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Verdade, Educação e Cultura: Uma aproximação Reformada 1 INTRODUÇÃO: “‘Por favor, por favor!’ disse um peixe do mar a um outro peixe: ‘Você que deve ter mais experiência, talvez possa ajudar-me... Então me diga: Onde posso encontrar a coisa imensa que chamam de Oceano? Em toda a parte eu o venho buscando sem sucesso’. ‘Mas é precisamente no Oceano que você está nadando’, disse o outro. ‘Oh... isto? Mas é pura e simplesmente água!’ disse o peixe mais jovem, ‘eu procuro é o grande Oceano!’ E lá se foi nadando, muito desapontado, a buscar noutra parte” Anthony de Mello. 2 “Se a cosmovisão cristã pudesse ser resta- belecida no lugar de destaque e respeito na universidade, isso teria um efeito de fermen- tação no meio da sociedade. Se mudarmos a universidade, mudaremos nossa cultura por in- termédio dos que a moldam” J.P. Moreland; William L. Craig. 3 . INTRODUÇÃO: A nossa percepção de um objeto está associada quase de modo imperceptível às nossas estruturas de pensamento que envolvem inúmeros elementos desde mais obviamente sensoriais, passando por questões de gênero, lugar, tempo, formação, prioridades, até chegar à cultura na qual estamos inseridos. Queiramos ou não, gostemos ou não, temos matrizes que conferem determinado sentido à realidade por ela ser percebida como tal. No que acreditamos, de certa forma, determina a construção de nossa identidade. Todos temos a nossa filosofia, 1 Palestras ministradas nos dias 5, 6 e 7 de novembro de 2010 na Igreja Presbiteriana Memorial da Barra, Salvador, BA., por ocasião da VI Semana da Reforma. 2 Anthony de Mello, O canto do pássaro: Contemplar a Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus. 11ª ed. São Paulo: Loyola, 2003. p. 22. 3 J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 16.

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Verdade, Educação e Cultura: Uma aproximação Reformada1 INTRODUÇÃO:

“‘Por favor, por favor!’ disse um peixe do mar a um outro peixe: ‘Você que deve ter mais experiência, talvez possa ajudar-me... Então me diga: Onde posso encontrar a coisa imensa que chamam de Oceano? Em toda a parte eu o venho buscando sem sucesso’. ‘Mas é precisamente no Oceano que você está nadando’, disse o outro. ‘Oh... isto? Mas é pura e simplesmente água!’ disse o peixe mais jovem, ‘eu procuro é o grande Oceano!’ E lá se foi nadando, muito desapontado, a buscar noutra parte” �

Anthony de Mello.2

“Se a cosmovisão cristã pudesse ser resta-belecida no lugar de destaque e respeito na universidade, isso teria um efeito de fermen-tação no meio da sociedade. Se mudarmos a universidade, mudaremos nossa cultura por in-termédio dos que a moldam” � J.P. Moreland;

William L. Craig.3

.

INTRODUÇÃO: A nossa percepção de um objeto está associada quase de modo imperceptível às nossas estruturas de pensamento que envolvem inúmeros elementos desde mais obviamente sensoriais, passando por questões de gênero, lugar, tempo, formação, prioridades, até chegar à cultura na qual estamos inseridos. Queiramos ou não, gostemos ou não, temos matrizes que conferem determinado sentido à realidade por ela ser percebida como tal. No que acreditamos, de certa forma, determina a construção de nossa identidade. Todos temos a nossa filosofia,

1 Palestras ministradas nos dias 5, 6 e 7 de novembro de 2010 na Igreja Presbiteriana Memorial da

Barra, Salvador, BA., por ocasião da VI Semana da Reforma. 2Anthony de Mello, O canto do pássaro: Contemplar a Deus em todas as coisas e todas as coisas em

Deus. 11ª ed. São Paulo: Loyola, 2003. p. 22. 3 J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 16.

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adequada ou não, de vida.4 Esta filosofia é a nossa cosmovisão.5 É esta cosmovisão que nos permite ser como somos, fornecendo elementos de padronização para a nossa cultura. Schaeffer está correto ao declarar que “as ideias nunca são neutras ou abstratas. Têm consequências na maneira como vivemos e agimos em nossa vida pessoal e na cultura como um todo”.6 A nossa forma de aproximação do objeto já indica onde estamos. Recentemente, vi parte de um filme no qual o criminoso foi fotografado enquanto assassinava sua vítima. Quando o fotógrafo o procurou com a foto, o assassino disse para ele em qual prédio e andar ele estava no momento do clique; isto apenas pelo ângulo da fo-to. Digamos assim: vemos o que vemos e como vemos pelo andar e janela na qual nos encontramos. A partir daí, podemos até dizer em que tipo de construção intelec-tual estamos abrigados.

Todo conhecimento parte de um pré-conhecimento que é-nos fornecido pela nos-sa condição ontologicamente finita e pelas circunstâncias temporais, geográficas, in-telectuais e sociais dentro das quais construímos as nossas estruturas de conheci-mento. Somos em muitos sentidos parte de um produto cultural, filhos de uma gera-ção com uma série de valores que determinam em grande parte as nossas pré-compreensões.

Valendo-se de uma figura de Aristóteles (384-322 a.C.), Mohler faz uma aplica-

ção interessante e elucidativa: “A última criatura a quem você deveria perguntar como é se sentir mo-lhado é a um peixe, porque ele não faz idéia de que esteja molhado. Uma vez que nunca esteve seco, ele não tem um ponto de referência. Assim somos nós, quando se trata de cultura. Somos como peixes no sentido de que não temos sequer a capacidade de reconhecer onde a nossa cultura nos influencia. Desde a época em que estávamos no berço, a cultura tem formado nossas esperanças, perspectivas, sistemas de significado e inter-pretação, e até mesmo nossos instrumentos intelectuais”.7 Portanto, a realidade se mostra a nós com contornos próprios delineados não

simplesmente pelo que ela é, mas, também, pelos nossos olhos que a enxergam e pinçam fragmentos desta realidade conferindo-lhes novas configurações com cores mais ou menos vivas, atribuindo-lhes valores muitas vezes bastante distintos dos re-ais. 4 Veja-se: J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova,

2005, p. 27-28. 5 “Uma cosmovisão é uma série de crenças, um sistema de pensamentos, sobre as questões

mais importantes da vida. A cosmovisão de uma pessoa é sua filosofia” (W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 13). 6Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21,

São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 258. 7R. Albert Mohler Jr., Pregar com a cultura em mente: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São

Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 66.

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As nossas ênfases revelam não simplesmente os nossos pensamentos e valores como também, aspectos da realidade como os percebemos. A concatenação de nossas ideias e a estruturação de prioridades, dentro da fluidez histórica, assumem aspectos relativos. Deste modo, por exemplo, quando lemos um autor devemos en-tender também o seu tempo, a sua forma de pensar e os pontos que visava destruir, consolidar ou mesmo transformar. Toda obra é, de certa forma, dialogal, explícita ou implicitamente. Cada época nos diz algo de seus atores e, cada ator histórico nos fa-la direta ou indiretamente do cenário que o inspira, dentro do qual ele foi criado e, de certa forma, delimita a sua própria percepção da realidade. Quando não percebemos estes aspectos, tendemos a ser extremamente rigoro-sos em nossos julgamentos ou facilmente somos conduzidos a cometer anacronis-mos injustificados. Isto se dá, especialmente, quando lemos autores de séculos an-teriores ao nosso que, além da distância temporal, viveram em outro continente, com valores próprios, percepções delimitadas pela sua época, tendo que se deparar com desafios gigantescos alguns dos quais são quase que imperceptíveis em nossa épo-ca. Aí surge o nosso problema; é impossível ter todas as visões; a nossa, além de vários condicionantes, é feita a partir de nossa época, sob o feitiço de nossos valo-res e concepções, os quais por si só já produzem um pré-conhecimento. O anacro-nismo condenatório é fácil de ser praticado e extremamente difícil de ser percebido por quem o exerce. Deste modo, a consciência destas questões deve produzir em nós um salutar sentido de limitação e, portanto, de maior prudência em nossos juí-zos, reconhecendo que a nossa época, dentro da qual estamos inseridos e mais ca-tivos do que imaginamos, tem as suas paixões e feitiços – plenamente justificados, diga-se de passagem, pelos seus cidadãos bem socializados ou seja; aculturados –, assim como a de nossos personagens analisados. O que torna a nossa visão melhor do que a deles? Talvez seja a própria história que constantemente nos fornece um leque mais amplo e ilustrativo de fracassos da humanidade... Nash (1936-2006) parece-nos correto em sua observação: “A obtenção de maior consciência de nossa cosmovisão pessoal é uma das coisas mais im-portantes que podemos fazer, e compreender a cosmovisão de outros é al-go essencial para o entendimento que os torna distintos”.8

*** Como sabemos, todos trabalham com os seus pressupostos,9 explícitos ou não, consistentes ou não, plenamente conscientes deles ou apenas parcialmente.10 Os

8Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, p. 14.

9 “Nenhum homem, seja ele um cientista ou não, consegue trabalhar sem pressuposições”

(Henry H. Van Til, O Conceito Calvinista de Cultura, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 23). 10

“Todas as pessoas têm seus pressupostos, e elas vão viver de modo mais coerente possível com estes pressupostos, mas até do que elas mesmas possam se dar conta. Por pressupostos entendemos a estrutura básica de como a pessoa encara a vida, a sua cosmovisão básica, o filtro através do qual ela enxerga o mundo. Os pressupostos apóiam-se naquilo que a pes-soa considera verdade acerca do que existe. Os pressupostos das pessoas funcionam como um filtro, pelo qual passa tudo o que elas lançam ao mundo exterior. Os seus pressupostos fornecem ainda a base para seus valores e, em consequência disto, a base para suas deci-sões” (Francis A. Schaeffer, Como Viveremos?, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 11).

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pressupostos se constituem na janela (quadro de referência) por meio da qual vejo a realidade; o difícil é identificar a nossa janela, ainda que sem ela nada enxergue-mos.11 Assim, falar sobre a nossa cosmovisão,12 além de ser difícil verbalizá-la, é paradoxalmente desnecessário. Parece que há um pacto involuntário de silêncio o qual aponta para um suposto conhecimento comum: todos sabemos a nossa cos-movisão. Deste modo, só falamos, se falamos e quando falamos de nossa cosmovi-são, é para os outros, os estranhos, não iniciados em nossa forma de pensar. Sire resume bem isso: “Uma cosmovisão é composta de um conjunto de pressu-posições básicas, mais ou menos consistentes umas com as outras, mais ou menos verdadeiras. Em geral, não costumam ser questionadas por nós mesmos, raramente ou nunca são mencionadas por nossos amigos, e são apenas lembradas quando somos desafiados por um estrangeiro de outro universo ideológico”.13 O conhecimento, seja em que nível for, não ocorre num vácuo asséptico concei-tual quer seja religioso, quer filosófico, quer cultural.14 A nossa percepção e ação fundamentam-se em nossos pressupostos os quais sãos reforçados, transformados, lapidados ou abandonados em prol de outros, conforme a nossa percepção dos “fa-tos”. A questão epistemológica antecede à práxis. Contudo, como nos aprofundar no campo intelectual se abandonamos as questões epistemológicas? As palavras de J.G. Machen (1881-1937) no início do século XX não se tornam ainda mais eloquen-tes na atualidade?: “A igreja está hoje perecendo por falta de pensamento, não por excesso do mesmo”.15 Há sempre o perigo de nos tornarmos cativos de nossa perspectiva e, portanto, da nossa percepção. Como obviamente não conseguimos ter “todas as visões”, permanecemos, de certo modo, cativos de nossa perspectiva,16 em outros termos:

11 “Seria atenuar os fatos dizer que a cosmovisão ou visão de mundo é um tópico importan-te. Diria que compreender como são formadas as cosmovisões e como guiam ou limitam o pensamento é o passo essencial para entender tudo o mais. Compreender isso é algo como tentar ver o cristalino do próprio olho. Em geral, não vemos nossa própria cosmovisão, mas vemos tudo olhando por ela. Em outras palavras, é a janela pela qual percebemos o mundo e determinamos, quase sempre subconscientemente, o que é real e importante, ou irreal e sem importância” (Phillip E. Johnson no Prefácio à obra de Nancy Pearcey, A Verdade Absoluta: Libertando o Cristianismo de Seu Cativeiro Cultural, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assem-bléias de Deus, 2006, p. 11). 12

“Em essência, é um conjunto de pressuposições (hipóteses que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou inteiramente falsas) que sustentamos (consciente ou inconsci-entemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a formação básica do nosso mundo” (James W. Sire, O Universo ao Lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 21). 13

James W. Sire, O Universo ao Lado, p. 21-22. 14

Nancy R. Pearcey; Charles B. Thaxton, A Alma da Ciência, São Paulo: Cultura Cristã, 2005, p. 9-12; 294. 15

J.G. Machen, Cristianismo y Cultura, Barcelona: Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1974, p. 19). 16

Li por meio de Peter Burke, que Fernand Braudel (1902-1985) gosta de afirmar que o historiador é prisioneiro de suas suposições e mentalidades (Peter Burke, O Renascimento Italiano: cultura e soci-edade na Itália, São Paulo: Nova Alexandria, 1999, p. 11).

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prisioneiro de sua percepção. Nem sempre é fácil submeter os nossos valores ao ri-gor daquilo que cremos. Como o cientista tem dificuldade em revisitar os seus para-digmas, nós também temos dificuldade em rever a nossa cosmovisão. É muito difícil – talvez por ser doloroso demais –, aplicar e avaliar em nosso próprio sistema as im-plicações do que sustentamos. Podemos, sem nos darmos conta, nos ferir com as nossas próprias armas, que julgávamos ser bisturis. Aliás, o mal uso do bisturi pode ser fatal, assim como o “fogo amigo” nas guerras. O antidogmatismo pode se consti-tuir num dogma. A nossa cosmovisão não deve servir apenas – aliás, um “apenas” injustificável em si mesmo –, para um exibicionismo pretensamente acadêmico, ufanismo ignorante ou mesmo como demarcação de terreno no qual nada se sucede, exceto a presun-ção compartilhada e demarcada por outras cosmovisões. A nossa cosmovisão cons-ciente deve estar comprometida com a busca de coerência perceptiva e existencial. Há compromissos sérios entre o que cremos e como agimos. Um distanciamento consciente e docemente acalentado e justificado entre o crer e o fazer, produz uma esquizofrenia intelectual, emocional e espiritual, cuja solução definitiva envolverá um destes caminhos: ou mudar a nossa crença ou abandonar a nossa práxis. Para o cristão, cosmovisão é compromisso de fé e prática. Nash parece-nos oportuno aqui:

“Cosmovisões deveriam não apenas ser testadas em uma aula de filoso-fia, mas também no laboratório da vida. Uma coisa é uma cosmovisão passar no teste teórico (razão e experiência); outra é passar no teste práti-co. As pessoas que professam uma cosmovisão podem viver consistente-mente em harmonia com o sistema que professam? Ou descobriremos que elas foram forçadas a viver segundo crenças emprestadas de siste-mas concorrentes? Tal descoberta, eu acho, deveria, produzir mais do que embaraço”.17

A nossa chave epistemológica é a Escritura, portanto, a nossa cosmovisão partin-do de uma perspectiva assim, nos conduzirá naturalmente de volta a Deus.18 A Edu-cação Cristã fundamentando-se nas Escrituras oferece-nos um escopo do que Deus deseja de nós e, nos fala de qual o propósito de nossa existência em todas as suas esferas, inclusive em nossa atuação na cultura.19

17

Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 29. 18

“Numa cosmovisão cristã logicamente consistente, a primeira e absoluta pressuposição essencial é que a Bíblia somente é a Palavra de Deus, e ela tem um monopólio sistemático sobre a verdade” (W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 20). “O Cristianismo é um sistema filosófico completo que é fundamentado sobre o ponto de partida axiomático da Bíblia como a Palavra de Deus” (Ibi-dem., p. 77). 19

“A cosmovisão cristã tem coisas importantes a dizer sobre a totalidade da vida humana” (Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida, p. 19).

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1. CRISTIANISMO E FILOSOFIA: A relação entre Filosofia e Fé Cristã, foi alvo de calorosas disputas entre os Pais da Igreja. A assimilação cristã da “cultura pagã”, envolvendo a “Filosofia” e a “Retóri-ca”, não foi sem resistência já que nem todos concordavam em pagar um preço con-siderado por demais elevado. A questão que permanecia era: a igreja pode sim-plesmente deixar de lado as contribuições filosóficas, literárias, poéticas “pagãs” ou, pode valer-se delas? As respostas foram diferentes.

A) Responderam sim à Filosofia:

1) Justino, filósofo e Mártir (c. 100-c.165 AD), entendia que a Filosofia era "efe-tivamente, e na realidade o maior dos bens, e o mais precioso perante Deus, ao qual ela nos conduz e recomenda. E santos, na verdade, são aqueles que à filosofia consagram sua inteligência".20

Alhures, declara: "A felicidade é a ciência do ser e do conhecimento da verdade, e a felicidade é a recom-pensa desta ciência e deste conhecimento".21 Ainda: “... Tudo o que de bom foi dito por eles (filósofos), pertence a nós, cristãos, porque nós adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo Deus ingênito e inefável”.22 2) Clemente de Alexandria (c.153-c.215 AD), escreveu: "Até a vinda do Se-nhor a filosofia foi necessária aos gregos para alcançarem a justiça. Presen-temente ela auxilia a religião verdadeira emprestando-lhe sua metodologia para guiar aqueles que chegam à fé pelo caminho da demonstração (...). Assim a filosofia foi um pedagogo que levou os gregos a Cristo (...), como a lei levou a Cristo os hebreus. A filosofia foi um preparo que abriu caminho à perfeição em Cristo".23 Clemente acredita que a filosofia é boa e, que, por isso, deve ser estudada. "É inconcebível que a filosofia seja má, visto que torna os homens virtuosos. Portanto ela deve ser obra de Deus, que só pode fazer o bem; aliás, tudo o que vem de Deus é dado para o bem e recebido para o bem. E, por sinal, os homens maus não costumam interessar-se pela filosofi-a".24

20

Justino, Diálogo com Trifão, 2: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, Vol. I, p. 195. 21

Justino, Diálogo com Trifão, 3: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fa-thers, Vol. I, p. 196. 22

Justino, Segunda Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, XIII.4. p. 104 23

Clemente, Stromata, I.5: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, Vol. II, p. 305. 24

Clemente, Stromata, VI.17: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, Vol. II, p. 517.

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B) Responderam não à Filosofia: 1) Hérmias: Apenas para evidenciar que o pensamento patrístico não era unâ-nime a esse respeito, cito outro exemplo: No final do segundo século (?), um perso-nagem obscuro, Hérmias, escreveu um pequeno tratado – Escárnio dos Filósofos Pagãos – que, se não é relevante em termos de idéias, reflete o pensamento anti-pagão e contrário à Filosofia Grega dominante em alguns círculos cristãos. Hérmias desfila o pensamento de vários filósofos gregos mostrando como eles se contradi-zem e se anulam, nada acrescentando. A sua tese é que “a sabedoria deste mundo começou com a apostasia dos anjos, e esta é a causa pela qual os filósofos expõem as suas doutrinas sem estar em harmonia ou de acordo en-tre si”.25 Assim, ele conclui o seu trabalho: “Expus amplamente tudo isso para demonstrar a contradição que existe nas doutrinas dos filósofos e como a in-vestigação das coisas os leva até o infinito e indeterminado. O objeto deles é incomparável e inútil, pois não é confirmado por nenhum fato, nem por ne-nhum raciocínio claro”.26 2) Taciano, o Sírio (c. 120-c.180 AD), mesmo sendo discípulo de Justino,27 não acompanha o seu mestre neste ponto. Escrevendo por volta do ano 170, ironiza os gregos, dizendo: “.... renunciamos à vossa sabedoria, por mais que algum de nós tenha sido extremamente ilustre nela. De fato, segundo o cômico, tudo isso não passa de ‘galhos secos, palavrório afetado, escolas de andorinhas, corruptores da arte’, e os que se deixam dominar por isso sabem apenas roncar e emitir grasnados de corvos. A retórica que compusestes para a in-justiça e a calúnia, vendendo a peso de ouro a liberdade de vossos discur-sos, e muitas vezes o que de imediato vos parece justo, logo o apresentais como coisa não boa; a poesia, porém, vos serve para cantar as lutas, os amores dos deuses, e a corrupção da alma. Com a vossa filosofia, o que produzistes que mereça respeito?”.28 Em outro lugar, continua: “.... vós sois as-sim, gregos, elegantes no falar mas loucos no pensar, pois chegastes a prefe-rir a soberania de muitos deuses em vez da monarquia de um só Deus, como se acreditásseis estar seguindo demônios poderosos”.29 3) Tertuliano (c.160-c.220 AD), adversário ferrenho da Filosofia Grega, de-monstra que muitos conceitos heréticos foram buscados nos escritos pagãos. Entre outros ataques àqueles que tentavam recorrer à filosofia como auxílio, diz:

"Esta é a sabedoria profana que temerariamente pretende sondar a na-tureza e os decretos de Deus. E as próprias heresias vão pedir seus petre-

25

Hérmias, o Filósofo, Escárnio dos Filósofos Pagãos, 1. In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, (Patrística, 2), p. 305. 26

Hérmias, o Filósofo, Escárnio dos Filósofos Pagãos, 10. In: Padres Apologistas, p. 311. 27

Cf. Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 51. 28

Taciano, Discurso contra os Gregos, 1-2. In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 66. 29

Taciano, Discurso contra os Gregos, 14. In: Padres Apologistas, p. 80.

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chos à filosofia.... "Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia com a Igre-ja?30 A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão, que nos ensina a bus-car o Senhor na simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o quise-rem, um cristianismo de tipo estóico, platônico e dialético! Quanto a nós, não temos necessidade de indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas depois do Evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais desejamos crer. Pois começamos por crer que para além da fé nada exis-te que devamos crer".31

C) Sim, contudo...:

Agostinho (354-430), dentro de outro contexto histórico, quando o Império Ro-mano já não era visto como “inimigo”, tem uma posição mais equilibrada do emprego da cultura clássica. Ele valoriza a Filosofia; contudo, entende que nem todos os chamados filósofos o são de fato, visto que o filósofo é aquele que ama a sabedoria. "Pois bem – argumenta Agostinho –, se a sabedoria é Deus, por quem foram fei-tas todas as coisas, como demonstraram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro filósofo é aquele que ama a Deus".32 Em outro lugar, partindo de exemplos bíblicos, instrui-nos quanto à possibilidade de nos valer de recursos vários, mesmo provenientes, dos pagãos:

“Os que são chamados filósofos, especialmente os platônicos, quando puderam, por vezes, enunciar teses verdadeiras e compatíveis com a nos-sa fé, é preciso não somente não serem eles temidos nem evitados, mas antes que reivindiquemos essas verdades para nosso uso, como alguém que retoma seus bens a possuidores injustos.33 “De fato, verificamos que os egípcios não apenas possuíam ídolos e im-punham pesados cargos a que o povo hebreu devia abominar e fugir, mas tinham também vasos e ornamentos de ouro e prata, assim como quantidade de vestes. Ora, o povo hebreu, ao deixar o Egito, apropriou-se, sem alarde, dessas riquezas (Ex 3.22), na intenção de dar a elas melhor emprego. E não tratou de fazê-lo por própria autoridade, mas sob a or-dem de Deus (Ex 12.35-36). E os egípcios lhe passaram sem contestação

30

Mais tarde, no período da Reforma, Erasmo perguntaria: “O que há de comum, por misericór-dia, entre Cristo e Aristóteles?” (Erasmo, Opus epistolarum, v. 2, p. 101. Apud Paolo Rossi, A Ci-ência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da Revolução Científica, São Paulo: Editora da Universi-dade Estadual Paulista, 1992, p. 70. 31

Tertulian, Da Prescrição dos Hereges, VII: In: Alexander Roberts; James Donaldson, editors. Ante-Nicene Fathers, 2ª ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, Vol. III, 246. 32

Agostinho, A Cidade de Deus, 2ª ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 1990, Vol. 1, VIII.1. 33

Devemos nos lembrar que Agostinho aventa a possibilidade de Platão ter tido contato com as Es-crituras [Agostinho, A Cidade de Deus, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1990, (Vol. 1), VIII.11]. Acredita na possibilidade de Platão ter tido contato com o profeta Jeremias no Egito (Santo Agostinho, A Dou-trina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.29. p. 135).

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esses bens, dos quais faziam mau uso. “Ora, dá-se o mesmo em relação a todas as doutrinas pagãs. Elas pos-suem, por certo, ficções mentirosas e supersticiosas, pesada carga de tra-balhos supérfluos, que cada um de nós, sob a conduta de Cristo, ao deixar a sociedade dos pagãos, deve rejeitar e evitar com horror. Mas eles pos-suem, igualmente, artes liberais, bastante apropriadas ao uso da verdade a ainda alguns preceitos morais muito úteis. E quanto ao culto do único Deus, encontramos nos pagãos algumas coisas verdadeiras, que são co-mo o ouro e a prata deles. Não foram os pagãos que os fabricaram, mas os extraíram, por assim dizer, de certas minas fornecidas pela Providência divina, as quais se espalharam por toda parte e das quais usaram, por ve-zes, a serviço do demônio. Quando, porém, alguém se separa, pela inteli-gência, dessa miserável sociedade pagã, tendo-se tornado cristão, deve aproveitar-se dessas verdades, em justo uso, para a pregação do Evange-lho. Quanto às vestes dos egípcios, isto é, às formas tradicionais estabele-cidas pelos homens, mas adaptadas às necessidades de uma sociedade humana, da qual não podemos ser privados nesta vida, será permitido ao cristão tomá-las e guardá-las a fim de convertê-las em uso comum. “Aliás, que outra coisa fizeram muitos de nossos bons fiéis? Não vemos sobrecarregado com ouro, prata, vestes tiradas do Egito, Cipriano, esse doutor suavíssimo e beatíssimo mártir? Com que quantidade, Lactâncio? E Victorino, Optato, Hilário, sem citar os que vivem ainda hoje? Com que quantidade, inumeráveis gregos o fizeram? E o que executou, em primeiro lugar, o fidelíssimo servo de Deus, Moisés, instruído com toda a sabedoria dos egípcios? (At 7.22)”.34

Contudo, à frente reconhece a superioridade das Escrituras sobre todas as de-mais coisas: “Quanto é pequena a quantidade de ouro, prata e vestes tirada do Egito por esse povo hebreu em comparação com as riquezas que lhe sobrevieram em Jerusalém, e que aparecem sobretudo com o rei Salomão (1Rs 10.14-23), assim é igualmente pequena a ciência – se bem que útil – recolhida nos livros pagãos, em comparação com a ciência contida nas divinas Escrituras. Por-que tudo o que um homem tenha aprendido de prejudicial alhures, aí está condenado, e tudo o que aprendeu de bom, aí está ensinado. E quando cada um tiver encontrado tudo o que aprendeu de proveitoso em outros li-vros, descobrirá muito mais abundantemente aí. E o que é mais, o que não aprendeu em nenhuma outra parte, somente encontrará na admirável supe-rioridade e profundidade destas Escrituras”.35

34

Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, II.41. p. 149-151. 35

Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, II.43. p. 153-154. Para uma abordagem mais completa das o-piniões do “Pais da Igreja”, Vd. Henri-Irénée Marrou, História da Educação na Antigüidade, 5ª reimpr. São Paulo: EPU. 1990, p. 484ss; Etienne Gilson, A Filosofia na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 1ss; Ruy A. da Costa Nunes, História da Educação na Antigüidade Cristã, São Pau-lo: EPU/EDUSP. 1978, p. 5ss; Philotheus Boehner; Etienne Gilson, História da Filosofia Cristã, 3ª ed.

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A linha de avaliação crítica de cada contribuição,36 conforme adotada por Agosti-nho parece ter prevalecido; afinal, o apóstolo Paulo também se valera das contribui-ções de rabinos judeus e de pagãos que os ajudavam em sua argumentação, sem, contudo, ser influenciado por seus ensinamentos. Assim permanece a consciência de que todas as coisas provêm de Deus e, que as concepções verdadeiras da reali-dade – ainda que nos lábios de ímpios (Cf. At 17.28; Tt 1.12) –, podem ser instru-mentos úteis para a elaboração e transmissão da verdade divina. Isto porque qual-quer tipo de conhecimento parte de Deus, que é a sua fonte inesgotável; portanto, toda verdade é proveniente de Deus, havendo inclusive pontes entre o que pensado-res pagãos disseram e a plenitude da verdade conforme revelada nas Escrituras.37

No entanto, esta questão voltaria a estar no auge das discussões entre os purita-nos38 a respeito da formação dos Ministros.39 O fato é que o preconceito com a Filosofia pode ser um empecilho a nos valer de suas contribuições. Vygotsky (1896-1934), prefaciando a tradução das duas primei-ras obras de Piaget (1896-1980) publicadas na Rússia, a certa altura, diz: "A recusa deliberada da filosofia já é em si mesma, uma filosofia - e uma filosofia que pode envolver os seus proponentes em muitas contradições".40 Geisler e Feinberg dois pensadores cristãos, sensíveis a isso, escreveram:

“O cristão tem interesse específico pela filosofia, e a responsabilidade de estudá-la. A filosofia será tanto um desafio à sua fé quanto uma contri-buição ao seu entendimento da fé. Alguns cristãos sentem suspeita da filo-sofia porque ouviram históricas acerca doutras pessoas que perderam sua fé através do estudo da filosofia. Foram aconselhados a evitar a filosofia

Petrópolis, RJ.: Vozes, 1985, p. 35; Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo: Paulinas, 1983, Vol. I, p. 216-222. É muito interessante também, a obra de Charles Norris Cochrane, Cristianismo y Cultura Clásica, (2ª reimpresión), México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 213ss. 36

Ver: Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cris-tã, p. 52-54. 37

Essas pontes evidenciam-se de modo transparente no comentário feito no segundo século, por Justino: “.... se há coisas que dizemos de maneira semelhante aos poetas e filósofos que es-timais, e outras de modo superior e divinamente, e somos os únicos que apresentamos de-monstração, por que nos odeiam injustamente mais do que a todos os outros? Assim, quan-do dizemos que tudo foi ordenado por Deus, parecerá apenas que enunciamos um dogma de Platão; ao falar sobre conflagração, outro dogma dos estóicos; ao dizer que são casti-gadas as almas dos iníquos que, ainda depois da morte, conservarão a consciência, e que as dos bons, livres de todo castigo, serão felizes, parecerá que falamos como vossos poetas e filósofos; que não se devem adorar obras de mãos humanas, não é senão repetir o que disseram Menandro, o poeta cômico, e outros com ele, que afirmaram que o artífice é mai-or do que aquele que o fabrica” (Justino de Roma, I Apologia, 20.3-5. p. 37-38). 38

Ver também a citação nesta mesma direção de alguns puritanos em Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 177-179. 39

Cf. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, DF.: Editora Uni-versidade de Brasília, 1988, p. 186ss. 40

L.S. Vygotsky, Pensamento e Linguagem, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 18.

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como a peste. Após reflexão séria, fica sendo claro que este conselho não é sábio. O cristianismo pode enfrentar o desafio intelectual levantado con-tra ele. O resultado de tal desafio não deveria ser a perda da fé, mas, sim, a possessão, de valor inestimável, de uma fé bem-arrazoada e madura. Além disto, há conseqüências sérias de uma falta da consciência de pa-drões contemporâneos de pensamento. Ao invés de ficar isenta de sua in-fluência, a pessoa fica sendo a vítima inconsciente deles. Infelizmente, há um número grande demais de cristãos que sustentam crenças que são hostis à fé cristã, e não tem consciência do fato. “Visto que toda a verdade é verdade de Deus, e visto que a filosofia é uma busca da verdade, então, a filosofia contribuirá ao nosso entendi-mento de Deus e do Seu mundo”.41

Como cristãos, não podemos nem pensar em deixar de pensar. Plagiando Degé-rando, podemos dizer que o agir está para o corpo como o pensar para o espírito.42 E é pelo pensar que alavancamos a realidade; precisamos dominar esta técnica para bem conduzir o nosso pensamento.43 Daí a importância de um pensamento lógico e sistemático.

