Vida e Morte Nr2334t34o Grupo Balint

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TEMPO DE VIDA E TEMPO DE MORTE NO GRUPO BALINT Gilda Kelner 1 Norma Filgueira 2 Uma jovem internista relata o caso de um paciente de 48 anos, portador de Hepatite C e anticorpos para Hepatite B, que evoluiu para cirrose hepática, com múltiplos internamentos hospitalares, por intercorrências várias, com back ground de insuficiência hepática. O paciente sempre se recusava a assumir seus diagnósticos de hepatite e cirrose, os escondia da família e dos amigos, sendo que a única pessoa que partilhava desta situação era sua esposa, Tamara, cuja relação com a médica assistente era muito mais próxima que a do próprio paciente, Jamelão. O paciente tentava escapar de viver as situações de doença e, conseqüentemente, do diagnóstico e do tratamento. Dra. Norma estivera na iminência de desistir do caso, quando o apresentou, pela primeira vez, no Balint. Ela é uma jovem médica especialmente competente e muito comprometida com o exercício da profissão, em toda a sua abrangência. Esta vontade de desistir a abalava profundamente. Foi refletido, no grupo, o quanto o paciente a intimidava e tentava desmobilizá-la de suas funções e competências profissionais e de como seu sentimento de raiva lhe impossibilitava de agir como requeria a situação. Foi sugerido que Dra. Norma falasse com seu paciente de como ele, não podendo suportar a doença, tentava agir como “um forte” que dava ordens e marcava as determinações e de como esta tentativa de tornar-se forte, daquela 1 Psicanalista do CPP. Médica. Prof. Adjunto da UFPE Coordenadora de grupos Balint 2 Médica. Mestranda de Medicina Clínica e Prof. Auxiliar do Departamento de Medicina Clínica - UFPE

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TEMPO DE VIDA E TEMPO DE MORTE NO GRUPO BALINT

Gilda Kelner1 Norma Filgueira2

Uma jovem internista relata o caso de um paciente de 48 anos,

portador de Hepatite C e anticorpos para Hepatite B, que evoluiu para cirrose

hepática, com múltiplos internamentos hospitalares, por intercorrências várias,

com back ground de insuficiência hepática.

O paciente sempre se recusava a assumir seus diagnósticos de hepatite

e cirrose, os escondia da família e dos amigos, sendo que a única pessoa que

partilhava desta situação era sua esposa, Tamara, cuja relação com a médica

assistente era muito mais próxima que a do próprio paciente, Jamelão.

O paciente tentava escapar de viver as situações de doença e,

conseqüentemente, do diagnóstico e do tratamento.

Dra. Norma estivera na iminência de desistir do caso, quando o

apresentou, pela primeira vez, no Balint.

Ela é uma jovem médica especialmente competente e muito

comprometida com o exercício da profissão, em toda a sua abrangência. Esta

vontade de desistir a abalava profundamente.

Foi refletido, no grupo, o quanto o paciente a intimidava e tentava

desmobilizá-la de suas funções e competências profissionais e de como seu

sentimento de raiva lhe impossibilitava de agir como requeria a situação.

Foi sugerido que Dra. Norma falasse com seu paciente de como ele,

não podendo suportar a doença, tentava agir como “um forte” que dava ordens e

marcava as determinações e de como esta tentativa de tornar-se forte, daquela

1 Psicanalista do CPP. Médica. Prof. Adjunto da UFPE

Coordenadora de grupos Balint 2 Médica. Mestranda de Medicina Clínica e Prof. Auxiliar do Departamento de Medicina Clínica - UFPE

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maneira, não o ajudava muito. Sugeriu-se também que ela se aproximasse dele,

colocando-se mais disponível para viver, junto com ele, o que ele estava

precisando viver.

Dra. Norma continuou cuidando do Sr. Jamelão.

Tempos depois, trouxe o caso de volta à discussão, quando apareceu

um nódulo hepático, à ultrassonografia de rotina, mas o prosseguimento da

necessária investigação diagnóstica foi interrompida pela conduta “alienada” do

paciente.

