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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA EM ESTUDOS COMPARATISTAS VELHA ALIANÇA Da sensibilidade bíblica em alguma poesia portuguesa do final do século XX Gonçalo Vítor Plácido Cordeiro DOUTORAMENTO EM ESTUDOS LITERÁRIOS LITERATURA COMPARADA 2011

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA EM ESTUDOS COMPARATISTAS

VELHA ALIANÇA

Da sensibilidade bíblica em alguma poesia portuguesa

do final do século XX

Gonçalo Vítor Plácido Cordeiro

DOUTORAMENTO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

LITERATURA COMPARADA

2011

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Programa em Estudos Comparatistas

VELHA ALIANÇA

Da sensibilidade bíblica em alguma poesia portuguesa

do final do século XX

Gonçalo Vítor Plácido Cordeiro

Tese orientada por

Professora Doutora Helena Carvalhão Buescu

Doutoramento em Estudos Literários

Literatura Comparada

2011

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E Deus acrescentou: “Este é o sinal da aliança que faço convosco, com todos os seres vivos que vos rodeiam e com as demais gerações futuras: coloquei o meu arco nas nuvens, para que seja o sinal da aliança entre mim e a Terra”.

Génesis 9:12-13

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ÍNDICE

Resumo e palavras-chave 7

Abstract and key-words 8

Palávras prévias 9

I. O pacto da aliança 12

1.1. Desassossego, rasura, estigma e profanação 13

1.2. A Bíblia e a Literatura 29

1.3. A Bíblia, a Crítica e a Literatura Portuguesa 47

II. Velha aliança 55

2.1. Fronteiras e relações entre Poesia e Teologia 56

2.2. A poesia de origem divina 60

2.3. O elo alegórico 66

2.4. Histórias da interpretação 74

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2.5. Para uma poética da sensibilidade bíblica 82

III. Da sensibilidade bíblica em alguma poesia portuguesa do final do

século XX: Ruy Belo, Daniel Faria e Tolentino Mendonça

100

3.1. Homo mensura dei. A dimensão sacro-profana em Ruy Belo 101

3.1.1. O lugar teológico. Ou que interessa tudo isso? 102

3.1.2. O grande caudal bíblico 115

3.1.3. Silêncio, ausência e morte: rosto oculto de Deus 122

3.1.4. Vencer o divino, sonhar o humano 140

3.1.5. Habitar a terra e o poema 151

3.2. O avesso do explicar. Poesia e mística em Daniel Faria 155

3.2.1. Inferências do discurso poético 156

3.2.2. Iniciação ao verbo absoluto 162

3.2.2. A dobra poética 171

3.2.4. O poeta e a unção 175

3.2.5. Eixo do mundo 183

3.2.6. Em torno do centro: escadas, árvores, casas 192

3.2.7. O tronco intertestamentário 201

3.3. Ler no escuro. Poesia e hermenêutica em Tolentino Mendonça 207

3.3.1. A Noite abre meus olhos 208

3.3.2. A palavra nocturna 214

3.3.3. Regressar ao princípio 220

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3.3.4. Uma retórica da visão 225

3.3.5. Do olhar turvo 237

3.3.6. O círculo do ilegível 248

3.3.7. Uma poética da revelação 251

3.3.8. O Viajante sem sono: palavra transfigurada e palavra sacral 257

IV. Contra-livro, contra mundum. O caso de Miguel Torga 265

Bibliografia 309

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RESUMO E PALAVRAS–CHAVE

Esta tese propõe a revisitação do estado das relações entre a Bíblia e a Literatura em

torno de um pacto, de longa tradição, firmado entre poesia e teologia. Para esse fim,

investir-se-á na análise da obra de quatro poetas portugueses do século XX, de

modo a interrogar neles os efeitos da presença do objecto textual bíblico, elevado

aqui à categoria de matéria literária por excelência. As várias alianças que fornecem o

mote desta reflexão serão tomadas como manifestações de um fazer poético sensível

às potencialidades de significação da herança bíblica, a que tanto Ruy Belo, Daniel

Faria, Tolentino Mendonça, como Miguel Torga se encontram vinculados.

Aliança

Bíblia e literatura

Poesia e teologia

Poesia portuguesa

Ruy Belo

Daniel Faria

Tolentino Mendonça

Miguel Torga

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ABSTRACT AND KEY-WORDS

In this thesis, I intend to revisit the relations between the Bible and Literature, based

on an old pact that summons both poetry and theology. In order to do so, I analyse

the work of four Portuguese poets of the 20th-century, looking at the effects that the

presence of the biblical materials (seen in their literary condition) produce on them.

The several alliances or covenants that I identify here are taken as manifestations of

a poetic work particularly sensitive to the semantic potentialities of a biblical

heritage that entails Ruy Belo, Daniel Faria, Tolentino Mendonça, as well as Miguel

Torga.

Covenant

Bible and literature

Poetry and theology

Portuguese poetry

Ruy Belo

Daniel Faria

Tolentino Mendonça

Miguel Torga

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PALAVRAS PRÉVIAS

Em 1938, Denis de Rougemont fechava a advertência ao volume O Amor e

o ocidente, que veio a celebrizá-lo, lembrando as palavras do pintor Claude Vernet a

propósito de um dos seus quadros mais dilectos: “Levou-me uma hora e toda a

vida” (1989:9). A minha relação com o trabalho que agora se apresenta e discute

também se poderia dizer nascida de uma paixão da juvenília pelos mistérios do texto

sagrado, precocemente revelada e pela qual aprendi o amor à literatura. À pergunta

de Octavio Paz, no seu prefácio a Chama dupla. Amor e erotismo, “quando se começa a

escrever um livro?” (1995:7), poderia eu responder ainda com Rougemont, e talvez

sem exagero, que “vivi este livro durante toda a minha adolescência e juventude”.

Cabe-me aqui expressar o meu reconhecimento e gratidão pessoais por

todos aqueles que acompanharam a feitura desta dissertação e, de alguma forma, a

tornaram possível. Uma primeira palavra de agradecimento irá para a Fundação para

a Ciência e a Tecnologia, pelo apoio financeiro com que agraciou o meu estatuto de

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bolseiro ao longo de quatro anos. Devo agradecer ainda à Professor Eillen Julien e

ao Professor Herbert Marks, pelo seu acolhimento em Indiana University –

Bloomington e pelo acesso que me facultaram à Herman B. Wells Library, durante

os três meses que passei nos Estados Unidos como visiting scholar, em 2007, ocupado

com a fase inicial deste trabalho. E ainda ao Mr le Professeur Francis Bezler e à

Mme le Professeur Isabelle Reck, da Université de Strasbourg, onde trabalhei

durante dois anos (de 2008 a 2010) na qualidade de Leitor de Português e onde me

foi permitido beneficiar dos recursos da Bibliothèque des Facultés de Théologie

Catholique et Protestante.

Feitos os agradecimentos institucionais, não poderia deixar de referir o

nome de alguns dos professores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,

cujo contributo, quer durante a licenciatura quer durante o doutoramento, me foi

prestado através das mais diversas formas de partilha humana e cruzamento

académico, entre eles, as Prof. Doutora Isabel Almeida, Prof. Doutora Teresa

Amado, Prof. Doutora Maria Lúcia Lepecki, Prof. Doutora Serafina Martins, Prof.

Doutora Margarida Braga Neves, Prof. Doutora Clara Rowland, bem como os Prof.

Doutor José Augusto Ramos, Prof. Doutor José Pedro Serra e Prof. Doutor Vítor

Viçoso, cujas lições e exemplo não foram nem serão esquecidos.

Incompleta ficaria ainda esta página de palavras prévias sem a menção

dessa entusiasta e prolífica comunidade de professores e alunos, meus colegas, que

constitui o Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, onde

encontrei a família do comparatismo, especialmente nas minhas amigas Manuela

Carvalho, Sónia Ribeiro e Fátima Fernandes da Silva.

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Referência absoluta em todos os momentos do percurso que se completa

na apresentação desta tese é o nome da Professora Doutora Helena Carvalhão

Buescu, a quem me liga uma enorme dívida de gratidão. O privilégio de tê-la como

docente de Literatura Comparada, no terceiro ano da licenciatura, estendeu-se para

minha felicidade a uma colaboração próxima nas actividades do Centro de Estudos

Comparatistas, bem como à sua orientação do meu doutoramento na Faculdade de

Letras da Universidade de Lisboa. Não bastariam estas breves linhas para dar

testemunho do rigor, lucidez e visão verdadeiramente inspiradores com que sempre

acompanhou este trabalho (sabendo respeitar as suas idiossincrasias, pelas quais

assumo responsabilidade), munida de insuperável dedicação. Esta é a matéria que,

no dizer poético de Bocage, seria merecedora de todo o “extremo e fervor”, por

mim consubstanciado num solene e profundo agradecimento.

Dedico esta dissertação à memória de Lino Franco Cordeiro, meu

saudoso avô.

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I

O PACTO DA ALIANÇA

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1.1. DESASSOSSEGO, RASURA, ESTIGMA E PROFANAÇÃO

Estabelecer um pacto de desassossego como forma possível de ir ao

encontro do texto bíblico, enquanto fundamento de uma mundividência

simultaneamente teológica e literária, será talvez o meu modo de dar expressão a

uma série de inquietações epistemológicas que me têm acompanhado ao longo da

investigação cujo produto aqui se apresenta e discute. A ideia central de aliança

surge neste contexto, não apenas como reminiscência do pacto estabelecido entre

Deus e os homens (remeto, em epígrafe, para o arco-da-velha) ou da fundação

alegórica que preside à estrutura do texto bíblico e o representa sinonimicamente

(vertida sob as fórmulas de Novo e Antigo Testamentos1), mas sobretudo como

1 A palavra hebraica beríth e a palavra grega diathéke têm, ao longo da história da tradução bíblica, sido vertidas por testamento, sendo que o seu sentido está mais próximo da ideia de pacto do que da de legado. As passagens paulinas de 2Coríntios 3:14 e Hebreus 7:22, 8:8-13, 9:15 são consideradas como estando na origem da divisão entre os dois testamentos, ou pactos. No trecho paulino afirma-se que “ao falar de uma aliança nova, Deus declara antiquada a primeira; ora, o que se torna antiquado e envelhece está prestes a desaparecer”, está subjacente o princípio da interpretação figural das Escrituras (cf. Auerbach 2003 e ainda os pontos 2.3. e 3.3.8. desta tese), em que o sentido anterior prenuncia, ao passo que o posterior completa e até mesmo suplanta, concretizando-se em Cristo como marco do fim da Lei. A defesa da continuidade entre as Escrituras hebraicas e as gregas tem sido defendida por autores que preferem a terminologia

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figura teórica do comparatismo que sugere a imagem do tertium quid platónico

(reconduzido e actualizado, por exemplo, em “A terceira margem” de Guimarães

Rosa), numa espécie de fusão alquímica entre duas substâncias que estão na origem

anfibológica ou hipostática de uma terceira, que de ambas se perfaz sem a nenhuma

delas corresponder exactamente, excedendo a simples soma das partes. De modo

similar, a aliança estabelece um acordo ou negociação entre duas ou mais partes

distintas, no sentido da procura de um objectivo comum, compromisso a que cada

uma delas se encontra vinculada. No argumento que sustenta esta tese, a aliança em

causa não pode deixar de ser a do movimento dialéctico entre formas bem distintas

entre si de perspectivar o objecto bíblico, a saber, poesia e teologia.

A palavra de abertura desta tese tem assim de considerar o problema do

horizonte de expectativas dos leitores (entendido também nas acepções

fenomenológica e hermenêutica de Husserl e Gadamer2) cuja esfera de acção e

pensamento possa ser tocada pela Bíblia. Ora, aquilo que aqui será objecto de

discussão em torno da Bíblia e suas implicações religiosas e literárias procura,

justamente, desenconcontrar-se das possíveis noções de espera3 que são

desencadeadas pela palavra „Bìblia‟. Se, como adianta Jauss,

Primeiro e Segundo Testamentos, com base no princípio de que “aliança e testamento dizem o mesmo” (Neves 2008:15, 21). 2 Por isto me refiro a formas de percepcionar e analisar uma determinada realidade e o modo como nos posicionamos face a ela enquanto sujeitos interpretativos: o Erwartunghorizont de Husserl, bem como o horizon d’attente de Gadamer. Conserve-se então a imagem de horizonte como ponto onde se encontram o presente do leitor (bem como a sua enciclopédia literária e visão do mundo, de que constam também preconceitos e estereótipos) e o passado do texto, que se actualiza nesse mesmo contacto (fusionista, para Gadamer) que é a compreensão – lugar de reinvestimento do leitor e do texto. Cf. Bleicher (2002:153-161). 3 Expressão à qual indexo quer a noção de “attente” gadamerina quer a de “anagnorisis” tal como lida por Frye (cf. nota 10).

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uma obra não se apresenta nunca, nem mesmo no momento em que aparece, como uma absoluta novidade, num vácuo de informação, predispondo antes o seu público para uma forma bem determinada de recepção, através de informações, sinais mais ou menos manifestos, indícios familiares ou referências implícitas (1993:66),

então este movimento de desencontro procurará precisamente distanciar-se até ao

ponto da novidade não absoluta, da renovação do olhar sobre um objecto tão

enriquecido quanto desgastado por uma história secular de sucessivas manipulações

e sobreposições do olhar, a fim de preparar a possibilidade para leituras outras que a

Bíblia continua a ser capaz de suscitar. Este postulado jaussiano, situado no campo

do que pode ser a ante-recepção de um texto pelos seus leitores, implica por outro

lado a consideração da dimensão sígnica da Bíblia, do que sobre ela tem sido

convencionado em termos de “informações”, “sinais”, “indìcios” e “referências”: ao

tomarmos a Bíblia como signo, compreendêmo-la num referente concreto (variável

em determinados contextos, e.g. católico, protestante4), num significante (a palavra

em si, a par de outras formas terminológicas) e num significado a que se associam

redes complexas de sentidos que se interpenetram e, muitas vezes, sobrepõem. Por

4 Quero assim referir-me à existência dos vários cânones da Bíblia, em que se agregam diferentes conjuntos de textos valorativamente considerados por comunidades religiosas também elas diferentes. Atente-se na diferença das listas de livros que compõem os diversos cânones (bem como dos livros deles excluídos, como apócrifos, ou relegados para uma segunda linha de interesse, na qualidade de deuterocanónicos), a que os seus leitores foram atribuindo autoridade em matéria de crença, ao longo do tempo de composição dos cânones. Por exemplo, judeus e protestantes evangélicos conservam apenas vinte e quatro livros hebraicos, enquanto para anglicanos e católicos-romanos esses vinte e quatro livros são canónicos mas os apócrifos (à excepção de 1Esdras, Oração de Manassés, Salmo 151 e 3Macabeus) são aceites na sua autoridade de exemplo e lição. Já para os católicos-ortodoxos, os livros apócrifos excluídos por católicos-romanos e anglicanos são também considerados. No caso da Igreja da Etiópia, registe-se ainda a inclusão do livro de Enoque. Quanto às Escrituras Gregas, para lá dos vinte e sete livros aceites por protestantes, católicos romanos e ortodoxos e anglicanos, a Igreja Cóptica inclui ainda no seu cânone os livros de 1 e 2Clemente, a que a Igreja da Etiópia e a Siríaca acrescentam ainda 3Coríntios. Para mais esclarecimentos remeto para Rogerson (1999:131-142), Neves (2008:50-77) e para o ensaio de Frank Kermode (in Alter 1990:600-610).

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esta via, em pleno campo saussuriano, se introduz aqui o conceito operacional de

ruptura, de óbvias ressonâncias babélicas (Steiner 1998), que alimenta esta reflexão e

cuja exploração torna possível a abordagem da Bíblia pela Literatura, na linha de

pensamento que à espera opõe o desencontro de que falava.

A questão teórica da ruptura do signo bíblico tem consequências

profundas no campo da interpretação e do reconhecimento significativo, na medida

em que instaura um vector de disseminação textual, que passa pela dessemantização

de um significado e pela ressemantização dos significantes. Começaria por destacar,

com Maria Leonor Buescu, que

perdida para sempre a unidade primitiva da „lìngua do paraìso‟ e com ela a relação „natural‟ e necessária entre o signo e o referente, uma via parece ter-se conservado ainda aberta à possibilidade, senão de recuperar, pelo menos de evidenciar e conhecer (ou re-conhecer) a relação inicial: a etimologia (1985:70).

É de lembrar, já que o convite à dimensão babélica do livro se justifica pela

metonimização óbvia das relações entre o património bíblico e a etiologia linguística,

que a palavra „Bìblia‟ provém do grego biblia, um substantivo plural que significa „os

livros‟ e cuja acepção se deixou cunhar pela história de uma das mais famosas

traduções do texto bíblico – a Septuaginta ou Tradução dos Setenta.5 Até então, e

5 Esta foi a primeira tradução do texto bíblico para a língua grega. Na carta de Aristeias, conta-se que o bibliotecário de Alexandria, Demétrio de Faleron, teria sido incumbido por Ptolomeu II (282-246) de fornecer uma lista com as principais obras da Antiguidade, o que incluiria os escritos judeus. Por intermédio do sacerdote Eleazar, foram escolhidos setenta e dois tradutores, que segundo a lenda teriam sido levados para uma ilha a fim de desenvolverem individualmente o seu trabalho de tradução. Ao fim de precisamente setenta e dois dias, os trabalhos foram dados por terminados, sendo que cada uma das setenta e duas traduções coincidia ipsis uerbis entre si. Desta feita, o pretenso carácter inspirado da tradução evitaria as naturais objecções da comunidade

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ainda depois, paralelamente a esse momento especialíssimo da história da tradução,

este grupo de textos (designação que não pode excluir uma forte componente de

oratura6) manteve a marca da pluralidade nas suas possíveis designações em

hebraico: miqra (proclamação pública), tanakh (pentateuco, profetas, escritos), katuv

(escritos), para nomear algumas.7

Uma ideia unívoca de Bíblia, portanto, é coisa que não existe ou, pelo

menos, a que tendemos a ter dela hoje em dia não coincide com o que essa entidade

bíblica foi sendo ao longo da história; basta para tanto atentar na diferença entre

palavra proclamada, palavra escrita e palavra traduzida que compõem as diversas

fases da história do texto bíblico. Pode, no entanto, dizer-se que o seu denominador

comum é o de uma natureza antológica onde reside um potencial de biblioteca, de

judaica, ao passo que agregava uma considerável dose de concórdia institucional em torno do trabalho produzido. Na verdade, o consenso entre estudiosos aponta para os factos de que a Carta de Aristeias é um documento forjado por volta de 127-118 a.C., que o processo terá demorado cerca de trezentos anos e que se dirigia sobretudo à comunidade de judeus helenizados para fins judiciais. Outro dos aspectos da tradução a destacar é o seu alcance como interpretação (a somar ao facto de que a vocalização do texto massorético é, também ele, uma proposta de inteligibilidade da sequência consonântica das palavras hebraicas): na passagem do texto hebraico para o grego geram-se ambiguidades devido à existência de antanáclases, cujas derivações possíveis do sentido contribuem para a formação de uma hermenêutica actualizadora e, de certa forma, revisionista. Nos vários códices em que se apoiam as edições da Septuaginta, a ordem dos livros bíblicos é diferente, assim como há diferenças no tamanho e no tecido dos textos quando comparados com a versão massorética (nomeadamente em Jeremias, Job Daniel, Isaías, entre outros). Remeto, neste ponto, para o volume de David Norton, A History of the Bible as Literature (1993:5-9), e para Neves (2008:41-49). 6 A questão da tradição oral nos processos de transmissão e composição do texto bíblico passou a ser progressivamente aceite a partir do momento em que a autoria do Pentateuco, tradicionalmente atribuída a Moisés, se tornou objecto de escrutínio científico, nomeadamente através da elencagem de incongruências textuais, duplicações e de incompatibilidades epocais, num contínuo crescendo (Orígenes, ibn Yashush, ibn Ezra, Bonfils, Tostatus, Carlstadt, van Maes, Hobbes, de la Peyrère, Espinosa, Witer, Astruc, Eichhorn, de Wette) até Wellhausen com a hipótese das várias fontes do texto bíblico (cf. Friedman 1987:15-32). Segundo uma das hipóteses mais prováveis, no contexto pós-exílico, o livro da lei compilado por Esdras passou a ser objecto de leitura pública. Nele se concentrariam as várias versões reconhecíveis das tradições culturais (correspondentes a realidades sociais e políticas distintas) dos vários grupos que compunham o povo, com o objectivo de consolidar uma supra-identidade nacional. Referências adicionais poderão ser encontradas em Alan Dundes, The Holy Writ as Oral Lit (1999). 7 Estas são designações que identificam os vários corpora da literatura judaica, analisados em detalhe no volume de Holtz, Back to the Sources. Reading the Old Classic Jewish Texts (1984).

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colecção de livros e, por conseguinte, de cânone, de um reduto de leituras

obrigatórias, determinadas por um determinado conceito de auctoritas (de onde estão

naturalmente excluídos os apócrifos8). Dizia Novalis, sobre a matriz primordial do

livro, que “la Bible ne serait rien d‟autre qu‟un concept spécifique du genre livre”

(Blumenberg 2007:276) e, com isso, enunciava o seu potencial produtivo e de

metamorfose literária, ou seja, a dimensão plurimorfológica que, desde o seu início,

assiste ao fenómeno literário bíblico na sua capacidade de permanência e

sobrevivência na leitura e às leituras.

Argumentar, todavia, a questão da ruptura do signo é também considerar

a sua possibilidade de dessemantização, o seu desgaste, a sedimentação e a

fermentação de sentidos, em camadas acumuladas que substituem ou

complementam outros níveis de matéria bíblica. Antes de avançarmos, impõe-se

assim a questão: será que ainda conhecemos, ou alguma vez chegámos a conhecer, o

que entendemos por Bíblia ou por texto bíblico? A resposta passará necessariamente

pelas nossas representações mentais do objecto bíblico, pelo modo como lemos a

palavra texto (em Barthes, oposta às noções fixistas de obra ou objecto),

entendendo-a num horizonte histórico que não exclua o presente de leitura, pelo

nosso recentramento como leitores desse mesmo texto e da nossa consciência

crítica enquanto tal. O estudo da literatura é, já por si, um desafio para o leitor que

8 Como já avançado em nota prévia (cf. 4), apócrifos são todos os escritos a que uma determinada comunidade religiosa não reconhece autoridade em matéria de crença e que por isso estão confinados ao espaço de não-leitura pública, enquanto livros escondidos (em sentido etimológico). A determinação dos livros que são excluídos é um processo complexo que pode ter ficado a dever-se a factores tais como a data tardia de composição, a falsa atribuição de autoria, a interferência de aspectos estranhos a uma determinada literatura, incompatibilidades ou incoerências narrativas, descrições fantasiosas, entre outros. Para informações adicionais sobre o assunto, sugiro a consulta do artigo de Denan (in Metzger e Coogan 1993:37-41).

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também é crítico e que procura compreender o objecto literário para proceder à sua

interpretação do mesmo – é este o ponto em que o acto de leitura se desdobra num

gesto explícito de reflexividade analítica e produção enunciativa. E interpretar

significa comprometer-se, participar num diálogo entre sujeitos, onde a voz do texto

e a voz do leitor se misturam e se interdefinem, numa relação hermenêutica sempre

por acabar, em que tomam parte sujeitos de compreensão activa, colaborando

naquela que é a dimensão histórica do próprio texto, da sua contínua refeitura ( o

círculo hermenêutico de Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer9) e, por

conseguinte, da nossa própria construção enquanto entes leitores. No fundo, trata-

se aqui da elaboração da própria rede que é a memória cultural que não podemos

deixar de pressupor no acto de ler, ponto relativamente ao qual não andaremos

muito longe de Rosenberg quando afirma, ao referir-se também à Bíblia, que

these works generated a cultural legacy, [and] the cultural experience they embody and the literary modes they employ are familiar to modern Western reader partly because this reader has learned to read, to some extent, with his eyes. (1984:31)

Está subjacente às palavras de Rosenberg o princípio fundamental de que

lemos também com a nossa memória, não apenas individual, mas sobretudo a que

resulta tanto de uma experiência de leitura partilhada, como do legado dos genes

culturais que enformam o corpo colectivo de cada indivíduo e a sua identidade de

leitor. Mas, quantas vezes, aquilo que aceitamos como memória não é antes de mais

um produto convencionado (e, também nessa medida, sígnico) ou resultado de uma

elaboração sobre os objectos e as experiências, pessoais ou colectivas? Revisitar a

9 Cf. Palmer (2006:81-220).

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Bíblia e o seu legado literário, no exercício que aqui proponho, passará então por

um convite a lidarmos com aquilo que são as nossas representações mentais do

objecto, as nossas memórias bíblicas, o quid bíblico que ainda foi capaz de

permanecer na zona de penumbra da memória, já depois de o termos esquecido.10

Esta pode ser, encaremo-lo, matéria sensível, cuja aproximação, por vezes, se

desenvolve no seio da área sensível do conflito (em acepção com valência num

espectro que pode ir do figurado ao literal11), porque está em causa um texto que

tem sido utilizado e apropriado por diversas instâncias de leitura e interpretação.

Refiro-me à tutela a que a religião, a tradição ou a história das ideias, dos

preconceitos e dos estereótipos, têm subordinado modos de pensar e agir em torno

do livro e da ideia de Bíblia (porque, como vimos, não têm necessariamente de

coincidir), bem como às disputas disciplinares relativamente a divergências

epistemológicas e discursivas bem distintas entre si (sejam elas teológicas, históricas,

filológicas ou literárias12).

Uma tal rede de relações, tão plural nos seus modos de perspectivação do

bíblico (no que é tão problemática como problematizadora de uma ideia de

10 Apelo a uma noção vizinha das de anagnorise e de aletheia, tal como interpretadas por Northrop Frye em Words with Power: “Much of my critical thinking has turned on the double meaning of Aristotle‟s term anagnorisis, which can mean discovery or recognition, depending on whether the emphasis falls on the newness of the appearance or on its reappearance [...]. The negative form of the Greek word for truth, aletheia, which means something like unforgetting, suggests that at a certain point searching for the unkown gives place to trying to remove the impediments to seeing what is there already” (1990:xxiii, xxiv). 11 “A Bìblia [...] alberga dentro de si um poder acima de todos os poderes políticos, económicos, religiosos e culturais. Ou se está com ela ou contra ela. Neste sentido é que se entendem as guerras religiosas entre judeus e cristãos, crentes e não-crentes. Nela nasceram as guerras dos cruzados, a dos Cem Anos, as masmorras e as fogueiras da Inquisição” (Neves 2008:19). Veja-se ainda, neste contexto, o volume Religião e violência, editado por Farias et alli (2002), numa linha que poderíamos fazer remontar a René Girard que, em La violence et le sacré (1972), identifica o tabu do sacrifício humano como a base antropológica do pensamento religioso nas sociedades. Sugiro também a leitura de Tolentino Mendonça (2008:54-59). 12 Refiro-me a algumas das várias disciplinas que têm contribuído para os estudos bíblicos.

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complementaridade epistemológica), faz com que evocar, ler e pensar um livro

como a Bíblia seja, por assim dizer, inscrever-se num círculo não-unívoco de suspeita

(reacção exógena que paira sobre o trabalho do crítico e sobre as suas intenções) e

de suspeição (estratégia crítica de que o investigador se mune endogenamente). Cada

um destes vectores corresponde a duas comunidades de leitores: uma, ciosa da sua

estabilidade, de uma doxa comum (conjunto de ideias, crenças e afectos) em relação

ao que lê e sabe ou deixa de ler e saber sobre a Bíblia; outra, que investe no

questionamento da textualidade bíblica, dando a origem ao que poderia designar-se

um fluxo de desestabilização de leituras e de des-leituras.13 Ambas as instâncias do

olhar se alimentam de uma desconfiança com efeitos que simultaneamente

favorecem e se opõem à mudança: partindo de dentro para fora, a desconfiança

metodológica do investigador reveste-se do carácter da experimentação e do

método, procurando esterilizar variáveis externas ou afectivas, na busca de uma

depurada (e não pura, porque não inocente) contemplação da natureza do objecto;

de fora para dentro, comungando de uma força de inércia que é avessa à mudança,

os olhares que sobre o seu trabalho repousam alimentam-se de uma desconfiança

defensiva (quando não ofensiva), no que diz respeito à abordagem de um

monumento patrimonializado que é de todos e a que, por essa razão, assiste um

13 Esta análise coincide com a de Northrop Frye que, aquando da publicação de The Great Code, se viu envolvido numa teia complexa de preconceitos religiosos anti-literários, bem como de preconceitos académicos anti-religiosos: “In religion there was a fundamentalist response that simply denied the existence of myth and metaphor in the Bible, so far as such a denial was possible, and asserted that the truth of the Bible was expressed in historical and doctrinal language. There was an institutional response that admitted the poetic nature of much of the Bible, and drew the conclusion that the doctrinal commentaries of priestly and rabbinical traditions formed the real basis of religion. There was also a view which accepted, more or less, the mythical quality of Biblical language, but regarded it as a contamination of its real statement or kerygma [...] among literary critics [...] they were essentially the same prejudices in reverse” (1990:xv).

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22

sentimento de pertença e propriedade em relação ao qual nem sempre se está

disposto a fazer concessões.14

Reflectir aqui sob a égide do desassossego é, para mim, uma forma

possível de endereçar esta questão, formulável de modos que poderão ser diversos

dos que aqui sugiro. Convocar aquilo a que Roland Barthes em “Da obra ao texto”

(1987b), ensaio clássico no âmbito dos estudos literários e a que voltaremos em

outros momentos desta tese, se refere por meio do conceito de deslizamento

epistemológico pode ser uma delas. O que em Barthes vale como deslizamento

interdisciplinar pode opor-se, de certo modo, ao corte e à ruptura (pela relativização

dos pontos de referência), mas sem nunca deixar de ser, na leitura que aqui faço,

uma forma de inquietude intelectual que aposta numa recusa do estatismo e num

convite ao movimento, a que preside a dinâmica da descentralização (que, para

Barthes, provinha da confluência profícua dos saberes disciplinares). Ao deslocar-se

um centro, as margens de um dado sistema tenderão a reorganizar-se sob o padrão

de relações emergente, o que no dizer de Barthes “[produz] a exigência de um

objecto novo” (1987b:55). Isto é tão válido quer falemos de paradigma (filosofia,

epistemologia), de campo (física), como de gestalt (psicologia) ou da teoria dos

polissistemas de Even-Zohar (1990).

Aquilo que está subjacente ao que Barthes designa como deslizamento

pode ser iluminado pelo conceito que Lotman, em Universe of the Mind, formula a

propósito de fronteira, esse “gesto fundador de ordenação cosmológica, pelo qual se

14 Como lembra Pierre Gibert, “la Bible était alors, et pour longtemps encore, l‟apanage de croyants soucieux de vérité, vérité du texte dans ses langues originelles, dans ses nombreuses et différentes versions, dans ses principes d‟interprétation, et donc vérité de son sens” (2010:9).

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23

distingue o „dentro‟ e o „fora‟ da semiosfera, mas pelo qual se postula o

reconhecimento da capacidade de trânsito […] entre esse dentro e fora” (apud

Buescu 2001:265). Tanto ruptura, como deslizamento ou transgressão, de que tenho

vindo a falar, apontam para a distância que permeia o espaço entre as coisas e o

nome que lhes damos, para uma não-coincidência entre as palavras e as coisas

(Foucault), mas fazem-no segundo o modo como nos dispomos a atravessar esse

mesmo espaço – rompendo, deslizando, transgredindo: todas elas se apresentam

como formas de travessia. É exactamente este o ponto que Barthes formula a partir

do conceito de texto, a que voltaremos.

Mas o que aproveita isto ao que nos dizem expressões como Bíblia? É esta

uma indexação ao corpo textual que pretende designar? Ou será que a Bíblia se

tornou já uma fronteira longínqua que impede o acesso ao seu próprio referente,

uma espécie de rasura de si própria? Nesse caso, a ruptura do signo poderá

constituir o problema em si mas também a superação mesma dessa “relação natural”

irrecuperável, como lhe chamou Maria Leonor Buescu, entre signo e referente. Em

virtude da tensão ocasionada pela ruptura, o título que serve de máscara (nas suas

valências de ocultação e revelação, também bakthinianas15) a uma obra pode

desprender-se dela, deixando-a aberta à releitura; e assim, na linha de Lotman e de

Guillén, a fronteira que isola converter-se-ia em ponto de passagem.

15 A noção de carnavalesco bakthiniano parece-me especialmente operativa neste contexto devido, não particularmente à sua relação com o grotesco, mas pelo enfoque sobre a ideia de máscara como forma de libertação da normatividade semântica: dizer Bíblia tem sido sobrepor a noção barthesiana de obra ao texto bíblico, impondo sobre ele uma visão estabelecida e relativamente cristalizada que, pela rigidez analítica que acarreta, oblitera a sua dimensão textual bem como as suas potencialidades de revelação, reinvenção e ressemantização.

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24

Vários são os sintomas que indiciam a existência de um mecanismo

actuante de nomeação da Bíblia que tende excluí-la da sua própria matéria, como

uma forma mais da descoincidência a que tenho vindo a referir-me, tais como o

desconforto do público leitor na aproximação ao texto bíblico, o sentimento de

intromissão ou de falta de reverência na leitura, a desacreditação do sentido literal

do texto,16 bem como os alertas para a perigosidade do literal17 e a sobrevalorização

do alegórico, que denunciam na verdade uma incapacidade em lidar com a dimensão

textual deste livro. Esta pode reflectir-se ainda no temor de uma leitura não esteada

numa mediação autoritativa, de cariz religioso ou crítico, da qual o texto parece

dever estar refém, porque supostamente ancorado numa transcendentalização do

sentido, determinado de fora para dentro, num traçado impossível de reconstituir

(por razões histórica e culturalmente assinaláveis), revelado e nunca construído.

Notam, por isso, Alter e Kermode, no momento de abertura de um livro

que tem feito escola no âmbito dos modernos estudos bíblicos, A Literary Guide to

the Bible, que “to most educated modern readers the Bible probably seems both

16 No ensaio de Robert Alter, “Narrative Specification and the Power of Literal” que, constantando que “the Bible is famous, or perhaps notorious, for eliciting multiple levels of interpretation, for inviting readers to tourn to a figure or allegory of something other that what meets the eye”, e Alter procura responder à seguinte questão: “it there some way in which the literal force of the narrative details is crucial in the experience of reading?” (1992:87). Daqui resultam três explicações para a recusa do literal: “the inherent proclivity of the mind for metaphor; the pressure exerted by context [...]; and the pressure of authoritative institutions of interpretation” (1992:88). Com isto, Alter não defende a correspondência directa entre o plano literal e o plano real, como se de um grau zero da escrita (Barthes) se tratasse, estando apenas a conceber a importância do detalhe literal dentro da especificação narrativa e das convenções próprias do género. Considere-se ainda o caso de Frye que, em Words with Power, defende a sua perspectiva como sendo a de um “literary literalism”, segundo o qual “the Bible should be read as literally as any fundamentalist could desire, but the real literal meaning is an imaginative and poetic one” (1990:xv). Para uma súmula de alguns aspectos fundamentais da história das leituras não-literais da Bíblia, remeto para Norton (1993:57-61). 17 Esta é uma das formas que revestem as práticas do fundamentalismo religioso: fazer coincidir a verdade do texto com a verdade do real, numa lógica de absoluta referencialidade (cf. Neves 2008:22) e que pode ir desde manifestações como o criacionismo à guerra santa.

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familiar and strange, like the features of an ancestor” (1990: 1). De que forma pode

então o “pacto da aliança” propor uma superação do estigma que a Bìblia constitui

para si própria, do estranhamento a que o seu próprio nome parece condená-la? A

resposta pode passar pela revalorização de um conceito como o de profanação, que

tem ainda para nós hoje uma valência essencialmente negativizante de

desvirtuamento e poluição. Pelo que vale a pena considerar o modo como Giorgio

Agamben, em “Éloge de la profanation” (2005), opõe profanação a consagração,

sopesando religião menos como instância de religação (religare, na senda dos

primeiros autores cristãos, como Tertuliano e Lactâncio) entre o humano e o divino,

do que como a distância fundamental que os distingue por meio da observação

ritualística do ofício (relegere, na linha da reflexão ciceroniana18). Ao contrário do

sacrifício, que consagra ao divino, a profanação restituiria ao uso e à propriedade

corrente o que estava sob a alçada do sagrado, ligando-os por contaminação, essa

transposição da cesura. A contaminação é, fundamentalmente, o dispositivo capaz

de transmutar a bivalência, até do ponto de vista da etimologia latina, tanto de

profanare como de sacer.19 Se profanar é estar fora do templo, é também estar diante

18 Cf. Maertens (1977:83-91). 19 Este ponto beneficia particularmente de uma leitura agambeniana (cf. Homo sacer) da operatividade do conceito de ambivalência em Freud (cf. Totem e tabu), que faz coincidir o conceito de tabu (polinésico) com o de sacer (romano), recuperando em ambos a sua ambiguidade essencial: “o termo tabu tem, para nós, dois significados opostos. Significa, por um lado, sagrado, consagrado, e significa, por outro lado, inquietante, perigoso, proibido, impuro. Em polinésio, o oposto de tabu é expresso pelo termo noa, que significa comum, acessìvel a todos” (2001:37). Neste seu livro, Freud desenvolve a relação do totem (fundamento simbólico de um sistema de relações familiares e de uma ordem religiosa e social) com o tabu (a observação de um código de restrições e interdições comportamentais por meio das quais se procede a vinculação à autoridade do totem). Com esta reflexão, proponho o equacionamento do estatuto da Bíblia simultaneamente como totem (fundamento de uma ordem civilizacional e fonte de autoridade religiosa) e como tabu (portador de um atributo misterioso, de afinidade animista e alcance supersticioso, que implica o uso de regras para evitar a sua contaminação potencialmente mortífera, cf. Bíblia como fonte de bênçãos e também de maldições, nomeadamente para os seus editores e tradutores). Para isso terá certamente

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26

dele, à entrada desse espaço sagrado; por outro lado, e nisto ambos os conceitos

partilham uma ambiguidade essencial, a dimensão do sacer contempla não apenas o

sagrado como também o maldito, precisamente na medida da sua exclusão de uma

comunidade humana. De que modo, então, nos interessará a nós a dimensão

sagrada do texto bíblico e como a articularemos com a noção de restituição profana

ao uso comum?

Esta é uma questão de posicionamento analítico e da possibilidade do

encontro do crítico com um livro cuja natureza sagrada é não só reconhecida por

muitos dos seus leitores como também textualmente reclamada pelo próprio livro.

A um estudo literário, todavia, o seu halo sagrado só interessa na medida em que é

um efeito produzido pela leitura do texto e desconsiderá-lo implicaria a amputação

de uma das suas possibilidades de fazer sentido(s) – o que seria profaná-lo na

acepção menos nobre do termo. Relativamente ao crítico, este deverá ser sobretudo

consciente da natureza da sua leitura crítica e do seu pendor, em simplificação

dialéctica, profano, já que o seu posicionamento científico não se compadece dos

pressupostos de uma leitura tradicional (como a que é sustentada nos moldes de

uma atitude religiosa). Isto implicará considerar a Bíblia como produto da mente

humana, escrita por pessoas reais que viveram em tempos históricos, sujeitas à

influência da sua cultura,20 e relegar para o plano da crença a ideia de inspiração

divina dos textos e da correspondente obrigatoriedade da existência neles de uma

contribuído o longo recurso à Bíblia em latim e o seu acesso pela mediação institucional católica, que constitui uma forma de proibição da contemplação directa, de algum modo actualizadora do receio antropológico do contacto (délire de toucher), a um tempo inspirador de veneração e repulsa. 20 Sobre as relações da literatura bíblica com outras literaturas da Mesopotâmia, remeto para Damrosch, The Narrative Covenant. Transformations of Genre in the Growth of Biblical Literature (1987).

