Velho Juventude Contemporanea Prefacio

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Antropologia

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  • Organizao

    Gilberto Velho Luiz Fernando Dias Duarte

    JuVentuDecontemporneaculturas, gostos e carreiras

    ppGaS

  • 7apresentao1

    este livro rene textos voltados para a ampla temtica da juventude. a diversidade dos objetos de investigao, expressa por estilos de vida, vises de mundo e, em geral, modalidades de representao e construo social da realidade, leva-nos, em vrios contextos, a pensar e falar em juventudes. o plural salienta a complexidade da sociedade moderno-contempornea, ao mesmo tempo que busca evitar uma simplificao e um empobrecimen-to das importantes diferenas encontradas e analisadas. os autores, em sua maioria, so alunos ou ex-alunos do programa de ps-Graduao em antro-pologia Social do museu nacional da ufrj e, atravs de ns, seus antigos ou atuais orientadores, vinculam-se ao NuSIM (ncleo de pesquisa sobre Su-jeito, Interao e mediao) do mesmo ppgas. temos ainda a participao de uma doutora pela universidade Federal de pernambuco e de uma pesqui-sadora portuguesa, aluna do Instituto Superior de cincias do trabalho e da empresa (iscte) de Lisboa. os autores esto em fases distintas de suas carrei-ras. alguns j so doutores, outros, ainda doutorandos. os textos, portanto, podem ser desdobramentos de teses de doutoramento e dissertaes de mes-trado j concludas ou podem estar vinculados a pesquisas em andamento. Discutem, de modo mais ou menos sistemtico, seu trabalho de campo e os diversos desafios intelectuais do trabalho em cincias sociais.

    com exceo dos de Ligia Ferro e de maria paula miller Duarte, os textos voltam-se, sobretudo, para a sociedade brasileira, embora, em vrios momentos, remetam a questes de outros pases, internacionais ou transna-cionais. na realidade, reconhece-se a importncia de refletir sobre essas ju-ventudes com uma viso comparativa, procurando estar atento tanto para as suas dimenses locais como para a sua dimenso de fenmeno mundial. em alguns textos essa preocupao mais evidente e assumida do que em outros. a questo da contemporaneidade acompanha significativamente os artigos selecionados. as transformaes, mais ou menos radicais, a mudan-a social como tema clssico das cincias sociais, com seu aceleramento as-

    1 a temtica das pesquisas sobre Brasil que originaram este livro vincula-se ao projeto finep/ppgas Desigualdades sociais, conflitos e violncia no Brasil contemporneo. aproveitamos tambm para agradecer o apoio de roberta ceva e Veronica tomsic, que, em vrias etapas do trabalho, foi fundamental para a sua concretizao.

  • 8sociado a inovaes tecnolgicas e socioculturais em geral, so objeto privi-legiado de anlise.

    as subjetividades como tema, por sua vez, so referncias fundamen-tais em todo o livro. Diversos autores lidam com a questo da interioridade. cultura subjetiva, self, sujeito, eu, ego, mente, esprito etc. aparecem na sua relao com processos de interao, de construo da pessoa, de Bildung, de autoanlise, de agncia, de elaborao de projetos e ao social. assim, car-reiras e gostos de indivduos e conjuntos de indivduos so focalizados pelo prisma da cultura e de esferas sociais mais amplas, com sua heterogeneidade, ambiguidade e contradies. em mbitos empricos to diferentes quanto a religio, a sade, o consumo, a arte, a sexualidade, a educao e a tecnolo-gia, so os processos maiores da construo e reconstruo das identidades nas redes de sociabilidade pela via das relaes e mediaes que atraem a ateno analtica. todos esses trabalhos, portanto, vinculam-se, de diversos modos, temtica central do individualismo em suas mltiplas dimenses e tenses com valores relacionais, holistas-hierarquizantes.

    preocupamo-nos em no estimular o congelamento de identidades nessas anlises, valorizando o trnsito entre mundos e as mudanas coletivas e individuais. Isso no impede que exista a preocupao de identificar fron-teiras e eventuais ncoras identitrias, mas sem estabelecer fossos e barreiras intransponveis. ainda nesse esprito, parece-nos importante perceber no s a dinmica das trajetrias, mas o multipertencimento de indivduos e grupos que fazem parte de universos complexos e heterogneos em termos sociocul-turais. assim, cabe registrar que uma preocupao central dessa coletnea identificar diferenas, sem perder de vista o carter mais universal das expe-rincias da juventude contempornea e com uma permanente preocupao comparativa.