A médica se referia à negação e à negatividade do paciente como uma

grande dificuldade para trabalhar com ele. Além disso, a esposa lhe telefonava

dezenas de vezes por semana, para falar às escondidas sobre o paciente, para

saber o que ela deveria dizer a ele, já que a Sra. Tamara fora terminantemente

proibida, pelo marido, de falar sobre sua doença a quem quer que seja. Dra.

Norma enfatizava a importância de suspender o álcool, diante do quadro clínico.

Apesar de sua insistência, o paciente fugiu da investigação do quadro

hepático e só voltou à consulta porque necessitava realizar uma cirurgia dentária

e os exames de coagulação estavam alterados. Neste momento, foi obrigado a

fazer a laparoscopia com biópsia hepática, que revelaram um tumor maligno no

fígado. Segundo a médica, o paciente continuava agindo como que escamoteando

a verdade, fazendo-se de desentendido, descompromissado, ou como se toda

aquela situação não estivesse acontecendo com ele. Dra. Norma resolveu dizer-

lhe que não dava para continuar com essa brincadeira de que não estava

acontecendo nada fora da rotina, fora do normal.

Depois de numerosas idas e vindas, com recusas ao tratamento, as

mais variadas, ficou posto que ele seria candidato a transplante de fígado.

Foi encaminhado para São Paulo, para tentar o transplante e, nos

exames pré-operatórios, verificou-se que Jamelão era HIV positivo o que,

naturalmente, inviabilizava a indicação.

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Do ponto de vista epidemiológico, um paciente com tantos vírus,

hepatite C, B, HIV, presumivelmente tinha práticas homossexuais como fator de

risco, o que ele negou implacavelmente.

O paciente tinha dois filhos, de 10 e 8 anos de idade e era brigado com

toda a família. Só se relacionava com a família da esposa. Insistia sempre na

necessidade de guardarem o “seu segredo”, Dra. Norma e sua esposa, segredo

que, muitas vezes, se tornava insuportável, senão impossível, do ponto de vista

objetivo.

Dra. Norma, sempre muito inquieta diante do caso, discutiu-o com

vários especialistas, pesquisou muitas revistas científicas, enfim, despendeu

muitas horas de estudo e trabalho com este paciente.

Reapresentou o caso ao Balint com a seguinte questão. Palavras

textuais da médica:

“Jamelão está até bem do hepatocarcinoma hepático, mas a AIDS está

se desenvolvendo e ele está piorando a olhos vistos. Como é muito mais

degradante morrer de AIDS, caquético, cheio de infecções, com Kaposi pelo

corpo todo, que ele já tem ... De passagem, quero lembrar que o sarcoma de

Kaposi, em 96% dos casos, aparece em homossexuais. Já tentei que ele

conversasse comigo, lhe assegurei que minha aliança era com ele e não com

Tamara, mas ele disse que não tinha nenhum segredo a esconder de ninguém.

Achei que, tendo recebido uma dosagem de creatinina de 5,2mg%,

prestes ao desenlace de uma insuficiência renal crônica, era chegada a hora de

saber como Jamelão queria morrer. Disse-lhe que sua função renal estava

diminuindo e que iria chegar o momento em que, para manter a vida, ele teria

que recorrer à hemodiálise e lhe perguntei o que ele queria que eu fizesse por ele;

porque, para mim, morrer de uremia é, mais digno que morrer em estágio final de

AIDS, eu pensei.

Ele pediu que eu fosse mais clara, que ele não estava entendendo

muito bem o que eu estava falando. Tentei recolocar a questão. Em vão. Tamara

começou a falar e perguntou o que era mesmo o que eu estava querendo dizer.

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Voltei-me para Jamelão e perguntei objetivamente: O que você quer?

Ele me olhou, tranqüilamente e me respondeu: “Quero ficar bom”. Retruquei

que, como já havíamos discutido anteriormente, não tenho poderes para

recuperar-lhe a saúde. Sendo assim, ele disse, o que a senhora decidir, ficará

bem.

Ele terminou sem me dar uma resposta concreta. Eu queria essa

discussão agora porque, quando o quadro agravasse, ele não teria mais poder de

decisão. E a responsabilidade seria toda minha.