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verdade intemporal, supra-histórica e supra-natural que exceda a pura dimensão

textual.21

Aceder à Bíblia a partir desta perspectiva, a de restituí-la ao uso comum,

poderá ser profaná-la, mas é também democratizá-la, pragmatizá-la na sua

textualidade, fazê-la cumprir a vocação de todo e qualquer texto – ir ao encontro do

leitor, quem quer que ele seja –, e deste texto em particular: a de lembrar ao leitor o

quanto a experiência cultural da leitura deve à existência de um livro como a Bíblia,

de onde resulta o acto de ler como gesto naturalmente intertextual.22 Também por

essa via se considera aqui o texto bíblico, como voz em diálogo com outros textos,

que o não calam, antes amplificam e transmudam nos seus ecos, no caudal de toda

uma tradição de pensamento literária e teologicamente orientado. Será desta forma

que pretendo atravessar o espaço bíblico, religá-lo a uma determinada experiência de

leitura, que terá de passar pela equação de formas de co-leitura de textos com textos,

pelos textos. O objectivo desta dissertação dir-se-á então vocacionado para o “pacto

da aliança” que é irmanar a experiência de ler a Bìblia e de ler Literatura, aqui restrita

ao corpus de alguma poesia portuguesa do final do século XX, contiguando a leitura

bíblica à leitura de poetas como Ruy Belo, Daniel Faria, Tolentino Mendonça, e

sondando as suas possibilidades de diálogo, de simbiose hermenêutica, como espero

deixar claro na exposição do terceiro capítulo desta tese. O caso de Miguel Torga,

21 Frye manifesta tais preocupações na abertura de The Great Code: “as a teacher I know how emotionally explosive the material I am dealing with is, and how constantly it is the anxieties of the reader that make the primary response to whatever is being said [...]. The academic aim is to see what the subject means, not to accept or reject it [...]. A book concerned with the impact of the Bible on the creative imagination as to by-pass the much more fully cultivated areas of faith, reason, and scholarly knowledge, though it must show some awareness of their existence” (1983:xx, xxi). 22 Destaco o pensamento de Frye, segundo o qual “as the Bible is written in poetic language, it should also be possible to approach it as a kind of microcosm or epitome of the unity of literary experience in Western countries” (Frye 1990:xx).

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que reservo como excepcional, permitir-me-á questionar os fundamentos dessa

aliança pela representatividade singular de um pacto firmado pelo seu avesso, ao

arrepio do acordo auto-reflexivamente aceite pelo grupo dos outros três poetas.

A ferida do desassossego que dá o mote à presente reflexão permitirá

assim, no seu atravessamento inquieto do sagrado e do profano, na sua capacidade

de operar entre a ruptura e a continuidade, indagar a experiência partilhada da leitura

bíblica e da leitura poética nas suas potencialidades de iluminação mútua. Uma

designação como a de poética da sensibilidade bíblica, a par de outra como a de

poeta-teólogo, que aqui também me proponho interpelar e cuja ambiguidade atesta

o seu estatuto tendencialmente provisório, procura precisamente cristalizar as

margens que se encontram neste mesmo espaço fronteiriço, implicando

transferências e comutações tanto literárias como epistemológicas em torno de

mecanismos de metamorfose textual que se entretecem no caminho que vai da

Bíblia à Poesia e que, por seu lado, a Poesia consegue fazer remontar à própria

Bíblia. É nesse trajecto entre o para- e o proto- que se jogará uma consciência do fazer

textual, essa dimensão meta-literária (sempre implícita, quando não explícita) que

assiste ao diálogo íntimo que só o discurso literário tem o privilégio de conseguir

estabelecer consigo próprio.

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1.2. A BÍBLIA E A LITERATURA

Poucas coisas farão tanto sentido em Literatura quanto pensá-la a partir da

Bíblia. Não só pela sua importância para toda a cultura ocidental,23 nem apenas

como objecto cada vez mais reconvocado para um lugar central dentro do cânone

literário, mas sobretudo pela sua capacidade de se dar como paradigma do livro e da

própria literatura. Génesis e Apocalipse da ideia de biblioteca, a Bíblia é também um

livro de identidade e memória, de filiação e pertença. Entre Homero e a Bíblia

concebemos a noção de matriz literária com que contamos para a estruturação do

pensamento, que recorre à narrativa tanto como condição essencial para o seu

próprio funcionamento como para a legibilidade do mundo.24 Se há livro com que

aprendemos a ler tanto o próprio mundo como outros livros, assim de resto nos

mostra Blumenberg (2007) nos termos da relação do livro com o topos do liber mundi,

esse livro será certamente a Bíblia.

Em A leitura infinita (2008), livro alimentado pelo mote de Gregório

Magno segundo o qual “scriptura cum legentibus crescit”, Tolentino Mendonça

coloca a questão da Bíblia como superclássico e tesouro de referências, a meio

caminho entre o excesso e o inacabado:

23 Lembra Robert Alter que “an important but half-forgotten truth about Western culture [is] that the very presuppositions by which we read, our expectations of what literature can do, are predetermined by the decisive early model of the Bible [...] the Bible has always been the text par excellence to be interpreted, the object of endless homiletical and philological ingenuity, the occasion for codifying whole systems of hermeneutical principles” (1992:85). 24 Assinala ainda Robert Alter que “the system of genres of Western literature is surely of Greek origin, but the narrative imagination of individual lives caught in a vortex of private motives and dangerous historical forces also begins quite remarkably in the body of texts created at the Hebrew end of the Mediterranean” (1992:87).

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É um reservatório de histórias, um armário cheio de personagens, um teatro do natural e do sobrenatural, um fascinante laboratório de linguagens […]. (Mendonça 2008:46)

Sendo a Bíblia uma chave indispensável à leitura do real, o desconhecimento bíblico

configura para Tolentino Mendonça uma forma de analfabetismo cultural.25 Se Italo

Calvino tratou com acuidade o conceito de clássico (1994), então com maior

propriedade se pode evocar esta noção de superclássico ou, numa forma de

superlativo hebraico, de clássico dos clássicos, que existe em permanente superação

dos clássicos que lhe sucederam e que, ao invés de ofuscá-la, mais e mais alimentam

o alcance do seu legado.26 Um pouco na linha da angústia bloomiana (Bloom 1991),

referência a meu ver convocável a este propósito, em que a leitura errada (fazer

diferente apesar da herança genética) permite a afirmação do filho diante do pai, a

paternidade da Bíblia em relação à literatura pode dizer-se equivalente à de um

patriarca à cabeça da sua descendência, ao clinamen a que fica a dever, afinal, a sua

própria condição. “Atlas iconográfico” e “estaleiro de sìmbolos” (Mendonça

2008:46), a Bíblia é também aproximável do conceito de metatexto onde caberia o

real bem como, por extensão absoluta, o seu próprio comentário e a previsão

abstracta de todos os textos subsequentes (Babo 1993:53). É, de resto, uma noção

semelhante de hipertexto que move a narrativa de Borges, a “Biblioteca de Babel”, e

25 A este respeito, Robert Alter alerta para o seguinte: “It may be that this endemic illiteracy in relation to the Bible is by now beyond remedy, though perhaps the catastrophe might at least be mitigated by trying to read the Bible as a body of compelling literary texts instead of investigating Scripture” (1992:196). 26 Consulte-se o ensaio de Krister Stendahl, “The Bible as a Classic and the Bible as Holy Scripture” (in House 1992:39-46).

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cujo imaginário pode ser recuperado no que respeita à Bíblia e à sua vocação

universalista do saber.27

A perspectivação da Bíblia como objecto de cultura e aberto à abordagem

das ciências humanas, mais especificamente literárias, para lá das teológicas, ganhou

fôlego sobretudo com a mudança de estatuto que o objecto bíblico veio a sofrer no

século XX, propiciada pelos contributos da história da hermenêutica,

nomeadamente de Dilthey e Schleiermacher.28 A este aspecto não será estranho o

deslizamento epistemológico que Barthes, no ensaio já mencionado “Da obra ao

texto”, apontava relativamente à irrupção de uma vaga de interdisciplinaridade entre

as várias regiões do pensamento humano. Por esse motivo, se de algum modo a

teologia descobriu na literatura o terreno do indizível transposto em palavras, num

século XX em que a manifestação do mal relançou a questão do inarticulável;

também por outro, as ciências literárias foram chamadas a tomar parte no

entendimento moderno da Bíblia, contribuindo para a perspectivação renovada de

um objecto antigo. Embora seja defensável que uma leitura literária da Bíblia fosse

já praticada há séculos29 – podemos pensar se teria sido possível ler teologicamente

27 Detecta Auerbach esta particularidade bìblica ao afirmar que “the Bible‟s claim to truth is not only far more urgent than Homer‟s, it is tyrannical – it excludes all other claims. The world of the Scripture stories is not satisfied with claiming to be a historically true reality – it insists that it is the only real world, is destined for autocracy” (Auerbach 2003a:14-15). 28 Vide Palmer (2006:91-128) e ainda André Laks e Ada Neschke (eds.), La naissance du paradigme herméneutique. De Kant et Schleiermacher à Dilthey (2008). 29 Hardison destaca que, fora de um âmbito disciplinar institucionalizado, as abordagens literárias da Bìblia são coevas à própria história do texto: “when the ancient tradition was assimilated by the Christina authors, comparisons were drawn between Latin and Hebrew authors. Jerome was found of such comparisons. «David», he remarked, «is our Simonides, our Pindar, our Horace», and it is to Jerome that Latin tradition owes its conception of Job as a tragedy, Pentateuch as a heroic poem, and Ecclesiastes as elegy” (1974:11). Lutero valorizava a competência hermenêutica e literária na exegese bíblica (cf. Clines 1980:115). Dentro da exegese moderna, Carreira das Neves (cf. 2008:22) faz remontar o primeiro estudo crítico da Bíblia a Richard Simon, com Histoire critique du Vieux Testament (1678). Registe-se, em 1753, o livro de Robert Lowt De sacra poesi Hebraeorum. Só em 1943,

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um texto sem interpretá-lo também literariamente –, só no século XX se definiu

verdadeiramente aquilo que viria a ser uma consciência crítica, disciplinar, de base

epistemológica, em torno de uma leitura bíblica de esteio literário.

Ao longo da história da interpretação da Bíblia, esta foi objecto de estudo

por parte de diversas áreas disciplinares, como a Filologia, a Retórica, a

Hermenêutica ou a Exegese; mas foi sobretudo a partir do final do século XVIII,

com o Higher Criticism (de Jean Astruc e mais tarde de Julius Welhausen,30 o

famoso autor da Documentary Hypothesis aplicada às questões de redacção do

Pentateuco) que a Bíblia foi sujeita ao escrutínio sistemático da era da razão. A

preocupação dos estudiosos incidia fundamentalmente em dois pontos de natureza

histórico-filológica: a determinação dos contextos de produção do texto e a

decifração e atomização textuais. Já no século XX, nomeadamente a partir da década

de 1970,31 emergiu nos círculos académicos anglo-americanos um movimento de

crítica literária aplicado à Bíblia. Este veio chamar a atenção para a necessidade de

porém, a Igreja Católica reconhece a propriedade de se falar de géneros bíblicos, na encíclica de Pio XII, Divino Afflante Spiritu, sendo que só cinquenta anos depois, em 1993, os esforços do Concílio Vaticano II frutificam no documento A Interpretação da Bíblia na Igreja. 30 Sobre estes autores, sugiro a leitura do livro de Pierre Gibert, L’invention critique de la Bible (2010:299-350). 31 Para Paul House, as sementes de uma disciplina como a crítica literária da Bíblia foram lançadas e começaram a criar raízes neste período, de 1969 a 1981 (cf. 1992:4-15). O marco que assinala uma viragem disciplinar é o da publicação do volume de James Muilenburg, em 1969, Form Criticism and Beyond, a par do surgimento de duas influentes revistas americanas em 1974, Semeia e Interpretation. Na perspectiva de Muilenburg, inspirada pelo contributo da estilística de Luis Alonso Schökel (autor de Estudios de poética hebrea, em 1963), a crítica retórica poderia contribuir substancialmente para o avanço no campo dos estudos do Antigo Testamento. Este repto parece ter sido aceite nos círculos académicos e amplificado nos contributos ensaísticos veiculados por Semeia e Interpretation, abrindo caminho a para outras abordagens literárias, nomeadamente as estruturalistas (onde pontificavam nomes como os de Levi-Strauss, Roland Barthes e Paul Ricoeur). Assinale-se ainda, em 1976, a formação de uma rede atlântica com o aparecimento do Journal for the Study of the Old Testament em Inglaterra, dirigido por Gunn e Clines, de assumida inspiração formalista (na recusa do vocabulário especificamente estruturalista e da importância do contexto filosófico, pelo valor intrínseco dos textos, seus temas, motivos, mensagem, trama, caracterização e descrição, na defesa da unidade do texto bíblico contra a sua atomização).

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entender a natureza do texto e a sua interacção com o leitor através do preceito de

que a Bíblia é também Literatura, desenvolvendo a sua abordagem a partir de

ângulos que não morais, teológicos, filológicos, sociológicos, arqueológicos ou

historiográficos.

Com a divisa the Bible as literature, expressão cunhada por Mathew Arnold,

autor de Culture and Anarchy (1869) e de Literature and Dogma (1873),32 os estudos

bíblicos vêm a encontrar na crítica literária mais um parceiro disciplinar, cujo mote,

problematizável na medida em que revela mais sobre a análise a que se procede do

que sobre o objecto em causa, defende que os métodos empregues no estudo de

qualquer outro texto literário (salvaguardadas as devidas especificidades) são válidos

também para o estudo da Bíblia. É, porém, com o New Criticism – nascido na

primeira metade do século XX em reacção contra o historicismo literário – que se

reúnem condições disciplinares para o surgimento de uma moderna crítica literária

da Bíblia, preconizando o encontro directo com o texto e a minimização da

interferência de factores extratextuais, através de uma especial atenção à autonomia

da linguagem.33

32 Refira-se ainda que, em 1899, Richard Moulton publica o volume The Literary Study of the Bible, explorando aspectos como narrativa, poesia e profecia bíblicas. A recepção deste trabalho não foi notória, nem desencadeou nenhuma vaga crítica que se pudesse dizer ter contribuído para a revitalização dos estudos bíblicos da época. 33 Chamo a atenção para Damrosch: “within biblical studies, an important factor is certainly an element of rebellion against the atomistic tendencies often found in earlier historical work. In this respect, contemporary literary study of the Bible resembles the New-Critical rejection of historical-biographical literary study in the 1930s” (1987: 18). Veja-se ainda John Barton (1997), Reading the Old Testament, capìtulos “The New Criticism” e “The Text Itself”. O impulso do New Criticism na abertura dos estudos bíblicos aos estudos literários será transmitido ao estruturalismo pelos seus teóricos, cf. ensaio de Richard Jacobson, “The Structuralists and the Bible” (in House 1992:100-117).

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O crescente interesse dos estudos literários pela Bíblia vem a concretizar-

se numa viragem epistemológica protagonizada por três34 nomes cimeiros: Erich

Auerbach com a publicação de Mimesis (1946), o ponto de partida do moderno

entendimento literário da Bíblia; Northrop Frye com The Great Code. The Bible and

Literature (1981), abordando os arquétipos da imagologia bíblica e defendendo a

unidade da estrutura narrativa; e Robert Alter, que publica The Art of Biblical

Narrative (1981) sobre a especificidade do género narrativo na Bíblia (nessa mesma

década publica ainda The Art of Biblical Poetry, em 1985, e The Literary Guide to the

Bible, em 1987, com que se torna definitivamente uma referência incontornável na

área). Na década de 1990, a nova disciplina tinha-se já afirmado como alternativa

válida ao impasse e estagnação nos estudos tradicionais do Antigo Testamento,

provendo novas formas de ler as Escrituras Hebraicas na sua unidade e engenhos

narrativo e poético.

Em Mimesis. Representation of Reality in Western Literature (1946), obra clássica

para os estudos literários e em muitos sentidos (re)fundadora da nossa percepção de

património literário e da sua relação com o real, Erich Auerbach aborda alguns dos

traços mais significativos da literatura bíblica com uma lucidez que viria a resgatá-la

em definitivo para o campo da moderna crítica literária. Comparado passagens do

Génesis e da Odisseia, no ensaio de abertura “Odysseus‟ scar”, Auerbach destaca

precisamente o laconismo da retórica bíblica, aquilo que nela fica por dizer e que

convida o leitor a um exercício de leitura participada de forma a descobrir o que se

poderia chamar a cicatriz do texto, os sentidos que oculta e que simultaneamente

34 A par destes, alguns outros poderiam ainda ser elencados, como os de Meir Sternberg e James Kugel.

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denuncia. Se, na história de Ulisses, a anagnórise constituía o movimento através do

qual a narrativa, já de si opulenta, se tornava derradeiramente explícita; no caso da

Bíblia, pelo contrário, a chave para o entendimento reside no seu implícito, no que

permanece oculto e não se dá como escandaloso ao nosso olhar. É precisamente essa

noção de escândalo que se torna importante como epistemologia de leitura, móbil

de consciência crítica perante o que o texto revela ou não – o que se aproxima do

conceito de contra-texto desenvolvido por Roland Barthes, no seu livro A aventura

semiológica (1987a:211).

Em 1981 Northrop Frye publica o ambicioso The Great Code. The Bible and

Literature.35 O estudioso de William Blake, para quem “The Old and New

Testaments are the Great Code of Art”, fica a dever-lhe o nome da sua obra capital,

inscrevendo-o na herança blakeana, em que a presença bíblica está fortemente

indiciada. Para aquele que é também o autor de Words with Power (1990), sequela36 de

The Great Code e obra modelar da crítica arquetípica (juntamente com Anatomy of

Criticism37) da qual o nome de Frye passou a constituir referência maior, existe na

Bíblia um princípio unificador da sua consistência literária que se dá a entrever no

modo de estruturação que sustenta o edifício bíblico. Este assenta, para Frye, num

35 Este título viria depois a inspirar o best seller americano, de sustentação e objectivos bem diversos aliás, The Bible Code, de Michael Drosnin, em 1997. 36 Embora o seja formalmente, Frye reclama tanto para The Great Code como para Words with Power o estatuto de livros completos em si mesmos, destacando nesse sentido a orientação diversa que preside a um e a outro. O primeiro corresponderia a uma “preliminary investigation of Biblical structure and typology” (1990:xi), ao passo que o segundo “puts more emphasis on critical theory, and tryes to re-examine the Bible on a level that makes its connection with the literary tradition more comprehensible” (1990:xii). 37 Nas palavras do próprio Frye: “my general critical position, set out in Anatomy of Criticism and other books, revolves around the identity of mythology and literature, and the way in which the structures of myth, along with those of folktale, legend and related genres, continue to form the structures of literature” (1990:xii).

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36

paradigma de raiz tipológica que articula a parte com o todo. O mecanismo

tipológico de Frye elege como modo privilegiado de operação a manifestação

recorrente de padrões literários de base arquetípica que, pela sua repetição e

capacidade de aliar níveis distintos de profundidade e superfície, asseguram não

apenas a continuidade do sentido bíblico (nomeadamente na fronteira entre o

Antigo e o Novo Testamento) como também a coesão da sua imagologia própria, o

modo de dizer-se na sua biblicidade – que configura, de certo forma, esse código que

viria a constituir a base de uma linguagem para a literatura,38 ponto de onde aliás é

endereçável o subtítulo do livro, The Bible and Literature: “I wanted to suggest how

the structure of the Bible, as revealed by its narrative and imagery, was related to the

conventions and genres of Western literature” (1990:xi).

É com Robert Alter, todavia, que se institucionaliza modernamente o

campo de estudos da Bíblia enquanto literatura, com a publicação de The Art of Biblical

Narrative em 1981. Há neste e nos trabalhos que veio a publicar depois uma

atmosfera de pioneirismo a que Tolentino Mendonça já se referiu como “o charme

dos precursores” (2008:32). Auscultando de perto os mecanismos envolvidos na

produção de sentido das narrativas bíblicas, Alter demonstra como nos têm passado

despercebidas, ao longo de décadas de prática de crítica bíblica, os recursos que

concorrem na narrativa bíblica para a elaboração de uma relação interpretativa em

que se supõe que o leitor participe de acordo com uma arte da narração, um

38 Relativamente a este aspecto, o autor reconhece a importância do pensamento de Giambattista Vico, “the first modern thinker to understand that all major verbal structures have descended historically from poetic and mythological ones” (Frye 1990:xii). Veja-se, por exemplo, em La science nouvelle, o capìtulo intitulado “corollaires sur le langage par caractères poétiques des premières nations” (Vico 1993), assim sumarizado por Frye: “every human society possesses a mythology which is inherited, transmitted and diversified by literature” (1990:xiii).

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37

processo engenhoso de dizer e de organizar o que é, e mais precisamente o que não

é, dito através de uma mestria sábia de ambiguização narrativa, do uso da repetição,

da técnica do diálogo ou da construção da perspectiva do narrador. Alter dará

continuidade a este mesmo caminho em The Art of Biblical Poetry (1985), ao

equacionar a importância do paralelismo como medium poético privilegiado da poesia

hebraica, não desagregando o labor da forma como parte essencial da dinâmica do

sentido bíblico.

Actualmente, o campo de trabalho que investiga as relações entre a Bíblia

e a Literatura tem conhecido, como vimos, duas filiações epistemológicas de

natureza distinta, que se manifestam em cada um dos casos, desde logo, pelo arranjo

sintáctico da relação dos dois termos em apreço – Bíblia e Literatura. Considero

portanto duas designações que derivam de aplicações equacionais ramificadas a

partir de um mesmo ponto de convergência prévio, usando precisamente os

mesmos membros operatórios, sendo que em cada um dos casos se toma como

elemento central a relação que se estabelece entre ambos. Perspectivando redes de

relações terminológicas como a Bíblia e a Literatura e a Bíblia como literatura, é

detectável a existência de uma ligação de natureza diferencial, na medida em que

cada uma delas assume a deslocação de um foco prévio entre os dois pólos, para

nele imprimir, por um lado, uma orientação de feição centrífuga e, por outro,

centrípeta. Vejamos como.

No primeiro caso, parece haver uma certa paridade entre os termos da

relação, dada pela partícula copulativa e, que estabelece uma ligação entre ambos,

fazendo-o no entanto com recurso a uma certa ideia de movimento que recupera a

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38

valência latina da preposição ad, ao deslizar de um elemento para o outro – no que a

ordem das palavras desempenha um papel crucial, embora não absoluto. Se, por um

lado, os estudos nesta área se dedicam à importância da Bíblia na Literatura, à forma

como esta reproduz e recria os modelos bíblicos, por outro, eles também destacam

o modo como a revisitação literária da Bíblia cria uma instância privilegiada para um

diálogo de leituras, permitindo a ampliação das câmaras de ressonância do texto

bíblico nos textos literários que, pela exploração do bíblico e da sua indissociável

carga teológica, se tornam eles mesmos patamares de interpretação. É com este

campo que a investigação levada a cabo nesta tese tem mais afinidades, nele

encontrando sustentação epistemológica e localização referencial: uma forma de

interpretar a Bíblia é precisamente escrever sobre ela, reescrevê-la e deformá-la (na

lógica que assiste à dinâmica do discurso teologal, de que fala Compagnon, de que

me ocuparei no próximo capítulo39).

O segundo caso deixa transparecer um sentido concentracionário em

torno da categoria literatura, operando desta forma uma coincidência entre áreas

conceptuais, cujo efeito retroage sobre a ideia de Bíblia – o que afunila o campo de

perspectivação da mesma, assim circunscrita à sua dimensão literária; o elemento

como, por sua vez, insere nesta equação a tonalidade de uma componente transcodal,

sugerindo o vazamento da matéria bíblica em linguagem literária ou o

reconhecimento do que há-de intrinsecamente literário na sua linguagem própria.

Em ambas as partìculas (“e” e “como”) se agilizam fenómenos de movimento, de

deslizamento (mesmo em sentido barthesiano). Refira-se ainda que não teria sido

39

Ver ponto 2.5. desta tese.

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39

possível conceber inteiramente a importância da recepção bíblica nos estudos

literários sem entender em simultâneo o quanto foi a Bíblia objecto de alterações na

sua perspectivação nos campos disciplinares que dela se ocupavam tradicionalmente.

Conceber a Bíblia como literatura, percurso que acompanharemos até ao final deste

subcapítulo, tornou-se assim condição indispensável para alargar o verdadeiro

alcance do seu legado à literatura.

Esta renovação do olhar da crítica sobre a Bíblia ganha, a meu ver, em ser

considerada a partir da importância que o texto adquire no âmbito dos estudos

literários. Ao suceder ao império do autor como ponto de gravitação do interesse da

crítica literária (como acontecia no âmbito da crítica histórico-filológica) e

simultaneamente operando uma transição para o paradigma do leitor (de que se

ocupará posteriormente a teoria da recepção), o texto considerado na sua imanência

conquista uma preponderância inegável na determinação das relações de sentido –

como de resto assinala Roland Barthes num ensaio clássico, “A morte do autor”

(1987b).40 Num seu outro ensaio, “Da Obra ao texto” (1987b), Roland Barthes

defende ainda que, ao invés de conter um significado estático que se mostra, o texto

é antes de mais uma rede com que se joga no plano do significante e que se

demonstra; uma prática significante que excede a condição do produto estético.

Assim sendo, à filiação da obra opõe-se a disseminação do texto (também em

acepção derridiana), enquanto campo metodológico onde se constrói um percurso

semiológico pela leitura, compatível com a noção dinâmica de travessia que faz de

todo o texto um entretexto, que atravessa e é atravessado por textos outros. Neste

40 Ver ainda, neste sentido, Umberto Eco, Les Limites de l’interprétation (1992).

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40

sentido, e beneficiando da visão de Barthes sobre o texto enquanto o espaço do

“próprio infinito da linguagem” (1987b:228), um estudo literário da Bíblia terá de

apostar numa perspectivação particular do objecto em análise, que passará pela

transformação do modo de encará-lo – não somente como uma obra (em sentido

estrito e definido), mas sobretudo como um texto que se dá como estruturação

relacional em permanente refeitura no acto de ler.

Ora, este factor viabiliza a realização de novas leituras, por mais antigos

que sejam os textos e por mais comentados que tenham sido, sendo que uma tal

alteração epistemológica impede que os textos bíblicos fiquem cativos de uma ou

outra disciplina (como ficaram durante séculos dependentes de leituras religiosas e

teológicas), podendo colher-se importantes resultados pela aplicação de métodos e

propósitos que não os habituais. A leitura imanente da Bíblia,41 isenta de disposições

extratextuais e de concepções ideológicas previamente constituídas, poderá deste

modo ser um exercício descomplexado e apto a devolver o texto a si próprio, assim

reabilitado à sua autonomia relativa. Considerando uma locução como a de

„Sagradas Escrituras‟, o ponto torna-se evidente no modo como o substantivo

“escrituras” se tem eclipsado sob o adjectivo “sagradas” – no que a dimensão

textual do objecto tem sido subsumida por abordagens que ficam além do texto,

como a teológica (separando o texto do que se acredita ser a sua mensagem), ou que

ficam aquém deste, como a histórico-filológica (tornando o texto refém dos

condicionamentos contextuais que procura determinar). É por isso que, como nos

diz Chabrol, “ler será sempre perder o texto e o sentido […] idealizados, para aceder

41 Groupe d‟Entrevernes. 1985. Analyse sémiotique des textes. Lyon: Presses Universitaires de Lyon.

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41

ao texto tal como ele se dá a ler, no dinamismo revelatório que lhe é inerente” (apud

Mendonça 2008:25).

Uma leitura desejavelmente íntegra deverá, pois, voltar a sua atenção para

uma pragmática do texto (independentemente de quão importantes possam ser o

contexto de produção, o seu autor ou a contribuição do leitor como crítico do

sentido) e regressar ao patamar da sua letra, da leitura que permanece por fazer com

cada leitor – para reincidir no ponto jaussiano que introduziu este capítulo. Ao

destacar aqui a questão da letra do livro, não ignoro certamente os vários níveis de

estratificação do sentido que amiúde se convocam quando falamos de interpretação

bíblica – a par de um primeiro sentido, o literal, teríamos outros três, o alegórico, o

moral (ou tropológico) e o espiritual (ou anagógico).42 Em vez de considerá-los

numa espécie de simultaneidade horizontal, a perspectiva de uma crítica literária da

Bíblia é a de uma disciplina de leitura que assenta na sequência vertical, de feição

sincrónica, sendo que o acesso a quaisquer outros eventuais sentidos pressupõe que

estes estejam já indiciados na letra do texto.43 Deste modo a legitimidade do texto

ficará salvaguardada, uma vez que não há fora dele, tal como se nos apresenta,

42 Esta deriva essencialmente de uma concepção interpretativa cunhada por Cassiano e por Santo Agostinho, à qual poder-se-iam apor outras como a de Orígenes e S. Jerónimo (em que os sentidos da leitura se estratificam em três níveis: o histórico, o moral e o místico) ou ainda a da tradição rabínica (em que teríamos sentidos simples, alusivos, interpretativos e secretos – cada uma das iniciais destas palavras em hebraico constitui um acróstico de PaRDéS, o que sugere a leitura como caminho de acesso ao paraíso). Remeto neste ponto para Mendonça (2008) bem como para Lubac (1998). 43 Defende-o também Frye: “the literal level, hearing the Word and seeing the text, is at the center if the activity of sense experience, the foundation of all knowledge. The allegorical level is at the center of the contemplative reason which sees the world around it as objective, and hence as a type or image concealing what the reason can interpret. The moral, or third, level is that of the faith that transcends and yet also fulfills the reason, and the anagogic level is at the center of the beatific vision that fulfills faith” (1983:223).

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42

nenhum outro elemento com pretensões a factor condicionante da interpretação

literária mais apto do que o próprio texto a conduzir essa leitura.

De uma forma ou de outra todos teremos sido a dada altura advertidos

contra os perigos de uma interpretação literal, mas quantas vezes terá esse argumento

impedido de lermos o que o texto realmente diz? Esta questão é magistralmente

tratada por Robert Alter (1992), num capìtulo sobre “narrative specification and the

power of literal”, ao defender que, depois de dois milénios de leituras alegóricas da

Bíblia, talvez tenha chegado finalmente o momento de os críticos (no sentido

inverso ao posicionamento de uma atitude crente e libertando-se de pressões

institucionais consciente ou inconscientemente operantes) pensarem sobre o seu

sentido literal, até porque afinal “it is the literal that creates the potential of narrative

to mean many things” (1992:106). Por que haveríamos nós de pensar sempre em

baptismo quando lemos sobre o Dilúvio ou considerar cada referência a „cordeiro‟

ou „serpente‟ como sìmbolos tipológicos de Cristo ou de Satanás? Por que não

libertar as palavras do fardo da alegorização, quando o texto não o exija, e passar a

ler as parábolas de Jesus como parábolas e considerar os nomes bíblicos

simplesmente como nomes, ao invés de os sujeitarmos a complicados jogos de

aritmética e etimologia? Ainda que tais exercícios possam ser produtivos em

determinados contextos, não deveremos desperceber que ler para lá do texto só

poderá ter cabimento na medida em que não implique a tresleitura ou a ignorância do

texto que se nos dá a ler. É por isso que Barthes (1987b:211), ao falar de contratexto,

diz ser preciso ver o texto em todo o seu escândalo, em contra-luz, perante a

inocência de um nosso primeiro olhar, dando-se em evidência.

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43

Estas são preocupações de que a crítica literária da Bíblia de modo geral

vai dando conta. Uma formulação recorrente na titulação de muitos estudos

académicos dedicados a uma abordagem literária da Bíblia tende a reproduzir

expressões como “the art of”, “the poetry of”, “the poetics of”, “the rhetoric of” a

par das designações de “biblical narrative”, “biblical poetry” ou ainda “biblical

story”. Esta é uma terminologia que espelha a movimentação de campo

relativamente ao objecto que aqui nos ocupa, observado com as lentes do literário e

situado num ponto de diálogo entre fronteiras disciplinares – o que faz com que

muitos destes trabalhos se coloquem naturalmente num campo disciplinar que

encontra na Literatura Comparada um lugar de acolhimento institucional para os

que, trabalhando em literatura, desejam contemplar essa natureza literária que a

Bíblia também contém.

Embora alguns teóricos não subscrevam inteiramente a lista de postulados

metodológicos básicos que poderiam caracterizar aquilo a que chamamos

abordagem literária da Bíblia, a maioria assume os seguintes traços como distintivos

do seu trabalho: o primado da opção sincrónica (o estado final do texto, a assunção

da sua unidade), bem como a interpretação do sentido disseminado pelos contextos

de leitura.44 Ao invés de investigar a evolução diacrónica ou de promover a obsessão

pelo sentido primeiro e intencional, que seria o do autor, a sua prática de leitura

investe num percurso construído ao longo dos pactos estabelecidos pelo texto e,

sem procurar sentidos ocultos não indiciados, demanda activamente o „adquirido‟

(não se ficando pelo „dado‟), numa relação de cumplicidade com o texto, rondando

44 Consulte-se Tolentino Mendonça. 2004. A Construção de Jesus. Lisboa: Assírio&Alvim, pp.25-27.

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44

os seus possíveis, segundo os códigos de significância que o próprio texto forneça.

Este reposicionamento da importância do texto na sua relação com o leitor permite-

nos, de algum modo, fazer frente ao problema hermenêutico dos dois horizontes (o

abismo que separa o texto antigo do leitor moderno, a dinâmica do círculo

hermenêutico), na medida em que lendo o texto na sua substância literária o leitor

encontra o poder e a força do texto conservados ao longo do tempo, ganhando

assim uma dimensão simultaneamente histórica e contemporânea (cf. Barton

1998:27).

É necessário, porém, que a crítica literária reconheça os importantes

contributos do historicismo crítico nos estudos bíblicos – décadas de pesquisa

proporcionaram-nos um conhecimento imprescindível sobre os problemas do texto

bíblico e o percurso de constituição da sua identidade. Sabê-lo não significa, todavia,

continuar a investir nos mesmos objectivos. Datação, categorização, divisão,

atribuição de autoria não devem continuar a obscurecer o encontro dos leitores com

o texto, com o seu enredo, os seus temas, as suas personagens ou os seus motivos

literários; deste modo a actual crítica literária da Bíblia dará a devida visibilidade a

matérias textuais, já não subsumidas sob o excesso de matéria pré-textual.45

Isto traz-nos novamente à questão da Bíblia enquanto literatura. Haverá um

objecto que porventura possa dizer-se vazio ou purgado de qualquer outra

substância, sendo tão-somente o que quer que consigamos entrever na designação

45 Este diagnóstico é avançado por Paul House em “The Rise and Current Status of Literary Criticism of the Old Testament”: “numerous scholars began to recognize that some of the stablished approaches divide and atomize texts. These methodologies obscure the unity of large and small texts alike. Efforts to date, categorize, and scrutinize even short passages had produced organized texts not all could appreciate. An overemphasis on historical detail cost readers a proper understanding of plot, theme, and character” (1992:3).

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45

literatura? Este poderá ser um problema na medida em que, se a dada altura nos

permitiu ver a Bíblia com uma riqueza maior do que esperaríamos, poderá agora

impedir-nos de contemplá-la na sua totalidade ou levar-nos a descurá-la na sua

complexidade. É perante esta espécie de paradoxo que Robert Alter coloca com

alguma dose de ironia a questão nestes termos: “It would at the very least be

gratuitous to speak of „Dante as literature‟, given the assured literary status of

Dante‟s great poem, though the Divine Comedy is more explicitly theological or

„religious‟, than most of the Bible” (1981: 19). Será portanto imprescindível, se

havemos de ser honestos enquanto críticos, insistir na complexa rede de referências

literárias, teológicas, morais ou historiográficas que se interpenetram no tecido

bíblico. Nisto nos aproximamos do ponto que Joel Rosenberg preconiza a este

respeito: “The Bible‟s value as a religious document is intimately and inseparably

related to its value as literature” (apud Alter 1981: 19), sendo que o contrário

também não pode deixar de ser verdade.

Na percepção do sentido está toda a razão de ser da leitura, agilizando-se

na dinâmica que se estabelece entre o todo e as partes que o compõem. É por isso

que julgo que uma leitura que se diga literária há-de procurar o como do sentido.

Alguns críticos falam da importância do texto na produção de significado como se

de uma falácia ou ilusão46 se tratasse, já que sem coordenadas de produção e

sobretudo de leitura o texto poderá ser apenas um ponto sem referência, perdido no

vazio. Admitamos pois que as leituras variam, como variam necessariamente de

46 “The text‟s autonomy is a long-exploded myth: the text has no meaning or may assume every kind of meaning, outside those coordinates of discourse that we usually bundle into the term „context‟” (Sternberg 1985: 11).

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46

leitor para leitor; ainda assim toda a legitimidade do trabalho de interpretação se joga

na explicitação desse como: de que modo são as propriedades da linguagem

trabalhadas para se obter um determinado efeito retórico? Em que altera isso a

nossa percepção do que está a ser dito? Temo-nos a nós (carácter e experiência),

dispomos do texto (tal como parece que se nos apresenta), estamos na posse de

algumas conjecturas históricas – é difícil dizer até que ponto podemos construir

certezas a partir do que temos, pois estas premissas serão sempre problematizáveis.

Uma coisa é certa: perante o que o texto diz ou não diz, o crítico poderá procurar-

lhe o seu particular modo de ser. Então ser-nos-á útil a nossa prática de leitores, na

medida em que aprendemos a ler com livros; é por isso que ler o Livro radicará

sempre num gesto de comparação.

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47

1.3. A BÍBLIA, A CRÍTICA E A LITERATURA PORTUGUESA

Em A Bíblia na literatura medieval portuguesa, obra de referência para quem

dos estudos literários portugueses se aproxima às matérias bíblicas, Mário Martins

empreende uma viagem a essa região da crítica pouco visitada em Portugal. Embora

restrito, em termos de corpus, aos domínios da medievalística, o autor não deixa de

apontar para outros momentos do “grande rio da nossa literatura” quando tal se

justifica, em busca da dimensão bìblica que habita as “suas entranhas, mesmo

quando a não enxergamos à tona da água” (1979: 7). Mostra Mário Martins nesta

breve colecção de ensaios o quanto, e de que modos, a literatura portuguesa se

encontra com o texto bíblico e é por ele fecundada ab ovo. Estando assim o texto

bíblico inscrito naquela que é uma das matrizes, ou redes seminais, da literatura

portuguesa, seria legítimo perguntar se a sua importância justificaria investigação

relativa a outros períodos literários. A esta questão têm alguns estudos dado

timidamente resposta, mas sem contribuir de forma assumida para um projecto

maior que enforme aquilo que poderia constituir precisamente um novo campo de

estudos que em Portugal, até agora, não existe senão como vaga possibilidade ou

abstracção algo remota.

