Vestibular da prisão

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DOMINGO, 22 DE ABRIL DE 2012 - Fernando Poffo [email protected] “E u era da vida louca do mun- dão, ficava só na praia o dia inteiro e não queria saber de nada. Agora é diferente. Só penso em estudar bastante, fa- zer faculdade de psicologia e passar no concurso”, garante a adolescente Priscila*, de 17 anos, que acaba de ganhar o direito de viver em liberdade assistida, depois de passar 9 meses internada na unidade de Guarulhos da Fundação Casa, a antiga Febem de São Paulo, pelo crime de tráfico de drogas. No dia em que a Folha Uni- versal visitou a instituição, a jo- vem ainda estava reclusa. Prisci- la está prestes a fazer prova para o concurso de agente escolar, do Governo de São Paulo, antes de tentar, enfim, ingressar na universidade. Segundo a Fun- dação, no relatório da jovem foi acrescentado o fato de ela estar estudando para o Exa- me Nacional do Ensino Mé- dio (Enem) e ter sido inscrita para o concurso, além de seu bom comportamento. No mesmo caminho de Pris- cila, a garota Vivian, de 18 anos, internada há 1 ano e 1 mês por tentativa de homicídio, também está ansiosa para fazer o mesmo concurso e também prestar ves- tibular. “Eu pensei em serviço social, mas sou muito idealista, sei que vou querer mudar tudo e o sistema é complicado. Então, para não me estressar, acho que vou fazer biologia”, conta. A confiança das duas jovens, que poderão ser as primeiras de suas famílias a ingressar em um curso superior, faz todo sentido. Este ano, a Fundação Casa bateu recorde e viu nove internos entrar na faculdade – seis pelo Prouni (Programa Universidade para Todos), do Governo Federal, e três através do vestibular. O sucesso anima os internos, e a dupla de Gua- rulhos teve na própria unidade uma motivação. Graziela, de 19 anos, cum- priu pena de 1 ano e 22 dias por tentativa de homicídio e hoje frequenta aulas do curso de musicoterapia. Quando passou no vestibular este ano, o caso dela foi reanalisado e agora ela também está em liberdade assis- tida, na qual precisa se apresen- tar ao juiz a cada 15 dias. “Eu vou estudar muito. Com estudo já é difícil, então tem que ralar mesmo e fazer por onde. Eu aprendi muita No caminho do QUANDO O JOVEM ESTÁ EM REGIME DE INTERNAÇÃO, AGENTES DA FUNDAÇÃO CASA O ACOMPANHAM ATÉ A FACULDADE BOLA PRA FRENTE: A jovem Graziela passou na faculdade e hoje cursa musicoterapia. Ela também conquistou liberdade assistida após conseguir a vaga DEDICAÇÃO: As jovens Vivian e Priscila estudam na unidade de Guarulhos da Fundação Casa para passar no vestibular e também num concurso público do Estado de São Paulo. Priscila acaba de conseguir o direito de cumprir a pena em liberdade assistida FOTOS: DEMETRIO KOCH 8 g eral

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DOMINGO, 22 DE ABRIL DE 2012 -

Fernando Poffo

[email protected]

“Eu era da vida louca do mun-dão, ficava só na praia o

dia inteiro e não queria saber de nada. Agora é diferente. Só penso em estudar bastante, fa-zer faculdade de psicologia e passar no concurso”, garante a adolescente Priscila*, de 17 anos, que acaba de ganhar o direito de viver em liberdade assistida, depois de passar 9 meses internada na unidade de Guarulhos da Fundação Casa, a antiga Febem de São Paulo, pelo crime de tráfico de drogas. No dia em que a Folha Uni-versal visitou a instituição, a jo-vem ainda estava reclusa. Prisci-la está prestes a fazer prova para o concurso de agente escolar, do Governo de São Paulo, antes de tentar, enfim, ingressar na universidade. Segundo a Fun-dação, no relatório da jovem

foi acrescentado o fato de ela estar estudando para o Exa-me Nacional do Ensino Mé-dio (Enem) e ter sido inscrita para o concurso, além de seu bom comportamento.

No mesmo caminho de Pris-cila, a garota Vivian, de 18 anos, internada há 1 ano e 1 mês por tentativa de homicídio, também está ansiosa para fazer o mesmo concurso e também prestar ves-tibular. “Eu pensei em serviço social, mas sou muito idealista, sei que vou querer mudar tudo e o sistema é complicado. Então, para não me estressar, acho que vou fazer biologia”, conta.

A confiança das duas jovens, que poderão ser as primeiras de suas famílias a ingressar em um curso superior, faz todo sentido. Este ano, a Fundação Casa bateu recorde e viu nove internos entrar na faculdade – seis pelo Prouni (Programa Universidade para Todos), do Governo Federal, e três através do vestibular. O sucesso anima

os internos, e a dupla de Gua-rulhos teve na própria unidade uma motivação.

