(Verbum Domini, Exortação Apostólica Pós-Sinodal, Papa Bento XVI, 30 de setembro de 2010)

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    EXORTAO APOSTLICAPS-SINODAL

    VERBUM DOMINI

    DO SANTO PADREBENTO XVI

    AO EPISCOPADO, AO CLEROS PESSOAS CONSAGRADAS

    E AOS FIIS LEIGOSSOBRE

    A PALAVRA DE DEUSNA VIDA E NA MISSO DA IGREJA

    NDICE

    Introduo [1]

    Para que a nossa alegria seja perfeita [2]Da Dei Verbum ao Snodo sobre a Palavra de Deus [3]O Snodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus [4]O Prlogo do Evangelho de Joo por guia [5]

    I PARTEVERBUM DEI

    O Deus que fala

    Deus em dilogo [6]Analogia da Palavra de Deus [7]Dimenso csmica da Palavra [8]A criao do homem [9]O realismo da Palavra [10]Cristologia da Palavra [11-13]Dimenso escatolgica da Palavra de Deus [14]A Palavra de Deus e o Esprito Santo [15-16]

    Tradio e Escritura [17-18]Sagrada Escritura, inspirao e verdade [19]Deus Pai, fonte e origem da Palavra [20-21]

    A resposta do homem a Deus que fala

    Chamados a entrar na Aliana com Deus [22]Deus escuta o homem e responde s suas perguntas [23]Dialogar com Deus atravs das suas palavras [24]A Palavra de Deus e a f [25]O pecado como no escuta da Palavra de Deus [26]

    Maria Mater Verbi Dei e Mater fidei [27-28]

    A hermenutica da Sagrada Escritura na Igreja

    A Igreja, lugar originrio da hermenutica da Bblia [29-30]

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    A alma da sagrada teologia [31]Desenvolvimento da investigao bblica e Magistrio eclesial [32-33]A hermenutica bblica conciliar: uma indicao a acolher [34]O perigo do dualismo e a hermenutica secularizada [35]F e razo na abordagem da Escritura [36]Sentido literal e sentido espiritual [37]A necessria superao da letra [38]A unidade intrnseca da Bblia [39]A relao entre Antigo e Novo Testamento [40-41]As pginas obscuras da Bblia [42]Cristos e judeus, relativamente s Sagradas Escrituras [43]A interpretao fundamentalista da Sagrada Escritura [44]Dilogo entre Pastores, telogos e exegetas [45]Bblia e ecumenismo [46]Consequncias sobre a organizao dos estudos teolgicos [47]Os Santos e a interpretao da Escritura [48-49]

    II PARTE

    VERBUM IN ECCLESIA

    A palavra de Deus e a Igreja

    A Igreja acolhe a Palavra [50]Contemporaneidade de Cristo na vida da Igreja [51]

    Liturgia, lugar privilegiado da palavra de Deus

    A Palavra de Deus na sagrada Liturgia [52]Sagrada Escritura e Sacramentos [53]Palavra de Deus e Eucaristia [54-55]A sacramentalidade da Palavra [56]A Sagrada Escritura e o Leccionrio [57]Proclamao da Palavra e ministrio do leitorado [58]A importncia da homilia [59]Convenincia de um Directrio homiltico [60]Palavra de Deus, Reconciliao e Uno dos Doentes [61]Palavra de Deus e Liturgia das Horas [62]Palavra de Deus e Cerimonial das Bnos [63]Sugestes e propostas concretas para a animao litrgica [64]a) Celebraes da Palavra de Deus [65]

    b) A Palavra e o silncio [66]c) Proclamao solene da Palavra de Deus [67]d) A Palavra de Deus no templo cristo [68]e) Exclusividade dos textos bblicos na liturgia [69]f) Canto litrgico biblicamente inspirado [70]g) Particular ateno aos cegos e aos surdos [71]

    A palavra de Deus na vida eclesial

    Encontrar a Palavra de Deus na Sagrada Escritura [72]A animao bblica da pastoral [73]

    Dimenso bblica da catequese [74]Formao bblica dos cristos [75]A Sagrada Escritura nos grandes encontros eclesiais [76]Palavra de Deus e vocaes [77]a) Palavra de Deus e Ministros Ordenados [78-81]

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    b) Palavra de Deus e candidatos s Ordens Sacras [82]c) Palavra de Deus e vida consagrada [83]d) Palavra de Deus e fiis leigos [84]e) Palavra de Deus, matrimnio e famlia [85]Leitura orante da Sagrada Escritura e lectio divina [86-87]Palavra de Deus e orao mariana [88]Palavra de Deus e Terra Santa [89]

    III PARTEVERBUM MUNDO

    A misso da Igreja: anunciar a palavra de Deus ao mundo

    A Palavra que sai do Pai e volta para o Pai [90]Anunciar ao mundo o Logos da Esperana [91]Da Palavra de Deus deriva a misso da Igreja [92]A Palavra e o Reino de Deus [93]Todos os baptizados responsveis do anncio [94]A necessidade da missio ad gentes [95]

    Anncio e nova evangelizao [96]Palavra de Deus e testemunho cristo [97-98]

    Palavra de Deus e compromisso no mundo

    Servir Jesus nos seus irmos mais pequeninos (Mt25, 40) [99]Palavra de Deus e compromisso na sociedade pela justia [100-101]Anncio da Palavra de Deus, reconciliao e paz entre os povos [102]A Palavra de Deus e a caridade activa [103]Anncio da Palavra de Deus e os jovens [104]Anncio da Palavra de Deus e os migrantes [105]Anncio da Palavra de Deus e os doentes [106]Anncio da Palavra de Deus e os pobres [107]Palavra de Deus e defesa da criao [108]

    Palavra de Deus e culturas

    O valor da cultura para a vida do homem [109]A Bblia como grande cdigo para as culturas [110]O conhecimento da Bblia nas escolas e universidades [111]A Sagrada Escritura nas diversas expresses artsticas [112]Palavra de Deus e meios de comunicao social [113]Bblia e inculturao [114]Tradues e difuso da Bblia [115]A Palavra de Deus supera os limites das culturas [116]

    Palavra de Deus e dilogo inter-religioso

    O valor do dilogo inter-religioso [117]Dilogo entre cristos e muulmanos [118]Dilogo com as outras religies [119]Dilogo e liberdade religiosa [120]

    Concluso

    A palavra definitiva de Deus [121]Nova evangelizao e nova escuta [122]

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    A Palavra e a alegria [123]Mater Verbi et Mater laetitiae [124]

    INTRODUO

    1. A palavra do senhor permanece eternamente. E esta a palavra do Evangelho que vos foi

    anunciada (1 Pd1, 25; cf.Is 40, 8). Com esta citao da Primeira Carta de So Pedro, queretoma as palavras do profeta Isaas, vemo-nos colocados diante do mistrio de Deus que Secomunica a Si mesmo por meio do dom da sua Palavra. Esta Palavra, que permaneceeternamente, entrou no tempo. Deus pronunciou a sua Palavra eterna de modo humano; o seuVerbo fez-Se carne (Jo 1, 14). Esta a boa nova. Este o anncio que atravessa os sculos,tendo chegado at aos nossos dias. A XII Assembleia Geral Ordinria do Snodo dos Bispos,que se efectuou no Vaticano de 5 a 26 de Outubro de 2008, teve como temaA Palavra de

    Deus na vida e na misso da Igreja. Foi uma experincia profunda de encontro com Cristo,Verbo do Pai, que est presente onde dois ou trs se encontram reunidos em seu nome (cf. Mt18, 20). Com esta Exortao apostlica ps-sinodal, acolho de bom grado o pedido que mefizeram os Padres de dar a conhecer a todo o Povo de Deus a riqueza surgida naquela reunio

    vaticana e as indicaes emanadas do trabalho comum.[1] Nesta linha, pretendo retomar tudoo que foi elaborado pelo Snodo, tendo em conta os documentos apresentados: osLineamenta,oInstrumentum laboris , os Relatrios ante epost disceptationem e os textos das intervenes,tanto os que foram lidos na sala como os apresentados in scriptis, os Relatrios dos CrculosMenores e os seus debates, a Mensagem final ao Povo de Deus e sobretudo algumas propostasespecficas (Propositiones), que os Padres consideraram de particular relevncia. Desejoassim indicar algumas linhas fundamentais para uma redescoberta, na vida da Igreja, daPalavra divina, fonte de constante renovao, com a esperana de que a mesma se torne cadavez mais o corao de toda a actividade eclesial.

    Para que a nossa alegria seja perfeita

    2. Quero, antes de mais nada, recordar a beleza e o fascnio do renovado encontro com oSenhor Jesus que se experimentou nos dias da assembleia sinodal. Por isso, fazendo-me ecodos Padres, dirijo-me a todos os fiis com as palavras de So Joo na sua primeira carta: Nsvos anunciamos a vida eterna, que estava no Pai e que nos foi manifestada o que vimos eouvimos, isso vos anunciamos, para que tambm vs tenhais comunho connosco. Quanto nossa comunho, ela com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo (1 Jo 1, 2-3). O Apstolofala-nos de ouvir, ver, tocar e contemplar(cf. 1 Jo 1, 1) o Verbo da Vida, j que a Vida mesmase manifestou em Cristo. E ns, chamados comunho com Deus e entre ns, devemos seranunciadores deste dom. Nesta perspectiva querigmtica, a assembleia sinodal foi um

    testemunho para a Igreja e para o mundo de como belo o encontro com a Palavra de Deus nacomunho eclesial. Portanto, exorto todos os fiis a redescobrirem o encontro pessoal ecomunitrio com Cristo, Verbo da Vida que Se tornou visvel, a fazerem-se seus anunciadorespara que o dom da vida divina, a comunho, se dilate cada vez mais pelo mundo inteiro. Comefeito, participar na vida de Deus, Trindade de Amor, a alegria completa (cf. 1 Jo 1, 4). E dom e dever imprescindvel da Igreja comunicar a alegria que deriva do encontro com a Pessoade Cristo, Palavra de Deus presente no meio de ns. Num mundo que frequentemente senteDeus como suprfluo ou alheio, confessamos como Pedro que s Ele tem palavras de vidaeterna (Jo 6, 68). No existe prioridade maior do que esta: reabrir ao homem actual o acessoa Deus, a Deus que fala e nos comunica o seu amor para que tenhamos vida em abundncia(cf.Jo 10, 10).