Ao contrário, por exemplo, do que acontece com a herança clássica nas

literaturas ditas modernas, está ainda por fazer entre nós um levantamento

abrangente e sistemático da importância do texto bìblico nesse “grande rio da nossa

literatura” – para regressar a Mário Martins, que sugestivamente utiliza a este

propósito uma imagem que convoca o lugar entre fronteiras, o espaço que faz distar

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48

as margens, às quais voltará a referir-se sob formulação afim, a da superfície

(“tona”) e a da profundidade (“entranhas”). São estas, pois, reveladoras formas de

figuração do problema que a Bíblia continua a colocar: sabemos que ela está lá, mas

conseguimos vê-la ou distingui-la de entre o que julgamos reconhecer? Que rio é

ainda preciso atravessar para chegar até ela? Em que constelação do texto, do

pensamento, da nossa memória cultural habita essa matrix literária? A esta mesma

linha de questões pode somar-se ainda outro aspecto, que se prende com perceber –

e não é questão menor – se este é ou não um problema menos da produção literária

(no que a leitura silenciada da Bíblia configuraria uma forma de recalcamento, ou de

tabu em torno de, precisamente, um totem47) do que da actividade crítica em torno

dos textos.

Tais indagações permitem, creio, olhar sob uma outra luz para afirmações

sintomáticas tanto do fosso instalado na nossa relação fracturada com o signo

bíblico como de uma certa obnubilação crítica, para exemplo da qual tomarei as

palavras de José Nunes Carreira, em outra das referências obrigatórias neste campo

de investigação, Camões e o Antigo Testamento. Aí se afirma, com base numa lógica de

quantificação, que

o Antigo Testamento [se dilui] envergonhado no grandioso travejamento mitológico de Os Lusíadas, [que] ao lado do recheio clássico e mitológico de Os Lusíadas, o Antigo Testamento faz figura de parente pobre [ou ainda que] escassas são as pedras do Antigo Testamento no mosaico da poesia lírica de Camões (1982: 35, 36, 66).

47 Remeto neste ponto tanto para a Freud, sob o tópico da morte do pai, como para Bloom (1991), que na sua teoria da poesia advoga o paradigma da escrita de poesia como forma de desleitura, erro ou desvio de uma referência literária precursora – questões que nos têm aqui acompanhado e a que voltaremos.

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49

Estas asserções são, a meu ver, duplamente significativas na sua forma de dizer e de

serem ditas e não perdem validade quando deslocadas do caso camoniano, na

medida em que não nos falam apenas da observação que os críticos fazem dos

textos, dizendo também muito – e talvez ainda mais – acerca do próprio modo

como estes lêem. É pois neste sentido que interpreto T. S. Eliot, em “Religion and

Literature”, quando afirma que “we [e Eliot está aqui a referir-se também à

comunidade de críticos de literatura] have tacitly assumed, for some centuries past,

that there is no relation between literature and theology” (1975: 97) – o que, se por

um lado, se manifesta na recusa do olhar (“there is no relation”), por outro, conduz

ao perigo inverso de insistir na abordagem numérica ou factológica que em tempos

sustentava os estudos, já datados, de fontes e influências, em que é ao levantamento

de ocorrências que cabe a consolidação do argumentário.

Se a presença de uma cultura literária bíblica não parece ser tão forte

como a da cultura clássica na literatura portuguesa, tal não terá de ficar a dever-se ao

facto de essa presença não existir de todo ou de ser uma sua vertente menor.

Haveria também de equacionar-se o que poderá muito bem constituir uma síndrome

de umbridez ou turvação crítica,48 o quanto é aos nossos olhos mais fácil distinguir o

48 A este respeito, retive um comentário de Northrop Frye em que se refere ao caso da Bíblia através de uma leitura do conto “The Purloined Letter”, de Edgar Allan Poe (na origem de inúmeros comentários, como os de Derrida ou Lacan, cf. ensaio de Servanne Woodward em Comparative Literature Studies, vol. 16, n.º1, 1989, Pennsylvania State University Press, pp. 39-49): “There has recently been a good deal of critical discussion about Poe‟s story [...] much of it deals with the story as a psycological allegory, and with such questions as whether the letter itself is a symbol of a phallus or a clitoris. If we must have such allegorizing, it seems better to have one that does not lose sight of the fact that a letter is a verbal message. A story about a verbal message that various people want to kidnap, can‟t kidnap because they can‟t see it, and can‟t see it precisely because it is staring them in the face, seems to me also an allegory of what I am talking about [...]. For literary critics my “purloined letter” is the Bible, a book normally excluded from discussions of literature [...]. For Biblical scholars the “purloined letter” is the language of myth and metaphor, the

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que é distinto do que aquilo que é semelhante (entendendo aqui a semelhança como

forma abreviada de uma dose de diferença), o papel que a diferença opera no acto

de conhecer num contexto que é o da nossa cultura – dita precisamente de matriz

judaico-cristã, que funciona para nós como pano de fundo, painel ou substrato

referencial do modo como nos concebemos culturalmente e de como o fazemos

lendo. Não quero com isto elidir a importância histórica de movimentos culturais de

diversa ordem que influem sobre as propriedades da produção literária, como é por

exemplo o caso de Camões e da codificação literária vigente no seu tempo – o que,

por sua vez, contribuiria também quer para a preferência de certos temas quer para

o silenciamento de outros, sobretudo nas épocas mais sensíveis à discursivização de

matérias religiosas (por motíveis atendíveis como a censura inquisitorial ou política).

Um exercício de levantamento bibliográfico confirmará o diagnóstico de

que a produção crítica nesta área é muitíssimo escassa e que existe, por assim dizer,

todo um mapa em branco (e, em certa medida, branqueado) no que diz respeito ao lugar

da Bíblia na literatura portuguesa; embora esteja em crer que nos países católicos a

situação não deva andar muito longe deste mesmo panorama relativamente às suas

próprias literaturas. Em face disto, poderia até colocar-se a hipótese de que as

matérias bíblicas, no que ao estudo da literatura diz respeito, têm sido submetidas a

um processo de rasura, falando quer de uma perspectiva cultural quer académica. A

secularização da nossa sociedade se, por um lado, tende a purgar do quotidiano o

discurso do religioso, por outro, cria também o espaço necessário para pensar

livremente sobre ele. Resulta, por isso, tanto mais estranho este silenciamento do

essential language in which the Bible is written, and yet a language excluded as far as possible from historical and doctrinal aproaches to it” (1990:xxi).

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pensamento crítico sobre a Bíblia na nossa literatura – o que poderá evidenciar uma

de duas coisas: ou há ainda mecanismos de censura actuando inconscientemente em

todos nós, pela força da história das ideias como dos hábitos e de estereótipos

vários, ou é bem provável que perdure um sentimento de reverência excessiva quer

para com a instituição religiosa, quer para com o fechamento de uma dada

„inteligência‟ nos casulos disciplinares que tradicionalmente reclamam para si

autoridade de pronunciação sobre a Bíblia.49 Esta é uma conjuntura de factores, a

que poderia adicionar-se um outro – a de uma ignorância fatal que nos foi inculcada

em termos de um conhecimento fundamental que teria necessariamente de escapar

ao processo de leitura de todo o leitor comum –, o que cerceará a actividade do

crítico de literatura ao aproximar-se dos domínios bíblicos.

Há, assinale-se, excepções a este estado de coisas, nomeadamente quando

um percurso de análise está obrigatoriamente marcado pelo perfil do texto ou do

autor a ler – como é, em certa medida, o caso de Gil Vicente ou o do Padre António

Vieira. Ainda nestes contextos, porém, a importância do contributo bíblico corre o

risco de ser secundarizada, na medida em que este surge quase sempre a título de a-

propósito do texto, reduzido a uma condição próxima do acessório, ao invés de

49 A questão da autoridade interpretativa pode remontar ao confronto entre Católicos e Protestantes, à época da Reforma protestante e da Contra-reforma católica, em que para além de questões de ética religiosa o debate se centrou na relação com o texto bíblico. É com Lutero que, na linha de contestação erasmiana, se dá a separação de águas, em torno da defesa do princípio da sola scriptura e da liberdade interpretativa do crente. Ao invés do que acontecia com o império da Bíblia latina de Jerónimo, o acesso do leitor ao texto bíblico na sua língua (traduzida directamente das línguas originais, veritas graeca et hebraica) permitiu que todo o leitor beneficiasse da invenção de Gutenberg (1455) para se tornar um potencial hermeneuta. A Contra-reforma católica, com base no Concílio de Trento (1545-1563), insistiu na repartição da autoridade religiosa pelas Escrituras e pela Tradição, prescrevendo a intermediação do texto pela leitura patrística. É este o contexto histórico em que se lançam as sementes para o inìcio de “l‟invention critique de la Bible”, como defende Pierre Gibert (2010:17-30).

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52

ganhar relevo como problema em torno do qual o texto ganha em ser lido,

enquanto referência que activa mecanismos de significação de que o texto se faz

valer com propósito. Mas se, por um lado, parece haver instalada uma espécie de

resistência ao texto bíblico e sua herança religiosa, por outro ele dá provas de estar

em permanente regresso, como aliás é próprio de um clássico, também em acepção

calviniana, a que acabamos sempre por render um esboço de mesura, como ao

retrato de um patriarca remoto (Alter). É, por isso, de destacar o contributo

oasístico da revista Via Spiritus, revista do Centro Interuniversitário de História da

Espiritualidade (Universidade do Porto), cujo volume número doze é dedicado ao

tema “Poesia e Bìblia” (2005), que tem por sua vez vindo a criar espaço crítico para

uma memória bíblica perpetuada nas suas relações com a produção de poesia em

Portugal.

Gostaria ainda de assinalar um acontecimento que me parece digno de

nota e que veio enriquecer o campo de estudo das relações entre religião e literatura

em contexto português. Refiro-me a um conjunto de iniciativas que tiveram lugar no

ano de 2005, com o vigésimo aniversário da morte do padre Manuel Antunes, numa

acção conjunta da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, da Fundação

Calouste Gulbenkian e da Universidade Católica Portuguesa, de onde resultou em

2007 a publicação do livro Padre Manuel Antunes (1918-1985). Interfaces da cultura

portuguesa e europeia, pela Campo das Letras. Existe hoje um Instituto Europeu de

Ciências da Cultura com o seu nome e a sua obra tem vindo a ser objecto de

republicação pela Fundação Calouste Gulbenkian. Tendo colaborado longamente

com a Brotéria – Revista de Cristianismo e Cultura, Manuel Antunes, homem de

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53

profunda cultura humanista, foi entre nós um exemplo singular de aliança entre o

estudo da civilização, a teologia e a literatura ocidental.

Tendo em conta esta panorâmica, parece-me justificar-se a realização de

um estudo que contemple um determinado corpus literário, no caso vertente

temporalmente circunscrito aos finais do século XX50 português, e que o cruze com

problemas de leitura não apenas bíblica (inscrita na matriz) como também

biblicizante (prolongando o seu alcance), compreendendo o texto poético tanto na

sua dimensão recriadora como interlocutora do texto bíblico. É, portanto, mais do

que chegada a altura de encarar o quanto nos temos amputado desse corpo

referencial que é a Bíblia, e os discursos que originou, sob pena de continuarmos a

desperceber não apenas o que é de todos (não somente de alguns), e também nosso

enquanto tal, como sobretudo o que de todos há naquilo que julgamos nosso.

Erradicar a herança teológica da literatura portuguesa, ou simplesmente ignorá-la, é

pois continuar a votar-nos a esse deserdamento próprio do muito que temos pelo

pouco que dele estamos dispostos a reconhecer na perfilhação que de nós faz – ou

não fosse este todo um caso de filiação e pertença. Procuraremos explorar no

próximo capítulo, por meio de uma visitação das relações entre poesia e teologia,

bem como do conceito operativo de poética da sensibilidade bíblica,51 a formulação

da aliança literária que aqui nos ocupa, nesse lugar sempre fronteiriço, situado no

ponto de onde ler a Bíblia na literatura, e a literatura com a Bíblia, não implica

50 O século em que Nietszche declarou a morte de Deus, que a par de Marx e Freud vieram desestabilizar, com a mestria da suspeita que Ricoeur lhes reconheceu, a linguagem da crença. 51 Ver ponto 2.5. desta tese.

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54

desconsiderar o labor que a literatura opera tanto sobre si própria como sobre o

texto bíblico, ao qual tanto fica a dever-se afinal.

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55

II

VELHA ALIANÇA

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56

2.1. FRONTEIRAS E RELAÇÕES ENTRE POESIA E TEOLOGIA

Agregar duas designações como poesia e teologia numa mesma

proposição é incorrer desde logo numa dificuldade de desambiguação que pende

sobre, pelo menos, uma das partes integrantes. Se, por um lado, a teologia se pode

caracterizar como uma ciência das humanidades, uma área disciplinar que elege

como preocupação sua a formulação de um discurso (logos) sobre o divino (teo); por

outro, a poesia está encerrada no seu próprio nome, sendo também ela um discurso

mas que se entende na feitura de si mesmo (poiesis), forma de criação artística

regulada por um saber compositivo (poietike techne), não se definindo por

contiguidade relativamente a um assunto sobre o qual verse (quando muito nele

poderá encontrar uma série de características que no-la permitam incluir numa

subespecificação poética, mas que não elucidará por si só o que se entende por

poesia).

Esta indeterminação das valências da poesia foi já em Platão objecto

merecedor de reflexão, e particularmente de censura, no seu diálogo Íon. O poeta

seria alguém que, para lá de promover um saber afastado em vários níveis da

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57

verdadeira natureza das coisas (a do mundo das ideias) – o que lhe viria a merecer a

expulsão de uma sociedade utópica, como a prescrita por Platão em A República –,

não domina nenhum saber específico, não tendo autoridade para se pronunciar

sobre nenhuma das matérias constituintes do seu discurso. O poeta é, contudo, um

ser que priva com as musas, sendo passível de ser tomado pelo furor da inspiração,

o que coincide com a despossessão das suas faculdades racionais. Com Aristóteles,

porém, a poesia aparece-nos reabilitada, sendo dotada de um alcance mimético, pois

que nela se entende uma forma de o homem representar, interpretar e interagir com

a realidade. Ao dedicar um volume à Poética, Aristóteles devolve-a à nossa

consideração como uma das mais importantes formas de expressão artística ao

alcance do homem, declarando-a – numa formulação que se tornou clássica – mais

elevada e filosófica do que a história, uma vez que esta conta o que efectivamente

aconteceu ao passo que aquela se ocupa do que poderia ter acontecido. Constitui,

para além disso, uma forma de conhecimento que é própria do homem e que se

compagina com a sua forma de apreender e dialogar com o mundo. Refira-se ainda

o fundamento etimológico que legitima esta concepção de poesia lato sensu, a de um

saber criador que vai para lá dos limites da realidade histórica e que se estabelece nos

pilares da sua própria criação – a poiesis é um fazer de mundos que excedem o

próprio mundo. É a este saber estético que Horácio posteriormente, na Carta aos

Pisões, virá a aliar um saber técnico, o de uma competência criativa dependente

sobretudo do talento artístico, ou mesmo artesanal, do seu cultor.

Ao ser colocada ao lado de um conceito como o de teologia, não devemos

ainda esquecer que a poesia não é uma disciplina (o que já poderia dizer-se, por

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58

exemplo, de designações como poética ou teoria da literatura52). O termo poesia

assume aqui, sobretudo, a valência de uma praxis e de um logos, ou seja, um produto

verbal humano e um enunciado que, antes de qualquer outra coisa, falam de si

mesmos de forma criativa e artística – um “pensamento por figuras”, para citar

Manuel Gusmão (2007:14). A teologia, pelo contrário, é norteada por parâmetros

epistemológicos no âmbito de um pensamento que explica, mais do que implica, a

matéria de que se ocupa nos foros da actividade académica e que existe como área

científica, de contornos bem definidos dos pontos de vista tanto subjectual como,

naturalmente, processual. Passamos aqui para um nível de compreensão disciplinar

da revelação divina, que procura produzir um discurso racional da fé.

Um dos maiores problemas com que a presente reflexão se confronta

provém, como não poderia deixar de ser, do desnível existente entre estas duas

categorias. Se, por um lado, não se apresentam como “poesia e divino”, por outro

também não são redutìveis a designações como “teologia e estudos literários”.

Ainda assim, tanto o divino é matéria da teologia como a poesia o é dos estudos

literários. Teríamos de recorrer ao logos, essa figura que exprime o pensamento bem

como a manifestação religiosa, numa extensão que vai do filosófico ao teofânico,

para encontrar uma similitude fundamental entre ambos: tanto a poesia como o

divino encontram no logos a formulação do seu dizer-se enunciativo. Pensar o logos

pressupõe assim um caminho do sentido – a que Aristóteles em De Interpretatione

chamava “a voz que significa alguma coisa” (apud Mendonça 2008: 185),

convocando a necessidade de uma hermenêutica, pedida tanto pelos textos poéticos

52 Vide Aguiar e Silva (2001:14-18).

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59

como pelos religiosos (onde a hermenêutica se firma na especificidade de uma praxis

exegética). Será, então, do cruzamento de duas concepções do logos, de origem grega

(procura pela razão) com eco profundo na noção hebraica de dabar, a palavra

(revelação pela fé)53, que tentarei aqui estabelecer o traçado da proximidade

fundamental entre poesia e teologia. É, por isso, necessário recuar às origens da

civilização ocidental para encontrar os laços que as ligam.

53 Vide Frye (1990:105).

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60

2.2. A POESIA DE ORIGEM DIVINA

Num artigo intitulado “Theologie”, Yves Congar defende que a origem

primeira do vocábulo homónimo não é bíblica mas sim grega (1965:342).

Designando um entendimento mitológico do mundo, surge-nos em Platão a mais

antiga referência conhecida à palavra teologia. No livro II da República, Sócrates e

Adimanto discutem o valor da poesia e os modos segundo os quais é legítimo fazer

referência aos deuses:

[…] Como fundadores, cabe-nos conhecer os moldes segundo os quais os poetas devem compor as suas fábulas, e dos quais não devem desviar-se ao fazerem versos, mas não é a nós que cumpre elaborar as histórias.

- Está certo – declarou. – Mas isso mesmo dos moldes respeitantes à teologia, queria eu saber quais seriam.

- Seriam do teor seguinte – respondi. – Tal como Deus é realmente, assim é que se deve sem dúvida representar, quer se trate de poesia épica, lírica ou trágica. (2001: 379a)

A questão da representação do divino toma lugar, como vemos, no cerne da

discussão sobre a importância da poesia. A acepção de teologia neste contexto pode

aproximar-se daquilo que é o mito, ou seja, a narrativa que concerne aos deuses. O

logos, por sua vez, diz respeito à tarefa dos fundadores da cidade, a de ordenar

racionalmente a vida dos cidadãos, de modo a que essa ordem não seja perturbada

pela falsidade nem pelo caos: “Se, porém, acolheres a Musa aprazìvel na lìrica ou na

epopeia, governarão a tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que

a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor” (2001:472). O

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problema nasce, então, de uma representação poética do divino que não é conforme

ao “como Deus é realmente”, de que nos fala Platão, impedindo assim a

contemplação da verdade.

As fábulas dos poetas, neste contexto, assumem a forma de uma

interpretação humana do mundo, sendo que a explicação para os seus fenómenos

tende a ser, por esta via, identificada, não com o princípio da realidade, mas antes

com uma narração etiológica do foro mítico. Em Greek Religion, Walter Burckert

assinala que “the spiritual unity of the Greeks was founded and upheld by poetry”

(1985:120), o que faz das epopeias homéricas poemas simultaneamente literários e

religiosos. A dificuldade colocada por Platão prende-se, todavia, com o facto de que

o comportamento dos deuses ali retratados é, muitas vezes, condenável, ao invés de

inspirar reverência, subvertendo assim o papel que deveria ser o da religião. E este é

o elemento decisivo naquilo a que Ernest Rubinstein chama “the platonic line of a

religious critique of literature”, a saber, o de que a bondade indiscutìvel do divino

não é compaginável com a sua participação nos males dos homens: “The trouble

with fictional stories is that they are false […] the soul that attends to fiction is

morally infected by the falseness in the object of its attention”, já que, de acordo

com o próprio Platão, “the best poetry appeals precisely to the burgeoning chaos of

emotion that resides at the bottom of the soul” (2007:35).

Sendo embora este o ponto de origem de uma extensa tradição de crítica

religiosa da poesia, deve ainda apontar-se o quanto a ideia de inspiração poética,

mesmo em Platão, se encontra próxima de uma concepção do divino. O caso que

melhor dá conta dessa ligação parece-me ser o diálogo Íon, sem que deva no entanto

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esquecer-se que já Homero invocava as musas e que, como lembra Eric Dodds na

sua obra de referência The Greeks and the Irrational, também Hesíodo na Teogonia dizia

que “By grace of the Muses […] some men are poets, as others are kings by grace of

Zeus” (apud Dodds 1997:80). A comparação não deve ser despercebida como coisa

menor, sendo que tanto reis como poetas são ungidos por eleição divina – o que

nos permite realçar, por sua vez, a propriedade do conflito platónico entre os

poderes vigentes na cidade ideal. Dodds acrescenta ainda, no capítulo intitulado

“The Blessings of Madness”, que a crença no carácter sobrenatural da inspiração

poética precede os escritos de Platão, assim recolocando na genealogia das ideias a

importância do contributo de Demócrito:

the first writer whom we know to have talked about poetic ecstasy is Democritus, who held that the finest poems were those composed […] with inspiration and a holy breath and denied that anyone could be a great poet sine furore […] it is to Democritus, rather than to Plato, that we must assign the doubtful credit of having introduced into literary theory this conception of the poet as a man set apart from common humanity by an abnormal inner experience, and of poetry as a revelation apart from reason and above reason. (Dodds 1997:82)

É ainda esta a tese vigente no diálogo platónico Íon, onde a questão da

loucura divina marca presença de forma central. Sendo que ao ofício de poeta, como

de resto ao do rapsodo, não assiste um saber técnico (uma arte com valência de

techne), especificamente demarcado como competência sua – como Sócrates obriga

Íon a reconhecer –, a única saída condigna que lhe resta aceitar sem prejuízo da sua

honestidade (já que Íon prefere ser considerado divino a intrujão), é a de que o

poeta terá de ser divinamente inspirado. A possessão pelas musas surge então neste

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63

diálogo como derradeira explicação do talento poético, bem como da sua

interpretação pelo rapsodo, numa cadeia sucessiva de contágio divino que se estende

– como se por através de um magnetismo etéreo, comparável apenas ao efeito da

pedra de Heracleia – desde a Musa até à audiência (cujo arrebatamento emocional

servirá, posteriormente, a Longino de substrato para a sua teoria do sublime):

A Musa inspira ela própria, e através destes inspirados, forma-se uma cadeia, experimentando os outros o entusiasmo. Na verdade, todos os poetas épicos, os bons poetas, não é por efeito de uma arte, mas porque são inspirados e possuídos que eles compõem todos esses belos poemas […] o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão. Enquanto não receber este dom divino, nenhum ser humano é capaz de fazer versos ou de proferir oráculos […] os poetas não passam de intérpretes dos deuses, sendo possuídos pela divindade, de quem recebem a inspiração. (1997:49, 51, 55)

Desapossado da sua razão humana, o poeta é levado a experimentar o

furor divino, deixando-se acometer por uma sorte de loucura criativa. Esvaziado de

si mesmo, o poeta torna-se habitado pelo deus e transforma-se no medium de uma

voz transcendente, sendo o seu poder comparável ao do profeta. Esta dimensão

oracular faz do poeta um ser sagrado, propriedade dos deuses, e intermediário entre

estes e os homens. Fórmula de elevação humana, apenas a poesia se pode aliar ao

amor (Banquete) e à dialéctica (Fedro) como caminhos de aproximação à Verdade que,

em clave platónica, é sinónimo do Bom e do Belo. A ambiguidade de Platão face ao

lugar do poeta não pode, ainda assim, deixar de ser problemática, se compararmos

as posições que foi tornando manifestas em momentos distintos da sua produção

filosófica. Certo, porém, é que a disputa antiga entre filosofia e poesia não é

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redutível ao campo da politeia, centrando-se, ao invés, no coração do debate religioso

pela busca da verdade. Como sublinha María Zambrano, em O Homem e o Divino, “a

polémica ou diferença havida entre filósofos e poetas desenha-se sob o pano de

fundo do sagrado, da relação com os deuses, da piedade” (1995:66), ao que

acrescenta, indo ainda mais longe em “Filosofia e Poesia”, que

Platão fez teologia. Agora torna-se evidente porque Platão renunciou à poesia e se declarou seu inimigo irreconciliável. Não […] em nome do conhecimento, […] do ser, da unidade, da verdade deste mundo. Se Platão não tivesse ido carregado com um desígnio religioso, não teria condenado nunca a poesia. Mais ainda: não teria deixado nunca de ser poeta. (2000:94-95)

Unidas desde a noite dos séculos, poesia e teologia devem a sua distinção

à emergência do pensamento filosófico. Extremadas no âmbito da querela platónica,

a triangulação das relações entre poesia, teologia e filosofia, se bem tomarmos a

lição de Zambrano, radica na secundarização do lugar do mito, em favor da episteme.

Ficou assim para sempre aberta a ferida da criação artística no Ocidente, a que não

faltaram reacções e respostas, de Aristóteles (na Poética) a Derrida (em La

dissémination), passando pelo humanismo filosófico de Marsílio Ficino e ainda por

Percy Shelley, entre tantos outros marcos relevantes.54 Entre a dádiva e a criação

artística, fica por mapear o lugar da demiurgia, bem como a margem de ironia e de

desconfiança com que deverão ser lidas as proposições ambíguas de Platão

relativamente à poesia, ora divina ora subversiva – no que nos encontramos perante

o exemplo clássico de aporia, esse estado de indecibilidade interpretativa que

54 Existe uma tradição de comentário platónico, da qual destaco aqui os nomes de Ficino, Shelley e onde se poderia incluir também os de Goethe, Schleiermacher ou Nietzsche. Remeto, sobre este assunto, para o livro de Susan Levin, The Ancient Quarrel between Philosophy and Poetry (2000).

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Derrida, em La dissémination [1971], soube explorar, muito precisamente, a propósito

de Platão. A tese da poesia de inspiração divina viria ainda a ser retomada por

Shelley, já mencionado, segundo o qual “poetry is indeed something divine”

(1977:503). À proscrição da poesia como base de uma paideia cívica, Shelley

responderá reabilitando “the imagination as the great instrument of moral good”

(488) e colocando o poeta bem no centro da pólis de onde havia sido excluído:

“poets are the unaknowledged legislators of the world” (1977:508) – com o que

contribuiu com outra acha mais para a fogueira do mito do artista romântico.

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2.3. HISTÓRIAS DA INTERPRETAÇÃO

Envolta na névoa indistinta do surgimento do pensamento fiolosófico, na

Antiguidade clássica, a teologia teria ainda um longo caminho a percorrer até

adquirir o estatuto que hoje lhe reconhecemos. A história da teologia não se

encontra, assumamo-lo desde já, desligada de toda uma teorização em torno do

conhecimento do divino – é certo – como também de uma reflexão em torno dos

limites da intelecção e da importância da literatura, do saber que provém da leitura e

dos modos de aferir possibilidades de interpretação. Num percurso longo, feito de

avanços e retrocessos, atravessando culturas e mundividências bem distintas, a

evolução do conceito de teologia desabrocha em terreno grego para vir a entrar

gradualmente no seio do pensamento cristão, com a reflexão patrística, vindo

posteriormente a constituir uma área do saber humano e uma disciplina definível em

termos académicos – esse o trajecto que me proponho reconstituir no presente

subcapítulo.

Se em Platão, como vimos, o termo exprime o modo de tratar

poeticamente o divino, relacionando-se com as representações humanas de uma

realidade toda ela compreendida como manifestação mitológica do transcendente;

em Aristóteles, a teologia adquire uma complexidade terminológica de acordo com a

qual se distingue de outros domínios do saber, como a matemática ou a física (as

outras duas vertentes de uma filosofia teorética), cristalizando-se como “philosophie

première” que deveria ocupar-se do estudo “de l‟être en tant qu‟être” (Métaphysique

1991:220). Numa concepção do o divino como motor imóvel, que move sem ser

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movido, a teologia distinguir-se-ia como área do saber que contempla o percurso

que vai da causa primeira até à manifestação da realidade, passando da potência ao

acto – esse que seria o acto puro, emanação do pensamento do pensamento que é

Deus (cf. Rocchetta 1987). A evolução do termo teologia conheceria uma dimensão

mais aprofundada, no sentido da complexificação do pensamento e do discurso

sobre Deus, por meio da filosofia estóica, como nos indica Rito em Introdução à

teologia (1998:29).

No seu estudo essencial sobre “As relações entre a fé cristã e o

pensamento ao longo dos séculos”, Nuno Martins adianta que “no cristianismo, a

palavra teologia vai entrar de forma muito progressiva, quase a medo, talvez devido

às suas ligações com os mitos gregos, o que pode explicar a ausência total do

vocábulo nos escritos dos Padres Apostólicos” (2003:51). A mudança começa a

operar-se, pela primeira vez, com S. Justino (100-165 d.C), adoptando o sentido de

um conhecimento parcial (de origem pagã) que vem a completar-se por meio da

revelação cristã. Essa modalização do discurso torna-se efectiva à medida que as

Escrituras surgem como verdadeira autoridade teológica, adquirindo uma

prerrogativa outrora reconhecida apenas ao mito e à filosofia (cf. Rovira Belloso

1996:24) – o que vem estabelecer a distinção entre a teologia natural (com base na

razão e na experiência, cf. Varrão) e uma teologia da revelação (apoiada nas

Escrituras e na Tradição), antecedendo assim o contributo definitivo de Espinoza

(1632-1677 d.C.)55 para a separação entre razão e teologia. Com a Escola de

Alexandria, a ambivalência do conceito de teologia ainda se mantém, sendo que

55 Sobre a importância do pensamento de Espinoza na história moderna da religião, consultem-se os capítulos que lhe dedicam Pierre Gibert (2010:148-175) e Harrisville (1995:30-45).

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tanto Clemente (150-215 d.C.) como Orígenes (185-254 d.C.)56 consideram que, não

obstante sirva para designar uma doutrina sobre Deus e sobre Cristo, o termo

teologia não perdeu a sua valência de conhecimento pagão do divino,

assumidamente parcelar e possibilitado pela observação da criação (cf. Congar

1965:343).

Será apenas com Santo Agostinho (354-430 d.C.)57 que a teologia passa a

designar um conhecimento puramente cristão sobre Deus. Opondo-se a expressões

como os de „teologia fabulosa‟ ou „teologia natural‟, a vera theologia (Civitas Dei, VI, 8)

recupera assim os contributos de Eusébio de Cesareia (265-339 d.C.), para quem

tudo o que não fosse conhecimento acerca de Cristo não podia senão ser falsa

teologia, bem como de Dionísio Areopagita, afecto às noções de teologia mística (o

conhecimento mais elevado de Deus, dividido entre o misterioso e o cognoscível) e

de teologia negativa (ou apofática, de essência retoricamente litótica, que Derrida58

viria a explorar). Sem recusar a herança de um platonismo de sabor plotiniano,

Agostinho vem a incorporá-lo nas suas reflexões sobre a natureza de Deus e as

formas do conhecimento humano. Nas palavras de Mary Clark, “indentifying truth

and goodness with God, a Christianization of Platonism, Augustin links human

knowing and understanding, willing and lovig, to God”, sendo que, como afirma

Bonnie Kent, “the affinities between Neoplatonism and Christianity were especially

striking, so that Augustine‟s praise of the Platonists would not have been surprising

at the time” (in Stump e Kretzmann 2001:96, 206). O período conhecido como o da

56 Cf. Henri de Lubac (2007). 57 Cf. Eleonore Stump e Norman Kretzmann (2001). 58 Remeto para Steven Shakespeare. 2009. How to Void Speaking: Derrida and Negative Theology. Derrida and Theology. Cornwall: T&T Clark.

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paz de Constantino, em que viveu Agostinho, é também marcado por uma atitude

de abertura dialogal face à cultura greco-latina, que vem substituir o sentimento de

desconfiança precedente, capaz de valorizar o seu património e de reabilitá-lo à

condição de uma “propedêutica do cristianismo” (Martins 2003:60).

Com as Invasões Bárbaras e a subsequente queda do Império Romano do

Ocidente, a teologia medieval desenvolve um cariz sobretudo monástico, associado

à preservação do pensamento da antiguidade nos mosteiros, lugares de cultura do

renascimento carolíngio (século VIII) por excelência. De objectivos menos pastorais

e apologéticos, a prática teológica medieval incidia na importância da oração, da

meditação, procurando a superação de incongruências da Escritura por via do

método alegórico da Escola de Alexandria (a cuja relevância regressaremos no

próximo subcapítulo). É ainda neste contexto que o vocábulo teologia, antes de

designar um ramo do saber – o que viria a acontecer com o surgimento da

Universidade no século XIII59 –, penetra o domínio da tratadística, nomeadamente

no seio das discussões dobre a natureza trinitária de Deus. É o caso de Abelardo

(1079-1142 d.C.), que sustenta racional e filosoficamente (teologicamente, diga-se) o

dogma da Trindade (cf. Jolivet 1997:26). A Abelardo fica ainda a dever-se a primeira

referência a um método escolástico (cf. Congar 1965:365-367).

O pai da Escolástica é, no entanto, Santo Anselmo (1033-1109).

Responsável pela transição da teologia monástica para a Escolástica, foi defensor de

uma aliança entre fé e razão, de que a fórmula credo ut intelligam é bem representativa.

O movimento intelectual da Escolástica abrange sensivelmente o período que vai do

59 Consulte-se, a este respeito, a fundamental obra de Chenu, La Théologie comme science au XIIIe siècle (1959).

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século XI ao XV e distingue-se pela convicção de que a teologia designa um

conjunto de verdades reveladas que devem ser estudadas por meio do método

dialéctico (lectio, quaestio, quaestiones disputatae, quaestiones quodlibet, summae), pondo a

razão e a lógica ao serviço da verdade e da fé. A reflexão teológica então

desenvolvida parte das Escrituras e do respectivo comentário pelas autoridades

patrísticas. Um dos vultos maiores desta época é S. Tomás de Aquino (1225-1274

d.C.), que ao lado de Santo Agostinho se conta entre os maiores pensadores da

história da filosofia e da teologia. A sua referência intelectual não era Platão, como

no caso de Agostinho, mas Aristóteles, que o próprio Aquino traduziu e comentou,

na senda do que Boécio (480-524 d.C.) e Averróis (1126-1198 d.C.) haviam feito.60

Retomando a noção aristotélica de teologia como “filosofia primeira”, Aquino

procede a uma reabilitação cristianizante da filosofia aristotélica, ao passo que elege

o conhecimento sensível como veículo de conhecimento espiritual (contrariamente a

Sto Agostinho que, na senda de Platão, apenas reconhecia o papel da razão). O seu

relevante contributo, assente numa sistematização do saber teológico

aristotelicamente sustentado (em termos de lógica formal), foi no sentido de

reforçar a compatibilização desejável entre fé (ilumina o caminho da razão) e razão

(esclarece os princípios da fé).

A tensão entre as correntes tomista e agostiniana vem a agudizar-se no

período da Escolástica tardia, com Escoto (1265-1308) e Occam (1285-1350), para

quem a teologia se torna decidamente matéria da fé e, por essa via, inacessível à

60 Para a compreensão aprofundada das relações entre o pensamento de Aristóteles e o de Tomás de Aquino, recomendo o estudo de Joseph Owens. 1993. Aristotle and Aquinas. In The Cambridge Companion to Aquinas. Edição de N. Kreetzmann e E. Stump. Cambridge: Cambridge University Press.

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71

razão. Neste confronto entre platónicos e aristotélicos (cf. Gilbert 1993:115-117), o

debate estabelece-se em torno da essência do princípio da realidade, interrogando se

a primazia caberia às ideias universais ou ao reflexo das coisas (posteriormente

abstractizados por convenção humana). O extremar de posições tão dependentes do

debate filosófico viria a ser surpreendido, no século XVI, pelo surgimento de uma

facção protestante, protagonizada por Martinho Lutero (1483-1546). Pugnando pela

recusa do pensamento filosófico na teologia, Lutero defende o abandono da

Tradição, em favor do princípio de sola scriptura, segundo o qual apenas a Escritura é

fonte de autoridade religiosa e todo o crente está habilitado para a sua interpretação

(de que, aliás, depende a sua salvação), sem a necessidade de intermediários de

qualquer espécie – no que se abre caminho à teologia liberal.61 A Contra-Reforma

católica procura no Concílio de Trento (1545-1563) formas de responder à cisão

protestante. Surge então, entre outras manifestações revivalistas do pensamento

católico, a teologia espiritual da Reforma, com Santa Teresa de Ávila (1515-1582),

São João da Cruz (1542-1591) e S. Francisco de Sales (1567-1622).62

Com o advento do racionalismo, assiste-se à divergência assumida entre

filosofia e teologia, incompatibilizadas pelo dissídio entre fé e razão, sendo que a

teologia teria de passar a ocupar-se de realidades sobrenaturais que dispensem a

prova filosófica. Neste período, a produção intelectual transfere-se para o eixo

franco-alemão, sendo que a teologia parece ausente perante a produção filosófica de

nomes como Descartes, Espinoza, Pascal, Kant, Hegel, Kierkegaard, Feuerbach,

61 A questão do liberalismo teológico encontra em Friedrich Schleiermacher a sua maior referência no século XVIII. A liberalização do pensamento religioso passaria sobretudo pelo sentimento de comunhão humana com o divino e pela relativização das instâncias religiosas tradicionais. 62 Cf. Bernard Cottret, Histoire de la Réforme protestante (2000).

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72

Marx, Nietzsche (interlocutores, mas também produtores, do pensamento filosófico

teologicamente orientado).63 Este estado de letargia teológica suspende-se

momentaneamente com movimentos como o da Escola de Tubinga (na primeira

metade do século XIX, destaque para a dimensão histórico-eclesial do Cristianismo,

a importância da tradição, de inspiração bíblico-patrística, o dogma e a consciência

de fé) e o da Neo-Escolástica (desencadeado pela encíclica de Leão XIII, no final

século do XIX).64

Do filão protestante, dá-se a afirmação da teologia liberal, abrindo

caminhos como o da investigação da historicidade de Jesus e o do investimento na

supressão de inconsistências das Escrituras, por via filológica; neste sentido vão

ainda os contributos de Karl Barth (1886-1968) – em temas como os da

transcendência salvífica, da secularização religiosa ou da desmitologização – e de

Bultmann (1884-1976), defensor da dimensão existencial do presentismo da fé,

passando pela recusa da historicização do Cristianismo. Após o Concílio Vaticano II

(1962-1965), surge a Nouvelle Théologie65 como protagonista de uma “reflexão

teológica que assuma o ser humano como existência histórica, mas ao mesmo

tempo permaneça fiel à Sagrada Escritura […] e à Tradição eclesial” (Martins

2003:84). São de destacar nomes como Ratzinger, Chenu, Congar e Lubac. A pós-

modernidade debate-se actualmente com a proliferação ideológica das denominadas

teologias práticas, que valorizam a realidade histórica do Cristianismo, entendendo-o

63 Consulte-se o volume de Harrisville e Sundberg, The Bible in Modern Culture (1995). 64 A corrente neo-escolástica defendia o regresso a uma forma de tomismo puro, numa busca de renovação da filosofia cristã pelo contributo do idealismo alemão, bem como pela incorporação disciplinar das ciências naturais e da psicologia. 65 Este movimento de reacção anti-escolástica, também conhecido como Ressourcement, destacou-se pela defesa de um retorno à pureza do pensamento católico, com base nas Escrituras e nos Padres da Igreja.

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como abertura para o futuro e memória do progressismo revolucionário de Cristo

em nome da justiça social – é o caso de movimentos mediáticos, de afinidade

marxista, como a teologia da esperança (Moltmann66), a teologia política (Metz67) ou

ainda a teologia da libertação (Boff68).

