheu as expectativas da

comunidade científica e da sociedade em geral. Até a década de 50, não havia

preocupação e nem necessidade de uma nova definição, tendo em vista que a tecnologia

não havia manifestado e demonstrado o seu potencial de prolongamento da vida humana.

Somente nos anos 50, com a evolução dos aparelhos que possibilitam a respiração de

pacientes que se encontrava em estado vegetativo, foi repensado o conceito de morte,

havendo a ampliação da quantidade de definições a serem adotadas.

Existem 5 principais conceitos médicos distintos sobre o que viria a ser a morte,

elencados a seguir para ilustrar e realçar o assunto tratado. Outras concepções de morte

além destas são possíveis, pois variam de acordo com a cultura e o momento histórico

devido a sua valoração de vida.

1. Morte clínica – é a paralisação da função cardíaca e da função respiratória, esta

pode desaparecer com os processos de reanimação, mantendo a vida vegetativa mesmo

após a morte encefálica;

2. Morte biológica – é a que causa a destruição celular;

3. Morte cerebral – é a destruição das células cerebrais;

4. Morte encefálica – é a paralisação irreversível das funções cerebrais em

decorrência da destruição do cérebro superior e do tronco encefálico (ou tronco

encefálico)

5. Morte aparente – o indivíduo na verdade só está inconsciente, ou seja, está

vivo, mas por um estado especial ocorre um erro de diagnóstico (equívoco do médico).

Como ter certeza do diagnóstico de morte encefálica?

O diagnóstico de morte encefálica faz parte da legislação nacional e do Conselho

Federal de Medicina. Dois médicos de diferentes áreas examinam o paciente e fazem o

diagnóstico clínico de morte encefálica. Um exame gráfico, como ultrassom com Doppler

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ou arteriografia e eletroencefalograma (EEG), é realizado para comprovar que o encéfalo

já não funciona.

Problemas no processo de doação de órgãos

Mitos sobre a doação de órgãos

Existem alguns mitos propagados sobre a doação de órgãos que dificultam a

disseminação da prática. Abaixo, selecionamos alguns destes mitos, que devem ser

combatidos para que haja um aumento e uma popularização da doação de órgãos no

Brasil.

Há quem diga que se os médicos do setor de emergência souberem que você é

um doador, não vão se esforçar para salvá-lo. Entretanto, Se você está doente ou ferido e

foi admitido no hospital, a prioridade número um é salvar a sua vida. A doação de órgãos

somente será considerada após sua morte e após o consentimento de sua família. Sendo

assim, verifica-se que não há necessidade de qualquer documento ou registro, cabe

apenas informar à família sobre sua vontade de ser doador.

Também é mito o que dizem quanto à prioridade dada àqueles com condições

financeiras superiores na fila de transplante. Quando você está na lista de espera por uma

doação de órgão, o que realmente conta é a gravidade de sua doença, tempo de espera,

tipo de sangue e outras informações médicas importantes.

Ao contrário do que muitos pensam, a doação de órgãos vai além do transplante

de corações, fígados e rins podem ser transplantados. Órgãos que podem ser

transportados incluem coração, rins, pâncreas, pulmões, fígado e intestinos. Tecidos

também podem ser doados incluem: córneas, pele, ossos, valvas cardíacas e tendões.

Também é válido ressaltar que a possibilidade efetiva de doação dos órgãos

somente é verificada após a morte, quando os profissionais médicos especializados farão

uma revisão de seu histórico médico para determinar se você pode ou não ser um doador.

Com os recentes avanços na área de transplantes, muito mais pessoas podem ser

doadoras.

Não existe idade para a doação de órgãos. Pessoas de todas as idades e

históricos médicos podem ser consideradas potenciais doadoras. Sua condição médica

no momento da morte determinará quais órgãos e tecidos poderão ser doados, não

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havendo desconfiguração do corpo durante o processo de transplante. Os órgãos doados

são removidos cirurgicamente, numa operação de rotina, similar a uma cirurgia de

vesícula biliar ou remoção de apêndice.

Má distribuição das equipes que realizam transplantes

Para se ter ideia, na Espanha, considerado o país que mais registra transplantes, a

taxa é de 37 por milhão. De acordo com Lúcio Pacheco, presidente da ABTO -

Associação Brasileira de Transplante de Órgãos -, a má distribuição das equipes que

realizam transplantes pelo Brasil pode ser uma das respostas esta dificuldade.