    Da Dei Verbum ao Snodo sobre a Palavra de Deus

    3. Com a XII Assembleia Geral Ordinria do Snodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus,estamos conscientes de nos termos debruado de certo modo sobre o prprio corao da vida

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    crist, dando continuidade assembleia sinodal anterior sobre a Eucaristia como fonte e piceda vida e da misso da Igreja. De facto, a Igreja funda-se sobre a Palavra de Deus, nasce evive dela.[2] Ao longo de todos os sculos da sua histria, o Povo de Deus encontrou semprenela a sua fora, e tambm hoje a comunidade eclesial cresce na escuta, na celebrao e noestudo da Palavra de Deus. H que reconhecer que, nas ltimas dcadas, a vida eclesialaumentou a sua sensibilidade relativamente a este tema, com particular referncia Revelaocrist, Tradio viva e Sagrada Escritura. Pode-se afirmar que, a partir do pontificado doPapa Leo XIII, houve um crescendo de intervenes visando suscitar maior conscincia daimportncia da Palavra de Deus e dos estudos bblicos na vida da Igreja,[3] que teve o seuponto culminante no Conclio Vaticano II, de modo especial com a promulgao daConstituio dogmtica sobre a Revelao divinaDei Verbum. Esta representa um marcomilirio no caminho da Igreja. Os Padres Sinodais () reconhecem, com nimo agradecido,os grandes benefcios que este documento trouxe vida da Igreja a nvel exegtico, teolgico,espiritual, pastoral e ecumnico.[4] De modo particular cresceu, nestes anos, a conscincia dohorizonte trinitrio e histrico-salvfico da Revelao[5] em que se deve reconhecer JesusCristo como o mediador e a plenitude de toda a Revelao.[6] A Igreja confessa,incessantemente, a cada gerao que Ele, com toda a sua presena e manifestao da suapessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa

    ressurreio e, enfim, com o envio do Esprito de verdade, completa totalmente e confirmacom o testemunho divino a Revelao.[7]

    de conhecimento geral o grande impulso dado pela Constituio dogmticaDei Verbum redescoberta da Palavra de Deus na vida da Igreja, reflexo teolgica sobre a Revelaodivina e ao estudo da Sagrada Escritura. E numerosas foram tambm as intervenes doMagistrio eclesial sobre estas matrias nos ltimos quarenta anos.[8] A Igreja, ciente dacontinuidade do seu prprio caminho sob a guia do Esprito Santo, com a celebrao desteSnodo sentiu-se chamada a aprofundar ainda mais o tema da Palavra divina, seja paraverificar a realizao das indicaes conciliares seja para enfrentar os novos desafios que otempo presente coloca a quem acredita em Cristo.

    O Snodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus

    4. Na XII Assembleia sinodal, Pastores vindos de todo o mundo congregaram-se ao redor daPalavra de Deus, colocando simbolicamente no centro da Assembleia o texto da Bblia, pararedescobrirem algo que nos arriscamos de dar por adquirido no dia-a-dia: o facto de que Deusale e responda s nossas perguntas.[9] Juntos escutmos e celebrmos a Palavra do Senhor.

    Narrmos uns aos outros aquilo que o Senhor est a realizar no Povo de Deus, partilhandoesperanas e preocupaes. Tudo isto nos tornou conscientes de que s podemos aprofundar anossa relao com a Palavra de Deus dentro do ns da Igreja, na escuta e no acolhimentorecproco. Daqui nasce a gratido pelos testemunhos sobre a vida eclesial nas diversas partes

    do mundo, surgidos nas vrias intervenes feitas na sala. Ao mesmo tempo foi comovedortambm ouvir os Delegados Fraternos, que aceitaram o convite para participar no encontrosinodal. Penso de modo particular na meditao que nos ofereceu Sua Santidade Bartolomeu I,Patriarca Ecumnico de Constantinopla, pela qual os Padres sinodais exprimiram profundagratido.[10] Alm disso, pela primeira vez, o Snodo dos Bispos quis convidar tambm umRabino, que nos deu um testemunho precioso sobre as Sagradas Escrituras judaicas; estas soprecisamente uma parte das nossas Sagradas Escrituras.[11]

    Pudemos assim constatar, com alegria e gratido, que na Igreja h um Pentecostes tambmhoje, ou seja, que ela fala em muitas lnguas; e isto no s no sentido externo de estarem nelarepresentadas todas as grandes lnguas do mundo mas tambm, e mais profundamente, no

    sentido de que nela esto presentes os variados modos da experincia de Deus e do mundo, ariqueza das culturas, e s assim se manifesta a vastido da existncia humana e, a partir dela, avastido da Palavra de Deus.[12] Alm disso, pudemos constatar tambm um Pentecostesainda a caminho; vrios povos aguardam ainda que seja anunciada a Palavra de Deus na sua

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    prpria lngua e cultura.

    Como no recordar tambm que, durante todo o Snodo, nos acompanhou o testemunho doApstolo Paulo? De facto, foi providencial que a XII Assembleia Geral Ordinria se tenharealizado precisamente dentro do ano dedicado figura do grande Apstolo das Naes, porocasio do bimilenrio do seu nascimento. A sua existncia caracterizou-se completamentepelo zelo em difundir a Palavra de Deus. Como no sentir vibrar no nosso corao as palavrascom que se referia sua misso de anunciador da Palavra divina: Fao tudo por causa do

    Evangelho (1 Cor9, 23); pois eu escreve na Carta aos Romanos no me envergonho doEvangelho, o qual poder de Deus para salvao de todo o crente (1, 16)?! Quandoreflectimos sobre a Palavra de Deus na vida e na misso da Igreja, no podemos deixar depensar em So Paulo e na sua vida entregue difuso do anncio da salvao de Cristo a todosos povos.

    O Prlogo do Evangelho de Joo por guia

    5. Desejo, atravs desta Exortao apostlica, que as concluses do Snodo influameficazmente sobre a vida da Igreja: sobre a relao pessoal com as Sagradas Escrituras, sobre asua interpretao na liturgia e na catequese bem como na investigao cientfica, para que aBblia no permanea uma Palavra do passado, mas uma Palavra viva e actual. Com esteobjectivo, pretendo apresentar e aprofundar os resultados do Snodo, tomando por refernciaconstante o Prlogo do Evangelho de Joo (Jo 1, 1-18), que nos d a conhecer o fundamentoda nossa vida: o Verbo, que desde o princpio est junto de Deus, fez-Se carne e veio habitarentre ns (cf.Jo 1, 14). Trata-se de um texto admirvel, que d uma sntese de toda a f crist.A partir da sua experincia pessoal do encontro e seguimento de Cristo, Joo, que a tradioidentifica com o discpulo que Jesus amava (Jo 13, 23; 20, 2; 21, 7.20), chegou a estacerteza ntima: Jesus a Sabedoria de Deus encarnada, a sua Palavra eterna feita homemmortal.[13] Aquele que viu e acreditou (Jo 20, 8) nos ajude tambm a apoiar a cabeasobre o peito de Cristo (cf.Jo 13, 25), donde brotou sangue e gua (cf.Jo 19, 34), smbolos

    dos Sacramentos da Igreja. Seguindo o exemplo do Apstolo Joo e dos outros autoresinspirados, deixemo-nos guiar pelo Esprito Santo para podermos amar cada vez mais aPalavra de Deus.

    I PARTE

    VERBUM DEI

    No princpio j existia o Verbo,

    e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus ()

    e o Verbo fez-Se carne (Jo 1, 1.14)

    O Deus que fala

    Deus em dilogo

    6. A novidade da revelao bblica consiste no facto de Deus Se dar a conhecer no dilogo,que deseja ter connosco.[14] A Constituio dogmticaDei Verbum tinha exposto estarealidade, reconhecendo que Deus invisvel na riqueza do seu amor fala aos homens como aamigos e convive com eles, para os convidar e admitir comunho com Ele.[15] Mas aindano teramos compreendido suficientemente a mensagem do Prlogo de So Joo, se nosdetivssemos na constatao de que Deus Se comunica amorosamente a ns. Na realidade, oVerbo de Deus, por meio do Qual tudo comeou a existir (Jo 1, 3) e que Se fez carne (Jo

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    1, 14), o mesmo que j existia no princpio (Jo 1, 1). Se aqui podemos descobrir umaaluso ao incio do livro do Gnesis (cf. Gn 1, 1), na realidade vemo-nos colocados diante deum princpio de carcter absoluto e que nos narra a vida ntima de Deus. O Prlogo joaninoapresenta-nos o facto de que oLogos existe realmente desde sempre, e desde sempre Elemesmo Deus. Por conseguinte, nunca houve em Deus um tempo em que no existisse o

    Logos. O Verbo preexiste criao. Portanto, no corao da vida divina, h a comunho, h odom absoluto. Deus amor (1 Jo 4, 16) dir noutro lugar o mesmo Apstolo, indicandoassim a imagem crist de Deus e tambm a consequente imagem do homem e do seucaminho.[16] Deus d-Se-nos a conhecer como mistrio de amor infinito, no qual, desde todaa eternidade, o Pai exprime a sua Palavra no Esprito Santo. Por isso o Verbo, que desde oprincpio est junto de Deus e Deus, revela-nos o prprio Deus no dilogo de amor entre asPessoas divinas e convida-nos a participar nele. Portanto, feitos imagem e semelhana deDeus amor, s nos podemos compreender a ns mesmos no acolhimento do Verbo e nadocilidade obra do Esprito Santo. luz da revelao feita pelo Verbo divino que seesclarece definitivamente o enigma da condio humana.

    Analogia da Palavra de Deus

    7. A partir destas consideraes que brotam da meditao sobre o mistrio cristo expresso noPrlogo de Joo, necessrio agora pr em evidncia aquilo que foi afirmado pelos Padressinodais a propsito das diversas modalidades com que usamos a expresso Palavra deDeus. Falou-se, justamente, de uma sinfonia da Palavra, de uma Palavra nica que se exprimede diversos modos: um cntico a diversas vozes.[17] A este propsito, os Padres sinodaisfalaram de um uso analgico da linguagem humana na referncia Palavra de Deus. Comefeito, se esta expresso, por um lado, diz respeito comunicao que Deus faz de Si mesmo,por outro assume significados diversos que devem ser atentamente considerados e relacionadosentre si, tanto do ponto de vista da reflexo teolgica como do uso pastoral. Como nos mostraclaramente o Prlogo de Joo, oLogos indica originariamente o Verbo eterno, ou seja, o Filhounignito, gerado pelo Pai antes de todos os sculos e consubstancial a Ele: o Verbo estava

    unto de Deus, o Verbo era Deus. Mas este mesmo Verbo afirma So Joo fez-Se carne(Jo 1, 14); por isso Jesus Cristo, nascido da Virgem Maria, realmente o Verbo de Deus que Sefez consubstancial a ns. Assim a expresso Palavra de Deus acaba por indicar aqui apessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai feito homem.