66 Este teólogo alemão pertencia à Escola de Tubinga. Em 1967, publicou The Theology of Hope e, em 1969, Religion, Revelation, and the Future, volumes nos quais contribui para uma revalorização da escatologia no seio da teologia cristã e onde ataca a linha existencialista bultmaniana, pela incorporação da herança de Nietzsche e Feuerbach. 67 Metz foi um teólogo católico alemão que se posicionou como figura central da teologia política, de onde viria a emergir a teologia da libertação. Com base no sofrimento humano e na crítica aos estados políticos (que faz remontar a Thomas Hobbes), esta corrente encontra no sofrimento uma manifestação da linguagem da criação. 68 Esta corrente teológica ganhou expressão na década de setenta, na América Latina. Bate-se pelas questões da pobreza e da exclusão social, assumindo uma clara inspiração marxista. Frei Leonardo Boff é um dos muitos nomes que se associam a esta sensibilidade teológica.

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74

2.4. O ELO ALEGÓRICO

A disputa antiga entre poesia e filosofia, bem presente no seio da

argumentação platónica, alcança um dos seus pontos culminantes na crítica rotunda

aos poemas homéricos. No ensaio intitulado “Poetry and Philosophy”, Ernst

Curtius demonstra como a crítica platónica da religião encontra na poesia o alvo das

suas invectivas sobre o poder subversivo de uma palavra que nem sempre se refere

ao divino de acordo com os padrões éticos que deveriam reger a vida na pólis ideal,

tal como delineada na República. A coincidência fundamental entre poesia e teologia

fica a dever-se, segundo Curtius, ao facto de que “the Greeks had no religious

records, no priestly caste, no sacred books. Their theology was shaped by poets”

(1990:204). O banimento do poeta não podia, claro está, senão representar uma

enorme perda no património intelectual da Antiguidade, querido como era Homero

na qualidade de educador da Grécia, base endémica da sua paideia civilizacional,

como assinala Werner Jaeger em Paideia. La formation de l’homme grec (2007:42-87).69

Tornou-se então necessário encontrar uma forma de sublimação que permitisse a

resolução do impasse: “The Greeks wished to renounce neither Homer nor science.

They sought for a compromise, and found it in the allegorical interpretation of

Homer” (Curtius 1990:204).

69 Referência a considerar neste contexto, para além da de Werner Jaeger, é o nome de Paul Veyne, autor de Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes? (1983). Neste livro, analisa-se o lugar da crença religiosa no seio da cultura grega, questionando o seu conceito de verdade e, em última instância, a razão de ser da pergunta que desencadeia a reflexão. No fundo, este ensaio parece vir dar razão a Curtius na afirmação de que os gregos não rejeitaram nem Homero nem a ciência, integrando ambos em diferentes escalões de um mundo de referências de que se constitui a sua identidade cultural.

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A alegorese homérica, método de leitura alegórica dos textos épicos, era

algo que se aproximava do que havia sido a crítica de Homero por parte da filosofia

pré-socrática, desde o século VI a.C (prática a que posteriormente deram

continuidade estóicos e neoplatónicos). Sustentando a defesa de Homero contra o

ataque da filosofia, a prática da alegorese difunde-se largamente pelo mundo

helénico, tendo encontrado grandes cultores nomeadamente na Escola de

Alexandria, que muito privilegiava o diálogo com a filosofia helénica (ao passo que a

Escola de Antioquia nunca deixou de favorecer o sentido histórico-literal dos

textos).70 De Homero, a alegorese começa a ser aplicada ao texto bíblico, por

investimento de pensadores como Fílon (25 a.C. - 50 d.C.) e Orígenes (185-253

d.C.), interessados na dicotomia entre a letra e o espírito dos textos (superando

inconsistências textuais, paradoxos, explorando semelhanças, etc.).71 Dos sábios

judeus aos Padres da Igreja, passando ainda pelas releituras de Virgílio, a

interpretação alegórica tornou-se moeda corrente, como sublinha Curtius: “Biblical

and Virgilian allegoresis meet and mingle in the Middle Ages. The result is that

allegory becomes the basis of all textual interpretation whatsoever” (1990:205).

Auerbach, por sua vez, assinala que “toutes les sectes, tous les ésotérismes de

l‟Antiquité tardive se livraient à l‟explication allégorique de mythes, de signes et de

textes, faisant progressivement passer l‟élément physique et cosmologique après la

dimension morale et mystique” (2003b:65).

70 Cf. Philip de Barjeau, L’École exégètique d’Antioche (2009). 71 Sobre o modelo hermenêutico da Escola de Alexandria e a importância capital do vulto de Fílon, sugiro o livro de Manuel Alexandre Júnior, Hermenêutica retórica (2004:101-120).

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Designando um amplo espectro de práticas e hábitos de interpretação, o

termo alegoria significa, do ponto de vista etimológico, um „outro discurso‟,

formando-se por aglutinação a partir de allo (outro) e agoreuein (falar em público). Se

bem que Quintiliano a tenha definido como uma associação continuada de

metáforas, a alegoria “has been treated by turns as a genre, a mode, a technique, or a

rhetorical device or trope, related to metaphor”, sendo que na Antiguidade poderia

ser também referida como symbolon (símbolo), hyponoia (sentido oculto) e aenigma

(enigma), como reconhecem Copeland e Struck (2010:2).72 Na busca de um

conhecimento transcendente, a alegorese foi utilizada como instrumento de acesso a

uma verdade esotérica, na crença de que a linguagem era veículo de manifestação do

logos divino. Como o símbolo, a alegoria era expressão de um sentido místico,

conducente à verdade filosófica, oscilando entre o plano imediato (syn, juntamente,

coincidência com referente) e o remoto (allo, o outro, reenvio) – traço que, segundo

Goethe, nos permite distingui-los: “L‟allégorie se distingue du symbolique en ce que

celui-ci désigne indirectement, celui-là directement” (apud Todorov 1977:236).

Ao relegar para segundo plano a valência latina do termo alegoria, em que

vigora sobretudo a acepção de tropo retórico, os intérpretes da Escola de Alexandria

conservavam um entendimento de alegoria como allêgoria (gr.), de afinidade

neoplatónica, como chave de uma leitura mais profunda, e não-evidente, dos textos.

No fundo, o conceito de alegoria conserva ainda hoje essa ambivalência, sendo um

tropo como a metáfora, a metonímia, a sinédoque, mas, ao contrário destas,

significando também o que está por de trás e para além da linguagem. No seu

72 Para uma análise das várias formulações possíveis de alegoria, remeto para Lausberg (2004:249-251).

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magistral estudo Figura. La Loi juive et la Promesse chrétienne, Erich Auerbach destaca a

importância do pensamento de Fílon de Alexandria, mestre e predecessor de

Orígenes. À época, um outro método (para além do alegórico) se contrapunha à

interpretação literal das Escrituras (a colocação do texto no seu contexo

sociocultural, procurando reconstituir aquela que teria sido a intenção do autor e a

compreensão dos ouvintes) – trata-se do método figural, também conhecido como

tipológico.73 Este seria aquele que Santo Agostinho, embora reconhecendo a

quadripartição possível dos sentidos da Escritura, sempre preferiria, como

formulado na divisa emblemática do Christus totus, segundo a qual “tudo nas

Escrituras e na filosofia nos fala de Jesus Cristo” (Martins 2003:58).

Prossegue então Auerbach, sobre Fílon, dizendo que

Philon lui-même qui, conformément à la tradition juive, faisait de sa philosophie un commentaire de l‟Écriture sainte, interprète les divers épisodes du Texte comme les phases successives de l‟état de l‟âme et de sa relation avec le monde intelligible; le destin général d‟Israël comme celui de ses divers protagonistes lui semblent contenir allégoriquement le mouvement de l‟âme pécheresse qui a besoin du salut – chute, espérance et rédemption finale. Comme on le voit, cette interprétation est purement spirituelle et anhistorique. (2003b:65-66)

73 “Northrop Frye define-o do seguinte modo: “the New Testament, in short, claims to be, among other things, the key to the Old Testament, the explanation of what the Old Testament really means [...]. The general principle of interpretation is traditionally given as „in the Old Testament the New Testament is concealed; in the New Testament the Old Testament is revealed‟. Everything that happens in the Old Testament is a type or adumbration of something that happens in the New Testament, and the whole subject is therefore called typology [...]. What happens in the New Testament constitutes an antitype, a realized form, of something foreshadowed in the Old Testament.” (1983:79) “Typology is a figure of speech that moves in time: the type exists in the past and the antitype in the present, or the type exists in the present and the antitype in the future. What typology really is as a mode of thought, what it both assumes and leads to, is a theory of history, or more accurately of historical process: an assumption that there is some meaning and point to history” (1983:80-81).

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Sob pena de sacrificar muito do que caracteriza a dimensão história e nacionalista da

literatura hebraica, a leitura alegórica de Fílon tende a transformar o Antigo

Testamento, substituindo nele os aspectos histórica e culturalmente relevantes por

um sistema de correspondências místicas e filosóficas que têm como efeito uma

universalização do texto e a relativização da sua componente etnológica, em favor

de uma espiritualização absoluta. O mesmo vale para saberes de outras

proveninências, como destaca Alexandre Júnior:

Fílon reduz a sabedoria clássica a uma forma conceptual anónima e depois, pela leitura alegórica da Escritura, apresenta essa sabedoria como o sentido oculto e verdadeiro da mesma. (2004:109)

Este foi essencialmente o legado que Orígenes recebera, e no qual se formara

enquanto intérprete e comentador, sem que no entanto deixasse de complementá-lo

com uma prática tipologizante das Escrituras.

Algo de semelhante à alegorese acontece com o método figural de

interpretação das Escrituras, como explica Auerbach, se bem que neste a supressão

da referencialidade textual seja complementada com um sentido futurológico que

não preside à orientação alegorética: a figura busca uma concretização histórica, um

cumprimento próximo ao da função profética, com base numa lógica contrastiva

que oscila entre o tipo e o anti-tipo (como se de um espelho invertido se tratasse74)

de modo a buscar uma síntese suprema. Neste seu livro, Auerbach traça o percurso

de evolução semântica do termo figura, recuando até à antiguidade pagã, onde figura

74 O exemplo clássico é o do par Adão/Cristo, com base nos escritos de Paulo: Romanos 5:14 e 1Coríntios 10:6.

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era sinónimo de schêma, tupos, plasis, effigies, imago e forma. Partindo de uma acepção

eminentemente plástica, nomeadamente em Lucrécio (94-55 a.C.), figura passa a

designar o estilo retórico, com Cícero, (106-43 a.C.), até ao ponto de referir-se à

linguagem que escapa ao uso corrente, no sentido de alusão-segunda por efeito

retórico, em Quintiliano (30-95 d.C.). É somente com Tertuliano (160-222 d.C.),

Padre da Igreja, que o termo figura adquire uma coloração profética, anunciando o

cumprimento de um evento (tido como real) futuro. A figura é, então, uma forma

de antevisão, de vislumbre parcial do que virá a concretizar-se plenamente no plano

escatológico com que Deus orienta a direcção da história. Deste modo, o Antigo

Testamento é figura do Novo, assim como o sacrifício do cordeiro o era da morte

de Cristo, segundo afirma a máxima agostiniana: “In Veteri Testamento, est

occultatio Novi, in Novo Testamento, est manifestatio Veteris” (apud Compagnon

1979:180).

Santo Agostinho era, como sabemos, um entusiasta da interpretação

figural das Escrituras, que para ele não constituíam um texto hermético (apesar de

admitir a possibilidade de estratificação do sentido). No entanto, o seu

entendimento de figura é ainda bastante próximo do de tipo (typos): “le type désigne

tout aussi bien une première manifestation de ce qui répétera sans impliquer

nécessairement que la répétition soit un accomplissement” (Auerbach 2003b:117). E

este é o ponto do qual se destaca o alcance singular de figura: na sua capacidade de

remeter, com base profética, para a plena realização escatológica de um sentido

apenas prefigurado; o que no primeiro é cíclico, na segunda é da ordem do linear.

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Sendo a tipologia um dos mecanismos figurais, a história da terminologia veio a

consagrar a emergência desta última.

Este périplo não pode dar-se por terminado sem que examinemos o papel

de Orígenes, já anteriomente aflorado, na história da interpretação do texto bíblico.

A sua importância foi abundantemente estudada por Henri de Lubac, que em 1950

lhe dedica o magistral estudo Histoire et esprit. L’intelligence de l’Écriture d’après Origène.

Salientando as múltiplas referências de Orígenes à densidade dos escritos bíblicos, a

que se referia recorrentemente como um oceano de mistérios, Lubac consegue

apurar que, para Orígenes, havia essencialmente duas grandes vias de sentido que de

modo algum se excluíam, antes se complementariam numa lógica de continuidade

natural. Superfície e profundidade são duas imagens bem apropriadas para mostrar a

diferença entre a letra e o espírito do texto, tal como Orígenes o entendia: uno por

inspiração divina, apesar do esforço de estratificação metodológica a que estava

sujeito. No interior da dimensão espiritual, situar-se-iam então três outros sentidos:

o alegórico (ou místico), o moral (ou espiritual) e finalmente o anagógico (ou

escatológico). Lubac reconhece ainda a autoria origeniana da quadripartição dos

sentidos da Escritura, ao mencionar que “Sixtus of Siena and Huet were not wrong

in making Origen the principal initiator of this division” (2007:204). Como sìntese

do seu pensamento, ficou cristalizado o princípio escolástico da autoria de

Agostinho de Dácia, em 1282, no célebre dístico medieval:

Littera gesta docet, quid credas allegoria, Moralis quid agas, quo tendas anagogia.

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Defendendo a exegese bíblica não como disciplina independente, mas como parte

integrante da teologia, Lubac examinará ainda o impacto da leitura alegórica no

Ocidente através dos comentários e comentadores das Escrituras durante o período

medieval, nesse monumental clássico da teologia que é Exégèse médiévale. Les quatre

sens de l’Écriture, que ainda hoje se impõe como referência incontornável neste

campo de estudos.

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2.5. PARA UMA POÉTICA DA SENSIBILIDADE BÍBLICA

Em “Religion and Literature” (1935) – ensaio onde se defende que a

literatura dos nossos dias padece de uma afecção secular, de amoralidade, que a

impede de proporcionar aos seus leitores uma experiência ética e religiosa que faz

parte da sua dimensão existencial –, T. S. Eliot admite ser possível falar de literatura

religiosa em três níveis distintos. Num primeiro plano, seria tão legítimo falar-se de

literatura religiosa como de literatura histórica ou literatura científica, designações

em que o substantivo literatura se aplica sem qualquer tipo de valoração a um saber

feito de livros, versando sobre o tema indicado pelo modificador. Num outro

patamar da literatura religiosa, situa-se a literatura ideologicamente comprometida

do ponto de vista religioso, a que assiste uma função doutrinária ou propagandística,

que a determina exogenamente. Por fim, Eliot refere ainda a dimensão devocional

dos textos literários, a presença de um confessionalismo religioso que enforma, por

dentro, a expressão artística. Em certa medida, julgo que os escrúpulos reunidos em

torno da literatura religiosa poderão ser convocados também a propósito de uma

rede de outras designações, como as de poeta-teólogo e de discurso teologal, sobre

as quais procurarei discorrer.

Se há nome que corresponda imediatamente à chamada da ideia de poeta-

teólogo, esse terá de ser o de Dante Alighieri (1321), a par de nomes outros como os

de Milton75 ou de Blake.76 Não por acaso, Curtius dá inìcio ao ensaio “Poetry and

75 Para uma reflexão sobre a importância do pensamento teológico de Milton, remeto para o livro de Regina Schwartz, Remembering and Repeating. On Milton’s Theology and Poetics (1993). 76 O alcance teológico da obra de Blake é explorado por Northrop Frye em Fearful Simmetry. A Study of William Blake (1969).

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Theology”, debruçando-se precisamente sobre o poema de Giovanni del Virgílio,

que apelida Dante de theologus, deixando todavia a ressalva de que “theologus means

theologian as little as […] commedia in Dante means comedy” (1990:215). Outro

dos casos dignos de menção é o do pré-humanista Albertino Mussato (1261-1329),

que fala da poesia como uma segunda teologia, ao salientar que Moisés, Job, David e

Salomão foram poetas, que o próprio Cristo falou por meio de parábolas e que a

metáfora é figura comum à poesia e à teologia. Em ambos os casos, estamos perante

a ideia de que “philosophy, theology and poetry are fused into one” (1990:216).

O uso da expressão poeta-teólogo não é, no entanto, uma invenção

humanista nem medieval. As primeiras ocorrências remontam à Antiguidade

clássica, sendo que já Aristóteles chamava “théologues” a Homero e a Hesíodo,

(Métaphysique 1991:50), que a propósito dos deuses “n‟ont songé qu‟aux arguments

qui pouvaient les convaincre eux-mêmes et ils ne se sont guère souciés de nous”

(Métaphysique 1991:111). De modo semelhante, também Cícero utilizou a expressão

em Natura deorum (III, 53). Pode, por isso, Curtius dizer com propriedade que “the

poeta theologus is an old Greek creation which reached the Middle Ages by way of the

Romans and the Fathers, and which was eminently adaptable to Christian

reinterpretation” (1990:219).

Caro ao espírito sincretista da aurora humanista, a que Pico della

Mirandolla viria a referir-se na célebre Oratio (1480) ao mencionar o ideal de

concórdia filosófica, também Petrarca, em Le familiari (X, 4), manifesta a sua

simpatia pelo fusionismo conceptual das relações entre poesia e teologia: “Poetry is

in no sense opposed to theology. I might almost say that theology is a poetry which

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proceeds from God” (apud Curtius 1990:226). Ainda na mesma linha de Mussato, o

autor de La vita di Dante, Giovanni Boccaccio afirma que “dunque bene appare, non

solamente la poesia essere teologia, ma ancora la teologia essere poesia” (apud

Curtius 1990:227).

Se, por um lado, a defesa da proposição segundo a qual “poesia é

teologia” ocorre em autores que tendemos a considerar canónicos, por outro,

também a crítica académica parece ter-lhe dedicado alguma atenção, senão vejamos

o caso de Karl Vossler, também ele um estudioso de Dante e mestre de Erich

Auerbach, que em 1900 afirmava o seguinte:

la vocation du théologien-poète est double: traiter d‟idées philosophiques et théologiques, et vanter les nobles actions et les hommes valeureux; double aussi la méthode de son oeuvre. Pour couler des vérités abstraites dans le moule poétique, il a besoin de l‟allégorie. (apud Auerbach 2003b:108)

A vertente dupla que Vossler sublinha com insistência parece-me encerrar, tanto na

ideia do necessário tratamento de ideias teológicas, como na noção imperiosa da

alegoria por meio da qual se devem insuflar os conceitos abstractos na massa do

poema, a referenciação implícita de um saber assumidamente ético, decorrente das

noções de valo e de verdade, perante uma comunidade que partilha os códigos de

uma mesma discursividade ideológica. Esta, no seio da qual se destaca a importância

da alegoria, em muito se aproxima do que pode entender-se por discurso teologal.

É precisamente sobre uma instância como a do discurso teologal que, em

La Seconde main ou le travail de citation, Antoine Compagnon explora a imagem de uma

insaciável máquina de escrever que escreve em busca do seu objecto, sempre

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esquivo e impalpável. A certa altura, surge inevitavelmente a questão: “Quel est

l‟objet du discours théologal? Ce n‟est plus Dieu, c‟est sa parole, l‟Écriture. D‟où

l‟appellation de discours théologal, discours du discours de Dieu” (1979:171). Este

seria um discurso que tem por base uma modalidade particular da repetição e que

institui uma prática de escrita (outrora incentivada pelo espírito escolástico):

un discours qui s‟est tenu du Ier au XIIe siècle de notre ère, entre la naissance du christianisme et l‟épanouissement de la scolastique, le discours théologal tel qu‟il s‟est, fondu dans et confondu avec la lecture de la Bible [...] et tel que ses occurrences ont été ultérieurement réunies dans la patristique ou la patrologie. (1979:158)

Tendo por pricípio a repetição, a mecânica processual do discurso teologal assenta

numa sistematização do gesto de citar. Estruturado, todo ele, em termos de

remissões constantes à Bíblia, bem como a outros discursos teologais prévios, a

máquina de escrever teologal – como quer Compagnon – explora a ambivalência da

Escritura, alimentando-se da sua pluralidade intrínseca, cindida que está entre o

novo e o velho, entre o espírito e a letra, refracções outras de uma mesma aliança

essencial.

Súmula de discurso sobre a Bíblia e a partir da Bíblia, o discurso teologal

participa de uma metalinguagem que a Bíblia constitui perante si própria, sendo a

única fonte (arquétipo) e forma (protótipo) da sua matéria, tal como a Ilíada para

com o género da epopeia. O discurso teologal terá, assim, de inscrever-se nesse

mesmo desdobramento, por meio da citação e do comentário, alçando-se na sua

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autoridade e diluindo-se na sua universalidade, ao passo que se iniciou na gramática

dessa metalinguagem, a que pede a voz por empréstimo:

Tout le discours théologal participe du commenter, au sens d‟une stratégie d‟énonciation seconde qui, dans un texte premier, donne voix à ce qu‟il a dejà dit et qui repose silencieusement en lui. (1979:164)

A repetição surge assim como lógica processual de representação e de cumprimento

de um modelo que se torna comum tanto à Bíblia como ao comentário teologal, por

esta via possuído pelo texto primeiro e partilhando do seu logos: “imiter est la

condition du commentaire” (1979:230).

Toda a forma de discurso teologal, do comentário à paráfrase, da alusão à

crítica, do elogio à citação, não deixa afinal de ser uma forma de subscrição e de

sobrescrição, de filiação e suplementação, que prolonga uma linha textual ao mesmo

tempo que a ela se acrescenta, acumulando-se por cima, em camadas de sentido – de

que se faz, portanto, a Tradição. É esta dupla valência que, para Compagnon, se

oferece como marca distintiva do discurso teologal e que, de algum modo, entrevejo

como extensível ao filão poético que constitui o corpus desta tese, que claramente se

insere no fluxo teologal que Escritura e Tradição continuam a inspirar e a produzir

numa dinâmica evolutiva – qual máquina de escrever insaciável, em permanente

deglutição de si mesma. Hoje como outrora, a poesia detém o privilégio de poder

ser ainda “un intermédiaire, un interprète” (1979:213) dessa mesma aventura do

signo que, tanto para Platão como para Orígenes, é a intelecção do divino na

linguagem humana.

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O meu objectivo neste subcapítulo não é fazer equivaler expressões como

as de poeta-teólogo e de discurso teologal e, muito menos, de as aplicar

directamente sobre o corpus desta tese. Em nenhum momento aqui se dirá que Ruy

Belo, Daniel Faria, Tolentino Mendonça e Miguel Torga são poetas-teólogos (apesar

de todos eles, à excepção de Torga, possuirem formação superior em teologia, não é

minha intenção subordinar a sua poesia à condição de nota-de-rodapé biográfica, até

pela vigência da distinção entre autor empírico e autor textual), nem que a sua poesia

é uma das formas que assume o polimórfico discurso teologal. No entanto, estes são

conceitos a levar em consideração na história das ideias literárias e julgo ter aqui

cabimento atender à sua arqueologia. Se a imposição destes conceitos de algum

modo poderia diminuir a riqueza poética destes autores, por outro lado eles são

aproximativos de uma certa ideia de aliança entre poesia e teologia, que aqui nos tem

ocupado. Jim Rhodes, por exemplo, na sua leitura de Chaucer, Grosseteste e do

Pearl-poet, a partir de uma visão da teologia como corpo de saberes poeticamente

convocados, defende mais do que a justaposição de poesia e teologia, pela superação

copulativa de que “poetry does theology” (2001). A simbiose poética que o autor

extensivamente analisa tem lugar no final do século catorze, quando as relações

entre teologia e poesia foram impulsionadas pelo espírito humanista da época que

veio revolucionar a matriz teológica tardo-medieval num momento em que a

expressão vernacular se exponencializava.

No caso da poesia portuguesa do final do século XX será possível

defender um postulado semelhante? Este desafio radica, por exemplo, no perigo de

considerar-se a poesia portuguesa aqui trazida à consideração apenas na medida da

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sua fecundidade bíblica e teologal e de defini-la apenas em função desse critério,

uma vez que há sempre mais nos textos do que aquilo que neles conseguimos ler,

que estes não se esgotam em leituras unívocas, sendo-lhes própria a disseminação da

palavra escrita e sujeita ao exercício interpretativo de cada leitor. Não deve ser,

portanto, tarefa da crítica estreitar horizontes, mas pelo contrário alargá-los. Dizer

destes poetas portugueses que a sua poesia se inscreve no quadro de uma poética

bíblica ou teologal comporta, além do mais, uma considerável dose de potenciais

equívocos, na medida em que pode sugerir que a sua produção literária tem

ambições de matéria bíblica ou teologal (se imaginarmos por exemplo que ainda é

hoje possível aspirar à condição de apócrifo bíblico, dando continuidade ao texto

sagrado); que é feita à imagem e semelhança da poesia contida na Bíblia ou que a

tem como ponto de referência simplista para inspiração da escrita, na qualidade de

modelo ou como seu mote espoletador.

A inadequação de todas estas categorias deve fazer-nos reconsiderar a

importância desta poesia em si mesma, endereçando o modo como a sua produção

é informada por um gesto de leitura, de busca e mesmo tradução de um sentido, de

que ela se torna mediação e simultaneamente produto, num entrelaçamento

contratual (forma de pacto ou aliança) entre a escrita que busca iluminar a leitura e a

leitura que por sua vez desencadeia a escrita, assumidas como modos de interpretar

e estar em literatura. Convoco assim não apenas aquilo que nessa poesia é uma

partilha de vozes bíblicas, como sobretudo o modo que estas têm de se darem a ler

e de suscitarem a pulsão de leitura que é comum a ambas – enquanto vozes que se

dão não só a ler como a escrever e, por esse meio, a serem relidas poeticamente. É

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89

esse trajecto entre leitura, interrogação e sua elaboração poética que me parece

fecundar a lógica teologizante que contagia a palavra do poema, onde se descobre o

espaço da reinvenção, do questionamento e da revisitação criativa, pelo menos, dos

textos com que vai convivendo de perto e de longe, que ilumina e à sombra dos

quais vai buscando os seus próprios sentidos. Falemos então de uma poética da

sensibilidade bíblica.

Falar de poética é convocar um conceito operativo nos estudos literários,

que ao longo do tempo foi significando coisas diferentes entre si e deu origem a

expressões alternativas. Em Teoria e metodologia literárias (2001:14-16), Vítor Aguiar e

Silva traça o percurso do vocábulo poética, fazendo-o remontar ao verbo grego poien

(fazer), de onde derivam as palavras poiesis (poesia), poiema (poema) e poietes (poeta).

A poética significaria então, para Aristóteles (que a distingue da retórica) e Horácio

mas também para toda a história da literatura subsequente, o conjunto de

conhecimentos técnicos dos quais depende a feitura do poema e simultaneamente o

estudo desses mesmos poemas. Coube a Paul Valéry, em 1937, a redescoberta do

conceito de poética e o seu resgate do âmbito estritamente normativo de fazer

literatura, que tanto havia embaraçado os criadores românticos, pelo reforço do seu

alcance etimológico. No século XX, também os formalistas russos, bem como os

estruturalistas checos, se dedicaram à exploração da poética como campo de estudos

sobre o literário, encarando-a como uma disciplina equivalente a designações como

teoria da literatura e ciência da literatura. Jakobson,77 por exemplo, defendia a

poética como disciplina integrante da linguística e procurou colar à poética uma

77 Questions de poétique (1973).

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90

ideia essencialista de obra de arte, sintomatizada em expressões como a função

poética da linguagem (a fim de uma outra, a de literariedade). Todorov,78 por sua

vez, encontra na poética um meio abstracto, não de determinar o sentido de uma

obra literária, mas de conhecimento das regras gerais que determinam a sua

constituição discursiva particular: “la poétique définira nécessairement son trajet

entre deux extrêmes, le très particulier et le très génèrale” (1968:27). Esta ideia de

trajecto é ainda reconduzida por Todorov em “La poétique comme transition”, em

que se assume como agente de revelação dos discursos (1968:108). É ainda comum

falar-se de arte poética para mencionar a oficina do poeta, nos textos que este dedica

à explicitação dos princípios orientadores da sua produção.

Interessar-me-ia reter esta ideia de trânsito, a propósito de uma poética da

sensibilidade bíblica, onde se situa o ente que transvaza dos textos, a matéria que se

encontra em deslocamento (Todorov) na pura dimensão textual, ou mais

precisamente entretextual, da possibilidade literária. Ela terá de existir, portanto, no

espaço entre, no gesto de leitura ancorado nos textos e consciente dos cruzamentos

que proporciona, que terão obviamente efeitos retroactivos sobre o texto bíblico e o

texto poético. E nisto nos aproximamos da matéria intertextual (Kristeva) de que se

faz o discurso teologal tratado por Antoine Compagnon em La Seconde main ou le

travail de la citation. O elemento sobre o qual mais directamente incidirão estes efeitos

é muito naturalmente o corpus escolhido de poesia portuguesa do século XX, que na

sua relação com a Bíblia e a teologia nos interessa acompanhar de uma perspectiva

pendular, na medida em que ela nos fala simultaneamente da condição poética como

78 Poétique (1968) e Poétique de la prose (1971).

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91

da condição religiosa. Isto porque é na poesia portuguesa que encontraremos o

nosso campo laboratorial privilegiado, a partir do qual observaremos um

movimento, de leitura, para fora e um outro, de inscrição, para dentro. Falo em

concreto da dimensão metaliterária do fazer poético, mais precisamente do fazer

poético teologicamente enformado, e que se deixa implicar na teia do poema,

assinalando o traçado bíblico no como do sentido poético. A referência ao universo

bíblico se, por um lado, altera o poema, por outro, não pode deixar de alterar

também esse mesmo universo; a uma tal metamorfose mutuamente implicada

chamo eu aqui poética da sensibilidade bíblica, esse processo de revelação dos textos

entre leituras. A esse mesmo processo chamaram os exegetas judaicos os quarenta e

nove degraus que equivaleriam aos sete vezes sete sentidos do texto,79 em permanente

elaboração do infinito sobre si próprio – o que, em última instância, faz remontar o

início da exegese bíblica à própria Bíblia. Assim sendo, encontraremos neste corpus

de poesia portuguesa um legítimo meio heurístico de redescoberta bíblica, desde que

isso não implique o esvaziamento da sua poeticidade, a anulação do seu fim-em-si-

mesma, sob pena de desvirtuarmos o objecto artístico e, com ele, o alcance da nossa

leitura. O artefacto epistemológico que a poética da sensibilidade bíblica constitui é,

na verdade, um móbil de transmutação que convida à releitura inquieta, ao

desassossego e à frutífera contaminação literária. Um poema que remeta para a

Bíblia ou para a tradição teológica está de facto a reclamar do seu leitor uma

capacidade interpretativa que actue como se de um pêndulo se tratasse: permitindo-

lhe entender como ele se inscreve numa linha de sentido bíblico, reinscrevendo nela

79 Cf. Calasso, Quarantanove Gradini (1991).

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o sentido poético que lhe dá e convidando-o à releitura, bem como à reapreciação

das coordenadas do sentido poético e do texto bíblico poeticamente endereçado.

O terceiro capítulo desta tese fornecerá, por fim, a matéria que completará

o périplo em torno da ideia de uma poética da sensibilidade bíblica, pela análise de

casos particulares de poetas portugueses do século XX, feita a partir de problemas

suscitados pela presença do elemento bíblico no corpo poético. A referência ao

bíblico implica, em si mesma, uma forma de reflexão sobre o fazer poético, um

desdobramento do poema sobre si próprio, um gesto de consciência reflexiva do

acto de importação bíblica como elemento definidor de uma identidade literária sem

a qual a real dimensão do seu sentido ficaria enjeitada, desvirtuada, amputada até.

Quando um poema deglute, encena, elide, reescreve, cita, se posiciona analítica ou

criativamente sobre um texto de origem bíblica, ele está de facto a dizer algo que

recai também sobre si, na sua qualidade meta-lírica, nem sempre compatível com uma

noção de poesia pura (cf. Borges 1997). O espaço de uma poética da sensibilidade

bíblica é então essa atmosfera onde o contrato textual ocorre. E o poema é o rasto

que ele deixa no caminho de que se faz a sua memória bíblica. Contendo-a e

prolongando-a, a poética da sensibilidade bíblica alimenta essa memória de que é

devedora, dando-se como forma de conhecimento que elege as relações literárias, na

precisa medida da sua tensão dialogante, como a chave para uma história da nossa

identidade de leitores de literatura.

Este é o campo da sensibilidade bíblica: o de uma capacidade perceptiva e

interpretativa particularmente atenta a todo o artefacto que remeta para a presença

do elemento bíblico na tessitura do literário. O destaque aqui dado a tal designação e

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a sua preferência face a fórmulas alternativas, como as de literatura religiosa, poesia

teologal ou poesia bíblica, provém do desejo por mim assumido de não-

instrumentalização desta poesia aos fins da crítica, por mera catalogação

externalizante, mas de encontrar um veio interno que ilumine por dentro a leitura

destes poetas no campo da sensibilidade religiosa e, mais especificamente, bíblica.

Sigo aqui o avisado conselho de Eduardo Lourenço (2002b:17-21) que, a propósito

da questões do platonismo em Camões, alertava para aquilo a que já António José

Saraiva denominara os pseudoproblemas da crítica. É nisso precisamente que

acredito estar a vantagem do compromisso proposto pela Literatura Comparada: na

aliança simbiótica entre os paradigmas textológico e o teorético, o texto e o

problema argumentativo, sem permitir que um se sobreponha ao outro, se esvaziem

ou terciarizem mutuamente. Esse é justamente um dos perigos em que incorre

Manuel Ribeiro ao propor a categoria de literatura religiosa para poetas que de

alguma forma tematizem na sua escrita

a demanda de um sentido existencial face à [contingência humana], por meio de um processo reflexivo onde a pergunta de Deus surge com frequência. Na verdade o carácter religioso da literatura está menos dependente do conteúdo especificamente sagrado de uma obra literária que do facto de ela sugerir uma reflexão a partir de uma experiência humana [...]. Literatura religiosa é, pois, toda aquela que mediante um corte no racional, problematiza a transposição simbólica do fenómeno humano para uma ordem superior, tentando responder a desejos, carências e interrogações muito profundas que não afectam apenas os crentes [...]. Poderá englobar-se dentro da designação de literatura religiosa toda a escrita literária que abarca a ideia de uma certa relação com o absoluto, mesmo quando enlaçada na dúvida, na solidão ou na angústia. (2004:16-17)

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94

Estas são razões que, embora atendíveis, não me parecem descrever este fenómeno

literário na sua complexidade. Até porque dizem mais sobre a crítica a que estão

sujeitos do que sobre a sua natureza mesma. O facto de poder haver leituras

religiosas de Ruy Belo se, por um lado, deveria significar que o texto as autoriza, por

outro, não descreve a totalidade das leituras, na sua variedade, que estes mesnos

textos podem vir a suscitar. Não abrange, por exemplo, as preocupações político-

sociais que são também uma das linhas semânticas que percorrem a poesia de Ruy

Belo. Seria ainda redutor abrigar a poesia de Ruy Belo sob a designação de poesia

política, que não é. O mesmo é válido para os outros poetas que constituem o corpus

desta tese: Daniel Faria, Tolentino Mendonça e Miguel Torga.

Outros poetas portugueses há que foram considerados na fase de

constituição do corpus. É o caso de nomes como os de Teixeira de Pascoaes,

Herberto Helder, Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, José Blanco de Portugal, José Luís

Mourão, Pedro Tamen, António Franco Alexandre, Sophia de Mello Breyner, José

Régio, António Ramos Rosa, para indicar alguns dos mais incontornáveis no século

XX português. Alguns destes poetas, diz Manuel Ribeiro, poderiam integrar o corpus

de uma literatura de preocupações religiosas e existencialistas, pelo modo como

tematizam o transcendente, se debatem com interrogações metafísicas, exprimem a

nostalgia do absoluto, num discurso de religiosidade confessional, ou pelo modo

como incorporam crenças, tradições e textos religiosos na sua produção literária. De

facto, assim é. Cabe aqui uma palavra de elucidação para a minha escolha não ter

recaído sobre estes. Várias são as razões passíveis de serem aduzidas para este efeito,

desde logo a de uma preferência afectiva, de gosto pessoal. A esta poderia juntar-se

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95

uma outra, a de uma pragmática do trabalho de tese, que exige mais coesão do que

dispersão em torno de um argumento: foi por isso necessário restringir

temporalmente as escolhas no âmbito da literatura portuguesa, minha área de

formação inicial. O século XX português, na minha óptica, oferece terreno fértil a

esta exploração, ao mesmo tempo que beneficia estes autores através de factores

vários: em primeiro lugar, liberta-os de uma tradição bibliográfica de acumulação

histórica de interpretações, permitindo a novidade das leituras e abrindo-se a novos

contributos críticos; em segundo lugar, favorece a colocação de hipóteses de

natureza religiosa fora do âmbito periodológico ou dos preceitos de codificação

literária, bem mais restritivos noutras balizas de temporalidade.

Estes quatro poetas, por sua vez, distinguem-se de todos os outros pela a

sua atenção ao objecto bíblico, mais do que ao fenómeno religioso. A questão da

sensibilidade bíblica é um tópico teórico que encontra neles uma total viabilidade,

quando confrontada com os vários momentos da sua obra, e não apenas episódica

ou circunstancialmente. Depois, porque me parece que tanto Ruy Belo, como

Daniel Faria e Tolentino Mendonça, na singularidade dos seus casos particulares,

formam um núcleo passível de perspectivação semelhante relativamente ao modo

como incorporam, interrogam e referenciam a relação dos seus textos com o texto

bíblico. Formam, como defendo, uma nova aliança entre poesia e teologia, pelo

cultivo de uma poética a que chamo aqui da sensibilidade bíblica, atenta às

negociações entre o sagrado e o profano, a mística e a hermenêutica. O caso de

Miguel Torga não se enquadra nesta lógica e, por isso mesmo, foi deliberadamente

escolhido. Enquanto os outros três poetas partilham o pressuposto de uma

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linguagem poética biblicamente permeável, movendo-se pelo universo bíblico com

familiaridade, como herdeiros legítimos da herança bíblica, Miguel Torga assume-se

como um caso complexo, pelo tom de veemente recusa de uma re-ligação ao divino

que, significativamente, o não isenta de recorrer aos códigos semânticos da Bíblia. A

sua via, no entanto, é a da polemização e do questionamento permanente dessa rede

de relações e referências. Miguel Torga constitui um caso excepcional de

desconstrução do edifício bíblico pela implicação das vozes que nele destoam e se

fazem estranhar. A sua poesia sustenta-se sobre as ruínas de uma visão unívoca e

ortodoxa do mundo bíblico; a sua Bíblia é a de Adão, de Caim e de Job, a da voz

puramente humana face ao desamparo de um mundo incompreensível, se tomado

como compatível com a ideia canónica de um Deus criador. A sua Bíblia é, no

fundo, outra (heterodoxa, dialógica, polifónica), tal como o seu livro não é o de Job,

mas precisamente O Outro livro de Job. E esta não pode deixar de ser, como me

proponho defender no último capítulo desta tese, uma das conformações que pode

assumir uma poética da sensibilidade bíblica.