Segundo o Ministério da Saúde, que coordena o Sistema Brasileiro de

Transplantes, há mais de mil equipes preparadas para realizar cirurgias distribuídas pelo

Brasil e 400 unidades prontas para atuarem nessa área.

No entanto, para Pacheco, há uma concentração desse tipo de mão de obra no Sul

e Sudeste e quase nenhum ou nenhum no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. “Enquanto

em São Paulo há 20 equipes para realizar cirurgias de fígado, o que é muito, em Minas

Gerais há apenas 3. Em outros estados mais longes, não há”, explica.

Tráfico ilegal de órgãos

O artigo 199, § 4.º, da Constituição Federal veda a comercialização de órgãos,

tecidos e substâncias humanas. Da mesma forma, o artigo 16 da Lei de Transplante

considera crime a realização de transplante utilizando tecidos, órgãos ou partes do corpo

humano obtidos em desconformidade com a lei, prevendo pena de reclusão, de um a seis

anos.

O corpo humano é considerado um bem fora do comércio ou fora do mercado.

Esse é um princípio adotado na quase totalidade das nações. No entanto, o comércio

ilegal de órgãos é uma realidade degradante e cada vez mais presente na realidade e

viola os direitos humanos fundamentais, sendo considerado hoje o novo crime do século

XXI.

Para a realização do procedimento são utilizados um doador, um médico

especializado e uma sala de operações, onde normalmente o receptor do órgão já

costuma estar próximo para o transplante, uma vez que os órgãos não sobrevivem muito

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tempo fora do corpo. Os principais países do mundo que vem violando os direitos

humanos com o tráfico de órgãos são a China, Índia, Paquistão, Rússia, Brasil, África do

Sul, Israel, Filipinas, Colômbia, Turquia, EUA, Canadá, Reino Unido e Macedônia

De acordo com dado da Organização Mundial de Saúde (OMS), de todo o

transplante realizado, por ano, no mundo, cerca de 5% é relacionado com o Tráfico de

Órgãos, com o volume de negócio estimado entre 600 milhões e 1,2 bilhão de dólares.

No Brasil, embora vedado expressamente pela Constituição Federal e pela

legislação ordinária, no chamado “mercado negro” essa prática aumenta a cada dia,

chegando ao ponto de oferta de venda de órgãos em classificados de jornais. O

desequilíbrio entre a oferta e a demanda de órgãos continua sendo a principal causa,

aliada à pobreza extrema da população e a ganância incontrolada de lucro por parte de

alguns médicos e hospitais sem compromisso com a ética da medicina.

A comercialização de órgãos humanos denota a completa ausência de padrões

mínimos de conduta ético-jurídica exigida pela lei aos profissionais de saúde aos

doadores e suas famílias, pois atenta contra a dignidade da pessoa humana. Tal prática

deve ser rechaçada e reprimida, pois provoca consequências desastrosas, na medida em

que desestimula as doações altruístas efetivadas por sentimento de solidariedade,

princípio ético que deve prevalecer em matéria de transplante.

Doação de órgãos e a Religião

A religião dentro da ciência, vem sendo um tema muito debatido na modernidade,

haja vista, que nem sempre os progressos científicos na área da medicina são bem

recebidos pelas doutrinas religiosas. Os experimentos científicos na área da clonagem, a

pesquisa envolvendo embriões humanos, por exemplo, são rejeitados pela maioria das

religiões. Há um antigo conflito entre a ciência e a religião, começando pelo fato de que a

maioria dos cientistas não acredita em Deus.

O cientista Marcelo Gleiser explica que a questão somente pode ser pacificada a

partir do momento em que a religião passar a se preocupar mais com o mundo espiritual

do que com o mundo natural, enquanto que a ciência deve se preocupar mais com os

questionamentos e as investigações do mundo natural, respeitando, a ciência e a religião,

os espaços que lhes são reservados.

À medida que um número maior de fenômenos naturais passou a ser

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compreendido cientificamente, a religião lenta e forçosamente passou a se preocupar

mais com o mundo espiritual do que com o mundo natural.

Nos dias atuais, quase todas as religiões admitem o transplante de órgãos, tecidos

ou partes do corpo humano, para fins de tratamento, porque todas têm em comum os

princípios da solidariedade e do amor ao próximo, que caracterizam o ato de doar,

deixando ao critério dos seguidores a decisão de serem doadores ou não.