41

N.L. Geisler; P.D. Feinberg, Introdução à Filosofia, p. 19. 42

Ver. Marie-Joseph Degérando, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XXVII), 1973, p. 338. 43

Inspiro-me aqui em Condillac (1715-1780): "Ora, como a arte de mover grandes massas tem suas leis nas faculdades do corpo e nas alavancas que nossos braços aprenderam a utilizar, a arte de pensar tem as suas leis nas faculdades da alma e nas alavancas que nosso espíri-to igualmente aprendeu a utilizar. É preciso, então, observar estas faculdades e estas ala-vancas" (Étienne B. de Condillac, Lógica ou Os Primeiros Desenvolvimentos da Arte de Pensar, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XXVII), 1973, p. 69).

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2. EDUCAÇÃO, CULTURA E ÉTICA:

Introdução: Nos Estados Unidos a história do início da Tipografia se confunde com a criação de uma escolinha conhecida hoje como Universidade de Harvard.44 Os puritanos fo-ram pioneiros em ambas as iniciativas. Apenas seis anos depois de sua chegada a Massachusetts, a Corte Geral da Colônia já havia votado 400 libras para a criação de uma escola ou faculdade (1636).45 O Colégio foi criado em 1636 na vila de New Town46 recebendo posteriormente este nome (Harvard) em homenagem (1638) ao pastor puritano John Harvard (1607-1638), que havia doado cerca de 800 libras (metade de suas propriedades) e uma biblioteca com 260 títulos perfazendo um total de cerca de 400 volumes.47 A escola recebeu outros donativos e o Estado completou o resto. A escola foi “mantida durante seus primeiros anos parcialmente pelo sacrifício de fazendeiros, que contribuíram em trigo para sustentar professores e alunos”.48 Seis anos depois temos a primeira turma formada. Em 1643 é publicado em Lon-dres um folheto intitulado: Os Primeiros Frutos da Nova Inglaterra. Aqui temos uma espécie de histórico da instituição, acompanhado dos seus estatutos e vida cotidia-na; ele é um apelo para aquisição de mais fundos. Este documento começa assim: “Depois que Deus nos conduziu sãos e salvos para Nova Inglaterra, e constru-ímos nossas casas e asseguramos o necessário para nossos meios de subsis-tência, edificamos locais convenientes para o culto de Deus e estabelece-mos nosso Governo Civil: Depois disso, uma das coisas que mais ambicioná-

44

O maquinário tipográfico foi trazido da Inglaterra pelo pastor puritano José Glover (� 1638) para o colégio que ele, juntamente com outras pessoas, desejava fundar. Glover que já residia na Nova In-glaterra desde 1634-1635, voltara à Inglaterra para adquirir uma máquina tipográfica, papel, tinta e os acessórios necessários para a impressão. No entanto ele morreu durante a viagem de volta (talvez de varíola)(1638), contudo o seu projeto foi levado adiante por sua viúva e pelos homens que trouxera consigo com este fim, o serralheiro Stephen Daye (c. 1594-1668) e seus dois filhos, dos quais um era tipógrafo, Matthew Daye (c. 1619–?). 45

Cf. Perry Miller; Thomas H. Johnson, eds. The Puritans, Mineola, New York: Dover Publications, (2 Volumes bounds as one), 1991, p. 700. Do mesmo modo, Frederick Eby, História da Educação Mo-derna, 5ª ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1978, p. 209. 46

Depois (1638) chamada de Cambridge, também em homenagem ao Rev. John Harvard que estu-dara em Cambridge (Ver: Matthew Battles, A Conturbada História das Bibliotecas, São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003, p. 87). 47

“Aproximadamente três quartos dos livros eram obras de teologia, a maioria das quais consistia em comentários bíblicos e sermões puritanos. Cícero, Sêneca e Homero figuravam entre as opções clássicas, mas não havia outras obras literárias além dessas. Era, enfim, a co-leção de um pastor puritano atuando numa colônia perdida nos confins do Novo Mundo. Mas os livros legitimaram a pequena escola, provendo-a dos fundamentos intelectuais de que uma faculdade necessita” (Matthew Battles, A Conturbada História das Bibliotecas, p. 87). 48

Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 167.

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vamos era incentivar o Ensino e perpetuá-lo para a Posteridade;49 temendo deixar um Clero ignorante para as Igrejas, quando nossos atuais Ministros re-pousarem no Pó”.50 (Grifos meus). A ignorância era algo extremamente temido dentro do modelo educacional Re-formado-puritano.51 Para tanto o estudo era amplo, oferecendo uma visão abrangen-te de todos os ramos do saber, evitando a dicotomia entre o saber religioso e não-religioso, o espiritual e o natural.52 Como exemplo disso, vemos que “os estudantes ministeriais em Harvard não apenas aprendiam a ler a Bíblia na sua língua o-riginal e a expor teologia, mas também estudavam matemática, astronomia, física, botânica, química, filosofia, poesia, história e medicina”.53 A ênfase puritana foi marcante em todos os níveis educacionais podendo ser ava-liada tanto quantitativa como qualitativamente.54 Seguindo a tradição da obrigatorie-dade do ensino público, conforme enfatizada por Lutero e pelos calvinistas france-ses (1560)55 e holandeses (1618),56 “em 1647, o Estado de Massachussets de-creta a obrigatoriedade de uma escola primária, sempre que uma povoa-ção agrupe mais de 50 lares”. 57 Por trás deste ardor pedagógico e social herdado da Reforma estava um firme fundamento teológico. Esta perspectiva amparava-se num conceito de Deus, do ho-mem e de qual o propósito do homem nesta vida.

a) Deus é reconhecido como o Criador e Senhor de todas as coisas, sendo o do-ador da vida e de tudo que temos,58 a Quem devemos, conhecer experiencial-mente, 59 amar, obedecer e cultuar.60 Resumindo: “O conhecimento de Deus é a genuína vida da alma....”; 61

49

“Entre os fundadores de Harvard estavam 100 diplomados, 70 dos quais tinham sido estu-dantes nos colégios de Cambridge e 30 nos de Oxford” (Frederick Eby, História da Educação Moderna, p. 208). 50

Primeiros Frutos da Nova Inglaterra, (1643): In: Harold C. Syrett, org. Documentos Históricos dos Estados Unidos, São Paulo: Cultrix, 1980, p. 29. 51

Para Melanchton, por exemplo, a ignorância é a maior adversária da fé, devendo, por isso mesmo ser combatida (Cf. Franco Cambi, História da Pedagogia, São Paulo: Editora UNESP., 1999, p. 250-251). 52

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 174ss. 53

Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 175. 54

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 55

Vejam-se extratos do documento elaborado pelos protestantes reunidos em Orléans em 1560. O texto foi enviado ao Rei de França (Cf. Nicholas Hans, Educação Comparada, 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971, p. 194). 56

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 57

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 58

“Deus (...) é a fonte de vida e de todas as bênçãos excelentes” (João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 7.25), p. 197). 59

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168.

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b) O homem como “imagem e semelhança” de Deus deve ser respeitado, amado

e ajudado. 62 Por mais indigno que ele possa nos parecer, devemos considerar: “A imagem de Deus nele é digna de dispormos a nós mesmos e nossas posses a ele”.63 Por isso, “Não temos de pensar continuamente nas maldades do homem, mas, antes, darmos conta de que ele é portador da imagem de Deus”.64 Esta perspectiva deverá nortear sempre a nossa consideração a respeito do ser humano.65

A educação, portanto, visava preparar o ser humano para melhor servir a Deus na sociedade a fim de que Deus fosse glorificado. A educação Reformada-Puritana não tinha um fim em si mesma, antes, era caracterizada por um propósito específico con-forme definiu John Milton (1608-1674) em 1644 “O objetivo da aprendizagem é corrigir as ruínas de nossos primeiros pais, recuperando o conhecer a Deus corretamente, e a partir deste conhecimento, amá-Lo, imitá-Lo e ser como Ele, do modo mais aproximado possível, tornando nossas almas possuidoras de verdadeira virtude que, unida à graça celestial da fé, constrói a mais alta perfeição”.66 Na sequência: “Chamo de uma educação completa e genero-sa aquela que capacita um homem para atuar justamente, habilidosamen-te, magnanimamente, em todos os ofícios, tanto privados como públicos, de paz e de guerra”.67 Deste modo a educação é vista não a partir do ensino, mas do aprendizado e, de modo especial do homem que resulta deste saber preparado para 60

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 6.5), p. 129; Catecismo de Genebra, Perg. 2. In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires: La Aurora, 1962, p. 29; Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.9), p. 127; As Institutas, I.2.1-2 61

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 62

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 63

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 64

João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 38. Ver também: João Calvino, A Verdadeira Vida Cris-tã, p. 37; O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.7-9), p. 173-174; Instrução na Fé: Princípios para a Vida Cristã, Goiânia, GO.: Editora Logos, 2003, p. 27-28. 65

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 66

John Milton, Milton’s Tractate on Education: A Fascimile Reprint From the Edition of 1673, Cam-bridge: The University Press, 1897, p. 3-4. Do mesmo modo, ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 173 e Ruy Afonso da C. Nunes, História da Educação no Século XVII, São Paulo: EPU/EDUSP, 1981, p. 46; Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da Revolução Científica, São Pau-lo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 61ss). No texto publicado em 1643 em Lon-dres, descrevendo o Colégio Harvard, há um detalhamento das “Regras e preceitos observados ao Colégio”. Na segunda regra, lemos: “Todo aluno é claramente instruído e seriamente instado a ponderar na principal finalidade da sua vida e dos seus estudos, a conhecer a Deus e Jesus Cristo, que é a vida eterna, João 17.3 e, portanto, a depositar Cristo no fundo, como a única base de todo conhecimento e Saber verdadeiros. E visto que só o Senhor dá a sabedoria, todos devem orar seriamente em segredo para buscá-la junto dele, Prov. 2.3” (In: Harold C. Syrett, org., Documentos Históricos dos Estados Unidos, p. 30). 67

John Milton, Milton’s Tractate on Education: A Fascimile Reprint From the Edition of 1673, Cam-bridge: The University Press, 1897, p. 8. Do mesmo modo: Frederick Eby, História da Educação Mo-derna, 5ª ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1978, p. 182. Quanto à visão de Milton a respeito da for-mação dos Ministros, ver R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1988, p. 188-189.

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realizar a obra que Deus lhe confiou. O saber é para viver autenticamente em comu-nhão com Deus, refletindo isso no cumprimento de nossos deveres religiosos, famili-ares, políticos e sociais, agindo no mundo de forma coerente com a nossa nova na-tureza,68 objetivando em tudo a Glória de Deus. Para Calvino, a pergunta condena-tória de Tertuliano (c.160-c.220 A.D) à Filosofia não fazia sentido,69 o Cristianismo é uma cosmovisão que parte das Escrituras para o exame de todas as facetas da rea-lidade. “Para Calvino, nenhum tipo de ensino que levasse os homens a deixa-rem de se preocupar com qualquer coisa que afetasse de maneira profunda a vida humana, até mesmo em suas preocupações puramente humanas, poderia de forma alguma ser cristão”.70 A Teologia Reformada fornece-nos óculos cujas lentes têm o senso da soberania de Deus como perspectiva indispensável e necessária para ver, interpretar e atuar na realidade, fortalecendo, modificando ou transformando-a, conforme a necessida-de. Isso tudo, num esforço constante de atender ao chamado de Deus a viver dig-namente o Evangelho no mundo. Schaff comenta que “o senso da soberania de Deus fortaleceu os seus seguidores contra a tirania de senhores temporais, e os fez os campeões e promotores de liberdade civil e política na França, Ho-landa, Inglaterra, e Escócia”.71 O Calvinismo, com sua ênfase na centralidade das Escrituras, é mais do que um sistema teológico, é, sobretudo, uma maneira teocêntrica de ver, interpretar e atuar na história. O estudioso inglês Tawney (1880-1962), observa que “o Calvinismo foi uma força ativa e radical. Era um credo que buscava não meramente purifi-car o indivíduo, mas reconstruir a Igreja e o Estado, e renovar a sociedade permeando todos os setores da vida, tanto públicos como privados, com a

68

Calvino constata que “a doutrina será de pouca autoridade, a menos que sua força e ma-jestade resplandeçam na vida do bispo como o reflexo de um espelho. Por isso ele diz que o mestre seja um padrão ao qual os discípulos possam seguir” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 2.7), p. 331). 69

"Esta é a sabedoria profana que temerariamente pretende sondar a natureza e os decre-tos de Deus. E as próprias heresias vão pedir seus petrechos à filosofia.... "Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia com a Igreja? A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão, que nos ensina a buscar o Senhor na simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o quiserem, um cristianismo de tipo estóico, platônico e dialético! Quanto a nós, não temos necessidade de indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas depois do Evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais desejamos crer. Pois começamos por crer que para além da fé nada existe que devamos crer"

(Tertuliano, Da

Prescrição dos Hereges, VII: In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2ª ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, Vol. III, p. 246). 70

Ronald S. Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma, p. 90-91. 71

Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, p. 562. Hans diz que o Calvinismo, ainda que de modo indireto, foi “responsável pelo desenvolvimento das idéias democráticas de au-togoverno. A mais poderosa e valiosa contribuição de Calvino à causa democrática não foi a sua teologia, mas sim a organização da sua Igreja, porque os consistórios, as assembléias provinciais e os sínodos nacionais constituíam um excelente treinamento básico para um ul-terior governo autônomo” (Nicholas Hans, Educação Comparada, p. 192).

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influência da religião”.72

A) O Homem como Ser Educável:73

“É evidente que todo o homem nas-ce apto para adquirir conhecimento das coisas: primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é perfeita, apresenta necessariamente os traços de seu arquétipo, ou então não será uma imagem” – J. A. Comênio

(1592-1670).74

As palavras “Educação” e "Educar" provêm do latim “Educare”, palavra apa-rentada com ducere, "conduzir", "levar", e educere, "tirar de", "retirar", "criar". Educa-re tem o sentido de "criar", "alimentar", "ter cuidado com", "instruir".75 Parece-me que o termo latino é uma tradução do grego, paideu/w, "instruir", "educar", "formar", "en-sinar", "formar a inteligência, o coração e o espírito de".76 A nossa palavra “pedago-go” é transliterada do grego, paidagwgo/j e, “pedagogia”, igualmente, de pai-dagwgi/a.77 Na Grécia antiga, o pedagogo, (literalmente: "encarregado de meninos", "curador", "tutor") era o preceptor de criança; o escravo responsável por conduzir as

72

R.H. Tawney, A Religião e o Surgimento do Capitalismo, São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 109. É famosa a descrição do Calvinismo feita por Warfield: “Um corpo inteiro de concepções teológicas, éticas, filosóficas, sociais e políticas, as quais, sob a influência da grande mente de João Calvino, elevou-se, passando a dominar em terras protestantes da era pós-Reforma, e deixou uma marca permanente não apenas no pensamento da humanidade, como na história da vida do homem, na ordem social dos povos civilizados e até mesmo, nas organizações políticas dos Estados” (B.B. Warfield, Calvin and Calvinism, Grand Rapids, Mi-chigan: Baker Book House, (The Work’s of Benjamin B. Warfield, Vol. 5), 2000 (Reprinted), p. 353) 73

Esta expressão é clássica, ainda que a tenha utilizado sem este conhecimento. João Amós Comé-nio escreveu: “Por isso, e não sem razão, alguém definiu o homem como um ‘animal educá-vel’, pois não pode tornar-se homem a não ser que se eduque” (J.A. Coménio, Didáctica Mag-na, 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1985), VI, p. 119). 74

J. A. Coménio, Didáctica Magna, V, p. 102-103. 75

Vejam-se: Francisco da S. Bueno, Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa, São Paulo: Saraiva, 1965, Vol. 3, p. 1061; Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Por-tuguesa, 5ª ed. Rio de Janeiro: Delta, 1970, Vol. II, p. 1170; Antonio de Morais Silva, Grande Dicioná-rio da Língua Portuguesa, 10ª ed. Lisboa: Confluência, (1952), Vol. 4, p. 205; José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa: Confluência, 1952 (data inicial da publicação em fascículo), Vol. I, p. 808; J. Corominas, Diccionário Crítico Etimológico de la Lengua Castellana, Madrid: Editorial Gredos, (1954), Vol. 2, p. 217; Educação: In: A. Houaiss, ed. Enciclopédia Mirador Internacional, São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1987, Vol. 7, p. 3609; Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª ed., rev. aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1708.

76 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª ed., rev. aum. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, 77

Pedagogia pode ser definida como “a ciência normativa da educação” (Pedagogia: In: André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 800a).

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crianças à escola;78 a idéia da palavra é de “estar junto com a criança”.79 Poste-riormente a palavra também passou a se referir à educação de adultos e ao treina-mento em geral.80 Estes termos gregos tinham uma conotação moral.81 O homem é um ser educável. Ninguém consegue escapar à educação; ela está em toda parte, sendo intencional ou não, somos bombardeados com informações e valores que contribuem para nos dar uma nova cosmovisão e delinear o nosso com-portamento,82 conforme a assunção consciente ou inconsciente de valores e para-digmas que reforçam ou substituem os anteriormente aprendidos, manifestando-se em nossas atitudes e nova perspectiva da realidade que nos circunda. Werner Jae-ger (1888-1961) observa que "Todo povo que atinge um certo grau de de-senvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual (...). A educação é uma função tão natural e universal da comunidade humana que, pela sua própria evidência, leva muito tempo a atingir a plena consciência daqueles que a recebem e praticam, sendo, por isso, relativamente tardio o seu pri-meiro vestígio na tradição literária".83

Assim, podemos definir operacionalmente a educação, como sendo um processo de transmissão de valores, decodificação, interiorização e trans-formação. A educação envolve o processo de "alimentar" (educare) e de "tirar" (e-ducere). Portanto, o "aprendiz" é sempre ativo no processo educativo, ainda que muitos sistemas tentem fazê-lo passivo. Na realidade, a atividade consciente pode e deve ser estimulada, no entanto, ainda que não seja adequadamente, o educando é sempre, de certa forma o seu educador, aquele que de modo eficiente ou não, faz a sua própria síntese, construindo o seu mundo simbólico valorativo, repleto de signifi-cados para si. A educação visa preparar o indivíduo para viver criativamente em sociedade, a qual, por sua vez, tem o seu modelo de homem ideal. Portanto, por trás de toda filo-sofia educacional existe uma “imagem-ideal”84 com todos os seus valores culturais, sociais, éticos e religiosos, para a qual a educação aponta de modo formal e infor-

78

Cf. Isidro Pereira, Dicionário Grego-Português e Português-Grego, 7ª ed. Braga: Apostolado da Im-prensa, 1990, p. 421. 79

Vd. D. Furst, Ensinar: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1982, Vol. II, p. 58. 80

Cf. D. Furst, Ensinar: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. II, p. 58. 81

Vd. Platão, A República, 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), Livro VI. 491e. p. 280-281. Sócrates (469-399), negava-se a ser reconhecido como “mestre” já que para ele, a virtude não poderia ser ensinada (Vd. Platão, Defesa de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. II), 1972, 33a-b. p. 24). 82

Vd. Carlos R. Brandão, O Que é Educação, 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 7ss. 83

Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 3,17. 84

Cf. Thomas Ransom Giles, Filosofia da Educação, São Paulo: EPU., 1983, p. 59.

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mal. Desta forma, seguindo Durkheim (1858-1917) podemos dizer que "a educa-ção consiste numa socialização metódica da nova geração"85 Portanto, a definição de Émile Durkheim (1858-1917), a respeito da Educação, a-plica-se corretamente aqui:

"A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda se não encontram amadurecidas para a vida social. Ela tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de condições físicas, intelectuais e morais que dela reclamam, seja a sociedade políti-ca, no seu conjunto, seja o meio especial a que ela se destina particular-mente".86

Contudo, cabe aqui uma observação: Neste processo educativo, intencional ou não, nada é literalmente repetido, visto que nada que é humano pode ser exausti-vamente calculado... E é por isso que o homem herda, transforma e constrói a sua cultura. A cultura, por sua vez, delimita alguns aspectos de sua percepção, contudo, não o limita de forma absoluta. Ele como ser metafísico que é, se constitui num pro-feta de Deus que fala em relação à realidade, realçando valores que ultrapassam, por exemplo, os limites de uma visão puramente materialista.87 A cultura mesmo sendo algo exterior, é, na realidade, uma exteriorização do indi-víduo, repleta de valores88 que refletem aspectos da essência do homem e, obvia-mente, de sua percepção da realidade. “A cultura acha-se profundamente radi-cada no que há de mais íntimo no ser humano e tem por isso a mais alta sig-nificação para a compreensão desse ser, sua formação e desenvolvimen-to”.89 E, como vimos no início destas anotações, a sociedade é um produto do ho-mem!. Educado... Mas, homem!... Ele constrói o mundo, projetando na realidade os seus próprios significados.90 85

E. Durkheim, Sociologia, Educação e Moral, Porto: Rés-Editora, (1984), p. 17. 86

E. Durkheim, Sociologia, Educação e Moral, p. 17. [Esta definição encontra-se também E. Dur-kheim, Educação e Sociologia, 5ª ed. São Paulo: Melhoramentos, São Paulo: (s.d.) p. 32]. Confir-mando esta conceituação como sendo uma perspectiva comum entre os educadores, escreveu Karl Mannheim (1896-1947): “A educação teve sempre como objeto a formação do homem. Sempre quis modelar a geração mais nova, de acordo com alguns ideais conscientes e in-conscientes, e sempre procurou controlar cada fator da personalidade e de formação” [Karl Mannheim, Sociologia do Conhecimento, Porto: Rés-Editora, (s.d.), Vol. 2, p. 55-56]. 87

Veja-se: Henry H. Van Til, O Conceito Calvinista de Cultura, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 39. 88

Veja-se: Henry H. Van Til, O Conceito Calvinista de Cultura, p. 36. 89

Johannes Hessen, Filosofia dos Valores, 5ª ed. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1980, p. 246. “A cultura organiza-se segundo as relações intrínsecas sobre o conhecimento do mundo, a vida e as experiências do espírito e as ordens práticas em que se realizam os ideais da nossa conduta. Nisto se expressa o complexo estrutural psíquico, o qual precisa-mente determina também a concepção filosófica do mundo” (Wilhelm Dilthey, A Essência da Filosofia. 3ª ed. Lisboa: Editorial Presença, (1984), p. 138). 90

"As origens de um universo simbólico têm raízes na constituição do homem. Se o homem em sociedade é um construtor do mundo, isto se deve a ser constitucionalmente aberto pa-ra o mundo, o que já implica um conflito entre ordem e caos (...). O homem, ao se exteriori-

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Retomando a definição operacional supra, podemos observar que há ali alguns elementos que devem ser destacados:

a) Processo: Educação não é algo acabado, hermético, fechado. A educação ocorre dentro de um processo dinâmico que jamais termina.

b) Transmissão de Valores: Educar não é apenas transmitir um conteúdo

programático (por mais atualizado e edificante que ele seja), mas, também, experi-ências significativas, valores, interpretações. Creio ser importante ressaltar o fato de que esta troca é ambivalente e interagente: professor-aluno; aluno-professor e alu-no-aluno. A formação de um homem é feita pelo homem, não simplesmente por um programa. Mais do que grandes idéias, precisamos de homens dignos.

c) Interiorização: É a assimilação e acomodação de valores transmitidos e decodificados. Estes valores passam a fazer parte do nosso patrimônio cultural e moral.

d) Transformação: A verdade aprendida deve ser praticada em nossa vida. A

vida, como temos insistido, é em grande parte uma interpretação existencial do mundo.

Rui Barbosa (1840-1923), de outro modo, resumiu bem o sentido da educação: “Instruir é ensinar a observar, descobrir, refletir e produzir”.91 Portanto, a Educação tem uma função tradicionalista, que consiste na transmis-são de conhecimentos acumulados ao longo dos séculos, e, também, deve ter uma função, digamos, revisionista-progressista, por meio da qual revisitamos o passado com novos questionamentos, repensando e reavaliando suas conclusões, estimu-lando novas investigações e pesquisas que se concretizarão em novas idéias e tec-nologias. Ambas as funções se completam num todo harmonioso.92

B) Educação e Cultura: A nossa palavra “cultura” é derivada do latim colere, que tem o sentido de “arte de cultivar” ou mesmo, “o resultado da cultivação”, envolvendo, portanto, a idéia de labor e perseverança. Neste sentido, a palavra é usada tanto para referir-se a um certo refinamento intelectual e estético, como para o cultivo de alguma planta, abe-lhas, etc. Este vocábulo é da mesma raiz da palavra “culto” que, por sua vez pode zar, constrói o mundo no qual se exterioriza a si mesmo. No processo de exteriorização proje-ta na realidade seus próprios significados" (Peter L. Berger; Thomas Luckmann, A Construção So-cial da Realidade, 5ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1983, p. 141-142). 91

Rui Barbosa, Ensinos Secundários: In: Campanhas Jornalísticas (1/4/1889), Rio de Janeiro: Livra-ria Castilho, 1921, p. 295. 92

Ver: Gene Edward Veith, Jr, De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 59-67. “Toda educação aponta para uma visão de futuro, e com ela analisa o presente, seja para repeti-lo ou para transformá-lo" (José Manuel Moran, Leituras dos Meios de Comunicação, São Paulo: Pancast, 1993, p. 12).

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indicar um homem de “cultura” (referindo-se a algum refinamento) ou a reunião dos fiéis para cultuar a Deus, prestar-lhe um “culto”. O fato é que toda cultura reflete um determinado culto; o cultivo de determinados valores que se expressam no pensar e no fazer, sabendo que o "pensar é para o espírito o que agir é para o corpo".93 A cultura é a linguagem exteriorizada do ser, acumulada, aperfeiçoada e transforma-da ao longo dos séculos. Historicamente, no entanto, a palavra apresentou dois significados fundamentais: a) Cultura no sentido de progresso do ser humano, seu melhoramento e refinamento (seria a “Paidéia” grega); b) Cultura no sentido dos efeitos de um modo de vida cul-to; a civilização propriamente dita.94 A cultura é um dom de Deus, fruto de Sua graça especial e comum. Dentro da providência de Deus, o homem é ao mesmo tempo herdeiro e agente ativo do culti-vo, aperfeiçoamento e transformação de sua cultura. A cultura é um produto social formada e moldada pela interação social do ser hu-mano no exercício de sua liberdade.95 Neste último sentido, podemos entender que cada povo tem a responsabilidade pela sua cultura, sabendo, contudo, que não exis-te povo sem cultura.

"A cultura, em seu sentido mais amplo, é uma característica peculiar da humanidade; em qualquer tempo e lugar aonde há agrupamentos hu-manos, há um grau, ainda que mínimo e rudimentar de cultura (...). Toda a sociedade tem o mérito e a responsabilidade de seu desenvolvimento, de seu avanço ou de seu estancamento, de seus progressos ou regres-sos".96

Portanto, podemos considerar a cultura como “a totalidade das manifestações e formas de vida que caracterizam um povo”.97 Uma observação final sobre este ponto. Para nós cristãos, há um interesse espe-cial pela cultura, não pelo seu valor em si: “Temos interesse na cultura porque é onde encontramos os pecadores; o nosso interesse não é fundamentalmen-te a cultura em si. Tudo o que vemos ao nosso redor é passageiro, inclusive a

93

Marie-Joseph Degérando, Dos Signos e da Arte de Pensar, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensa-dores, Vol. 27), 1973, p. 338. 94

Veja-se o esclarecedor verbete “Cultura”, In: Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 209-213. 95

Veja-se: Henry H. Van Til, O Conceito Calvinista de Cultura, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 35-38. 96

Rodolfo Mondolfo, Universidad: Pasado y Presente, Buenos Aires: EUDEBA Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1966, p. 57. 97

Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, 2ª ed. São Paulo/Brasília, DF.: Martins Fontes/Editora Universidade de Brasília, 1989, p. 6.

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cultura”.98

C) Cultura e Ética: Segundo nos parece, a palavra “cultura” tem em si o sentido de desenvolvi-mento pleno. Dentro desta perspectiva, podemos entender que, o homem culto é aquele que procura se desenvolver em todas as áreas de sua existência a fim de re-alizar o propósito de Deus para a sua vida, buscando sempre o fim último da criação, que é a glória de Deus (1Co 10.31).99 “Cultura, assim, é todo e qualquer esforço e trabalho humano feito no cosmos, para descobrir suas riquezas e fazê-las assistirem ao homem para o enriquecimento da existência humana, para a glória de Deus”.100 Deste modo, o cristão deve participar ativamente, dentro de sua esfera de ação, da formação, aperfeiçoamento e transformação da cultura, sabendo, de antemão, que neste estado de existência não existe cultura perfeita. E mais, que esta tarefa gerará inevitavelmente conflitos; contudo, estes fazem parte, e podem fazê-lo de forma criativa dentro de nosso processo de amadurecimento e ação no meio no qual vivemos. Na fé cristã sempre existirá o desafio da inculturação por meio da expres-são de sua fé na relatividade da cultura e em fidelidade ao Verbo Encarnado. A nos-sa atividade cultural, que deve envolver o cultivo de relações justas, é uma expres-são de culto a Deus. A cultura é a expressão, a forma de ser de uma dada socieda-de.

Cremos que a Palavra de Deus apresenta mandamentos que são supraculturais; 101 eles devem ser observados em qualquer época ou cultura, constituindo-se em imperativos categóricos para todo o cristão em toda e quaisquer circunstâncias. Co-mo princípio orientador que deve permear todas as nossas ações, temos o amor. "O amor é o único candidato para exercer a função de absoluto moral que não é contraproducente, ou seja, que não se anula a si mesmo em sua a-ção".102 O homem é livre para servir a Deus e ao seu próximo, realizando-se na e-xecução deste propósito. Neste sentido, podem-se compreender as palavras de A-gostinho (354-430): “Conserva, pois, a caridade e fica tranquilo (...). Ama, e

98

R. Albert Mohler Jr., Pregar com a cultura em mente: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 65. 99

Vd. Henry H. Meeter, La Iglesia y el Estado, 3ª ed. Grand Rapids, Michigan: TELL., [s.d.], p. 76-77. 100

Henry H. Van Til, O LConceito Calvinista de Cultura, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 32. 101

“.... Mesmo em face da diversidade cultural, os cristãos devem expressar a autoridade transcultural da Bíblia, porque eles são os únicos no planeta com uma mensagem que é des-tinada a pessoas de todas as culturas. Além disso, nós temos a única mensagem que não precisa ser transformada e redefinida em cada circunstância cultural, porque estamos fa-lando sobre condições permanentes como o pecado, o caráter de Deus e a cruz do Senhor Jesus Cristo” (R. Albert Mohler Jr., Pregar com a cultura em mente: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 65). 102

Norman L. Geisler, La Etica Cristiana Del Amor, Miami: Editorial Caribe, 1977, p. 120.

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assim não poderás fazer senão o bem”.103 A ética do amor reclama o nosso compromisso intelectual e vivencial. A ética cristã é um desafio constante à sua apli-cação às novas situações que o homem se encontra. É uma tentativa humana de entender e aplicar os princípios divinos à cotidianidade humana. É, portanto, um de-safio à conformação de nossa prática àquilo que cremos. “A ética cristã é basea-da no amor, e amor implica relacionamentos. Embora seja mais fácil amar se nunca tenhamos que lidar de fato com uma pessoa, o amor bíblico é aquele tipo complicado que significa se envolver com pessoas reais”.104 “A dimensão ética começa quando entra em cena o outro”.105 A ética cristã parte de princípios eternos que tem a ver com a nossa relação com Deus, co-nosco e com o nosso próximo. Jesus Cristo é o nosso modelo. A única cultura que permanecerá é aquela fundamentada nEle tendo a Sua ética como norma de pensar e agir. A observação de Veith é pertinente:

“A centralidade da Bíblia para os cristãos significa que eles nunca de-vem menosprezar a cultura. Por meio de preceitos, de exemplos, da sua história e por sua própria natureza, a Bíblia nos abre o mundo inteiro da verdade. Porém, a busca desta verdade num mundo pecador e descren-te não deixa de ter seus problemas. As possibilidades e os perigos desse empreendimento talvez possam ser mais bem ilustrados se estudarmos em detalhes um exemplo histórico específico da Bíblia: a educação de Dani-el”.106

Concluo este tópico com as palavras inspiradas, ditas por intermédio do rei Salo-mão no livro de Provérbios: “Filho meu, guarda as minhas palavras e conserva den-tro de ti os meus mandamentos. 2 Guarda os meus mandamentos e vive; e a minha lei, como a menina dos teus olhos. 3 Ata-os aos dedos, escreve-os na tábua do teu coração” (Provérbios 7.1-3).