Com minha preocupação, discuti este caso com muita gente; quando

ele chegava, no hospital, para atendimento, já era bem conhecido e surgia a

pergunta. Então, você é o Jamelão? Eu fico com medo de estar passando por

fofoqueira, mas preciso reunir todos os esforços para me esclarecer sobre a

melhor conduta”.

Era clara a inquietação de Dra. Norma. Ela precisava de respostas

explícitas e não obteve senão a entrega total da gestão do destino do paciente.

O grupo Balint se posicionou de formas variadas.

Um dos componentes disse que se fosse com ele, gostaria de viver até

o último momento possível, por pior que possa parecer.

Outros componentes destacaram que a Dra. Norma necessitou a

antecipação dos fatos por causa de sua enorme inquietação de viver a degradação

do quadro clínico de Jamelão. Ele, de sua parte, teria que viver cada momento

para, só então, poder pensar como interagiria com estes momentos.

Pensou-se nas dificuldades de cada médico diante da morte anunciada,

cuja prevenção é impossível e de como este fato se confronta com a impotência

médica.

Exemplos foram lembrados de outros casos de AIDS, cujas trajetórias

foram seguidas e, as vezes alijadas pelos próprios médicos.

Do ponto de vista contratransferencial, como o médico vive a morte

de seu paciente e o que isso tem a ver com a sua própria morte?

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Muitos meses depois, Dra. Norma perdeu uma pessoa muito querida

de sua família, passou um período ausente do hospital e, no primeiro Balint que

compareceu, depois deste quadro, reapresentou seu paciente.

“Jamelão morreu. Entrou em IRC (insuficiência renal crônica) e não

foi indicada a hemodiálise. Foi fazer uma tomografia e fez um quadro de

insuficiência respiratória. Foi colocado no respirador, o que havia pedido para

nunca acontecer.

Nem cheguei a sofrer muito com esta morte, porque estava, eu

própria, vivendo o meu luto.

Depois, a esposa me procurou e pediu para alterar o atestado de óbito

uma vez que o diagnóstico estigmatizante de AIDS lhe subtrairia a possibilidade

de cobertura pelo seguro de saúde, ainda que ele também tivesse outras doenças,

hepatite, cirrose, hepatocarcinoma, IRC, insuficiência respiratória, etc.,

decorrentes, quase todas da AIDS.

Dra. Norma se viu diante de um impasse. De um lado, sua dignidade

não lhe permitiria omitir este diagnóstico da Secretaria de Saúde, doença de

notificação compulsória. Neste momento, lamentando a injustiça destas

seguradoras. Dra. Norma silenciou quando Tamara disse que mandaria o laudo

verdadeiro para a Secretaria de Saúde e apagaria o diagnóstico de AIDS do

atestado de óbito enviado à companhia de seguros. Esta “falsificação permitida”

seria inimaginável para quem conhece Dra. Norma, irrepreensível na sua conduta

profissional e ética.

Considerando o indivíduo, o tempo de vida e o tempo de morte estão

imbricados, a sua predominância dependendo do destino pulsional e seus

desdobramentos conseqüentes nos vários tempos marcados da trajetória do

sujeito e das suas relações de objeto.

Em se tratando de uma disciplina dialética, na Psicanálise, tudo

funcionaria em pares; um movimento não é concebível sem seu contrário. A vida

e a morte estão em constante movimento de vai-e-vém, ora predominando um,

ora predominando o contrário. Em alguns indivíduos, o “vai para a morte” ocupa

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um espaço primordial e o “vem para a vida” é apenas o contraponto pré-definido

dialeticamente.

Segundo Freud, existem grandes mecanismos, que são

conceitualmente compreensíveis e não são entidades mitológicas

(EROS/TANATOS), que dão conta das atividades das pulsões de vida e de

morte. O movimento para a pulsão de vida é a ligação e o movimento para a

pulsão de morte é o desligamento.

Para Green, as pulsões de vida, que Freud chamou de “pulsões de

vida ou de amor, são um conjunto mais amplo do que o da sexualidade, mas é,

pela sexualidade que podemos ter idéia do que seja a pulsão de amor ou de vida.