O catolicismo aceita a doação de órgãos, tendo em vista que os transplantes são

um grande avanço da ciência a serviço do homem e não são poucas aquelas pessoas

que hoje devem suas vidas a um transplante de órgãos. O islamismo também não rejeita

os transplantes, por ser considerada a religião da misericórdia. O islã dá ênfase à

salvação de vidas. O hinduísmo também não se opõe ao transplante de órgãos, pois,

segundo os Brahmanistas “uma pessoa se torna boa por atos bondosos e má por atos

malévolos”. Da mesma forma, o judaísmo não se opõe à doação de órgãos, entretanto há

a exigência de que na remoção de órgão efetivada em cadáver, a morte tenha sido

determinada de acordo com o Halachá.

Desta forma, as religiões não rejeitam o ato médico de transplante de órgãos,

tecidos e partes do corpo humano, pois a solidariedade e o amor ao próximo são

princípios inerentes a todas as religiões, tanto que um dos mandamentos sagrados

determina que se deve amar ao próximo como a si mesmo, e nada é mais representativo

desses princípios do que a doação de parte do próprio corpo, ou do corpo de um ente

querido falecido, para salvar a vida do próximo.

Rejeição das famílias

O número de famílias que não autorizam a doação de órgãos e tecidos de parentes

com diagnóstico de morte encefálica aumentou significativamente no Brasil. Em sete

anos, a taxa de recusa familiar dobrou, saltando de 22% em 2008 para 44% em 2015,

segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

Países como Austrália e Reino Unido enfrentam situação semelhante que, aliada a

falhas na identificação e notificação de potenciais doadores, dificulta a realização de

transplantes. Um estudo conduzido por pesquisadores da Escola Paulista de Enfermagem

da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) buscou mapear as razões da recusa

familiar.

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O principal motivo identificado pela pesquisa é que boa parte das famílias (21%)

não compreendeu o conceito de morte encefálica. O Conselho Federal de Medicina não

tarda e edita a Resolução CFM nº 1.480/97 que dispõe: A morte encefálica deverá ser

consequência de processo irreversível e de causa conhecida; e nos traz os parâmetros

clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica quais sejam: coma

aperceptivo com ausência de atividade motora supra espinal e apnéia.

Além disso, 19% atribuíram a decisão a crenças religiosas e outros 19%

responsabilizaram a falta de competência técnica da equipe hospitalar.

No total, foram ouvidas 42 famílias que haviam sido consultadas pelo Serviço de

Procura de Órgãos e Tecidos da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, ligado ao

Hospital São Paulo, em 2010. A conclusão mais importante foi a de que, apesar da falta

de conhecimento técnico sobre a morte encefálica, as chances de a família aderir à

possibilidade de doação são diretamente proporcionais à capacidade de os profissionais

da saúde criarem empatia durante a entrevista na qual a doação é solicitada aos

familiares.

Um dado que surpreendeu os pesquisadores é que aproximadamente 43% das

famílias consideraram insuficiente o tempo dado a elas para a tomada de decisão. É certo

que há pressa em conseguir a autorização, pois órgãos como coração e fígado não

podem mais ser aproveitados quando o coração para de bater.

A queixa das famílias é que a abordagem foi feita de forma mecânica, até mesmo

truculenta, sem respeitar o atordoamento de quem acabou de receber uma notícia trágica.

“As pessoas precisam de tempo para assimilar a perda do familiar”, diz Bartira De Aguiar

Roza, professora da Unifesp e coordenadora do estudo. Segundo ela, a dificuldade reside

no fato de muitos médicos e enfermeiros não estarem preparados para comunicar más

notícias de maneira respeitosa e esclarecedora. O estudo também indicou que, entre

1998 e 2012, cerca de 21 mil famílias se recusaram a doar órgãos. Se 80% delas

tivessem aceitado a doação, supondo a possibilidade de extrair pelo menos quatro órgãos

de cada doador, mais de 67 mil pacientes teriam sido transplantados nesse período.

Bartira reconhece que a crença religiosa interfere. Em um dos casos de recusa,

uma mulher contou que não doaria os órgãos da mãe porque acreditava na ressurreição.