D) A Educação e o Currículo:

103

Agostinho, Comentário da Primeira Epístola de São João, São Paulo: Paulinas, 1989, (1Jo 5.3), p. 208. 104

Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 95. 105

Umberto Eco, In: Umberto Eco; Carlo Maria Martini, Em que crêem os que não crêem?, Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 83. 106

Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 24. “A cultura e as instituições humanas são valiosas. Elas são dádivas de Deus aos seres humanos que, criados à imagem de Deus, têm poderes e responsabilidades incríveis e são capazes de realizações notáveis. O próprio Deus trabalha por intermédio das instituições e vocações humanas para conter o mal e prover o pão de cada dia e as outras necessidades físicas dos seres humanos que Ele criou e com quem Ele se preocupa” [Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 62].

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"Currículo" é uma transliteração do latim "curriculum" que é empregado tardi-amente, sendo derivado do verbo "currere", "correr". "Curriculum" tem o sentido pró-prio de "corrida", "carreira"; um sentido particular de "luta de carros", "corrida de car-ros", "lugar onde se corre", "hipódromo" e um sentido figurado de "campo", "atalho", "pequena carreira", "corte", "curso".107 A palavra currículo denota a compreensão de que ele não é um fim em si mesmo; é apenas um meio para atingir determinado fim. José do Prado Martins define currículo da seguinte forma:

"A totalidade das experiências organizadas e supervisionadas pela es-cola e que são desenvolvidas sob sua responsabilidade; experiências essas selecionadas com o objetivo de promover o desenvolvimento integral da personalidade do educando, ao mesmo tempo em que visa satisfazer às necessidades da sociedade".108

Deste modo, é necessário que entendamos, que não existe currículo neutro; ele sempre estará ligado à determinada compreensão do mundo, a uma filosofia educa-cional com a sua própria percepção da realidade que determinará a sua prática. A concepção da “neutralidade” curricular denota uma percepção pouco ou nada “neu-tra” da realidade. A educação como ato político – estamos comprometidos com as necessidades da

107

Cf. Currículo: In: António de Morais Silva, Grande Dicionário da Lingua Portuguesa, 10ª ed. Edi-ção revista, corrigida, muito aumentada e actualizada, Lisboa: Editorial Confluência, (1955), Vol. 3, p. 773; Laudelino Freire, Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: A Noite-Editora, (1941-1942), Vol. II, p. 1676; Currículo: In: Adalberto Padro e Silva, ed. et. al. Dicionário Bra-sileiro da Língua Portuguesa, 4ª ed. São Paulo: Mirador Internacional/Melhoramentos, 1980, Vol. I, p. 523; Currículo: In: Cândido de Oliveira, Super. Geral, Dicionário Mor da Lingua Portuguesa, São Pau-lo: Livro'Mor Editôra Ltda. (1967), Vol. II, p. 700; Currículo: In: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, p. 512; Curriculum: In: Ernesto Faria, organizador, Dicionário Escolar Latino-Português, 3ª ed. Rio de Janeiro: Cia. Nacional de Material de Ensino, 1962, p. 270; Antônio Gomes Pena; Marion M. dos Santos Pena, Curriculo: In: Antônio Houaiss, ed. Enciclopédia Mirador Internacional, Vol. 7, 3124. 108

José do Prado Martins, Administração Escolar: Uma Abordagem Crítica do Processo Administrati-vo em Educação, São Paulo: Atlas, 1991, p. 135. Outras definições: "Currículo, do ponto de vista pedagógico, é um conjunto estruturado de disciplinas e atividades, organizado com o obje-tivo de possibilitar seja alcançada certa meta, proposta e fixada em função de um plane-jamento educativo. Em perspectiva mais reduzida, indica a adequada estruturação dos co-nhecimentos que integram determinado domínio do saber, de modo a facilitar seu aprendi-zado em tempo certo e nível eficaz" (Antônio Gomes Pena; Marion M. dos Santos Pena, Curricu-lo: In: Antônio Houaiss, ed. Enciclopédia Mirador Internacional, Vol. 7, p. 3124. "O currículo [...] é uma série de atividades que a geração mais velha planeja para a mais moça na esperança de que, através da execução dessas atividades, os moços se tornarão a espécie de homens e mulheres, considerados como a ideal pela sociedade de que deverão vir a ser membros. [...] O currículo escolar, portanto, é a herança social organizada para a sua rápida assimila-ção por mentes imaturas" (William F. Cunningham, Introdução à Educação, 2ª ed. Porto Ale-gre/Brasília: Editora Globo/INL., 1975, p. 244,247). Contraste-se aqui, as expressões, "mentes imatu-ras" com "geração mais velha". (Veja-se, também: James R. Gress, ed. Curriculum: An Introduction to the Field, Berkeley, California: McCutchan Publishing Corporation, 1978, p. 6ss.).

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"pólis" –, deve ter um planejamento consciente: insisto, a neutralidade inexiste. 109 O planejamento é um ato moral que deve se coadunar com os objetivos propostos: os meios revelam meus fins! Estas definições trazem algumas questões – que em seu bojo contêm outras – , que se relacionam com o nosso tema: Qual o objetivo da Educação? Qual a concep-ção de homem que temos?, De quais recursos dispomos?, Que tipo de homem pre-tendemos "formar"? Como curiosidade, cito que em 1987, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, fez a seguinte pergunta: "Qual será a opção do educador: reprodu-zir a atual sociedade ou lutar para transformá-la?"110 Em 1657, o pastor João A. Comênio (1592-1670), "Pai da Didática Moderna", es-creveu:

"Prometemos uma organização das escolas, através da qual (...). Todos se formem com uma instrução não aparente, mas verdadeira, não super-ficial mas sólida; ou seja, que o homem, enquanto animal racional, se ha-bitue a deixar-se guiar, não pela razão dos outros, mas pela sua, e não apenas a ler livros e a entender, ou ainda a reter e a recitar de cor as opi-niões dos outros, mas a penetrar por si mesmo até ao âmago das próprias coisas e a tirar delas conhecimentos genuínos e utilidade. Quanto à solidez da moral e da piedade, deve dizer-se o mesmo."111

109

Vd. Antonia A. Lopes, Planejamento do Ensino numa Perspectiva Crítica da Educação: In: Ilma P.A. Veiga, Coordenadora, Repensando a Didática, Campinas, SP.: Papirus, 1988, p. 41-52; José Sil-vério B. Horta, Planejamento Educacional: In: Durmeval T. Mendes, (Coord.) Filosofia da Educação Brasileira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 226-227; Walter E. Garcia, Planejamento e Educação no Brasil: A Busca de Novos Caminhos: In: Acácia Z. Kuenzer, Maria Julieta C. Calazans; Walter E. Garcia, Planejamento e Educação no Brasil, São Paulo: Cortez/Autores Associados, (Cole-ção Polêmicas do Nosso Tempo, Vol. 37), 1990, p. 39. Uma opinião diferente encontramos em Phillip H. Coombs, Planejamento Educacional, p. 10, quando declara: "Planejamento educacional é ideologicamente neutro" (Vd. uma discussão mais am-pla deste ponto In: Hermisten M.P. Costa, A Propósito da Alteração do Currículo dos Seminários Presbiterianos: Reflexões Provisórias, São Paulo: 1996, 29p.). 110

Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, Questionando a Avaliação: In: Avaliação, 1987, p. 5. 111

João Amós Coménio, Didáctica Magna, 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1985], XII, p. 163-164. Comênio (1592-1670) foi chamado de "Bacon da Pedagogia" e de "O Galileu da educação” (J. Mi-chelet, Nos fils, Paris, 1869, Apud Gabriel Compayré, Histoire Critique des Doctrines de L’Éducation en France Depuis le Seizième Siècle, 2ª ed. Paris: Librairie Hachette Et Cie. 1880, Vol. I, p. 249; J.-P. Piobetta, João Amos Comenius: In: Jean Château, et. al., Os Grandes Pedagogistas, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 131. Veja-se também, M.F. Sciacca, O Problema da Educação, São Paulo: Herder/EDUSP., 1966, p. 396). Um de seus princípios educacionais era: "ensinar tudo a todos" [Didáctica Magna, X.1. p. 145]. Ele foi o último bispo da Igreja dos Irmãos Boêmios. [Cf. Will S. Monroe, Comenius and the Beginnings of Educational Reform, London: William Heinemann, 1900, p. 61; Paul Kleinert, Comenius: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, Chicago: Funk Wagnalls, Publishers, 1887 (Revised Edi-tion), Vol. I, p. 517; John C. Osgood, Comenius: In: Harry S. Ashmore, Editor in Chief. Encyclopaedia Britannica, Chicago: Encyclopaedia Britannica, INC., 1962, Vol. 6, p. 100; Salomon Bluhm, Johann

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"A proa e a popa da nossa Didáctica será investigar e descobrir o método segundo o qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendam mais; nas escolas, haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inú-til e mais sólido progresso; na Cristandade, haja menos trevas, menos con-fusão, menos dissídios, e mais luz, mais ordem, mais paz e mais tranquilida-de".112

"As escolas são oficinas da humanidade".113

Comênio tinha como um de seus princípios educacionais, “ensinar tudo a to-

dos",114 começando desde bem cedo, já que é mais difícil reeducar o homem na vi- Amos Comenius: In: Lee C. Deighton, editor-in chief. The Encyclopedia of Education, (s. cidade): The Macmillan Company & The Free Press, 1971, Vol. II, p. 301; “Comenius,” In: Rev. John M’Clintock; James Strong, eds. Cyclopaedia of Biblical, Theological, and Ecclesiastical Literature, [CD-ROM], (Ri-o, Wi USA, 2000), Vo. 2, p. 128; Ruy Afonso da C. Nunes, História da Educação no Século XVII, p. 49]. Há evidências de que ele teria sido convidado por John Winthrop Jr. (1606-1676), a presidir o Harvard College (1642), cargo que de fato nunca ocupou. (Vd. Paul Kleinert, Comenius: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical The-ology, Vol. I, p. 518; Salomon Bluhm, Johann Amos Comenius: In: Lee C. Deighton, editor-in chief. The Encyclopedia of Education, (s. cidade): The Macmillan Company & The Free Press, 1971, Vol. II, p. 302; N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, Novena reimpresión, México: Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 303; Joaquim Ferreira Gomes, Introdução à Didáctica Magna: In: Jo-ão Amós Coménio, Didáctica Magna, p. 17; Inez Augusto Borges, Educação e Personalidade: a di-mensão sócio-histórica da educação cristã, São Paulo: Editora Mackenzie, 2002, p. 59. John C. Os-good, Comenius: In: Encyclopaedia Britannica, 1962, Vol. 6, p. 100). Maiores detalhes sobre a vida e o pensamento de Comênio podem ser encontradas in: Hermisten M. P. Costa, Raizes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 112-117. 112

João Amós Coménio, Didáctica Magna, p. 44. 113

João Amós Coménio, Didáctica Magna, p. 146. 114

João Amós Coménio, Didáctica Magna, X.1. p. 145. Como é notório na História, o advento da imprensa trouxe consigo, uma maior difusão da literatura impressa, bem como acarretou gradativamente, um aumento significativo da alfabetização. "Nos paí-ses reformados e nas nações católicas, nas cidades e nos campos, no Velho e no Novo Mundo, a familiaridade com a escrita progride, dotando as populações de competências culturais que antes constituíam apanágio de uma minoria", escreve Roger Chartier (Roger Chartier, As Práticas da Escrita: In: R. Chartier, org. História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, Vol. 3, p. 116). O autor sustenta que foi com o pietismo que a prática da leitura se difundiu amplamente na Alemanha (Ibidem., p. 121-122). Mais à frente ele reconhece, que a leitura e posse de livros, se tornaram mais evidentes nos países protestantes. "À frente da Europa que pos-sui livros estão incontestavelmente as cidades dos países protestantes. Por exemplo, em três cidades da Alemanha renana e luterana – Tubingen, Speyer e Frankfurt –, os inventários com livros constituem em meados do século XVIII respectivamente 89%, 88% e 77% do total regis-trado. Assim, é grande a diferença em relação à França católica, seja na capital (na déca-da de 1750 apenas 22% dos inventários parisienses incluem livros), seja na província (nas no-vas cidades do oeste francês a porcentagem é de 36% em 1757-1758; em Lyon, de 35% na segunda metade do século). Ao contrário, a diferença é pequena com relação a outros pa-íses protestantes – mesmo que majoritariamente rurais como, por exemplo, os da América. “No final do século XVIII, 75% dos inventários no condado de Worcester, em Massachu-setts, 63% em Maryland, 63% na Virgínia assinalam a presença de livros – o que traduz um be-lo progresso em comparação com o século anterior, no qual a porcentagem das melhores regiões não passava de 40%. "Deste modo, a fronteira religiosa parece um fator decisivo no tocante à posse do livro. Nada o mostra melhor que a comparação das bibliotecas das duas comunidades numa mesma cidade. Em Metz, entre 1645-1672, 70% dos inventários dos protestantes incluem livros

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da adulta.115 Portanto, todo currículo está comprometido, consciente ou não, com determinada

compreensão da realidade que, deste modo, determina metas a serem alcançadas.

contra apenas 25% dos inventários católicos. E a distância é sempre muito acentuada, seja qual for a categoria profissional considerada: 75% dos nobres reformados têm livros, mas a-penas 22% dos católicos os possuem, e as porcentagens são de 86% e 29% nos meios jurídi-cos, 88% e 50% na área médica, 100% e 18% entre pequenos funcionários, 85% e 33% entre comerciantes, 52% e 17% entre artesãos, 73% e 5% entre 'burgueses', 25% e 9% entre traba-lhadores braçais e agrícolas. Mais numerosos como proprietários de livros, os protestantes também possuem mais livros: os reformados membros das profissões liberais têm em média, o triplo dos seus homólogos católicos; a situação é idêntica para comerciantes, artesãos ou pequenos funcionários; e entre os burgueses a diferença é ainda maior, com bibliotecas calvinistas dez vezes mais ricas que as dos católicos. "A essa diferença na posse do livro acrescentam-se outras que opõem a própria econo-mia das bibliotecas às práticas da leitura. Nos países luteranos, seja qual for o nível social de seu proprietário, todas são organizadas em torno do mesmo conjunto de livros religiosos" (Ibi-dem., p. 131-133). O autor mostra, com alguns testemunhos históricos –, que toda a cultura protestante estava vincu-lada à leitura da Bíblia (Veja-se, Ibidem., p. 133ss). (Ver também: José Andrés-Gallego, História da Gente Pouco Importante: América e Europa até 1789, Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 101-107). D.S. Schaff observou corretamente, que: "Para o protestante, a Bíblia é um livro popular, um livro tanto para o lar como para o santuário, tanto para a choupana como para o gabinete do erudito. Traduzida para a linguagem do leitor, ela será tão livre como o ar e a luz do sol. É o livro da vida, a mensagem do Evangelho. Como é franca a mensagem para todos os que a aceitem, assim o volume que contém a mensagem deve ser aberto a todos os que quei-ram ler" (D.S. Schaff, Nossa Crença e a de Nossos Pais, 2ª ed. São Paulo: Imprensa Metodista, 1964, p. 172-173). 115

“....Não há coisa mais difícil que voltar a educar bem um homem que foi mal educado. Na verdade, uma árvore, tal como cresce, alta ou baixa, com os ramos bem direitos ou tor-tos, assim permanece depois de adulta e não se deixa transformar. (...) Se se devem aplicar remédios às corruptelas do gênero humano, importa fazê-lo de modo especial por meio de uma educação sensata e prudente na juventude” (João Amós Coménio, Didáctica Magna, De-dicatória, 18-19, p. 65).

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3. A PALAVRA E A EDUCAÇÃO NA JUSTIÇA:

A) O Sentido de Educar:

Paulo diz que "Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para (...) a educação (paidei/a) na justiça" (2Tm 3.16).

Conforme já vimos, a palavra paidei/a (de onde vem a nossa “pedagogia”),116 significa "educação das crianças", e tem o sentido de treinamento, instrução, disci-plina, ensino, exercício, castigo. Cada cultura tem o seu modelo de homem ideal e, portanto, a educação visa for-mar esse homem, a fim de atender às expectativas sociais. Paulo sabia muito bem disso; ele mesmo declarara durante a sua defesa em Jerusalém que fora instruído por Gamaliel, o grande mestre da Lei. "Eu sou judeu, nasci em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade e aqui fui instruído (paideu/w) aos pés de Gamaliel, segundo a exatidão da lei de nossos antepassados....” (At 22.3).

De igual modo, Estevão, descrevendo a vida de Moisés, fala de sua formação, declarando: "E Moisés foi educado (paideu/w) em toda a ciência dos egípcios, e era poderoso em palavras e obras” (At 7.22). Cito um fato elucidativo. Quando Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz com os Índios das Seis Nações, como demonstração da generosidade do ho-mem branco, seus governantes mandaram cartas aos índios solicitando que envias-sem alguns de seus jovens para estudarem em seus colégios. Seguem abaixo extra-tos da resposta dos chefes indígenas:

“.... Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. “Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções

diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa.

“.... Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam pa-ra nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e inca-pazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. “Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensi-

116

paidagwgi/a.

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naremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens”.117 Se olharmos ainda que de relance o tipo de formação desde a Antiguidade, pode-remos constatar que o seu ideal variava de povo para povo e, até mesmo, de cidade para cidade, daí a diferença entre os "currículos", visto que este é o caminho, a "cor-rida" para se atingir o objetivo proposto.118 Assim, temos, ainda que, grosso modo, diversas perspectivas educacionais:119 � CHINA: A educação visava conservar intactas as tradições. Portanto, o currículo

está voltado apenas para o conhecimento e preservação das tradições, seguindo sempre o seu modelo. A originalidade era proibida.

� EGITO: Preparar o educando para uma vida essencialmente prática, que o levas-

se ao sucesso neste mundo e, por intermédio de determinados ritos, alcançasse o favor dos deuses, e a felicidade no além.

� HOMERO: “O educador da Grécia”, como o denomina Platão,120 tinha como meta formar homens virtuosos inspirando-se nos heróis em seus atos de bravura na consecução de seus ideais.121

� ESPARTA: Homens guerreiros, mas que fossem totalmente submissos ao Esta-

do. Neste processo estimula-se até mesmo à delação como modo de evidenciar a

117

Apud Carlos R. Brandão, O Que é Educação, 6ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 8-9. 118

Currículo" é uma transliteração do latim "curriculum" que é empregado tardiamente, sendo deri-vado do verbo "currere", "correr". "Curriculum" tem o sentido próprio de "corrida", "carreira"; um senti-do particular de "luta de carros", "corrida de carros", "lugar onde se corre", "hipódromo" e um sentido figurado de "campo", "atalho", "pequena carreira", "corte", "curso".

A palavra currículo denota a compreensão que ele não é um fim em si mesmo; é apenas um meio para atingir determinado fim. [Vd. Hermisten M.P. Costa, A Propósito da Alteração do Currículo dos Seminários Presbiterianos, São Paulo: 1997, p. 8ss. (Trabalho não publicado)]. 119

Veja-se um bom sumário disso em Thomas Ransom Giles, Filosofia da Educação, São Paulo: EPU., 1983, p. 60-92. 120

Platão, A República, 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), 606e, p. 475. Num fragmento de Xenófanes de Colofão (c. 570-c.460 a.C.), crítico mordaz de Homero, encontramos a menção: “Desde o início todos aprenderam seguindo Homero....” (Xenófanes, Fragmento 10: In: José Calvante de Souza, org., Os Pré-Socráticos, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. I), 1973, p. 70). 121

A palavra traduzida, ainda que inadequadamente, por virtude (a)reth/) relaciona-se àquilo que faz com que uma coisa seja o que é. Sobre o conceito de virtude (a)reth/) entre os gregos, vejam-se: O. Bauernfeind, a)reth/: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testa-ment, 8ª ed. (reprinted) Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1982, Vol. I, p. 457-460; H.G. Link; A. Ringwald, Virtude: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, Vol. IV, p. 574-575; Werner Jaeger, Pai-déia: A Formação do Homem Grego, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989, especialmente, p. 19ss.; José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2001, Vol. 4, p. 3027-3028; André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 1218-1221; F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos: Um léxico histórico, 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1983), p. 38-39; Jean Porter, Virtudes: In: Jean-Yves Lacoste, dir., Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 1860; Henri-Irénée Marrou, História da Edu-cação na Antiguidade, 5ª reimpressão, São Paulo: EPU., 1990, especialmente, p. 28ss.

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sua lealdade ao Estado.122 “Certamente, essa Esparta dos séculos VIII-VI é, antes de tudo, um Estado guerreiro (...). O lugar dominante ocupado em sua cultura pelo ideal militar é atestado pelas elegias guerreiras de Tirteu, que ilustram belas obras plásticas contemporâneas, consagradas, como elas, à glorificação do herói combatente.”123 “Ao atingir sete anos, o jo-vem espartano é requisitado pelo Estado: até à morte, pertence-lhe intei-ramente. A educação propriamente dita vai dos sete aos vinte anos; ela é disposta sob a autoridade direta de um magistrado especial, verdadeiro comissário da Educação nacional, o paidono/moj”.124

� ATENAS: Treinamento competitivo entre os homens a fim de formar cidadãos

maduros física e espiritualmente com capacidade de exercitarem a sua liberdade. � SÓCRATES (469-399 a.C.)/PLATÃO (427-347 a.C.): Formar basicamente por

meio da música e da ginástica, homens capazes de vencer a injustiça reinante.125 A educação tinha um forte apelo moral por intermédio do conhecimento e prática das virtudes. A sabedoria está associada à vida virtuosa.

� OS SOFISTAS:126 Pedagogia elitizada,127 propícia e adequada apenas a quem

pudesse pagá-los. Partindo do relativismo e subjetivismo,128 tinha como objetivo

122

Thomas Ransom Giles, Filosofia da Educação, p. 64. 123

Henri-Irénée Marrou, História da Educação na Antiguidade, São Paulo: E.P.U. (5ª reimpr), 1990, p. 35. 124

Henri-Irénée Marrou, História da Educação na Antiguidade, p. 42. 125

Platão, A República, 376e ss. p. 86ss. 126

A palavra "sofista" provém do grego Sofisth/j, que é derivada de Sofo/j (= “sábio”). Originariamen-te, ambas as palavras eram empregadas com uma conotação positiva. É importante lembrar que fo-ram os próprios sofistas que se designaram assim. 127

"Já desde o começo a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas não era a educação do povo, mas a dos chefes. No fundo não era senão uma nova forma da educação dos nobres (...). Os sofistas dirigiam-se antes de mais nada a um escol, e só a ele. Era a eles que acorriam os que desejavam formar-se para a política e tornar-se um dia dirigentes do Estado" (Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 236). 128

A Retórica Sofística, inventada por Górgias (c.483-c.375 a.C.), era famosa. Górgias dizia: "A palavra é uma grande dominadora que, com pequeníssimo e sumamente invisível cor-po, realiza obras diviníssimas, pois pode fazer cessar o medo e tirar as dores, infundir a alegria e inspirar a piedade (...) O discurso, persuadindo a alma, obriga-a, convencida, a ter fé nas palavras e a consentir nos fatos (...) A persuasão, unida à palavra, impressiona a alma como quer (...) O poder do discurso com respeito à disposição da alma é idêntico ao dos remédios em relação à natureza do corpo. Com efeito, assim como os diferentes remédios expelem do corpo de cada um diferentes humores, e alguns fazem cessar o mal, outros a vida, assim também entre os discursos alguns afligem e outros deleitam, outros espantam, outros exci-tam até o ardor os seus ouvintes, outros envenenam e fascinam a alma com persuasões malvadas" (Górgias, Elogio de Helena, 8, 14). "Quanto à sabedoria e ao sábio, eu dou o nome de sábio ao indivíduo capaz de mudar o aspecto das coisas, fazendo ser e parecer bom para esta ou aquela pessoa o que era ou lhe parecia mau" (Palavras de Protágoras, conforme, Platão, Teeteto, 166d).

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convencer,129 persuadir o seu oponente independentemente da veracidade do ar-gumento.130

� ARISTÓTELES (384-322 a.C.): Formar homens moderados, que tivessem zelo

pela ética e estética.131

� ROMANOS: Educação eminentemente prática, preparando o indivíduo para servir ao Estado.

� RENASCENÇA: Formar homens eruditos que soubessem ler e escrever em gre-

go, latim e, em alguns lugares o hebraico,132 tendo um estilo erudito, que pudes-sem contribuir para a criação do novo, tendo o homem como "medida de todas as coisas".

"Mas deixaremos de lado Tísias e Górgias? Esses descobriram que o provável deve ser

mais respeitado que o verdadeiro; chegariam até a provar, pela força da palavra, que as cousas miúdas são grandes e que as grandes são pequenas, que o novo é antigo e que o velho é novo" (Platão, Fedro, 267). 129

"A sofística, que caracteriza os últimos cinquenta anos do século V, não designa uma doutrina, mas uma maneira de ensinar. Os sofistas são professores que vão de cidade em cidade em busca de auditores e que, por preço convencionado, ensinam os alunos, seja por lições pomposas, seja por uma série de cursos, os métodos adequados a fazer triunfar uma tese qualquer. À pesquisa e à manifestação da verdade substitui-se a preocupação do êxito, baseado na arte de convencer, de persuadir, de seduzir" (Émile Bréhier, História da Filo-sofia, São Paulo: Mestre Jou, 1977, I/1 p. 69-70). 130

Vd. Platão, Teeteto, 166c-167d; Sofista, 231d; Mênon, 91c-92b; Fedro, 267; Protágoras, 313c; 312a; Crátilo, 384b; Górgias, 337d; A República, 336b; 338c. 131

Aristóteles, Ética a Nicômaco, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. IV), 1973, V.2, 1130b 26-27. p. 324 132

O hebraico, que era então ainda mais ignorado do que o grego e o latim, foi também redescober-to. Surgindo, então, as famosas escolas que ensinavam os três idiomas – em Lovaina (1517), Oxford (1517 e 1525), Paris (1530) –, visando formar o “homo trilinguis” (Vejam-se: Jacob Burckhardt, A Cul-tura do Renascimento na Itália: Um Ensaio, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 154; Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa: Editorial Estampa, 1984, Vol. I, p. 97). Foi assim que foi elaborada a primeira gramática hebraica escrita por um cristão, Reuchlin (1455-1522), em 1506. Não devemos nos esquecer também, que é deste período a publicação da “Bíblia Poliglota Complutense” – recebendo este nome por ter sido impressa em Complutum, forma latina da atual Al-calá, Espanha, onde Ximenes fundou uma Universidade –, que continha o Antigo Testamento em 3 idiomas, formatado em três colunas paralelas: Hebraico, latim (da vulgata) e grego (da LXX), tendo, também, uma tradução latina interlinear. Na parte inferior da página, constava do Novo Testamento em grego e latim. Esta obra sendo promovida pelo Cardeal Francisco Ximenes de Cisneros (1437-1517), foi iniciada em 1502 sendo concluída em 1517 (O NT estava concluído desde 1514), sendo constituída por seis volumes. Todavia, o papa Leão X só deu permissão para a sua circulação em 22/03/1520. Ao que parece, esta obra não chegou a Alemanha antes de 1522 e, Lutero não se utili-zou dela para a sua tradução do Novo Testamento (Vejam-se mais detalhes em: W.G. Kummel, In-trodução ao Novo Testamento, São Paulo: Paulinas, 1982, p. 713-714; Wilson Paroschi, Crítica Textual do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 107-108; E. Lohse, Introdução ao No-vo Testamento, São Leopoldo, RS.: Sinodal, © 1972, p. 261; Hipólito Escolar, Historia del Libro, 2ª ed. corregida y ampliada, Salamanca/Madrid: Fundación Germán Sánchez Ruipérez/Pirámide, 1988, p. 416ss.). Quanto à disposição das três colunas da obra: Hebraico, Latim e Grego, “Cisneros dizia que adotara esta disposição para recordar o lugar que a Igreja romana ocupava entre a si-nagoga e a Igreja grega: posição análoga à do Cristo entre os dois ladrões!” (Jean Delume-au, A Civilização do Renascimento, Vol. I, p. 98).

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� ATUALIDADE: Formar homens competitivos, que alcancem o sucesso a qualquer

preço. É claro que isto sofrerá alterações em cada área de estudo e, também, se-rá diferente entre os países, contudo, esta visão geral nos parece pertinente.

Retornando ao ensino bíblico, perguntamos: E nós, que tipo de homens somos?; que tipo de formação temos dado aos nossos filhos?; que tipo de formação a Igreja tem proporcionado à infância e à juventude? Que modelo temos apresentado? No-temos, que Paulo nos diz: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino (didaskali/a), para a repreensão, para a correção, para a educação (paidei/a) na justiça” (2Tm 3.16). Como já mencionamos, é neste sentido que Salomão diz: "O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino (LXX: pai-dei/a)” (Pv 1.7; Vd. Pv. 9.10; 15.33; Sl 111.10). "Ouvi o ensino (LXX: paidei/a), sêde sábios, e não o rejeites” (Pv 8.33). A educação significa também "disciplina". Deus muitas vezes usa este recurso pa-ra nos educar, a fim de que sejamos salvos. Paulo diz: "Mas, quando julgados, so-mos disciplinados (paideu/w) pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo” (1Co 11.32). Na educação divina (disciplina), vemos estampada a Sua graça, não necessaria-mente a Sua ira,133 que atua de forma pedagógica: "Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos (paideu/w) para que, rene-gadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente” (Tt 2.11-12) –; e o Seu amor. Jesus disse: "Eu repreendo (e)le/gxw) e disciplino (paideu/w) a quantos amo. Sê, pois, zeloso, e arrepende-te” (Ap 3.19). Aqui, como em outros textos, percebemos a ligação entre a repreensão e a disciplina (= educação) operada por Deus naqueles a quem Ele ama. Moisés, compreendendo bem a “didática” de Deus, diz ao povo: “Recordar-te-ás de todo o caminho, pelo qual o Senhor teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar (hfnf(),134 para te provar, para saber o que estava no teu cora-ção (לבב) (lebab), se guardarias ou não os seus mandamentos. Ele te humilhou (hfnf(), e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conheceste, nem teus pais o conheceram, para te dar a entender que não só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede da boca do Senhor, disso viverá o homem” (Dt 8.2-3. Do mesmo modo, Dt 8.16) (Vd. Sl 102.23; Is 64.12; Lm 3.33).

133

Veja-se: Augustus Nicodemus Lopes, Ensinar e Aprender em Paulo. In: Fides Reformata, (Edição Especial: Educação)São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 13/2 (2008) 113-122, p. 120. 134

A palavra hebraica (hfnf() (‘ãnãh) tem o sentido de “aflito”, “oprimido”, com o sentimento de impo-tência, consciente de que o seu resgate depende unicamente da misericórdia de Deus. Esta palavra é contrastada com o orgulho, que se julga poderoso para resolver todos os seus problemas, relegando Deus a uma posição secundária, sendo-Lhe indiferente. hfnf( (‘ãnãh) apresenta também a idéia de ser humilhado por outra pessoa: (Gn 16.6; 34.2; Ex 26.6; Dt 22.24,29; Jz 19.24; 20.5).

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O salmista narra a sua experiência: “Foi-me bom ter eu passado pela aflição (hfnf(), para que aprendesse (למד)(la ̂mad) os teus decretos” (Sl 119.71). As aflições corre-tamente compreendidas podem ser instrumentos utilíssimos para a prevenção e cor-reção de nossos desvios espirituais. O que a Palavra de Deus nos mostra, e por certo temos confirmado isto em nossa experiência, é que buscamos a Deus mais intensamente em meios às aflições: “Es-tou aflitíssimo (hfnf(), vivifica-me, Senhor, segundo a tua palavra” (Sl 119.107). “Antes de ser afligido (hfnf(), andava errado, mas agora guardo a tua palavra” (Sl 119.67). O coração contrito – demonstra Moisés – aprende com a disciplina do Senhor e se alegra por Deus tê-lo afligido: “Alegra-nos por tantos dias quantos nos tens afligi-do (hfnf(), por tantos anos quantos suportamos a adversidade” (Sl 90.15).

O desejo de Deus é a restauração de Seus filhos. Neste sentido, Paulo recomen-da ao jovem Timóteo como deveria agir com aqueles que se opunham à mensagem do Evangelho: "Disciplinando (paideu/w = “ensinando”, “instruindo”) com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimen-to para conhecerem plenamente a verdade, mas também o retorno à sensatez, li-vrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele, para cumprirem a sua vontade” (2Tm 2.25-26).