    Alm disso, se no centro da revelao divina est o acontecimento de Cristo, precisoreconhecer que a prpria criao, o liber naturae, constitui tambm essencialmente partedesta sinfonia a diversas vozes na qual Se exprime o nico Verbo. Do mesmo modoconfessamos que Deus comunicou a sua Palavra na histria da salvao, fez ouvir a sua voz;com a fora do seu Esprito, falou pelos profetas.[18] Por conseguinte, a Palavra divinaexprime-se ao longo de toda a histria da salvao e tem a sua plenitude no mistrio da

    encarnao, morte e ressurreio do Filho de Deus. E Palavra de Deus ainda aquela pregadapelos Apstolos, em obedincia ao mandato de Jesus Ressuscitado: Ide pelo mundo inteiro eanunciai a Boa Nova a toda a criatura (Mc 16, 15). Assim a Palavra de Deus transmitida naTradio viva da Igreja. Enfim, Palavra de Deus, atestada e divinamente inspirada, a SagradaEscritura, Antigo e Novo Testamento. Tudo isto nos faz compreender por que motivo, naIgreja, veneramos extremamente as Sagradas Escrituras, apesar da f crist no ser umareligio do Livro: o cristianismo a religio da Palavra de Deus, no de uma palavraescrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo.[19] Por conseguinte a Sagrada Escrituradeve ser proclamada, escutada, lida, acolhida e vivida como Palavra de Deus, no sulco daTradio Apostlica de que inseparvel.[20]

    Como afirmaram os Padres sinodais, encontramo-nos realmente perante um uso analgico daexpresso Palavra de Deus, e disto mesmo devemos estar conscientes. Por isso, necessrioque os fiis sejam melhor formados para identificar os seus diversos significados ecompreender o seu sentido unitrio. E do ponto de vista teolgico preciso tambm

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    aprofundar a articulao dos vrios significados desta expresso, para que resplandea melhora unidade do plano divino e, neste, a centralidade da pessoa de Cristo.[21]

    Dimenso csmica da Palavra

    8. Conscientes do significado fundamental da Palavra de Deus referida ao Verbo eterno deDeus feito carne, nico salvador e mediador entre Deus e o homem,[22] e escutando estaPalavra, somos levados pela revelao bblica a reconhecer que ela o fundamento de toda a

    realidade. O Prlogo de So Joo afirma, referindo-se aoLogos divino, que tudo comeou aexistir por meio dEle, e, sem Ele, nada foi criado (Jo 1, 3); de igual modo na Carta aosColossenses afirma-se, aludindo a Cristo primognito de toda a criao (1, 15), que tudofoi criado por Ele e para Ele (1, 16). E o autor da Carta aos Hebreus recorda que pela fconhecemos que o mundo foi formado pela palavra de Deus, de tal modo que o que se v noprovm das coisas sensveis (11, 3).

    Este anncio , para ns, uma palavra libertadora. De facto, as afirmaes da SagradaEscritura indicam que tudo o que existe no fruto de um acaso irracional, mas querido porDeus, est dentro do seu desgnio, em cujo centro se encontra a oferta de participar na vidadivina em Cristo. A criao nasce doLogos e traz indelvel o sinal daRazo criadora queregula e guia. Esta feliz certeza cantada nos Salmos: Pela palavra do Senhor foram feitos oscus, pelo sopro da sua boca todos os seus exrcitos (Sl 33, 6); e ainda: Ele falou e as coisasexistiram. Ele mandou e as coisas subsistiram (Sl 33, 9). A realidade inteira exprime estemistrio: Os cus proclamam a glria de Deus, o firmamento anuncia as obras das suas mos(Sl 19, 2). a prpria Sagrada Escritura que nos convida a conhecer o Criador, observando acriao (cf. Sb 13, 5;Rm 1, 19-20). A tradio do pensamento cristo soube aprofundar esteelemento-chave da sinfonia da Palavra, quando por exemplo So Boaventura que,

    juntamente com a grande tradio dos Padres Gregos, v todas as possibilidades da criao noLogos[23] afirma que cada criatura palavra de Deus, porque proclama Deus.[24] AConstituio dogmticaDei Verbum sintetizara este facto dizendo que Deus, criando e

    conservando todas as coisas pelo Verbo (cf.Jo 1, 3), oferece aos homens um testemunhoperene de Si mesmo na criao.[25]

    A criao do homem

    9. Deste modo, a realidade nasce da Palavra, como creatura Verbi, e tudo chamado a servir aPalavra. A criao lugar onde se desenvolve toda a histria do amor entre Deus e a suacriatura; por conseguinte, o movente de tudo a salvao do homem. Contemplando ouniverso na perspectiva da histria da salvao, somos levados a descobrir a posio nica esingular que ocupa o homem na criao: Deus criou o homem sua imagem, criou-o imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher (Gn 1, 27). Isto permite-nos reconhecer

    plenamente os dons preciosos recebidos do Criador: o valor do prprio corpo, o dom da razo,da liberdade e da conscincia. Nisto encontramos tambm tudo aquilo que a tradio filosficachama lei natural.[26] Com efeito, todo o ser humano que atinge a conscincia e aresponsabilidade experimenta um chamamento interior para realizar o bem[27] e,consequentemente, evitar o mal. Sobre este princpio, como recorda So Toms de Aquino,fundam-se tambm todos os outros preceitos da lei natural.[28] A escuta da Palavra de Deusleva-nos em primeiro lugar a prezar a exigncia de viver segundo esta lei escrita no corao(cf.Rm 2, 15; 7, 23).[29] Depois, Jesus Cristo d aos homens a Lei nova, a Lei do Evangelho,que assume e realiza de modo sublime a lei natural, libertando-nos da lei do pecado, por causado qual, come diz So Paulo, querer o bem est ao meu alcance, mas realiz-lo no (Rm 7,18), e d aos homens, por meio da graa, a participao na vida divina e a capacidade de

    superar o egosmo.[30]

    O realismo da Palavra

    10. Quem conhece a Palavra divina conhece plenamente tambm o significado de cada

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    criatura. De facto, se todas as coisas tm a sua subsistncia nAquele que existe antes detodas as coisas (Cl 1, 17), ento quem constri a prpria vida sobre a sua Palavra edifica demodo verdadeiramente slido e duradouro. A Palavra de Deus impele-nos a mudar o nossoconceito de realismo: realista quem reconhece o fundamento de tudo no Verbo de Deus.[31]Isto revela-se particularmente necessrio no nosso tempo, em que manifestam o seu carcterefmero muitas coisas com as quais se contava para construir a vida e sobre as quais se eratentado a colocar a prpria esperana. Mais cedo ou mais tarde, o ter, o prazer e o podermanifestam-se incapazes de realizar as aspiraes mais profundas do corao do homem. Defacto, para edificar a prpria vida, ele tem necessidade de alicerces slidos, que permaneammesmo quando falham as certezas humanas. Na realidade, j que para sempre, Senhor, comoos cus, subsiste a vossa palavra e a fidelidade do Senhor atravessa as geraes (Sl 119,89-90), quem constri sobre esta palavra, edifica a casa da prpria vida sobre a rocha (cf.Mt7, 24). Que o nosso corao possa dizer a Deus cada dia: Sois o meu abrigo, o meu escudo, navossa palavra pus a minha esperana (Sl 119, 114), e possamos agir cada dia confiando noSenhor Jesus como So Pedro: Porque Tu o dizes, lanarei as redes (Lc 5, 5).Cristologia da Palavra

    11. A partir deste olhar sobre a realidade como obra da Santssima Trindade, atravs do Verbodivino, podemos compreender as palavras do autor da Carta aos Hebreus: Tendo Deus faladooutrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitas maneiras, pelos Profetas, agora falou-nosnestes ltimos tempos pelo Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo e por Quem igualmentecriou o mundo (Hb 1, 1-2). estupendo observar como todo o Antigo Testamento se nosapresenta j como histria na qual Deus comunica a sua Palavra: de facto, tendo estabelecidoaliana com Abrao (cf. Gn 15, 18), e com o povo de Israel por meio de Moiss (cf. Ex 24, 8),revelou-Se ao Povo escolhido como nico Deus verdadeiro e vivo, em palavras e obras, de talmodo que Israel pudesse conhecer por experincia os planos de Deus sobre os homens, oscompreendesse cada vez mais profunda e claramente, ouvindo o mesmo Deus falar por bocados profetas, e os difundisse mais amplamente entre os homens (cf. Sl 21, 28-29; 95, 1-3;Is 2,

    1-4;Jr3, 17).[32]

    Esta condescendncia de Deus realiza-se, de modo insupervel, na encarnao do Verbo. APalavra eterna que se exprime na criao e comunica na histria da salvao, tornou-se emCristo um homem, nascido de mulher (Gl 4, 4). Aqui a Palavra no se exprimeprimariamente num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante daprpria pessoa de Jesus. A sua histria, nica e singular, a palavra definitiva que Deus diz humanidade. Daqui se compreende por que motivo, no incio do ser cristo, no h umadeciso tica ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoaque d vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo.[33] A renovao desteencontro e desta conscincia gera no corao dos fiis a maravilha pela iniciativa divina, que o

    homem, com as suas prprias capacidades racionais e imaginao, jamais teria podidoconceber. Trata-se de uma novidade inaudita e humanamente inconcebvel: O Verbo fez-Secarne e habitou entre ns (Jo 1, 14a). Estas expresses no indicam uma figura retrica masuma experincia vivida. Quem a refere So Joo, testemunha ocular: Ns vimos a suaglria, glria que Lhe vem do Pai, como Filho nico cheio de graa e de verdade (Jo 1, 14b).A f apostlica testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de ns. A Palavra divinaexprime-se verdadeiramente empalavras humanas.

    12. A tradio patrstica e medieval, contemplando esta Cristologia da Palavra, utilizou umasugestiva expresso: O Verbo abreviou-Se.[34] Na sua traduo grega do Antigo Testamento,os Padres da Igreja encontravam uma frase do profeta Isaas que o prprio So Paulo cita

    para mostrar como os caminhos novos de Deus estivessem j preanunciados no AntigoTestamento. Eis a frase: O Senhor compendiou a sua Palavra, abreviou--a (Is 10, 23;Rm 9,28). () O prprio Filho a Palavra, oLogos: a Palavra eterna fez-Se pequena; to pequenaque cabe numa manjedoura. Fez--Se criana, para que a Palavra possa ser compreendida por

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    ns.[35] Desde ento a Palavra j no apenas audvel, no possui somente uma voz; agora aPalavra tem um rosto, que por isso mesmo podemos ver: Jesus de Nazar.[36]

    Repassando a narrao dos Evangelhos, notamos como a prpria humanidade de Jesus semanifesta em toda a sua singularidade precisamente quando referida Palavra de Deus. Defacto, na sua humanidade perfeita, Ele realiza a vontade do Pai a todo o momento; Jesus ouvea sua voz e obedece-Lhe com todo o seu ser; conhece o Pai e observa a sua palavra (cf.Jo 8,55); comunica-nos as coisas do Pai (cf.Jo 12, 50); dei-lhes as palavras que Tu Me deste (Jo

    17, 8). Assim Jesus mostra que oLogos divino que Se d a ns, mas tambm o novo Ado,o homem verdadeiro, aquele que cumpre em cada momento no a prpria vontade mas a doPai. Ele crescia em sabedoria, em estatura e em graa, diante de Deus e dos homens (Lc 2,52). De maneira perfeita, escuta, realiza em Si mesmo e comunica-nos a Palavra divina (cf.Lc5, 1).

    Por fim, a misso de Jesus cumpre-se no Mistrio Pascal: aqui vemo-nos colocados diante daPalavra da cruz (cf. 1 Cor1, 18). O Verbo emudece, torna-se silncio de morte, porque Sedisse at calar, nada retendo do que nos devia comunicar. Sugestivamente os Padres daIgreja, ao contemplarem este mistrio, colocam nos lbios da Me de Deus esta expresso:Est sem palavra a Palavra do Pai, que fez toda a criatura que fala; sem vida esto os olhosapagados dAquele a cuja palavra e aceno se move tudo o que tem vida. [37] Aquiverdadeiramente comunica-se-nos o amor maior, aquele que d a vida pelos prprios amigos(cf.Jo 15, 13).