O grande mecanismo que serve para definir a ação dessa pulsão é a ligação,

porque sexualidade é ligação”. Além do mais, não se pode pensar em sexualidade

sem objeto. A conclusão do autor é de que o papel da pulsão de vida é assegurar

uma função objetalizante, isso é, ligar à pulsão de amor ao objeto.

Ao lado da função objetalizante que postula a ligação entre a pulsão

de vida ao objeto, Green também identifica uma função desobjetalizante, para a

pulsão de morte, que significa que a pulsão de morte entra em ação cada vez que

o sujeito realiza, diante do objeto, uma desqualificação de sua própria

singularidade e de seus atributos.

Em 1925 (vol. XIV), Freud escreveu:

“Nós fomos preparados para afirmar que a morte é a conseqüência

necessária da vida ... Na realidade, fomos acostumados a nos comportar como se

fosse de outra forma. Apresentamos uma tendência inequívoca a colocar de lado

a morte, a eliminá-la da vida. Tentamos abafá-la. A nossa própria morte, é claro

... No inconsciente, todos estão convencidos de sua própria imortalidade”.

De vez em quando nos surpreendemos com a circunscrição de nosso

futuro. E cuidamos de torná-lo sem limites, infinito, alimentando negações (do

luto, da morte), ilusões de reencarnação (vida após a morte, etc., vida essa

fantasiada como eterna, num intermundo onde não há intempéries, onde tudo é

paz e perfeito gozo).

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É curioso lembrar que os arqueólogos podem datar a presença do

Homo sapiens em sítios arcaicos. Os mortos são separados dos vivos e

preparados para um possível caminho, diferentemente do tratamento aos mortos

pelos demais primatas.

Segundo Melanie Klein, “a relação do bebê com a vida e com a morte

ocorre no contexto de sua sobrevivência depender de seus objetos externos e do

equilíbrio de forças entre as pulsões de vida e de morte, que limitam sua

percepção destes objetos e sua capacidade de deles depender e de usá-los. Na

posição depressiva infantil, sob condições de predomínio do amor, os bons e

maus objetos podem, em alguma medida, ser sintetizados, o ego torna-se mais

integrado e se experimenta a esperança de restabelecimento do bom objeto; a

superação do pesar associado e a recuperação da segurança constituem o

equivalente infantil da noção de vida.

No entanto, sob condições de predomínio da perseguição, a

elaboração da posição depressiva será inibida em maior ou menor medida. A

separação e a síntese falham, e o mundo interno é inconscientemente sentido

como contendo o seio mau, desviado e destruído, persecutório e aniquilador, o

próprio ego sente-se em pedaços. A caótica situação interna, assim vivenciada, é

o equivalente infantil da noção de morte”.

O inconsciente teria, então, uma concepção de morte? Parece que

Freud e Melanie Klein não são concordantes neste particular, mas o inconsciente,

por si, não tem conhecimento da morte. Há experiências inconscientes

“aproximadas” às noções de morte.

Lembro de um pesadelo de uma paciente com uma forma clínica

severa de RCUI (retocolite ulcerativa inespecífica) de cor branca, criada por uma

mãe adotiva negra que lhe contava sobre todas as tentativas de aborto de sua mãe

verdadeira, e de seu nascimento conturbado, tendo sua avó ameaçado de amarrá-

la aos trilhos de um trem, recém-nascida, se sua mãe não a entregasse para

adoção, imediatamente. Neste sonho aterrorizante, a paciente se via num caixão,

no hospital aonde ela estava internada, moribunda, mas viva, sem poder

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expressar ou esboçar qualquer sinal de vida, com uma angústia indescritível,

porque ela estava imóvel, não falava, mas sentia, e ouvia todas as providências

para seu sepultamento, numa cerimônia solitária, pois nenhum parente se

interessava em saber de sua evolução clínica ou de sua morte.

Ouvia também, com pavor, o telefonema de um dos médicos

residentes para seu preceptor, no qual se discutia as causas do óbito.

Pareceu-me que a paciente viveu algo equivalente à morte, neste

pesadelo. Os médicos que deveriam cuidar dela não percebem o que se passa e,

ao invés de alimentá-la e medicá-la, “assinam seu atestado de óbito”, e, como

destacou M. Klein “o seio internalizado com ódio torna-se o representante da

pulsão de morte no interior”.