    Gilberto Velho e Luiz Fernando Dias Duarte

  • 9Juventude e internet: dedicao na lan house e descaso com a escola

    Vanessa Andrade Pereira

    a proposta deste artigo apresentar o ambiente da lan house, bem como aspectos do cotidiano e as motivaes dos jovens que frequentam esse espa-o, com base em uma pesquisa realizada durante o meu doutoramento, na cidade de porto alegre, rio Grande do Sul, Brasil.1 a inteno contrastar dois espaos de aprendizagem e sociabilidade juvenil, a lan house e a escola, diante da constatao de um quadro de evaso escolar e desmotivao em relao aos estudos, em contraste com a total dedicao aos games e demais atividades executadas no computador.

    a lan house

    lan significa local area network, ou seja, define um local onde vrios computadores esto interligados. a expresso lan house pode ser traduzida como casa de computadores em rede ou casa de jogos em rede, como popularmente conhecida.

    a partir de 2004, essas casas tornaram-se febre no Brasil e, nos dias de hoje, verifica-se a existncia de lan houses em muitos locais, j incorporadas paisagem dos servios oferecidos nas cidades.

    uma pesquisa recente, realizada pelo comit Gestor da Internet no Brasil 2008, demonstra que, para uma parcela significativa da populao brasileira, o principal motivo para a falta de computador/internet no domi-clio o alto custo de aquisio. esse dado conecta-se a outro, apresentado pelo mesmo rgo: os centros pblicos de acesso pago (nos quais se enqua-drariam as lan houses) so os mais utilizados pela populao brasileira para o acesso rede. ou seja, o fato de no possuir computador/internet em ca-sa no impede que parcelas menos favorecidas da populao faam uso das tecnologias de comunicao e informao. elas tornam as lan houses a prin-cipal via de acesso ao universo digital. em 2007, uma reportagem revelou o

    1 tese defendida em fevereiro de 2008, no programa de ps-Graduao em antropologia Social do museu nacional, ufrj, sob orientao do professor Gilberto Velho.

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    alastramento desse servio em localidades de baixa renda, estimando em cer-ca de 150 o nmero de lan houses espalhadas pelas 16 comunidades (favelas) do complexo da mar, no rio de Janeiro (mendes, 2007).

    as caractersticas mais ou menos comuns a esses estabelecimentos so: o ambiente escuro, que evita a luminosidade (para no dar reflexo na tela, dis-se-me um jovem), aparelhagem de microfonia de qualidade, teclados e mouses modernos e prticos para os jogos, alm de cadeiras e mveis que permitam uma postura confortvel para o jogador que vai despender horas e horas no jogo.

    De modo geral, os computadores de uma lan house bem como a rede provedora da Internet so de alta qualidade, uma vez que a maioria dos jo-gos exige computadores de ponta. em geral, o processador, a memria ram e a placa de vdeo esto muito prximos dos ltimos lanamentos do mer-cado de informtica.

    as lan houses esto normalmente situadas em shoppings, centros comer-ciais, avenidas e ruas movimentadas. algumas leis brasileiras probem sua lo-calizao prximo a escolas, estabelecendo uma distncia mnima a ser res-peitada (1.000 metros, no rio de Janeiro, e 500 metros, em porto alegre).

    cotidiano na lan house

    a lan house representou, a princpio, uma soluo para minhas ativida-des rotineiras na internet quando meu computador quebrou. aps esse en-contro fortuito, apurando o olhar e deixando aflorar a curiosidade comum prtica antropolgica, utilizei-a, no entanto, para refletir. a empolgao dos jovens que frequentavam o local principalmente, mas no somente pa-ra jogar chamou minha ateno. meninos e meninas, transitando frenetica-mente, faziam da lan house um point de sociabilidade.