“A interpretação pessoal de textos religiosos pode levar a uma postura desfavorável à

doação, ainda que nenhuma religião se oponha a ela”, afirma Bartira. Mesmo nesses

casos, a pesquisadora acredita que a culpa não deve ser totalmente atribuída à família,

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pois o desempenho do profissional da saúde que propõe a doação também pode ser

decisivo. Tanto isso é verdade que, quando questionado se mudaria de opinião, 70% do

total de famílias respondeu que hoje optaria pela doação.

Para outro autor do estudo, João Luis Erbs Pessoa, diretor técnico da Central de

Transplantes da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, uma das principais

funções do profissional que lida com doações de órgãos deve ser esclarecer todas as

dúvidas dos familiares. “Quem tem a obrigação de entender de morte encefálica são os

médicos e enfermeiros, não a família”, diz Pessoa.

O grau de instrução escolar dos familiares que participaram da pesquisa foi

diversificado: 29% deles concluíram o ensino fundamental, 33% o ensino médio, 36% se

graduaram e 2% tinham doutorado. A maior parte das famílias (48%) tinha renda de um a

três salários mínimos e 64% declararam-se católicos. “A pesquisa indica que o que está

em jogo não é saber se a população conhece o conceito de morte encefálica, mas sim se

é bem tratada pelos profissionais da saúde. Muitas vezes subestimamos os familiares,

mas eles sabem quando os procedimentos da entrevista são equivocados”, explica

Pessoa.

Soluções e Perspectivas

O estudo apontado acima sugere investir mais no treinamento das pessoas que

trabalham na captação de órgãos. Em Santa Catarina, estado com uma das menores

taxas de recusa familiar, os coordenadores de transplantes que atuam em hospitais da

rede pública de saúde passam por curso de comunicação em situações críticas, oferecido

pela Secretaria Estadual de Saúde. “Os profissionais aprendem a dialogar com

sensibilidade com os familiares e a se colocarem à disposição para esclarecer dúvidas”,

diz Joel de Andrade, coordenador estadual de transplantes de Santa Catarina.

Experiências desse tipo também têm sido colocadas em prática na Unifesp, no

Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP) e no Hospital Israelita

Albert Einstein, na capital paulista. “O diagnóstico de morte encefálica é angustiante e

desperta muitas dúvidas. É uma morte que não parece morte, pois o coração continua

batendo. Isso faz com que a família ainda tenha esperanças de recuperação”, explica

Juliana Gibello, professora do curso de Comunicação de Más Notícias do Albert Einstein,

criado no início do ano. Com carga horária de 30 horas e online, o curso é direcionado a

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médicos, enfermeiros, psicólogos, entre outros profissionais. Os módulos abrangem

desde conceitos fundamentais da comunicação interpessoal até os processos que

envolvem morte e luto. Ao longo de todo o curso, os alunos discutem casos clínicos.

“Esse tipo de treinamento e discussão deveria ser feito desde a graduação nos diversos

cursos da área da saúde”, sugere Juliana.

As iniciativas brasileiras buscam inspiração no modelo espanhol de doação de

órgãos, que se tornou referência internacional. A taxa de recusa familiar na Espanha é

hoje uma das menores do mundo, de 17%. Parte desse sucesso se deve à forma como

profissionais da saúde lidam com as famílias. “Respeito e empatia são o cerne da

questão”, disse à Pesquisa FAPESP Carmen Segovia Gomez, uma das fundadoras da

Organização Nacional de Transplantes (ONT), criada em 1989, vinculada ao governo

espanhol. Além da coordenação nacional de captação de órgãos para transplantes, outra

tarefa da ONT é organizar cursos de comunicação de más notícias. A entidade foi a

primeira no mundo a criar esse tipo de treinamento para profissionais da saúde.

“Essa formação específica permite que o profissional desenvolva habilidades de

comunicação para fazer com que um familiar em crise de luto sinta-se livre e confiante

para tomar sua decisão”, conta Carmen, que atualmente dirige o curso da ONT. Em uma

das etapas do curso, os alunos interagem com atores, que fazem o papel de familiares

recebendo a notícia da morte encefálica. Na simulação, os alunos são instruídos a fazer

uma abordagem sensível, perguntando primeiro como era a vida do familiar, do que ele

gostava, para só então abrir a possibilidade de autorizar a doação. Na província

espanhola de Alicante, esse tipo de abordagem chegou a zerar a recusa nos anos 1990.