Se autores como Miguel Torga (pseudónimo de Adolfo Rocha) e Ruy Belo

são bem conhecidos da crítica e do público leitor, já Daniel Faria e Tolentino

Mendonça solicitam uma palavra prévia de apresentação, para a qual reservarei

alguns parágrafos. A vida literária de Daniel Faria salda-se na publicação de seis

livros de poemas, posteriormente reunidos em Poesia, numa edição de Vera Vouga

que data de 2006 e que abrange espólio até então inédito. Fazendo uso de outro

nome de autor (Cerjio Lage), Daniel Faria estreia-se em 1992 com Uma Cidade com

muralha e Oxálida; no ano seguinte, em 1993, daria ainda à estampa A Casa dos

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97

ceifeiros. Apenas em 1998, Faria deixa bem firmada uma assinatura autoral definitiva

(em torno da qual se agrupa a totalidade da sua obra80), com a publicação de livros

de maior fôlego como Explicação das árvores e outros animais e ainda de Homens que são

como lugares mal situados. Dois anos depois, em 2000, vem a lume já postumamente

aquele que seria o seu derradeiro livro, intitulado Dos líquidos. Obra selada por uma

morte precoce, a poesia de Daniel Faria não passou, contudo, despercebida do

público leitor nem da crítica, tendo sido reconhecida através de prémios e distinções

– a que deve acrescentar-se a existência de um prémio literário de poesia atribuido

anualmente pela Câmara Municipal de Penafiel (em parceria com as edições Quasi)

com o nome do poeta.

Publicando desde a década de 90, Tolentino tem sabido afirmar-se como

uma das vozes poéticas mais notáveis da sua geração. O seu primeiro livro de

poesia, Os Dias contados, data de 1990. Seguiram-se Longe não sabia (1997), A que

Distância deixaste o coração (1998), Baldios (1999), De Igual para igual (2000), Estrada

branca (2005), todos eles reunidos em A Noite abre meus olhos (2006), juntamente com

Tábuas de pedra (inédito até então), onde o autor volta a recuperar o motivo entre

todos essencial na sua poética que é a visão, desde logo na forma como agrupa a sua

produção poética em torno desse título. Uma mesma linha semântica atravessa as

suas obras, sendo O Viajante sem sono (a obra mais recente, de 2009) um natural

prolongamento da que a antecedeu, no que se consolida uma poética lúcida

relativamente ao seu estado de vigília, desperta para o mundo e para a sua própria

80 Sendo que essa é precisamente uma das suas funções, como não pode ser ignorado desde Derrida e “Assinatura, acontecimento, contexto”, ensaio publicado em Margens da filosofia. Ver também Foucault e função-autor.

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missão enquanto entidade de interpelação e interrogação do e pelo sujeito, mas não

menos atenta ao modo como as inflexões do seu discurso podem actuar nele e, por

reenvio, sobre a sua própria tessitura poética.

Algumas das intersecções literárias que devem aqui ser destacadas (terei

oportunidade de desenvolvê-las nos capítulos dedicados a cada um dos poetas), e

que resultam da confluência de leitura dos três poetas da aliança, concretiza-se na

recorrência de vectores transversais a todos eles, como sejam os motivos da

redondeza e da verticalidade, os temas da luz nocturna e da visão, a referência a

Herberto Helder, entre outros. Belo e Faria unem-se na atenção concedida às

árvores como elemento dorsal de religação da paisagem humana à divina; Belo, Faria

Tolentino partilham a obsessão poética pela redondeza das coisas: o pião, a pedra, a

laranja, a ilha, a roda da bicicleta são formulações do círculo que constitui o amplexo

cosmogónico entre o divino e mundo. Se, para Belo, “a poesia mete-se pelos olhos

dentro, é uma forma de visão que ensina a ver” (Magalhães 1984:19), para Faria e

Tolentino a visão destaca-se como sentido essencial na penumbra das coisas, sendo

a noite a instância por excelência da contemplação mística que intermedeia a relação

de conhecimento entre o homem e o mundo. Belo e Tolentino conservam um

conceito de poesia potencialmente transgressivo, enquanto acto de insubordinação81

e de apostasia, na linha romântica do poeta maldito, figura das trevas, que está

também presente em Miguel Torga. A sua afinidade prolonga-se na predilecção

pelos temas da infância, da viagem e do olhar (é notória a presença beliana em

81 “A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis [...]. Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir” (Belo 2004b:9, 10).

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Tolentino, pela alusão em poemas como «Duas cidades: Madrid » e «A Rapariga de

Providence»).

A referência destes poetas à figura tutelar de Herberto Helder não passa

despercebida, pois se de Daniel Faria se pode dizer ser “a continuação à altura” de

Herberto Helder, como quer José Ricardo Nunes (2002:21) secundado por Rosa

Martelo (2010:295-298), tanto Ruy Belo como Tolentino Mendonça rendem-lhe a

devida homenagem em poemas como «Vat 60» e «A infância de Herberto Helder»,

que opera sobre aquele uma releitura essencial. Com Margarida Braga Neves,

destaco aqui que “Herberto Helder ocupa um lugar de relevo nas afinidades

electivas” destes poetas (1997:8). A revisitação da infância constitui, para além de

tema poeticamente acarinhado por ambos, a constatação fundacional do estatuto do

poeta, esse ser que paira entre “o depois e o antes da morte”. Estes são alguns dos

aspectos de aliança interna que começaria aqui por sumariar e cujo traçado será de

algum modo reconstruído nos capítulos que se seguem, sob o signo de uma

sensibilidade bíblica – nome de uma poética que em cada um deles defendo

reconhecível. Passemos, então, a novas alianças.

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III

DA SENSIBILIDADE BÍBLICA

EM ALGUMA POESIA PORTUGUESA DO FINAL DO SÉCULO XX

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3.1.

HOMO MENSURA DEI.

A DIMENSÃO SACRO-PROFANA EM RUY BELO

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3.1.1. O lugar teológico. Ou que importa tudo isso?

Uma das alianças de que me ocupo no decurso desta tese é a das

dimensões do sagrado e do profano na obra poética de Ruy Belo e do modo como

elas implicam uma forma particular de fazer poesia, solicitando ao seu leitor uma

sensibilidade para a presença de um discurso que convoca e se perfaz de uma

tessitura poética de elementos pertencentes à esfera do religioso, através dos quais se

endereça uma reflexão sobre o fenómeno do divino e suas representações

teológicas. Outras dessas alianças, como espero deixar claro, firmam-se

dialogicamente em torno das relações entre poesia e mística (em Daniel Faria) e

entre poesia e hermenêutica (o caso de Tolentino Mendonça). A triangulação de

cada uma destas formas de interlocução da experiência poética outra coisa não é do

que a tentativa de situar, por circunvagação epistemológica, os territórios do

sagrado, nas suas múltiplas formulações literárias. É, pois, a partir de uma rede

conceptual e terminológica que proponho avizinhar estes três poetas, interrogando

formas possíveis de equacionar o discurso do transcendente no literário e o modo

como estes, em aliança, se enriquecem e mutuamente questionam.

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Começarei então por mapear, no âmbito da geografia dos estudos críticos

sobre Ruy Belo, algumas das referências que o reclamam poeta do religioso. Esta é

uma percepção relativamente disseminada entre vários leitores de Ruy Belo, ao

contrário do que acontece com os outros dois autores do corpus principal desta tese,

a que já aludi. No que diferirá, no entanto, a minha das abordagens que a

antecederam? De facto, se a recepção de Tolentino Mendonça e de Daniel Faria

pode ainda considerar-se bastante recente, o mesmo não se pode afirmar de Ruy

Belo, a quem foi já dedicada uma extensa atenção crítica.82 Creio, no entanto, que a

propriedade da questão teológica em Ruy Belo é um postulado mais referido do que

extensivamente analisado e que a percepção da dimensão sacro-profana da poesia de

Ruy Belo carece de corroboração no que diz respeito a uma efectiva presença dos

efeitos de leitura do texto sagrado – aquilo que pretendo designar por sensibilidade

bíblica nesta dissertação – não apenas em termos de contabilização de ocorrências (o

que, ainda que importasse fazê-lo, seria mais pertinente num estudo de fontes e

influências), como sobretudo no modo como o livro bíblico é convocado enquanto

referência matricial, figuração literária solicitada no interior do poema. De entre os

vários prismas de interesse que esta obra suscita, passo aqui a eleger como

fundamental no meu argumento sobre Ruy Belo a existência de uma teoria sobre o

divino e o modo como a sua poesia se lhe oferece enquanto resposta humana,

82 Para um balanço das leituras da poesia de Ruy Belo, numa lógica das modernidades literárias e dos autores que prolongam ou rompem com a geração de 1961, remeto para o prefácio e primeiro capítulo do livro de Pedro Serra, Um Nome para isto (2004:11-67). O seu propósito é enunciado do seguinte modo: “creio que o que pretendo é recuperar a intransitividade da poesia de Ruy Belo. O muito trânsito que nela se reitera é, para mim, o intransitivo dela. E a minha objecção ao modo de, alguma crítica, conceber esta poesia como trânsito do (e no) século XX prende-se com o facto de esse trânsito ser concebido em função de uma demasiada actualidade de Ruy Belo e não em função daquilo que nele é inactual. A demasiada actualidade anonimiza Ruy Belo” (2004:30).

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recentrando questões nela tão encarecidas como as da imanência ou da condição

terrena, por razões que espero vir a tornar claras.

Num compreensivo estudo dedicado à poesia de Ruy Belo, Manuel

Ribeiro coloca no escopo da leitura deste autor aquilo que poderíamos aqui designar

por lugar teológico, ao situá-lo significativamente no que entendeu por bem chamar,

operando a reescrita do título do poema longo dedicado aos amores de Pedro e

Inês, “a margem da transcendência” (2004) – abrindo assim caminho para que João

Carvalho da Silva viesse posteriormente, explorando na mesma analogia um

processo semelhante de diferimento semântico, a referir-se “ao estado de

transcendência que se situa inevitavelmente na margem da alegria” (2010:71). Ainda

Luìs Adriano Carlos falou de uma “margem da alegoria” (2000:259-270),

contiguando Belo a algumas das questões que acompanhámos no capítulo anterior.

Este tópico entronca na asserção analítica, amplamente consensual na

comunidade de críticos de Ruy Belo, de que a sua poesia radica numa sensibilidade

teológica progressivamente secularizada,83 por motivos que se prendem com a

biografia do autor – como assinalou por diversas vezes o próprio e, de resto, não o

procuram esconder alguns dos seus críticos, ainda que incorrendo nos perigos da

interpretação biografista, cujos limites são propícios a ambiguidades equívocas e

mesmo improdutivas (que aqui, sendo embora objecto de auscultação crítica, não

serão tentados). O próprio autor o reconhece, com a lucidez crítica que lhe era

83 Remeto, neste ponto, para o ensaio de Maria João Reynaud, onde é afirmado que “Ruy Belo [se inscreve] numa tradição poética de raiz bìblica que progressivamente se laicizou” (2010:7). Pedro Serra assinala também a pertença de Ruy Belo a uma “teologia secularizada” (2004:120).

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própria e em termos que remetem para a historicidade dos estudos literários, pois

que também eles datam e se tornam datados:

Quando publiquei Aquele grande rio Eufrates, a maior parte da crítica, ainda alheia ao verdadeiro objecto da ciência da literatura que é a obra literária como tal, não conseguiu resistir à fácil tentação de transferir para a apreciação do livro uma perspectiva – a do catolicismo – que diz mais respeito à minha pessoa do que à minha poesia. (Belo 2002:16)

De facto, a questão do lugar teológico representa em Ruy Belo um dos nódulos

centrais em que imbrica esta poesia, mas não pelas vias de uma potencial alegria

poética, como parecem sugerir alguns dos autores citados no parágrafo anterior: a

margem parece-me ser, precisamente, a dos antípodas da alegria, como espero vir a

demonstrar, na linha do reconhecimento feito já por Pedro Serra, para quem “a

alegria não [deve ser tomada] como substância mas como diferimento. Alegrias só à

margem ou, o que é o mesmo, alegrias são a margem [uma vez que] a cognoscência da

alegria e sua terra supõe o esquecimento da morte como finitude” (1997:35).

Saliente-se, de resto, que o poeta o assume nos seus escritos, em ocasiões várias,

relatando por exemplo como se deu o surgimento da sua actividade poética no seio

de uma crise ideológica e espiritual:

No termo de dez anos de uma aventura mística que terminou há dez anos, eu saí para a rua e para o dia-a-dia com este punhado de poemas, com estas palavras que me consentiram escrever nos breves intervalos do silêncio durante muitos anos imposto, a pretexto de que, de contrário, a minha alma correria perigo, como se eu tivesse uma coisa como alma. [...] já à data da composição destes poemas, atravessava uma crise profunda quem aliás sempre viveu em crise. (Belo 2004a:15)

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Nessa mesma “Explicação que o autor houve por indispensável antepor a

esta segunda edição” de Aquele grande rio Eufrates, Belo contextualiza, em visitação

retrospectiva, o seu surgimento enquanto autor e poeta, dando conta do “clima

onde se moveu e continua sem remédio a mover-se a organização verbal deste

livro”, do seu primeiro livro de poesia afinal, com que se estreou no ano de 1961.

Um dos aspectos que nele sublinha, com António Ramos Rosa, é o de uma

“insatisfação [que] sempre foi «mais de raìzes ontológicas do que religiosas»”. E com

isto o autor opera aquilo que parece ser uma perspectivação revisionista da sua

própria obra, esforçando-se por atenuar nela elementos que lhe são intrínsecos

como “os de pecado individual, de mal [ou do] jogo do catolicismo”, no fundo,

reforçando o esteio ontológico em detrimento do religioso. Este acertar de agulhas

de um poeta em retrospectiva não se fica apenas pela enunciação dos pontos de

mudança que fazem o passado diferir do seu presente; antes, tal transformação

pessoal impele-o, por exemplo, a proceder a certas alterações ortográficas, como

acontece com a palavra deus, que o poeta justifica do seguinte modo:

mesmo a grafia do lexema „deus‟, com minúscula, decerto mais consentânea com a minha actual posição ideológica, mais não significa, digamos, que a recente tomada de posição […] da Soljenitsine na URSS ou o desejo de que palavra alguma levante a cabeça no meio da frase, por mais carregada de sagrado que a história no-la tenha feito chegar. (Belo 2004a:16-17)

Outro exemplo deste revisionismo poderemos encontrá-lo na introdução do autor

ao livro Homem de Palavra[s], em que Belo faz questão de declarar a actualização quer

formal quer ideológica dos poemas:

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Para evitar equívocos, eliminei o verso final de «Corpo de Deus», além de poder afirmar que «O maná do deserto», «Lot fala com o anjo», «Senhor de palavra», «Palavras de Jacob depois do sonho» e evidentemente o soneto «Eu vinha para a vida e dão-me dias» não têm conteúdo cristão. (Belo 2004a:244)

No entanto, encontramos em críticos como Joaquim Manuel Magalhães ou Manuel

Gusmão a defesa de que esta mudança ideológica não tem necessariamente de

corresponder a “qualquer rasura da palavra ou de conceitos ou situações que

envolvam a ideia de Deus” (Magalhães 1989:155) ou de que “esta alteração não

implica o apagamento de toda e qualquer forma de religiosidade da poesia de Ruy

Belo” (Gusmão 2011:414). Uma tal oscilação entre o distanciamento relativizador

do sagrado e o seu não-apagamento introduz nesta poesia o efeito de convivência

entre dois mundos que se tocam na sua essência, como defendo, o do sagrado e o

do profano.

Em outros momentos deste mesmo prefácio, o autor concede que se fale

do seu livro como “poesia metafìsica”, designação que faz questão de diluir logo de

seguida, apondo-lha a de “poesia do quotidiano” – numa sucessão ainda assim

complementar e não exclusiva, sublinhe-se, através da qual o poeta parece recusar o

acantonamento da sua poesia naquele que é um, entre outros, dos vários fios de

sentido que a atravessam. Há, por isso, uma lógica implícita no facto de, no

parágrafo seguinte, Belo proceder a uma elencagem não exaustiva das influências

actuantes neste livro, rematando-a por meio de uma interrogação retoricamente

concebida para centrifugar a atenção do leitor, assim dispersado da real importância

destes aspectos na sua poesia: “Bìblia, missais, Eliot, que importa tudo isso?”

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(2004a:18). Como se de uma questão menor se tratasse, o autor desenfatiza o lugar

das chamadas influências (movido talvez pela sintomática da angústia bloomiana),

para realçar o seu objectivo de conseguir “o máximo de ambiguidade e de

possibilidades de leitura” nessa “aventura de linguagem” (2004a:16, 17) que é afinal

em que consiste o seu entendimento de poesia. Ainda na sua introdução ao livro

Homem de Palavra[s], o mesmo tipo de exercício é levado a cabo pelo autor:

As epígrafes, pedidas a dois apóstolos, não permitem classificar este livro como cristão. Já para Boca Bilingue eu dispunha de um versículo do livro de Sabedoria que diz: «A sabedoria detesta a boca bilingue». Não o introduzi por eventualmente conferir um sentido unívoco a um segmento de linguagem que eu queria plurivalente e evasivo, configurando o verdadeiro sentido da palavra poética. Se as epígrafes pedidas à Bíblia conferissem o cariz cristão a quem delas se socorre muitos autores teriam de ser considerados cristãos, quando tal ideia nunca lhes teria passado pela cabeça nem pelo coração. (Belo 2004a:244)

Esta recusa de Belo relativamente a uma leitura de interpretação cristã se, por um

lado, se esteia na tentativa de libertar o texto do espartilho que constitui para ele a

filiação bíblica, delimitativa das suas potencialidades semânticas, por outro torna

manifesto um sentimento contraditório que, para Margarida Braga Neves,

corresponde à “complexa vivência de uma religiosidade dilacerada” que esta poética

não consegue deixar de transparecer. E aqui se prolonga um dos feixes de sentido

nela actuantes, o do permanente confronto entre “uma estrita imanência [que] se

mostra incapaz de apagar as marcas do doloroso e aparentemente inconclusivo

combate contra a presença da transcendência”, ainda que se esforce por submetê-las

a um “obstinado e obsessivo processo de rememoração/esquecimento [...]

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simultaneamente objecto de evocação pelo discurso e de rasura pelo sujeito”. A

constante flutuação entre os pólos da evocação e da rasura, da rememoração e do

esquecimento, permite não obstante sublevar a ideia do “sincretismo de uma visão

cujo carácter humanista e ecuménico que o poeta nunca deixou de reivindicar”

(Neves 1997:16-17).

O problema da poesia religiosa em Ruy Belo é, como de resto estava

persuadido o autor, assunto passível de suscitar controvérsia, dependendo dos

termos em que for abordado. Também aí a comunidade de críticos se tem dividido.

Essa dimensão sensível foi tratada por Manuel Ribeiro, em obra que aqui já tive

oportunidade de referir, quando assume a sua discordância relativamente ao seguinte

enunciado de Paula Morão: “Não se leia a obra de Ruy Belo como poesia religiosa –

tenha-se em conta, isso sim, a integração da matriz bíblica e dos padres da Igreja que

também fazem parte do magma do seu imaginário” (1998:74). A este respeito,

Manuel Ribeiro afirma a preponderância da matriz bíblica face à patrística:

não é pelo facto de Ruy Belo ter uma escrita repleta de metáforas que indiciam um profundo convívio com textos da Bíblia e da Liturgia que o consideramos poeta religioso, mas por ele expressar nessa escrita o dramatismo de um sujeito que se sente existencialmente desamparado diante do enigma da existência, sem desistir em definitivo de relacionar esse problema com o mistério do transcendente. (2004:356)

Atendo-se sobretudo aos quatro primeiros livros de Belo, Manuel Ribeiro pode com

propriedade destacar a irrecusável presença do texto bíblico na poética beliana,

como de resto o faz de forma concreta no seu ensaio “As multìmodas ressonâncias

da Bìblia” (2004:107-118). O ponto em questão, a sublinhar como central neste

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argumento, parece ser o do estabelecimento de uma coincidência entre as

incidências teológicas desta poesia e a sua catalogação absoluta em virtude dessa

mesma característica. Por mais central que seja, deve admitir-se, um tema ou uma

isotopia poética não deixa de ser uma das possibilidades, entre várias outras, que

esta poesia tem de fazer sentido e de se desenhar no espírito do leitor. Era esta a

lição que o próprio autor propunha, na introdução à segunda edição de Aquele grande

rio Eufrates, e que, salvaguardado o relativo ascendente do autor face à autoridade de

quem lê e por quem se dissemina a potencialidade plurívoca dos textos (em sentido

derridiano), me parece digna de ser retida (ainda que, na fórmula cunhada por

Roland Barthes, o nascimento do leitor se pague com a morte do autor84).

Mesmo versando sobre questões religiosas, que incorpora no seio da sua

própria tessitura, a poesia de Belo é mais do que apenas religiosa – este o nervo

sensível que reclama manejo prudente: uma categoria não deve enclausurar, em

benefício da crítica, um todo poético, reduzindo-o, em seu prejuízo, a um único

paradigma explicativo. A eliminação do risco e da aventura interpretativa deve pois

ser combatida, sob pena do esgotamento da vitalidade e das características que lhe

advêm da sua ambiguidade intrínseca – penso ser nessa perpectiva que deve ser

colocada, com vantagem, a citação de Paula Morão. Isto não significa que uma

leitura como a de Manuel Ribeiro seja destituída de razão de ser, ao colocar a tónica

na importância da matriz bíblica no âmbito da equação humano/divino – antes pelo

contrário. A questão terá ainda de ser outra: a poesia de Belo será religiosa, mas – a

sê-lo – terá de ser independentemente do percurso de vida do seu autor empírico

84 Roland Barthes. 1968. La mort de l‟auteur. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil.

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(isto é aliás tão válido para Ruy Belo como para Tolentino Mendonça ou Daniel

Faria). Estaremos assim em condições de aceitar que há motivos válidos a

considerar do ponto de vista da textualidade desta poesia para entender que Belo,

autor textual, se filia ideologicamente numa determinada categoria, a que aqui

chamaremos religiosa?

O poema é o que era há dez anos. [...] que pode significar, aos olhos de um homem realmente do nosso tempo, a atribuição de uma sua filiação a um deus que, por mais divino que seja, não pode ser tanto seu pai como o homem ou a terra? (Belo 2004a:20)

A questão da “filiação” da obra literária, aqui suscitada, não deve causar admiração

ao leitor de Ruy Belo, tendo mesmo de colocar-se-lhe, assumida que era a

importância de Eliot no seu pensamento e na sua produção (ao ponto de colocá-lo

numa lista composta pela Bíblia e pelos missais).85 Figura relevante da corrente

teórica do New Criticism, T. S. Eliot (1888-1965) destaca-se no século XX como

autor de referência nos estudos de teoria literária, bem como poeta e – o que não é

aspecto menor – pensador atento às relações entre o legado espiritual e religioso do

Cristianismo e as várias esferas do mundo da cultura.86 O autor de “Tradition and

the Individual Talent” (1919) ou ainda de “The Frontiers of Criticism” (1956)

deixou como algumas das suas contribuições teóricas mais marcantes, por exemplo,

85 Afirma Pedro Serra que “Ruy Belo foi um leitor assumido e assìduo de Eliot, sendo que na verdade a lição eliotiana se dilui e dissemina tanto na sua poesia como na sua poética” (2004:49). Belo reservava ainda lugar para Eliot na sua produção ensaística. Veja-se em Na Senda da poesia, as referências a Eliot e à sua escola crìtica em ensaios como “Poesia nova”, “Cinquenta anos de poesia italiana”, “Encontro com Sebastião da Gama”, “À maneira de prefácio” ou “Da sinceridade em poesia” (neste último, o autor chega mesmo a exclamar “quando diabo deixarei eu de parafrasear Eliot?!”). 86 Consulte-se, neste propósito, os vários ensaios reunidos em Christianity and Culture, nomeadamente “The Idea of a Christian Society” (Eliot 1976).

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a divergência entre experiência vivencial e emoção poética, preconizando a não-

coincidência na representação de uma na outra, ou a sua não-equivalência em

termos literários. A sua teoria da impessoalidade na poesia,87 baseada na condenação

do biografismo crítico e na desmistificação da intenção do autor (assim reduzida à

condição de falácia)88 como factor de aferição do sentido do texto, sustenta a

concepção de autonomia da linguagem, a sua capacidade de significar por si própria,

independentemente de qualquer outra variável externa e parasitária das suas

potencialidades de significação.89 Como o próprio Eliot admite:

Pode explicar-se um poema investigando de que é feito e quais as causas que o motivaram; e a explicação poderá ser uma preparação necessária para a compreensão. Mas [...] é ainda mais necessário tentarmos captar aquilo que a poesia em questão pretende ser [...] a nossa compreensão da poesia como poesia [...] contra o desvio de atenção da poesia para o poeta. (1997: 133, 135, 137)

Parece ser esta também a posição de Belo, ao resistir ao apelo fácil da crítica que

pretende ler a sua poesia à luz dos factos consabidos da sua vida, na qualidade de

autor empírico, assim esgotando os recursos da ambiguidade poética que por direito

lhe assistem. Não apenas a ambiguidade da linguagem concorre para esse efeito,

deve também aí contar-se a importância da interpretação particular de cada leitor,

bem como aquela margem do sentido que sempre escapa, onde reside o

imparafraseável ou o intraduzível da poesia, como dizia Eliot e o queria Belo: “[...]

87 “A emoção da arte é impessoal” (Eliot 1997:32). 88 “[...] o significado de um poema pode ser mais vasto do que a intenção consciente do seu autor e situar-se longe das origens do poema” (Eliot 1997:80). 89 “Porque a finalidade da obtenção de semelhante conhecimento [o da crìtica] é, antes, despirmo-nos das limitações da nossa própria época, e libertarmos o poeta cuja obra lemos das limitações da época dele, a fim de conseguirmos a experiência directa, o contacto imediato com a sua poesia” (Eliot 1997:144).

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quanto ao significado do poema no seu todo, ele não é susceptível de ficar esgotado

com qualquer explicação” (Eliot 1997:138), “Arranca esse senhor [o poeta] à

linguagem quotidiana aquelas palavras que lhe faltavam para fechar um poema [...]

Pegando naquilo que vê, pensa ou sente e sacrificando-o ao fio da sua meditação.

Despreza aquele conjunto de circunstâncias que rodeavam a palavra e dá nova

arrumação à palavra liberta. Tanto faz que se fale de desumanização, como de

falsidade, como de fingimento” (Belo 2004a:358).

O ponto teórico em questão é, todavia, passível de ser lido em sentido

inverso. Se, por um lado, aceitarmos que a biografia do autor não encerra a chave de

leitura da poesia (o que simultaneamente desobriga a crítica literária de reconstituir a

psicologia de um autor), por outro, o texto poético deixa de ser obra e passa a ser

campo epistemológico, em terminologia barthesiana, ou seja, atinge o seu patamar

de desfiliação, autonomizando-se de uma lógica de leitura patriarcalizada: o autor

morreu para o seu texto e a leitura que dele fez ou pôde fazer é, apenas e só, uma

das múltiplas que esse mesmo texto pôde suscitar ao longo do tempo e junto dos

mais variados tipos de leitores. A este nascimento do leitor, sobre o qual Barthes

nos legou “La mort de l‟auteur” (1968), corresponde pois o carácter de

disseminação do sentido do texto, sendo que em cada releitura um mesmo texto

desencadeia uma polinização das suas potencialidades de significação que, entre si,

não podem deixar de diferir – aquilo que Derrida, em Marges de la philosophie (1972),

designava por différance, essa cadeia interminável (no tempo e no espaço) de

propagações semânticas. A poesia difere, varia, desvia, transgride e assimila-se

enquanto transgressão dos seus próprios sentidos, existindo nesse mesmo espaço de

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ambiguidade e desafectação entre o que foi escrito e o que pode ser lido. A poesia

pode, então, significar não por causa mas apesar do seu autor.

Pode então falar-se de poesia religiosa ou de crise espiritual a propósito da

poética beliana? O interesse desta pergunta consiste em abstermo-nos de responder-

lhe antes de uma efectiva leitura. Sim, diria eu, se o não soubermos antes. O modo

como esta poesia parece suscitar e explorar este ponto de interesse será uma das

preocupações em torno das quais se estrutura este capítulo. A sua intitulação,

reenviando para as fronteiras do sagrado e do profano, pretende remeter

precisamente para essa mesma dimensão dúplice e indecidível que, como estou em

crer, não deixa de percorrer a poesia de Ruy Belo, sendo que aquilo que constituía

para o seu autor “o resultado de leituras profissionais e obrigatórias de livros

sagrados tomados, no entanto, como livros profanos” (Belo 2004a:244) é ainda

sintomático do poder de contágio e permamente expansão do legado do texto

bíblico. Por isso mesmo talvez possa Tolentino Mendonça afirmar, invertendo os

termos da relação entre texto sagrado e poesia profana em favor da ideia de que o

sagrado se não esgota na Bìblia, que “um poema de Ruy Belo é um texto sagrado”

(2011). Deste comentário poderia dizer-se lavrar na senda da observação de Goethe

segundo a qual o trabalho criativo de Deus não se deteve como encerramento do

cânone das Escrituras, prolongando-se ainda na actividade de grandes espíritos

como os de Mozart, Rafael e Shakespeare (cf. Damrosch 2003:31).

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3.1.2. O grande caudal bíblico

Existe uma dimensão caudalosa na poesia de Belo: a copiosa produção

poética, o verso longo e a sua saturação estrófica são aspectos que no-lo asseguram,

de um ponto de vista formal. Não andaremos longe, estou em crer, da configuração

do “poème-fleuve” (Barrento 1996:76). A propriedade desta asserção radica, desde

logo, no título da primeira obra de Ruy Belo – a montante, poderia dizer-se. Em

1961, é publicado o primeiro livro do autor, sob o título Aquele grande rio Eufrates.

Esta escolha é duplamente significativa: em primeiro lugar porque constitui uma

citação do livro do Apocalipse (9:14) pela qual o poeta irriga o seu livro e, depois,

devido à simbólica que este rio evoca em si mesmo: por ser rio (curso da história,

representação heraclitiana do tempo, ligação entre o princípio e o fim, a nascente e a

foz, a vida e a morte90) e depois pelo facto de se tratar do Eufrates, que consta entre

os primeiros rios mencionados na Bíblia, logo em Génesis 2:14, brotando do espaço

primitivo do paraíso terreal e daí se prolongando, de acordo com a representação da

literatura bíblica, até ao fim dos tempos e do mundo tal como o conhecemos. Ele é

ainda, no reconhecimento de Eduardo Lourenço,

o rio que simbólica e miticamente lhe serviu [ao poeta] de fonte e espelho original, o mais antigo dos rios bíblicos, o Eufrates, onde por suas próprias mãos se baptizou. É, por excelência, o rio da memória. O rio de todas as memórias, da sua, que é a do seu fulgurante ou sossegado devir, a do povo que sobre ele chorou e a do outro povo que ecoou camonianamente uma nostalgia sem pátria dentro, terra de exílio original e final, e antes e acima de tudo, a do tempo que tudo desfaz e de que tudo é

90 Veja-se a presença do princípio heraclitiano no seguinte verso: “incessante como o tempo o rio corre” em «A sombra o sol», Toda a terra (2004c:183).

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feito. Mas aquele rio Eufrates, que foi – e para sempre – a sua água primordial, é o rio da Babilónia, o rio de Babilónia como mundo, um mundo de inextricável mistura de águas contrárias e íntimas [...]. (Lourenço 2002a:215)

O livro de Belo adquire, assim, uma feição fundacional, recuperando por sua vez

algumas das traves estruturantes daquele que é o texto, também em certo sentido

primordial, considerado por António Sérgio a bíblia dos portugueses (do mesmo

modo que a Bíblia seria a epopeia91 de Israel), ou seja, Os Lusíadas e todo o restante

lastro camoniano. Pedro Serra, a este respeito, fala ainda de uma “epopeia negativa”

(2004:11). Na verdade, o paradigma épico parece ser neste livro solicitado (embora

não apenas a ele se circunscreva) através das categorias em que se organiza,

nomeadamente «Apresentação», «Dedicatória» e «Narração», para nele ser depois

subvertido, sobretudo pelo carácter anti-épico que assiste a algumas das suas

composições e que se prolongará pela restante obra do autor, como de resto notou

Aguiar e Silva, na sua análise do poema «Morte ao meio dia» (do livro Boca bilingue).92

E, neste ponto, Ruy Belo faz coincidir dois aspectos que caracterizam

profundamente a literatura bíblica, ao estabelecer a confluência entre os destinos

nacional e universal, o país (Portugal, Israel de si mesmo) e o mundo, reunindo a

história de um e outro sob o signo crepuscular do Apocalipse.

Uma das figurações mais representativas da importância deste rio está

presente de modo exemplar nos dois primeiros poemas de Esse grande rio Eufrates,

91 Vide Damrosch e as relações da Bíblia com a historiografia e o género épico em Narrative Covenant (1987:51-87). 92 “A poesia elegìaca de Ruy Belo é muitas vezes o canto elegìaco de Portugal, sobre Portugal, dos portugueses e sobre os portugueses [...] «O meu país é o que o mar não quer» [...] o explicit do texto deixa a brilhar sombriamente o sentido elegíaco e anti-épico do poema [Morte ao meio-dia]” (Aguiar e Silva 2002:254, 256).

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que me parecem constituir um painel especular que se complementa em torno de

um mesmo rio primordial – o evocado no Salmo 1, no modo como associa a

referência ao homem que vive em comunhão com o divino, passível de comparação

à “árvore plantada à beira da água corrente” (1:3), nos versos “A primavera veio e

ele árvore singular / à beira do tempo plantada / vestiu-se de palavras”93). Atente-se

no modo como os dois eixos se intersectam horizontal e verticalmente, o do rio e o

da árvore, essa “metáfora das metáforas” (Neves 1986:130), assim configurando o

encontro de dois textos e de duas dimensões. Reformulando a escrita do primeiro

versìculo, “Feliz o homem” (Salmo 1:1), Belo reescreve-o pelo seu avesso,

antagonizando a bênção com a maldição do divino: “Terrìvel é o homem em que o

senhor / desmaiou o olhar furtivo de searas.”94 Na confluência da bênção e da

maldição, repousa ainda o “sentimento do estado de criatura”, que para Rudolf Otto

constituía o ponto fulcral de uma definição do sagrado (2005). Esse sentimento é

definido pela percepção da aura numinosa de um objecto, de um lugar ou de uma

entidade, que o poeta aqui soube captar através dos adjectivos “terrìvel” e “furtivo”,

os quais infundem no poema uma aura sinistra de mistério, capaz de inspirar o

horror sacral (pavor sacer).

O jogo de contrastes antinómicos não se esgota nestes pares, que

constituirão as variáveis maiores do problema teológico em Belo, a saber, a relação

entre o humano e o divino, prolongando-se ainda nos eixos da vida e da morte, da

água e da secura, do silêncio e da palavra:

93 «A multiplicação do cedro», Aquele grande rio Eufrates (2004a:24). 94 «Para a dedicação de um homem», Aquele grande rio Eufrates (2004a:23).

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E foi a folha verde que deus passou pela terra desolada e ressequida Quando as palavras o deixaram de cobrir ficaram-lhe dois olhos por onde o senhor olha finitamente a sua obra Até que as chuvas lhe molharam os olhos e deles saíram rios que foram desaguar ao grande mar do princípio95

Recuperando a caracterização da palavra como agente divino sobre a criação, tal

como a encontramos em Isaías,96 veìculo de hipóstase humana qual “folha verde”,

este terrível homem não pode deixar de constituir representação do poeta e da sua

dupla pertença ao universo da terra desolada e da água vivificante de onde se

originou o mundo, bem como a sua própria narrativa. Este “grande mar do

princìpio” (através do qual o poeta faz representar o seu regresso97 ao manancial

bíblico), contido nos olhos humanos através dos quais Deus pode contemplar e ser

contemplado, outro não é do que a grande narrativa da história humana sobre a

terra, esse grande rio que se estende escatologicamente até à foz,98 como em

«Escatologia»: “recebe no teu mar senhor / meu ìntimo destino de algas e de

95 «A multiplicação do cedro», Aquele grande rio Eufrates (2004a:24). 96 “a erva seca e a flor murcha, mas a Palavra do nosso Deus permanece eternamente” (Isaìas 40:8). 97 A ideia de retorno a uma realidade primordial, a textualidade genesíaca, está presente em vários momentos da poética beliana. Veja-se, por exemplo, «A história de um dia» (Aquele grande rio Eufrates): “aqui ou noutro jardim / Todo o caminho é de regresso”. Ou «A exegese de um sentimento», que permite circunscrever o regresso à materialidade bíblica (ponto de onde se partiu, figuração do filho pródigo): “Quem me trouxe de novo até à minha casa?”, «Árvore rumurosa» (Homem de Palavra[s]) “a marca do princìpio a que tudo remonta”. 98 A ideia de rio e de massa de água é uma presença disseminada ao longo da poesia de Belo. Veja-se, por exemplo, «Mors semper prae oculis» (Aquele grande rio Eufrates): “Quando faltar um choupo / no caminho da infância que vai dar ao rio / receberemos no rosto a morte / com a surpresa do primeiro homem”. Ou ainda em «Vita mutatur» (Aquele grande rio Eufrates), “Estende-se sobre ti na sua superfìcie de mar / o grande olhar de deus”, ou «Intervalo de vida» (Aquele grande rio Eufrates), “A primeira infância passou mas agora ou logo / deus renova todas as coisas / E um dia haverá barcos e seremos livres”.

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escamas”.99 Este é também um rio de múltiplas águas, onde corre ainda o rio de

Babilónia e as lágrimas dos judeus cativos (numa união que Belo não deixa de

evocar100), esse que permite ao divino a interferência directa no curso dos

acontecimentos e na queda dos grandes impérios. Assim o atesta o salmo 137,

glosado por Camões em “Sôbolos rios”, relativamente ao qual pude já defender, em

outro lugar,101 a encenação do problema fundamental do sentimento de pertença do

humano à terra (e suas formas de exílio espiritual), apontando o canto poético como

espaço privilegiado para a sua reflexão e que, pela capacidade performativa da

palavra profética, o dota de poder interventivo na interpretação da memória do

passado e da gestação do futuro.

Plurais são assim os arquitextos, entre eles sobretudo o salmódico, o

épico, o apocalíptico, que se jogam em Ruy Belo no esboço de uma trajectória de

sentido descendente, que vai desde o plano do divino até ao puramente humano,

bem como de uma poeticidade marcadamente bíblica até à afirmação de uma voz

autoral progressivamente singularizada. Se, a propósito deste primeiro livro (bem

como de alguns dos que se lhe seguiram102), pôde Ruy Belo afirmar que o seu

99 Aquele grande rio Eufrates (2004a:69). 100 Em poemas como «Cor Lapideum – Cor Carneum» e «Última vontade». 101 Para uma abordagem aprofundada das relações entre o texto de Camões e o Salmo 137, remeto para o meu ensaio (Cordeiro 2010:369-382). 102 Remeto, neste aspecto, para Manuel Ribeiro: “[...] a reflexão poética de Ruy Belo sobre Deus assenta, nas primeiras obras, numa enunciação fortemente pontuada por categorias bíblicas, evoluindo depois, sobretudo a partir de Transporte no Tempo, para uma construção verbal onde essas categorias apenas surgem de modo quase subliminar. Na verdade, se exceptuarmos o livro Boca bilingue, as suas primeiras obras exploram um terreno imagético e verbal em permanente diálogo intertextual com versìculos da Bìblia” (in Reynaud 2010:37). Veja-se ainda o comentário de Osvaldo Manuel Silvestre: “colocando o primeiro livro, e ainda parcialmente o segundo, sob o signo da Bíblia, o poeta parece inverter a máxima adorniana, acolhendo o Novo sob o manto inconsumpto de um Antigo que, como o Livro, é sem princípio nem fim, ou seja, contínuo [...]. [Aos textos religiosos] Belo irá sobretudo buscar, no plano da escrita, a dicção grave, a fluência discursiva e a admirável transparência dos salmos” (1997:9).