    ao entrar na x-play lan house era necessrio desviar e pedir licena aos meninos e meninas que se acumulavam, sentados nos trs degraus que da-vam acesso loja, e que frequentemente ficavam ali conversando. Depois do obstculo da porta, entrar na lan era como adentrar uma caverna: preci-so acostumar a pupila escurido. Dentro desse espao possvel observar os perfis iluminados pelos monitores. uma observao rpida permitia en-trever que os usurios que no jogavam, ou seja, os que estavam ali para ler e-mails, acessar sites, orkut (site de relacionamento) ou msn (programa de mensagens instantneas) no permaneciam mais do que uma hora conecta-

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    dos. os jogadores, ao contrrio, costumavam passar muito mais tempo co-nectados, totalmente envolvidos na tarefa; mesmo aps se desconectarem, o assunto do jogo ainda gerava inflamadas discusses e aglomerao dos jovens dentro da loja. Havia tambm outros tantos que permaneciam no interior da lan house sem, no entanto, usar os computadores: ficavam por ali, senta-dos nos sofs ou mesmo de p, conversando. Geralmente as conversas eram travadas com os meninos que gerenciavam o negcio por trs do balco.

    a pesquisa foi realizada com frequentadores dessa lan house especfica, no bairro do Jardim Botnico, na cidade de porto alegre, rio Grande do Sul, Brasil. Logo que comecei a frequentar o espao com mais assiduidade, um primeiro aspecto chamou minha ateno: as redes sociais.2 o local era, sem dvida, mais do que um negcio comercial; transformara-se num point juvenil que reunia as mesmas pessoas todos os dias.

    as redes de relacionamento dirias desses jovens com amigos, colegas de sala de aula, vizinhos, famlia davam-se, sem dvida, num contexto geo-grfico especfico, que tinha o bairro como principal expoente. no entanto, ao adentrarem o mundo da internet, esses mesmos jovens tinham a oportu-nidade de solidificar laos com sua rede local e, ao mesmo tempo, ampli-los, expandindo (ou explodindo) o referencial geogrfico, ao se relacionarem com pessoas de outras regies cidades e mesmo pases.

    a possibilidade comunicacional, via novas tecnologias de interao di-gital, amplia os contextos relacionais dos sujeitos, potencializando a par-ticipao em grupos heterogneos e expandindo ainda mais o leque de ex-perimentaes identitrias. tal processo nada mais do que a extenso de uma situao de alta mobilidade e aumento de estmulos j experimentada nas grandes cidades (Wirth, 1973; park 1973), o que acaba por fornecer um trao distintivo vida psicolgica individual (Simmel, 2005).

    o contato com grupos e crculos distintos e a interao com redes de relaes mais amplas e diversificadas implica uma experincia particular que acaba por afetar o desempenho dos papis sociais e a elaborao de proje-

    2 o conceito de rede social utilizado neste trabalho inspirado em abordagens como as de elizabeth Bott (1976) e clyde mitchell (1969), autores que demonstram como o conceito de rede social vivel e til para a anlise de grupos urbanos, pois auxilia na compreenso dos mltiplos pertenci-mentos dos sujeitos, sem aprision-los numa unidade coesa e fechada (como, em princpio, a tribal). a anlise da rede social possibilita dar conta das relaes dos indivduos com outros indivduos e tambm com diversos grupos sociais. o foco est centrado no sujeito, sem perder de vista as intera-es que ele articula no meio em que vive. os significados oriundos da relao sujeito e rede social aparecem como ferramenta til para refletir a esttica da organizao social contempornea.

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    tos individuais dos sujeitos urbanos (Velho, 1997; oliven, 1974). o mapea-mento dos multipertencimentos e dos trnsitos entre mundos socioculturais distintos uma preocupao deste trabalho, que se insere na linha de pes-quisa da antropologia das sociedades complexas.

    neste artigo, estamos lidando com uma categoria geracional especfica os jovens 3 buscando compreender os significados que eles conferem aos es-paos sociais especficos pelos quais transitam.4 os grupos juvenis que utili-zam a internet em suas atividades cotidianas e de lazer desenvolvem cdigos singulares e habilidades cognitivas adaptadas s comunicaes digitais, assun-to que desenvolvo a seguir.