Nos últimos anos, Carmen também colaborou como consultora em alguns filmes do

cineasta Pedro Almodóvar, como Tudo sobre minha mãe (1998), no qual a personagem

de uma enfermeira que atua na coordenação de transplantes em um hospital foi inspirada

no trabalho da fundadora da ONT.

Embora a prioridade na Espanha seja promover boas práticas de comunicação

entre profissionais da saúde, o país também investe em campanhas de esclarecimento.

Marcelo José dos Santos, pesquisador da Escola de Enfermagem da USP, participou

como aluno do curso oferecido pela ONT, durante uma viagem à Espanha em 2001.

Segundo ele, lá a doação de órgãos é um tema apresentado a crianças e adolescentes

desde o ensino básico, por meio de programas educativos. “No Brasil, ainda temos muito

trabalho a fazer nesse sentido. Não basta investir só em treinamento dos profissionais da

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saúde”, adverte. “Aqui, a população ainda confunde muito morte encefálica com coma,

por exemplo”, diz Santos, que atualmente realiza um estágio de pós-doutorado sobre o

assunto, cujos resultados parciais mostram que a recusa familiar é maior ainda em

relação à autorização de doação de tecidos ósseos, pele e córnea. Uma das pistas para

explicar a rejeição seria o fato de as famílias desconhecerem a possibilidade desse tipo

de doação ou terem aversão à ideia de que o corpo seja mutilado.

Também os Estados Unidos e o Reino Unido passaram a investir em campanhas.

No primeiro caso, os esforços têm contribuído para aumentar o número de doadores.

Atualmente, mais de 100 milhões de norte-americanos, pouco mais de um terço da

população, declaram-se doadores de órgãos. Apesar disso, o governo segue preocupado

com a recusa familiar, que no momento está em torno de 22% no país.

Uma pesquisa feita pela Rede de Transplantes e Procura de Órgãos norte-

americana (OPTN) mostrou que os motivos que levam famílias a não doar órgãos de

parentes são os mesmos encontrados em outros países. Uma das estratégias adotadas

pelo governo foi esclarecer a população por meio do site Organ Donor, pelas redes

sociais e campanhas em rádio e TV. Pesquisadores também são convidados a participar

para divulgar informações sobre procedimentos relacionados à doação.

O Reino Unido apresenta atualmente uma taxa de recusa familiar de 42%, uma das

mais altas do continente europeu. No ano passado, o número de doações caiu pela

primeira vez em 11 anos. Segundo um levantamento do National Health Service (NHS), o

sistema público de saúde inglês, 16,9 milhões de pessoas – cerca de um terço dos

adultos no Reino Unido – admitem que nunca consideraram a possibilidade de se

tornarem doadoras de órgãos. Outros 4 milhões declararam ser doadores, mas nunca

avisaram um familiar. Para tentar reverter isso, o governo britânico criou um site com

esclarecimentos sobre o processo de doação de órgãos.

Segundo Bartira Roza, uma das hipóteses que explicam o aumento da recusa

familiar em alguns países da Europa é a repercussão negativa de um episódio ocorrido na

Alemanha em 2013. Na ocasião, descobriu-se que o responsável pelo setor de

transplantes do Hospital Universitário de Göttingen, manipulou a fila de transplantes,

alterando dados médicos de pacientes que esperavam por um órgão. Após o escândalo

ser revelado, o número de órgãos doados caiu 20% no país.

Bartira lembra que o Brasil já passou por situação parecida, quando uma mudança

na legislação resultou na queda drástica do número de doações. Em 1997, foi instituída a

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doação presumida, pela qual todo cidadão passou a ser considerado doador de órgãos, a

menos que optasse por registrar o desejo contrário no documento de identidade. O efeito

foi o oposto do desejado. No Nordeste, a maioria dos indivíduos declarou-se não doadora

na hora de tirar ou renovar a identidade. “As pessoas tinham medo de entrar nos hospitais

e morrerem por conta do descaso”, conta Bartira. Em 1998, uma medida provisória

instituiu a autorização familiar nos casos de ausência de manifestação nas carteiras

nacionais de habilitação ou nos registros de identidade. Somente em 2001 a doação

consentida pela família foi incorporada na legislação. Para a pesquisadora, qualquer

mudança na lei pode determinar o sucesso ou o fracasso das doações de órgãos no país.