Graziela, de 19 anos, cum-priu pena de 1 ano e 22 dias por tentativa de homicídio e hoje frequenta aulas do curso de musicoterapia. Quando passou no vestibular este ano, o caso dela foi reanalisado e agora ela

também está em liberdade assis-tida, na qual precisa se apresen-tar ao juiz a cada 15 dias.

“Eu vou estudar muito. Com estudo já é difícil, então tem que ralar mesmo e fazer por onde. Eu aprendi muita

No caminho do bem

qUando o jovem

está em regime de

internação, agentes

da FUndação Casa

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até a FaCUldade

bola pra frente: A jovem Graziela passou na faculdade e hoje cursa musicoterapia. Ela também conquistou liberdade assistida após conseguir a vaga

dedicação: As jovens Vivian e Priscila estudam na unidade de Guarulhos da Fundação Casa para passar no vestibular e também num concurso público do Estado de São Paulo. Priscila acaba de conseguir o direito de cumprir a pena em liberdade assistida

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Nove internos da Fundação Casa, em São Paulo, foram aprovados na faculdade este ano. Número é recorde e anima outros jovens que sonham com um futuro melhor

No caminho do bem

“mais fácil do que na rede estadual”

A gerente da área escolar da Fun-dação Casa, Neuza Flores, não tem dúvida ao afirmar que é possível ob-servar dentro de algumas unidades uma situação bem mais propícia para o ensino do que em muitas escolas da rede estadual, que tem o mesmo currí-culo para os alunos. “Nas unidades es-truturadas é mais fácil do que na rede estadual, e os professores preferem dar aula nessas unidades”, disse ela. Um exemplo é a unidade Guarulhos Femi-nina, na qual a instituição compartilha a gestão com a organização da socie-dade civil Oxigênio Desenvolvimento de Políticas Públicas Sociais, responsá-vel pela contratação dos agentes edu-cacionais e de saúde, além de adminis-trar a verba dessas áreas.

Por não ser um órgão público, a Oxigênio tem mais liberdade para conseguir parcerias e convênios, como na captura de ingressos para eventos culturais ou para tentar patrocínios para atividades e cursos profissiona-lizantes dentro ou fora da Fundação. Além de confirmar o maior interesse dos professores em dar aula, a coorde-nadora pedagógica da unidade, Sinhá Carvalho de Oliveira, ressalta o inte-resse das internas : “Mesmo as que es-tavam sem estudar há mais de 2 anos, em 2 meses já ficam motivadas, se cobram e até pedem material de fora para ampliar o conhecimento”, conta.

“A escola aqui é bem melhor por-que é quase aula particular e fica mais fácil. Antes, eu não tinha essa visão da escola e nem frequenta-va. Eu melhorei 1.000%”, afirma a adolescente Priscila, de 17 anos, que acaba de entrar em regime de liber-dade assistida, após 9 meses inter-nada na unidade de Guarulhos, por tráfico de drogas. Ela está estudando para passar em um concurso públi-co e também no vestibular.

os adolesCentes

também estUdam

para entrar

nas eteCs. este

ano, 18 internos

ConsegUiram vaga

coisa lá dentro, mas sei que tem menina que escolheu aqui-lo para a vida. Só que dá para sair da criminalidade. Lá den-tro tem toda estrutura para essa mudança e fico muito feliz por ser um espelho para as meni-nas”, diz Graziela.

Além dela, um interno de Sorocaba (SP) passou em co-mércio exterior e outro de Mogi Mirim foi aprovado em educação física, mesmo curso escolhido por três internos que entraram na universidade pelo Prouni – dois da unidade da rodovia Raposo Tavares e um de Iaras, cidade que também emplacou um jovem no curso de pedagogia. As outras duas vagas do Prouni foram con-quistadas por adolescentes de Franco da Rocha, para logística e produção cênica.

Além de estudar para con-quistar uma vaga em universi-dades, os internos também se esforçam para ingressar nas Es-colas Técnicas Estaduais (Etecs)

– este ano, 18 adolescentes em todo o Estado passaram nos exames para diferentes cursos, entre eles administração, infor-mática e agropecuária.

A cada conquista dos ado-lescentes, o caso passa por nova análise e a medida socioeduca-tiva do jovem pode ser alterada, como ocorreu com Graziela.

Mas, caso a pena seja manti-da, funcionários da instituição acompanham o adolescente no período em que ele realiza essas atividades externas.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das adolescentes

incentivo: Jovem retira um livro na biblioteca da unidade da rodovia Raposo Tavares

concentração: Internas durante aula em Guarulhos. As adolescentes aprovam a estrutura e confiam nos professores

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