    juventude e competncia digital

    a linguagem utilizada pelos jovens para se comunicarem pela internet tem suas especificidades: resumida, entrecortada, oralizada; alm disso, eles ainda possuem a habilidade de abrir e lidar com diversas janelas simul-taneamente numa mesma tela de computador, de digitar rapidamente, de compreender o funcionamento de cada programa; h que se apontar tam-bm a avidez com que passam os olhos pela tela. essas so algumas das ca-ractersticas que integram o ethos de um grupo que denomino de hi-tech. o compartilhar de cdigos tipogrficos diferenciados caracteriza um modo performtico especfico escolhido pelos jovens para se comunicarem entre si, como mostra o exemplo: qd t c/vc snto meo mnd akbr, prco o xo sob meos ps m flta o ar p/resprah i s di pnsah im t prd p/1 segundo...5 certa-mente, a escrita juvenil na internet configura uma forma comunicativa mui-to singular, que exige esforo de compreenso para ser entendida por outros grupos sociais que no os seus pares.

    3 Juventude um conceito construdo histrica e culturalmente. embora todas as sociedades reco-nheam distines etrias, nas sociedades complexas moderno-contemporneas que a juventude aparece como perodo destacado, tendo maior visibilidade social no sculo XX, no perodo do ps-guerra (mead, 1945[1928]; abramo, 1994).

    4 a questo da ocupao e do trnsito de espaos jovens pode ser conferida em obras como: Sociedade de esquina (Whyte, 2005); Nobres e anjos (Velho, 1998); Culturas jovens (almeida e tracy, 2003); Jovens na metrpole (magnani e Souza, 2007).

    5 traduzindo: quando estou com voc, sinto meu mundo acabar, perco o cho sob meus ps, me falta o ar pra respirar e s de pensar em te perder por um segundo, eu sei que isso o fim do mundo. msica do grupo musical cpm 22, um minuto para o fim do mundo. Dados de uma conversa com um jovem no msn, em novembro de 2005.

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    tal competncia com os artefatos informacionais foi constatada durante o trabalho de campo na x-play lan house, onde foi possvel observar os jovens jogando os games on-line, utilizando o msn e o orkut e navegando nos si-tes da internet com muita destreza. no espao da lan, ao mesmo tempo em que os jovens reforavam seus laos de amizade com os amigos locais, tam-bm ampliavam esses laos ao se conectarem na internet e interagirem com pessoas por meio do computador.

    um dos meninos comentou que aprendera a falar ingls com uma ami-ga que morava no canad por intermdio do game que estavam jogando. Sendo assim, pedia que ela falasse o ingls convencional (sem grias ou cor-tes nas palavras) para que ele pudesse aprender corretamente a lngua.

    eram de fato os games que ocupavam grande parte do tempo despen-dido pelos jovens na lan house. na x-play, o game do momento era o ti-bia (cipSoft). trata-se de um game em terceira pessoa (criado por dois es-tudantes alemes em 1997), no qual os jogadores so convidados a explorar um mundo na pele de um personagem (chamado char)6 que pode ser um guerreiro, um druida,7 um paladino ou um feiticeiro. um jogo gratuito e leve para baixar (fazer o download), j que no possui som, e os grficos no tm perspectiva (2d). o tibia faz parte de uma categoria de games co-nhecidos como mmorpg (massive multiplayer on-line rpg), games de fantasia de mltiplos usurios no qual o personagem deve elevar seu nvel por meio de atividades de caa, tomando cuidado para manter-se vivo e atuante em um mundo persistente, 24 horas no ar.

    trata-se de um jogo envolvente, no qual a dedicao o elemento pri-mordial para o xito. essa dedicao implica: a) o estudo do game, a fim de compreender a histria do jogo e do mundo onde ele se passa;8 b) a partici-pao em fruns e a consulta constante aos sites especializados, a fim de co-nhecer as potencialidades dos armamentos, dos oponentes e dos utenslios disponveis para uso todos dispostos em grandes e complexas tabelas com