Morton faz um quadro comparativo relevante, mostrando porque os grandes sis-

temas educacionais da Antiguidade fracassaram, enquanto que o de Israel não:

“Pode-se dizer que o sistema de Esparta apontou para a destruição do indivíduo no serviço ao estado. Pode-se dizer que o sistema de Atenas a-pontou para treinar o indivíduo no serviço da cultura. Em Roma, o treina-mento do indivíduo foi no serviço do estado. O objetivo de Israel foi treinar o indivíduo no serviço de Deus. O objetivo em Roma, Esparta e Atenas ma-logrou em um nível moral. O sistema deles não continha a fé capaz de de-safiar indiferença e superficialidade. Portanto, eles perderam senso de di-reção e falharam. (...) A educação judaica nunca perdeu seu senso de di-reção. A sua intenção não era educação em conhecimento acadêmico e técnico, mas educação em santidade (Lv 19.2). Apesar do povo de Is-rael frequentemente esquecer os ideais, sempre houve sacerdotes, profe-tas, escribas, sábios, rabinos e professores para relembrá-los. Deus era o centro e não homem; retidão era o alvo e não o interesse próprio (Ex 19.6)”.135

135

A.W. Morton, Educação nos Tempos Bíblicos: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bí-blia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, Vol. 2, p. 263.

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B) O Sentido de Justiça: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para (...) a educação (paidei/a) na justiça (dikaiosu/nh)" (2Tm 3.16). Temos visto que a palavra "Educação" (paide/ia) significa "educação das crian-ças", e tem o sentido de treinamento, instrução, disciplina, ensino, exercício. Vimos também que o ideal de Deus para a nossa formação é nos fazer "sábios". Ser sábio conforme a sabedoria de Deus é o mesmo que ser educado na justiça (2Tm 3.16). Ou, como disse Calvino (1509-1564): "instrução na justiça significa instrução numa vida piedosa e santa".136 Paulo está nos dizendo que a Escritura é útil para o nosso treinamento na justiça. Aqui algumas perguntas se configuram como de su-ma importância para a continuação de nosso estudo: O que significa justiça? Qual o sentido da palavra empregada por Paulo? E, qual o sentido bíblico desta justiça? A palavra "justiça" adquire na Bíblia o sentido de "retidão". Proceder justamente significa agir conforme o caráter de Deus, Aquele que é justo absolutamente: "....Deus é fidelidade, e não há nEle injustiça: é reto e justo (LXX: di/kaioj)” (Dt 32.4). O Antigo Testamento, indicando a justiça de Deus manifesta em Seu Reino, de-clara, numa linguagem figurada, que: "Justiça (LXX: dikaiosu/nh) e direito são o fundamento do teu trono; graça e verdade te precedem” (Sl 89.14). A justiça é o fun-damento do Seu governo: ".... Justiça (dikaiosu/nh) e juízo são a base do seu trono" (Sl 97.2). Deste modo, o nosso "treinamento na justiça" indica a nossa busca por um com-portamento semelhante ao modelo de Deus. A educação que Deus nos dá por meio da Sua Palavra visa o nosso envolvimento, o nosso compromisso com os Seus pre-ceitos. A justiça operada por Deus é sempre decorrente da Sua Palavra; portanto, “Ne-nhum outro jamais se apropriará corretamente da justiça divina senão aque-le que a abraça como ela lhe é oferecida e apresentada na Palavra”.137 Desejar a justiça de Deus significa desejar o cumprimento da promessa de Deus. A educação na justiça não consiste apenas na tentativa de um melhoramento mo-ral, antes é o estabelecimento de um novo modelo, resultante da nova natureza que foi implantada em nosso coração pelo Espírito, como fruto da obra sacrificial e vitori-osa de Cristo. "Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que nele fossemos feitos justiça (dikaiosu/nh) de Deus” (2Co 5.21). Por meio do sacrifício vicário de Cristo fomos declarados justos diante de Deus; por isso é que a Escritura afirma que Cristo é a nossa justiça: "...Vós sois dele [de

136

J. Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16), p. 264. 137

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 40.10), p. 233.

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Deus], em Cristo Jesus, o qual se tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça (di-kaiosu/nh), e santificação e redenção” (1Co 1.30). Na justificação Deus nos declara justos, perdoando todos os nossos pecados, os quais foram pagos definitivamente por Cristo; por isso, já não há nenhuma condenação sobre nós; estamos em paz com Deus amparados pela justiça de Cristo (Vd. Rm 5.1; 8.1,31-33). Na justificação Deus declara que já não há mais culpa em nós.

Deus nos gerou em Cristo para a prática da justiça de Cristo. "Carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos aos pecados, vivamos para a justiça (dikaiosu/nh); por suas chagas fostes sarados” (1Pe 2.24). A prática do "caminho da justiça" (2Pe 2.21) tornou-se o sinal inconfun-dível de todos os que pertencem a Cristo: "Se sabeis que ele [Jesus] é justo

(di/kaioj), reconhecei também que todo aquele que pratica a justiça (dikaiosu/nh) é nascido dele (...). Filhinhos, não vos deixeis enganar por ninguém; aquele que prati-ca a justiça (dikaiosu/nh) é justo (di/kaioj), assim como ele é justo (di/kaioj) (...). Nisto são manifestos os filhos de Deus e os filhos do diabo: todo aquele que não pratica justiça (dikaiosu/nh) não procede de Deus, também aquele que não ama a seu irmão" (1Jo 2.29; 3.7,10). Os critérios de justiça variam de povo para povo e até mesmo conforme os nos-sos interesses pecaminosos. A nossa mente tem a capacidade de usar um recurso chamado de "mecanismo de defesa", que consiste na racionalização, que nada mais é do que a tentativa de justificar as nossas crenças já dogmatizadas pelos nossos desejos. Por isso é que a justiça que devemos seguir não é a de homens, conforme os seus pecados e/ou nossos interesses, mas, sim, a justiça de Deus. É neste senti-do que Jesus nos adverte quanto à "justiça" dos escribas e fariseus. “.... Se a vossa justiça (dikaiosu/nh) não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entra-reis no reino dos céus” (Mt 5.20). A justiça destes homens visava tão somente satisfazer os seus próprios desejos de serem vistos e admirados como homens "piedosos" e geniais "intérpretes da lei". Jesus novamente nos adverte: "Guardai-vos de exercer a vossa justiça (dikaio-su/nh) diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte não te-reis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mt 6.1-2). Por isso a Bíblia nos ensina enfaticamente, que a justiça que devemos seguir é a de Deus, conforme é-nos ensinada por Jesus Cristo; e "a justiça exigida por Cristo é nada menos que uma completa conformidade com a santa lei de Deus".138 Lembremo-nos de que o Senhor conhece os nossos corações, sabendo de nossas intenções e motivações (Jo 2.25). E é Ele mesmo Quem nos julgará com justiça. Paulo insiste com o jovem Timóteo neste ponto: ".... Segue a justiça (dikaio-su/nh), a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão” (1Tm 6.11). "Foge

138

G. Hendriksen, El Evangelio Segun San Mateo, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana, 1986, p. 307.

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(feu/gw),139outrossim, das paixões da mocidade. Segue (diw/kw)140 a justiça (di-kaiosu/nh), a fé, o amor e a paz com os que de coração puro, invocam o Senhor” (2Tm 2.22). A Palavra de Deus nos instrui na justiça, a fim de que o nosso viver seja caracte-rizado pelos frutos da justiça. Isto equivale a dizer que a justiça de Cristo em nós se revela no agir; ela frutifica em nosso comportamento. A vontade de Deus é que reve-lemos a Sua justiça em nós por intermédio de nossa fé e de nossas atitudes, de-vendo ser estas, evidências daquela. Paulo escreve aos efésios: "...Quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupis-cências do engano, e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revis-tais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça (dikaiosu/nh) e retidão pro-cedentes da verdade. Por isso, deixando a mentira, fale cada um a verdade com o seu próximo (...). Aquele que furtava, não furte mais; antes trabalhe (...). Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, e, sim, unicamente a que for boa para a edifica-ção (...). Não entristeçais o Espírito de Deus (...). Longe de vós toda a amargura, e cólera, e ira, e gritaria, e blasfêmias, e bem assim toda a malícia. Antes sede uns pa-ra com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como tam-bém Deus em Cristo vos perdoou....” (Ef 4.22-31). Neste texto, Paulo apresenta diversos frutos da justiça que consistem basicamen-te no abandono do pecado e na prática da justiça. A justiça de Cristo frutifica em nós por meio da mudança de paradigma, que consiste numa mudança de valores e comportamento. Aos mesmos efésios Paulo diz: "....Outrora éreis trevas, porém ago-ra sois luz no Senhor; andai como filhos da luz, porque o fruto da luz consiste em to-da a bondade, e justiça (dikaiosu/nh), e verdade, provando sempre o que é agradá-vel ao Senhor" (Ef 5.8-10).

O cristão é responsável por descobrir diariamente – orientado pela Palavra –, a a-titude ética correta condizente com a sua nova natureza que reflita a justiça de Cris-to, sendo agradável a Deus. Deus se agrada com a nossa integridade em servi-Lo; com a nossa busca por fazer a Sua vontade, mesmo nas mínimas coisas. O desafio de todo aquele que deseja fazer a vontade de Deus é aplicar a Sua Palavra à sua realidade diária, aos desafios de nossa vida social, profissional, familiar, estudantil e afetiva. Jesus Cristo nos diz que pelos frutos nós conhecemos a qualidade de uma árvo-re; e aplica este exemplo à vida espiritual. Deste modo, o nosso desejo de agradar a Deus será demonstrado em nossa prática, condizente com a Sua justiça. "Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos

139

O verbo, no presente imperativo, indica uma ação que deve se tornar um hábito de vida. 140

O verbo está no presente imperativo ativo. Associando-se o fugir ao seguir, temos um comporta-mento constante e complementar que deve fazer parte da conduta cristã. Diw/kw é utilizado sistema-ticamente para aqueles que perseguiam a Jesus, os discípulos e a Igreja (Mt 5.10-12; Lc 21.12; Jo 5.16; 15.20). Lucas emprega este mesmo verbo para descrever a perseguição que Paulo efetuou contra a Igreja (At 22.4; 26.11; 1Co 15.9; Gl 1.13,23; Fp 3.6), sendo também a palavra utilizada por Jesus Cristo quando pergunta a Saulo do porquê de sua perseguição (At 9.4-5/At 22.7-8/At 26.14-15). Paulo diz que prosseguia para o alvo (Fp 3.12,14). O escritor de Hebreus diz que devemos perseguir a paz e a santificação (Hb 12.14). Pedro ensina o mesmo a respeito da paz (1Pe 3.11).

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dos abrolhos? Assim toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons (...). Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis. Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7.16-18,20,21). O apóstolo Paulo nos fala do fruto do Espírito como uma característica dos filhos de Deus; daqueles que andam no Espírito: "O fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio....” (Gl 5.22-23). Paulo ora a Deus pelos filipenses, para que eles se apresentassem diante de Cristo "sinceros e inculpáveis", tendo a responsabilidade de viverem hoje, "cheios do fruto de justiça". "E também faço esta oração: que o vosso amor aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção, para aprovardes as cousas exce-lentes e serdes sinceros e inculpáveis para o dia de Cristo, cheios do fruto de justiça (dikaiosu/nh), o qual é mediante Jesus Cristo, para a glória e louvor de Deus” (Fp 1.9-11). Portanto, nós como justificados em Cristo, devemos frutificar em toda boa obra de justiça, evidenciando a habitação do Espírito em nós em todas as áreas de nosso vi-ver.

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4. A PALAVRA DE DEUS É A VERDADE: (JO 17.17,19)

“Se não existe verdade, também não

existe heresia” – John Sittema.141

“A verdade fundamenta-se de modo permanente na razão das coisas e foi estabelecida por Deus” – Santo Agosti-

nho.142

“Assim, pode-se definir o homem como aquele que procura a verdade”

� João Paulo II.143

Introdução: A Suficiência da Verdade Toda afirmação envolve definições que, por sua vez, são delimitações, recortes da realidade. Portanto, toda afirmação envolve necessariamente negação, exclusão. A nossa perspectiva teológica por si só determina uma forma de perceber a realida-de e de atuar na mesma. O Cristianismo, como não poderia deixar de ser, sustenta verdades que – ainda que nós cristãos, possamos divergir em muitos pontos – o dis-tingue das demais religiões. Deste modo, sustentando a fé cristã, bem como qual-quer outra religião ou sistema de crenças, estaremos nos colocando em oposição a outras formas de perceber e, por isso mesmo, de crer. Assim sendo, a tentativa in-gênua de criar uma compatibilidade universal de nossa fé consiste justamente em negar os seus aspectos distintivos e particulares. Se fosse para ser assim, para que serviria a fé cristã? O teólogo sabe que a teologia é uma busca humana por compreender e sistema-tizar a revelação; e como humanos que somos, podemos nos enganar... A teologia, portanto, está, de certa forma, sempre à caminho, em busca de uma compreensão mais exaustiva das Escrituras. Entretanto, como em todas as demais ciências, nós Reformados, temos nossos pressupostos; o nosso é que a Bíblia é o registro inspi-rado e inerrante da Palavra de Deus. Disto não abrimos mão. Estamos convencidos que uma visão relapsa da Palavra determina o fracasso teológico e espiritual da I-greja.144 Sei também que é comum os homens confundirem as suas interpretações com a própria verdade. Infalível é a Escritura, não a nossa interpretação. No entanto,

141 John Sittema, Coração de Pastor, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 76. 142

Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.33. p. 140-141. 143

João Paulo II,Fides Et Ratio, III.28 (14.09.1998), http://www.vatican.va/edocs/POR0064/__P8.HTM (consultada em 22.07.10). (Carta Encíclica de João Paulo II aos bispos sobre a relação entre fé e ra-zão). 144

Vd. Hermisten M. P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reforma-da, 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, passim.

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quando sou possuído por uma interpretação, já não consigo imaginar uma conclusão "racional" diferente. A nossa perspectiva tende a assumir um tom "final", ainda que em nosso discurso a nossa perspectiva seja mostrada como uma das possíveis in-terpretações. Contudo, ainda que não estejamos propondo a propriedade absoluta da verdade, defendemos a necessidade de sustentá-la e defendê-la. Este é o nosso ponto. “Porque nada podemos contra a verdade (δυνάµεθάτι κατα� τη�ς α�ληθείας ), se-não em favor da própria verdade” (2Co 13.8). Paulo diz que nada podemos, não te-mos poder (du/namij)145 algum contra a verdade (a)lh/qeia). Ou seja, somos total-mente impotentes quando agimos contra a verdade; ela sempre reaparece como que das cinzas a que a julgávamos condenada. A verdade é o que é:146 “Ainda que o mundo inteiro fosse incrédulo, a verdade de Deus permaneceria ina-balável e intocável”.147 No entanto, uma questão que em nossos dias possivel-mente viria antes dessa, é: por acaso você acredita em verdades absolutas?

Na Sua oração Jesus declara a certeza da veracidade da palavra de Deus: “A Tua Palavra é a verdade (a)lh/qeia)” (17). Continua: “E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade (a)lh/qeia)” (19). Jesus Cristo nos diz não que a Palavra de Deus se harmoniza com algum outro padrão distinto decorrendo daí a sua veracidade, antes, o que Ele afirma é que a Sua Palavra é a própria verdade, o padrão de verdade ao qual qualquer alegação pretensamente verdadeira deverá se adequar.148 Etimologicamente, a idéia da palavra verdade (a)lh/qeia) é de “não ocultamento”, mostrando-se tal qual é em sua pureza, sem falsificação. A palavra confere o sentido de confiabilidade, autenticidade, honradez e segurança. Jesus diz ao Pai que pro-clamou a Sua Palavra a qual é a verdade; nela não há ambiguidade, dupla intenção, antes, expressa as coisas como realmente são em sua essência. Analisemos alguns aspectos concernentes à verdade.

A) A Inacessibilidade da Verdade: Alan Bloom em estudo que faz uma ressonância do ensino das Universidades americanas em meados dos anos de 1980, a certa altura, fala de forma irônica da certeza que os professores universitários podem ter quanto aos seus alunos: “Qua-se todos os estudantes que entram na universidade acreditam, ou dizem a-creditar, que a verdade é relativa”. Continua: “A verdade relativa não é uma concepção teórica, mas um postulado moral, uma condição para toda so-

145

Para um estudo do significado e uso da palavra no Novo Testamento, ver: Hermisten M.P. Costa, O Poder do Espírito e o Testemunho Fiel do Evangelho, São Paulo, 2003, 22p. 146

“O verdadeiro é o que é em si (...) é o que é” (Agostinho, Solilóquios, São Paulo: Paulinas, 1993, II.5.8. p. 76-77). 147

João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.2), p. 48-49. 148

Veja-se: Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 53-54.

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ciedade livre”.149 Dentro da perspectiva “pós-moderna” há uma crise epistemológica forjada, que gera a concepção de que a verdade, se existe, é inacessível; daí o abandono da procura da verdade e, consequentemente, a carência de ensino sobre a importância da verdade e sobre valores considerados verdadeiros.150 Desta forma, há a afirma-ção explícita ou não de que a verdade é que não há verdade. Deste modo, procurando evitar o perigo de um agnosticismo absoluto – que seria um suicídio intelectual e da própria tese –, admite-se a verdade dentro do universo singular de cada indivíduo; deste modo, a sua verdade é sua e não tem nenhum va-lor objetivo, portanto, não há nada nela de universalizante. Assim sendo, de posse de minha verdade procuro vivê-la dentro das dimensões de minha subjetividade e nada mais. O educador Paul Spears observa que “o treinamento de alunos sobre como chegar à verdade pela razão é algo que já foi abandonado porque, a idéia de que alguém pode ter realmente acesso à verdade absoluta parece toli-ce”.151 Notamos então, que quando a verdade é considerada, tem apenas um sentido lo-cal e circunstancial: “Minha verdade”, “sua verdade”, “verdade de cada um”, “verdade para aquela época”, “verdade para aquele povo”, etc. Já obser-varam como no campo das ciências sociais evita-se emitir juízo de valor? Fala-se de “fenômeno”; deste modo, foge-se da questão do certo e errado; verdade e mentira. Apenas descrevo o “fenômeno”, palavra mágica, que faz-me dizer o “fato” como se manifesta dentro de minha percepção e mais nada. Atitude ingênua: como se fosse possível ter percepção sem uma gama enorme de valores que a referenciam dentro de meu universo epistemológico.152 Partindo desta perspectiva, a verdade passou a ser simplesmente construída; deste modo, não há lugar para absolutos. “Os pós-modernistas rejeitam total-mente a verdade objetiva. A verdade não é uma descoberta feita a partir do mundo externo. Antes, a verdade é uma construção”.153

149

Alan Bloom, O Declínio da Cultura Ocidental, 3ª ed. São Paulo: Best Seller, 1989, 29. 150

“Ao criar uma crise epistemológica, os questionamentos pós-modernistas rejeitam até a possibilidade da verdade, histórica ou qualquer outra” (Clyde P. Greer, Jr., Refletindo Hones-tamente sobre a História: In: John F. MacArthur, Jr. ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a vi-são cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 411). 151

Paul Spears, Introdução à Filosofia. In: Paul Spears, et. al. Fundamentos Bíblicos e Filosóficos da Educação, São Paulo: Associação Internacional de Escolas Cristãs-Brasil, 2004, p. 13. “Ao criar uma crise epistemológica, os questionamentos pós-modernistas rejeitam até a possibilidade da verdade, histórica ou qualquer outra” (Clyde P. Greer, Jr., Refletindo Honestamente sobre a História: In: John F. MacArthur, Jr. ed. ger., Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mun-do, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 411). 152

Ver Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004. 153

Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 55-56.

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No entanto, as Escrituras nos falam de verdade absoluta, acessível verificável e vivenciável. A Palavra de Deus nos desafia a conhecer a verdade e a praticá-la co-mo testemunho de fé, certos de que o propósito de Deus para o homem é sempre perfeito; a Sua vontade é boa, perfeita e agradável: “E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimen-teis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.2). Esta verdade precisa ser proclamada quer pela palavra quer, principalmente pela nossa perspectiva do mundo que se materialize em nossas ações. Portanto, não po-demos simplesmente ignorar as influências de nosso meio: “A igreja jamais mani-festará seu poder na sociedade, se não recuperar um amor ardente pela verdade e aversão à mentira. O verdadeiro crente não pode fechar os olhos ou negligenciar as influências anticristãs em seu meio, esperando desfrutar das bênçãos de Deus”.154

B) A Verdade de Deus num mundo de Mentiras: A verdade revelada nas Escrituras é a realidade como Deus a percebe. Deus percebe as coisas como são. “A verdade é o que conforma a realidade”.155 Antes de atribuirmos valor à verdade, ela já o tem porque foi Deus quem a criou e lhe confere significado. A verdade é uma expressão de Deus em Si mesmo e na cri-ação. Deus é a verdade, opera por meio da verdade e nos conduz à verdade. A gra-ça de Deus opera pela verdade e, nesta verdade que foi ouvida e compreendida, fru-tificamos (Cl 1.6). “A verdade é aquilo que é consistente com a mente, a von-tade, o caráter, a glória e o ser de Deus. Sendo mais preciso: a verdade é a auto-expressão de Deus”.156 O Cristianismo revela a sua coerência lógica e espiritual pelo seu comprometimen-to com a verdade. Não há relevância na mentira. A proclamação cristã insiste no fato de que Deus é verdadeiro e que Ele Se revela, dando-Se a conhecer. As Escrituras enfatizam esta realidade que confere sentido a toda a nossa existência, quer aqui, quer na eternidade. Deus é transcendente e pessoal; Ele se relaciona pessoalmente conosco. 1) O DEUS TRIÚNO É VERDADEIRO: O próprio fato de dar testemunho, tão enfático, especialmente nos escritos de João e em Atos, revela a relevância histórica do ocorrido: nascimento, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Conforme já enfatizamos, o Cristianismo é uma reli-

154

John F. MacArthur Jr. Introdução do Editor: In: John F. MacArthur Jr. ed. Ouro de Tolo? Discernin-do a Verdade em uma Época de Erro, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2006, p. 11. 155

Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 169. 156

John F. MacArthur, Jr., A Guerra pela Verdade: lutando por certeza numa época de engano, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2008, p. 30.

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gião de história. Ele se baseia em fatos os quais devem ser testemunhados, visto que eles têm uma relação direta com a vida dos que crêem. A fé cristã fundamenta-se no próprio Cristo: O Deus-Homem. Sem o Cristo Histórico não haveria Cristianis-mo. A sua força e singularidade amparam-se na pessoa de Cristo, não simplesmente nos seus ensinamentos. O Cristianismo é o próprio Cristo. Dar testemunho significa trazer a público de forma apropriada algo experimentado e que não pode ser negli-genciado.157 Nós cremos num Deus verdadeiro, em quem temos vida; este é o testemunho da Igreja conforme a oração de Jesus Cristo: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro (a)lhqino/j), e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3).

Jesus Cristo é a verdade e o verdadeiro Deus a quem reconhecemos pela graça. Ele mesmo afirma: “Eu sou o caminho, e a verdade (a)lh/qeia), e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6). João dá testemunho da veracidade do Pai e do Filho: “Também sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado entendi-mento para reconhecermos o verdadeiro (a)lhqino/j); e estamos no verdadeiro (a)lhqino/j), em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro (a)lhqino/j) Deus e a vi-da eterna” (1Jo 5.20). O Espírito é a verdade, dando testemunho e nos conduzindo à verdade: “Quando vier, porém, o Espírito da verdade (a)lh/qeia), ele vos guiará a toda a verdade (a)lh/qeia); porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir” (Jo 16.13). “.... E o Espírito é o que dá testemu-nho, porque o Espírito é a verdade (a)lh/qeia)” (1Jo 5.6).

2) O ENSINO VERDADEIRO DO VERDADEIRO DEUS:

Jesus Cristo por ser verdadeiro ensina a verdade; o reto ensino. Os fariseus, por sua vez, tentando preparar armadilha para Jesus, partem de um conceito comum entre todos os que O ouviam: a integridade de seu ensino e comportamento. Assim articulam. Registra Mateus: “E enviaram-lhe discípulos, juntamente com os herodia-nos, para dizer-lhe: Mestre, sabemos que és verdadeiro (a)lhqh/j) e que ensinas (dida/skw) o caminho de Deus, de acordo com a verdade (a)lh/qeia), sem te impor-tares com quem quer que seja, porque não olhas a aparência dos homens” (Mt 22.16). Em narrativa paralela, registrada por Lucas, lemos: “Então, o consultaram, dizendo: Mestre, sabemos que falas e ensinas retamente (o)rqw=j) e não te deixas levar de respeitos humanos, porém ensinas o caminho de Deus segundo a verdade (a)lh/qeia)” (Lc 20.21). O Evangelho é verdadeiro; é a Palavra da verdade (Gl 2.5,14; Ef 1.13; Cl 1.5-6; 2Tm 2.15; Tg 1.18). A Palavra de Deus é a verdade por meio da qual o Espírito nos gera: “Pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade (a)lh/qeia) 157

Veja-se: L. Coenen, et. al., Testemunha: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. IV, p. 610.

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para que fôssemos como que primícias das suas criaturas” (Tg 1.18). É a esta ver-dade que o Espírito nos conduz como igreja, conforme prometera Jesus: “Quando vier, porém, o Espírito da verdade (a)lh/qeia), ele vos guiará a toda a verdade (a)lh/qeia); porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir” (Jo 16.13).

Os caminhos de Deus são verdadeiros em si mesmos, não havendo injustiça. No Apocalipse lemos o cântico dos santos libertos por Deus: “E entoavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros (a)lhqino/j) são os teus caminhos, ó Rei das nações!” (Ap 15.3).

3) A RECEPÇÃO E APEGO À VERDADE: O Evangelho é para ser recebido como o ensino autoritativo de Deus. Esta recepção envolve o nosso “andar” nele. A aceitação do Evangelho tem implicações em todas as áreas de nossa vida, não é apenas algo intelectual. Talvez uma das maiores crises que enfrentamos hoje seja a sustentação da verdade de que não há verdade. Se isto é assim, não podemos falar em dignidade e realidade visto que a dignidade consiste na identificação da verdade e na sua prática.158 Onde não há verdade, não há padrão real ao qual devo conformar o meu pensar e agir. Aqui de forma indireta podemos ver a nossa responsabilidade como pregadores. A mensagem que transmitimos exige uma postura responsável, compatível com a sua gravidade e suas implicações. Paulo se refere aos irmãos da igreja de Corinto como aqueles que receberam o Evangelho e nele perseveram: “Irmãos, venho lem-brar-vos o evangelho que vos anunciei, o qual recebestes (paralamba/nw)159 e no qual ainda perseverais” (1Co 15.1). Aos colossenses refere-se ao Evangelho que foi ouvido e entendido e estava pro-duzindo fruto: “por causa da esperança que vos está preservada nos céus, da qual antes ouvistes pela palavra da verdade (a)lh/qeia) do evangelho, que chegou até vós; como também, em todo o mundo, está produzindo fruto e crescendo, tal acon-tece entre vós, desde o dia em que ouvistes e entendestes (e)piginw/skw)160 a graça de Deus na verdade (a)lh/qeia)” (Cl 1.5-6). Paulo dá graças a Deus pelo fato dos tessalonicenses terem recebido com dis-cernimento a Palavra proclamada, procedente de Deus: “Outra razão ainda temos

158

“A dignidade humana consiste na capacidade de conhecer a verdade e vivê-la. Viver de acordo com a verdade restauraria a dignidade humana nata e tornaria mais uma vez a vida digna � porque a verdade é mais importante que a própria vida” (Charles Colson; Harold Fic-kett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 173). 159

Tem o sentido pessoal de tomar para si, levar consigo, tomar posse. É o próprio Senhor quem escolhe três discípulos para Se revelar (Mt 17.1; 20.17; 26.37/Mc 5.40). Ele mesmo, o Senhor Jesus nos receberá no céu (Jo 14.3/Mt 24.40). 160

Indica o reconhecimento consciente, imediato e intenso do Evangelho.

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nós para, incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido (para-lamba/nw) a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes (de/xomai)161 não como palavra de homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes” (1Ts 2.13/1Ts 1.6).162 Os tessalonicenses ativamente “tomaram posse da Palavra” (paralam-ba/nw) que ouviram e, num ato subsequente, a receberam de forma prazerosa em seus corações (de/xomai). O receber pode ser um ato ou processo mais imediato; porém, o acolher envolve um processo de assimilação prazerosa, compreensão, a-plicação e obediência.

Esta Palavra produz frutos naqueles que crêem. O acolhimento da Palavra faz parte essencial do processo de santificação que se dá gradativamente conforme o Evangelho for preservado em nós. Tiago instrui: “Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade (kaki/a), acolhei (de/xomai), com mansidão, a pa-lavra em vós implantada (e)/mfutoj163

= “semeada”), a qual é poderosa para salvar a vossa alma” (Tg 1.21). Paulo como embaixador do “ministério da reconciliação” (2Co 5.18,20) exorta aos coríntios para que o Evangelho, “a palavra da reconciliação” (2Co 5.19) de Deus, não fosse recebido de modo vão, sem discernimento: “E nós, na qualidade de coo-peradores com ele, também vos exortamos a que não recebais (de/xomai) em vão a graça de Deus” (2Co 6.1). A verdade de Deus vai revelando a sua eficácia em nossa vida gradativamente, conforme a formos praticando. Daí a instrução de Paulo no sentido de que devemos seguir a verdade em amor para que possamos nos aperfeiçoar em Cristo: “.... se-guindo a verdade (a)lhqeu/w) em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo” (Ef 4.15). Viver a verdadeira fé em amor. A fé, por sua vez, deve estar asso-ciada à piedade. Paulo entende o seu apostolado partindo desta perspectiva: “Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover (kata/)164 a fé que é dos eleitos (e)klekto/j)165 de Deus e o pleno conhecimento da verdade (a)lh/qeia) se-gundo a piedade” (Tt 1.1). Estamos convencidos de que a genuína piedade bíblica (eu)se/beia) começa pela compreensão correta do mistério de Cristo, conforme nos diz Paulo: “Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifes-tado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória” (1Tm 3.16). Portanto, devemos indagar

161

Tem também o sentido de “receber”, “aceitar”, “aprovar”. Estevão sendo apedrejado ora: “.... Se-nhor Jesus, recebe (de/xomai) o meu espírito!” (At 7.59). 162 “Com efeito, vos tornastes imitadores nossos e do Senhor, tendo recebido (de/xomai) a palavra, posto que em meio de muita tribulação, com alegria do Espírito Santo” (1Ts 1.6). 163

Esta palavra só ocorre neste texto em todo o Novo Testamento. 164Kata/ quando estabelece relação, tem o sentido de “de acordo com a”, “com referência a”. No tex-

to, pode ter o sentido de “segundo a fé que é dos eleitos”, “no interesse de”, “promover”, etc. (Mc 7.5; Lc 1.9,38; 2.22,24,29; Jo 19.7; At 24.14; Cl 1.25,29; 2Tm 1.1,8,9; Hb 7.5). 165

*Mt 22.14; 24.22,24,31; Mc 13.20,22,27; Lc 18.7; 23.35; Rm 8.33; 16.13; Cl 3.12; 1Tm 5.21; 2Tm 2.10; Tt 1.1; 1Pe 1.1; 2.4; 1Pe 2.6,9; 2Jo 1,13; Ap 17.14.