    Neste grande mistrio, Jesus manifesta-Se como a Palavra da Nova e Eterna Aliana: aliberdade de Deus e a liberdade do homem encontraram--se definitivamente na sua carnecrucificada, num pacto indissolvel, vlido para sempre. O prprio Jesus, na ltima Ceia, aoinstituir a Eucaristia falara de Nova e Eterna Aliana, estabelecida no seu sangue derramado(cf.Mt26, 28;Mc 14, 24;Lc 22, 20), mostrando-Se como o verdadeiro Cordeiro imolado, noqual se realiza a definitiva libertao da escravido.[38]

    No mistrio refulgente da ressurreio, este silncio da Palavra manifesta-se com o seusignificado autntico e definitivo. Cristo, Palavra de Deus encarnada, crucificada eressuscitada, Senhor de todas as coisas; o Vencedor, o Pantocrator, e assim todas as coisasficam recapituladas nEle para sempre (cf. Ef1, 10). Por isso, Cristo a luz do mundo (Jo 8,12), aquela luz que resplandece nas trevas (Jo 1, 5) mas as trevas no a acolheram (cf.Jo 1,5). Aqui se compreende plenamente o significado do Salmo 119 quando a designa farol paraos meus passos, e luz para os meus caminhos (v. 105); esta luz decisiva na nossa estrada precisamente a Palavra que ressuscita. Desde o incio, os cristos tiveram conscincia de que,em Cristo, a Palavra de Deus est presente como Pessoa. A Palavra de Deus a luzverdadeira, de que o homem tem necessidade. Sim, na ressurreio, o Filho de Deus surgiu

    como Luz do mundo. Agora, vivendo com Ele e para Ele, podemos viver na luz.

    13. Chegados por assim dizer ao corao da Cristologia da Palavra, importante sublinhar aunidade do desgnio divino no Verbo encarnado: por isso que o Novo Testamento nosapresenta o Mistrio Pascal de acordo com as Sagradas Escrituras, como a sua ntimarealizao. So Paulo, na Primeira Carta aos Corntios, afirma que Jesus Cristo morreu pelosnossos pecados, segundo as Escrituras (15, 3) e que ressuscitou no terceiro dia segundo asEscrituras (15, 4). Deste modo o Apstolo pe o acontecimento da morte e ressurreio doSenhor em relao com a histria da Antiga Aliana de Deus com o seu povo. Mais ainda,faz-nos compreender que esta histria recebe de tal acontecimento a sua lgica e o seuverdadeiro significado. No Mistrio Pascal, realizam-se as palavras da Escritura, isto , esta

    morte realizada segundo as Escrituras um acontecimento que contm em si mesmo umlogos, uma lgica: a morte de Cristo testemunha que a Palavra de Deus Se fez totalmentecarne, histria humana.[39] Tambm a ressurreio de Jesus acontece ao terceiro dia,segundo as Escrituras: dado que a corrupo, segundo a interpretao judaica, comeava

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    depois do terceiro dia, a palavra da Escritura cumpre-se em Jesus, que ressuscita antes decomear a corrupo. Deste modo So Paulo, transmitindo fielmente o ensinamento dosApstolos (cf. 1 Cor15, 3), sublinha que a vitria de Cristo sobre a morte se verifica atravsda fora criadora da Palavra de Deus. Esta fora divina proporciona esperana e alegria: tal ,em definitivo, o contedo libertador da revelao pascal. Na Pscoa, Deus revela-Se a Simesmo juntamente com a fora do Amor trinitrio que aniquila as foras destruidoras do mal eda morte.

    Assim, recordando estes elementos essenciais da nossa f, podemos contemplar a unidadeprofunda entre criao e nova criao e de toda a histria da salvao em Cristo. Recorrendo auma imagem, podemos comparar o universo com uma partitura, um livro diria GalileuGalilei considerando-o como a obra de um Autor que Se exprime atravs da sinfonia dacriao. Dentro desta sinfonia, a determinado ponto aparece aquilo que, em linguagemmusical, se chama um solo, um tema confiado a um s instrumento ou a uma s voz; e toimportante que dele depende o significado da obra inteira. Este solo Jesus (). O Filho doHomem compendia em Si mesmo a terra e o cu, a criao e o Criador, a carne e o Esprito. o centro do universo e da histria, porque nEle se unem sem se confundir o Autor e a suaobra.[40]

    Dimenso escatolgica da Palavra de Deus

    14. Por meio de tudo isto, a Igreja exprime a conscincia de se encontrar, em Jesus Cristo, coma Palavra definitiva de Deus; Ele o Primeiro e o ltimo (Ap 1, 17). Deu criao e histria o seu sentido definitivo; por isso somos chamados a viver o tempo, a habitar na criaode Deus dentro deste ritmo escatolgico da Palavra. Portanto, a economia crist, como novae definitiva aliana, jamais passar, e no se h-de esperar nenhuma outra revelao pblicaantes da gloriosa manifestao de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1 Tm 6, 14; Tt2, 13).[41] Defacto, como recordaram os Padres durante o Snodo, a especificidade do cristianismomanifesta-se no acontecimento que Jesus Cristo, pice da Revelao, cumprimento das

    promessas de Deus e mediador do encontro entre o homem e Deus. Ele, que nos deu aconhecer Deus (Jo 1, 18), a Palavra nica e definitiva confiada humanidade.[42] SoJoo da Cruz exprimiu esta verdade de modo admirvel: Ao dar-nos, como nos deu, o seuFilho, que a sua Palavra e no tem outra Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de umas vez nesta Palavra nica e j nada mais tem para dizer (). Porque o que antes disseparcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que o seu Filho. E porisso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma viso ou revelao, no scometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por no pr os olhos totalmente em Cristo ebuscar fora dEle outra realidade ou novidade.[43]

    Consequentemente, o Snodo recomendou que se ajudassem os fiis a bem distinguir a

    Palavra de Deus das revelaes privadas,[44] cujo papel no () completar aRevelao definitiva de Cristo, mas ajudar a viv-la mais plenamente, numa determinadapoca histrica.[45] O valor das revelaes privadas essencialmente diverso do da nicarevelao pblica: esta exige a nossa f; de facto nela, por meio de palavras humanas e damediao da comunidade viva da Igreja, fala-nos o prprio Deus. O critrio da verdade de umarevelao privada a sua orientao para o prprio Cristo. Quando aquela nos afasta dEle,certamente no vem do Esprito Santo, que nos guia no mbito do Evangelho e no fora dele.A revelao privada uma ajuda para a f, e manifesta-se como credvel precisamente porqueorienta para a nica revelao pblica. Por isso, a aprovao eclesistica de uma revelaoprivada indica essencialmente que a respectiva mensagem no contm nada que contradiga af e os bons costumes; lcito torn-la pblica, e os fiis so autorizados a prestar-lhe de forma

    prudente a sua adeso. Uma revelao privada pode introduzir novas acentuaes, fazer surgirnovas formas de piedade ou aprofundar antigas. Pode revestir-se de um certo carcterproftico (cf. 1 Ts 5, 19-21) e ser uma vlida ajuda para compreender e viver melhor oEvangelho na hora actual; por isso no se deve desprez-la. uma ajuda, que oferecida, mas

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    da qual no obrigatrio fazer uso. Em todo o caso, deve tratar-se de um alimento para a f, aesperana e a caridade, que so o caminho permanente da salvao para todos.[46]

    A Palavra de Deus e o Esprito Santo

    15. Depois de nos termos detido sobre a Palavra ltima e definitiva de Deus ao mundo, necessrio recordar agora a misso do Esprito Santo relativamente Palavra divina. De facto,no possvel uma compreenso autntica da revelao crist fora da aco do Parclito. Isto

    deve-se ao facto de a comunicao que Deus faz de Si mesmo implicar sempre a relao entreo Filho e o Esprito Santo, a Quem Ireneu de Lio realmente chama as duas mos doPai.[47] Alis, a Sagrada Escritura que nos indica a presena do Esprito Santo na histriada salvao e, particularmente, na vida de Jesus, o Qual concebido no seio da Virgem Mariapor obra do Esprito Santo (cf.Mt1, 18;Lc 1, 35); ao iniciar a sua misso pblica nas margensdo Jordo, v-O descer sobre Si em forma de pomba (cf.Mt3, 16); neste mesmo Esprito,Jesus age, fala e exulta (cf.Lc 10, 21); no Esprito que Se oferece a Si mesmo (cf.Hb 9, 14).Quando est para terminar a sua misso segundo narra o evangelista So Joo , o prprioJesus relaciona claramente o dom da sua vida com o envio do Esprito aos Seus (cf. Jo 16, 7).Depois Jesus ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da paixo, derrama o Esprito (cf.Jo20, 22), tornando os discpulos participantes da sua prpria misso (cf.Jo 20, 21). O EspritoSanto ensinar aos discpulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo disse (cf. Jo14, 26), porque ser Ele, o Esprito de Verdade (cf.Jo 15, 26), a guiar os discpulos para aVerdade inteira (cf.Jo 16, 13). Por fim, como se l nosActos dos Apstolos, o Esprito descesobre os Doze reunidos em orao com Maria no dia de Pentecostes (cf. 2, 1-4) e anima-os namisso de anunciar a Boa Nova a todos os povos.[48]

    Por conseguinte, a Palavra de Deus exprime-se em palavras humanas graas obra do EspritoSanto. A misso do Filho e a do Esprito Santo so inseparveis e constituem uma nicaeconomia da salvao. O mesmo Esprito, que actua na encarnao do Verbo no seio daVirgem Maria, guia Jesus ao longo de toda a sua misso e prometido aos discpulos. O mesmo

    Esprito que falou por meio dos profetas, sustenta e inspira a Igreja no dever de anunciar aPalavra de Deus e na pregao dos Apstolos; e, enfim, este Esprito que inspira os autoresdas Sagradas Escrituras.

    16. Conscientes deste horizonte pneumatolgico, os Padres sinodais quiseram lembrar aimportncia da aco do Esprito Santo na vida da Igreja e no corao dos fiis relativamente Sagrada Escritura:[49] sem a aco eficaz do Esprito da Verdade (Jo 14, 16), no se podemcompreender as palavras do Senhor. Como recorda ainda Santo Ireneu: Aqueles que noparticipam do Esprito no recebem do peito da sua me [a Igreja] o alimento da vida; nadarecebem da fonte mais pura que brota do corpo de Cristo.[50] Tal como a Palavra de Deusvem at ns no corpo de Cristo, no corpo eucarstico e no corpo das Escrituras por meio do

    Esprito Santo, assim tambm s pode ser acolhida e compreendida verdadeiramente graas aomesmo Esprito.