    6 char uma abreviao da palavra em ingls character.7 essa classe refere-se a um tipo de sacerdote originrio das mitologias clticas.8 tibia um mundo fictcio apresentado a partir da imagem de um mapa detalhado, composto

    por dois grandes continentes (main e Darama) e diversas ilhas que escondem segredos e inspiram aventuras. o tibia baseado numa narrativa mitolgica (supostamente anglo-sax ou cltica) que envolve deuses e poderes sobrenaturais: no incio, havia apenas um grande vcuo. estava em todo lugar e em lugar algum. (...) ningum sabe de onde os deuses ancios [Fardos e uman Zathroth] vieram ou se sempre existiram e, por fim, despertaram do sono infinito. mas em algum momento eles decidiram criar um universo (site do tibia).

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    valores diferenciados concernentes a cada criatura ou item;9 c) a prtica no game e o estabelecimento de laos de relacionamento fator extremamente valorizado, pois, conforme outros pesquisadores da temtica tambm ates-taram, a fuso de alianas garante um potencial de competitividade e re-sistncia contra as adversidades a que o jogador est submetido (Kolo e Baur 2004; tosca, 2002; taylor, 2006).

    a capacidade de lidar de modo competente com o computador, domi-nar os assuntos do tibia e ter habilidade no game eram atributos de desta-que naquele grupo juvenil.

    dedicao ao game tibia

    para as grandes caadas necessrio ter armamento e equipamentos de qualidade; igualmente imprescindvel ter a noo exata de aonde ir e com quem ir (no caso, contar com amigos que daro suporte), e uma expectativa antecipada dos inimigos a serem enfrentados. Quanto maior o level (palavra inglesa apropriada pela linguagem coloquial dos jovens para fazer referncia ao nvel do seu personagem no game), maiores as chances de extrair vanta-gens da empreitada empreendida pelo char. o ato de aumentar o level do personagem referido como upar, do ingls up. De acordo com Surfroots (18 anos), em conversa pelo msn, para alcanar um level entre 40 e 50, o jo-gador precisa empenhar-se por duas horas diariamente (sem faltar um nico dia!) durante cerca de nove meses, e acrescenta:

    !!! SurfRoots !!! Aloha! 100% Du Surf! * diz:tem gente que demora mais pq treina, no tem apoio de itens e tem que ir atraz sozi-nho isso ajuda a demorar... muuuiiittttaaaasss coisas depende

    Vicka10 diz:o conhecimento do jogador tb conta, n?

    9 S para dar uma ideia: so 418 criaturas subdivididas em 33 categorias, entre as quais: trolls, gobli-noides, mortos-vivos, orcs, minotauros. armaduras, calas, botas, elmos, escudos, amuletos, livros de magia, anis e poes perfazem a lista dos equipamentos. armamentos como espada, machado, clava, lanas, somados a outros itens, constituem uma mirade de objetos disponveis para uso (dados de julho de 2009).

    10 Vicka era o apelido usado pela pesquisadora deste artigo. o apelido tinha um papel fundamental nas interaes entre os jovens da lan house. esse modo especfico de identificao pessoal, por intermdio do qual os meninos se tratavam cotidianamente, promovia uma noo de pertencimento grupal e a delimitao de pares.

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    !!! SurfRoots !!! Aloha! 100% Du Surf! * diz:sim conhecimento conta e muito

    !!! SurfRoots !!! Aloha! 100% Du Surf! * diz:comecei a jogar em 2001,

    !!! SurfRoots !!! Aloha! 100% Du Surf! * diz:s pude dizer que sabia jogar tibia em 2003.

    (conversa no msn, 10/04/2007.)

    a dedicao, considerada indispensvel para entender o game e quali-ficar o personagem, podia ser percebida no somente pelo level do jogador, mas tambm por sua demonstrao de experincia nas conversas dentro da lan. culi (17) era, sem dvida, quem mais conhecia o game: sabia se locali-zar no mapa, aonde ir e os locais onde achar as caves (cavernas para caar e upar o level). conhecia as quests (misses no game), lia as reportagens do site e das listas de discusses. tambm era convocado quando era preciso insta-lar um servidor de tibia ot (no original) na lan, j que conhecia a lingua-gem de programao necessria para fazer o programa funcionar.