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trabalho resulta de uma profunda convivência com o texto bíblico, que circula “na

sua poesia em regime parafrástico já involuntário” (Serra 2004:62), a ponto de em

“Aquele grande rio Eufrates, [haver] tanta coisa da Bíblia, que eu já não sei o que é meu

e o que é da Bìblia. Os crìticos que descubram” (apud Cruz 2009:237); por outro,

este trabalho de diluição textual tende a coar-se, no sentido de separar ou mesmo de

sobrepor-se à influência bíblica, cada vez mais remetida à condição vestigial ou

ruínica, sem que contudo possa ser definitivamente obliterada.103 Mesmo no seu

último livro, Despeço-me da terra da alegria, os indícios ou as reminiscências do divino

são detectáveis, ainda que apenas enquanto tal: indícios e reminiscências. Essa

dimensão resquicial será, mais adiante, objecto considerado merecedor de análise.

A questão da transcendência em Ruy Belo não me parece, por outro lado,

poder derivar apenas de um reflexo vivencial ou dos estados de alma do poeta

relativamente a questões de ideologia religiosa. Antes julgo obedecerem a um

programa que espelha a convicção poética de uma relação do homem com a

linguagem e com o que nela desafia os limites da morte e do esquecimento – o que

resulta, como espero vir a demonstrar, de uma particular leitura da narrativa bíblica

no seu todo. Uma das razões que do ponto de vista cultural e literário (que aqui nos

interessa) para tal concorrerão, identificou-a Joaquim Manuel Magalhães, para quem

A sua continuada referência à Bíblia, pelo menos nos dois primeiros livros, alargada a uma multiplicidade de dados culturais nos posteriores, é típica da recolha de «restos» culturais com que o poeta fala a um tempo arruinado de cultura, com que

103 Embora seja obrigado a concordar com Joaquim Manuel Magalhães, quando afirma que no caso particular de Terra da alegria, “pela primeira vez, desapareceu de todo este conjunto quaisquer das suas contìnuas referências a Deus e ao Divino” (1981:156). Ressalvo, no entanto, que o próprio ensaísta reconhece serem “contìnuas” as “referências a Deus e ao Divino”.

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o poeta procede à montagem da sua razão de pessoa e de saber que fala aos outros homens não apenas do caos instintual, mas sobretudo de uma linha de tradição que o construiu e com a qual ele sabe que nada mais pode construir senão versos. (Magalhães 1989:149)

Este comentário de um dos mais dedicados leitores de Belo tem a virtude de captar

a essência pós-apocalíptica da relação do poeta com o texto matricial da Bíblia, sob

o signo escatológico da cisão e da convulsão derradeira: restos, tempo arruinado,

caos. Lembra Eduardo Lourenço que “Ruy Belo associa o seu profetismo

angustiado a um momento em que a Modernidade de si mesma se despede deitando

fogo aos seus tumultuosos sacrilégios” (1987:190). A visão do mundo que daí

transparece, dando o tom da relação desta poesia com a Bíblia, terá de ser

necessariamente contaminada pela iminência do desabamento cósmico e por uma

aguda consciência do regresso à precariedade do mundo, de onde resulta a

amálgama poética e a dimensão heteróclita da cultura de que Ruy Belo é

simultaneamente testemunha, herdeiro e recolector. É ainda uma outra vertente

deste aspecto que constata Cristina Firmino, em comentário ao livro Problema da

habitação:

[...] a Bíblia adquire o estatuto de cânone perdido e de paradigma da palavra de «Outrora» (PH 34) [...]. Quem escreve depois do Grande Livro digladia-se com uma poesia de escassez (por isso repetem as palinódias e retratações por se ser poeta agora) [...] Ora é face à atracção exercida pelo Grande Livro que se compreende o gesto defensivo, constituído pelos múltiplos processos de reductio de que é alvo, como forma de expor a sua inoperância e o seu desfasamento. (Firmino 1997:11)

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122

Perante a alteração de paradigma de relacionamento poético para com o texto

bíblico, em que o agora se confronta com o outrora e que Belo subverte numa clara

tentativa de afastamento e de autodefesa, pela afirmação de uma voz que não deseja

soçobrar no mar da sua influência, poder-se-á colocar a hipótese de um canto pós-

bíblico (impossível de remir pela promessa apocalíptica), cujos eixos estruturantes

passariam pela assunção do desaparecimento do divino em conjugação com o

sentimento disseminado de solidão ontológica do humano perante a questão de

como habitar a terra. Serão estas algumas das inquietações poéticas que procurarei

explorar nos próximos subcapítulos.

3.1.3. Silêncio, ausência e morte: o rosto oculto de Deus

O topos do deus absconditus104 é mais do que um motivo literário: existe em

torno do problema da ausência de Deus toda uma arquitectura filosófica e teológica

cujos alicerces poderiam remontar a Agostinho, Tomás de Aquino, Pascal,

Lutero,105 se não tivesse sido desde sempre uma interrogação fundamental de

qualquer religião. Perseguindo o problema da cognoscibilidade do divino, vários são

os momentos e as referências que aqui poderiam ser convocadas, como o

agnosticismo filosófico ou o estoicismo e o epicurismo, para recuar à Grécia antiga,

104 “In Christianity, the term was the Latin Deus absconditus, which comes directly from Isa 45:15 [...] as meaning either a «hidden god» or a «God who hides Himself»” (Friedman 1995:118). 105 Remeto para uma bibliografia seleccionada: Christos Yannaras, On the Absence and Knowability of God. Heiddeger and the Areopagite (2007), Dalferth, The Presence and Absence of God. Religion in Philosophy and Theology (2009), Carlos Mendonza-Alvarez, Deus absconditus. Désir, mémoire et eschatologie (1999).

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123

ou às análises de Marx Weber e Mircea Eliade,106 para tomarmos dois pensadores

colocados em espectros bem diferenciados entre si.

Se nos concentrarmos em terreno bílico, porém, uma das referências

incontornáveis a este respeito podemos encontrá-la no discurso do apóstolo Paulo

no Areópago grego, tal como narrado no capítulo 17 do livro de Actos dos

Apóstolos. Nele se chama a atenção dos atenienses para a existência, entre a

multiplicidade de altares religiosos na cidade, de um lugar reservado ao deus

desconhecido (o ignoto deo, na tradução da Vulgata latina, glosado em língua

portuguesa por poetas como Almeida Garrett, Antero de Quental ou José Régio).

Outra, e talvez a mais ilustrativa do conceito em observação, é a do episódio da

transmissão da lei por Deus a Moisés, tal como narrada no livro do Êxodo (33:18-

23).

Ambos os episódios propiciam uma reflexão sobre a natureza do divino e

a sua relação com o humano, os dois termos de uma equação de conhecimento,

bem como da natureza da sua revelação. O caso de Paulo recupera o motivo do

nome divino e da sua indesignabilidade – Deus é algo de inefável (dimensão

apofática) que desafia tanto os limites da linguagem como da compreensão humana

– já protagonizado em outro dos episódios que envolvem a figura de Moisés, cuja

história sumaria bem os contornos do problema. Quando solicitado a deixar

entrever o seu rosto, Deus responde “o homem não pode contemplar-me e viver

[...] poderás ver-me por detrás. Quanto à minha face, ela não pode ser vista” (Êxodo

33:20, 23).

106 Cf. Max Weber, Max Weber. Selections in Translation (1978) e Mircea Eliade, A History of Religious Ideas (1978).

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124

Esta não poderia deixar de ser uma questão central na poesia de Ruy Belo

– a do rosto de Deus, como no-lo asseguram Joaquim Magalhães, ao sublinhar o

modo obsessivo como esta poesia o persegue (1989:153), ou ainda Manuel Ribeiro,

para quem

a sua poesia deixa transparecer com muita frequência uma profunda insatisfação metafísica, traduzida em categorias cujas raízes matriciais se revelam confluentes com a reflexão judaico-cristã, mormente com aquela que exprime o sentimento existencial do Deus absconditus [, sendo que] a configuração de Deus conhece ao longo da sua produção poética um deslocamento paulatino, segundo uma lógica de ilimitação cada vez mais acentuada, através da qual formula até ao fim uma persistente insatisfação perante a inacessibilidade de Deus. (in Reynaud 2010:36, 37)

O poeta modaliza a questão de várias formas, que a colocam a uma luz

progressivamente conduzida no sentido do desconhecimento do divino ou da

impossibilidade do seu reconhecimento, sendo uma delas a que se encontra em

«Segundo poema do outono»107:

Quantas vezes ainda verei eu cair as pálidas folhas do outono? - Não pode o homem vê-las cair e conseguir viver (E cá estou também eu cá estou eu incorrigivelmente a cantar as gastas folhas do outono as mesmas das minhas antigas leituras as primeiras e as últimas que tenho visto cair Haverá outra poesia que não a que cai nas tristes folhas do outono?) - Não pode o homem ver cair as folhas e viver

107

Aquele grande rio Eufrates (2004a:106).

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125

Neste poema, o outono surge reafirmado como um dos grandes eixos poéticos em

Ruy Belo, permanentemente associado à morte108 e a uma possível reformulação do

mundo, pelo potencial renascimento cíclico das folhas. O outono agrega em si

mesmo, como defende Manuel Ribeiro, um “núcleo vocabular em que se alicerça a

expressão da morte” (2004:197), sendo ainda uma forma de figuração do tempo que

se esgota e se renova circularmente. A queda da folha é aqui reconduzida pelo poeta

ao lugar da contemplação do divino, desempenhando para ele a mesma função do

rosto de Deus.

Esta justaposição dá conta das “antigas leituras” do poeta, numa alusão

clara ao intertexto bíblico, que, como já havíamos visto na abertura deste capítulo,

recoloca o aspecto da aposição do autor textual ao empírico. As folhas, objecto

central do poema, são aqui de dupla valência, sendo tanto as que das árvores como

do livro se desprendem (evocando o par desfolhar/folhear). Estas não contituem

apenas a atestação da passagem do tempo, a aproximação da morte,109 dos ciclos de

que se perfaz a vida, mas ainda o elemento literário que nelas e por elas sobrevive:

108 Registe-se que, para Aguiar e Silva, “a aura e o espectro semânticos do lexema morte na poesia de Ruy Belo relevam primordialmente de raízes antropológicas, ontológicas e religiosas – a grande poesia no Ocidente tem sido quase sempre a voz melancólica, desesperançada, aflita e solitária do sentimento de falta, de ausência, de precariedade, de finitude [...]” (Aguiar e Silva 2002:254). Veja-se ainda o que declara Joaquim Manuel Magalhães a este respeito: “Morte, quotidiano e Deus tecem uma rede de meditação que, por surgir ligada a estas palavras altamente abstractas, nunca traz abstracção à natureza dos seus conteúdos. Que são sempre humanos e políticos e vivenciais, em vez de se entregarem a qualquer especulação. Mesmo a carga religiosa que subjaz à sua poesia não é articulada nunca em função de qualquer religiosidade mediante, mas antes como prisão ao real de um homem duvidantemente religioso que vê o mundo e nele se vê” (1989:161). Ainda Pedro Serra sublinha que “a morte como fundamento estético e existencial percorre a obra beliana [e que o texto se dá] como lugar em que se literaliza uma morte como Realidade absoluta [...] a morte dá realidade a tudo, sendo também ela que tudo des-realiza” (2004:13, 14). 109 «Cor lapideum – Cor carneum» (Aquele grande rio Eufrates): “a tardia folha que tem / insaciável vocação de chão”, em que o substantivo chão constitui uma figuração evidente da morte.

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126

“haverá outra poesia que não / a que cai nas tristes / folhas do outono?” A

coincidência que aqui se nos dá a observar não é apenas a da figura autoral, mas a da

figura poética por excelência que é a do sentido,110 subsumida por sua vez no rosto

de Deus, origem e fim de todas as coisas, como diz o poeta em «Primeiro poema do

outono»111: “Mais uma vez é preciso / reaprender o outono - / todos nós

regressamos ao teu / inesgotável rosto”. Contemplar o divino, regressar até ele, são

outras formas possíveis de endereçar o mistério da vida, o segredo que preside a

esse movimento essencial das coisas, manifesto tanto na ideia de regresso como de

queda da folha: “a tua palavra há-de planar em nossa alma / como qualquer folha de

plátano na tarde.”112 E a queda é, em clave bíblica, condição substantiva do homem

pela sua relação com a árvore da vida, organigrama do universo, de conteúdo

espiritual, se recordarmos a lição do jardim do Génesis, a que o poeta aqui alude.

A queda das folhas é afinal a representação arbórea da própria queda

humana: “Não pode o homem vê-las / cair e conseguir viver”. Assinale-se a

importância do verbo ver (reforçada pela cesura do verso que, por sua vez, enfatiza

o verbo da queda), tanto no contexto do Génesis (“abriram-se os seus olhos”) como

no episódio de Moisés narrado no livro do Êxodo. Ver significa, na sua essência,

conhecer. E o desejo de aceder ao máximo conhecimento, o do bem e do mal

(designação que, retoricamente concebida como merismática, indexa a totalidade do

conhecimento, remetendo para a sua condição transcendental), não se encontra

110 «Um quarto as coisas a cabeça» (País possível), “ó meu deus sintagma da gramaticalidade”. Neste verso se aponta a dimensão verbal e conceptual do divino, como garantia de um sentido das coisas, a sua gramaticalidade, no mundo. O que constitui ainda uma remissão à questão da teodiceia. 111 Aquele grande rio Eufrates (2004a:105). 112 «Córdoba lejana e sola», Aquele grande rio Eufrates (2004a:109).

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127

arredado do desejo de ligar-se a Deus ou mesmo, em última instância, de ser Deus –

como no-lo assinala o Génesis. A vida, assume-o o poema, oferece-se assim num

duplo enigma: o da natureza do conhecimento humano e o da sua compatibilidade

com a existência na terra. A resposta, no guião do poema, poderá residir na visão de

Moisés, a sombra do divino, projecção da ausência e do espaço vazio pelo contraste

com a luz, mas também na lição poética que recupera o tópico pessoano da ceifeira

que canta e da impossibilidade de cantar e viver113 ou, belianamente, “ver cair / as

folhas e viver”. É desse paradoxo que nasce esta poesia, canto de morte: “Haverá

outra poesia que não / a que cai nas tristes / folhas do outono?”

Esta poesia, que assume como condição uma queda primordial, elege

como sua fonte uma origem divina, à qual se endereça continuamente,114 em busca

do diálogo que sabe impossível, com um Deus que apostrofa, interpela e invoca,

num registo próximo do parateatral, em que a voz do sujeito não lhe devolve senão

o seu próprio eco. No poema «Vestigia Dei»,115 é possível seguir o rasto dessa busca,

da qual depende afinal a razão de ser do próprio poema:

És tu quem perseguimos pelos lábios [...] Só tu é que nos faltas quando reparamos que os papéis nos vão envelhecendo e os dias um por um morrendo em nossas mãos És tu que vens com todos os versos [...] Ser indecomponível teu corpo foi maior que vítimas e oblações. Quando tu vens a solidão cai leve como a flor do lírio

113 «As velas da memória» (Aquele grande rio Eufrates): “Que plenitude aquela: cantar / como quem não tivesse nenhum pensamento”. Aqui ecoa a interferência pessoana de «Ela canta, pobre ceifeira». 114 Veja-se, neste sentido, o poema «Compreensão da árvore» (Aquele grande rio Eufrates): “A tua voz edifica-me sìlaba a sìlaba [...] cantas em mim”. 115

Aquele grande rio Eufrates (2004a:41).

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128

Dois movimentos se confrontam no poema, contraditórios entre si, que cabe aqui

assinalar e que encontram na noção do vestígio a representação da devida

ambiguidade. Se, por um lado, este Deus pode ser perseguido (na linha do que

defende o apóstolo Paulo no discurso acima referido), determinando uma rota que

pretende reconstituir o percurso até ao seu paradeiro, através de sinais e pistas que

permitiriam encontrá-lo; por outro, tudo o que dele sobra são a “falta” e a “solidão”,

indicados no poema como seus atributos pessoais (“só tu é que nos faltas”, “quando

tu vens / a solidão cai leve”). Um paradoxo, porém, não pode deixar de nascer desta

constatação: aquele que se liga com a origem do poema, uma vez que “és tu que

vens com todos os poemas”. Os vestìgios merecem então uma consideração

redobrada, ao recentrarem em si mesmos os possíveis focos de manifestação do

divino, que o poeta não deixa de valorizar.

Daqui releva a inferência do estuto oculto do divino, de um Deus que

precisa de revelar-se para se tornar manifesto. Uma das formas que o tornam

possível é, como observa o poeta, o factor elemental do mundo animado pela

presença uniforme do divino, que de algum modo se aproxima de uma percepção

panteística das coisas, como parece estar subjacente aos versos de «Prince Caspian»,

“O Deus imóvel só por nossa boca fala / através de palavras que como a água

correm”,116 ao de «O último inimigo» , “Deus é distante como o vento ou a vida”,

117 ou ainda ao de «Portugal sacro-profano», “o sol preenche tudo e é quase tão

redondo como Deus”. 118 A caraterização da redondeza de Deus, ou da sua

116 Problema da habitação (2004a:150). 117 Problema da habitação (2004a:162). 118 Boca bilingue (2004a:183).

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129

imobilidade, terá de remeter-nos quer para a ideia de perfeição absoluta, que o

círculo supõe, quer para a tese aristotélica segundo a qual Deus seria o motor imóvel

de todas as coisas, ou seja, a causa não causada, com que Dante fechará o último

círculo da sua Commedia, referindo o amor indexado a Deus (segundo a leitura

bíblica de 1João 4:8119) como a energia “che move il sole e l‟altre stelle” («Paradiso»

XXXIII, 145).

Momento raro é aquele em que o poeta distingue a figura de Deus, em

«Orla marítima»,120 caracterizando-o na linha estilística que preside à fonte yahvística

do Génesis (a da plasticidade do divino, na figura do oleiro que molda o barro ou se

passeia na brisa da tarde pelo Éden): “Deus anda à beira de água calça arregaçada”,

para logo no verso seguinte proceder à comparação que obriga o leitor a

reconsiderar os contornos dessa mesma figura: “como um homem se deita como

um homem se levanta”. Apesar do pendor de realismo que preside a estes versos, na

sua aproximação ao quotidiano (um dos tópicos mais debatidos na poesia de Ruy

Belo121), deve registar-se aqui um efeito de ironia que se processualiza na sequência

dos versos, desconstruindo o postulado antecedente e obrigando a uma revisão do

mesmo, por intermédio da comparação com a medida humana: “como um

119 “[...] Deus é amor”. 120 Homem de palavra[s] (2004a:319). 121 Remeto, quanto a este aspecto, para Joaquim Manuel Magalhães, segundo o qual: “Ruy Belo é um poeta apesar de tudo movido por um certo sentido de religiosidade, por muito que a sua religião seja quotidianizada, terrena e inteiramente ligada ao real” (1989:158), perspectivando “do real o que é espiritual, que nunca consente em aceitar o real como desprovido de densidade anìmica” (1989:146). Considere-se ainda que, para Magalhães, “o jogo conceptual de referências ao cristianismo manifesta, porém, e logo desde este início, a consciência heterodoxa de que é a falta de humanidade de Deus aquilo que provoca o afastamento do homem [...]. A tradição neo-realista de atenção ao quotidiano colectivo e individual, misturada a um certo lirismo apiedado pelos mais solitários ou desprotegidos, ecoa na sua poesia, embora inscrita numa visão escatológica do homem onde um Deus, humanizado com o dos Evangelhos, acolhedor, atento e inexistente, metáfora de Si próprio, o espera ao fim” (1981:150).

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130

homem”. Um efeito semelhante pode ser encontrado na contradição do verso já

citado de «Portugal sacro-profano», quando o se declara em «O tempo sim o tempo

porventura» que “nada há de deus no sol nem mesmo o brilho”.122

Formulação alternativa para a ambígua definição do divino nesta poesia

passa pelo questionamento onomasiológico e do valor das palavras que lhe estão

associadas. Em «Efeitos secundários»,123 o poeta procede a uma interpelação de

Deus, nela implicando um tom dubitativo (confirmado tanto pelo assíndeto, como

pela partícula disjuntiva, como ainda finalmente pela interrogação) relativamente ao

desdobramento perifrástico de uma tentativa de definição de Deus, que deriva em

três possibilidades: “ó Deus, ó mais redonda boca para os nomes das coisas / para o

nome do homem ou o homem do homem?” A multiplicação de hipóteses relativas à

natureza do divino, sem que nenhuma resposta venha contrariar o efeito de

veemência retórica, expõe o estatuto do nome enquanto deixis vazia, contribuindo

para o seu esvaziamento ou para a assunção da sua pobreza ontológica, da

vacuidade do seu conteúdo, como viria a ser reconhecido num verso de «A margem

da alegria»,124 “palavras vazias como deus ou lar”, ou noutros de «Meditação

anciã»,125 “meu deus meu nome mera exclamação / até nós vinda através de uma

tradição herdada”.

Ao lugar vazio da palavra, significante desprovido do correspondente

significado, o poeta apõe ainda a impronunciabilidade da palavra ou o estatuto

fantasmático dos seus fonemas, numa subversão do topos clássico da inefabilidade do

122 Toda a terra (2004c:157). 123 Boca bilingue (2004a:195). 124 Margem da alegria (2004b:219). 125 Toda a terra (2004c:104).

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divino. Não evocando questões comuns do foro teológico, como a do

desconhecimento do nome divino ou da impossibilidade de articulação de um

discurso sobre o divino pela insuficiência da palavra humana (demasiado longínqua

do seu objecto de enunciação para conseguir captá-lo ou endereçá-lo), o poeta

enfatiza à saciedade o silêncio em torno de Deus, motivo glosado extensamente na

busca dialógica que percorre e alimenta todo o livro bíblico de Job126 – e que Miguel

Torga, por sua vez, ensaiará na sua poesia, como procurarei demonstrar no capítulo

de encerramento desta tese. Ao invés, porém, da personagem de Job, que encontra

na resposta divina o motivo para o seu silêncio, o discurso poético beliano insistirá

até ao fim na ausência de resposta teofânica, indexando o silêncio à própria natureza

do divino. Do confronto retórico, que na Bíblia se reserva para os limites da

teomaquia, ressaltam as duas figuras contrastantes, a do homem e do divino, que o

poeta aqui evoca em «Grandeza do homem»127:

Somos a grande ilha do silêncio de deus Chovam estações soprem os ventos jamais hão-de passar das margens Caia mesmo uma bota cardada no grande reduto de deus e não conseguirá desvanecer a primitiva pegada É esta a grande humildade a pequena e pobre grandeza do homem

Há uma ideia de majestade que perpassa todo o poema: desde logo pela insistência

no adjectivo “grande”, como no substantivo “grandeza”. Este léxico, porém, não se

exime da conformação oximorónica pelas antìteses “grande humildade” e “pobre

126 Tive já oportunidade de explorar este tema em outro lugar (Cordeiro 2011). 127 Aquele grande rio Eufrates (2004a:77).

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grandeza”. A duplicidade prolonga-se na sublimidade tremenda do silêncio de Deus,

simultaneamente augusto e tenebroso, no enigma do seu mistério, que confere a

aura sacral do sentimento religioso a estes versos (cf. Otto 2005). É no confronto

do humano com esse absoluto incompreensível que reside afinal a «grandeza do

homem», paradoxo do bicho da terra camoniano em contemplação do sublime

transcendental.128 O poema é ainda composto por elementos que nos permitem

situá-lo no âmbito da mitografia bíblica clássica, entre cujos elementos essenciais

podem contar-se, como defende Leo Perdue,129 a ilha primordial que emerge de um

contexto aquático (dirá Tolentino Mendonça, como veremos mais adiante, que “no

princìpio era a ilha”) e que representa um resquício da luta cosmogónica com o

caos, do qual se teria originado toda a criação (Perdue 1991:47-60). Aspectos da

hostilidade do confronto entre o caos e a ordem primitivos são aqui rememorados

na chuva das estações e no sopro dos ventos (elemento entre todos genesíaco); a

referência às margens capazes de conter o excesso das águas prolonga este mesmo

feixe interpretativo, ao remeter para os versículos tanto do Génesis como de Job.130

Essa “primitiva pegada” no “grande reduto de deus” é o vestìgio que nenhuma

“bota cardada” poderá fazer esquecer ao homem, na sua pequena e humilde

grandeza. Em outro momento, contudo, o poeta retomará o motivo da pegada do

128 Para uma análise das relações possíveis entre os conceitos de sagrado e de sublime, remeto para Otto (2005:65-74). 129 Veja-se o seu livro fundamental, Wisdom in Revolt. Metaphorical Theology in the Book of Job (1991). Para um desenvolvimento das questões relacionadas com o Kauscampft, as cosmogonias mesopotâmicas e suas subsequentes contaminações bíblicas, remeto para Batto (1992) e Gunkel (2006). Relativamente à expressão deste assunto no livro de Job, pude já tratar esta questão em Cordeiro (2011) e a ele voltaremos no último capítulo desta tese. 130 Génesis 1:6, Job 38.

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divino, a fim de negá-lo (no que prolonga uma lista de contradições de que tenho

vindo a dar conta), como pode constatar-se em «Miséria e grandeza»131:

Nem uma só pegada nos deixaste entre as areias desta praia que em dias e barcos nos é dada e à vida pertence dar um rosto [...] Só nos é dada a palavra o nosso modo humano de morder o tempo Não há outra saída para além de ficarmos hirtos sob as folhas que caem [...]

A locução adverbial de “nem [...] só” vem reforçar o sentimento de solidão

ontológica já manifestado em “somos a grande ilha do silêncio de deus” (onde a

condição da insularidade contrasta com a vastidão oceânica, com reforço pela

hipálage do adjectivo “grande”), aquilo que representa para Joaquim Manuel

Magalhães a compreensão do homem “como ser metafisicamente solitário, mesmo

na sua solidariedade. Essa solidão central é outro dos insistentes motivos da sua

poesia” (1981:150). Nas “areias da praia” desta “ilha”, já se não avista o deus de

“calça arregaçada” que outrora se passeava no jardim, em franca convivência

genesíaca. Ressoa ainda nestes versos o eco do “sentimento de estado da criatura”,

que Otto indexa à categoria do sagrado, pelos indìcios de “apagamento, diminuição

e aniquilamento” (2005:75). O homem vê-se agora entregue a si próprio,

desamparado sobre a terra, mordendo o tempo pela palavra, cujo alcance

cristológico não deve ser aqui negligenciado (ainda que conserve a sua valência de

fazer poético), como forma de digladiar-se com a morte anunciada nas “folhas que

131 Aquele grande rio Eufrates (2004a:87).

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caem”, sob as quais o homem apreende a rigidez da morte (“hirto”) e busca o

“rosto” que pertence dar à vida, face oculta de Deus.

O silêncio de Deus anda a par da sua ausência, ao passo que para o poeta

tanto o seu silêncio como a sua ausência constituem motivos de deambulação

poética: “É muito triste andar por entre Deus ausente // Mas, ó poeta, administra a

tristeza sabiamente”, como se diz em «A mão no arado»,132 poema em que a

fraseologia marcadamente salmódica e parabolística recupera o topos bíblico do

semeador, aqui convertido na figura do poeta, cultor de versos, sementes de tristeza

ou de resposta sábia, numa correlação semântica entre arar e poetar,133 formas de

morder o tempo e de andar por sobre a terra. A ausência de Deus penetra ainda o

território do sagrado, o mais directamente relacionado com o espaço simbólico do

oculto, aquele que marca a fronteira precisa da delimitação do profano: o templo. Se

outrora a promessa de Deus o vinculava ao pacto estabelecido com a casa de

David134 e, antes dele, com o povo de Israel por meio de Moisés,135 o poeta vê-se

agora circunscrito ao tempo de falência de todos os pactos e promessas: não há para

ele a atestação luminosa da presença de Deus, o mesmo que se havia mostrado

capaz de soeguer homens e impérios na história bíblica:

Meu deus [...] Que é das ruas antigas de grinaldas e flores dos

132 Problema da habitação (2004a:160). 133 «Canção do lavrador» (Aquele grande rio Eufrates): “Meus versos lavro-os [...] a relha rasga-me a vida [...] Poeta não escrevas lavra”. 134 “O Senhor não quis destruir a casa de Judá, por causa de David, seu servo, a quem prometera conservar sempre uma lâmpada na sua descendência” (2Reis 8:19), “O Senhor não quis destruir a casa de David, por causa da aliança feita com ele e da promessa que lhe fizera de manter perpetuamente no trono um dos seus descendentes” (2Crónicas 21:7). 135 “Ordenarás aos filhos de Israel que te tragam para o candelabro azeite puro de azeitonas pisadas, pisadas, a fim de manter as lâmpadas sempre acesas” (Êxodo 27:20).

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135

salmos inteligíveis da alegria da lâmpada de azeite acesa para sempre?136

Em óbvio contraste com os “salmos inteligìveis137 da alegria”, o poeta não pode

senão “administrar a tristeza sabiamente”138, ao contemplar o “[...] terrìvel templo

para um deus ausente / que o enche de vazio e de uma ausência que se sente”.139 O

impulso paradialógico reveste aqui a forma de pergunta retórica, que não espera

resposta e, por sua vez, reconfirma o silêncio do deus ausente. Tal gesto, porém,

aproxima-se menos da passividade do que do sacrifício: na administração sábia da

tristeza reconhece Pedro Serra “um desinvestimento da expansão sentimental do

eu” em direcção a uma “escrita dessentimentalizada” (2004:60). Registe-se, então,

que à ausência do divino deve ainda somar-se o sacrifício do poeta.

Este sentimento de desamparo antropológico e ontológico exprime-se

poeticamente, num dos seus pontos mais significativos, na citação bíblica que fecha

o poema «Nós os vencidos do catolicismo»,140 corolando a assunção da derrota da

fé a braços com a perda e a dúvida metafìsicas: “«Meu deus meu deus porque me

abandonaste?”».141 Apropriando-se das últimas palavras de Cristo antes de expirar, o

poeta coloca-se em plena via crucis e enuncia, qual persona christis, o que textualmente

136 «Agora o verão passado», Toda a terra (2004c:114). 137 Vide Juìzes 6:13 (“Onde estão todas as maravilhas que nos contavam os nossos pais [...]?), Isaías 63: 11-13 (“Onde está aquele que tirou das ondas o pastor do seu rebanho? Onde está aquele que pôs meio deles o seu santo espìrito?”). 138 «A mão no arado», Aquele grande rio Eufrates. 139 «Fugitivo da catástrofe», Despeço-me da terra da alegria (2004c:221). 140 Homem de palavra[s] (2004a:269) 141 Ricoeur, sobre esta passagem, situa “le genre de la prière de plainte dans une typologie générale de la prière hébraïque”, referindo que as fórmulas desse género seriam apropiadas por parte do crente, a fim de expressarem o seu próprio lamento individual. O paroxísmo de Cristo remete, segundo o autor, para “la soufrance radicale, primordiale, celle d‟être abandonné de Dieu”. Sendo, não obstante, um lamento, Ricoeur insiste sobre o paradoxo de que se trata ainda de uma pergunta, de uma invocação, de onde se torna viável a leitira de que “ce que le poème reconstruit, c‟est un mouvement de confiance malgrè tout, un voeu de louange en dépit de” (1998:289, 294, 300).

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136

podemos encontrar nos evangelhos de Mateus (27:46) e de Marcos (15:34).

Sublinhe-se que, tal como nos surge nestes textos das Escrituras Gregas, o versículo

é em si mesmo uma citação das Escrituras Hebraicas (Salmo 22:2). Os efeitos da

transposição da matéria bíblica prolongam-se no corpo do poema, com

consequências eventualmente distintas, pois se nos evangelhos a frase embaraça e

perplexifica as perspectivas clássicas que teologicamente defendem a encarnação de

Cristo ou a sua pertença a uma indivisível trindade divina,142 no poema a tónica

desloca-se da esfera do transcendente para a do imanente, sendo que Jesus é

retratado como representante da voz humana, segundo observa Friedman: “Jesus

can be pictured here as asking the question for all humankind, that is, as expressing

the feeling of divine absense for everyone” (1995:134).

Leituras várias poderão daqui decorrer,143 que no entanto terão

necessariamente de coincidir num ponto. Quer a citação evangélica nos mostre um

Cristo vulnerável pela experiência da separação entre o divino e o humano que

hipostaticamente o coabitam, quer Cristo tenha deliberadamente escolhido, num

momento de pungência maior, citar não apenas um versículo, mas o incipit de um

salmo bíblico (tomando-o assim sinedoquicamente), que se endereça aos homens

que o ouvem ou lêem, este episódio epitomiza em si mesmo a história da relação

entre o humano e o divino ao longo das gerações. O clímax do Evangelho é então

atingido precisamente no momento em que, como assinala Friedman, “the central

142 Como sumaria Richard Friedman, em The Hidden Face of God: “If he is an incarnation of the divine, why does he say this? If he had foreknowledge that this was to happen, why does he say this? If this was the playing out of a divine plan, why say this?” (1995:134). 143 Uma das quais subscrita pelo próprio Ruy Belo, para quem “«Nós os vencidos do catolicismo» seria poema de uma geração, onde a frase «meu deus porque me abandonaste?» significaria, como em José Régio, um definitivo abandono dos homens por parte de Deus. Cristo na sua cruz ver-se-ia completa e definitivamente abandonado” (2004a:248).

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being of the Christian story speaks of the departure of God” (1995:135). É a este

pico de intensidade que se indexa o efeito de citação no poema de Belo, que por sua

vez se estenderá a outro motivo essencial desta supra-narrativa.

A questão da morte de Deus pode configurar-se como o derradeiro

desenvolvimento do tópico do Deus absconditus, sem que contudo deixe de

emparelhar com a alternativa da contínua revelação de Deus (em bívoco sentido, de

re-velação144). Nietzsche assim o afirma ao longo de Assim falava Zaratustra (1885),

recorrendo à voz do profeta visionário e apartado do convívio humano: Deus está

morto. Freud (Totem e tabu) e Dostoiévski (Irmãos Karamazov, O Jogador) oferecem-

nos, de resto, formulações alternativas para o mesmo enunciado (Deus como pai,

parricídio, orfandade humana, ausência de esteio moral na clave axiológica, absoluta

permissividade). Este estendeu-se ainda aos foros da teologia radical, cujos

pensadores tematizaram, em torno da crise espiritual do século XX, a morte de

Deus como tópico teológico.145 Assinala Eduardo Lourenço que “a Modernidade –

a nossa, de ocidentais – é, na sua essência, «morte de Deus», mas houve, há, diversas

e até opostas maneiras de a viver, de a reviver e de a assumir. Nunguém, entre nós, a

assumiu mais profunda e complexamente que Ruy Belo” (2002a:216). Há, pois,

lugar para o anúncio da morte de Deus na poesia de Belo, como ocorre em

«Legítima defesa»146:

144 Veja-se em «Compreensão da árvore» (Aquele grande rio Eufrates) o verso “o sudário levemente branco do teu silêncio”, que busca operar a coincidência entre silêncio e morte, ao passo que reserva lugar para o desvelamento através do manto que é o sudário. 145 Vide Thomas Altizer e William Hamilton, Radical Theology and the Death of God (1966), Richard Rubinstein, After Auschwitz (1966). 146 Transporte no tempo (2004b:45).

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Ninguém morreu assim como morreste [...] Só tu morreste tanto que não tens ressurreição pois vives tanto em mim como em qualquer lugar [...] Todos eram mortais e tu morreste e vives sempre mais

Não apenas o paradoxo de “[morrer e viver] sempre mais” provoca a

reflexão do leitor, neste poema, pelo argumento paulino da permanência panteística

da centelha divina no humano.147 Mais importante seja talvez a sombra que a figura

jurídica da legítima defesa projecta sobre esta morte de Deus, colocando-a sob a

suspeita de assassinato com a assinatura do poeta. A natureza simultaneamente

mortal e imortal da divindade, que se transfere para o poeta, recupera o tabu

freudiano da morte do pai primitivo148 que pela antropofagia se torna parte comum

à sua descendência, assim apta a poder disputar-lhe o lugar e a importância na

direcção do clã. A substituição enfática do Deus morto pelo homem vivo ocorre

ainda em «Figura jacente»149:

Deus teve para mim morte mais rasa do que a morte que o sol encontra entre as águas E diz-me Deus, tão acessível como o mar nas praias: - Tu és cada vez mais aquilo que tu és

Justapondo a figura de Deus ao elemento solar, redondo e imóvel, a morte da

divindade é colocada a uma luz crepuscular, animizada no confronto entre as forças

elementais, que protagonizam a sua presença fantasmática (“tão acessìvel como o

147 “É nele , realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas disseram «Pois nós somos também da sua estirpe»” (Actos 17:28). 148 Veja-se, em «Aquele grande rio Eufrates» (Aquele grande rio Eufrates), “nós que fomos no princìpio apenas dois / nossos primeiros pais [...] aqueles que celebram o pai morto”, em «Prince Caspian» (Problema da habitação), “ó comedores de Deus” e ainda, em «Aquele grande rio Eufrates» (Aquele grande rio Eufrates), “triste destino o teu: morreres na minha boca / tu que és o responsável pelo vento”. 149 Problema da habitação (2004a:165).

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mar nas praias”). A inversão de papéis que observámos a propósito de «Figura

jacente» também aqui tem lugar, na fala inaudita de um Deus que de modo singular

se dirige ao homem, em teofânica prosopopeia (voz do mar): “Tu és cada vez mais

aquilo que tu és”. Remissão ao episódio da revelação divina, esta sentença recupera,

na sua repetição circular, o princípio da identidade (afim do postulado aristotélico)

que constitui a suprema tautologia com que Deus se anuncia ao seu povo através de

Moisés, e que consubstancia perifrasticamente o sentido etimológico do tetragrama

YHWH: “Eu sou aquele que sou” (Êxodo 3:14).150 Poder-se-ia considerar o

potencial antropofânico que o poema busca encenar, ao inverter a polaridade da

revelação hebraica na reescrita poética de Belo, no sentido em que o homem se

torna – de acordo com a previsão do Génesis – igual a Deus.151 Se a questão “Quem

na face feriu o indestrutìvel rosto?”152, aponta a existência da ferida narcísica que faz

coincidir ofensa e lesão no verso “O nosso deus é um deus ofendido”,153 então a

resposta será tão humana quanto o princípio da sobrevivência pela legítima defesa:

“triste destino o teu: morreres na minha boca / tu que és o responsável pelo

vento”.154 A ambiguitas do indecidível recoloca-se neste ponto ao leitor, pois se por

um lado há a assunção da falência do logos criador (reduzido à figura da hóstia

deglutida pelo crente), por outro, não deixa de haver uma transferência simbólica

entre do estatuto da palavra divina para o verbo poético. A poesia, essa boca de

150 Leia-se Frye a este respeito: “In Exodus 3:14, though God gives himself (according to the AV) as «I am that I am», which scholars say is more accurately rendered «I will be what I will be». That is, we might come closer to what is meant in the Bible by the word God if we understood it as a verb, and not a verb of simple asserted existence but a verb implying a process acomplishing itself” (1983:17). E ainda André LaCocque sobre o mesmo assunto (1998:314-342). 151 Cf. Êxodo 7:1 (“Eu faço de ti um deus para o faraó”). 152 «Discurso branco sobre fundo negro», Toda a terra (2004c:97). 153 «Aquele grande rio Eufrates», Aquele grande rio Eufrates (2004a:130). 154 Idem, ibidem.