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sempre a respeito de doutrinas consideradas evangélicas, se elas, de fato, contribu-em para a piedade. A genuína ortodoxia será plena de vida e piedade. Paulo diz que é apóstolo da parte de Jesus Cristo comprometido com a fé que é dos eleitos de Deus. O seu ensino tinha este propósito – diferentemente dos falsos mestres, que se ocupavam com fábulas e mandamentos procedentes da mentira (Tt 1.14)166 – pro-mover a fé dos crentes em Cristo Jesus. A fé que é dos eleitos, portanto, deve ser desenvolvida no “pleno conhecimento (e)pi/gnwsij)167 da verdade (a)lh/qeia)”. Ou seja, a nossa salvação se materializa em nosso conhecimento intensivo e qualitati-vamente completo da verdade. Contudo, este conhecimento da verdade, longe de arrogante e auto-suficiente, está relacionado com a piedade: “segundo a piedade (eu)se/beia)”.168 O verdadeiro conhecimento de Deus é cheio de piedade. Piedade caracteriza a atitude correta para com Deus, englobando temor, reverência, adora-ção e obediência, bem como um relacionamento justo como o nosso próximo. Ela é a palavra para a verdadeira religião.169 João diz que a sua maior alegria é saber que seus filhos andam na verdade: “Pois fiquei sobremodo alegre pela vinda de irmãos e pelo seu testemunho da tua verdade (a)lh/qeia), como tu andas (peripate/w)170

na verdade (a)lh/qeia). Não tenho maior alegria do que esta, a de ouvir que meus filhos andam (peripate/w) na verdade (a)lh/qeia)” (3Jo 3,4). Andar na verdade significa viver em obediência aos manda-

166

“E não se ocupem com fábulas judaicas, nem com mandamentos de homens desviados da verda-de” (Tt 1.14). 167

* Rm 1.28; 3.20; 10.2; Ef 1.17; 4.13; Fp 1.9; Cl 1.9,10; 2.2; 3.10; 1Tm 2.4; 2Tm 2.25; 3.7; Tt 1.1; Fm 6; Hb 10.26; 2Pe 1.2,3,8; 2.20. 168

*At 3.12; 1Tm 2.2; 3.16; 4.7,8; 6.3,5,6,11; 2Tm 3.5; Tt 1.1; 2Pe 1.3,6,7; 3.11. 169

Ver: William Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1988 (reim-pressão), p. 73-80. 170 Além do sentido literal de “andar”, “caminhar”, tem, como neste caso, o sentido de proceder, vi-ver. O Novo Testamento utiliza a palavra de modo figurado indicando como deve ser o nosso compor-tamento: 1) Positivamente:

a) “Em novidade de vida” (Rm 6.4) b) Às claras; na luz (Rm 13.13; 1Jo 1.7) c) Em amor fraternal (Rm 14.15; Ef 5.2; 2Jo 6) d) Por fé (2Co 5.7) e) No Espírito (Gl 5.16) f) Segundo as obras de Deus (Ef 2.10) g) Conforme os mandamentos de Deus: a verdade (2Jo 4; 3Jo 3-4) h) Como filhos da luz (Ef 5.8) i) Com sabedoria (Cl 4.5) j) Segundo o modelo e ensino apostólico (Fp 3.17-18; 2Ts 3.6) k) Dignamente (Ef 4.1; Cl 1.10; 1Ts 2.12; 4.12) l) Conforme Cristo (Cl 2.6; 1Jo 2.6) m) Visando agradar a Deus (1Ts 4.1)

2) Negativamente: a) Segundo a carne (Rm 8.4/Cl 3.5-7) b) Segundo o homem (1Co 3.3)

c) Segundo o mundo (2Co 10.2-3; Ef 2.2) d) Vaidade de seus pensamentos (Ef 4.17) e) Desordenadamente (2Ts 3.6,11) f) Trevas: odiando seu irmão (1Jo 1.6; 2.11)

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mentos de Deus, proceder conforme Seus ensinamentos: “Fiquei sobremodo alegre em ter encontrado dentre os teus filhos os que andam (peripate/w) na verdade, de acordo com o mandamento que recebemos da parte do Pai” (2Jo 4). A verdade é a alegria do amor: “[O amor] não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a ver-dade (a)lh/qeia)”(1Co 13.6). Não há crimes de amor; o amor se apraz na justiça e na verdade.

Como evidência de nosso novo nascimento espiritual, devemos falar a verdade. “Por isso, deixando a mentira, fale cada um a verdade (a)lh/qeia) com o seu próxi-mo, porque somos membros uns dos outros” (Ef 4.25).

4) A NECESSIDADE DE DISCERNIMENTO:

A) A Má vontade para com a verdade e a sua manipulação:

A verdade por ser o que é, nem sempre nos parece agradável, ela é reve-ladora evidenciando, com muita frequência os nossos pecados. Por isso, em deter-minadas ocasiões muitos se recusarão a ouvir a verdade. No final de sua vida, Pau-lo, com a consciência certa de ter concluído fielmente o seu ministério, exorta ao jo-vem Timóteo: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repre-ende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo (kairo/j)171 em que não suportarão (a)ne/xomai)172 a sã doutrina (didaskali/a); pelo contrário, cercar-se-ão de mestres, segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo co-ceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade (a)lh/qeia), entregando-se às fábulas (mu=qoj = lenda, mito)”173 (2Tm 4.3-4).

171

A idéia da palavra é de “oportunidade”, “tempo certo”, “tempo favorável”, etc. (Vd. Mt 24.45; Mc 12.2; Lc 20.10; Jo 7.6,8; At 24.25; Gl 6.10; Cl 4.5; Hb 11.15). Ela enfatiza mais o conteúdo do tempo. Este termo que ocorre 85 vezes no NT é mais comumente traduzido por “tempo”, surgindo, então, al-gumas variantes, indicando a idéia de oportunidade. Assim temos (Almeida Revista e Atualizada): Tempo e tempos: Mt 8.29; 11.25; 12.1; 13.30; 14.1; Lc 21.24; At 3.20; 17.26; “Devidos tempos”: Mt 21.41; “Tempo determinado”: Ap 11.18; “Momento oportuno”: Lc 4.13; “Tempo oportuno”: Hb 9.10; 1Pe 5.6; Oportunidade: Lc 19.44; Gl 6.10; Cl 4.5; Hb 11.15; Devido tempo: Lc 20.10; Presente: Mc 10.30; Lc 18.30; “Circunstâncias oportunas”: 1Pe 1.11; Algum tempo: Lc 8.13; Hora: Lc 8.13; 21.8; Época: Lc 12.56; At 1.7; 1Ts 5.1 (Xro/nwn kai\ tw=n kairw=n); 1Tm 6.15; Hb 9.9; Ocasião: Lc 13.1; 2Ts 2.6; 1Pe 4.17; Estações: At 14.17; Vagar: At 24.25; Avançado: Hb 11.11. No texto que estamos analisando, Paulo está dizendo que aquelas pessoas que hoje ouvem a Pa-lavra com interesse e avidez poderão não ouvir em outras épocas ou circunstâncias, daí a nossa res-ponsabilidade de anunciar a Palavra de Deus e o nosso senso de urgência... 172A)ne/xomai aparece 15 vezes no Novo Testamento, sendo traduzida por: “Sofrer” (Mt 17.17 = Mc

9.19; Lc 9.41); “atender” (At 18.14); “suportar” (1Co 4.12; 2Co 11.1; Ef 4.2; Cl 3.13; 2Ts 1.4; 2Tm 4.3; Hb 13.22); “tolerar” (2Co 11.4,19,20). Na LXX este verbo não ocorre. No entanto, a)))ne/xw é emprega-da umas 11 vezes, sendo traduzida por: conter (Is 42.14; 64.12); carregar (Is 46.4), deter (Is 63.15) e reter (Am 4.7; Ag 1.10). Originalmente, a palavra estava associada à idéia de manter-se ereto, ergui-do; daí o sentido de suportar de “cabeça erguida”. 173

Calvino, que define fábulas como “.... aqueles contos fúteis e levianos que não têm em si nada de sólido” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 1.4), p. 29], adverte-nos quanto aos perigos da fé que se deixa influenciar por elas: “[A] fé saudável equivale à fé que não sofreu nenhuma corrupção proveniente de fábulas” [João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320]; “Se porventu-ra desejarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a

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Satanás, por sua vez, fala o que lhe é próprio; o mundo o ouve. A verdade, no en-tanto, nem sempre é bem-vinda: “Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satis-fazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verda-de (a)lh/qeia), porque nele não há verdade (a)lh/qeia). Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira. Mas, porque eu digo a verdade (a)lh/qeia), não me credes. Quem dentre vós me convence de pecado? Se vos digo a verdade (a)lh/qeia), por que razão não me credes?” (Jo 8.44-46). Os filhos de Abraão, apenas da carne, queriam matar a Jesus justamente porque Ele di-zia a verdade: “Então, lhe responderam: Nosso pai é Abraão. Disse-lhes Jesus: Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão. Mas agora procurais matar-me, a mim que vos tenho falado a verdade (a)lh/qeia) que ouvi de Deus; assim não proce-deu Abraão” (Jo 8.39-40). O mundo prefere transformar a verdade de Deus em mentira, recebendo o justo castigo por isso: “Pois eles mudaram a verdade (a)lh/qeia) de Deus em mentira, a-dorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém! Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames; porque até as mulhe-res mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à nature-za; semelhantemente, os homens também, deixando o contacto natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do seu erro. E, por have-rem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma dispo-sição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes, cheios de toda in-justiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores, caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, so-berbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais, insensatos, pér-fidos, sem afeição natural e sem misericórdia” (Rm 1.25-31).

B) Sinceridade com discernimento: Jesus Cristo afirma que aquele que deseja fazer a vontade de Deus deve examinar a doutrina: “Se alguém quiser fazer a vontade (Qe/lhma) dele (Deus), co-nhecerá (ginw/skw) a respeito da doutrina (didaxh/), se ela é de Deus” (Jo 7.17). Já na década de 60 do primeiro século encontramos em Colossos vestígios de uma heresia que tentava fundir a simplicidade do Evangelho com especulações filo-sóficas – caracterizadas por práticas ascéticas – estando estes ensinamentos a pre-judicar a Igreja (Cl 2.8, 16,18,20,21). Paulo, acompanhado por Timóteo e Epafras (Cl 1.1; 4.12), escreve aos colossenses mostrando a supremacia de Cristo sobre todas as coisas (Cl 1.15,19; 2.3,19). Juntamente com o ensino correto, o apóstolo declara que ele próprio, Timóteo e Epafras estão orando pela Igreja: “.... Não cessamos de orar por vós, e de pedir que transbordeis de pleno conhecimento da sua vontade

refrear nossos sentidos para não nos entregarmos a invencionices estranhas. Pois assim que a pessoa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integridade de sua fé” [João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320].

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(Qe/lhma), em toda a sabedoria (Sofi/a) e entendimento (Su/nesij)”174 (Cl 1.9). À frente: “Saúda-vos Epafras que é dentre vós, servo de Cristo Jesus, o qual se esfor-ça sobremaneira, continuamente, por vós, nas orações, para que vos conserveis perfeitos e plenamente convictos em toda a vontade (Qe/lhma) de Deus” (Cl 4.12). Por isso, insistimos: é necessário discernimento para interpretar as doutrinas que nos são transmitidas a fim de saber se são de Deus ou não (Jo 7.17). Portanto, de-vemos desejar conhecer a vontade de Deus (Ef 5.17). Paulo orava para que os co-lossenses “transbordassem” [plhrwqh=te]. A voz passiva indica aqui a ação de Deus; para que “Deus encha vocês” deste genuíno conhecimento (Cl 1.9175/Cl 4.12/Hb 13.21). Devemos dar crédito à verdade procedente de Deus (1Ts 2.10-13). Contudo, co-mo muitos falsos mestres têm saído pelo mundo, faz-se necessário provar os espíri-tos; precisamos exercitar o “ceticismo cristão” que não aceita tudo, contudo, não re-jeita a procura da verdade:176 “Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai (dokima/zw)177 os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profe-tas têm saído pelo mundo fora. Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo. Fi-lhinhos, vós sois de Deus e tendes vencido os falsos profetas, porque maior é aque-le que está em vós do que aquele que está no mundo. Eles procedem do mundo; por essa razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve. Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade (a)lh/qeia) e o espírito do erro” (1Jo 4.1-6).178 A verdade não gera mentira: “....mentira alguma jamais procede da verda-

174 Su/nesij (synesis), ocorre 7 vezes no NT.: Mc 12.33; Lc 2.47; 1Co 1.19; Ef 3.4; Cl 1.9; 2.2; 2Tm

2.7, significando, discernimento, inteligência, envolvendo, conforme vimos, a idéia de reunir as evi-dências para avaliar e chegar a uma conclusão. Este “entendimento” deve ser fruto de uma reflexão, recorrendo, contudo, à iluminação de Deus (2Tm 2.7). Esta palavra é da mesma raiz de Suni/hmi (syniêmi). 175

“Quando todo o espaço das nossas mentes for preenchido até transbordar com o co-nhecimento da vontade do Senhor, já não teremos muito interesse em satisfazer egoistica-mente a nossa própria vontade” (R. P. Shedd, Andai Nele: Exposição bíblica de Colossenses, São Paulo: ABU., 1979, p. 22). 176

Ver: Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 129-131. 177Dokima/zw ressalta o aspecto positivo de “provar” para “aprovar”, indicando a genuinidade do que

foi testado (2Co 8.8; 1Ts 2.4; 1Tm 3.10). 178

Archibald Alexander (1772-1851), um dos fundadores do Seminário de Princeton e seu primeiro professor de Teologia Sistemática, resumiu:

“Na avaliação da experiência religiosa é de todo importante manter continuamente à vista o sistema de verdade divina contido nas Sagradas Escrituras; caso contrário, nossa experiência, como ocorre muito frequentemente, se degenerará em entusiasmo. (...) Em nossos dias não há nada mais necessário que estabelecer na religião, uma cuidadosa dis-tinção entre as experiências verdadeiras e as falsas; para ‘provar os espíritos se procedem de Deus.’ E ao fazer esta discriminação, não há outro padrão de prova senão a infalível

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de (a)lh/qeia)” (1Jo 2.21). Observem que a orientação de João não cria uma indisposição para com aqueles que supostamente anunciavam a verdade, antes, nos adverte quanto à necessidade de cautela na interpretação do que está sendo anunciado como procedente de Deus. O fato é que o nosso desejo de servir a Deus não nos deve tornar presas fá-ceis de qualquer ensinamento ou doutrina; precisamos cientificar-nos se aquilo que é-nos transmitido procede ou não de Deus. Para este exame temos as Escrituras Sagradas como fonte de todo conhecimento revelado a respeito de Deus e do que Ele deseja de nós; foi assim que a nobre Igreja de Beréia procedeu ao ouvir Paulo e Silas. Ainda que aqueles irmãos tenham recebido a Palavra com avidez, isto não os impediu de examinar179 “as Escrituras todos os dias para ver se as cousas eram de fato assim” (At 17.11). “Eles combinavam receptividade com questionamento crítico”.180 Portanto, como há outras vozes querendo nos afastar da verdade, apresentando um caminho que, à primeira vista, pode nos parecer mais convidativo e tentador, de-vemos perseverar no caminho da verdade. Paulo recrimina o esmorecimento dos gá-latas que começando a crer corretamente na graça de Deus, agora, passam a viver, como se fosse possível, pelas obras. O legalismo judaico se constituía num impedi-mento aos judeus cristãos: “Vós corríeis bem; quem vos impediu (e)gko/ptw)181 de continuardes a obedecer à verdade (a)lh/qeia)?” (Gl 5.7). Os falsos mestres, privados da verdade,182 procuram desviar-nos da verdade per-vertendo os ensinamentos da Palavra. Paulo cita dois falsos mestres de seu tempo, Himeneu183 e Fileto, que, seguindo ensinamentos gnósticos, com uma linguagem corrosiva, eliminavam a esperança na ressurreição futura, pervertendo a fé de al-guns: “Além disso, a linguagem deles corrói como câncer (ga/ggraina);184 entre os

Palavra de Deus. Tragamos cada pensamento, motivo, impulso e emoção, ante esta pe-dra de toque. ‘À lei e ao testemunho, se não falam de acordo com estes, é porque não há luz neles’” [Archibald Alexander, Thoughts on Religious Experience, Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1989 (Reprinted), p. XVIII].

179 A palavra traduzida por “examinando” é a)nakri/zw (anakrizõ), que tem o sentido de “fazer uma

pesquisa cuidadosa”, um “exame criterioso”, “inquirir”. (* Lc 23.14; At. 4.9; 12.19; 17.11; 24.8; 28.18; 1Co 2.14,15 (duas vezes); 4.3 (duas vezes),4; 9.3; 10.25,27; 14.24). Conforme vemos em Lc 23.14; At 4.9 e 24.8, o verbo era usado para “investigações judiciais”. “Este verbo implica em integridade e ausência de preconceito. Desde então, o adjetivo ‘bereano’ tem sido aplicado a pessoas que estudam as Escrituras com imparcialidade e cuidado” [John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da terra, São Paulo: ABU Editora, 1994, (At 17.11), p. 308]. 180

John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da terra, (At 17.11), p. 308. 181

No seu emprego militar a palavra tinha o sentido de cortar uma árvore para causar um impedimen-to ou, abrir uma vala que obstaculizasse temporariamente o caminho do inimigo, daí a palavra tomar o sentido de “impedimento”, “empecilho”, “obstáculo”. 182

“Altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade (a)lh/qeia), su-pondo que a piedade é fonte de lucro” (1Tm 6.5). 183

Paulo se referira a este como que alguém que naufragou na fé (1Tm 1.19-20). 184

Esta palavra só ocorre aqui em todo o Novo Testamento. É deste termo que provém palavra gan-grena.

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quais se incluem Himeneu e Fileto. Estes se desviaram da verdade (a)lh/qeia), as-severando que a ressurreição já se realizou, e estão pervertendo (a)natre/pw = “ar-ruinar”, “virar”185) a fé a alguns” (2Tm 2.17-18). A falsa doutrina é contagiante. Paulo exorta a Tito com veemência a respeito dos insubordinados, especialmente judeus: “É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo (a)natre/pw) casas inteiras, en-sinando o que não devem, por torpe ganância” (Tt 1.11). Por causa dos falsos mes-tres o caminho da verdade será infamado. “Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas (yeudoprofh/thj),186 assim também haverá entre vós falsos mestres (yeudodida/skaloj), os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruido-ras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição. E muitos seguirão as suas práticas libertinas (a)se/lgeia), e, por causa deles, será infamado (blasfhme/w)187 o caminho da ver-dade” (2Pe 2.1-2). Pedro diz que o presbítero como pastor do rebanho deve estar em condições de alimentar o seu rebanho com a Palavra e, também, saber combater àqueles que tentarão seduzir os fiéis com “palavras fictícias (plasto/j)” (2Pe 2.3). O falso mestre é aquele que ensina a mentira, o engano: cria imagens que nada são para corromper seus ouvintes, conduzindo-os a negar o próprio Senhor Jesus Cristo e, também, à viverem libertinamente (a)se/lgeia), ou seja, de modo dissoluto e las-civo.188 Por causa disso, o caminho do Evangelho seria caluniado, reprovado, “blas-femado”. A mensagem desses falsos mestres consiste numa corrupção do Evange-lho. Plasto/j parece ter o sentido aqui de palavras artisticamente elaboradas, mol-dadas, sugestivas, porém, falsas, forjadas em seu próprio proveito, e, que por isso mesmo estão em oposição à verdade. Curiosamente este é o termo de onde vem a nossa palavra “plástico”.189 O ensino cristão envolve arte, mas não “arte plástica” pa-ra com a verdade. 185

A palavra é usada no sentido literal em Jo 2.15: “Em tendo feito um azorrague de cordas, expul-sou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou (a)natre/pw) as mesas”. 186

Jesus Cristo já nos alertara sobre eles. Vejam-se: Mt 7.15; 24.11,24; Lc 6.26. O apóstolo João fa-laria mais tarde de sua realidade presente (1Jo 4.1). 187

O verbo Blasfhme/w, que tem o sentido de “injuriar”, “difamar”, ”insultar”, “caluniar”, “maldizer”, “falar mal”, “falar para danificar”, etc., é formado de duas palavras, Bla/yij derivada de Bla/ptw = “injuriar”, “prejudicar” (* Mc 16.18; Lc 4.35) e Fhmi/ = “falar”, “afirmar”, “anunciar”, “contar”, “dar a en-tender”. A Blasfêmia tem sempre uma conotação negativa, de “maldizer”, “caluniar”, “causar má repu-tação”, etc., contrastando com Eu)fhmi/a (“boa fama” * 2Co 6.8) e Eu)/fhmoj (“boa fama” * Fp 4.8) (Eu)/ & fh/mh). No Fragmento 177 de Demócrito, lemos: “Nem a nobre palavra encobre a má a-ção, nem é a boa ação prejudicada pela má palavra (Blasfhmi/a)”. Paulo diz que o mal tes-temunho dos judeus contribuía para que os gentios blasfemassem o nome de Deus (Rm 2.24, citando Is 52.5). Compare este fato com a orientação de Paulo, 1Tm 6.1; Tt 2.5. A falsa doutrina propicia a prática da blasfêmia (1Tm 6.3,4), bem como os falsos mestres (2Pe 2.1-2,10-12). 188A)se/lgeia ocorre nos seguintes textos do Novo Testamento: Mt 7.22; Rm 13.23; 2Co 12.21; Gl

5.19; Ef 4.19; 1Pe 4.3; 2Pe 2.2,7,18; Jd 4. 189

A palavra grega plastiko/j é derivada do verbo pla/ssw, cujo advérbio utilizado por Pedro é plasto/j. A nossa palavra plástico vem do grego (plastiko/j) passando pelo latim (plasticus), sem-pre de forma transliterada, significando aquilo “que tem propriedade de adquirir determinadas formas sensíveis, por efeito de uma ação exterior”.

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5) A IGREJA E A PRESERVAÇÃO DA VERDADE:

Numa sociedade pragmática e imediatista, onde o verdadeiro é o que fun-

ciona e me proporciona mais conforto e sucesso, já não existe interesse pela verda-de. No entanto, a busca da verdade pela verdade é uma característica fundamental da Igreja. Já que cabe à Igreja o privilégio de proclamar a Palavra, ela tem de com-preender as Escrituras para anunciá-la com fidelidade e vivenciá-la para proclamar com autoridade. Por isso, a Igreja é chamada de “coluna e baluarte da verdade”, porque a ela foram confiados os oráculos de Deus (Rm 3.2/1Tm 3.15). A Igreja como baluarte da verdade está amparada no fundamento que consiste na obra de Deus realizada por intermédio de Cristo (Mt 16.18/Ef 2.20).190 “Escrevo-te estas coisas, esperando ir ver-te em breve; para que, se eu tardar, fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna (stu=loj)191 e baluar-te (* e(drai/wma) da verdade (a)lh/qeia)” (1Tm 3.14-15).

Deus Se dignou em preservar a verdade por meio da Igreja. Quando a Igreja falha

neste propósito ainda que a verdade não seja abalada em sua essência, ela se torna fragilizada em sua exposição e aceitação. A Igreja tem, portanto, a grande respon-sabilidade de estudar a Palavra, proclamá-la e vivenciá-la. A Igreja é o meio de de-monstração desta verdade (Ef 3.8-11). A nossa responsabilidade primeira é com a verdade de Deus.192

A igreja basicamente preserva a verdade por meio do seu conhecimento, prática e ensino: Devemos conhecer a Palavra a fim de poder usá-la corretamente. A Timó-teo, Paulo recomenda: “Procura (spouda/zw = “esforçar-se com zelo”, “apressar-se”)193 apresentar-te a Deus aprovado (do/kimoj = “aprovado após exame”),194 co-mo obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem (o)rqotome/w)195a 190

Ver: J. Blunck, Firme: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. II, p. 246. 191

* Gl 2.9; 1Tm 3.15; Ap 3.12; 10.1. 192

Ver: Wayne A. Mack; David Swavely, A Vida na Casa do Pai, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 17-24. 193

A idéia da palavra é de fazer todo o possível – de modo intensivo, urgente, diligente e zeloso –, para cumprir a sua tarefa. Denota uma diligência que se esforça por fazer todo o possível para alcan-çar o seu objetivo. 194

O verbo dokima/zw ressalta o aspecto positivo de “provar” para “aprovar”, indicando a genuinida-de do que foi testado (2Co 8.8; 1Ts 2.4; 1Tm 3.10). Este verbo se refere à ação de Deus, nunca é empregado para a “tentação” de satanás, “visto que ele nunca prova aquele que ele pode a-provar, nem testa aquele que ele pode aceitar” (Richard C. Trench, Synonyms of the New Tes-tament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Reprinted), p. 281). (Vejam-se mais detalhes so-bre a “tentação”, em Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001). No entanto, ambos os verbos podem ser usados indistintamente, mesmo não sendo “perfeitamen-te sinônimos” (Vd. H. Seesemann, peira/w: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Diction-ary of the New Testament, 8ª ed. (reprinted) Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1982, Vol. VI, p. 23; H. Haarbeck, Tentar: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, Vol. IV, p. 599; Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Reprinted), p. 278ss.). 195

O verbo o)rqotome/w – “cortar em linha reta”, “endireitar” –, que só ocorre neste texto, é formado

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palavra da verdade (a)lh/qeia)” (2Tm 2.15). Calvino traduz a metáfora usada por Paulo, “maneja bem” (2Tm 2.15) por “dividindo bem”, fazendo a seguinte aplicação: “Paulo (...) designa aos mestres o dever de gravar ou ministrar a Palavra, como um pai divide um pão em pequenos pedaços para alimentar seus fi-lhos. Ele aconselha Timóteo a ‘dividir bem’, para não suceder que, como fa-zem os homens inexperientes que, cortando a superfície, deixam o miolo e a medula intactos. Tomo, porém, o que está expresso aqui como uma aplica-ção geral e como uma referência à judiciosa ministração da Palavra, a qual é adaptada para o proveito daqueles que a ouvem.196 Há quem a mutile, há quem a desmembre, há quem a distorce, há quem a quebre em mil pe-daços, e há quem, como observei, se mantém na superfície, jamais pene-trando o âmago da doutrina. Ele contrasta todos esses erros com a boa mi-nistração, ou seja, um método de exposição adequado à edificação. Aqui está uma regra pela qual devemos julgar cada interpretação da Escritu-

por o)rqo/j (“direito”, “reto”, “certo”, “correto”) (* At 14.10; Hb 12.13) e te/mnw (“cortar”), verbo que não aparece no Novo Testamento. Na LXX o)rqotome/w é empregado em Pv 3.6 e 11.5 com o sentido de endireitar o caminho. Analogias e aplicações variadas são possíveis, tais como: a idéia de lavrar a ter-ra fazendo os sulcos em linha reta; construir uma estrada em linha reta a fim de que o viajante alcan-ce com facilidade o seu objetivo sem se desviar por atalhos; o alfaiate que corta o tecido de forma correta a fim de fazer a roupa (Paulo como fabricante de tendas estava acostumado a este serviço no que se refere ao corte dos tecidos de pelo de cabra); o pedreiro que corta a pedra de forma correta para o seu perfeito encaixe, etc. A partir de 2Tm 2.15 várias analogias são feitas, tais como: a idéia de conduzir a Palavra pelo caminho correto para atingir de modo eficaz seu objetivo, manuseá-la bem, ministrá-la conforme o seu propósito, expô-la de maneira correta, ensinar correta e diretamente a Palavra, etc. [Vejam-se, entre outros: Helmut Köster, o)rqotome/w: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8ª ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, Vol. VIII, p. 111-112; Joseph H. Thayer, “Thayer’s Greek-English Lexicon of the NT,” The Master Christian Library, Verson 8.0 [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Sofware, 2000, Vol. 2, p. 270; A. Barnes, “Notes on the Bible,” The Master Christian Library, Verson 8.0 [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Sofware, 2000, Vol. 15, p. 795; Adam Clark, “Commentary the New Testa-ment,” Master Christian Library, Verson 8.0 [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Sofware, 2000, Vol. 8, p. 222-223; R. Klöber, Retidão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, Vol. IV, 217-219; William F. Arndt; F.W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, Chicago: University of Chicago Press, 1957, p. 584; Russel N. Champlin, O Novo Testamento Interpretado, Guaratingue-tá, SP.: A Voz Bíblica, (s.d.), Vol. 5, p. 379; John R.W. Stott, Tu, Porém, A mensagem de 2 Timóteo, São Paulo: ABU Editora, 1982, p. 59-60; J.N.D. Kelly, I e II Timóteo e Tito: introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1983, p. 170; William Hendriksen, 1 Timóteo, 2 Timóteo e Tito, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 323-324; Newport J.D. White, Second Epistle to Timothy: In: W. Robertson Nicoll, ed., The Expositor’s Greek Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. 4, p. 165; p. 798-799; R.C.H. Lenski, Commentary on the New Testament, Pe-abody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1998, Vol. 10, p. 425; W.C. Taylor, Dicionário do Novo Testamento Grego, 5ª ed., Rio de Janeiro: JUERP., 1978, p. 152-153; A.T. Robertson, “Word Pictures in the New Testament,” The Master Christian Library, Verson 8.0 [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Sofware, 2000, Vol. 4, p. 703; William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1974, Vol. 12, (2Tm 2.15-18), p. 183; John F. MacArthur, Jr., Princípios para uma Cosmo-visão Bíblica: uma mensagem exclusivista para um mundo pluralista, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 49-50]. 196

Este era o seu princípio pedagógico: “Um sábio mestre tem a responsabilidade de acomo-dar-se ao poder de compreensão daqueles a quem ele administra o ensino, de modo a ini-ciar-se com os princípios rudimentares quando instrui os débeis e ignorantes, não lhes dando algo que porventura seja mais forte do que podem suportar” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 3.1), p. 98-99].

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ra”.197 Quando ajudamos os servos de Deus que labutam pelo Evangelho, estamos coo-perando com a verdade: “Portanto, devemos acolher esses irmãos, para nos tornar-mos cooperadores da verdade (a)lh/qeia)” (3Jo 8).

C) A Verdade Objetiva de Deus:

“Ainda que o mundo inteiro fosse in-crédulo, a verdade de Deus permane-ceria inabalável e intocável” – João Cal-

vino.198

1) VERDADE REAL: A Filosofia de Platão (427-347 a.C.) dizia que o nosso mundo é apenas de aparências; todavia, havia um modelo superior, imutável e eterno, do qual o nosso mundo é apenas uma cópia. Esta idéia permaneceu em Cícero (106-43 a.C.) e Fílon (c. 20 a.C. – c. 42 d.C.).199 No texto lido (Jo 17), Jesus nos diz que a Palavra de Deus é a verdade = realida-de. O curioso, é que a palavra que os gregos usavam para se referirem ao mundo real (a)lhqino/j), é da mesma raiz da palavra verdade (a)lh/qeia).200 No Novo Tes-tamento Jesus Cristo se autodesigna de verdadeiro pão do céu (Jo 6.32), videira verdadeira (Jo 15.1); sendo enviado pelo Deus verdadeiro (Jo 7.28; 1Ts 1.9/1Jo 5.20), que deve ser conhecido (Jo 17.3). No Apocalipse Jesus Cristo é identificado como o verdadeiro (Ap 3.7,15, 6.10), sendo as suas palavras e juízos fiéis e verda-deiros (Ap 15.3; 16.7; 19.2; 21.5; 22.6). O termo contrasta aquilo que é verdadeiro, genuíno, com o que é terreno (Hb 8.2; 9.24). Deus procura os verdadeiros adorado-res (Jo 4.23/Hb 10.22). Assim, em sua oração, Jesus Cristo, em certo sentido, nos diz que a Palavra de Deus é real, não apenas aparentemente. Se me permitirem usar tal expressão, diria que a Palavra de Deus é a verdade verdadeira!. “As Escrituras não são apenas a verdade inteira; elas são também o mais elevado padrão de toda verdade – a regra pela qual todas as alegações de verdade devem ser medidas”, enfa-tiza MacArthur.201

197 João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.15), p. 235. 198

João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.2), p. 48-49. 199

Vd. Platão, A República, 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1993], 382e; 499c; 522a; Platão, Timeu, São Paulo: Hemus, (s.d.), 22d. 200

Vd. A.C. Thiselton, Verdade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, Vol. IV, p. 708-711. 201

John F. MacArthur, Jr., Princípios para uma Cosmovisão Bíblica: uma mensagem exclusivista para um mundo pluralista, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 49.

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Acontece que muitas vezes o crente vive como se a Palavra de Deus fosse ape-nas uma aparente verdade ou uma verdade distante e sem sentido para homens e mulheres desse novo milênio. Quando Jesus diz que a Palavra é a verdade, Ele de fato afirma que ela é a verdade para todas as esferas de nossa vida: casamento, vi-da profissional, educacional, vocacional, lazer, ética, espiritualidade.