    culi costumava pagar os 10 reais da promoo que dava direito a jogar o dia inteiro. chegava a ficar quatro ou cinco horas sem se levantar da cadei-ra. e quando fazia uma pausa, no durava mais do que 30 minutos, quando ento voltava e completava seu horrio at s 23h sendo que, quando tos-co (17 anos, dono da lan house) permitia, ainda permanecia na lan (fechada para o pblico e aberta somente para tosco e os amigos) at a meia-noite. culi ficava jogando das 14h s 23h um total de nove horas de jogo. era, de fato, muito comum que os meninos ficassem todo esse tempo em frente ao micro, envolvidos com a problemtica dos personagens do tibia. muito me impressionava a quantidade de tempo despendido nessa prtica, bem como a postura corporal diante do computador. culi era o que tinha a pior postu-ra dentre os frequentadores da lan: estava sempre com a coluna curvada e o pescoo esticado para a frente para olhar o monitor bem de perto. Quando decidiu criar um char (malukita) num mundo que estava sendo inaugura-do (merena),11 chegou a ficar conectado (em casa) por vrias noites seguidas a fim de upar o char e garantir a liderana, correndo o risco de tomar um

    11 cada mundo corresponde a um servidor de tibia que contm exatamente o mesmo mapa e todas as caractersticas do universo tibiano. o total de servidores de 74 mundos, alocados nos estados unidos ou na alemanha, cada um com capacidade para cerca de 800 jogadores. no dia 09/07/2009, o nmero total de usurios conectados era de 33.684.

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    xingo de sua me, caso esta o encontrasse acordado durante a madrugada, sobre o que comentou enfaticamente: Valeria a pena!

    culi tinha uma particularidade: mesmo com todo o tempo de tibia, nunca teve um personagem poderoso, de level alto (mais do que 40). no en-tanto, criou inmeros chars de vocaes distintas (level entre 15 e 30), em mundos diversificados. Seu vasto conhecimento do game era respeitado pelos amigos. Guiga (13 anos), que aprendeu com culi a jogar tibia por ocasio de um corujo,12 tambm jogava bem, dominando mapas e itens de magia e sabendo onde encontrar bichos apropriados para aumentar a xp (potncia responsvel por elevar o level) mais rpido, sem correr o risco de morrer.13

    Dabota (17) jogava bem. Havia aprendido com culi, Latininho (15) e Guiga. Dominava conceitos em ingls (alis, nenhum deles tinha aulas de in-gls alm das ministradas na escola), j havia decorado os mapas e tinha apren-dido os princpios da programao do game com culi. mentira (20) tambm era exmio jogador e tinha muitos chars, no tantos quanto culi (ningum ti-nha tantos), porm era muito cauteloso e cioso de seus personagens.

    bastante difcil calcular o tempo que se leva para upar um personagem num mmorpg, at porque os games so muito diferenciados em seus clcu-los de aumento de nvel. De qualquer forma, quando se fala em dedicao, isso implica horas e horas na frente do monitor, o que acaba originando sen-timentos como o expresso na comunidade do orkut Dormir no d xp!, com mais de 2 mil membros e que diz o seguinte:

    verdade! enquanto voc dorme, os outros ficam l jogando e ficam mais fodas que voc!

    o negcio no dormir mesmo!

    comunidade dedicada aos gamers viciados em mmorpg que, antes de dormir, pensam:

    * S mais esse level

    * S mais essa quest

    * S mais 5% de xp

    * S vou limpar o inventrio no npc

    * S mais 1k de gold

    12 corujo o nome dado a um perodo contnuo de jogo noturno pelo qual se paga um valor nico previamente estabelecido. Geralmente acontece da meia-noite s oito da manh.

    13 a morte no tibia atenuada pela perptua possibilidade de ressuscitao. a sano, porm, rdua, implicando a perda de armas e de level.