    Os grandes escritores da tradio crist so unnimes ao considerar o papel do Esprito Santona relao que os fiis devem ter com as Escrituras. So Joo Crisstomo afirma que aEscritura tem necessidade da revelao do Esprito, a fim de que, descobrindo o verdadeirosentido das coisas que nela se encerram, disso mesmo tiremos abundante proveito.[51]Tambm So Jernimo est firmemente convencido de que no podemos chegar acompreender a Escritura sem a ajuda do Esprito Santo que a inspirou.[52] Depois, SoGregrio Magno sublinha, de modo sugestivo, a obra do mesmo Esprito na formao e nainterpretao da Bblia: Ele mesmo criou as palavras dos Testamentos Sagrados, Ele mesmo

    as desvendou.[53] Ricardo de So Vctor recorda que so necessrios olhos de pomba,iluminados e instrudos pelo Esprito, para compreender o texto sagrado.[54]

    Desejaria ainda sublinhar como significativo o testemunho a respeito da relao entre oEsprito Santo e a Escritura que encontramos nos textos litrgicos, onde a Palavra de Deus

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    proclamada, escutada e explicada aos fiis. o caso de antigas oraes que, em forma deepiclese, invocam o Esprito antes da proclamao das leituras: Mandai o vosso EspritoSanto Parclito s nossas almas e fazei-nos compreender as Escrituras por Ele inspiradas; econcedei-me interpret-las de maneira digna, para que os fiis aqui reunidos delas tiremproveito. De igual modo, encontramos oraes que, no fim da homilia, novamente invocamde Deus o dom do Esprito sobre os fiis: Deus salvador (), ns Vos pedimos por este povo:Mandai sobre ele o Esprito Santo; o Senhor Jesus venha visit-lo, fale mente de todos e abraos coraes f e conduza para Vs as nossas almas, Deus das Misericrdias.[55] Por tudoisto bem podemos compreender que no possvel alcanar o sentido da Palavra, se no seacolhe a aco do Parclito na Igreja e nos coraes dos fiis.

    Tradio e Escritura

    17. Reafirmando o vnculo profundo entre o Esprito Santo e a Palavra de Deus, lanamostambm as bases para compreender o sentido e o valor decisivo da Tradio viva e dasSagradas Escrituras na Igreja. De facto, uma vez que Deus amou de tal modo o mundo quelhe deu o seu Filho nico (Jo 3, 16), a Palavra divina, pronunciada no tempo, deu-Se eentregou-Se Igreja definitivamente para que o anncio da salvao possa ser eficazmentecomunicado em todos os tempos e lugares. Como nos recorda a Constituio dogmticaDeiVerbum, o prprio Jesus Cristo mandou aos Apstolos que pregassem a todos, como fonte detoda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, o Evangelho prometido antes pelosprofetas e por Ele cumprido e promulgado pessoalmente, comunicando-lhes assim os donsdivinos. Isto foi realizado com fidelidade tanto pelos Apstolos que, na sua pregao oral,exemplos e instituies, transmitiram aquilo que tinham recebido dos lbios, trato e obras deCristo, e o que tinham aprendido por inspirao do Esprito Santo, como por aqueles Apstolose vares apostlicos que, sob a inspirao do Esprito Santo, escreveram a mensagem dasalvao.[56]

    Alm disso o Conclio Vaticano II recorda que esta Tradio de origem apostlica realidade

    viva e dinmica: ela progride na Igreja sob a assistncia do Esprito Santo; no no sentido demudar na sua verdade, que perene, mas progride a percepo tanto das coisas como daspalavras transmitidas, com a contemplao e o estudo, com a inteligncia dada por umaexperincia espiritual mais profunda, e por meio da pregao daqueles que, com a sucessodo episcopado, receberam o carisma da verdade.[57]

    A Tradio viva essencial para que a Igreja, no tempo, possa crescer na compreenso daverdade revelada nas Escrituras; de facto, mediante a mesma Tradio, conhece a Igreja ocnon inteiro dos livros sagrados, e a prpria Sagrada Escritura entende-se nela maisprofundamente e torna-se incessantemente operante.[58] Em ltima anlise, a Tradio vivada Igreja que nos faz compreender adequadamente a Sagrada Escritura como Palavra de Deus.

    Embora o Verbo de Deus preceda e exceda a Sagrada Escritura, todavia, enquanto inspiradapor Deus, esta contm a Palavra divina (cf. 2 Tm 3, 16) de modo totalmente singular.[59]

    18. Disto conclui-se como importante que o Povo de Deus seja educado e formadoclaramente para se abeirar das Sagradas Escrituras na sua relao com a Tradio viva daIgreja, reconhecendo nelas a prpria Palavra de Deus. muito importante, do ponto de vistada vida espiritual, fazer crescer esta atitude nos fiis. A este respeito pode ajudar a recordaode uma analogia desenvolvida pelos Padres da Igreja entre o Verbo de Deus que Se faz carnee a Palavra que se faz livro.[60] A Constituio dogmticaDei Verbum , ao recolher estatradio antiga segundo a qual o corpo do Filho a Escritura que nos foi transmitida comoafirma Santo Ambrsio[61] , declara: As palavras de Deus, com efeito, expressas por

    lnguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes linguagem humana, como outrora oVerbo do eterno Pai Se assemelhou aos homens tomando a carne da fraqueza humana.[62]Vista assim, a Sagrada Escritura, apesar da multiplicidade das suas formas e contedos,aparece-nos como uma realidade unitria. De facto, atravs de todas as palavras da Sagrada

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    Escritura, Deus no diz mais que uma s palavra, o seu Verbo nico, em quem totalmente Sediz (cf.Hb 1, 1-3),[63] como claramente afirmava j Santo Agostinho: Lembrai-vos de que odiscurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras um s, e um s o Verbo que Sefaz ouvir na boca de todos os escritores sagrados.[64]

    Em ltima anlise, atravs da obra do Esprito Santo e sob a guia do Magistrio, a Igrejatransmite a todas as geraes aquilo que foi revelado em Cristo. A Igreja vive na certeza deque o seu Senhor, tendo falado outrora, no cessa de comunicar hoje a sua Palavra na Tradio

    viva da Igreja e na Sagrada Escritura. De facto, a Palavra de Deus d-se a ns na SagradaEscritura, enquanto testemunho inspirado da revelao, que, juntamente com a Tradio vivada Igreja, constitui a regra suprema da f.[65]

    Sagrada Escritura, inspirao e verdade

    19. Um conceito-chave para receber o texto sagrado como Palavra de Deus em palavrashumanas , sem dvida, o de inspirao. Tambm aqui se pode sugerir uma analogia: assimcomo o Verbo de Deus Se fez carne por obra do Esprito Santo no seio da Virgem Maria, assimtambm a Sagrada Escritura nasce do seio da Igreja por obra do mesmo Esprito. A SagradaEscritura Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspirao do Esprito de Deus.[66]Deste modo se reconhece toda a importncia do autor humano que escreveu os textosinspirados e, ao mesmo tempo, do prprio Deus como verdadeiro autor.

    Daqui se v com toda a clareza lembraram os Padres sinodais como o tema da inspirao decisivo para uma adequada abordagem das Escrituras e para a sua correcta hermenutica, [67]que deve, por sua vez, ser feita no mesmo Esprito em que foi escrita. [68] Quando esmoreceem ns a conscincia da inspirao, corre-se o risco de ler a Escritura como objecto decuriosidade histrica e no como obra do Esprito Santo, na qual podemos ouvir a prpria vozdo Senhor e conhecer a sua presena na histria.

    Alm disso, os Padres sinodais puseram em evidncia como ligado com o tema da inspiraoesteja tambm o tema da verdade das Escrituras.[69] Por isso, um aprofundamento dadinmica da inspirao levar, sem dvida, tambm a uma maior compreenso da verdadecontida nos livros sagrados. Como indica a doutrina conciliar sobre o tema, os livros inspiradosensinam a verdade: E assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagigrafosdeve ser tido como afirmado pelo Esprito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que oslivros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossasalvao, quis que fosse consi-gnada nas sagradas Letras. Por isso, toda a Escri-tura divinamente inspirada e til para ensinar, para corrigir, para instruir na justia: para que ohomem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as boas obras (2 Tm 3, 16-17gr.).[70]

    No h dvida que a reflexo teolgica sempre considerou inspirao e verdade como doisconceitos-chave para uma hermenutica eclesial das Sagradas Escrituras. No entanto, deve-sereconhecer a necessidade actual de um condigno aprofundamento destas realidades, para seresponder melhor s exigncias relativas interpretao dos textos sagrados segundo a suanatureza. Nesta perspectiva, desejo vivamente que a investigao possa avanar neste campo ed fruto para a cincia bblica e para a vida espiritual dos fiis.

    Deus Pai, fonte e origem da Palavra

    20. A economia da revelao tem o seu incio e a sua origem em Deus Pai. Pela sua palavra

    foram feitos os cus, pelo sopro da sua boca todos os seus exrcitos (Sl 33, 6). Ele que fazresplandecer o conhecimento da glria de Deus, que se reflecte na face de Cristo (2 Cor4,6; cf.Mt16, 17;Lc 9, 29).No Filho, Logos feito carne (cf.Jo 1, 14), que veio para cumprir a vontade dAquele que O

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    enviou (cf.Jo 4, 34), Deus, fonte da revelao, manifesta-Se como Pai e leva perfeio aeducao divina do homem, j anteriormente animada pela palavra dos profetas e pelasmaravilhas realizadas na criao e na histria do seu povo e de todos os homens. O apogeu darevelao de Deus Pai oferecido pelo Filho com o dom do Parclito (cf.Jo 14, 16), Espritodo Pai e do Filho, que nos guiar para a verdade total (Jo 16, 13).

    Deste modo, todas as promessas de Deus se tornam sim em Jesus Cristo (cf. 2 Cor1, 20).Abre-se assim, para o homem, a possibilidade de percorrer o caminho que o conduz ao Pai (cf.

    Jo 14, 6), para que no fim Deus seja tudo em todos (1 Cor15, 28).

    21. Como mostra a cruz de Cristo, Deus fala tambm por meio do seu silncio. O silncio deDeus, a experincia da distncia do Omnipotente e Pai etapa decisiva no caminho terreno doFilho de Deus, Palavra encarnada. Suspenso no madeiro da cruz, o sofrimento que Lhe causoutal silncio f-Lo lamentar: Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste? (Mc 15, 34;Mt27, 46). Avanando na obedincia at ao ltimo respiro, na obscuridade da morte, Jesusinvocou o Pai. A Ele Se entregou no momento da passagem, atravs da morte, para a vidaeterna: Pai, nas tuas mos, entrego o meu esprito (Lc 23, 46).Esta experincia de Jesus sintomtica da situao do homem que, depois de ter escutado ereconhecido a Palavra de Deus, deve confrontar-se tambm com o seu silncio. umaexperincia vivida por muitos Santos e msticos, e que ainda hoje faz parte do caminho demuitos fiis. O silncio de Deus prolonga as suas palavras anteriores. Nestes momentosobscuros, Ele fala no mistrio do seu silncio. Portanto, na dinmica da revelao crist, osilncio aparece como uma expresso importante da Palavra de Deus.