Às vezes afirmamos crer na Bíblia como verdade mas a negamos com o nosso comportamento. Não aplicamos os seus ensinamentos ao nosso viver cotidiano. A Palavra é a verdade de Deus para a totalidade de nossa existência, quer aqui, quer na eternidade. 2) VERDADE AUTORITATIVA: A Bíblia não precisa de nosso testemunho para ser o que é. Ela é a verdade de Deus; quer creiamos quer não, aceitemos ou não. A autoridade da Palavra é de-corrente da sua origem divina. “Nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21)(destaque meu). Deste modo, a autoridade da Palavra é proveni-ente do Deus da Palavra, não daqueles que a proclamam. A Confissão de Westminster declara: "a autoridade da Escritura Sagrada, ra-zão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma ver-dade) que é o seu Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra de Deus".202 Calvino (1509-1564), atento a isso, escreveu em lugares diferentes: “É chocante blasfêmia afirmar que a Palavra de Deus é falível até que obtenha da parte dos homens uma certeza emprestada”.203 Em outro lugar: “.... a Pa-lavra do Senhor é semente frutífera por sua própria natureza”.204 Um padre romano, analisando os Puritanos nos Estados Unidos, concluiu: "Os nossos puritanos não estudavam a Bíblia como exegetas, ainda menos como racionalistas. Ela era a sua vida".205 De fato, se, pelo Espírito recebemos a Bíblia como a Palavra autoritativa de Deus, não há lugar para relativismos; ela é a nossa vida; a Constituição de nosso crer e agir. 3) VERDADE QUE PERMANECE: Como vimos, é comum em nosso tempo ouvir-se falar de minha verdade, sua verdade e, verdade de cada um. A verdade, quando muito, é local, pessoal e

202

Confissão de Westminster, I.4. 203

João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 3.15), p. 98. 204

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 3.6), p. 103. 205

Padre R.L. Bruckberger, A República Americana, Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1960, p. 31.

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circunstancial. Não se fala mais em a verdade norteadora do nosso comportamento. O homem moderno relativizou a verdade; não considera mais a existência de abso-lutos: “Baseados na sua epistemologia, os homens não mais crêem nem mesmo na possibilidade da verdade absoluta”, constata Schaeffer.206 De fato, se não exige nada ontologicamente absoluto, já de início toda a epistemologia e ló-gica estão comprometidas. Decorrentemente, isso tem implicações éticas, como ob-servou Packer: “A cultura ocidental pós-cristianismo duvida que haja absolu-tos morais”.207 E isso é obvio. Se não há princípio orientador e regulador que per-maneça, como pautar a nossa conduta por aquilo que é simplesmente subjetivo, re-lativo e, portanto, provisório? A Palavra de Deus é a verdade que permanece, cumpre-se cabalmente; não ape-nas no passado, nem simplesmente no futuro; mas sempre. Na declaração de Je-sus, percebemos a seriedade da Palavra: “Quando eu estava com eles, guardava-os no teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura” (Jo 17.12). (destaque meu). Em ou-tros contextos, Ele já dissera: “Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão” (Mt 24.35); “.... a Escritura não pode falhar” (Jo 10.35). Um sinal de que a Palavra permanece, está no fato de nos reunirmos para estu-dar a Palavra de Deus, a qual permanece como a Palavra eterna de Deus para a nossa vida, sobre qualquer questão e, em qualquer tempo. “A verdade é aquele puro e perfeito conhecimento de Deus, o qual nos livra de todo e qualquer erro e falsidade. Devemos considerar que não há nada mais miserável do que vagar ao longo de toda a nossa vida como ovelhas perdidas”.208 Como vimos, Calvino conclui: “Ainda que o mundo inteiro fosse incrédulo, a verdade de Deus permaneceria inabalável e intocável”.209 Paulo no final de sua vida não deu um “salto no escuro”, antes declarou a sua i-nabalável confiança no Deus que conhecia e pelo qual dedicou a sua vida: “.... por-que sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele Dia” (2Tm 1.12). “6 Quanto a mim, estou sendo já oferecido por libação, e o tempo da minha partida é chegado. 7 Combati o bom combate, com-pletei a carreira, guardei a fé. 8 Já agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a to-dos quantos amam a sua vinda” (2Tm 4.6-8). Paulo não fala de hipóteses ou teorias, afirma sim a sua firme certeza na verdade de Deus. 4) VERDADE REVELADORA: A verdade proclamada por Cristo revela o Pai (Jo 17.1,3-9,11,15,17,21-25) e

206

Francis A. Schaeffer, O Sinal do Cristão, Goiânia, GO.: ABU/APLIC., 1975, p. 25. 207

J.I. Packer, O que é santidade e por que ela é importante?: In: Bruce H. Wilkinson, ed. ger. Vitória sobre a Tentação, 2ª ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 34. 208

João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.1), p. 300. 209

João Calvino, Gálatas, (Gl 2.2), p. 48-49.

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aponta para o Filho (Jo 17.8,20). Além destas genuínas revelações, a Palavra nos diz o que somos e o que poderemos ser. A Palavra de Deus é o espelho que nos mostra tal qual somos – pecadores irremediavelmente perdidos –; no entanto, tam-bém nos mostra o que poderemos ser pelo Espírito que nos capacita. Ela é uma es-pécie de “geografia do coração” ou, uma “anatomia da alma”. “A Bíblia é a geogra-fia da alma”.210 A tomada de consciência da grandeza, da santidade de Deus, deve nos conduzir ao desejo de sermos santos conforme Ele é. A santidade de Deus realça o nosso pecado, dando-nos consciência da nossa pequenez e impureza; a perfeição absolu-ta de Deus revela os nossos pecados e as nossas imperfeições. O brilho da glória de Sua majestade torna mais patente as nossas manchas espirituais. Foi esta a experi-ência de Isaías diante da revelação de Deus: "Ai de mim! Estou perdido! porque sou homem de lábios impuros, habito no meio dum povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos” (Is 6.5). A proximidade de Deus, nos faz mais sensíveis a isto; a contemplação da gloriosa santidade de Deus, conforme registrada nas Escrituras, realça de forma eloquente a gravidade de nosso pecado. Além de Isaías, outros servos de Deus ilustram este fa-to: Moisés, Jó, Ezequiel, Daniel, Pedro, Paulo e João (Vd. Ex 3.6; Jó 42.5-6; Ez 1.28; Dn 10.9; Lc 5.8; 1Tm 1.15; Ap 1.17), entre outros, tiveram, de modo doloroso, a per-cepção de sua pequenez, fragilidade e impureza diante de Deus, que é puro de o-lhos e não pode tolerar o mal (Hc 1.13). Essa é uma das razões porque os homens odiaram a Cristo e a Sua Palavra: A imagem do que somos, muitas vezes se mostra terrível! O Senhor mesmo nos diz: “Não pode o mundo odiar-vos, mas a mim me odeia, porque eu dou testemunho a seu respeito de que as suas obras são más” (Jo 7.7). João registra: “O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más. Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras” (Jo 3.19-20). (destaque meu). Por outro lado, a Bíblia também nos ensina aquilo que Paulo expressou enquanto preso em Roma: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.13). Deus torna pos-sível os nossos impossíveis, fazendo-nos novas criaturas, gerando-nos espiritual-mente para uma viva esperança em Cristo (Jo 3.3,5/Tg 1.18; 1Pe 1.3,23). 5) VERDADADE LIBERTADORA: “A tua palavra é a verdade (a)lh/qeia)” (Jo 17.17). Aos judeus orgulhosos de sua suposta liberdade, Jesus Cristo diz: “E conhecereis (ginw/skw) a verdade (a)lh/qeia), e a verdade (a)lh/qeia) vos libertará (e)leuqero/w)” (Jo 8.32). A Palavra de Deus tem também um poder libertador. O problema desta declara- 210

A.B. Langston, Introdução à Teologia Sistemática, 7ª ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1983, p. 218.

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ção é o seu pressuposto extremamente ignorado e desagradável ao ser humano: a sua condição de escravidão, distante de Deus e de Sua Palavra. E é justamente isto que Jesus Cristo está nos dizendo. Outra dificuldade na aceitação desta afirmação, é porque gostamos de afirmar a nossa liberdade e, de fato, além de gostar, nos sen-timos livres. Jones capta bem a trágica questão: "O homem do mundo se jacta da sua liberdade e fala sobre 'livre pensamento'. A suprema realização do diabo consiste em persuadir o homem de que, justamente naquilo em que ele está mais estonteado e escravizado, é mais livre".211 De fato, a ilusão que o pecado provoca nos faz pensar que somos livres e felizes e, que as consequências mais imediatamente percebidas de nossos pecados são preços baixos dentro do custo-benefício de nossa satisfação. Ledo engano: a satisfação provisória propor-cionada pelo pecado além de circunstancial, nunca é plena; é apenas uma máscara, um simulacro da verdadeira alegria e satisfação proporcionadas por Deus por inter-médio da obediência à Sua Palavra. A mentira para ser eficaz tem que se parecer com a verdade, da qual ela quer assumir o lugar, passando-se por ela. Da mesma forma, o pecado tenta se mascarar com boas intenções, com “qualidade total” ou nos dizer que o que fazemos é que a liberdade total. “Talvez o traço mais carac-terístico do pecado seja o auto-engano, uma relutância para reconhecer a tragédia de nossa situação”.212 A liberdade concedida por Cristo é recebida pelo conhecimento dEle como nosso Senhor e Salvador (Jo 8.32/Jo 14.6). O conhecimento de Cristo já é uma revelação da graça de Deus: Sem a obra do Pai e do Espírito, nós jamais O receberíamos co-mo nosso Salvador (Mt 11.27; 16.16,17; 1Co 12.3). O apelo último da fé cristã é a auto-revelação de Deus em Jesus Cristo; o nosso apelo não é à razão ou à experiência, mas, ao Deus encarnado; nEle encontramos a Verdade e o sentido de todas as coisas.213 Assim, podemos falar de dois aspectos básicos da liberdade concedida por Jesus Cristo, a Verdade Encarnada: A) Liberdade “do”: a) Pecado: A Escritura nos fala que todos pecaram (Rm 3.23); o pecado

211

D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 76. “Todo aquele que não é cristão e que vive falando sobre o seu livre-arbítrio é o maior de todos os patetas. É tão escravo de satanás que nem sequer o percebe; é tão cego que não pode nem sequer começar a pensar nisso. É uma dominação que nos mantém em su-as garras, e, naturalmente, todos nós temos conhecimento disso por experiência. A maior ti-rania que temos que enfrentar nesta vida é a perspectiva mundana. Ela se insinua em nosso pensamento em toda parte, e nós a recebemos imediatamente após nascermos” [D.M. L-loyd-Jones, Seguros Mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: Vol. 2), p. 28]. 212

Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 38. 213

Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 24.

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fez-nos seus escravos, mantendo-nos sobre o seu domínio (Rm 6.14);214 nos fazen-do cativos, como um prisioneiro de guerra (Lc 4.18; Jo 8.34; Rm 6.20215), habitando em nós (Rm 7.17,20).216

Enfatizando este domínio do pecado sobre nós antes do novo nascimento, Paulo

escreve: “.... Sou carnal, vendido à escravidão do pecado” (Rm 7.14). A expressão “vendido à escravidão”, é uma tradução interpretativa de “pipra/skw u(po\” (“pipráskõ hypó”), que significa ser vendido, estando por isso, sob o domínio do seu senhor.217 Portanto, o homem entregue a si mesmo não é mais livre do que um animal sob o jugo do seu senhor, o qual pode prendê-lo, vendê-lo ou matá-lo. Em outro lugar, Paulo fala da prisão do homem natural: “Mas vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente me faz prisioneiro218 da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7.23)(Compare com: Lc 4.18). Porém Deus nos libertou definitivamente do poder do pecado (Mt 1.21; Jo 8.32-34; Rm 6.6,17,18, 20; 8.2; 2Pe 2.19; Ap 1.5); do domínio moral e espiritual deste mundo (Gl 1.4/Jo 17.14). Agora quem habita em nós é o Espírito do Pai e do Filho (Rm 8.9,11; 1Co 3.16).219 Paulo, tendo experimentado esta libertação, escreve aos colossenses: “Ele nos li-bertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho Seu amor” (Cl 1.13). De fato, o Evangelho é uma mensagem de libertação de um estado de total domínio, de escravidão do pecado. João referindo-se a Cristo, diz: “Aquele que nos ama, e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados” (Ap 1.5). b) Morte Espiritual e Eterna: Deus nos deu vida (Ef 2.1,5), restaurando-nos à comunhão com Ele, livrando-nos da Sua ira. A ira de Deus é uma manifesta-ção da Sua justiça.220 Deus nos salvou da condenação eterna (morte eterna), que se tornará plenamente evidente quando Cristo retornar em Glória para julgar a todos os homens (Mt 16.27; At 10.42; 17.31; Rm 14.10; 1Co 4.5; 1Ts 1.10). c) Poder de Satanás: Deus libertou-nos definitivamente do poder de Sa-tanás, o deus do secularismo. Cristo o derrotou e, agora, ele não mais tem domínio sobre nós; “por isso afirmamos que os fiéis nunca, jamais, poderão ser venci- 214Kurieu/w, “dominar como senhor”.

215“....Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34).

“Porque, quando éreis escravos do pecado, estáveis isentos em relação à justiça” (Rm 6.20). 216

“Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. (...) Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim” (Rm 7.17,20). 217

É digno de nota que a palavra pipra/skw somente aqui é mencionada no sentido espiritual. Nas outras oito vezes em que ela ocorre no Novo Testamento (Mt 13.46; 18.25; 26.9; Mc 14.5; Jo 12.5; At 2.45; 4.34; 5.4), tem sempre o sentido de venda de algo material. 218

ai)xmalwti/zw, capturado, feito prisioneiro de guerra. 219Oi)ke/w.

220“Intimamente relacionada com a santidade de Deus está a sua ira, a qual é, de fato, a

sua reação santa ao mal” (John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Florida: Editora Vida, 1991, p. 93).

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dos por ele [Satanás]”.221 (Cl 1.13/2.15; Hb 2.14,15; 1Jo 3.7-8).

d) Mundo: “O qual Se entregou a Si mesmo pelos nossos pecados para nos desarraigar222 deste mundo perverso (aivw/noj ponhrou/)” (Gl 1.4).

Cristo morreu e ressuscitou para nos libertar definitivamente das garras de um mundo perverso; ou seja, dos valores deste mundo, de uma ética egoísta e terrena. Paulo fala de uma “era má, perversa”. Aos efésios, escreve: “Portanto, vede pru-dentemente como andais, não como néscios, e sim como sábios, remindo o tempo, porque os dias são maus (hm̀e,rai ponhrai,)” (Ef 5.15-16). A palavra “mundo” (aivw,n) (Gl 1.4) significa as transformações pelas quais o nosso tempo passa, conduzindo-o à degradação constante e inflexível; revela também os valores transitórios da sociedade que se corrompe. Pertencer ao mundo significa ter uma visão da realidade totalmente divorciada de Deus e de Sua Palavra, sendo, por-tanto, governado pela perspectiva e valores do mundo no qual vivemos.223 No entanto, a libertação levada a efeito por Cristo, não é simplesmente futura, an-tes, tem o seu início agora, na presente vida. O ato completo de Cristo tem implica-ções para sempre: Somos salvos para viver livres dos valores deste mundo até a consumação de nossa total liberdade na eternidade. Jesus Cristo veio para nos libertar definitivamente. Ele mesmo nos diz: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8.36). “O Filho do Homem veio (...) para servir e dar a sua vida em resgate (lu,tron)224 por muitos” (Mt 20.28).

A libertação do mundo, engloba a libertação do domínio da vontade satânica so-bre a nossa. Satanás também tem a sua vontade, o seu propósito para a nossa vida; o homem sem Cristo, faz naturalmente a sua vontade, já que o pecado o tornou eti-camente filho do Diabo (Jo 8.44). Calvino (1509-1564) observa que os “incrédulos se encontram tão intoxicados por Satanás, que, em seu estupor, não têm

221

J. Calvino, As Institutas, 1.14.18. 222

A palavra “pressupõe que aqueles que são alcançados por seus benefícios estão corren-do grande perigo, do qual são incapazes de livrar-se” (W. Hendriksen, Gálatas, São Paulo: Edi-tora Cultura Cristã, 1999, p. 55). 223

“Ser do mundo pode ser assim resumido – é vida, imaginada e vivida, separadamente de Deus. Noutras palavras, o que decide definitiva e especificamente se eu e vocês somos do mundo ou não, não é tanto o que podemos fazer em particular como a nossa atitude fun-damental. É uma atitude para com todas as coisas, para com Deus, para com nós mesmos, e para com a vida neste mundo; em última análise, ser do mundo é ver todas estas coisas separadamente de Deus [...] “Ser do mundo – e isso é repetido pelos apóstolos – significa que somos governados pela mente, pela perspectiva e pelos procedimentos deste mundo no qual vivemos” [D. Martyn Lloyd-Jones, Seguros mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (Certe-za Espiritual, Vol. 2), 2005, p. 28-29]. 224

Preço pago para libertar um escravo. (* Mt 20.28; Mc 10.45)

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consciência de sua miséria”.225 Paulo instruindo sobre a “didática” do ministro, a-lude a este tema: “Ora, é necessário que o servo do Senhor não viva a contender, e, sim, deve ser brando para com todos, apto para instruir, paciente; disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o ar-rependimento para conhecerem plenamente a verdade, mas também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços do Diabo, tendo sido feitos cativos226 por ele, para cumprirem a sua vontade (Qe/lhma)” (2Tm 2.24-26). e) Da Superstição: Nesta libertação do pecado, a Escritura nos mostra que fomos salvos da superstição: “Outrora, porém, não conhecendo a Deus, servíeis a deuses que, por natureza, não o são; mas agora que conheceis a Deus ou, antes, sendo conhecidos por Deus, como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos? Guardais dias, e meses, e tempos, e anos” (Gl 4.8-10).(Ver: 1Co 10.23-31). O conhecimento de Cristo é definitivo, não permitindo, por não necessitar, de nossas invencionices pecaminosas. “É propriedade da fé pôr diante de nós a-quele conhecimento de Deus não confuso, mas distinto, o qual não nos dei-xa em suspenso e à deriva, como o fazem as superstições e seus adeptos, os quais, bem o sabemos, estão sempre introduzindo alguma nova divindade, todas falsas e intermináveis”.227 Com todo o avanço científico e tecnológico o homem sem Cristo continua o mes-mo, preso às suas crendices e superstições, sendo dominado por um medo insano; daí o seu prazer em ouvir mitos, entregando-se às fábulas (2Tm 4.3-4).228 O homem é pródigo na fabricação de seus deuses,229 em geral, criados à sua imagem e seme-lhança. Numa pesquisa feita na Inglaterra (talvez no final da década de 80), verifi-cou-se que “o número de adultos que lêem o seu horóscopo toda semana é o dobro dos que lêem a Bíblia”.230

225

João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.26), p. 247. 226

Zwgre/w, “capturar”, “feito prisioneiro”, “prender com vida” (* Lc 5.10; 2Tm 2.26). 227

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 48.14), p. 368. 228

“[A] fé saudável equivale à fé que não sofreu nenhuma corrupção proveniente de fábu-las” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998 (Tt 1.14), p. 320]. “Se porventura de-sejarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a re-frear nossos sentidos para não nos entregarmos a invencionices estranhas. Pois assim que a pessoa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integridade de sua fé” [João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320]. 229

“É propriedade da fé pôr diante de nós aquele conhecimento de Deus não confuso, mas distinto, o qual não nos deixa em suspenso e à deriva, como o fazem as superstições e seus adeptos, os quais, bem o sabemos, estão sempre introduzindo alguma nova divindade, todas falsas e intermináveis” [J. Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 48.14), p. 368]. O historiador Braudel esta correto em sua percepção: “A superstição popular é sempre capaz de minar, de comprometer a vida religiosa por dentro, deformando as pró-prias bases da fé. Tudo, então, deve ser refeito” (Fernand Braudel, Gramática das Civilizações, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 312). 230

John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo, São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 56.

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f) Da Maldição: “Cristo nos resgatou da maldição da lei” (Gl 3.13). A Lei de Deus é boa; foi-nos dada para o nosso bem. Ela tornou-se maldição para nós de-vido ao nosso pecado; a quebra da Lei fez com que merecêssemos o justo castigo. Aliás, a lei precisa ser enfatizada para que o homem, por graça, se disponha a ouvir o Evangelho. Sem a Lei, a impressão que fica, é que temos uma vida correta e satis-fatória; de nada precisamos, muito menos de salvação. Cristo satisfez perfeitamente todas as exigências da Lei; por isso Ele pode nos li-bertar definitivamente do seu aspecto condenatório, nos restaurado à comunhão com Deus por meio de Sua obra sacrificial, fazendo-se maldito em nosso lugar.

19 Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, 20 visto que nin-guém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. 21 Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; 22 justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que crêem; porque não há distinção, 23 pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, 24 sendo justificados gratuita-mente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, 25 a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteri-ormente cometidos; 26 tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus. 27 Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei? Das obras? Não; pe-lo contrário, pela lei da fé. 28 Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei. 29 É, porventura, Deus somente dos judeus? Não o é também dos gentios? Sim, também dos gentios, 30 visto que Deus é um só, o qual justificará, por fé, o circunciso e, mediante a fé, o incircunciso. 31 Anu-lamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei. (Rm 3.19-31).

A Lei, portanto, no seu aspecto moral, não foi abolida. “.... A lei moral de Deus é a verdadeira e perpétua regra de justiça, ordenada a todos os homens, de todo e qualquer país e de toda e qualquer época em que vivam, se é que pretendem reger a sua vida segundo a vontade de Deus. Porque esta é a vontade eterna e imutável de Deus: que Ele seja honrado por todos nós, e que todos nós nos amemos uns aos outros”.231 A Lei não nos salva; contudo nos mostra a necessidade que temos do perdão e da purificação efetuada por Deus. “A regra de nossa santidade é a lei de Deus”.232

Por intermédio de Cristo somos libertos da tentativa insana de tentar ser salvo pe- 231

João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 4, (IV.16), p. 160. 232

J.I. Packer, O Plano de Deus para Você, 2ª ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléi-as de Deus, 2005, p. 155.

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lo cumprimento da Lei, o que é impossível. Além do mais, este desejo ainda que fos-se moralmente possível, não o seria dentro do propósito glorioso de glorificar o nome de Deus, que deve ser o alvo final de todas as coisas, inclusive de nossa obediência (1Co 10.31). Diante a Lei restam-nos hipoteticamente duas opções: cumprir as suas exigências, o que nos é impossível, arcando, assim, com o reto juízo condenatório de Deus. Ou buscar refúgio na misericórdia de Deus por meio de Jesus Cristo. “Na Lei de Deus nos é apresentado um padrão perfeito de toda a justiça que pode, com razão, ser chamada de vontade eterna do Senhor. Deus con-densou completa e claramente nas duas tábuas tudo o que Ele requer de nós. Na primeira tábua, com uns poucos mandamentos, Ele prescreve qual é o culto agradável à Sua majestade. Na segunda tábua, Ele nos diz quais são os ofícios de caridade devidos ao nosso próximo. Ouçamos a Lei, portanto, e veremos que ensinamentos devemos tirar dele e, similarmente, que frutos devemos colher dela”.233

Contudo, o que a Lei exige, ela mesma não nos capacita a cumprir. Esta capaci-tação é somente pela graça. “Pela lei Deus exige o que lhe é devido, todavia não concede nenhum poder para cumpri-la. Entretanto, por meio do Evan-gelho os homens são regenerados e reconciliados com Deus através da gra-ciosa remissão de seus pecados, de modo que ele é o ministério da justiça e da vida”.234

Desprezar a Lei de Deus é um ato de insanidade pecaminosa. Na Lei de Deus temos o princípio de sabedoria que deve nortear a nossa vida. Devemos, portanto, nos aplicar no estudo da Lei,235 visto que “a Escritura outra coisa não é senão a exposição da lei”.236 B) Liberdade ”para”: A liberdade que temos é gloriosa; ela é o padrão da libertação futura da corrupção de toda natureza (Rm 8.21/Tg 1.18). a) Para Cristo: “Foste chamado, sendo escravo? Não te preocupes com isso; mas, se ainda podes tornar-te livre, aproveita a oportunidade. 22 Porque o que foi chamado no Senhor, sendo escravo, é liberto do Senhor; semelhantemente, o que foi chamado, sendo livre, é escravo de Cristo. 23 Por preço fostes comprados; não vos torneis escravos de homens” (1Co 7.21-23).

Cristo nos libertou da condenação eterna, do pecado e do domínio de satanás pa- 233

João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 8, p. 21. 234

João Calvino, Exposição de Segundo Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 3.7), p. 70. 235

Calvino comenta: “.... só são dignos estudantes da lei aqueles que se achegam a ela com uma mente disposta e se deleitam com suas instruções, não considerando nada mais dese-jável e delicioso do que extrair dela o genuíno progresso. Desse amor pela lei procede a constante meditação nela....” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 1.2), p. 53]. 236

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 1.2), p. 53.

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ra Si Mesmo. Ele nos libertou daquilo que nos era acidental para que sejamos aquilo que de fato somos, a imagem de Deus; em Cristo temos o verdadeiro sentido da nossa existência; vivemos agora pela vida de Cristo, sob a direção do Espírito Santo. (Jo 3.3; 10.10; At 10.18,19; 20.22-24; 2Co 5.15-17; Fp 3.7-8; Cl 3.1-3).

Brunner (1889-1966), diz acertadamente o seguinte: “Quem se tornou somente livre, ficou sem dono e, com isso, mais escravo ainda. Não há pior escravatu-ra do que aquela de não ter dono. Nesse caso o homem é escravo da sua própria paixão, do seu próprio ‘eu’. E o pior de todos os tiranos é o nosso ‘eu’, ou, como diz a Bíblia, o pecado. É que o ‘eu’ soberano e o pecado são idênticos. Homem pecador é aquele que se diz seu próprio Senhor”.237

Paulo falando da nossa libertação do pecado, caracteriza a nossa nova condição sob a graça de Deus, dizendo: “Porque o pecado não terá domínio238 sobre vós....” (Rm 6.14).

Todavia, por intermédio da libertação integral levada a efeito por Cristo Jesus, tornamo-nos “escravos de Cristo”; já não somos vendidos, mas, sim comprados por bom preço; pelo precioso sangue de Cristo, e, como sinal de posse perpétua de Deus, somos habitados pelo Seu Espírito: O Espírito Santo, procedente do Pai e do Filho. Paulo insiste neste ponto: “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se de fato o Espírito de Deus habita (Oi)ke/w) em vós. E se alguém não tem o Espíri-to de Cristo, esse tal não é dele. (...) Se habita (Oi)ke/w) em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Je-sus dentre os mortos, vivificará também os vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que em vós habita (Oi)ke/w)” (Rm 8.9,11). “Não sabeis que sois santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita (Oi)ke/w) em vós?” (1Co 3.16). (Ver também: 1Co 6.19,20; 1Pe 1.18-21).

À Igreja perseguida, Pedro intima a “remir o tempo” que lhe resta, vivendo para Deus, segundo a Sua vontade: “Ora, tendo Cristo sofrido na carne, armai-vos tam-bém vós do mesmo pensamento; pois aquele que sofreu na carne deixou o pecado, para que, no tempo que vos resta na carne já não vivais de acordo com as paixões dos homens, mas segundo a vontade de Deus” (1Pe 4.1-2). A vontade de Deus que se concretizou em Cristo, é a nossa libertação das pai-xões deste mundo para pertencermos a Cristo, o Nosso Senhor. Portanto, o homem que é liberto do Senhor, torna-se escravo de Cristo. (Vd. 1Co 7.21-23). A diferença fundamental desta nova condição é que o “escravo de Cristo” tem prazer na prática da “lei da liberdade” (Tg 1.22-25; 2.12), que é a lei de Cristo (Gl 6.2; 1 Co 9.21); a lei do amor (Gl 5.13-14). Somente aqueles libertos por Cristo, e para Cristo podem dizer sinceramente: “Agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus; dentro em meu coração está a tua lei” (Sl 40.8). (Vd. Sl 1.2; 119.14, 16, 47, 77, 92, 143 e 174).

237

Emil Brunner, Nossa Fé, 2ª ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1970, p. 88. 238Kurieu/w, “dominar como senhor”.

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b) Para o Serviço de Deus: Aqui está algo que atinge de forma decisória o cerne do pensamento anomista.239 O homem salvo por Deus não tem o direito, nem o desejo de voltar às práticas anteriores à sua regeneração: tais coisas passa-ram (2Co 5.17). Paulo faz uma pergunta e responde: “.... havemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, e, sim, da graça? De modo nenhum” (Rm 6.15). Estar salvo significa, entre outras coisas, viver em comunhão com Deus, cumprindo prazerosamente a Sua santa vontade (Lc 1.74-75; Rm 6.15; 1Pe 2.16/Gl 2.20; 1Jo 5.2-5).

A nossa libertação nos impulsiona a desejar cumprir os preceitos de Deus, fazer o que Lhe agrada. Temos, agora, uma nova perspectiva de vida, um novo direciona-mento; a palavra definitiva para nós é a vontade do Deus que habita em nós: “.... Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2.20). A Confissão de Westminster (1647) resume bem o que estamos dizendo:

“Aqueles que, sob o pretexto de liberdade cristã, cometem qualquer pecado ou toleram qualquer concupiscência, destroem, por isso mesmo o fim da liberdade cristã; o fim da liberdade é que, sendo livres das mãos dos nossos inimigos, sem medo sirvamos ao Senhor em santidade e justiça, diante dele, todos os dias da nossa vida” (XX.3).

É justamente no serviço prestado a Deus que o homem encontra a verdadeira ex-pressão da sua liberdade (Rm 6.22; Gl 5.13; 1Pe 2.16). Deste modo, sabemos que quando aceitamos a Cristo como nosso salvador pes-soal, estamos definitivamente libertos para Deus. Observem a recomendação que Pedro faz às igrejas da Dispersão: “Porque assim é a vontade (Qe/lhma) de Deus, que pela prática do bem, façais emudecer a igno-rância dos insensatos; como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto (E)pika/lumma)240 de malícia (kaki/a),241 mas vivendo como servos

239

A palavra “anomia” significa “sem lei” (gr. a)nomi/a). Os anomistas entendiam que uma vez que fo-mos salvos pela graça, podemos fazer o que bem entendermos; a graça – interpretavam –, nos li-bertou para o exercício da nossa vontade. 240

Esta palavra só ocorre aqui em todo o NT. Tem o sentido de “capa”, “cobertura”, “véu”. Aquilo que encobre; daí o sentido de “pretexto” 241

“Mal”, “malícia”, “maldade”, “impiedade”, “depravação”, “vício”, “malignidade”. A palavra em alguns textos significa uma depravação mental de onde decorrem todos os outros vícios; ela tem de modo especial um sentido ético. * Mt 6.34; At 8.22; Rm 1.29; 1Co 5.8; 14.20; Ef 4.31; Cl 3.8; Tt 3.3; Tg 1.21; 1Pe 2.1,16. Na literatura clássica a palavra tinha o sentido de “vício” e “injustiça” (Vejam-se: Platão, A República, 444e; Platão, Fedro, 248b; Aristóteles, Arte Retórica, II.12; Aristóteles, Ética à Nicôma-co, VII.1.15; Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, II.1.21). Calvino comentando o uso da palavra em Ef 4.31, diz: “Por esse termo ele quer dizer que a depravação da mente, a qual é oposta ao espírito humano e à probidade, e a qual é usualmente chamada malignidade” (J. Calvino, Efésios, p. 149).