“As estratégias precisam estar em sintonia com o contexto cultural e ético da sociedade”,

diz Bartira

Proposta textual

Com base na leitura acima e nos conhecimentos construídos ao longo de sua

formação, redija um texto dissertativo-argumentativo em norma culta escrita da língua

portuguesa sobre o tema: “Dilemas da doação de órgãos no Brasil”. Apresente uma

proposta de intervenção e/ou conscientização social que respeite os direitos humanos.

Selecione, organize e relacione, de forma coerente e coesa, argumentos e fatos para

defender o seu ponto de vista.

Instruções

– O texto definitivo deve ser escrito à tinta, na folha própria, em até 30 linhas.

– A redação com até 7 (sete) linhas escritas será considerada “insuficiente” e receberá

nota zero.

– A redação que fugir ao tema ou que não atender ao tipo dissertativo-argumentativo

receberá nota zero.

– A redação que apresentar proposta de intervenção que desrespeite os direitos humanos

receberá nota zero.

– A redação que apresentar cópia dos textos da Proposta de Redação terá o número de

linhas copiadas desconsiderado para efeito de correção.

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Leitura complementarENTREVISTA: DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS NO BRASIL

com Ben-Hur Ferraz Neto é ex-presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos e

chefe do programa de transplante de fígado do Hospital Albert Einstein.

Como em muitas outras áreas, o Brasil apresenta enormes disparidades nas

estatísticas de doações e transplantes de órgãos. Enquanto alguns estados há anos

alcançam números comparáveis aos melhores no mundo, outros chegam ao final do ano

sem realizar um transplante sequer. Nesta entrevista, o presidente da ABTO (Associação

Brasileira de Transplantes de Órgãos), Dr. Ben-Hur Ferraz Neto, fala sobre a situação das

doações e transplantes efetivados no País e como cada um pode contribuir para melhorar

os números brasileiros na área.

Há alguns anos estabeleceu-se que todos os brasileiros seriam doadores de órgãos e que quem não o quisesse fazer, teria de registrar essa negativa no R.G. Hoje, como se define quem é ou não doador?

Ben-Hur Ferraz Neto – A inscrição na carteira de identidade e de motorista que

mostrava a opção do indivíduo e, na sua ausência, a presunção de que se tratava de um

doador, não tem mais valor desde o ano 2000. Nós passamos do sistema de doação

presumida para o que chamamos de doação consentida. O que vale, hoje, é o que a

família resolve. Quem autoriza a doação de órgãos atualmente é a família, começando

pelos parentes mais próximos: pai e mãe, filhos, marido ou esposa e assim por diante.

Estamos convencidos de que, culturalmente, essa é a forma mais adequada para nós.

Ainda assim, as negativas familiares sempre foram a principal causa de nãoefetivação de transplantes. No RBT (Registro Brasileiro de Transplantes) parcial de 2011, notamos que, em relação a 2010, houve aumento no número de recusas na maioria dos estados. Em muitos casos, esse aumento foi muito grande. No Maranhão, por exemplo, o número de negativas saltou de 33,3% em 2010 para 78,6% em 2011 até o momento. A que se deve essa mudança?

Ben-Hur Ferraz Neto – O número de negativas, à primeira vista, pode ser

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interpretado como algo que aumentou, mas não é verdade. O que ocorreu foi uma

mudança no método de avaliação. Antes, a porcentagem de negativas familiares era dada

em relação ao número de doadores. Só que alguns potenciais doadores deixavam de ser

doadores no meio do caminho, como ocorre em casos de parada cardíaca, ou algumas

famílias não eram encontradas para a entrevista. Assim, a porcentagem de negativas

acabava caindo. Agora, o dado é em relação ao número de famílias entrevistadas, o que

revela um número mais fidedigno da recusa familiar no Brasil.

Por esse novo método, não temos dados de alguns estados. Mesmo assim, pelo que se sabe, o número de negativas familiares no Brasil é considerado aceitável?

Ben-Hur Ferraz Neto – De forma geral, entre os países melhores colocados no que

se refere a doações de órgãos, a cada quatro famílias, uma nega a permissão. Entre os

piores, a cada quatro famílias, duas negam. Nós estimamos não estar longe disso. Pelo

grau de educação e de informação do nosso povo, podemos concluir que o brasileiro

aceita bem o processo de doação.