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    * Depois do siege eu vou

    * S fazer a invaso

    * S mais uma instncia/dungeon

    * S deixa eu montar uma shop

    * S vou fazer esse sod

    * S mais um reset -> By chacal_Z...e acabam madrugando na frente do pc! (orkut, 2007.)

    era preciso conviver com os jovens para compreender sua dedicao ao game e como cada instante passado na frente do micro, aperfeioando o char, era importante para eles. eles sabiam que gastavam muito dinhei-ro14 na lan, mas empenhar o pouco que tinham no tibia significava muito mais do que conquistar level. tratava-se, sobretudo, de investir em camara-dagens, no apoio de seus pares, em prestgio, em aprendizagem de infor-mtica, de ingls, enfim, em algo que permitisse no somente fortalecer os laos da rede social, mas tambm adquirir uma sabedoria especfica do mun-do informacional.

    Havia um tuning, uma sintonia que unia os jogadores e lhes possibi-litava compartilhar algo especial. o tibia gerava um ambiente de comu-nicao comum (Schutz, 1979, p. 161). com isso, no me refiro apenas comunicao possvel no chat interno do game, mas a todos os momen-tos em que os jovens trocavam ideias, discutindo sobre o game, negando al-ternativas de ataque, elaborando estratgias de fuga, descobrindo trapaas e como trapacear, formando aliados, irritando-se com desavenas ou sharean-do, combinando quests. esse ambiente exige uma sintonia coletiva, um es-tar junto que consiste num tempo em que as pessoas participam do presente imediato da vida do outro, o que Schutz chama de presente vvido (1979), algo que enriquece a experincia. o carter ldico do tibia proporciona-

    14 importante precisar a que me refiro como muito dinheiro para esses jovens de camadas populares. os maiores gastos observados (durante o trabalho de campo e por estatsticas do sistema) foram de culi e madruga: cerca de 250 reais, no ms correspondente s frias escolares (julho 2005). em 2006, o valor destinado lan talvez passasse de 50 reais por ms, mas certamente no chegaria a 100. muitos deles demonstravam preocupao com seus gastos e comentavam a inteno de gastar menos com a lan. mentira chegou a ficar dois meses (julho e agosto), em 2006, sem gastar nada mas no sem jogar, pois usava sua posio de vip e jogava no micro ruim de casa. H tambm alguns jovens que no chegavam a gastar 30 reais por ms com o jogo: cyclops (16), chuck (16), Latininho, Guiga, Lalau (17), Surfroots e Seninha (12).

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    va uma durabilidade que perpassava o momento jogado (Huizinga, 2005), conservando sua magia para alm do perodo on-line.

    Se, por um lado, j havia uma sintonia prvia pelo fato de todos serem jovens, havia ainda mais harmonia entre aqueles que compartilhavam ho-ras e horas de jogo nos campos de batalha do universo tibiano. importan-te relembrar que o tibia um mundo persistente, ou seja, funciona 24 ho-ras por dia, quer o char esteja conectado ou no. como o mundo em que vivemos: dormindo ou no, o mundo continua rodando. a dedicao ne-cessria para viver nesse mundo virtual e para manter as camaradagens im-punha, portanto, uma severa rotina de empenho, tempo e dinheiro, criando uma equao problemtica para a manuteno dos afazeres extra-lan, como o trabalho, os relacionamentos amorosos e a escola.

    o coleginho

    culi, Dabota e Latininho tinham abandonado o colgio. mentira havia retornado escola em 2006 para terminar o terceiro ano do ensino mdio, cuja concluso havia postergado pois, em 2005, havia prestado servio mi-litar e considerava: muito cansativo pegar quartel e ter que estudar noite; no sobra tempo para nada!

    Latininho pretendia fazer supletivo, uma opo de ensino em tempo re-duzido para alunos atrasados. Guiga estava com srios problemas em mais de uma matria, o que por fim ocasionou a repetncia do stimo ano. em-bora observasse esse relativo desleixo em relao ao colgio, tambm teste-munhei por diversas vezes aluses importncia do estudo. os meninos costumavam comentar, por exemplo, que o cara tem que estudar, mas, na prtica, pareciam pouco empolgados com a ideia. Havia, no entanto, alguns mais empenhados. chuck, por exemplo, estudava no mesmo colgio e nun-ca havia repetido o ano. Gacho (15), Seninha e thekiller (16) estavam no ano escolar adequado para sua faixa etria.