    A resposta do homem a Deus que fala

    Chamados a entrar na Aliana com Deus

    22. Ao sublinhar a pluralidade de formas da Palavra, pudemos ver atravs de quantas

    modalidades Deus fala e vem ao encontro do homem, dando-Se a conhecer no dilogo. certoque o dilogo, como afirmaram os Padres sinodais, quando se refere Revelao comporta o

    primado da Palavra de Deus dirigida ao homem.[71] O mistrio da Aliana exprime estarelao entre Deus que chama atravs da sua Palavra e o homem que responde, sabendoclaramente que no se trata de um encontro entre dois contraentes iguais; aquilo quedesignamos por Antiga e Nova Aliana no um acto de entendimento entre duas partesiguais, mas puro dom de Deus. Por meio deste dom do seu amor, Ele, superando toda adistncia, torna--nos verdadeiramente seus parceiros, de modo a realizar o mistrio nupcialdo amor entre Cristo e a Igreja. Nesta perspectiva, todo o homem aparece como o destinatrioda Palavra, interpelado e chamado a entrar, por uma resposta livre, em tal dilogo de amor.

    Assim Deus torna cada um de ns capaz de escutar e responder Palavra divina. O homem criado na Palavra e vive nela; e no se pode compreender a si mesmo, se no se abre a estedilogo. A Palavra de Deus revela a natureza filial e relacional da nossa vida. Por graa, somosverdadeiramente chamados a configurar-nos com Cristo, o Filho do Pai, e a ser transformadosnEle.

    Deus escuta o homem e responde s suas perguntas

    23. Neste dilogo com Deus, compreendemo-nos a ns mesmos e encontramos resposta paraas perguntas mais profundas que habitam no nosso corao. De facto, a Palavra de Deus nose contrape ao homem, nem mortifica os seus anseios verdadeiros; pelo contrrio, ilumina-os,

    purifica-os e realiza-os. Como importante, para o nosso tempo, descobrir que sDeusresponde sede que est no corao de cada homem! Infelizmente na nossa poca, sobretudono Ocidente, difundiu-se a ideia de que Deus alheio vida e aos problemas do homem; piorainda, de que a sua presena pode at ser uma ameaa autonomia humana. Na realidade,toda a economia da salvao mostra-nos que Deus fala e intervm na histria a favor do

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    homem e da sua salvao integral. Por conseguinte decisivo, do ponto de vista pastoral,apresentar a Palavra de Deus na sua capacidade de dialogar com os problemas que o homemdeve enfrentar na vida diria. Jesus apresenta-Se-nos precisamente como Aquele que veio paraque pudssemos ter a vida em abundncia (cf.Jo 10, 10). Por isso, devemos fazer todo oesforo para mostrar a Palavra de Deus precisamente como abertura aos prprios problemas,como resposta s prprias perguntas, uma dilatao dos prprios valores e, conjuntamente,uma satisfao das prprias aspiraes. A pastoral da Igreja deve ilustrar claramente comoDeus ouve a necessidade do homem e o seu apelo. So Boaventura afirma noBreviloquium:O fruto da Sagrada Escritura no um fruto qualquer, mas a plenitude da felicidade eterna.De facto, a Sagrada Escritura precisamente o livro no qual esto escritas palavras de vidaeterna, porque no s acreditamos mas tambm possumos a vida eterna, em que veremos,amaremos e sero realizados todos os nossos desejos.[72]

    Dialogar com Deus atravs das suas palavras

    24. A Palavra divina introduz cada um de ns no dilogo com o Senhor: o Deus que fala,ensina-nos como podemos falar com Ele. Espontaneamente o pensamento detm-se noLivrodos Salmos, onde Ele nos fornece as palavras com que podemos dirigir-nos a Ele, levar a nossavida para o colquio com Ele, transformando assim a prpria vida num movimento paraDeus.[73] De facto, nos Salmos, encontramos articulada toda a gama de sentimentos que ohomem pode ter na sua prpria existncia e que so sapientemente colocados diante de Deus;alegria e sofrimento, angstia e esperana, medo e perplexidade encontram l a sua expresso.E, juntamente com os Salmos, pensamos tambm em numerosos textos da Sagrada Escrituraque apresentam o homem a dirigir-se a Deus sob a forma de orao de intercesso (cf. Ex 33,12-16), de canto de jbilo pela vitria (cf. Ex 15), ou de lamento no desempenho da prpriamisso (cf.Jr20, 7-18). Deste modo, a palavra que o homem dirige a Deus torna-se tambmPalavra de Deus, como confirmao do carcter dialgico de toda a revelao crist,[74] e aexistncia inteira do homem torna-se um dilogo com Deus que fala e escuta, que chama edinamiza a nossa vida. Aqui a Palavra de Deus revela que toda a existncia do homem est sob

    o chamamento divino.[75]

    A Palavra de Deus e a f

    25. A Deus que Se revela devida a obedincia da f (Rm 16, 26; cf.Rm 1, 5; 2 Cor10,5-6); pela f, o homem entrega-se total e livremente a Deus oferecendo a Deus revelador oobsquio pleno da inteligncia e da vontade e prestando voluntrio assentimento suarevelao.[76] Com estas palavras, a Constituio dogmticaDei Verbum exprimiu de modoclaro a atitude do homem diante de Deus.A resposta prpria do homem a Deus, que fala, a. Isto coloca em evidncia que, para acolher a Revelao, o homem deve abrir a mente e o

    corao aco do Esprito Santo que lhe faz compreender a Palavra de Deus presente nas

    Sagradas Escrituras.[77] De facto, precisamente a pregao da Palavra divina que faz surgira f, pela qual aderimos de corao verdade que nos foi revelada e entregamos todo o nossoser a Cristo: A f vem da pregao, e a pregao pela palavra de Cristo (Rm 10, 17). Toda ahistria da salvao nos mostra progressivamente esta ligao ntima entre a Palavra de Deus ea f que se realiza no encontro com Cristo. De facto, com Ele a f toma a forma de encontrocom uma Pessoa qual se confia a prpria vida. Cristo Jesus continua hoje presente, nahistria, no seu corpo que a Igreja; por isso, o acto da nossa f um acto simultaneamentepessoal e eclesial.

    O pecado como no escuta da Palavra de Deus

    26. A Palavra de Deus revela inevitavelmente tambm a dramtica possibilidade que tem aliberdade do homem de subtrair-se a este dilogo de aliana com Deus, para o qual fomoscriados. De facto, a Palavra divina desvenda tambm o pecado que habita no corao dohomem. Muitas vezes encontramos, tanto no Antigo como no Novo Testamento, a descrio dopecado como no escuta da Palavra, como ruptura da Aliana e, consequentemente, como

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    fechar-se a Deus que chama comunho com Ele.[78] Com efeito, a Sagrada Escrituramostra-nos como o pecado do homem essencialmente desobedincia e no escuta.Precisamente a obedincia radical de Jesus at morte de Cruz (cf. Fl 2, 8) desmascaratotalmente este pecado. Na sua obedincia, realiza-se a Nova Aliana entre Deus e o homem e-nos concedida a possibilidade da reconciliao. De facto, Jesus foi mandado pelo Pai comovtima de expiao pelos nossos pecados e pelos do mundo inteiro (cf. 1 Jo 2, 2; 4, 10;Hb 7,27). Assim, -nos oferecida misericordiosamente a possibilidade da redeno e o incio de umavida nova em Cristo. Por isso, importante que os fiis sejam educados a reconhecer a raiz dopecado na no escuta da Palavra do Senhor e a acolher em Jesus, Verbo de Deus, o perdo quenos abre salvao.

    Maria Mater Verbi Dei e Mater fidei

    27. Os Padres sinodais declararam que o objectivo fundamental da XII Assembleia foirenovar a f da Igreja na Palavra de Deus; por isso necessrio olhar para uma pessoa emQuem a reciprocidade entre Palavra de Deus e f foi perfeita, ou seja, para a Virgem Maria,que, com o seu sim Palavra da Aliana e sua misso, realiza perfeitamente a vocaodivina da humanidade.[79] A realidade humana, criada por meio do Verbo, encontra a suafigura perfeita precisamente na f obediente de Maria. Desde a Anunciao ao Pentecostes,vemo-La como mulher totalmente disponvel vontade de Deus. a Imaculada Conceio,Aquela que cheia de graa de Deus (cf.Lc 1, 28), incondicionalmente dcil Palavradivina (cf.Lc 1, 38). A sua f obediente face iniciativa de Deus plasma cada instante da suavida. Virgem escuta, vive em plena sintonia com a Palavra divina; conserva no seu coraoos acontecimentos do seu Filho, compondo-os por assim dizer num nico mosaico (cf.Lc 2,19.51).[80]

    No nosso tempo, preciso que os fiis sejam ajudados a descobrir melhor a ligao entre Mariade Nazar e a escuta crente da Palavra divina. Exorto tambm os estudiosos a aprofundaremainda mais a relao entre mariologia e teologia da Palavra. Da poder vir grande benefcio

    tanto para a vida espiritual como para os estudos teolgicos e bblicos. De facto, quando ainteligncia da f olha um tema luz de Maria, coloca-se no centro mais ntimo da verdadecrist. Na realidade, a encarnao do Verbo no pode ser pensada prescindindo da liberdadedesta jovem mulher que, com o seu assentimento, coopera de modo decisivo para a entrada doEterno no tempo. Ela a figura da Igreja escuta da Palavra de Deus que nela Se fez carne.Maria tambm smbolo da abertura a Deus e aos outros; escuta activa, que interioriza,assimila, na qual a Palavra se torna forma de vida.

    28. Nesta ocasio, desejo chamar a ateno para a familiaridade de Maria com a Palavra deDeus. Isto transparece com particular vigor noMagnificat. Aqui, em certa medida, v-se comoEla Se identifica com a Palavra, e nela entra; neste maravilhoso cntico de f, a Virgem exalta

    o Senhor com a sua prpria Palavra: OMagnificat um retrato, por assim dizer, da sua alma inteiramente tecido de fios da Sagrada Escritura, com fios tirados da Palavra de Deus.Desta maneira se manifesta que Ela Se sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus,dela sai e a ela volta com naturalidade. Fala e pensa com a Palavra de Deus; esta torna-sePalavra dEla, e a sua palavra nasce da Palavra de Deus. Alm disso, fica assim patente que osseus pensamentos esto em sintonia com os de Deus, que o dEla um querer juntamente comDeus. Vivendo intimamente permeada pela Palavra de Deus, Ela pde tornar-Se me daPalavra encarnada.[81]

    Alm disso, a referncia Me de Deus mostra-nos como o agir de Deus no mundo envolvesempre a nossa liberdade, porque, na f, a Palavra divina transforma-nos. Tambm a nossa

    aco apostlica e pastoral no poder jamais ser eficaz, se no aprendermos de Maria adeixar-nos plasmar pela aco de Deus em ns: A ateno devota e amorosa figura deMaria, como modelo e arqutipo da f da Igreja, de importncia capital para efectuartambm nos nossos dias uma mudana concreta de paradigma na relao da Igreja com a

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    Palavra, tanto na atitude de escuta orante como na generosidade do compromisso em prol damisso e do anncio.[82]

    Contemplando na Me de Deus uma vida modelada totalmente pela Palavra, descobrimo-nostambm ns chamados a entrar no mistrio da f, pela qual Cristo vem habitar na nossa vida.Como nos recorda Santo Ambrsio, cada cristo que cr, em certo sentido, concebe e gera emsi mesmo o Verbo de Deus: se h uma s Me de Cristo segundo a carne, segundo a f, porm,Cristo o fruto de todos.[83] Portanto, o que aconteceu em Maria pode voltar a acontecer em

    cada um de ns diariamente na escuta da Palavra e na celebrao dos Sacramentos.