Quanto a Jamelão, mediante suas falas, deixa claro que não solicita a

médica para ajudá-lo a morrer, sentimento que a tomou subitamente quando

decidiu colocar a questão de como ele gostaria de morrer, assumindo que é mais

digno morrer de IRC que de AIDS. Como se fosse, contratransferencialmente,

uma recusa a uma relação terapêutica que requeresse tanta flexibilidade,

encarregada de um problema tão pesado.

Ele, o paciente, experimenta seu estado de saúde como uma

humilhação crônica e inominável, do qual ele pretende preservar-se, através de

seu segredo.

A atividade psíquica, nestas circunstâncias, diz respeito às relações

objetais do indivíduo mortalmente afetado, avidez relacional regressiva,

expansão pulsional paradoxal, etc., porém toca, igualmente, as relações do ego

com o corpo do sujeito, com seu próprio ser. (M’ Uzan)

Para a médica, sentir-se destruída ou preservada, o paciente lhe

confiando uma tarefa ou acabar-se e levá-la junto com ele, se convertem em atos

quase eqüivalentes e extremamente desconfortáveis. Assim, impossibilitada de

enfrentar este desconforto, se exclui de um projeto em comum com o paciente,

como que lhe comunicando que as fantasias que ele necessitasse viver fossem de

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sua inteira alçada, não a envolvessem. Como se ela precisasse livrar-se da

sensação de estar sendo sugada de sua própria essência, a grandes goles.

M’ Uzan distingue três aspectos essenciais nestes pacientes terminais:

um destino particular da libido narcísica, o papel da projeção e o aparecimento

do “outro”, que ele chama de duplo. Três aspectos que lhe parecem estreitamente

imbricados na realidade e integram um processo psíquico original, escalonado

em fases, específico, talvez de uma afecção mortal, em seu último estágio.

O autor se pergunta o que está, verdadeiramente, em jogo, quando, ao

reconhecimento de uma alteração orgânica tão grave, se opõe uma negação.

E, na verdade, frente ao imenso desencanto narcisista, resultante de

uma enfermidade tão avassaladora, a negação não oferece senão um recurso

provisório.

M’ Uzan propõe um desdobramento do corpo destes pacientes; uma

metade gêmea do corpo, um duplo, seria expulsa com a doença.

“Exterior, sem cumprir o papel de perseguidor, enfermo, porém vivo,

o duplo assume múltiplas funções que derivam, precisamente, de sua função

paradoxal. É o duplo que deve morrer no lugar do paciente e, portanto, o que

assegura sua sobrevivência. O duplo preservaria, até certo ponto, um

investimento narcísico suficiente para o próprio ser. Ao contrário do que se

poderia pensar, ele lutaria contra uma ameaça de despedaçamento, da mesma

forma que se projetaria como uma entidade. Poderia também polarizar um novo

investimento comparável a um investimento de objeto, que seria uma “cura”,

como é o delírio para a psicose”.

Se o duplo aparece com funções relativamente fáceis de imaginar, sua

origem, segundo M’ Uzan, invoca um problema muito mais complexo. Procede,

indubitavelmente, de um mecanismo projetivo, mas esta projeção especial não se

pode compreender se não está em relação com a regressão do ego. Quanto ao

caráter alucinatório do fenômeno, indica o nível provável de regressão.

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“Ao expulsar o seu duplo para um espaço diferente do seu próprio, o

paciente garante a uma parte de si mesmo um estatuto de extraterritorialidade,

comparável ao que existe nos primeiros tempos de vida”. (M’ Uzan)

O movimento contratransferencial da médica, não podendo ouvir seu

paciente falar sobre o fantasma de sua saída para a saúde, precisando que ele

resolvesse seu destino como paciente terminal, se coloca com uma

impossibilidade de ser ouvinte de algo alucinatório, compondo a cena e devolve

ao paciente a sua fantasia.