Qual é o quadro atual de transplantes efetivados no Brasil?Ben-Hur Ferraz Neto – Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do

mundo a realizar transplantes de órgãos (6402 em 2010, sem contar células e tecidos);

fica atrás apenas dos Estados Unidos. Mesmo assim, esse é um número muito pequeno,

se considerado o tamanho de sua população. Além disso, infelizmente, existem

discrepâncias muito grandes entre os estados. Nós deveríamos ter de 20 a 25 doadores

de fígado pmp (por milhão de população), por exemplo, mas temos ao redor de oito. Só

que em São Paulo, esse número chega a 16. No Ceará, alcança 18. São números bem

próximos da demanda local e até acima de muitos países desenvolvidos. Por outro lado,

as regiões Norte e Centro-oeste sequer têm equipes de transplante de fígado. Apesar

disso, pode-se dizer que o País está no caminho certo.

O que leva a essa conclusão?Ben-Hur Ferraz Neto – A organização do sistema, do ponto de vista de

transparência e de credibilidade, amadureceu. Hoje, apesar de todos os problemas que o

Brasil enfrenta, as pessoas estão convencidas de que ninguém consegue passar na

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frente de ninguém, nem por questões econômicas nem políticas. E não consegue,

mesmo. No primeiro semestre de 2011, já registramos mais de dez doadores pmp, um

recorde histórico. Em estados como Santa Catarina, São Paulo, Ceará, Rio Grande do

Norte, os números têm aumentado progressivamente. São Paulo e Santa Catarina, por

exemplo, têm índices muito superiores à média dos Estados Unidos e da Europa. Mas

precisa haver investimento, vontade política e ações baseadas em um programa

estruturado. Não adianta sair por aí fazendo o que se “acha” que vai resolver a questão.

Que medidas precisam ser tomadas para melhorar o número de doações e transplantes realizados no País?

A Saúde Pública como um todo tem que melhorar para que possamos melhorar

também a captação de órgãos. Quem é o potencial doador? Na maioria das vezes, é um

indivíduo que teve um AVC ou um trauma craniencefálico, que evoluiu para morte

encefálica. Em ambos os casos, trata-se de um indivíduo que até aquele momento estava

se sentindo bem e, por isso, será atendido nos serviços de emergência. Então, na medida

em que os serviços de emergência têm problemas graves de atendimento que não

superam, a possibilidade de efetivar transplantes também fica limitada, pois ficam

prejudicados o processo de diagnóstico de morte encefálica e a manutenção dos

potenciais doadores. É indispensável haver, além de informação, a profissionalização do

sistema de captação de órgãos em parceria com os estados e uma política local de

doações. Sem dúvida, esses são os três pilares para que a questão seja desenvolvida

com sustentabilidade e melhora progressiva.

Ações em nível local são importantes nessa questão, portanto.Ben-Hur Ferraz Neto – É preciso formar profissionais que possam trabalhar em

todos os lugares e sobreviver dessa profissão em qualquer região do País. Precisamos

evoluir dos bons números pontuais para um quadro que contemple melhor distribuição de

órgãos doados e melhor acesso ao transplante no País como um todo. Não adianta um

indivíduo da Região Norte precisar de um transplante de fígado e só poder fazer na

Região Sudeste. Por ser um brasileiro como outro qualquer, ele tem o direito de ser

transplantado em qualquer estado. Entretanto, o acesso fora do estado de origem é mais

complexo.

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A troca de órgãos entre estados é uma saída para ajudar a diminuir as disparidades entre as regiões?

Ben-Hur Ferraz Neto – A princípio, os órgãos captados em um determinado estado

são disponibilizados para os receptores que estão na lista daquele estado. É uma forma

absolutamente lógica de otimizar a qualidade. Transplantar um fígado que ficou 16 horas

no gelo é pior que transplantar um que ficou oito. Além disso, esse sistema cria certo

estímulo local. Na medida em que os órgãos ficam na sua própria região, existe uma

tendência de que esse trabalho seja reconhecido naquela área.

Todavia, existe um sistema previamente estabelecido para a troca entre regiões.

Caso um órgão seja captado em um determinado estado que não tem aquele tipo de

transplante ou que não tenha, naquele momento, nenhum receptor compatível, a

Secretaria de Saúde do local, por meio da sua Central de Transplantes, entra em contato

com a Central Nacional, que fica em Brasília. A Central Nacional, então, redistribui esse

órgão mediante alguns critérios também previamente estabelecidos. Um deles é a malha

aérea disponível. Por isso, não adianta definir que um órgão de São Paulo vá para o Acre,

se não há transporte que faça o trajeto em tempo viável. Depois da disponibilidade aérea,

vêm os critérios de gravidade, compatibilidade, etc., o que torna o acesso ainda mais

difícil.