    A hermenutica da Sagrada Escritura na Igreja

    A Igreja, lugar originrio da hermenutica da Bblia

    29. Outro grande tema surgido durante o Snodo, sobre o qual quero debruar-me agora, ainterpretao da Sagrada Escritura na Igreja. E precisamente a ligao intrnseca entrePalavra e f pe em evidncia que a autntica hermenutica da Bblia s pode ser feita na feclesial, que tem o seu paradigma no sim de Maria. A este respeito, So Boaventura afirmaque, sem a f, no h chave de acesso ao texto sagrado: Esta o conhecimento de Jesus

    Cristo, do qual tm origem, como de uma fonte, a segurana e a inteligncia de toda a SagradaEscritura. Por isso impossvel que algum possa entrar para a conhecer, se antes no tiver af infusa de Cristo que lanterna, porta e tambm fundamento de toda a Escritura.[84] E SoToms de Aquino, mencionando Santo Agostinho, insiste vigorosamente: A letra doEvangelho tambm mata, se faltar a graa interior da f que cura.[85]

    Isto permite-nos assinalar um critrio fundamental da hermenutica bblica: o lugar originrioda interpretao da Escritura a vida da Igreja. Esta afirmao no indica a refernciaeclesial como um critrio extrnseco ao qual se devem submeter os exegetas, mas umaexigncia da prpria realidade das Escrituras e do modo como se formaram ao longo do tempo.De facto, as tradies de f formavam o ambiente vital onde se inseriu a actividade literriados autores da Sagrada Escritura. Esta insero englobava tambm a participao na vidalitrgica e na actividade externa das comunidades, no seu mundo espiritual, na sua cultura enas vicissitudes do seu destino histrico. Por isso, de modo semelhante, a interpretao daSagrada Escritura exige a participao dos exegetas em toda a vida e em toda a f dacomunidade crente do seu tempo.[86] Por conseguinte, devendo a Sagrada Escritura ser lidae interpretada com o mesmo Esprito com que foi escrita,[87] preciso que os exegetas, ostelogos e todo o Povo de Deus se abeirem dela por aquilo que realmente : como Palavra deDeus que Se nos comunica atravs de palavras humanas (cf. 1 Ts 2, 13). Trata-se de um dadoconstante e implcito na prpria Bblia: Nenhuma profecia da Escritura de interpretaoparticular, porque jamais uma profecia foi proferida pela vontade dos homens. Inspirados pelo

    Esprito Santo que os homens santos falaram em nome de Deus (2 Pd1, 20-21). Alis, precisamente a f da Igreja que reconhece na Bblia a Palavra de Deus; como admiravelmentediz Santo Agostinho, no acreditaria no Evangelho se no me movesse a isso a autoridade daIgreja Catlica.[88] O Esprito Santo, que anima a vida da Igreja, que torna capaz deinterpretar autenticamente as Escrituras. A Bblia o livro da Igreja e, a partir da imannciadela na vida eclesial, brota tambm a sua verdadeira hermenutica.

    30. So Jernimo recorda que, sozinhos, nunca poderemos ler a Escritura. Encontramosdemasiadas portas fechadas e camos facilmente em erro. A Bblia foi escrita pelo Povo deDeus e para o Povo de Deus, sob a inspirao do Esprito Santo. Somente com o ns, isto ,nesta comunho com o Povo de Deus, podemos realmente entrar no ncleo da verdade que o

    prprio Deus nos quer dizer.[89] Aquele grande estudioso, para quem a ignorncia dasEscrituras ignorncia de Cristo,[90] afirma que o carcter eclesial da interpretao bblicano uma exigncia imposta do exterior; o Livro precisamente a voz do Povo de Deusperegrino, e s na f deste Povo que estamos, por assim dizer, na tonalidade justa paracompreender a Sagrada Escritura. Uma autntica interpretao da Bblia deve estar sempre em

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    harmnica concordncia com a f da Igreja Catlica. Jernimo escrevia assim a um sacerdote:Permanece firmemente apegado doutrina tradicional que te foi ensinada, para que possasexortar segundo a s doutrina e rebater aqueles que a contradizem.[91]

    Abordagens do texto sagrado que prescindam da f podem sugerir elementos interessantes aodeterem-se sobre a estrutura do texto e as suas formas; inevitavelmente, porm, tal tentativaseria apenas preliminar e estruturalmente incompleta. De facto, como foi afirmado pelaPontifcia Comisso Bblica, repercutindo um princpio compartilhado na hermenutica

    moderna, o justo conhecimento do texto bblico s acessvel a quem tem uma afinidade vitalcom aquilo de que fala o texto.[92] Tudo isto pe em relevo a relao entre a vida espiritual ea hermenutica da Escritura. De facto, com o crescimento da vida no Esprito, cresce tambmno leitor a compreenso das realidades de que fala o texto bblico.[93] Uma intensa everdadeira experincia eclesial no pode deixar de incrementar a inteligncia da f autntica arespeito da Palavra de Deus; e, vice-versa, a leitura na f das Escrituras faz crescer a prpriavida eclesial. Daqui podemos compreender de um modo novo a conhecida afirmao de SoGregrio Magno: As palavras divinas crescem juntamente com quem as l.[94] Assim, aescuta da Palavra de Deus introduz e incrementa a comunho eclesial com todos os quecaminham na f.

    A alma da sagrada teologia

    31. O estudo destes sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia:[95] estaafirmao da Constituio dogmticaDei Verbum foi-se-nos tornando ao longo destes anoscada vez mais familiar. Podemos dizer que o perodo sucessivo ao Conclio Vaticano II, no quese refere aos estudos teolgicos e exegticos, citou frequentemente esta frase como smbolo dorenovado interesse pela Sagrada Escritura. Tambm a XII Assembleia do Snodo dos Bispos sereferiu vrias vezes a esta conhecida afirmao, para indicar a relao entre investigaohistrica e hermenutica da f aplicadas ao texto sagrado. Nesta perspectiva, os Padresreconheceram, com alegria, o crescimento do estudo da Palavra de Deus na Igreja ao longo dos

    ltimos decnios e exprimiram um vivo agradecimento aos numerosos exegetas e telogosque, com a sua dedicao, empenho e competncia, deram e ainda do uma contribuioessencial para o aprofundamento do sentido das Escrituras, enfrentando os problemascomplexos que o nosso tempo coloca investigao bblica.[96] Expressaram sentimentos desincera gratido tambm aos membros da Pontifcia Comisso Bblica que se sucederamnestes ltimos anos e que, em estreita relao com a Congregao para a Doutrina da F,continuam a dar o seu qualificado contributo para enfrentar questes peculiares inerentes aoestudo da Sagrada Escritura. Alm disso, o Snodo sentiu a necessidade de se interrogar sobre oestado dos estudos bblicos actuais e sobre a sua relevncia no mbito teolgico. De facto, darelao fecunda entre exegese e teologia depende, em grande parte, a eficcia pastoral daaco da Igreja e da vida espiritual dos fiis. Por isso, considero importante retomar algumas

    reflexes surgidas no debate havido sobre este tema nos trabalhos do Snodo.

    Desenvolvimento da investigao bblica e Magistrio eclesial

    32. Em primeiro lugar, preciso reconhecer os benefcios que a exegese histrico-crtica e osoutros mtodos de anlise do texto, desenvolvidos em tempos mais recentes, trouxeram para avida da Igreja.[97] Segundo a viso catlica da Sagrada Escritura, a ateno a estes mtodos imprescindvel e est ligada ao realismo da encarnao: Esta necessidade a consequncia doprincpio cristo formulado no Evangelho de Joo 1, 14: Verbum caro factum est. O factohistrico uma dimenso constitutiva da f crist. A histria da salvao no uma mitologia,mas uma verdadeira histria e, por isso, deve-se estudar com os mtodos de uma investigao

    histrica sria.[98] Por isso, o estudo da Bblia exige o conhecimento e o uso apropriadodestes mtodos de pesquisa. Se verdade que esta sensibilidade no mbito dos estudos sedesenvolveu mais intensamente na poca moderna, embora no de igual modo por toda aparte, todavia na s tradio eclesial sempre houve amor pelo estudo da letra. Basta

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    recordar aqui a cultura monstica, qual em ltima anlise devemos o fundamento da culturaeuropeia: na sua raiz, est o interesse pela palavra. O desejo de Deus inclui o amor pela palavraem todas as suas dimenses: Visto que, na Palavra bblica, Deus caminha para ns e ns paraEle, preciso aprender a penetrar no segredo da lngua, compreend--la na sua estrutura e noseu modo de se exprimir. Assim, devido precisamente procura de Deus, tornam-seimportantes as cincias profanas que nos indicam as vias rumo lngua.[99]

    33. O Magistrio vivo da Igreja, ao qual compete o encargo de interpretar autenticamente a

    Palavra de Deus escrita ou contida na Tradio,[100] interveio com sapiente equilbriorelativamente justa posio a tomar face introduo dos novos mtodos de anlisehistrica. Refiro-me, de modo particular, s encclicas Providentissimus Deus do Papa LeoXIII eDivino afflante Spiritu do Papa Pio XII. O meu venervel predecessor Joo Paulo IIrecordou a importncia destes documentos para a exegese e a teologia, por ocasio dacelebrao do centenrio e cinquentenrio respectivamente da sua publicao.[101] Ainterveno do Papa Leo XIII teve o mrito de proteger a interpretao catlica da Bblia dosataques do racionalismo, sem contudo se refugiar num sentido espiritual separado da histria.No desprezava a crtica cientfica; desconfiava-se somente das opinies preconcebidas quepretendem fundar-se sobre a cincia mas, na realidade, fazem astuciosamente sair a cincia do

    seu campo.[102] Por sua vez, o Papa Pio XII encontrava-se perante os ataques dos adeptosduma exegese chamada mstica, que recusava qualquer abordagem cientfica. Com grandesensibilidade, a EncclicaDivino afflante Spiritu evitou que se desenvolvesse a ideia de umadicotomia entre a exegese cientfica para o uso apologtico e a interpretao espiritualreservada ao uso interno, afirmando, pelo contrrio, quer o alcance teolgico do sentidoliteral metodicamente definido, quer a pertena da determinao do sentido espiritual ()ao campo da cincia exegtica.[103] De tal modo ambos os documentos recusam a rupturaentre o humano e o divino, entre a pesquisa cientfica e a viso da f, entre o sentido literal e osentido espiritual.[104] Este equilbrio foi, sucessivamente, expresso no documento de 1993da Pontifcia Comisso Bblica: No seu trabalho de interpretao, os exegetas catlicos jamaisdevem esquecer que interpretam a Palavra de Deus. A sua tarefa no termina depois que

    distinguiram as fontes, definiram as formas ou explicaram os processos literrios. O objectivodo seu trabalho s est alcanado quando tiverem esclarecido o significado do texto bblicocomo Palavra actual de Deus.[105]