Laplanche e Pontalis, no seu trabalho “Fantasma originário, fantasmas

das origens, origem do fantasma” se perguntam se, ante a morte iminente, o

aparelho psíquico arcaico voltaria a por-se ativo sob a pressão de um fantasma já

presente nos tempos mais iniciais da vida, o fantasma do duplo. E aprofundam a

indagação: se este fantasma se referia a algo que o precederia, a uma espécie de

“representação ôca”, destinada a preencher-se, por causa das exigências da

evolução. Se assim fosse, argumenta M’ Uzan, o fantasma do duplo seria

compatível aos fantasmas originários e o moribundo, tendo expulsado seu duplo,

trataria as origens para organizar as últimas horas de sua vida.

Como a expulsão do duplo do paciente afetaria a sua médica?

Pareceu-me que ela recusou esta posição desde que refutou, dogmaticamente, sua

“viagem para uma saída saudável”, declarando-se incompetente para curá-lo de

suas doenças e precisando, avidamente, que ele definisse sua angústia hipocrática

de oferecer-lhe um caminho digno para morrer, enquanto que, para o paciente,

muitos outros caminhos estavam por ser percorridos, vagos e subjetivos,

subrepticiamente objetivados e sentidos como uma exigência descabida à

Medicina, exigência extorsiva, impossível de ser tolerada.

É como se o paciente e seu duplo invocassem o terceiro termo da

relação, simbolizado pela médica, e ela não quisesse participar deste concubinato

simbólico, como se, volitivamente, se ausentasse, o que não implicaria que, como

ausência, como negativo, não continuasse compondo a relação triangular, cujos

dois outros elementos seriam o paciente e seu duplo.

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O negativo, para Green, não é somente a imagem em relação à coisa, é

a imagem enquanto susceptível de se fazer passar pelo objeto.

Por mecanismos variados, que não saberíamos nem poderíamos

avaliar, a inquietação de ser objeto de tão complicada operação, mobilizou a Dra.

Norma a prosseguir com sua retirada estratégica de um caso tão difícil,

impossibilitada de sentir-se colocada nesta posição.

É como se a distância entre a realização alucinatória do desejo (a

saúde de um moribundo) e a experiência real de satisfação (a morte inevitável,

envolvendo a médica no processo) faz o outro (a médica) aparecer como não

desejante do desejo do sujeito (o paciente).

E justamente nesta posição, de não desejante do desejo do sujeito

(paciente) e, ainda mais, “acusada” por nós (do Balint) de proceder um desvio da

satisfação do sujeito, evocasse o paradoxo da situação: a médica, supostamente

não desejante do desejo do sujeito, não pode separar-se tão simplesmente,

solicitando que lhe passe o último desejo, de como morrer, e se desligue

completamente dela, médica.

Seria a imagem de Green da adoção da estratégia de desejo de não

desejo, em fuga perpétua, empenhada na dissolução das ancoragens relacionais,

de uma relação que se fixa na esterilidade de seus efeitos e em que a médica se

sente como seu paciente não lhe permitindo formular que o fracasso é dele, da

enfermidade, e não dela.

Por fim, algumas palavras sobre o segredo.

A oposição entre o aparente e o escondido, o manifesto e o latente, os

disfarces e o desejo, constitui um tema predominante na Psicanálise.

Que segredo estaria deslocado, em Jamelão, para a ocultação de sua

doença, para os outros e para si mesmo? Que armadilha tão bem montada, que

prosseguiria até depois de sua morte?

Abraham e Torok lembram que o histérico permanece aquém da mira

da realidade e aquilo que o histérico recalca teve um nome, preexistiu enquanto

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fala, no momento do recalcamento e este, portanto, teria, por função, dissimular

um segredo.

Este movimento de recalque ocorre na presença de testemunha (pelo

menos ego e id estão envolvidos), portanto, não há segredo que, nos primórdios,

não tenha sido partilhado.

O crime de esconder um desejo proibido não é um crime solitário;

refere-se, necessariamente, a um terceiro cúmplice como lugar de um gozo

indevido e a outros terceiros excluídos e, então, pelo mesmo gozo, excluídos.

Que os excluídos possam ter sido, neste caso, as empresas de seguro

de saúde, que nos têm causado, sempre e tanto, numerosos prejuízos e agravos,

éticos e morais.

No caso de Jamelão, seu segredo passado se fez presente através da

AIDS, como um “bloco de realidade”, e se essa realidade não pode morrer

completamente, ela também não pode pretender voltar à vida.