    culi enganou os pais durante todo o ano de 2006, dizendo que ainda frequentava a escola quando, na verdade, tinha decidido largar o colegi-nho no ltimo ano do ensino mdio.

    alis, creio ser interessante refletirmos sobre a denominao dada pe-los jovens a essa escola em particular: o coleginho. De fato, a escola esta-dual de ensino mdio e Fundamental otvio de Souza, o coleginho, no

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    era uma escola de grandes propores. as instalaes eram modestas, com apenas dois andares, nenhum elevador e poucos espaos esportivos. tam-bm no possua nenhum atrativo extra-classe (cursos, palestras ou ativida-des esportivas), nem laboratrios de informtica ou de outros tipos. as li-nhas de marcao da quadra poliesportiva de cimento estavam esmaecidas. tanto as paredes internas quanto os altos muros externos que demarcavam os limites do colgio estavam pichados. as salas de aula tinham apenas o es-sencial, o bsico comum a todas as escolas carteiras e o quadro-negro ; algumas delas tambm contavam com cortinas (velhas e riscadas, mas que, ainda assim protegiam do sol).

    apesar da sensao de pequenez transmitida pela construo e visvel a qualquer transeunte, observei que o coleginho tinha um ar simptico e aconchegante, a comear pelos portes abertos, onde um segurana, bastan-te dado prosa, permanecia fazendo o controle sobre o fluxo de estudantes, mas nada muito rgido. os jovens tinham uma relao de familiaridade com a escola, entrando e saindo a qualquer instante e circulando livremente em um ambiente no qual todos se conheciam.

    Sendo assim, o emprego do diminutivo na designao deste espao pa-rece remeter a dois sentimentos: tanto a algo prximo, familiar, ntimo, ao qual se atribui uma relao emotiva, conferida pelo uso do inho nas pala-vras de lngua portuguesa no Brasil (Freyre, 2006 [1933], p. 414; Holanda, 1995 [1936], p.148), como escassez de recursos da referida escola.

    culi saa de casa todos os dias com o caderno embaixo do brao, mas, em vez de ir escola, dirigia-se lan house. Dizia que no valia a pena ter-minar o colgio, que poderia faz-lo depois do quartel (servio militar obri-gatrio), at mesmo com um supletivo, afinal, faltava s um ano e ir aula muuuuuito chato!. o medo de que a me ou o pai descobrisse o fato era, no entanto, constante e assustador. embora se preocupasse com a reao dos pais, culi achava que a escola podia esperar.

    Dabota, que tambm havia deixado em segundo plano os estudos, ma-nifestou algumas ideias sobre a escola em conversa pelo msn:

    Dabota diz:a maioria das coisas que ensinam, vc no vai usar...

    Dabota diz:soh penso em terminar a escola por causa do meu curriculo; quero arrumar um em-prego bom

  • 20

    Dabota diz:mas achu que escola brasileira naum server pra nada...

    Vicka diz:pq?

    Dabota diz:quando que aqui no Brasil que o cara vai ganhar uma bolsa de estudo pq joga bem futebol... ou pratica algum esporte...?

    Dabota diz:ou porque eh bom no que faz?

    Vicka diz:e os professores?

    Dabota diz:os professores ateh que so esforados... mas as escolas no tem recursos...

    Vicka diz:como tu imagina uma escola bem bala [boa]?

    Dabota diz:uma escola que no passe uma manha inteira soh sentado -.-

    Dabota diz:que invista no que a pessoa tem de melhor

    Vicka diz:pq tu acha q o pessoal da lan no gostava de ir no coleginho?

    Dabota diz:pq eh mto chato... eh como eu falei, passa o dia inteiro sentado, os que vo... falam a mesma coisa

    Vicka diz:mas no legal aprender coisas novas?

    Dabota diz:algumas coisas sim, mas matemtica... tem coisa que vc aprende, que nem usar na fa-culdade vai [sic]

    (conversa no msn, 30/12/2007.)

    no universo pesquisado, nunca vi um jovem que desdenhasse a esco-la ou a escolarizao. no entanto, para alguns deles, era mais interessante conquistar a independncia financeira por meio da carreira militar cujo ingresso no exige alto grau de escolaridade , vislumbrando a postergao dos estudos.