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duas línguas, é pois em Ruy Belo o interlocutor privilegiado de uma palavra

hipostasiante, no sentido de uma progressiva humanização que implica, por sua vez,

a dessacralização do mundo – o traço fundamental de uma existência profana para

Eliade (1965:19): “deus é só um nome [...] que deixa de dar o nome de divinas a

coisas tão terrestres como o mar”.155

3.1.4. Vencer o divino, sonhar o humano

Em The Hidden Face of God, Richard Friedman propõe a tese de que o

mistério do desaparecimento de Deus ao longo da macro-narrativa das Escrituras

corresponde à alteração de um paradigma de equilíbrio entre a assistência divina e a

responsabilidade humana:

The Bible begins [...] with a world in which God is actively and visibly involved [...]. Gradually through the course of the Hebrew Bible [...] the deity appears less and less to humans, speaks less and less. Miracles, angels, and all other signs of divine presence become rarer and finally cease. (1995:7)

Versículos como os que descrevem o último diálogo travado entre Deus e Moisés

(Deuteronómio 31:17, 18) ganham especial preponderância neste contexto. Neles

Deus declara o seu descontentamento com os frutos do pacto que estabeleceu com

o seu povo, reincidente na desobediência e na transgressão, “Vou esconder deles a

minha face, verei qual será o seu futuro” (Deuteronómio 32:20),156 e que terá na

155 «Ao regressar episodicamente a Espanha [...]», Toda a terra (2004c:149). 156 Esta frase é repetida, com diferentes variantes, cerca de trinta vezes na Bíblia (cf. Friedman 1995:69).

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tomada dos reinos de Judá e Israel, e consequente destruição do templo de

Jerusalém por Babilónia, um dos seus pontos culminantes: “até ao dia em que o

Senhor os baniu da sua presença, como anunciara pela boca dos profetas” (2Reis

17:23). De acordo com o levantamento exaustivo de ocorrências de casos na Bíblia,

Friedman verifica o seguinte:

Gradually from Genesis to Ezra and Esther, there is a transition from divine to human responsibility for life on earth. The story begins in Genesis with God in complete control of the creation, but by the end humans have arrived at a stage at which, in all apparent ways, they have responsibility for the fate of their world. (1995:30)

Considerando, ao longo da narrativa bíblica, a evolução das personagens na sua

relação com o divino, nos episódios respeitantes a Adão, Noé, Abrãao, Jacob,

Moisés, Josué ou Elias, entre outros, o autor é levado a concluir que tem lugar uma

transferência na dinâmica da relação entre o transcendente e o imanente,

nomeadamente no que respeita à autonomização do homem e à sua capacidade de

condução do próprio destino, tanto ao nível pessoal como nacional, a que

corresponde a progressiva diminuição que desembocará no eclipse das

manifestações (no plano da evidência) relacionadas com a presença do divino:

By eliminating the miraculous from the story altogether, the biblical narrative has completed the jump into the human realm. It appers that the disappearance of miracles means not only the hiding of the face of God but also a concentration in the Bible‟s story now on the dynamic among the various sources of political authority. (1995:57)

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Na poesia de Belo, há dois momentos particulares que me parecem

oferecer matéria adequada à presente reflexão: são eles os poemas dedicados a duas

figuras bíblicas que experienciaram individualmente o encontro com o divino: Jacob

e José. É neles que, por agora, irei deter-me. Em «Palavras de Jacob depois do

sonho»,157 Belo retoma os versículos de Génesis 28:16-17, glosando-os num

processo de reescrita que incide sobre aspectos que relevam de uma leitura singular

do episódio bìblico, relativamente à qual Fernando Guimarães sublinha “a passagem

de um plano que era o da transcendência para o da imanência e, ao mesmo tempo, o

regresso desta àquela” (2010:60), como segue:

Amei a mulher amei a terra amei o mar amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar De muitas delas de resto falei Não sei talvez eu me possa enganar foram tantas as vezes que me enganei mas por trás da mulher da terra e do mar pareceu-me ver sempre outra coisa talvez o senhor É esse o seu nome e nele não cabe temor Mas depois deste sonho sou obrigado a cantar: Eis que o senhor está neste lugar Porquê não sei talvez uma pequena haste balance talvez sorria alguma criança Terrível não é o homem sozinho na tarde como noutro tempo de esplendor cantei Terrível é este lugar Terrível porquê? Não sei bem Talvez por que o senhor pisa esta terra com os seus pés (lembro-me até de que mandou tirar as sandálias a moisés) Levanto os dois braços aos céus Aqui – mulher terra mar – Aqui só pode ser a casa de deus

157 Homem de palavra[s] (2004a:283).

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Instituindo o espaço da interlocução parateatral entre Deus e o homem, o poema

encena uma sacra conversatio, em que Jacob, falando na primeira pessoa, de si para o

seu eco, enuncia o seu solilóquio. O que no episódio do Génesis se dispunha em

apenas dois versículos158 é neste poema objecto de dilatação poética, estendendo-se

ao longo de vinte e um versos. “Terrìvel é este lugar” constitui o cerne da citação,

sendo que o restante poema se desdobra em torno do seu centro, vindo no

seguimento de uma revisão assumidamente palinódica159: “Mas depois deste sonho

sou obrigado a cantar [...] Terrível não é o homem sozinho na tarde / como noutro

tempo cantei”, alusão ao poema que inaugura Aquele grande rio Eufrates, «Para a

dedicação de um homem»,160 cujos efeitos não são inócuos, antes produzem uma

transferência propositada de sentido que metonimiza a vocação ablativizante do

homem, lugar onde se está e onde se é.

Este é ainda o lugar sagrado da pegada de Deus (recorde-se como o rasto

telúrico da presença divina era motivo poético, por exemplo, em «Grandeza do

homem» e em «Miséria e grandeza»161) e da sua revelação ontológica e

onomasiológica, pela conexão evocada do episódio de Moisés perante a sarça

ardente (Êxodo 3), a vários títulos fundamental no argumento que tenho vindo a

propor neste capítulo. A designação “terrìvel” exprime, uma vez mais, a aura

numinosa que define o sentimento do sagrado (cf. Otto 2005), ao colocar o humano

em relação desproporcionada com a imensidão do transcendente. O gesto de

158 “Despertando do sono, Jacob exclamou: «O Senhor está realmente neste lugar e eu não o sabia.» Atemorizado, acrescentou: «Que terrível é este lugar! Aqui é a casa de Deus e a porta do céu»” (Génesis 28:16-17). 159 Considerem-se a este respeito os versos “Não sei talvez eu me possa enganar / foram tantas as vezes que me enganei”. 160 Já mencionado no subcapítulo 3.1.2. desta tese. 161 Aquele grande rio Eufrates (2004a:87).

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levantamento dos braços, pelo seu esboço de verticalidade e de religação, supõe

ainda o mesmo movimento poético ensaiado em «Teoria da presença de deus»162:

“Quando os nossos braços ensaiarem um gesto / fora do dia-a-dia ou não

seguirem/a marca deixada pelas rodas dos carros / ao longo da vereda”. Nesse

momento, refere o poema que o homem acederá ao patamar de “ser olhado”, num

encontro de olhares binomicamente orientados entre o humano e o divino, esse

mesmo que o consubstancia na figura do “terraço a meia altura” em que se está

onde quer que se esteja (cf. «Teoria da presença de deus»). Entramos então no

domínio da intersecção dimensional (que explorarei com mais detalhe a propósito

da poesia de Daniel Faria163), em que os eixos do vertical e do horizontal se

conjugam na delimitação do ônfalo do mundo, ou do axis mundi, o centro primordial

de todas as coisas, como o define Mircea Eliade (2000).

Três são ainda os movimentos de um pararelismo vertical, entre eles, o

dos braços erguidos ao céu, o de Deus que se apresenta sobre os dois pés e a escada

do sonho de Jacob, que correspondem a outros três eixos horizontais: a mulher, a

terra e o mar. Estes são, como o próprio poema o indica, extensões de um

prolongamento, ou antes, de um deslocamento metonímico, de alcance simbólico

(uma vez que a realidade deslocada coincide na representação da coisa de que se

desloca). Dizer mulher, terra e mar, se bem que possam ser elementos “por trás”

dos quais se pode “ver sempre outra coisa talvez o senhor”,164 é ainda invocar a

162 Aquele grande rio Eufrates (2004a:80). 163 Cf. pontos 3.2.5 e 3.2.6 desta tese. 164 Coteje-se com o verso situado nos antípodas deste enunciado, de reconhecível inspiração caeiriana: “tudo é naturalmente horizontal sem coisas nenhumas por trás de coisas” («Há domingos assim», Toda a terra).

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natureza mesma desse Deus, já que nele “não cabe temor”, negando-se assim o

sentimento que rimaria com o substantivo amor de que as formas anafóricas “amei”

são a correspondente derivação verbal. Esta associação é ainda reforçada pelo

deìctico “aqui”, de abrangência binómica: a coincidência fundamental entre “casa de

Deus” e sua reprodução perifrástica ou de atributo “mulher terra mar”, elementos

claramente pertencentes ao domínio da imanência (repare-se como estes elementos

são colocados em crescendo, depois de uma dilatação composta por perífrases,

repetições, parêntesis) e que caracterizam o lar humano. Não por acaso este poema

pertence a Problema da habitação, que se resume para Eduardo Lourenço em

“construir outra morada onde o paraìso antigo sobreviva” (2002:217).165 Até porque

a morada para o paraíso outra não é do que o próprio espaço do sagrado, categoria

que permite irmanar o “aqui” de Jacob, Betel, e o de Moisés, Horeb (Êxodo 3:1),

convocado no poema. Este seria o ponto fixo de uma descontinuidade espacial que,

para Eliade, distinguiria o espaço sagrado do profano:

pour l‟expérience profane, l‟espace est homogène et neutre: aucune rupture ne différencie qualitativement les diverses parties de sa masse [par contre] la révélation d‟un espace sacré permet d‟obtenir un point fixe, de s‟orienter dans l‟homogénéité chaotique, de fonder le Monde et de vivre réellement. (1965:26, 27)

Deve ainda assinalar-se um efeito de anacronismo resultante da referência

à personagem de Moisés (Êxodo) que surge bastante depois de Jacob (Génesis) no

decurso da narrativa bíblica. Ora, não é verosímil que Jacob dispusesse de elementos

165 O que se confirma no verso do poema «A sombra o sol» (Toda a terra), “Paraìso terrestre minha única ambição”.

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que lhe permitissem, por recurso à anamnese (e não por prolepse retrospectiva,

dado o pretérito perfeito da forma verbal “mandou”), dizer “lembro-me até de que

mandou tirar as sandálias a moisés”. Esta é claramente uma intromissão da figura do

autor textual, cuja voz se confunde com a da personagem a quem suspostamente

pertencem as palavras, como no-lo indica a preposição genitiva do título «Palavras

de Jacob depois do sonho». Estou em crer que se trata de um processo de

construção de uma voz poética pela adopção de uma persona discursiva,166 no que a

figura do poeta se projecta em terreno bíblico (tomado horizontalmente na sua

simultaneidade), ao assumir o rosto de Jacob enquanto poeta através de expressões

como “sou obrigado a cantar”, “noutro tempo de esplendor cantei”.

O sonho é, então, matéria que origina o canto. Um mecanismo

semelhante é operado pelo poeta em «José o homem dos sonhos»167:

Que nome dar ao poeta esse ser dos espantos medonhos? Um só encontro próprio e justo: o de josé o homem dos sonhos Eu canto os pássaros e as árvores Mas uns e outros nos versos ponho-os Quem é que canta sem condição? É josé o homem dos sonhos Deus põe e o homem dispõe E aquele que ao longo da vereda vem homem sem pai e sem mãe homem a quem a própria dor não dói bíblico no nome e a comer medronhos só pode ser josé o homem dos sonhos

166 «Regresso», Aquele grande rio Eufrates: “eu que todo o dia fui habitado por tantas vozes” (2004a:65). 167 Homem de palavra[s] (2004a:332).

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Neste poema se parte em busca de um nome para o poeta (“Que nome dar [...] ?”),

que vem a ser o de um dos filhos de Jacob, cujo ciclo é narrado na parte final do

livro do Génesis (37:1-36, 39:1-50:26). Na linha do que acontecia com o seu pai, que

lutou168 com Deus e o venceu, José é o homem que dispõe de Deus – formulação

em que Margarida Braga Neves reconhece “o triunfo do livre arbìtrio trazido pela

moderna idade” (1997:17) que se plasma na emancipação do poema relativamente à

palavra divina. Relevante é ainda o motivo da busca do nome, que sustenta as

questões da nomeação e de reconhecimento de identidade tanto no ciclo de Jacob

(depois de ter alterado o nome da região de Penuel para Betel, em Génesis 28:19, o

seu nome sofre alteração para Israel por via do episódio da luta, passando a

significar “aquele que luta com Deus”, como indicado em Génesis 32:26-29) como

no de José (confira-se o processo de anagnórise desenvolvido em Génesis 45). Esta

prende-se com outra das preocupações expressas na poética de Belo: “tu és cada vez

mais aquilo que tu és”.169 Por três vezes se repete, como se de um refrão se

tratasse,170 o nome por excelência (nome “próprio e justo”) do poeta: José. Este é,

contudo, acompanhado de um epìteto, “o homem dos sonhos”. Para além de se

oferecer como paradigma do poeta, ele é ainda o ente em trânsito que “ao longo da

vereda vem”, espécime do peregrino sobre a terra, homo viator (recordem-se as

peripécias que do deserto o conduziram até ao Egipto). A sua travessia é ainda a que

168 «Ao regressar episodicamente a Espanha» (Transporte no tempo), “Em vão lutava até de madrugada / com aquele anjo que tentava subjugar-me / através de uma luta que se me destruía / outorgava sentido à minha vida”. 169 «Figura jacente», Problema da habitação (2004a:165). 170 Refira-se, aliás, que a vertente lúdica do poema espelha alguns aspectos folclóricos do ciclo bíblico de José, nomeadamente as repetições e rimas internas tão comuns à transmissão oral, neste poema que destoa do verso branco e livre cultivado por Belo.

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se processa entre os planos do humano e do divino, já que ao seu alcance estão

“espantos medonhos” e que o seu canto é “sem condição”.

Neste ponto, há a registar a comparação entre o poeta (a voz lírica que se

assume na segunda estrofe, “eu canto”) e José, cujo canto não conhece limites, no

que se concentra uma alusão às suas capacidades divinatórias e proféticas, ao passo

que o poeta é demasiado humano171 (aspecto reforçado pela adversativa “mas” da

segunda estrofe do poema) e o seu canto não consiste senão na transposição de “os

pássaros e as árvores” para o verso, matéria humilde do seu canto. A poesia de José

é, porém, de superior alcance, tornando-o digno de ombrear antropologicamente (a

designação “o homem” repete-se anaforicamente nos versos seguintes com valor de

antonomásia) com Deus no primeiro verso da terceira estrofe.172 Ente órfão e

imune à própria dor, o poeta é alguém que – como José, privado de todo o amparo

familiar (órfão de mãe, vendido por seus irmãos e perdoando-os no fim) –, assume a

condição de ser-para-o-sonho como veículo e instrumento de transmutação da

realidade e do destino, individual ou colectivo, no caso bíblico. José funciona então

como epónimo, designação fundadora de toda uma descendência de homens

especialmente “dedicados”173 ou escolhidos174: os poetas, sendo uma das suas

obrigações a do «Serviço de abastecimento de palavra ao país»175 (que Belo assumia

como sua, do mesmo modo que José administrava a produção cerealífera no

171 «Pequena história trágico-terrestre» (País possível), “Humano mesmo se demasiado humano”. 172 Chamo a atenção para o genesismo do poder performativo da poesia em «Encontros e desencontros» (Despeço-me da terra da alegria), “Eu digo eu canto e logo o mundo faz-se”. 173 Cf. «Para a dedicação de um homem», Aquele grande rio Eufrates. 174 Veja-se, a propósito do aspecto da unção divina do poeta, os versos de «Emprego e desemprego do poeta» (Aquele grande rio Eufrates): “o poeta em exercìcio é como azeite precioso derramado / na cabeça e na barba de aarão”. 175 Homem de palavra[s] (2004a:350).

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Egipto). Aqui se transmuta em divino o alcance que era meramente humano da

poesia, evocando o quiasmo enunciado por Belo de tomar por profanos os textos

sagrados e, na óptica de Tolentino Mendonça, converter a poesia profana num

espaço privilegiado para a epifania do sagrado.176

A epifania onírica de Jacob é, de algum modo, comparável ao dom da

profecia demonstrado por José.177 Tanto um como outro beneficiam de uma

proximidade exclusiva para com a divindade, sendo que um luta e vence no

confronto corpo a corpo com o divino178 (Génesis 32:23-33), enquanto outro é

partícipe do mistério da sabedoria divina: “não pertencem as interpretações a

Deus?” (Génesis 40:8). Na correlação em crescendo da progressiva emancipação

humana, verifica-se que se Adão desobedeceu a Deus e Abraão o questionou,

apenas Jacob conseguiu lutar com Deus, prevalecer contra ele e ainda conseguir a

bênção divina por isso (apesar de todo o potencial húbrico do episódio). Isto

permite sustentar a concepção de Friedman, segundo a qual a Bíblia oferece aos seus

leitores uma visão da história em que “humans are confronting their creator, and

they are increasing their participation in the arena of divine prerogatives” (1995:38).

Este é ainda o caso de José, cuja narrativa vem prolongar o feixe de autonomização

humana face ao divino, ao conceder-lhe um poder inigualável, em comparação com

176 Remeto para as considerações tecidas no final do ponto 3.1.1 desta tese. 177 Pelo menos a julgar pela interpretações talmúdicas, midrásticas e cabalísticas do sonho da escada, onde se representaria o curso da história e a glória dos impérios por vir, à semelhança da estátua do livro de Daniel (cf. Kugel 2006). 178 Relação na qual o mais fraco vence novamente o mais forte, na linha ainda da inversão da hierarquia entre Jacob e Esaú, que se desdobra na perda do direito de primogenitura de um, na usurpação da bênção patriarcal pelo outro, e que estruturalmente se aproxima da dinâmica do par da mitologia clássica Prometeu/Epimeteu. Para uma análise sequencial (com incursões actanciais e funcionais, greimasianas e proppianas) do episódio da luta de Jacob com Deus ou um seu emissário angélico (confira-se a admissão das duas hipóteses em Oseias 12:4-5), remeto para o ensaio de Roland Barthes (1987).

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os seus antecessores, o de ler o futuro em sonhos (no caso, os do copeiro e do

cozinheiro egípcios e, finalmente, os do próprio faraó). Arauto de um poder

divino179 e síntese unívoca de uma literal boca bilingue (que comunga da língua da

terra e dos céus e fala a polifonia do sagrado e do profano), José personifica a

palavra emitida por Deus,180 consagrando-se como prefiguração do profeta bíblico.

É a uma personagem de tal calibre que Belo faz remontar a origem e a definição de

poeta, cuja palavra se torna veículo de intermediação entre os homens e o mistério

do divino, numa concepção que em certos aspectos essenciais se aproxima do

padrão de caracterização platónica181 da poesia: “A poesia é uma loucura de palavras

[...] o Deus imóvel só por nossa boca fala”. O poeta assume-se, assim, como porta-

voz de uma palavra divina, em que redunda o seu conceito de poesia afinal. Esta sua

disponibilidade, de feição profética, faz dele, na leitura de Pedro Serra, “uma espécie

de sacerdote [que] agencia a inscrição da divindade no poema” (2004:76). A fractura

nominalista que perfura a relação bilingue da palavra com o mundo pode ser, deste

modo, transposta com base nesse último reduto da intelecção do divino que a

poesia não deixa de constituir.

179 «Nem sequer não» (Transporte no tempo), “se dissesse mais diria sou maior que deus”, «Ao regressar episodicamente a Espanha» (Transporte no tempo), “Sinto que sou maior do que mim mesmo / que vou ter dimensões que só terei / quando morrer e que hei-de até dizer / palavras de pureza pavorosa”, «Fugitivo da catástrofe» (Despeço-me da terra da alegria), “ultrapassei a margem do conhecimento humano”. 180 «Aquele grande rio Eufrates» (Aquele grande rio Eufrates): “Deixará o poeta anónimas algumas / das palavras que deus lhe pôs na boca [...] ?” 181 Remeto para a exploração deste assunto a que dediquei o ponto 2.1. desta tese.

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151

3.1.5. A medida do homem: habitar a terra e o poema

Habitar, verbo caro a Ruy Belo, é pelo seu alcance semântico forma de

abranger a relação do homem com o espaço, num intercâmbio em que se estabelece

a direcção e o valor da experiência humana: “uma casa é a coisa mais séria da

vida”.182 A vertente expansiva de grande parte da produção de Ruy Belo, a que

noutro momento deste capítulo chamei caudalosa,183 parece-me apostada em recriar o

espaço para essa habitabilidade num mundo que o poeta reconhece como inóspito

e, nas palavras de Fernando Pinto do Amaral, “desertado por Deus, encarado

disforicamente sob o signo da erosão, do esquecimento, do inverno” (1997:9). Pode

aí residir um dos motivos estruturantes para uma poesia que no seu seio concebe

lugar para o prosaico inesgotável (em todo o seu esplendor profano), o fôlego da

realidade (o quotidiano da unha, da sopa, da pasta de dentes), o social (destaquem-se

as preocupações de afinidade neo-realista184 na poesia de Belo), que se materializam

por exemplo na recolecção avulsa de um tecido discursivo fragmentário (anotações,

impressões, interjeições, tom intimista, testamentário, etc185), na aglomeração de

citações, alusões e paráfrases de referências eruditas ou na recorrência do verso

182 «Quasi flos», Problema da habitação (2004a:137). 183 Cf. ponto 3.1.2. desta tese. 184 Esclarece Pedro Serra que “Ruy Belo [se aproximou] quanto baste ao sentido intervencionista da poesia neo-realista (sobretudo, purgando-o das suas fraquezas demagógicas). O sentido do compromisso de Ruy Belo com os problemas da História (ou melhor, do momento histórico que lhe tocou viver) nada tem que ver com o ideologismo e o pragmatismo do ainda então sobrevivente neo-realismo. [...] O que isto significa é que a poesia de Ruy Belo não aliena um sentido ético-político” (2004:56-57). 185 Observa Eduardo Prado Coelho que “os seus poemas são quase sempre longos, derramados, deambulatórios, num verso livre que se reabsorve em subtis processos aliteratuvos e jogos fónicos calculadamente disseminados. E a sua poesia vive de um discurso que se infinitiza na coloquialidade de uma enunciação oscilando entre a confidência, a longa carta para um incessante adeus, o passeio fraternal, a invocação sagrada, o desespero que se perde na profusão alucinada de palavras, o extenso murmúrio da insónia” (1988:150).

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branco e longo, amiúde sem pontuação nem divisão estrófica. Trata-se, na leitura de

Silvina Rodrigues Lopes, da arquitectura da casa-poema:

Certos poemas longos de Ruy Belo parece que podiam não terminar nunca, anima-os o movimento de partir sem ser para “chegar a sìtio nenhum” (como se diz em «Há domingos assim») [...] a casa-poema de Ruy Belo não tem os limites do mundo dito, mas os do mundo obscuro, ignorado, que no dizer se expande. (Lopes 1997:44)

Esta tentativa de expansão do verso e do poema poderá também corresponder,

segundo Eduardo Prado Coelho, a um modo de procurar a “equivalência entre o

que se escreve e o caminhar na vida, [sendo] natural que os poemas de Ruy Belo se

alonguem, que sejam demorados exercícios no sentido de o poeta se afeiçoar à

prática da morte, instrumentos dilatórios para suspender o ponto final” (1984:157).

Julgo que esta pode ainda ser, com vantagem, considerada uma das formulações de

Belo para convocar a ideia de totalidade ou de absoluto, encontrando assim no seu

discursivismo186 como sublimação da ausência de um deus morto ou desaparecido

uma forma possível de colmatar a lacuna fruitiva do sagrado, da qual se poderia

afirmar com João Barrento ser “sempre, no plano do humano, um objecto de

nostalgia e a sua natureza da ordem do incorpóreo” (2010:44).

Formas de superação dessa febre de absoluto (expressão de sabor

romântico187 que julgo apropriada a alguns dos momentos desta poesia),

186 Considera Pedro Serra que a linha que separa Ruy Belo da geração de 61 é a de uma legibilidade discursivista, ao passo que nomes como os de Heberto Helder e Carlos de Oliveira se colocariam do lado anti-discursivista e experimental da poesia (cf. 2004:69-71). 187 Veja-se, a este respeito, Manuel Gusmão: “na voracidade e heterogeneidade da sua constituição genealógica, Ruy Belo está também mais próximo da dobra realista do romantismo, pode ecoar aqui e ali ecos do neo-realismo, e poderá até praticar declarações poemáticas mais circunstanciadamente polìticas do que o próprio Gastão [...]” (2000:121).

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encontramo-las refeitas de várias formas, sendo que gostaria de destacar duas delas,

no fecho desta análise da poesia de Ruy Belo, que se consubstanciam no absoluto

que pertence à terra (Molder) porque, como no-lo indica a epígrafe evangélica de

Homem de palavra[s], “aquele que é da terra, pertence à terra e fala da terra” (em João

3:31). A fractura litúrgica que se instala na relação do homem com o divino obriga à

revisão das variáveis envolvidas, perante a falta de comparência de uma das partes:

“ele vai só ele não tem ninguém [...] Oh que difícil não é criar um homem para

deus”.188 A transmutação do paradigma de categorização humana encontra em Ruy

Belo terreno fértil à reponderação, sendo que a escala desta poesia se sustenta no

que podemos considerar ser a medida do humano, de evidente inspiração

protagorìstica, aquela mesma que dá “um homem como medida do mundo”, assim

reconhece o poeta em «A sombra o sol».189 A linguagem poética do humano tende a

reproduzir esse reajustamento, “E digo «senhorio» «procurador» / quando quero

falar da minha casa / o templo onde habita o senhor”,190 com base numa

desambiguação substantiva que retira às palavras o seu potencial de descoincidência

com a realidade. Esta é a enunciação da regra, «uma vez que já tudo se perdeu»191:

“tudo é apenas o que é / levanta-te do chão põe-te de pé”.

O convite à verticalidade é motivo literário disseminado em Ruy Belo,

vindo a ganhar maior consistência à medida da progressão do seu desencanto

metafísico.192 À medida que o céu se torna cada vez mais partícipe do intangível,

188 «Homem para deus», Aquele grande rio Eufrates (2004a:26). 189 Despeço-me da terra da alegria (2004c:183). 190 «Eu vinha para a vida e dão-me dias», Homem de palavra[s] (2004a:277). 191 Homem de palavra[s] (2004a:310). 192 «Ode do homem de pé», Aquele grande rio Eufrates (2004a:112).

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outro caminho não resta ao homem senão apoderar-se daquele que é,

ontologicamente, o seu elemento: “Aì temos um homem perto como nunca nem

ninguém do chão”.193 O sim à terra, formulado numa retórica familiar à do Cântico

dos Cânticos,194 oaristo íntimo do homem para com a sua condição telúrica, reflecte

essa assunção da imanência e da reinvenção genesíaca de um vitalismo

antropológico e humanístico, “basta que venhas quando eu diga / do alto de mim

próprio sim à terra”,195 que encontra na poesia a enunciação especular apta a

infundir na realidade mais profana a densidade transcendente que ao sagrado já não

se reconhece: “meus versos lavro-os ao rubro / nesta página de terra [...] os versos

que faço sou-os”.196 A medida do divino clama assim por reinvenção, esgotados que

foram os seus recursos naturais nesta poesia. Ruy Belo achou-lhe um nome, o do

homem que renasce no templo profano, imago mundi, dos seus versos.

193 «Homem perto do chão», Aquele grande rio Eufrates (2004a:27). 194 «Elogio da amada», Aquele grande rio Eufrates (2004a:38). 195 «Condição da terra», Aquele grande rio Eufrates (2004a:39). 196 «Canção do lavrador», Aquele grande rio Eufrates (2004a:60).

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3.2.

O AVESSO DO EXPLICAR.

POESIA E MÍSTICA EM DANIEL FARIA

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3.2.1. Incidências do discurso poético

A reflexão que aqui proponho sobre a poesia de Daniel Faria, não a

concebo desligada de um conjunto de questões para as quais o leitor terá de ser

reenviado (sob pena de amputar uma experiência de leitura ampla), nem tão pouco

imune, em si mesma, a uma rede literária maior no seio da qual se constitui e por

meio da qual se vão tecendo os seus múltiplos sentidos. É por isso que, sendo

embora de feição predominantemente bíblica e religiosa as preocupações por que

me fui orientando não apenas na feitura deste capítulo mas a um nível de

macroestrutura argumentativa, considerei proveitosa a indagação de fronteiras

vizinhas relativamente às quais um conceito de poesia fariana não pode ser estranho

e com as quais estabelece alianças, tanto que serão elas que, a seu modo,

contribuirão para fazer ressaltar aquilo que nessa poética existe de singular e

modalizador de um diálogo literário do qual depende o seu sentido íntimo. Será a

exploração dessa zona intermural, seus limites e suas relações, que começarei por

sugerir.

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157

Em “Filosofia e Poesia”, María Zambrano (2000) discorre longamente

sobre as relações, de natureza diversa e nem sempre pacífica, que se foram

estabelecendo entre estes dois domínios da expressão do pensamento e da

sensibilidade humanas no Ocidente, desde o encontro do património grego com a

herança cristã (imemorial, à semelhança da origem-sem-origem derridiana).

Atravessando as antecâmaras várias desse diálogo, feito tanto de confluências como

de desencontros, é dado ao leitor acompanhar a reconstituição de um percurso

anguloso em que Platão e São Paulo se destacam como figuras maiores, lídimos

representantes das duas principais tradições implicadas na geração do que é a nossa

identidade europeia.

Se, por um lado, estas duas “formas de saber e de expressão” que são a

filosofia e a poesia se enfrentaram ao ponto de provocar um “rompimento da

cultura” (2000:62), por outro, neste contexto a emergência do logos (tão ambíguo na

sua fronteira entre o que do dabar hebraico e da revelação cristã ainda com-vive na

razão grega197) não pode entender-se sem a circunstância singular do homem

concreto nem sem uma vocação humanística e universalizante do foro filosófico,

como defende Zambrano, detendo-se algures no caminho que vai da pergunta à

resposta sobre a essência indefinível e, por isso, sempre esquiva às noções de

“pureza” (como as que encontramos em Valéry ou Mallarmé) da poesia (2000:138).

197 Remeto para a reflexão de Frye: “The latest of the Gospel, John, begins with the tremendous prelude on the Logos […] Up to then, logos had had a long and varied history in Greek thought from Heraclitus to Philo, and had implied that the «word», or unit of human consciousness and communication, was something belonging to na order in thought linked to an order in nature […] the author of the hymn or the evangelist […] seem to have had something much closer to the Hebrew word «dabhar» in their minds. But they cannot have been unaware of it either, or of the importance for later generations of adopting the Greek word” (1990:105).

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Em dois dos mais relevantes momentos desse itinerário zambraniano,

surgem modulações do pensamento perante outras regiões do humano, como a

mística e a metafísica. De ambas poderia destacar-se o sentido do que, entre outros,

se assume como divergente: o de uma diferença essencial que assenta no primado

direccional interno da mística e externo da metafísica. Se por uma entendermos o

plano da espiritualidade no seio do qual pode ter lugar a experiência fruitiva do

absoluto, forma de acesso directo e imediato ao transcendente; por outra, teremos

de abranger a área do pensamento filosófico que Aristóteles fez ombrear com a

ontologia, a lógica e a teologia, e que formariam os restantes domínios pelos quais

seria possível compreender a natureza das coisas. Designando a metafísica,

originariamente, o conjunto de escritos aristotélicos não incluídos na Física, nela se

alicerçariam os fundamentos do ser e do conhecer e, assim, de uma ciência humana

que aspira à totalidade e aos princípios gerais da realidade (estas foram, de resto,

questões essenciais na reflexão de Savonarola sobre a poesia no seu Apologeticus de

ratione poeticae artis em 1491).

O que porventura fará da metafísica e da mística lugares coincidentes, bem

como relevantes na leitura de Daniel Faria, é o horizonte comum de acesso a um

conhecimento absolutizante, que encontra no ser como origem e no mapa do real

um parentesco terminológico, se bem que os caminhos que a cada uma cabem sejam

essencialmente distintos: o que na primeira é pertença da lógica e da racionalidade,

na segunda é do foro do iniciático e do mistérico, opondo-se assim como se opõem

conhecimento e revelação, imanente e transcendente, humano e divino. Ao fazer

derivar a palavra mística de uma base etimológica que significaria „fechar os olhos e a

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159

boca‟, fórmula expressiva da dimensão de mistério que lhe subjaz, Manuel da Costa

Freitas assegura que “mìstico é […] aquele que, recolhido à sua própria intimidade,

abre os olhos espirituais para o abismo insondável e indizível de si mesmo e das

coisas” (1997:894). Esta poder-se-á dizer a via de Daniel Faria.

Ambas as categorias em que nos temos detido são aqui convocadas como

formas de conhecimento do mundo e do sujeito que nele, e relativamente a ele, se

define. Essa relação complexa e multidiscursiva do situar-se encontra em cada uma

delas duas vias de perfazer o mesmo caminho: na possibilidade de transcender-se (é

de sublinhar o denominador do excessivo que lhes assiste) pela bifurcação desse

sentido entre o aquém, na mística, e o além, na metafísica. Ou ainda, nos termos do

racional, entre o que precede a região de uma lucidez cognitiva e o que vem por seu

intermédio, conduzindo ao que está definitivamente para lá dela. Entre uma e outra

se desenha esse trajecto que polariza mística e metafísica, que aqui se coloca como

questão, a meu ver, pertinente e solicitada pela leitura da poesia de Daniel Faria.

Ora, um dos traços que, com mais força, me parece pontuar a sua poesia é

um certo labor reflexivo de pendor da ordem do humano e do intelectivo e que, não

por acaso, o excede. O modo como o faz, no entanto, afigura-se-me passível de ser

situado no âmbito de uma mistagogia, mais do que de uma hermenêutica, uma vez

que em lugar de uma interpretação do texto e do real (como podemos encontrar em

Tolentino Mendonça) a tensão fariana pende decisivamente para um desejo de

aceitação e decifração dos mistérios, realidade oculta e secreta em que se salda a

essência do divino, como do humano por refracção, ainda que tanto numa como

noutra modalidade epistemológica vigore a dualidade que apõe velado e desvelado; o

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160

que, no entanto, numa é esforço conceptual e demanda cognoscitiva é, na outra,

desejo íntimo de aperfeiçoamento e de união da alma com o divino, perante o qual

se daria a plenitude da contemplação – veículo soteriológico de revelação e dádiva

da sabedoria de Deus, ainda outra forma possível de resgate do Homem da queda

adâmica.

As questões que a poesia de Daniel Faria explora, no lastro de um labor

feito de introspecção rilkeana (sobretudo a do primeiro ciclo do Livro de horas) e de

recolhimento monástico de quem “queria ter a posição dos claustros / A posição do

monge antigo que os varre”,198 permitir-me-ão, como creio, explorar o problema em

que assenta o argumentário desta tese: o de que a poesia, enquanto expressão

artística do pensamento e da sensibilidade humanas, é ainda um prolongamento

desse feixe conceptual que lhe deu origem, uma sua manifestação e forma de

concretização, salvaguardando uma margem tanto de indefinido como de

“indefinìvel”, que Zambrano sublinha com insistência. Este feixe a que me refiro

prende-se, no caso vertente, com uma sensibilidade do sagrado fundada nos foros

de uma experiência de leitura do texto bíblico. São tais os aspectos que nos

permitirão encontrar em Daniel Faria terreno fértil que interessa visitar, de modo a

nele interrogar, não apenas como o texto matricial marca presença, pontuando-o de

citações e alusões, mas sobretudo no modo como o poeta consegue dilui-lo

esparsamente numa tensão poética, que em si contigua a esfera do sagrado e da

estesia, ao passo que os religa num pacto comum que terá necessariamente de

198 «Queria ter a posição dos claustros», Dos Líquidos (2006:295).

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remeter o leitor para a memória do texto religioso e para as preocupações de uma

leitura hermeneuticamente orientada.

Esta dinâmica de leitura, em que tanto mística e metafísica como revelação

e hermenêutica se enlaçam produtivamente, radica num caudal de alcance teológico

que, à sua maneira, ombreia com as questões a que o leitor da poesia de Ruy Belo e

Tolentino Mendonça também terá de ser sensível,199 nomeadamente na recorrência

dos topoi da noite iluminada, da cegueira visionária ou ainda da infância.200 Como

assinala Rosa Martelo, num roteiro pela poesia portuguesa dos anos noventa onde

se destacam Faria e Tolentino, coexiste em ambos um universo poético em que “a

poesia permanece, acima de tudo, como epifania, lugar de revelação e de aparição”

(1999:228). Ao contrário porém de Tolentino, a natureza do gesto poético de Daniel

Faria, “mais densamente metafórica, ou mesmo abertamente alegórica” (Martelo

1999:228), é virada para o interior do sujeito, percorre-o nas suas fracturas, vai pelo

seu “dentro”, ao passo que naquele encontramos antes de mais um sujeito

interpelado pelo modo como o mundo se dá a conhecer aos seus olhos, num

movimento pendular que percorre de forma bívoca o espaço sempre abissal que faz

distar o sujeito do objecto, a realidade (em tensão estilhaçante) e a sua representação

externa (alucinada pela memória, enevoada, ensombrada). É aquilo que, em clave

lacaniana, nos é oferecido pela distinção entre a realidade ao nível da percepção e o

seu mais profundo e verdadeiro âmago, o real, e que em outro momento desta tese

199 António Brás situa-os a ambos num “horizonte ontológico delimitado por Deus” (2002). 200 Confira-se, por exemplo, versos de Faria como os seguintes: “A nuvem é noite sobre o viajante às escuras / A candeia é branca no tacto do cego que a segura […] Ele ergue a noite branca. A nuvem / Desliza porque o cego a conduz” (2006:274). “E jogava ao pião com Deus / enquanto minha mãe estendia roupa / e o meu pai mendigava pão” (2006:370), que serão de algum modo retomados por Tolentino.

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poderei fazer confinar com hebel, a metáfora qoheletiana201 por excelência. A ambos,

no entanto, une-os uma estética reflexiva que em Tolentino assume um cariz

sobretudo hermenêutico (estatuído como forma de conhecimento e que elege como

motor reflexivo a vivência da condição de sujeito lírico numa relação intelectiva e

interpretativa de todo um sistema de leituras que constituem um mundo a ser por

meio delas interpelado), ao passo que, como prossegue ainda Rosa Martelo, em

Faria esta se distingue pelo seu carácter unitivo e totalizante, próprio de um “verbo

absoluto […] de valor iniciático”. E que, por isso mesmo, encontra na herança da

literatura mística um dos seus redutos naturais.