A força do desejo de Jamelão subsistiu à sua morte e foi cooptada por

sua esposa e sua médica, ainda que apenas como força e não como decifração.

De minha parte, como digo como Maria de Lourdes Hortas:

“Em cada morto que morreu, morri.

Em cada voz que se calou, calei.

E tantas vezes já me despedi,

de tanto ver morrer tanto morri

que, a morrer, já me habituei”.

Seis meses após a apresentação deste trabalho, Jamelão voltou ao

grupo Balint. Palavras da Dra. Norma:

“Trago novamente notícias de Jamelão, depois de morto. Eu nunca

escrevi, em canto nenhum, que ele tinha AIDS. Eu dizia à enfermeira para tomar

os cuidados necessários, mas não anotava nada no prontuário. Só no atestado de

óbito. Vocês se lembram que Tamara pediu-me para mudá-lo e eu lhe respondi

que não poderia esconder o diagnóstico da Secretaria de Saúde.

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Tamara continuou fazendo exames anti-AIDS e anti-HCV, como

planejamos. Todos têm sido negativos. Sempre me admira muito que ela jamais

demonstrou qualquer tipo de revolta depois que soube que o marido era portador

de AIDS. Pareceu-me sempre muito estranho.

O segredo da doença se manteve entre nós três, uma vez que ela tirou

uma cópia xerográfica autenticada do atestado de óbito, subtraindo o diagnóstico

de AIDS do documento.

Fazia algum tempo que eu solicitava os exames de Tamara e ela não

dava qualquer retorno.

Na semana passada, Tamara chega ao meu consultório, como se o

objetivo fosse apresentar o resultado dos exames. Contou-me que assumiu os

negócios de Jamelão e que os meninos estavam mais livres, sem as exigências

exageradas do pai. Perguntou-me quantas vezes mais teria que repetir os exames

e eu lhe respondi que apenas mais uma vez.

Quase estava para despedir-se, Tamara conta o seguinte episódio: na

semana anterior, ficara muito deprimida pois recebeu um telefonema de um

homem, amigo de seu marido e dela, convidando-a para jantar. Ficara aturdida,

começara a chorar, ainda durante o telefonema, e o interlocutor ficou aperreado.

Ela respondera que iria pensar e depois tornaria a contactá-lo. Os filhos

presenciaram o telefonema e interpelaram Tamara. Ela afirmara que não estava

traindo o pai deles, que já morrera.

Eu confirmei que ela tinha todo o direito e deveria jantar com o

amigo. Tenho certeza que foi isso que ela foi buscar no meu consultório.

Perguntei se ela contara aos filhos sobre o diagnóstico do pai e ela

disse que preservaria este segredo, como outros segredos da vida de Jamelão.

Hoje, eu tenho certeza que, nesta relação triangular, Jamelão, Tamara

e eu, só eu fora abstraída do conhecimento do segredo ... e eles precisavam de

mim para ocupar este lugar. É estranho que eu só tivesse percebido isso agora.

Quando surgiu um terceiro na minha relação com Tamara, ela me

requisita para uma atitude de permissão”.

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Os componentes do Balint discorreram sobre a proteção à mentira,

sobre a falta de reação de Tamara ao diagnóstico de AIDS, sobre a reação

extemporânea ao convite para jantar e sobre quem seria este homem, “velho

conhecido”. Será que ele fizera parte de um triângulo, em alguma época da vida

de Jamelão e Tamara? Pareceu-lhes que guardar um segredo com tanta

determinação e serenidade fosse, para Tamara, guardar o próprio segredo.

Revelá-lo, na linguagem manifesta de Tamara, seria não preservar a imagem de

Jamelão, mas o conteúdo latente sugere que o segredo estava também a serviço

da preservação da imagem da própria Tamara.

Dra. Norma estaria participando deste concubinato simbólico,

agüentando ser excluída de algo, só não agüentou quando tentou retirar-se do

período terminal de seu paciente.

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BIBLIOGRAFIA DE TEMPO DE VIDA E TEMPO DE MORTE NO

GRUPO BALINT

ABRAHAM, N e TOROK, M. “A casca e o núcleo”. Tradução de Maria José

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