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(dou=loj) de Deus” (1Pe 2.15,16). Pedro afirma que a nossa liberdade em Cristo jamais poderá servir de desculpa para a malícia; o limite de nossa liberdade é a vontade de Deus revelada em Sua Palavra. Somos servos de Deus, portanto a Sua vontade estabelece as normas e os limites de nossa liberdade. O que dá maior relevância ao preceito do apóstolo Pedro, é que ele escreveu es-sa epístola para os cristãos das igrejas da Dispersão (1Pe 1.1) – localizadas na regi-ão da Ásia Menor (hoje, Turquia) –, que estavam experimentando tempos difíceis de severa perseguição (1Pe 1.6; 2.18-25; 4.12-16). O sofrimento é um dos pontos men-cionados com frequência nessa carta. Pedro objetivava encorajá-los, ratificando a esperança que todos deveriam ter depositada em Cristo. Por isso, “esperança” é a palavra chave desta Carta (1Pe 1.3,13,21; 3.5,15). Daqui se depreende que as con-tingências políticas e sociais não devem determinar a nossa ética, mas, sim a Pala-vra de Deus. Notemos que num período de sofrimento e perseguição, é possível que algumas pessoas, até mesmo bem intencionadas – contudo, sem o conhecimento devido da Palavra –, usem do Evangelho para validar os seus desejos. Deste modo, a Bíblia passa a dizer o que queremos que Ela diga. No contexto da epístola, poderiam sur-gir interpretações que afirmassem a liberdade cristã como pretexto para uma luta armada, o não pagamento de impostos, a desobediência às autoridades e atitudes semelhantes. Muitas vezes nós justificamos os nossos pecados, baseando-nos nu-ma prática que julgamos comum, ou em nome da “liberdade” de Cristo. Pedro, en-tão, está dizendo que a maldade jamais poderá ser praticada em nome da liberdade cristã. O que ocorre com frequência, é a deturpação da doutrina cristã, tornando-a des-culpa para o pecado, daí a advertência de Pedro. A liberdade em Cristo deve ser vista não como consentimento para fazer o que queremos, mas sim, como a responsabilidade para cumprirmos o que deve ser feito conforme a vontade de Deus: a nossa liberdade é para a prática do bem (1Pe 2.15-16). “O fim da liberdade cristã é incentivar-nos e induzir-nos à prática do bem”.242 Somos livres quando obedecemos a Deus, aceitando os desafios de nosa vocação.243

c) Para servirmos ao nosso próximo: Servimos ao nosso próximo com a liberdade que Cristo nos deu, no amor de Cristo e do Seu Evangelho:

“19 Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. 20 Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ga-

242

João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 4, (IV.14), p. 93. 243

“A liberdade está na obediência ao nosso chamado” (Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 41).

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nhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. 21 Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. 22 Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tu-do para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. 23 Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele” (1Co 9.19-23).

“Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor e a nós mesmos como vossos servos, por amor de Jesus” (2Co 4.5).

“Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liber-dade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor” (Gl 5.13). Martinho Lutero (1483-1546) expressou isto da seguinte maneira: “Um cristão é

senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. “Um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos”.244

d) Para a prática da Justiça: A graça não pode nem deve ser banaliza-da. Fomos libertos para uma vida de justiça: “Carregando Ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos aos pecados, vivamos para a justiça” (1Pe 2.24). Paulo escreve aos romanos: “E, uma vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça. Falo como homem, por causa da fraqueza da vossa carne. Assim como oferecestes os vossos membros para a escravidão da im-pureza, e da maldade para a maldade, assim oferecei, agora, os vossos membros para servirem à justiça para a santificação. Porque, quando éreis escravos do peca-do, estáveis isentos em relação à justiça. Naquele tempo que resultados colhestes? Somente as cousas de que agora vos envergonhais; porque o fim delas é a morte” (Rm 6.18-21). Paulo desafia os crentes romanos a desenvolverem a sua liberdade no uso cons-tante da prática da justiça; ele faz um paralelo entre a nossa escravidão anterior à maldade (Rm 6.19) e agora; livres que somos, devemos oferecer os nossos mem-bros para a justiça. Livres do pecado, nos tornamos incondicionalmente servos da justiça. Se antes, em nossa escravidão espiritual, servíamos ao pecado, agora, libertos por Cristo, de-vemos obedecer à justiça.

e) Para a santificação e vida eterna: Paulo escreve aos romanos fa-lando da nossa situação atual e do alvo proposto por Deus para nós: “Agora, porém, libertados do pecado, transformados em servos de Deus, tendes o vosso fruto para a santificação, e por fim a vida eterna” (Rm 6.22). O homem justificado por Deus foi li-berto da condenação da Lei. Esta libertação implica o início de uma nova fase da sua vida, na qual a sua prioridade é o crescimento espiritual em obediência à Pala-

244

M. Lutero, Da Liberdade Cristã, 3ª ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1979, p. 9. (Esta obra também foi publicada In: Marinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo/Porto Alegre, RS.: Sino-dal/Concórdia, 1989, Vol. 2, p. 437).

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vra de Deus. O fruto da obediência ao pecado é a morte (Rm 6.21,23). O resultado da nossa obediência a Deus é a vida eterna. A justificação e a santificação são obras que Deus opera inseparavelmente. Fo-mos declarados justos (Rm 5.1) e agora, em paz com Deus, tem início em nossa vi-da o processo de santificação. Como bem escreveu F.F. Bruce (1910-1990), “a san-tificação é o começo da glória e a glória é a santificação completada”.245 Usamos corretamente a nossa liberdade quando nos apropriamos de todos os meios que Deus nos fornece para o desenvolvimento de nossa fé.

*** William Hendriksen (1900-1982) expressou o conceito cristão de liberdade, nestes termos: “Se é livre quando o pecado não nos domina, e quando a Palavra de Cristo domina o coração e a vida. Se é livre, por conseguinte, não quan-do se pode fazer o que se quer, senão quando se deseja fazer o que se deve fazer”.246

Somente aqueles que têm a liberdade do Espírito, podem dizer sinceramente: “A-grada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro em meu coração está a tua lei” (Sl 40.8). (Vd. Sl 1.2; 119.14,16,24,47,77,92,143,174).

245

F.F. Bruce, La Epistola a Los Hebreos, Michigan: Nueva Creacion, 1987, p. 45. Da mesma forma compreende Packer, quando diz: “A santidade será perfeita lá no céu. Estarmos incapacita-dos de pecar será tanto a nossa liberdade como o nosso gozo” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São Paulo: Fiel, 1994, p. 164). (Veja-se também: C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 68). 246

G. Hendriksen, El Evangelio Segun San Juan, Grand Rapids, Michigan: SLC., 1981, (Jo 8.32), p. 317.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: A PALAVRA DE DEUS NA FÉ E PRÁTI-CA REFORMADA:

A. A Verdade como um todo unificado: “A mente secular do século XX vacila entre dois extremos, sendo que os dois resultam da rejeição do Criador e da negação da criação”.247 Em outras palavras; nem a Palavra de Deus nem o Deus da Palavra tem “chance” na mente secularizada do homem moderno, nem na de muitos “teólogos” contemporâneos. O Deus da Bíblia, segundo estes, não é o Deus da Ciência. “A questão real na nova teologia não é só uma visão das Escrituras, mas fragmentária perspectiva da verdade”, interpreta Schaeffer (1912-1984).248 No entanto, sustentamos que a ver-dade é um todo unificado cabendo a cada um de nós descobrir por meio da pes-quisa – dentro de nossa contingência histórica –, dispondo do Mundo, que além de “palco da glória divina”,249 é o grande laboratório concedido por Deus ao ho-mem. Portanto, a verdade ou é essencialmente verdade ou é um logro absoluto. O que estamos falando poderá parecer um absurdo visto que, conforme dissemos a-cima, o homem moderno não mais crê na possibilidade da verdade absoluta. Toda-via, o que a Bíblia nos ensina é um sistema unificado de verdade; por isso, a ver-dade cristã ou é verdade absoluta ou é um engano completo: não existe verdade enquanto apenas verdade cristã, como não existe arte apenas enquanto “arte cris-tã”.250 Schaeffer está correto ao dizer que, "O cristianismo não é apenas uma série de verdades mas é a VERDADE – a Verdade sobre toda realidade".251 Ou, como afirmam Crampton e Bacon: “O Cristianismo, então, não é uma espé-cie, é um gênero”.252 Desta forma, não precisamos "forçar" a verdade, visto que isto seria um esforço inútil; à luz da eternidade, a verdade permanece de pé como verdade ou cai como engano ou mentira. "Porque nada podemos contra a verda-de, senão em favor da própria verdade" (2Co 13.8), como sabiamente escreveu o apóstolo Paulo. Calvino compreendeu bem este fato ao dizer que, "Visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejei-tá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus”.253 O nosso compromisso primei-ro é com Deus: A Verdade Absoluta e Eterna. Desta forma, cabe a nós aplicar os princípios bíblicos a toda à realidade de forma coerente, piedosa e sincera. 247

Harold O. J. Brown, A Opção Conservadora: In: Stanley Gundry, ed. Teologia Contemporânea, São Paulo: Mundo Cristão, 1983, p. 367. 248

Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 88. 249

Ver: João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 300-301. 250

Veja-se: Francis A. Schaeffer, A Arte e a Bíblia, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010. 251

F.A. Schaeffer, Manifesto Cristão, Brasília: DF.: Refúgio, 1985, p. 25. 252

W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Mo-nergismo, 2010, p. 105. 253

J. Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.12), p. 318.

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Devemos estar atentos ao fato de que ser Reformado envolve uma cosmovisão unificada que se reflete em nossa maneira de ver e atuar no mundo; toda e cada fa-ceta de nossa existência. Ser Reformado não significa uniformidade, mas uma pers-pectiva semelhante da vida e da eternidade. Assim sendo, não nos parece razoável, nem possível fazer sincretismos teológicos e éticos e, ainda assim sobrevivermos como Reformados. Não é possível uma teologia Reformada esquizofrênica!

B. A Mente Cativa:

“Os crentes são chamados por Deus para desenvolver suas mentes para o propósito da guerra intelectual e o pro-cesso educacional provê um mecanis-mo chave para ajudar o cristão com-prometido que deseja obedecer esse

mandado” – John A. Hughes.254

“A capacidade de pensar clara e corretamente é uma bênção maravi-

lhosa de Deus” – John MacArthur Jr.255

Na quinta-feira de 18 de abril de 1521, Lutero (1483-1546) na Dieta de Worms, diante do Imperador, dos príncipes e de clérigos é interrogado sobre a sua fé que tanto reboliço estaria causando à igreja romana, especialmente na Alemanha. Era um momento crítico; a pressão era para que Lutero se retratasse quanto à sua fé. Ele argumenta em tons respeitosos e com firmeza. A certa altura, na conclusão de sua breve exposição, declara: “.... estou vencido pelas Escrituras por mim aduzi-das e minha consciência está presa nas palavras de Deus – não posso nem quero retratar-me de nada, porque agir contra a consciência não é pruden-te nem íntegro”.256 Lutero, confiante na autoridade suficiente das Escrituras decla-ra que a sua mente é totalmente cativa da Palavra de Deus e, por isso, não pode nem sequer cogitar de pensar de forma contrária. De fato, a autonomia cristã consis-te numa total submissão à Palavra. McGrath está correto ao afirmar: “Permitir que novas idéias e valores tornem-se controlados por qualquer coisa ou pessoa que não a auto-revelação de Deus na Escritura é adotar uma ideologia, em vez de uma teologia; é tornar-nos controlados por idéias e valores cujas origens se acham fora da tradição cristã – e potencialmente tornar-nos escravizados por eles”.257

254

John A. Hughes, Por que Educação Cristã e não Doutrinação Secular?: In: John MacArthur, ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 377. 255 John MacArthur Jr., Abaixo a Ansiedade, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 32. 256

Martinho Lutero, Discurso do Dr. Martinho Lutero Perante o Imperador Carlos e os Príncipes na Assembléia de Worms – Quinta-feira depois de Misericordias Domini. In: Martinho Lutero: Obras Se-lecionadas, São Leopoldo/Porto Alegre, RS.: Sinodal/Concórdia, 1996, Vol. 6, p. 126. 257

Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 53.

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Uma das prisões mais sutis com a qual nos deparamos e, com frequência, sem perceber nela estamos, é a prisão de nossa mente: uma forma direcionada de pen-sar, cativa de determinados valores com os quais somos bombardeados diariamente e fortalecidos pelo próprio meio em que vivemos, sem que tenhamos necessaria-mente um filtro adequado para selecionar de modo crítico o que vemos e ouvimos. Assim, sem que nos demos conta, estamos assimilando valores que nos aprisionam, tornamo-nos “escravos” de uma maneira de pensar e consequentemente de agir; de-terminando, portanto, o nosso modo de ver a realidade, nos relacionar, criar nossos filhos, tratar nossos irmãos, trabalhar, estudar, nos divertir e, no nosso caso especí-fico, de ler, aplicar e expor ou não a Palavra. Deste modo, sem que percebamos, temos, em nome da liberdade de pensamento, uma mente estruturalmente cativa. Lloyd-Jones coloca a questão nestes termos: “A maior tirania que temos que en-frentar nesta vida é a perspectiva mundana. Ela se insinua em nosso pensa-mento em toda parte, e nós a recebemos imediatamente após nascer-mos.258 (...) O mundo tende a controlar o nosso pensamento, a nossa pers-pectiva e a nossa mentalidade”.259 Paulo escrevendo a Segunda Epístola aos Coríntios trabalha com um conflito evi-dente de “senhorio”: Quem é o Senhor de nossa mente e de nossa vida? Quais são os valores que priorizamos? A maneira como encaramos a realidade, por si só já não nos diz a quem servimos e o quadro teórico que nos circunda?

Diante das acusações dos falsos mestres que estavam influenciando a igreja de Corinto, escreve: “Porque, embora andando na carne, não militamos segundo a car-ne. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2Co 10.3-5). Paulo era um mestre da Lei, um erudito que conhecia bem a literatura judaica e grega, expressando-se de modo fluente em grego, hebraico e possivel-mente em latim. Aqui estava um homem que dispunha de grandes recursos para se gloriar no seu saber e recursos; no entanto, “Cristo é a autoridade mais sublime sobre a razão humana”.260 Por isso mesmo Paulo argumenta que mesmo vivendo neste mundo com as limitações próprias – “andando na carne” (2Co 10.3) –, as suas armas não são carnais, antes são espirituais; o seu ministério não é caracterizado por ausência de recursos espirituais, antes, todo ele é realizado no poder de Deus. As suas armas – que tem como fundamento a Palavra de Deus (Ef 6.17)261 –, são poderosas em Deus para destruir fortalezas; anulando sofismas. Notemos que as

258

“A menos que Deus mude a maneira de pensarmos – o que Ele faz em alguns pelo mila-gre do novo nascimento – nossas mentes sempre nos dirão para nos virarmos contra Deus – o que é precisamente o que fazemos” (James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Cul-tura Cristã, 2003, p. 111). 259

D.M. Lloyd-Jones, Seguros Mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: Vol. 2), p. 28 e 29. 260

W. Mundle, Ouvir: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. III, p. 369. 261

“Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef 6.17).

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“armas carnais não precisam ser más, mas incluem as que consistem de po-der humano, tais como eloquência, organização, propaganda e coisas se-melhantes, que são, por si mesmas, neutras, mas que podem ser usadas para o mal, por serem subservientes ao egoísmo, artimanhas e violência caracte-risticamente humanas”.262

Paulo temia pela corrupção da mente dos coríntios pelo fato deles darem crédito

aos falsos apóstolos que, usados por Satanás, os afastavam da simplicidade do E-vangelho: “Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astú-cia (panourgi/a263

= “ardil”, “truque”, “maquinação”, “trapaça”), assim também sejam corrompidas as vossas mentes (no/hma), e se apartem da simplicidade e pureza de-vidas a Cristo” (2Co 11.3). Esta era uma forma de Satanás atuar, obscurecendo a mente (no/hma) dos homens. Paulo após falar dos desígnios (no/hma)264 de Satanás (2Co 2.11) – indicando a idéia de que ele tem metas definidas, estratégias elabora-das, um programa de ação com variedades de técnicas e opções a serem aplicadas conforme as circunstâncias –, diz que “.... O deus deste século cegou os entendi-mentos (no/hma) dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus” (2Co 4.4). Na realidade, é possível, – e creio que conhecemos bem isso –, criar uma atmosfera contrária à fé cristã; uma má vontade para com a verdade; uma estrutura de pensamento totalmente seculari-zada, onde não há lugar para Deus, valores e conceitos objetivos. O pecado afeta a totalidade do homem, inclusive o seu intelecto.265 Assim, criamos um universo de valor privado, onde a verdade é de cada um dentro dos significados subjetivos cir-cunstanciais.

Veith diz que “normalmente, não sãos argumentos específicos contra o Cris-

tianismo que perturbam a fé de uma pessoa, mas toda a atmosfera do pen-samento contemporâneo”.266 O clima intelectual de uma época é sempre forte-mente influenciador de nossa estrutura de pensamento e, portanto, de nossas priori-dades e valores. A força deste “clima” talvez repouse sobre a sua configuração óbvia e normativa com que ele se apresenta à nossa mente. É quase impossível ter a per- 262

G.R. Beasley-Murray, 2 Coríntios: In: Clifton J. Allen, ed. ger. Comentário Bíblico Broadman, Rio de Janeiro: JUERP., 1985, Vol. 11, p. 84. 263

Ocorre 5 vezes no NT.: Lc 20.23; 1Co 3.19; 2Co 4.2; 11.3; Ef 4.14. 264

A palavra traduzida por “desígnio” (no/hma)(nóêma) ocorre cinco vezes no NT., sendo utilizada a-penas por Paulo: 2Co 2.11; 3.14; 4.4; 10.5; 11.3; Fp 4.7, tendo o sentido de “plano” (Platão, Política, 260d), “intenção maligna”, “intrigas”, “ardis”. Com exceção de Fp 4.7, a palavra sempre é usada nega-tivamente no NT. No/hma é o resultado da atividade do nou=j (mente). (J. Behm; E. Wurthwein, nou=j, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. IV, p. 960). “É a faculdade geral do juízo, que pode tomar decisões e pronunciar certos ou errados os veredi-tos, conforme as influências às quais tem sido expostas” (J. Goetzmann, Razão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. IV, p. 32). 265

“O diabo de tal maneira enfeitiça as mentes dos homens que eles se apegam obstina-damente aos erros que em tempos passados assimilaram” [João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.2-7), p. 193]. Calvino também observa que os “incrédulos se encontram tão intoxicados por Satanás, que, em seu estupor, não têm consciência de sua miséria” [J. Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.26), p. 247]. 266

Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 49.

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cepção de algo que nos conduz – como também a nossos parceiros de entendimen-to –, de forma tão suave. Por isso, o simples – ainda que não seja tão simples assim – fato de podermos pensar com clareza, sem estes condicionantes, é uma bênção inestimável de Deus.267 “O pecado é antiintelectual”.268 O ateísmo do iníquo não é apenas teórico, antes, é eminentemente prático, se manifestando em seu comportamento. Escrevendo o Salmo 14, Davi, que em última instância descreve a realidade po-tencial de todo o homem sem Deus, fala de modo mais específico daquele que nega o transcendente, cometendo o grande ato de insensatez: “Diz o insensato (lb'n ") (na-bal) no seu coração (ble)(leb): Não há Deus (~yhil{a/)(elohim). Corrompem-se (tx;v') ((shahat) e praticam abominação (b[;T) (ta’ab)....” (Sl 14.1).

O insensato nega a realidade transcendente; não existe Deus nem seres angeli-

cais;269 o seu mundo é puramente material. Ele solidifica isso em seu coração, não simplesmente de boca para fora, daí dizer “no seu coração”, a sede de sua emoção, razão e vontade. Ele se alimenta em seu “eu essencial” da negação de Deus. A idéia do texto é que o ateísmo como não permanece apenas no campo teórico, faz com que nos desviemos totalmente dos preceitos de Deus; há um extravio, daí a corrup-ção intelectual270 e moral. Limito-me à questão intelectual. O salmista diz que ele se corrompe (tx;v') ((shahat).271 A palavra tem também a idéia de ruína (2Cr 34.11; Pv 6.32); destruição (Sl 78.38,45; Is 37.12); danificar (Jr 49.9); poço (Sl 7.16); cova (Sl 9.16), lodo (Jó 9.31). O insensato na afirmação de que não há Deus, se arruína, se destroi intimamente, tem desestruturada toda a sua forma de pensar, perceber a rea-lidade (epistemologia) e, consequentemente, de organizar o seu pensamento (lógi-ca) a partir de fundamentos equivocados. Isto se manifesta inclusive em sua conduta religiosa e ética; daí a prática de abominações que consistem em atos totalmente contrários à Palavra de Deus, tais como a idolatria e o sacrifício humano (1Rs 21.26; Sl 106.40), atos sanguinários e fraudulentos. Deus abomina quem tais coisas prati-cam: “Os arrogantes não permanecerão à tua vista; aborreces a todos os que prati-cam (b[;T) (ta’ab) a iniqüidade (!w<a') ('aven)” (Sl 5.6).

Retornando à questão tratada por Paulo, perguntamos: As armas que temos são poderosas em Deus para quê? Analisemos a progressão do seu pensamento:

267

Ver. John MacArthur Jr., Abaixo a Ansiedade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 32. 268

Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, p. 72. 269

Keil e Delitzsch vão além, entendendo que a negação é da existência de um Deus pessoal (C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, MI: Eerdmans, (1871), Vol. V, (I/III), (Sl 14.1), p. 203-204). 270

“A insensibilidade para com Deus bem como a insensibilidade moral fecham a mente para a razão” (Louis Goldberg, Nabal: In: R. Laird Harris, et. al., eds., Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 910). Do mesmo modo, Derek Kid-ner, Provérbios: introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1980, p. 40. 271

Sl 9.16; 35.7; 78.45; 106.23; Sf 3.7.

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a) “Para destruir272 fortalezas” (* o)xu/rwma)273 (2Co 10.4). A palavra “fortaleza”, só ocorre aqui no NT, tendo um emprego secular de fortaleza de palavras, de argu-mentos presumivelmente considerados fortes e indestrutíveis; metaforicamente a expressão indica conceitos especulativos que se erguem contra a cruz de Cristo. O Espírito, por meio da Palavra, destrói a nossa forma viciada de pensar que obstacu-lizava a compreensão do Evangelho;

b) “Anulando sofismas” (logismo/j):274 Toda a sabedoria carnal em oposição ao

saber espiritual; c) “E toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus” (2Co 10.5). As

fortalezas geralmente eram construídas em lugares altos, sendo, portanto, mais difí-cil combatê-las. Normalmente as coisas que exaltamos como sendo fundamentais e essenciais para a sua existência podem se constituir em fortalezas contra o conhe-cimento de Deus. As pessoas tendem a se julgar seguras dentro das “fortalezas” de seus argumentos contra o Evangelho; no entanto, os limites de pedra da razão e do coração humano não servem de empecilho absoluto contra o Evangelho;

d) “Levando cativo todo pensamento (no/hma) à obediência de Cristo” (2Co 10.5):

“Esta imagem é a de uma fortaleza rompida; os que ali dentro se abrigavam, por detrás de muralhas, estão sendo levados em cativeiro. Assim é que o propósito do apóstolo não é apenas demolir os falsos argumentos, como também conduzir os pensamentos das pessoas sob o senhorio de Cristo. Seu apelo como apóstolo era implantar ‘a obediência por fé, entre todos os gen-tios’(Rm 1.5)”.275 Somente desse modo − por intermédio do crescimento espiritual que consiste na obediência a Deus −, é possível, como diz Paulo aos efésios, “que não mais andeis como também andam os gentios na vaidade [mataio/thj]276 dos seus próprios pen-

272

kaqai/resij (kathairesis) = destruição (* 2Co 10.4,8; 13.10). O verbo, kaqaire/w (kataireõ) tem o sentido de fazer descer, vencer, derrubar, destruir (Mc 15.36, 46; Lc 1.52; 12.18; 23.53; At 13.19, 29; 2Co 10.4). 273

Nos papiros significa também prisão. 274

Logismo/j significa “computar”, “refletir”, “cogitar”, “conceber”, “raciocinar”. A palavra é provenien-te de lo/goj. O termo pode ter também o sentido de argumento falso e sofisma (* Rm 2.15 (“pensa-mentos”); 2Co 10.4). (Sentido negativo é usado também em Pv 6.18) (logismo/j kakoi/) (logismos kakoi). 275

Colin Kruse, 2 Coríntios: Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1994, (2Co 10.5), p. 186. 276mataio/thj (mataiotês) (= Vaidade, futilidade, vacuidade) apresenta a idéia de ausência de objeti-

vos [* Rm 8.20; Ef 4.17; 2Pe 2.18]. Ma/taioj = Vão, fútil, tolo, sem valor. (*At 14.15; 1Co 3.20; 15.17; Tt 3.9; Tg 1.26; 1Pe 1.18). “Na literatura grega, mataios e seus cognatos têm como pano de fundo certos valores estabelecidos, padrões morais, realidades religiosas, verdades e fatos reconhecidos. A conduta de qualquer pessoa que os deixa passar despercebidos, delibera-damente ou sem ser consciente disso, cai sob o julgamento de ser mataios” (E. Tiedtke, Vazi-o: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. IV, p, 692).

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samentos [nou=j],277 obscurecidos de entendimento [dia/noia],278 alheios à vida de Deus por causa da ignorância (a)/gnoia) em que vivem, pela dureza dos seus cora-ções....” (Ef 4.17-18). Se Deus desconsiderou a nossa antiga ignorância (At 17.30); agora que Ele nos deu a conhecer a Sua Palavra, tornando-nos “filhos da obediên-cia”, não deseja que tornemos às nossas práticas antigas, dominadas pelas paixões. É isso que escreve Pedro às igrejas: “Como filhos da obediência, não vos amoldeis às paixões que tínheis anteriormente na vossa ignorância (a)/gnoia)” (1Pe 1.14). Portanto, podemos inferir que não há o que temer diante da oposição erguida contra o ensino da fé cristã; a sabedoria carnal é oposta à sabedoria espiritual e es-ta a sobrepuja. Na Palavra temos todos os recursos necessários para combater o er-ro e apresentar a mensagem cristã de forma clara e objetiva. A verdade bíblica é ca-paz de apresentar de forma coerente a fé cristã e sobrepujar toda forma de raciocí-nio que lhe é hostil. Portanto, a Igreja se alimenta da Palavra e nela encontra o dis-cernimento de Deus para entender e avaliar todas as coisas. Assim sendo, devemos ressaltar que o Evangelho não é irracional nem obscuran-tista, no sentido de que nega o saber, antes aponta na direção de uma mente sub-missa a Cristo, que procura interpretar a realidade a partir da mente de Cristo, não da “mente” de Satanás. Por isso, a pregação do Evangelho envolve raciocínios e argumentos: Lucas registra que em Corinto: “Todos os sábados [Paulo] discorria (diale/gomai) na sinagoga, persuadindo tanto judeus como gregos” (At 18.4). Este era o método habitual de Paulo. Ele usou do mesmo recurso na sinagoga de Tessa-lônica (At 17.2); na sinagoga e na praça de Atenas (At 17.17); na sinagoga de Éfeso e na escola de Tirano durante dois anos (At 18.19; 19.8-10), na igreja em Trôade (At 20.7,9) e diante de violento Procurador Félix (At 24.25).

Após a ressurreição de Cristo os discípulos ainda não entendiam adequadamente

as Escrituras em relação ao Messias, Jesus Cristo. Com dois deles, no caminho de Emaús, o Senhor abriu-lhes os olhos para que a compreendessem e cressem por meio da exposição das Escrituras. Foi esta a percepção deles. Narra Lucas: “E a-conteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu; então, se lhes abriram (dianoi/gw) os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles. E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha (dianoi/gw) as Escrituras?” (Lc 24.30-32). Agora, com os demais discípulos, Jesus mostra como as Escrituras se cumpriram em Seu ministério, vida, morte e ressurrei-ção. Lucas resume: “Então, lhes abriu (dianoi/gw) o entendimento (nou=j) para

277

nou=j (nous), da mesma raiz de no/hma, indica a mente, pensamento, modo de pensar, atitude e a faculdade de raciocinar. 278

dia/noia (dianoia), pensamento, disposição, entendimento, inteligência, a mente como o órgão do pensamento, de interpretação. No texto de Efésios, Calvino interpreta a palavra como sendo a própria capacidade de pensar [João Calvino, Efésios, (Ef 4.17), p. 134]. [Deus deseja que O amemos com to-da a nossa dia/noia (Mt 22.37; Mc 12.30; Lc 10.27); é Deus quem ilumina os olhos de nosso coração para que possamos ter a dia/noia (compreensão) espiritual (Ef 1.18/1Jo 5.20); antes disso éramos i-nimigos de Deus em nossa dia/noia (Cl 1.21); no entanto, Deus imprimiu, conforme a profecia cum-prida em Cristo, a sua lei em nossa dia/noia (Hb 8.10; 10.16). A nossa dia/noia, portanto, deve ser revestida com a Palavra a fim de permanecer esclarecida (2Pe 3.1/1Pe 1.13).

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compreenderem (suni/hmi) as Escrituras” (Lc 24.45). De passagem, podemos ob-servar que o caminho para atingir a mente e o coração das pessoas é a exposição da Palavra. O Espírito que opera por meio dela não força as evidências, nem nos o-briga a diminuir a nossa capacidade de pensar, antes, nos faz enxergar e crer nas evidências (At 3.16; 16.14; 18.27; Rm 4.16; 1Co 3.5; Fp 1.29). Lucas relata: “Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou (diale/gomai) com eles acerca das Escrituras, expondo (dianoi/gw = “explicando”, “interpretando”) e demonstrando ter sido necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos; e este, dizia ele, é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio” (At 17.3). Devemos entender que Deus age ordinariamente por meio da Palavra. Pela Pala-vra ouvimos, cremos, recebemos e acolhemos a mensagem de Deus (Jo 17.6-8). Não há experiência mais significativa do que esta. LLoyd-Jones é bastante enfático neste ponto:

“O Espírito Santo não produz mera experiência, o Espírito Santo usa a Pa-lavra. Ele é o Espírito da verdade, o Espírito que ilumina, Ele é o Espírito que leva-nos ao entendimento. Jamais devemos lançar fora o intelecto que Deus nos deu. Não é preciso fazer isso. O Espírito Santo pode operar no nosso cérebro como em qualquer outra parte de nós. É falso o ensino que concita as pessoas a se soltarem. Se você fizer isso, irá cair numa libertina-gem da imaginação e dos sentimentos, estará indo aos maus espíritos e maus poderes que estão ao seu redor e que estão sempre prontos para tomar posse de você e para fazer você de bobo”.279

Paulo sabia, nós sabemos, que as armas devem ser usadas de acordo com o i-nimigo e o tipo de guerra. A ignorância a respeito de nossos verdadeiros alvos pode nos conduzir a uma exaustão frustrante. Temos de aprender a identificar, por exem-plo, como o pensamento secular assume características próprias em nossa geração a fim de podê-lo combater de forma eficiente.280 Davi, por exemplo, quando foi lutar contra o gigante Golias escolheu criteriosamente as pedras para usar em sua funda: “Tomou o seu cajado na mão, e escolheu (rAhfB “Bãhar”)281 para si cinco pedras lisas do ribeiro....” (1Sm 17.40). Davi confiava em Deus e usou dos recursos de que dis-punha e, neste caso, com os quais estava bem familiarizado. Tornando a Paulo, no-

279

David Martyn Lloyd-Jones, Cristianismo Autêntico: Sermões nos Atos dos Apóstolos. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2006, Vol. 2, p. 260. 280

Veja-se: Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, 2ª ed., São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 29-31. 281

rAhfB (“Bãhar”) significa “escolher”, “eleger”, “decidir por”, etc. O verbo e os seus derivados ocorrem 198 vezes no Antigo Testamento, havendo o predomínio do seu emprego na modalidade “qal”, (146 vezes) que indica uma ação completa. O verbo é usado cerca de 100 vezes referindo-se a Deus co-mo sujeito da ação. “Bãhar”, apesar de não ser necessariamente teológico, apresenta sempre a idéia de uma escolha criteriosa, bem pensada –– daí, também o seu sentido de “testar”, “examinar” (Is 48.10; Pv 10.20) −, levando em consideração as opções (1Sm 17.40; 1Rs 18.25; Is 1.29; 40.20). (Para um estudo mais detalhado do uso da palavra no Antigo Testamento, veja-se: Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos, São Paulo: Cultura Cristã, 2009).