O Ceará é um dos estados que figura entre os primeiros colocados na efetivação de transplantes de vários órgãos, apesar de o Nordeste como um todo não apresentar números tão bons. Gostaria que o senhor explicasse a experiência desse estado.

Ben-Hur Ferraz Neto – Existe a necessidade de um interesse local no

desenvolvimento de qualquer tipo de novidade ou progresso. O estado do Ceará criou

uma política estadual de transplantes. Não uma política de ganhar votos, mas uma

política de ação. Simplesmente foi colocada, entre as prioridades, a política de

transplantes, que consiste em investir na formação de um grupo para fazer o trabalho de

captação de órgãos. Para tanto, foram formados profissionais e feitas contratações de

pessoal. A atual coordenadora estadual do Ceará (Dra. Eliana Régia Barbosa de Almeida)

é uma das pessoas que têm atividade muito forte na formação de equipes ao redor do

Brasil via ABTO. O sucesso dessa política, portanto, é fruto de um trabalho contínuo que

obviamente requer um investimento inicial. Hoje, a equipe transplantadora de fígado do

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Ceará é uma das melhores do nosso País.

Pelo RTB do primeiro trimestre de 2011, percebemos certa apreensão com o número de doações, que até aquele momento estavam abaixo das expectativas. Já no RTB do primeiro semestre, ficou evidente uma inversão quase completa desse quadro. O ritmo de doações e transplantes é flutuante de forma aleatória ou existe algo que explique esse movimento em tempo tão curto?

Ben-Hur Ferraz Neto – Existe uma sazonalidade no que diz respeito à doação, mas

nesse caso específico da diferença do primeiro trimestre para o primeiro semestre de

2011, na minha avaliação, pesou outro fator importante, as eleições estaduais. Todas as

Centrais de Transplante são órgãos oficiais das Secretarias de Estado da Saúde. Como

houve grande mudança nos governos e, consequentemente, a substituição do

secretariado, tenho conhecimento de que algumas secretarias suspenderam os

investimentos até que o novo secretário tomasse pé da realidade daquele local.

Por isso, algumas secretarias que tinham na sua programação contratar mais

pessoas, não o fizeram, e algumas até deixaram de renovar contratos que eram

emergenciais. Isso deve ter acarretado um decréscimo inicial que obviamente foi

percebido pelos secretários então empossados e a tendência de queda foi revertida. Mas

eu mesmo testemunhei, como presidente da ABTO, no primeiro trimestre de 2011, uma

forte preocupação por parte de alguns coordenadores de transplante a respeito das

políticas que estavam sendo freadas pelos novos secretários.

O impacto de questões políticas no quadro de transplantes, então, é imediato.

Ben-Hur Ferraz Neto – É rápido porque são questões que podem impedir ou não a

manutenção de profissionais que trabalham naquela atividade. Bastar cortar o cargo para

cortar a ação. Como já dissemos, no Brasil, a doação de órgãos está crescendo, mas se

caem os números em São Paulo, Santa Catarina e Ceará, a influência será muito grande,

pois esses três estados são os maiores captadores de órgãos do país. Portanto, se

tivermos problemas em algumas cidades desses estados – e tivemos –, isso deve ter

repercutido nos resultados do começo do ano.

Que medidas fora do âmbito político podem ser tomadas para melhorar as

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estatísticas de doações no Brasil?Ben-Hur Ferraz Neto – O melhor a fazer é cada um conversar com seus familiares

em um momento traqnuilo, sem dor, fora de um contexto de tristeza, sobre a vontade de

ser um doador. Como os potenciais doadores são aqueles que no dia anterior ou alguns

dias antes de morrer estavam ótimos, conhecer a vontade dessa pessoa pode ser

fundamental para a aceitação ou recusa da doação. Se a vontade da pessoa que morreu

for desconhecida e aquela família nunca discutiu o assunto, claro que aquela hora de dor

é o pior momento para falar sobre este assunto, e a probabilidade de uma negativa será

sempre maior. Então, se as pessoas quiserem que seus órgãos sejam doados, a melhor

forma de fazê-lo é conversar com seus familiares a respeito de sua vontade e intenção.

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