    A hermenutica bblica conciliar: uma indicao a acolher

    34. A partir deste horizonte, podem-se apreciar melhor os grandes princpios da interpretaoprprios da exegese catlica expressos pelo Conclio Vaticano II, particularmente naConstituio dogmticaDei Verbum: Como, porm, Deus na Sagrada Escritura falou por meiodos homens e maneira humana, o intrprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quiscomunicar-nos, deve investigar com ateno o que os hagigrafos realmente quiseram

    significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras.[106] O Conclio, porum lado, sublinha, como elementos fundamentais para identificar o significado pretendido pelohagigrafo, o estudo dos gneros literrios e a contextualizao; por outro, devendo a Escrituraser interpretada no mesmo Esprito em que foi escrita, a Constituio dogmtica indica trscritrios de base para se respeitar a dimenso divina da Bblia: 1) interpretar o texto tendopresente a unidade de toda a Escritura; isto hoje chama-se exegese cannica; 2) ter presente aTradio viva de toda a Igreja; 3) observar a analogia da f. Somente quando se observamos dois nveis metodolgicos, histrico-crtico e teolgico, que se pode falar de uma exegeseteolgica, de uma exegese adequada a este Livro.[107]

    Os Padres sinodais afirmaram, justamente, que o fruto positivo produzido pelo uso da

    investigao histrico-crtica moderna inegvel. Mas, enquanto a exegese acadmica actual,mesmo catlica, trabalha a alto nvel no que se refere metodologia histrico-crtica, incluindoas suas mais recentes integraes, foroso exigir um estudo anlogo da dimenso teolgicados textos bblicos, para que progrida o aprofundamento segundo os trs elementos indicados

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    pela Constituio dogmticaDei Verbum.[108]

    O perigo do dualismo e a hermenutica secularizada

    35. A este propsito, preciso sublinhar hoje o grave risco de um dualismo que se gera aoabordar as Sagradas Escrituras. De facto, distinguindo os dois nveis da abordagem bblica, nose pretende de modo algum separ-los, contrap-los, ou simplesmente justap-los. Sfuncionam em reciprocidade. Infelizmente, no raro uma infrutfera separao dos mesmos

    leva a exegese e a teologia a comportarem-se como estranhas; e isto acontece mesmo aosnveis acadmicos mais altos.[109] Desejo aqui lembrar as consequncias mais preocupantesque se devem evitar.

    a)Antes de mais nada, se a actividade exegtica se reduz s ao primeiro nvel,consequentemente a prpria Escritura torna-se um texto s do passado: Da podem-se tirarconsequncias morais, pode-se aprender a histria, mas o Livro como tal fala s do passado e aexegese j no realmente teolgica, mas torna-se pura historiografia, histria daliteratura.[110] claro que, numa tal reduo, no possvel de modo algum compreender oacontecimento da revelao de Deus atravs da sua Palavra que nos transmitida na Tradioviva e na Escritura.

    b)A falta de uma hermenutica da f na abordagem da Escritura no se apresenta apenas emtermos de uma ausncia; o seu lugar acaba inevitavelmente ocupado por outra hermenutica,uma hermenutica secularizada, positivista, cuja chave fundamental a convico de que oDivino no aparece na histria humana. Segundo esta hermenutica, quando parecer que hum elemento divino, isso deve-se explicar de outro modo, reduzindo tudo ao elementohumano. Consequentemente propem-se interpretaes que negam a historicidade doselementos divinos.[111]

    c)Uma tal posio no pode deixar de danificar a vida da Igreja, fazendo surgir dvidas sobremistrios fundamentais do cristianismo e sobre o seu valor histrico, como, por exemplo, ainstituio da Eucaristia e a ressurreio de Cristo. De facto, assim impe-se umahermenutica filosfica, que nega a possibilidade de ingresso e presena do Divino na histria.A assuno de tal hermenutica no mbito dos estudos teolgicos introduz, inevitavelmente,um gravoso dualismo entre a exegese, que se situa unicamente no primeiro nvel, e a teologiaque leva a uma espiritualizao do sentido das Escrituras no respeitadora do carcter histricoda revelao.

    Tudo isto no pode deixar de resultar negativo tambm para a vida espiritual e a actividadepastoral; a consequncia da ausncia do segundo nvel metodolgico que se criou um fossoprofundo entre exegese cientfica e lectio divina. E precisamente daqui nasce s vezes uma

    forma de perplexidade na prpria preparao das homilias.[112] Alm disso, h que assinalarque tal dualismo produz s vezes incerteza e pouca solidez no caminho de formao intelectualmesmo de alguns candidatos aos ministrios eclesiais.[113] Enfim, onde a exegese no teologia, a Escritura no pode ser a alma da teologia e, vice-versa, onde a teologia no essencialmente interpretao da Escritura na Igreja, esta teologia j no temfundamento.[114] Portanto, necessrio voltar decididamente a considerar com mais atenoas indicaes dadas pela Constituio dogmticaDei Verbum a este propsito.

    F e razo na abordagem da Escritura

    36. Creio que pode contribuir para uma compreenso mais completa da exegese e,

    consequentemente, da sua relao com a teologia inteira aquilo que escreveu o Joo Paulo IIna Encclica Fides et ratio a este respeito. Afirmava ele que no se deve subestimar o perigoque existe quando se quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplicao de umanica metodologia, esquecendo a necessidade de uma exegese mais ampla que permita oacesso, em unio com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos. Os que se dedicam ao estudo

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  • 8/3/2019 (Verbum Domini, Exortao Apostlica Ps-Sinodal, Papa Bento XVI, 30 de setembro de 2010)

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    da Sagrada Escritura nunca devem esquecer que as diversas metodologias hermenuticas tmtambm na sua base uma concepo filosfica: preciso examin-las com grandediscernimento, antes de as aplicar aos textos sagrados.[115]

    Esta clarividente reflexo permite-nos ver como, na abordagem hermenutica da SagradaEscritura, est em jogo inevitavelmente a relao correcta entre f e razo. De facto, ahermenutica secularizada da Sagrada Escritura actuada por uma razo que querestruturalmente fechar-se possibilidade de Deus entrar na vida dos homens e falar aos

    homens com palavras humanas. Por isso necessrio, tambm neste caso, convidar a alargaros espaos da prpria racionalidade.[116] Na utilizao dos mtodos de anlise histrica,dever-se- evitar de assumir, sempre que aparecem, critrios que preconceituosamente sefechem revelao de Deus na vida dos homens. A unidade dos dois nveis do trabalhointerpretativo da Sagrada Escritura pressupe, em ltima anlise, uma harmonia entre a f e arazo. Por um lado, necessria uma f que, mantendo uma adequada relao com a rectarazo, nunca degenere em fidesmo, que se tornaria, a respeito da Escritura, fautor de leiturasfundamentalistas. Por outro, necessria uma razo que, investigando os elementos histricospresentes na Bblia, se mostre aberta e no recuse aprioristicamente tudo o que excede aprpria medida. Alis, a religio doLogos encarnado no poder deixar de apresentar-se

    profundamente razovel ao homem que sinceramente procura a verdade e o sentido ltimo daprpria vida e da histria.

    Sentido literal e sentido espiritual

    37. Como foi afirmado na assembleia sinodal, um significativo contributo para a recuperaode uma adequada hermenutica da Escritura provm de uma renovada escuta dos Padres daIgreja e da sua abordagem exegtica.[117] Com efeito, os Padres da Igreja oferecem-nos, aindahoje, uma teologia de grande valor, porque no centro est o estudo da Sagrada Escritura na suaintegridade. De facto, os Padres so primria e essencialmente comentadores da SagradaEscritura.[118] O seu exemplo pode ensinar aos exegetas modernos uma abordagem

    verdadeiramente religiosa da Sagrada Escritura, e tambm uma interpretao que se atmconstantemente ao critrio de comunho com a experincia da Igreja, que caminha atravs dahistria sob a guia do Esprito Santo.[119]

    Apesar de no conhecer, obviamente, os recursos de ordem filolgica e histrica disposioda exegese moderna, a tradio patrstica e medieval sabia reconhecer os vrios sentidos daEscritura, a comear pelo literal, isto , o expresso pelas palavras da Escritura e descobertopela exegese segundo as regras da recta interpretao.[120] Por exemplo, So Toms deAquino afirma: Todos os sentidos da Sagrada Escritura se fundamentam no literal.[121] preciso, porm, recordar-se de que, no perodo patrstico e medieval, toda a forma de exegese,incluindo a literal, era feita com base na f, no havendo necessariamente distino entre

    sentido literal e sentido espiritual. A propsito, recorde-se o dstico clssico que traduz arelao entre os diversos sentidos da Escritura:

    Littera gesta docet, quid credas allegoria,Moralis quid agas, quo tendas anagogia.A letra ensina-te os factos [passados], a alegoria o que deves crer,A moral o que deves fazer, a anagogia para onde deves tender.[122]

    Sobressai aqui a unidade e a articulao entre sentido literal e sentido espiritual, o qual, porsua vez, se subdivide em trs sentidos que descrevem os contedos da f, da moral e da tensoescatolgica.

    Em suma, reconhecendo o valor e a necessidade apesar dos seus limites do mtodohistrico-crtico, pela exegese patrstica, aprendemos que s se fiel intencionalidade dostextos bblicos na medida em que se procura encontrar, no corao da sua formulao, arealidade de f que os mesmos exprimem e em que se liga esta realidade com a experincia

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    crente do nosso mundo.[123] Somente nesta perspectiva se pode reconhecer que a Palavra deDeus viva e se dirige a cada um de ns no momento presente da nossa vida. Continua assimplenamente vlida a afirmao da Pontifcia Comisso Bblica que define o sentido espiritual,segundo a f crist, como o sentido expresso pelos textos bblicos quando so lidos sob oinfluxo do Esprito Santo no contexto do mistrio pascal de Cristo e da vida nova que deleresulta. Este contexto existe efectivamente. O Novo Testamento reconhece nele ocumprimento das Escrituras. Por isso, normal reler as Escrituras luz deste novo contexto, oda vida no Esprito.[124]

    A necessria superao da letra

    38. Para se recuperar a articulao entre os diversos sentidos da Escritura, torna-se entodecisivo identificar a passagem entre letra e esprito. No se trata de uma passagemautomtica e espontnea; antes, preciso transcender a letra: de facto, a Palavra do prprioDeus nunca se apresenta na simples literalidade do texto. Para alcan-la, precisotranscender a literalidade num processo de compreenso, que se deixa guiar pelo movimentointerior do conjunto e, portanto, deve tornar-se tambm um processo de vida. [125]Descobrimos assim o motivo por que um autntico processo interpretativo nunca apenasintelectual, mas tambm vital, que requer o pleno envolvimento na vida eclesial enquanto vidasegundo o Esprito (Gl 5, 16). Deste modo tornam-se mais claros os critrios evidenciadospelo nmero 12 da Constituio dogmticaDei Verbum: a referida superao no podeverificar-se no fragmento literrio individual mas em relao com a totalidade da Escritura. Defacto, uma nica Palavra aquela para a qual somos chamados a transcender. Este processopossui uma ntima dramaticidade, porque, no processo de superao, a passagem que aconteceem