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temos que se a sua luta era espiritual, as suas armas deveriam ser também espiritu-ais (2Co 10.4-5). Portanto, Paulo apresenta neste texto o caminho que seguiu e que caracterizava o seu Ministério: colocar todo o seu saber, todo o seu pensar, todo o seu sentir sob o domínio de Cristo, mantendo assim a sua mente aprisionada ao sa-ber, conhecer e sentir de Cristo.282 Paulo demonstra como fez isso. Destaco apenas a aplicação desse princípio na pregação da Palavra. Com vimos, Paulo admite que anda na carne, ou seja, participa de todas as limi-tações humanas, contudo, o seu ministério não é caracterizado por ausência de re-cursos espirituais, antes todo ele é realizado no poder de Deus (2Co 10.4). Ele não andava com astúcia nem adulterando a Palavra de Deus (2Co 4.2).283 As suas ar-mas consistiam no anúncio fiel da Palavra de Deus, por meio da qual Deus opera (Rm 1.16).284 Todo pensamento deve ser levado cativo a Cristo, contrastando com a situação antiga de domínio do pecado sobre nós: “.... Vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro (ai)xmalwti/zw)285 da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7.23). Um dos perigos para nós cris-tãos é simplesmente não usar a nossa mente. A nossa conversão a Deus envolve também uma nova mente, uma nova maneira de perceber a realidade, vendo o real como de fato é. Nosso coração e mente precisam ser convertidos ao Senhor.286 De-vemos aprender a entender a vontade de Deus em todas as circunstâncias e subme-termo-nos a ela. A nossa mente deve ser tão devotada a Deus como o nosso cora-ção; excluí-la, significa não amar a Deus como Ele requer. Deus deseja que O a-memos e O sirvamos também com nossa inteligência: “Respondeu-lhe Jesus: Ama-rás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração (kardi/a), de toda a tua alma (yuxh//) e de todo o teu entendimento (dia/noia). Este é o grande e primeiro mandamento” (Mt 22.37-38). Hoje se fala com muita veemência sobre “métodos” evangelísticos, “estratégias” de plantação de igreja, etc. Notemos que estas questões não são irrelevantes, con-tudo, é necessário que não transfiramos a fonte do poder do Evangelho para o nos-so método ou estratégia. Tornemos ao Novo Testamento: Depois do seu ministério em Corinto, anos mais tarde, Paulo relataria como foi que ali chegou e começou a pregar o Evangelho: “Eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o teste- 282

Aqui temos um princípio: não descansar simplesmente em nossas experiências. “.... sempre que descansamos contentes com as nossas próprias experiências e somos sábios aos nossos pró-prios olhos, nos mantemos distanciados de toda e qualquer aproximação da doutrina de Cristo” (João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Edições Paracletos, 1995, (2Co 10.5), p. 203). 283

“.... rejeitamos as coisas que, por vergonhosas, se ocultam, não andando com astúcia, nem adul-terando a palavra de Deus; antes, nos recomendamos à consciência de todo homem, na presença de Deus, pela manifestação da verdade” (2Co 4.2). 284

“Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo a-quele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1.16). 285

ai)xmalwti/zw (aichmalõtizõ) (* Lc 21.24; Rm 7.23; 2Co 10.5). 286

Ver: Oliver Barclay, Developing a Christian Mind, Great Britain: Christian Focus, 2006, p. 16-17; Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 133-138.

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munho de Deus, não o fiz com ostentação de linguagem ou de sabedoria. (...) A mi-nha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabe-doria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se a-poiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus” (1Co 2.1,4-5). Ainda que a natureza revele o seu Criador, não havendo nenhum tipo de contra-dição nas formas revelacionais de Deus, as Escrituras se constituem no meio eficaz estabelecido por Deus para nos comunicar o conhecimento de Si mesmo iluminando os nossos olhos para enxergá-lo de modo salvador. A nossa capacidade simples-mente intelectual não conta nesta esfera; nosso instrumental tornou-se totalmente inadequado: “O homem, com toda a sua astúcia, é tão estúpido para enten-der por si mesmo os mistérios de Deus, como um asno é incapaz de entender a harmonia musical”.287 A ação especial de Deus é que nos possibilita conhecê-Lo: “Visto que Deus se comunicou por Sua Palavra de Vida a todos os que Ele recebeu por Sua graça, disso devemos inferir que os fez participantes da vida eterna. Eu digo que na Palavra de Deus há uma tal eficácia de vida que a sua comunicação é uma segura e certa vivificação da alma. Entendo por comunicação não a geral e comum, que se propaga por céus e terra e sobre todas as criaturas do mundo.288 Porque, conquanto esta vivifique to-das as coisas conforme a sua respectiva natureza diversa, todavia não livra nada nem ninguém da corrupção. Mas a comunicação a que me refiro é especial, e por esta a alma dos crentes é iluminada no conhecimento de

287

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.20), p. 60. 288 “Nas coisas que Ele criou, Deus, portanto, mantém diante de nós nítido espelho de sua esplendorosa sabedoria. Em resultado, qualquer indivíduo que desfrute de pelo menos uma minúscula fagulha de bom senso, e atenta para a terra e outras obras divinas, se vê aturdido por candente admiração por Deus. Se os homens chegassem a um genuíno conhecimento de Deus, pela observação de suas obras, certamente que viriam a conhecer a Deus de uma forma sábia, ou daquela forma de adquirir sabedoria que lhes é na-tural e apropriada” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.21), p. 62]. “Em toda a arquitetura de seu universo, Deus nos imprimiu uma clara evidência de sua eter-na sabedoria, munificência e poder; e embora em sua própria natureza nos seja ele invisível, em certa medida se nos faz visível em suas obras. O mundo, portanto, é com razão chama-do o espelho da divindade, não porque haja nele suficiente clareza para que os homens al-cancem perfeito conhecimento de Deus, só pela contemplação do mundo, mas porque ele se faz conhecer aos incrédulos de tal maneira que tira deles qualquer chance de justifica-rem sua ignorância. (...) O mundo foi fundado com esse propósito, a saber: para que servisse de palco à glória divina” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 300-301]. “Existe diante de nossos olhos, em toda a ordem da natureza, os mais ricos elementos a manifestarem a glória de Deus, mas, visto que somos inquestionavelmente mais poderosamente afetados com o que nós mesmos experimentamos, Davi, neste Salmo, com grande propriedade, expressamente celebra o favor especial que Deus manifesta no inte-resse da humanidade. Posto que este, de todos os objetos que se acham expostos à nossa contemplação, é o mais nítido espelho no qual podemos contemplar sua glória” [João Calvi-no, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 8.1), p. 356].

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Deus e de algum modo é ligada a Ele”.289 A sabedoria de Deus é qualitativamente diferente da sabedoria mundana (2Co 2.6-8,13-14).290 E esta não está nenhum pouco interessada em entender a sabedo-ria de Deus. Portanto, “para ser positiva, a pregação deve ser uma explicação da Escritura”.291 A mente cativa a Cristo é aquela que no ensino traz pura e simplesmente o Evan-gelho de Cristo: “Porque não ultrapassamos os nossos limites como se não devês-semos chegar até vós, posto que já chegamos até vós com o evangelho de Cristo” (2Co 10.14). Deus opera poderosamente por meio da Sua Palavra, não de nossos argumentos, por melhores que sejam; por isso o nosso testemunho deve ser avalia-do à luz da Palavra, em submissão ao Espírito. A nossa compreensão e aceitação da mensagem do Evangelho não indica a nossa superioridade ou inteligência, antes manifesta a soberana graça de Deus em salvar aqueles que são considerados irre-levantes diante do mundo e, que, como todos os demais, por si só jamais creriam. Portanto, não há lugar para vanglória, mas sim, gratidão a Deus (1Co 1.29). A mente cativa se revela no ensino do Evangelho de modo simples e fiel aos en-sinamentos bíblicos, não em demonstração de erudição, mas em fidelidade à Pala-vra, sob o poder do Espírito. Paulo sabia que a transformação do Evangelho em me-ra sabedoria de palavras esvaziaria o significado da mensagem da cruz.292 Além disso, não é a nossa suposta erudição que vai converter alguém: as nossas palavras não têm poder de conceder vida; só a Palavra de Deus. As nossas palavras podem entreter e agradar corações satisfeitos com os seus pecados, mas, não podem transformar vidas. Muitas vezes podemos ser levados a pensar que o incrédulo será levado a Cristo se falarmos de forma erudita ou, quem sabe, oferecendo-lhe algo semelhante ao que está acostumado no mundo; assim tentamos fazer da igreja um clube social, ou um programa de auditório, ou uma academia de intelectuais, nos esquecendo que a sabedoria do Evangelho atua em outro nível, e é operada pelo Espírito. Conforme vimos, Paulo diz que as suas armas não são carnais, antes, são pode-

289

João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 3, (III.7), p. 10-11. 290

“Entretanto, expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a sabedoria deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória; sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (...) Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sa-bedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais. Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode enten-dê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (2Co 2.6-8,13-14). 291

Karl Barth, La Proclamacion del Evangelio, Salamanca: Ediciones Sigueme, 1969, p. 22. 292

“Se Paulo tivesse usado a acuidade de um filósofo e a linguagem pomposa em seu trato com os coríntios, o poder da Cruz de Cristo, no qual a salvação dos homens consiste, teria sido sepultada, porque ele não poderia nos alcançar desta maneira” (João Calvino, Exposi-ção de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.17), p. 53).

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rosas em Deus para destruir fortalezas, anulando sofismas; ou seja, raciocínios en-ganosos. Paulo não está aqui desprestigiando os recursos dos quais dispomos legi-timamente; contudo, combate a confiança nos recursos. Devemos estar atentos para não transferir a nossa confiança no Senhor dos meios para os meios. A questão es-tá em não usar desses meios como sendo a força do Evangelho, esquecendo-se de sua simplicidade que é-nos comunicada pelo Espírito. Sobre isso Calvino escreveu: “Não devemos condenar nem rejeitar a classe de eloquência que não alme-ja cativar cristãos com um requinte exterior de palavras, nem intoxicar com deleites fúteis, nem fazer cócegas em seus ouvidos com sua suave melodia, nem mergulhar a Cruz de Cristo em sua vã ostentação”.293 “O Espírito de Deus também possui uma eloquência particularmente sua”.294 “A erudição unida à piedade e aos demais dotes do bom pastor, são como uma prepa-ração para o ministério. Pois, aqueles que o Senhor escolhe para o ministério, equipa-os antes com essas armas que são requeridas para desempenhá-lo, de sorte que lhe não venham vazios e despreparados”.295 Em outro lugar, respondendo a uma possível pergunta referente à possibilidade de Paulo estar con-denando a sabedoria de palavras como algo que se acha em oposição a Cristo (1Co 1.17), diz: “.... Paulo não seria tão irracional que condenasse como algo fora de propósito aquelas artes, as quais, sem a menor dúvida, são esplêndi-dos dons de Deus, dons estes que poderíamos chamar de instrumentos para auxiliarem os homens no desempenho de suas atividades nobres. Portanto, não há nada de irreligioso nessas artes, pois são detentoras de ciência sau-dável, e estão subordinados a princípios verdadeiros; e visto que são úteis e 293

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 55. “Deus quer que sua Igreja seja edifi-cada com base na genuína pregação de sua Palavra, não com base em ficções humanas. (...) Nesta categoria estão questões especulativas que geralmente fornecem mais para os-tentação – ou algum louco desejo – do que para a salvação de homens” [João Calvino, Ex-posição de 1 Coríntios, (1Co 3.12), p. 112]. “A pregação de Cristo é nua e simples; portanto, não deve ela ser ofuscada por um revestimento dissimulante de verbosidade” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 54]. “[A] fé saudável equivale à fé que não sofreu ne-nhuma corrupção proveniente de fábulas” [João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320]. “Se porventura desejarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a refrear nossos sentidos para não nos entregarmos a invencionices estranhas. Pois assim que a pessoa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integridade de sua fé” [João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320]. “O espírito do homem, dado a inventar fábulas e fantasias que mais parecem sonhos, é propenso a cair em absurdos....” [João Calvi-no, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 3, (III.11), p. 185-186].

O Diretório de Culto de Westminster (1645), falando sobre o Ministério pastoral, diz que na prega-ção, o ministro deve desempenhar a sua tarefa “claramente, para que o mais simples possa en-tender, expondo a verdade, não em palavras sedutoras de sabedoria humana, mas na de-monstração do Espírito e do poder, para que a cruz de Cristo não seja tornada ineficaz; abs-tendo-se também de um uso sem proveito de línguas desconhecidas, frases estranhas, e cadência de sons e palavras; citando bem poucas vezes sentenças de escritores teológicos ou outros humanistas, antigos ou modernos, por mais elegantes que sejam” (O Diretório de Culto de Westminster, São Paulo: Editora os Puritanos, 2000, p. 40). 294

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 56. 295

João Calvino, As Institutas, IV.3.11. “Não se requer de um pastor apenas cultura, mas tam-bém inabalável fidelidade pela sã doutrina, ao ponto de jamais apartar-se dela” [J. Calvino, As Pastorais, (Tt 1.9), p. 313].

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adequáveis às atividades gerais da sociedade humana, é indubitável que sua origem está no Espírito. Além do mais, a utilidade que é derivada e expe-rienciada delas não deve ser atribuída a ninguém, senão a Deus. Portanto, o que Paulo diz aqui não deve ser considerado como um desdouro das artes, como se estas estivessem agindo contra a religião”.296 Paulo faz um contraste entre a sua aparente fraqueza, conforme seus inimigos di-ziam (2Co 10.10),297 com a força de suas armas, que eram poderosas não por si mesmas, mas “poderosas em Deus” (2Co 10.4); portanto, “o poder de suas armas depende de Deus e não do mundo”.298 Aos judeus que queriam ver sinais (shmei=on) e aos gregos que queriam sabedo-ria,299 Paulo anunciava a Cristo crucificado (1Co 1.22-23). A mensagem da cruz nunca soou como algo simpático aos ouvidos que já dispunham de seu filtro cultural e teológico. Por isso, ela tem um duplo significado: Para os judeus, soava como es-cândalo300 e pedra de tropeço visto que esta realidade não era compatível com as suas crenças; para os gregos, era loucura.301 No entanto, esta era a mensagem de

296

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 53-54. 297

“As cartas, com efeito, dizem, são graves e fortes; mas a presença pessoal dele é fraca, e a pala-vra, desprezível” (2Co 10.10). 298

João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 10.4), p. 202. 299 Os gregos desde o tempo dos sofistas foram acostumados com a retórica, valorizando excessi-vamente a beleza do discurso. A palavra “Retórica” é uma transliteração do grego R(htorikh/ ( = “elo-quência”). A palavra é proveniente de R(h/twr (= “orador público”, “advogado”, “homem de Estado”). Ocorre apenas em At 24.1, no NT. Estas palavras são derivadas de Rh(=ma (= “palavra”, “expressão verbal”, “linguagem”, “poema”). Em Aristóteles (384-322 a.C.), Rh(=ma significa um verbo, contrastando com um o/)noma, substantivo. [Aristóteles, Poética, São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores, IV), XX 1457a, 10-14, p. 461]. (Para maiores detalhes sobre esta questão, veja-se: Hermisten M.P. da Costa, Princípios Bíblicos de Adoração Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.132ss). 300

O substantivo “escândalo”, no grego: ska/ndalon tem o sentido de “pedra de tropeço” (Mt 16.23), “tropeço” (Rm 11.9; 1Jo 2.10); “ofensa” (1Pe 2.8). “cilada” (Ap 2.14). Do mesmo modo, o verbo skan-dali/zw é utilizado com o sentido de: fazer tropeçar (Mt 5.29,30; 18.6,8,9; Mc 9.42,43,45,47; Lc 17.2) ou causa de tropeço (Mt 26.33); gerar maliciosamente escândalos (Rm 16.17; Ap 2.14). No grego se-cular, a idéia da palavra no sentido literal é a de uma isca para atrair alguém para uma armadilha. Fi-guradamente refere-se às “armadilhas verbais” elaboradas para derrotar o oponente por meio de um argumento. Na LXX, o sentido básico é de ”tropeço” (Sl 119.165) e também de “armadilha” (Js 23.13; Jz 2.3; 8.27; 1Sm 18.21; Sl 69.22; 106.36; 140.5; 141.9). (Ver: William Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1988 (reimpressão), p. 182-184; J. Guhrt, Ofensa: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. III, p. 311-314). 301

Barclay escreve: “para a mentalidade grega a primeira característica de Deus era a apa-theia. Esta palavra significa mais que apatia: significa incapacidade total de sentir. Os gre-gos sustentavam que Deus não poderia sentir. Se pudesse sentir alegria ou tristeza, aborre-cer-se ou apiedar-se, significava que nesse momento alguém o havia afetado. Se isto era assim, significava que o homem havia influído em Deus; portanto, era mais poderoso que e-le. Deste modo, pois, sustentavam que Deus deve ser incapaz de todo sentimento e que nada pode afetá-lo jamais. Um Deus que sofria era para os gregos uma contradição” (Willi-am Barclay, 1 y 2 Corintios, Buenos Aires: La Aurora, 1973, p. 30-31). Isto é fato pelo menos para de-terminada vertente da filosofia grega representada por Epicuro (341-271 a.C.). Veja-se: Diôgenes La-

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Paulo (1Co 1.22-23). “A base da ofensa causada por Jesus é a cruz (1Co 1.23), que anula toda a sabedoria humana, e exclui toda a cooperação humana para a salvação”.302 O que se configurava como loucura e escândalo revelava da glória de Cristo: Na cruz a glória do Filho é manifestada: “Jesus é glorificado quando o resplendor de seus atributos é demonstrado. Certamente que na cruz de Cristo e também na coroa divisamos essa glória. Na cruz, vista como sendo a culminação e o clímax de toda a obra da redenção, pela qual Ele salva Seu povo, o Filho manifesta Sua perfeita obediência, Seu infinito amor pelos pecadores e Seu poder sobre o príncipe deste mundo. Essa obediên-cia, esse amor e esse poder redundam em glória para si mesmo. E também o faz a gratidão da multidão salva pela dádiva da salvação eterna”.303 O desafio de Deus para nós não é para nos tornarmos irracionais ou ignorantes, antes é para que submetamos a nossa inteligência à Palavra. Aqui não se pede ne-nhum sacrifício lógico-racional, antes o que se requer, é a humildade para reconhe-cer a nossa limitação diante da majestosa sabedoria de Deus (Rm 11.33-36), exerci-tando deste modo, por graça, a humanamente louca sabedoria de Deus em nossa vida, reconhecendo a nossa suficiência não em nossa inteligência ou valores, mas em Deus. Calvino (1509-1564) comenta que “O fato de que o Evangelho é aro-ma de morte para os ímpios não vem tanto de sua própria natureza, mas da própria perversidade humana. Ao determinar um caminho de salvação, ele elimina a confiança em quaisquer outros caminhos”.304 À frente: “Toda ver-dade proclamada referente a Cristo é completamente paradoxal pelo pris-ma do juízo humano. Entretanto, o nosso dever é prosseguir em nossa rota. Cristo não deve ser suprimido só porque para muitos ele não passa de pedra de ofensa e rocha de escândalo. Ao mesmo tempo que ele prova ser destru-ição para os ímpios, em contrapartida ele será sempre ressurreição para os fiéis”.305

C. Uma Visão Reformada do Mundo:

“Uma verdadeira visão cristã de mundo começa com a convicção de que o próprio Deus falou nas Escrituras. (...) As Escrituras, portanto, são o modelo no qual devemos testar todas as outras declarações da verdade. A menos que esse conceito básico domine nossa perspectiva em toda a vida, não po-

êrtios, Vidas e Doutirnas dos Filósofos Ilustres, 2ª ed., Brasília, DF.: Universidade de Brasília, 1977, X.139. 302

J. Guhrt, Ofensa: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. III, p. 312. 303

William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004 (Jo 17.1), p. 753. 304

João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 1.16), p. 58. 305

João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 6.1), p. 201-202.

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demos legitimamente declarar termos adotado a visão cristã do mundo” –

John MacArthur Jr.306

Já demonstramos nestas anotações que não há neutralidade curricular. Pois bem, quero avançar um pouco mais e dizer que também não há neutralidade exis-tencial. Neutralidade pressupõe autonomia; o que de fato não temos. Estaremos sempre percebendo a realidade a partir de nossos pressupostos e, também, sob a influência do “clima” de opinião prevalecente ou que nos fascina. Assim, por meio da junção e adaptações de diversos paradigmas, vamos construíndo a nossa cosmovi-são.307 Esta cosmovisão que pode nos atender perfeitamente no campo teórico, precisará sempre ser revista à luz de nossa vivência empírica. O valor de uma teoria não pode ser apenas apriorístico e abstrato,308 deve, antes, ser pragmático. Como vimos, a cosmovisão Reformada, com sua ênfase na centralidade e sufici-ência das Escrituras para nos orientar em todas as nossas necessidades, é mais do que um sistema teológico, é, sobretudo, uma maneira teocêntrica de ver, interpretar e atuar na história tendo os olhos direcionados para a glória de Deus.309 A filosofia Reformada como todo e qualquer sistema de pensamento e valores, não é neutra. Antes, parte da própria Escritura tendo como pressuposto a suficiência da Revelação para a interpretação e análise de toda realidade. Nesta tarefa ela luta contra os ído-los do pensamento que surgem em cada cultura e em todas as épocas. Um ídolo chama outro ídolo, tendo sempre como ponto de partida o desejo humano de auto-suficiência. Contrariamente, o pensamento Reformado reafirma como ponto de par-tida o Deus soberano e transcendente que Se revela na Escritura e, que somente a partir desta compreensão podemos compreender a chamada realidade e atuar de forma criativa para a glória de Deus e o bem estar da humanidade. A convicção da direção de Deus sobre a história e sobre a nossa vida em particular não se opõe à oração, à vida devocional. Desta forma, a Teologia Reformada sustenta uma fé que, por graça, ultrapassa em muito os limites de nossa racionalidade, mas, também, é uma fé operante que crê que somos os instrumentos ordinários de Deus para cons-truir, transformar e aperfeiçoar a cultura.310

306

John MacArthur Jr, Adotando a Autoridade e a Suficiência das Escrituras: In: John MacArthur Jr., et. al. eds. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã de mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 25. 307

“Um paradigma é uma maneira habitual de pensar. Em um sentido, toda cosmovisão é composta de muitos pequenos paradigmas. Uma cosmovisão, em outros termos, é uma co-leção de paradigmas” (Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 21). 308

Cf. Hans J. Morgenthau, A Política Entre as Nações: a luta pelo poder e pela paz, Brasília, DF/São Paulo: Editora Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Instituto de Pesqui-sas de Relações Internacionais, 2003, p. 3. 309

Do mesmo modo, diz J.D. Douglas: “O Calvinismo era mais do que um credo; era uma filo-sofia compreensiva que abrangia toda a vida” (J.D. Douglas, A Contribuição do Calvinismo na Escócia: In: W. Stanford Reid, ed. Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental, São Paulo: Casa Edi-tora Presbiteriana, 1990, p. 290). 310

“Essa é uma das maneiras pelas quais Deus manifesta a Sua soberania. Não há conflito entre a soberania de Deus e a oração, pois foi o soberano Deus que decidiu realizar Sua o-bra neste mundo por meio de homens e mulheres que oram. Longe de serem contraditórias,

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Na compreensão Reformada, não há isolamento ou pedantismo, antes, a certeza de que Deus se vale de diversos saberes, dos quais Ele é Senhor, para ampliar o nosso conhecimento redundando isto na melhoria de nossa vida individual e social, glorificando o Seu nome em nossa obediência. Por isso, podemos nos valer de to-dos os recursos que nos ajudem a melhor entender a realidade. Downs ilustra bem esta questão:

“Uma visão de mundo cristã vê validade tanto na Ciência como na Teologia, reconhecendo que ambas são necessárias. Quando propria-mente entendidas, não são contraditórias em sua natureza, mas apresen-tam uma descrição mais completa da realidade do que pode ser alcan-çada quando somente as Ciências Sociais ou a Teologia são consideradas exclusivamente”.311

O Cristianismo – conforme entende o Calvinista312 –, não é uma forma de acomo-dação na cultura, antes de formação e de transformação por meio de uma mudança de perspectiva da realidade, que redundará necessariamente numa mudança nos cânones de comportamento, alterando sensivelmente as suas agendas e praxes. Portanto, a nossa fé tem compromissos existenciais inevitáveis. Ser Reformado não é apenas um status nominal vazio de sentido, antes reflete a nossa fé em atos de formação e transformação. Portanto, é urgentemente necessário que não nos deixemos seduzir pelo fascínio da cultura pagã que nos cerca. A força da igreja está na Palavra de Deus. Um tipo de afirmação muito comum é a de que devemos adequar a Palavra a cultura. Este quase senso comum termina por sacrificar as verdades ensinadas na Palavra condi-cionando-as ao que é considerado certo em cada época e cultura. Nada mais distan-te da verdade: a cultura é que deve ser transformada à luz da Palavra. Não é a cultu-ra que deve julgar a Palavra, antes esta, por ser a Palavra suficiente de Deus, é que deve instruir, corrigir, e quando necessário, transformar a cultura. A palavra de Deus é que deve ser o aferidor do que é verdadeiro, visto ser ela a verdade.313 Portanto, por motivos óbvios, “o cativeiro cultural da igreja é sempre um risco”.314

ambas trabalham juntas” (D.M. Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: Vol. 1), p. 37). 311

Perry G. Downs, Introdução à Educação Cristã: Ensino e Crescimento, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 14. 312

Ver: H. Richard Niebuhr, Cristo e Cultura, São Paulo: Paz e Terra, 1967, p. 223ss. 313

“A Bíblia é adaptada à cultura e à sociedade quando, na verdade, deveria julgá-las” (Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 281).“Ao vermos as Escrituras serem destruídas pela infiltra-ção e pela acomodação teológica, assim como pela infiltração e pela acomodação cultu-ral, teremos coragem, como cristãos conservadores, de demarcar o divisor de águas?” (Francis A. Schaeffer, Ibidem., p. 286) “A cultura deve ser constantemente julgada pela Bíblia em vez de a Bíblia ser distorcida para se conformar à cultura ao seu redor” (Francis A. Schaef-fer, Ibidem., p. 278). 314

R. Albert Mohler Jr., Pregar com a cultura em mente: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 64.

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O fato é que não importa o quanto nos julguemos fortes e imbatíveis; se nos afas-tarmos da Palavra nos enamorando das agendas e praxes contrárias à Palavra, tombaremos como Sansão diante de Dalila.315 Abraham Kuyper (1837-1920) interpretando o pensamento reformado, diz:

“Calvino abomina a religião limitada ao gabinete, à cela ou à igreja. Com o salmista, ele invoca o céu e a terra, invoca todas as pessoas e na-ções a dar glória a Deus. “Deus está presente em toda vida com a influência de seu poder oni-presente e Todo-Poderoso e nenhuma esfera da vida humana é concebi-da na qual a religião não sustente suas exigências para que Deus seja lou-vado, para que as ordenanças de Deus sejam observadas, e que todo la-bora seja impregnado com sua ora em fervente e contínua oração”.316

Todavia, neste estado de existência, nenhuma cultura é ou será perfeita; haverá sempre, em maior ou menor grau o estigma do pecado. A cultura não pode estar a-cima daqueles que a formam e a preservam. Somos pecadores; o produto de nossas mãos, conscientes ou não, sempre expressará esta nossa condição. Por isso, não há neutralidade cultural. A cultura expressa a nossa carência de Deus, as nossas angústias, frustrações e fugas.317 A cultura, muitas vezes, em seu desejo de auto-referência revela a sua escravidão, perdendo a dimensão do transcendente, limitan-do-se de forma reducionista à esta vida. O calvinismo, ciente de nossa própria limitação, consiste numa busca constante de fidelidade a Deus conforme os ditames de Sua Palavra. A transformação cultural é apenas um resultado daqueles que têm os olhos firmados na Palavra, um coração prazerosamente submisso a Deus e um comprometimento existencial no mundo, no qual vive e atua para a glória de Deus. Tawney interpreta corretamente: “Para o Calvinista, o mundo está ordenado para manifestar a majestade de Deus, e o dever do cristão é viver para tal fim”.318 Com estes princípios o Calvinismo in-fluenciou as artes,319 a política,320 a ciência,321 a economia,322 a literatura323 e ou-

315

Quanto à interessante analogia feita entre Dalila e a Cultura Moderna, ver: Roger Ellsworth, San-são e a Sedução da Cultura. In: Fé Para Hoje, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, nº 1, 1999. (Versão Online). 316

Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 62-63. 317

Veja-se: Henry H. Van Til, O Conceito Calvinista de Cultura, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 29-30. 318

R.H. Tawney, A Religião e o Surgimento do Capitalismo, São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 115. 319

Vd. Paul Romane Musculus, La Prière des Mains: L’Église Réformée et L’Art, Paris: Editions “Je Sers”, 1938, passim; Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 149-177; John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 322-327. 320

J.J. Rousseau, no Contrato Social, assim se referiu a Calvino: “Os que consideram Calvino somente um teólogo não conhecem bem a extensão de seu gênio. A redação de nossos sábios editos, da qual participou ativamente, honra-o tanto quanto sua Instituição. Qualquer

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tros diversos setores da cultura.324 A Palavra de Deus oferece-nos o escopo de nosso pensar e agir. Por meio dela poderemos ter uma real visão de Deus, de nós mesmos e do mundo. Deste modo, a cosmovisão Reformada é uma visão que se esforça por interpretar a chamada reali-dade pela ótica das Escrituras. Sem as Escrituras permanecemos míopes para dis-tinguir as particularidades do real, tendo uma epistemologia desfocalizada. Calvino usa de uma figura que continua atual: “Exatamente como se dá com pessoas idosas, ou enfermas de olhos, e quantos quer que sofram de visão embaça-da, se puseres diante deles até mui vistoso volume, ainda que reconheçam ser algo escrito, mal poderão, contudo, ajuntar duas palavras; ajudadas, po-rém, pela interposição de lentes, começarão a ler de forma mais distinta. As-sim a Escritura, coletando-nos na mente conhecimento de Deus de outra sor-te confuso, dissipada a escuridão, mostra-nos em diáfana clareza o Deus verdadeiro”.325 A força prática da teologia reformada não está simplesmente em seu vigor e ca-pacidade de influenciar intelectualmente os homens, mas no que tem produzido na vida de milhões de pessoas, conduzindo-as, em submissão ao Espírito, à fidelidade bíblica e a uma ética que se paute pelas Escrituras. A grande contribuição do Calvi-nismo não se restringe aos manuais das mais variadas áreas do saber, mas, esten-de-se à integralidade da vida dos discípulos de Cristo que seguem esta perspectiva. Calvino, com sua vida e ensinamentos, contribuiu para forjar um tipo novo de ho-mem: “O reformado”,326 que vive no tempo, a plenitude do seu tempo para a glória de Deus!

que seja a revolução que o tempo possa trazer a nosso culto, enquanto o amor à pátria e à liberdade não se extinguir entre nós, jamais a memória desse grande homem deixará de ser abençoada” (J.J. Rousseau, Do Contrato Social, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XXIV), 1973, II.7. p. 64). Vd. John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunida-de cristã, p. 337-344; Quentin Skinner, As Fundações do Pensamento Moderno, São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1996, p. 465ss.; H.H. Meeter, La Iglesia e El Estado, 3ª ed. Grand Rapids, Michigan: TELL., [s.d.], p. 93ss. “O Estado [segundo Calvino] não é, pois, um mal necessário, mas um instrumento da providência divina” (André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 369); André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, passim. 321

Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 117-147. 322

Vd. W. Fred Graham, The Constructive Revolutionary: John Calvin & His Socio-Economic Impact, Richimond, Virginia: John Knox Press, 1971, p.65ss.; John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma ma-neira de ser a comunidade cristã, p. 344-346; André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, passim 323

John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 328-330. 324

Vd. W. Stanford Reid, ed. Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, passim. 325

João Calvino, As Institutas, I.6.1. 326

Cf. Émile G. Léonard, Histoire Générale du Protestantisme, Paris: La Réformation, 1961, Vol. I, p. 307; Ricardo Cerni, Historia del Protestantismo, 2ª ed. Corregida, Edinburgh: El Estandarte de la Verdad, 1995, p. 64-65.

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O grande objetivo dos Reformadores era preparar homens e mulheres, que, obe-dientes a Deus, O servissem por meio do aperfeiçoamento e emprego de suas habi-lidades, procurando em todas as esferas da sua existência glorificar a Deus, reali-zando assim o propósito de sua criação. Por isso, dentro da visão Reformada-Puritana, “O currículo incluía tanto a teologia como as artes e ciências, tanto a Bíblia como os clássicos”.327

A Educação Cristã dentro de perspectiva Reformada começa por um apego in-condicional ao Deus da Palavra que nos instrui e nos capacita a viver para a Sua Glória desempenhando o nosso papel na sociedade, seja em que nível for, apresen-tando o fruto de nosso labor como uma oferenda a Deus que nos criou e nos susten-ta. Este é o homem que visamos, pela graça, preparar. Glória somente a Deus.

Maringá, 5 de novembro de 2010. Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

327

Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 180.