3.2.2. Iniciação ao verbo absoluto

A vocação do absoluto transcendental que a mística encerra pode

descrever-se, nas palavras de Patrick Grant (autor de Literature of Mysticism in Western

Tradition), como “an experimental knowledge of God in which ordinary perception

and discursive thought are transcended by a sense of union” (1983:152). A

relevância desse “verbo absoluto” a que Faria parece aspirar parece-me constituir

para o poeta um veio fundamental que percorre toda a sua produção, alcançando

especial ressonância num conjunto particular de poemas, agrupados sobre o título

«Do inesgotável», cujos temas versam em jorro profuso e torrencial o amor místico,

a união divina ou a oração e meditação contínuas. De facto, como assinala Francisco

Serra Lopes, “Daniel Faria integra-se na tradição da poesia mística, votada à

201 Veja-se o ponto 3.3.5 desta tese.

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meditação e ao silêncio claustral, no umbral em que se entrelaçam luz e sombra”

([no prelo]):

Estou dentro de paredes brancas. Quatro paredes: a minha cela, O frio, a solidão e o meu catre. A luz entra sempre de noite202

Se tomo aqui como exemplar essa luz que entra sempre de noite, clave fariana

do mesmo elemento nocturno que em Tolentino abre os olhos, é porque a polaridade

da luz e da escuridão fecunda muito do que está em jogo na estética mística, como

veremos. A herança do pensamento místico terá sido para sempre marcada pelo

cunho de um dos seus maiores teorizadores, a saber, Dionísio Areopagita. Isto

mesmo defende Alain de Libera em Penser au Moyen Age, para quem todo o discurso

sobre a teologia mística deve pressupor a consideração do texto epónimo

(1996:301), na linha ainda do que defendia S. Boaventura, ao considerar que

Dionísio estava para a mística como Agostinho para o dogma e Gregório para a

moral (apud Areopagita 2008:7). Pretenso discípulo do apóstolo Paulo (século I d.C),

convertido por ocasião do discurso no Areópago de Atenas (cf. Actos dos

Apóstolos 17), os escritos do corpus areopagiticum foram-lhe tradicionalmente

atribuídos, entre os quais se conta o tratado De mystica theologia. De autoridade

relativamente incontestada até ao século XVI, a existência factual de Dionísio

passou então ser a posta em causa, com base na contaminação reconhecível do

neoplatonismo ateniense do século V d.C. nos seus textos – o que lhe valeu, a partir

do século XIX, a renomeação de Pseudo-Dionísio, uma figura de dimensão

202 «Estou dentro de paredes brancas», Explicação das árvores e de outros animais (2006:57).

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puramente autoral em que se confundem tanto o discípulo de Paulo (Actos 17:34)

como também o primeiro bispo de Paris (século III d.C.).

O prolongamento do legado paulista na génese do tratado influenciou,

durante séculos, o modo como foi lido, sendo que por exemplo Jean Gerson (1363-

1429), teólogo escolástico da Universidade de Paris, reconhece em Dionísio a sua

presença: “lui, à qui Paul a transmis sa connaissance des secrets divins” (2008:51).

Paulo tem, de facto, a importância de uma figura tutelar nas origens do pensamento

místico de índole cristã. O tratado dionisino parece dar continuidade à experiência

mística do êxtase de Paulo, relatada numa das suas epístolas (falando de si como se

de um outro se tratasse, no que se torna patente o mecanismo dissociativo da

experiência mística), em que declara ter contemplado a transcendência divina:

vou mencionar as visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que há catorze anos foi arrebatado ao terceiro céu. Se estava em seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe. Sei apenas que esse homem – se no corpo ou fora do corpo não sei; Deus o sabe! – foi arrebatado até ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não são permitidas ao homem repetir. (2 Coríntios 12:1-4)

O discurso de Dionísio, assumidamente discipular, funda-se assim no testemunho

de um conhecimento místico do divino que tem por base uma experiência de

arrebatamento espiritual. Repare-se como a fronteira entre dentro e fora203 é

203

A propósito da dialéctica do caminho e do centro no pensamento místico, veja-se Certeau: “[la] détermination réciproque d‟un intérior et d‟un extérior, alors indissociable de l‟expérience religieuse, explique le destin prodigieux du mot mystique au XVIIe siècle: le vocabule désigne un itinéraire qui n‟est plus signifié par une pérégrination visible ou par un accroissement de savoir, car c‟est un devenir caché sous la stabilité de termes religieux; c‟est une mutation secrète qui se saisit et se reconnaît elle-même en fonction d‟un désenchantement par rapport à l‟univers des mots, des idées ou des assurances objectives. Et dans la vision de la mystique, ce devenir a un sens: principe unique d‟un continuel dépassement, le Véritable est le centre qui ne cesse d‟atirer à soi en se révélant et qui

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duplamente sublinhada no texto apostólico, enquanto marca de um conhecimento

indistinto e inexprimível (ou não fosse a inefabilidade outro dos topoi místicos) que

ao homem escapa: “não sei […] não sei”. Se, por um lado, esta indistinção do

acontecimento extático sobrepuja o âmbito do que é a experiência sensorial do

conhecimento, por outro, é ainda ela que vem fundir as dimensões física e espiritual,

num plano de despossessão racional onde os limites da carne são testados – no que

nos aproximamos do lastro neoplatónico que durante séculos presidiu às leituras das

epístolas de Paulo, no confronto sempre latente que opõe carne e espírito, como

uma vez mais nos recorda Marìa Zambrano em “Filosofia e poesia” (2000:87-94).

Estes foram os dois grandes traços que a elaboração especulativa da

teologia escolástica reteve da teologia mística, a saber, a ideia de que o

conhecimento transcendente do divino implica um rapto espiritual, uma saída da

dimensão sensorial humana, bem como a suspensão do regime habitual da

actividade cognitiva. É precisamente a isto que se refere Jean Gerson em Sur la

théologie mystique (1408), no esforço de prover à teologia mística a base discursiva

intelectual que esta recusa por natureza, ao designar a categoria dos excessus mentis,

que cristaliza estes dois aspectos em torno do êxtase místico: não apenas a saída do

plano racional, como o acesso à dimensão que o excede, ao conhecimento que

simultaneamente o sobrepuja e invalida, pelo seu esvaziamento. Procede-se assim à

substituição do plano intelectivo pelo afectivo, através do qual seria possível aceder

ao sentido espiritual das Escrituras, de outro modo inacessível, ainda no rasto da

construit ainsi l‟être à travers la multiplicité des épisodes, des décisions et des adhésions qui y conduisent” (1987:51).

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leitura gersoniana. Neste sentido aponta a oração de abertura do tratado do

Areopagita, que apostrofa a Trindade:

[…] conduisez-nous jusqu‟à l‟éminence souveraine, plus que lumineuse, et plus qu‟inconnue, des Écritures divinement mystiques, où les secrets éternels, simples, absolus ou nécessaires de la Sagesse incréée sont cachés! (2008:55)

Deve então registar-se a ideia de que há um caminho, um percurso a fazer,

uma via que conduz, para recorrer ao mesmo verbo, a um destino. Este é um cenário

basilar da imagética mística, de que é magno exemplo a Commedia de Dante, poeta

peregrino da viagem escatológica que se opera entre a vida e a morte, a catábase e a

anábase, rumo ao supremo conhecimento inscrito na quadratura do círculo e

subsumido nesse expoente inexcedível que é a rosa mística. A importância do

caminho no pensamento mìstico é sublinhada por Patrick Grant, para quem “taking

a direction accompanies the act of faith in which knowledge begins”, sendo que este

se insere na imagética do círculo e do eixo (questões a que regressaremos), uma vez

que “it envolves a deepening experience of the centre, the point of departure which

is also the point of understanding” (1983:128).

As coordenadas que orientam a direcção para esse tesouro escondido (o

segredo místico) estão implícitas na oratio do Areopagita, onde vemos tomar partido

as dialécticas altura/profundidade e luz/trevas – que em Daniel Faria encontram

eco em versos como “Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede / Que

cavaste no meu canto, amo-te […] Candelabro que me vens cegando”.204 Tem aqui

cabimento a análise de Alcir Pécora que encontra nelas uma forma de “transmitir a

204 «Amo-te nesta ideia nocturna de luz nas mãos», Dos Líquidos (2006:240).

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graça da luz pela escrita obscura, que, por ser enigmática, define ostensivamente o

mistério da origem, obrigando à leitura espiritual, alegórica, ascética, que se produz,

então, como acto de ser (2002:83). O caminho desejável para o conhecimento do

divino terá então de ser de ascensão vertical, em direcção não apenas à luz, mas ao

que está para além dela – aquilo a que Dionísio chama, algo oximoronicamente,

“divines ténèbres”:

Élevez votre esprit au dessus de toutes les choses sensibles et intellectuelles. Surmontez tout ce qui est et tout ce qui peut être; et, d‟une manière du tout inconnue et qui ne se saurait pas comprendre, au milieu même de votre plus profond aveuglement, excitez-vous, autant qu‟il est possible, non tant à l‟union qu‟à l‟unité de Celui qui est infiniment élevé au dessus de toute essence, de toute connaissance et de toute suffisance de science. Car, par une sortie purement libre et par un éloignement très détaché de vous et de toute autre chose, vous essayerez d‟atteindre les rayons suressentiels des divines ténèbres. (2008:57)

Passagem essencial do tratado, a exortação do pedagogo místico vai no sentido de

conduzir o discipulo a atingir o estado de perfeição da alma através da união com

Deus. Elevação e despojamento são as palavras de ordem, num exercício de busca

espiritual onde não há espaço para os procedimentos da racionalidade. A narrativa

bíblica que ilustra, por excelência, este movimento verticalizante é a da subida de

Moisés ao Monte Sinai, simultaneamente lugar de purificação, de manifestação do

divino e, aspecto de não somenos importância, de contemplação da terra prometida.

O mesmo motivo é reconduzido por San Juan de la Cruz, em Subida del

Monte Carmelo, o qual entende o poeta ser imagem correspondente ao “alto estado de

la perfección, que aquì llamamos unión del alma com Dios” (2003:117). No decurso

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desse trajecto, duas instâncias se polarizam como essenciais, a saber, o silêncio e a

noite, assumidos como denominadores comuns da ascese mística. E neste ponto,

tanto de la Cruz como Faria surgem próximos dos postulados de Dioniso, como

veremos com mais detalhe, nomeadamente no que constitui a defesa de uma

purificação do vontade, dos desejos e da inteligência íntima, que não deve sobrepor-

se ao vazio que antecede a revelação:

plus on s‟approche de Dieu, plus les paroles et les pensées se raccourcissent […] Aussi, présentement que nous entrons dans ces ténèbres obscures qui sont au-dessus de toute intelligence, nous n‟y rencontrerons pas seulement un raccourcissement de discours, mais un profond silence, et, qui plus est, une privation entière d‟intelligence. (2008:71, 72)

A questão contemplativa da luz em meio à escuridão, bem como do silêncio

meditativo que ambos os elementos acompanha, desempenha um papel

fundamental no pensamento místico, à maneira de um tropo cujo sentido profundo

sempre escapa ao entendimento e, nessa mesma medida, exige que o aceitemos,

como defendia Quiroga: “La contemplation est obscure, à cause de cela on l‟appelle

d‟un autre nom théologie mystique, qui veut dire science de Dieu secrète ou cachée

[…] ce que certains spirituels appellent comprendre sans comprendre” (apud

Areopagita 2008:9). A impossibilidade de compreensão racional não obsta, no

entanto, à expressão do fervor religioso por meio de um discurso confessional,

excessivo e pleno de pathos, que parece suprir de algum modo a insuficiência da

razão, como o ilustram alguns dos poemas de Daniel Faria:

Amo-te na carne que tomaste do chão que aplaino Com as mãos

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Com as palavras que escrevo e apago Na areia, no cérebro. Amo-te com o cérebro em ferida Pensando-te Remédio que derramas em mim a tua medicina, a morte No meu corpo. Até que repouse como enfermo No teu leito. Amo febrilmente amo o dia Em que disseres: Larga A tua enxerga! – E ande205

A imagem de um “cérebro em ferida” provê aqui a medida da incapacidade humana

perante o mistério do divino. Face ao absoluto inexplicável, qualquer esforço de

apreensão é equiparável a palavras escritas no frágil e efémero suporte da areia da

praia. “Enfermo” de sua condição, o sujeito poético não pode senão esperar nesse

Outrém divino em cujo leito repousa o milagre enquanto desafio do (im)possível

(subsumido no paradoxo de uma medicina que mata), o de encenar uma segunda

criação (levantar da enxerga como Adão foi levantado do solo), no caso vertente

recorrendo ao episódio da cura do paralítico operada por Jesus (Lucas 5:24). A

aceitação da “morte […] no corpo”, que configura o preceito da mortificação dos

sentidos, seria então o princípio do caminho para a união tão desejada com o divino

bem superior, a “ideia nocturna da luz” e seus “focos celestes”, ao passo que

implicaria o abandono terreno da “candeia humana” em nome de um amor maior, o

do “clarão” incomparável da presença divina que tudo funde:

Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos E quero cair em desuso Fundir-me completamente. Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo Os focos celestes que a candeia humana não iguala206

205 «Amo-te na carne que tomaste do chão que aplaino», Dos Líquidos (2006:242). 206 «Amo-te nesta ideia nocturna de luz nas mãos», Dos Líquidos (2006:240).

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Peça de exemplar incorporação dos elementos que, na poética de Faria, a restituem

ao território do sagrado, nela a expressão do amor ao divino e o motivo da espera

pela vinda redentora da luz suprema configuram precisamente aquilo que, com Rosa

Martelo, “poderemos identificar como um universo de imagens, e concretamente o

seu visionarismo, [que] entronca num entendimento do mundo que é da ordem da

hierofania, da encarnação e da revelação do sagrado” (2010:290). Nesta palavra de

condição epifânica, o poeta parece prolongar o louvor apocalíptico da parusia

crística,207 em nome de um futuro absoluto que, na linha do recriacionismo

escatológico, tudo fará “cair em desuso” pela feitura nova de “todas as coisas”

(Apocalipse 21:5). O paradoxo de uma “ideia noctura na luz” coloca ainda esta

poesia em pleno campo da revelação do divino perante o olhar humano, “os focos

celestes” face à “candeia humana”, variáveis em torno das quais se agencia a

equação das trevas divinas, que pontuava o discurso areopagítico. No ímpeto

fusionista do movimento místico, sustentado no gesto unitivo do poeta com o

divino, joga-se ainda um movimento de abertura à disseminação do sagrado na

poesia: pois que não se trata apenas do visionarismo neoplatónico do acesso fruitivo

da alma à condição do absoluto, como ainda da perfusão inseminatória de um texto

que aguarda o “clarão”, a “estrela” e o “anjo”. E estes são, no argumento que aqui

se discute, elementos através dos quais um legado bíblico não pode deixar de

metonimizar-se.

207 Este é o apelo que encerra o livro do Apocalispe: “Vem, Senhor Jesus” (22:20).

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3.2.3 A dobra poética

Uma chave possível para o entendimento da poesia fariana assenta em

duas linhas de sentido que me parecem estruturantes da sua produção poética, sobre

as quais tento reflectir logo a partir do título do capítulo: a de que, em primeiro

lugar, esta é uma poética apostada na ideia de uma deíctica explicativa e através da qual,

em segundo lugar, se vai tecendo uma perspectiva sobre o mundo pelo seu dentro,

no que se sustentaria a componente metafísica da sua produção. Se, por um lado, há

em Daniel Faria uma vertente cartográfica fortíssima, a que fica a dever-se o fascínio

exercido pelos espaços habitáveis e semanticamente referenciáveis, que distinguem

uma presença humana (a cidade, a casa, o lugar); por outro, esta coexiste de algum

modo com uma lógica internalizante, que passa pela encenação discursiva de um

desdobramento explicativo que se opera pelo seu oposto, pela imensa implicação

que não deixa de supor, ao passo que conduz o leitor pelo adentramento conceptual

de uma poética em busca da raiz última da compreensão inatingível – aquilo que

seria para o poeta “encontrar o golpe no sono”.

Foram tais aspectos que entendi por bem verter na fórmula de avesso

explicativo, procurando dar conta desta tensão que não pode deixar de acompanhar a

leitura da poesia de Daniel Faria, sobretudo da que alcança a sua expressão mais

perfeita e definida nas três obras da maturidade do autor. Perseguindo um intento

de natureza enciclopédica, esta poesia acumula explicações múltiplas (sobre as

árvores, os animais, a pedra, o lume, as casas, o labirinto) que se estendem “Do

inexplicável”, em gesto paradoxal de submissão do discurso àquilo que não é

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passìvel de dilucidação conceptual, às “Últimas explicações”, o que roça já o

domínio do escatológico, limite decisivo para lá do qual toda a explicação humana se

torna supérflua. Este mesmo feixe de desdobramento prolonga-se ainda, religando-o

na sua feição ablativizante, em Dos líquidos, onde o complemento circunstancial de

matéria ou de assunto discorre sobre as nascentes, o inesgotável, o sangue, até ao

fecho do “ciclo das intempéries”.

Aparentemente estranho ao motivo da explicação, que de forma tão

marcada assinala quer Explicações das árvores e outros animais quer Dos líquidos, pela

presença de um discurso exterior sobre os seus objectos com vista à sua integração

na rede mais ampla da nossa compreensão, o livro Homens que são como lugares mal

situados ensaia por sua vez uma incursão poética, já não tanto pelos meandros da

divisão analítica das coisas e da sua natureza taxonómica, mas pelo seu veio

essencial, em óptica internalizante, aquele de que depende a sua categorização

mesma, a sua localização no âmbito da geografia do conhecimento humano – forma

possìvel do “quadrado de sossego”, essa “raiz” ou “centro” fariano. Como nota Luìs

Adriano Carlos:

Re-situar o lugar do Homem é para o poeta nomeá-lo por meio da metáfora e de todos os processos de translação do sentido. Ora, Daniel Faria elege o motivo do lugar como topos central da sua tropologia meditativa, cumprindo os preceitos ecfrásticos da retórica clássica que o método de Santo Inácio de Loyola designou por “composição do lugar”, acto de ver com a vista da imaginação o lugar onde se situa o objecto contemplado. (Carlos)

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No percurso dessa oscilação entre o externo e o interno, o fora e o dentro, a

periferia e o centro, Daniel Faria vai construindo uma voz poética que de modo

consistente procura, mais do que a explicação ou a coisa ela mesma, uma

compreensão do objecto e a sua possível integração na perspectiva singular de um

sujeito contemplativo, já que a definição ou explicação das coisas raramente surge

desligada de uma atenção ou preocupação fenomenológica. Tal percurso é

sobretudo o do seu aprendizado, ou noviciado poético, uma espécie de formação

interior pela observação da poesia do mundo e pela abertura do sujeito ao

florescimento da mesma em si.

Este aspecto não deve levar-nos a desconsiderar um outro que, de modo

paralelo, concorre para o mesmo fim: o de que há em Daniel Faria a presença

constante de uma tensão desdobrante que, à excepção singular do livro Homens que

são como lugares mal situados (embora o pronome relativo deste título possa ainda dar

conta dessa mesma função), se plasma de forma recorrente no motivo da

explicação. Essa dobra representa aqui as dificuldades subjacentes ao entendimento

humano, assumido na sua não-linearidade, ao passo que nos permite detectar a

existência de um mapa hermenêutico que codifica os modos como lemos poesia,

sobretudo a de alcance místico, como creio ser o caso.

De um ponto de vista puramente conceptual, não pode ser ignorado que

coube a Dilthey, no quadro epistemológico da hermenêutica contemporânea, a

distinção fundamental entre aquilo que carateriza o conhecimento objectivo e o

subjectivo, as ciências físicas e as do espírito, a explicação e a compreensão,

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respectivamente.208 Ora, aquilo que se pode entender por explicação em Daniel

Faria parece-me designar, antes de mais, um princípio compreensivo da natureza das

coisas, o da apreensão do seu sentido íntimo. Esta explicação não deve, pois,

significar a tradução ou transversão demonstrável de um objecto a ser conhecido –

uma vez que a relação básica aqui subjacente é a do conhecimento. E nisto creio

aproximarmo-nos do que Luís Adriano Carlos afirma, ao dizer que

Sob o peso do motivo da explicação no Livro de Daniel, o profeta, penso que nele está depositada a matriz condutora do livro de Daniel, o poeta […] tal como o profeta, o poeta explica os enigmas através de novos enigmas. (Carlos)

Esta deve ser a mecânica processual a perspectivar na poética fariana: a de que um

enigma pode equivaler, não à sua explicação pura e simples, mas apenas a um novo

enigma. Do mesmo modo, é digna de ser sublinhada a aposição que se faz do poeta

ao profeta, com base num jogo de homonímia autoral (o poeta Daniel Faria e o

profeta que dá o nome ao livro veterotestamentário de Daniel) que se estende

também ao exercício do discurso verbal que irmana poesia e profecia, ainda na linha

boccacciana que encontra na poesia uma forma de teologia.209 Atente-se, ainda,

como Adriano Carlos indicia o rasto da matriz literária por meio da qual nos chega a

poesia de Daniel Faria, nela sublinhando o ascendente de uma componente

teológica, reificada na palavra do texto bíblico, como acrescenta ainda o ensaísta

num outro momento da sua reflexão:

208 Remeto neste ponto para Andre Lacks e Ada Neschke (eds.). 2008. La Naissance du paradigme herméneutique. De Kant et Schleiermacher à Dilthey. Villeneuve d‟Ascq: Presses Universitaires du Septentrion. 209 Em aplicação contextual à poesia de Dante. Neste sentido, remeto para o ponto 2.5 desta tese.

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Embora não isenta de referências à cultura greco-latina, esta poesia é intimamente tocada pelo texto bíblico, quer no tom de algumas composições de feição versicular, quer na glosa de episódios morais da Sagrada Escritura. (Carlos)

A transmutação da dimensão profética na dimensão poética da palavra ocorre como

cadinho modalizador do que aqui deve entender-se pela explicação fariana, dobra

modalizante de um saber sem fronteiras, precisamente porque direccionado para

horizonte ontológico das coisas – aquele perante o qual o poeta equaciona, como

afirma José Ricardo Nunes, “constantemente conhecimento e desconhecimento,

sabedoria e ignorância” (2002:22). O terreno da Escritura, código referencial, a que

Adriano Carlos se referia, provê-lhe assim a margem de consciência que faz distar o

esforço humano desse cúmulo nimbado que é Deus e, do que dele, não obstante a

sua luz, sempre permanecerá na sombra.

3.2.4. O poeta e a unção

Se a homonímia autoral parece constituir, como afirma Adriano Carlos,

um dos paradigmas ilustrativos das tensões poéticas de Daniel Faria, deve ainda

acrescentar-se que a sua matização profética não se esgota na afinidade para com o

livro bíblico de Daniel. Este constituiria a primeira efígie de um leque de nomes

proféticos que, por meio da sua palavra humana, se colocaram ao serviço de uma

palavra superior que até eles descera. Palavra catabática, a inspiração divina do

poema transfere-se para o sujeito poético, em operação simbólica de consagração

por contiguidade com nomes como, por exemplo, o de Jonas:

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Há uma palavra pessoa […] Só posso viver cabendo nela Habito-a Como Jonas o grande peixe […] Traz-me do nada para o silêncio […] sustenta-me Como o jejum alimentando Nínive210

A descida aos abismos da palavra torna-se aqui evidente, tida como forma de

habitação, de um viver por dentro (reforçado no gerúndio explicativo “cabendo

nela”). A figura bíblica de Jonas concede ao quadro o dramatismo da condenação de

Nínive, cidade pecadora sob a qual pairava o anátema da destruição e cuja salvação

foi provida pelo ventre do “grande peixe” providencial, capaz de trazer Jonas ao

cumprimento da missão de que fora divinamente incumbido, operando a travessia

que vai “do nada para o silêncio” que aqui concretiza as duas substâncias do

universo: o ser e o não-ser (no que o silêncio místico se equipara ao potencial

genesíaco da criação, como o paradoxo do poema, segundo o qual o “jejum

alimenta”). É interessante notar como Jonas, dividido entre a sua comissão e a

fraqueza da sua humanidade, se torna paradigma da fragmentação do sujeito e do

naufrágio ontológico. Do mesmo modo, os paralelismos entre palavra e silêncio,

salvação e destruição (de Nínive como do próprio Jonas – herói e anti-herói de si

mesmo, sublinhe-se), servem aqui de correlativos de um estilhaçamento do ser para

o qual apenas a palavra profética provê superação, através do paradoxo substantivo

da “palavra pessoa”. Dizê-lo nesta formulação é remeter para a terminologia

cristológica, no seio da qual Cristo é o verbo ou a palavra (se seguirmos na linha do

evangelho de João e subsequentes leituras apocalípticas). A poesia seria então, a esta

210 «Há uma palavra pessoa», Homens que são como lugares mal situados (2006:188).

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luz, uma forma de apostolado, como o de viver em Cristo, ou habitá-lo nesse

simulacro do “grande peixe”, também ele semantizado como sìmbolo espiritual de

Cristo, na tradição de resistência cristã para a qual o peixe constituía alusão oculta e

anagramática.211 A permanência de Jonas no sepulcro sagrado do ventre desse peixe

pelo período simbólico de três dias vem completar a correspondência tipológica,

selada com a morte de Cristo e sua subsequente ressurreição, com a figura do poeta-

vigário.

À semelhança de Jonas, a resistência ao chamamento divino converte-se

no “silêncio” que sustenta o poeta por meio do rapto transcendental, seja na forma

de uma baleia (reminiscência leviatânica que actualiza o sentido das teodiceias

bíblicas, como é o caso no livro de Job) ou do arrebatamento de Elias, figura dos

livros bíblicos de Reis e de Crónicas também convocada na poesia de Daniel Faria.

Este é o dia transformado Pelo modo como apoio este dia no chão Coloco-o na posição humilde dos meus joelhos na terra Abro-o com os olhos que retiro de todas as coisas quando fixo […] Cresço na clareira de um homem que é uma palavra Na sua túnica inteira Porque este é o sìtio do dia sem horário […] E ponho-me de frente no seu lado Nos seus braços abertos para me unir E entro pelo lado aberto e ardo – como Elias Em chamas subindo para o céu212

A genuflexão poética “dos joelhos na terra” oferece aqui o mote para a mitificação

parusiana da vinda de Cristo nesse “dia sem horário”, que claramente convoca, entre

211 Remeto para Tratado sobre o baptismo I, de Tertuliano. Veja-se ainda Frye sobre o assunto: “the identification of Jesus with a fish as been traditionally assisted by an acronym: the initial letters of «Jesus Christ, Son of God, Savior» in Greek spell out the word ichtys, fish” (1983:192). 212 «Este é o dia novo», Homens que são como lugares mal situados (2006:189).

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outras passagens sinópticas, o intertexto evangélico de Mateus 24:36: “Quanto

àquele dia e àquela hora, ninguém sabe nada”. A aparição do divino vem remeter-

nos para a esfera da teofania, a da revelação profética de Deus a Elias no monte

Carmelo – onde fora San Juan de la Cruz encontrar o motivo poético da união

mística da alma com o transcendente (cf. Subida al monte Carmelo). Profeta percursor

do Cristo, tipologizado na vinda de João Baptista (Lucas 1:17), o poeta encontra em

Elias o motivo transfigurador213 da sua ascese (também no sentido da epifania

crìstica no “alto monte”, tal como narrada em Mateus 17:1-9, Marcos 9:2-10 e Lucas

9:28-36), aquela que lhe permitirá o movimento vertical de “[crescer] na clareira de

um homem que é uma palavra”. Assim se processa um mecanismo de

consubstanciação poética em que, pela figura de Elias “em chamas subindo para o

céu” (em evidente alusão à passagem bìblica de 2Reis 2:11-12), o poeta opera a sua

coincidência com Cristo, transfigurando-se, no esforço de uma união mística

processualizada em termos afins dos da teologia areopagítica.

A retórica do amplexo unitivo, por meio da qual o poeta busca a fusão

“nos seus braços abertos” (horizonte e caminho da via crucis), vai mais longe, ao

ponto de sugerir o episódio do sacrifício crístico – o da expiação do pecado

humano. É então ao momento da crucificação que vai o poeta buscar o ensejo de

entrar “pelo lado aberto” que poderia ser o do flanco de Cristo traspassado pela

lança do soldado romano (João 19:34), encenando em si mesmo a transmutação da

condição humana, ali remida da queda original, qual poeta (do) divino. Em outra

213 A este respeito, Frye observa que “transfiguration, unlike the Resurrection, is a mountain-top epiphany […] it takes place on a height that suggests the summit of the order of nature [and] represents the identity of the Word as the Bible. Jesus appears in the Transfiguration with Moses and Elijah, the law and the prophets, the major components of scripture” (1990:184).

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passagem do mesmo livro, Homens que são como lugares mal situados, é possível

encontrar poema de temática afim, cuja tónica incide especialmente no símbolo

místico da cruz e da rosa, em intersecção dos planos horizontal e vertical (atente-se

no cruzamento da coluna com os braços abertos):

Cruz, rosa Dos ventos sem direcção que não seja o centro. Coluna Sustentada pelos braços como um amigo que chega. Rosa De orvalho e sangue para o corpo trespassado de sede. Árvore Em silêncio onde escutamos a palavra Em carne viva. Verbo Tão inteiro que se fez espelho214

A insistência no processo retórico de transporte topicaliza, no final de cada verso, o

sujeito do verso seguinte e coloca em evidência os substantivos “rosa”, “coluna”,

“árvore” e “verbo”. Todos e cada um destes substantivos apontam no mesmo

sentido, o de uma representação alegorizante da pessoa do Cristo em agonia,

exemplo clássico de hipostasia entre o divino e o humano (representada no

assìndeto “cruz, rosa”), as suas duas naturezas.

Enquanto “corpo trespassado” e “carne viva”, parece nele realçada uma

dimensão demasiado terrena, mas ainda assim capaz de ser “espelho”. Se, por um

lado, Cristo é aquele por meio do qual se dá a ver o Pai (João 14:9), o verbo-deus (João

1:1-3); por outro, a sua condição especular estende-se aqui ao domínio do humano,

o da palavra dada aos homens, feita homem. Ora, esta não pode deixar de ser uma

formulação que espelha a natureza do poeta (seu duplo ou protótipo), mimetização

do Cristo e ente profético sobre o qual recai a escolha divina – de que Jonas, Elias

214 «Cruz, rosa», Homens que são como lugares mal situados (2006:191).

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ou mesmo Daniel se dão como paradigma. A coincidentia personae não se processa aqui

por mera contiguidade, sendo que este é um efeito recorrente assumidamente

procurado e estatuído em pilar de sentido na poética fariana. O tópico da imitatio

christi, cuja teorização moralizante faz de Thomas de Kempis outra das referências

maiores do pensamento místico, parece encontrar aqui eco favorável, ao sugerir a

aproximação parcelar ao modelo crístico até ao ponto do fusionismo ontológico,

pela incorporação do ideal Christus in me (Grant 1983:109), que se busca também no

seguinte poema:

Há uma voz que bebo. Há um espaço entre as mãos mas não perco A sede. A água multiplica-se porque a tiro do coração Que escuta. Há um espaço no corpo que pode ser um lugar. À sombra posso olhá-lo até o ver Posso tocar as chagas no corpo E posso beber dele morrendo Nele como quem entra de tanto O desejar.215

Motivos literários como os da sede e da voz são claramente indexáveis às passagens

evangélicas da água da vida e do pastor que convoca o seu rebanho, que se

concretizam no postulado messiânico da redenção humana. Nesse corpo que se dá a

tocar e a beber encontra-se a possibilidade de confluência unitiva, de que o verbo

“desejar” (acompanhado de um movimento de penetração e de morte, “entra”,

“morrendo”) é expressão representativa – aqui introduzindo um anotamento

subliminar de erotismo que subjaz à retórica mística, a que não é de modo nenhum

215 «É por isso que adormeço numa luz em movimento», Homens que são como lugares mal situados (2006:133).

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estranho o fervor da possessão,216 a propósito do qual se poderia falar de uma

mística epitalâmica (cf. Rougemont 1989:137-144).

A condição ungida do poeta, na sua vertente profética ou mesmo

cristológica, que aqui acompanhamos, parece alcançar o ponto máximo de

consagração num dos poemas mais significativos de Homens que são como lugares mal

situados, em «Para encontrar o golpe no sono», onde se explora a imagologia

cataclísmica que convoca a atmosfera e as personagens do Apocalipse (o profeta, a

mulher):

Acordei com as narinas a sangrar um perfume Como um santo quando acaba de morrer E debrucei-me para dentro Para encontrar o golpe no sono. Encontrei uma mulher sentada entre os pássaros Que quebrava vasilhas de barro. Disse-lhe: bebe do meu sangue. E ela rasgou-me as veias com os cacos E deu de beber aos pássaros.217

Se, no poema a que aludi imediatamente antes, era dado ao poeta beber desse corpo

crístico, morrendo, agora é o próprio poeta que se dá por meio da sua morte, depois

de ter bebido do sangue remissor e de nele ter fundido a sua presença – como supõe

a encenação do gesto trans-fusivo da transubstanciação, questão que julgo ter

216 Veja-se, a este propósito, o poema em que o beber do sangue e o desejo unitivo, de coloração sexual, com Cristo e a escrita se cruzam como figuras da criação poética: “Eu que também me embriago / No sangue // Planta tão aconchegada aos lábios – e desde sempre a derramar-se / O verbo. Desejo o útero de tudo, tento / Gerar / Muito mais do que a oliveira fecunda […] O verbo de carne […] Quero aproximar-me / A boca de uma escrita. E não sei onde” (2006:273). Esta via interpretativa entronca na linha exegética de Orìgenes que desenvolveu, como sustenta Grant, “a theory of spiritual senses, and in a commentary of Song of Songs instituted a tradition […] which described the highest knowledge as a bridal consummation” (1983:133). 217 «Acordei com as narinas a sangrar um perfume», Homens que são como lugares mal situados (2006:141).

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cabimento. Herdeiro do alo místico de um messianismo poético, este sujeito vê

operar-se nele a transferência simbólica que lhe permite, depois de ter bebido do

sangue, dar a beber do seu sangue – a verdadeira “água da vida”, por inferência

quiasmática (os dois outros termos são Cristo e o poeta), do poema «É por isso que

adormeço numa luz em movimento».

A referência aos “vasos de barro” contém em si uma alusão ao discurso de

Paulo (2Coríntios 4:7), segundo o qual a fragilidade humana é comparável a uma

vasilha onde está guardado o tesouro da vida, dádiva divina. É precisamente essa

dávida que se coloca aqui em destaque por meio da antítese entre a vida e a morte

(bem como do paradoxo que entre eles se estabelece “acordei […] como um santo

quando acaba de morrer”) e da derivação catacrética da expressão “sangrar um

perfume”. Ao considerar-se a dimensão etimológica latina de per-fumum, ressalta a

componente sacrificial do vocábulo, que recoloca o perfume no contexto da

oferenda religiosa consagrada por meio do fogo e do fumo, consubstanciando uma

forma de elevação até ao divino. É, pois, na derivação imprópria da palavra

“perfume” que se actualiza a dimensão metafórica do sangue derramado em

sacrifício por Cristo, aqui presentificado na encenação da morte do poeta. O olor

místico da santidade (cuja ocorrência nos romances do ciclo arturiano representava

a presença espiritual desse vaso,218 também ele sagrado, que é o Graal, cálice do

sangue recolhido aos pés da cruz) propicia assim a matéria por meio da qual é dado

218 No seu livro Dos líquidos, Daniel Faria reflecte sobre a natureza desse sangue (num dos capítulos dessa obra significativamente intitulado «Do Inesgotável»), fazendo da voz poética simultaneamente o sujeito e o objecto desse mesmo cálice, dele o produto e o resgate: “Amo-te como um planeta em rotação difusa / E quero parar como o servo colado ao chão. / Frágil cerâmica de poros soprados no teu hálito / Vasilha que ergues em tua mão de oleiro / Cálice que não pudeste afastar de ti” (2006:239).

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à mulher (cuja identidade ambígua vive da indexação oblíqua quer à figura da

samaritana quer à da mulher do Apocalipse) matar a sua sede: “bebe do meu

sangue”. Pura aventura do espìrito, o poeta percorre o percurso dessa demanda que

de apóstolo o transformou em Cristo219 e o guindou à dimensão plena e celestial dos

“pássaros”, completando-se num movimento passível de descrição ascensional e

feito, por isso mesmo, tanto de ascese como de Ascensão.220

3.2.5. Eixo do mundo

Formulação da totalidade dinâmica do mundo, o arquétipo do axis mundi

condensa em si mesmo a imagética da estratificação comunicativa entre as suas

várias dimensões numa tensão vectorial de orientação verticalizante. Linha essencial

do mapa do universo ou, como quer Frye, “a vertical line running from the top to

the bottom of the cosmos” (1990:151), este é o eixo mìtico de cuja demarcação está

dependente a localização do centro do mundo, o ônfalo do ser de todas as coisas,

em cujas extremidades a poética fariana encontra Deus:

Estás sobre nós mais alto do que as montanhas quando lhes [tocam os astros E mais fundo de nós Como um pai que gerou antepassados221

219 Tópico clássico da absorção do eu na identificação com o divino: “l‟êxtase est la faiblesse de l‟être imparfaitement transformé en Dieu” (Renault 2007:110). 220 Subida de Cristo aos céus, como narrado em Actos dos Apóstolos 1:9-12, prefigurada na narrativa de Elias, já mencionada neste capítulo. 221 «As nossas cabeças são como as ameias que vigiam», Dos Líquidos (2006:258).

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Em si se conjugam os fundamentos do cosmos, os alicerces que o sustentam

(“fundo de nós”) e o erigem até à cúpula do empíreo (“tocam os astros”), uma vez

que segundo Mircea Eliade, “o inferno, o centro da terra e a porta do céu [se

encontram] no mesmo eixo, e é esse eixo que serve de passagem de uma região

cósmica para outra” (2000:27). Enquanto conjunção de terra e de céu, este pilar

propicia a união do telúrico e do urânico, sendo ponte entre ambas as plataformas

elementais e amalgamando as valências de princípio e de fim, vida e morte ou, em

clave de macroestrutura bíblica, génesis e apocalipse. Este topos encarna, por

excelência, a figura do oximoron, o da cointidentia oppositorium, sua confluência de

absurdo (a da impossibilia do paradoxo) e superação lógica (por transmutação

aristotélica de um terceiro incluido, um tertium quid) – a essência da travessia.

A poesia de Daniel Faria encontra aqui uma das suas isotopias

paradigmáticas, ao povoar o seu horizonte de muitas manifestações possíveis deste

arquétipo, que encontra nas árvores, nas montanhas, nas torres e nas escadas alguns

dos seus principais correlativos metafóricos. Uma passagem disso mesmo

representativa é o seguinte poema de Explicação das árvores, todo ele pontuado de

referências ao texto bíblico do Génesis, cuja importância neste contexto será em

seguida detidamente examinada:

Devo ser o último degrau na escada de Jacob E o último sonho nele Devo ser a última dor no quadril […] Devo ser o chão que me recebe E a árvore que me planta. Em silêncio e devagar no escuro Devo ser a espera. Devo ser o sal

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Voltado para trás222

Desde a escada do sonho de Jacob, passando pela “árvore” primordial do Éden e

até à estátua ou coluna de “sal” (da narrativa que conta a destruição de Sodoma e

Gomorra), este poema oferece-se como síntese de um mesmo pólo de condensação

simbólica – a do axis mundi, a que Gilbert Durand se referia como “résumé

cosmique et cosmos verticalisé” (1980:393). Assinale-se que a ocorrência de tais

motivos não é episódica mas recorrente na poética fariana,223 pelo que deve

salientar-se a importância da narrativa bíblica de Jacob (extremamente relevante

enquanto ponto de confluência e de releitura de outros motivos genesíacos) na

qualidade de mapa hipotextual nela actuante.

Em reactualização da figura do herói catabático, cuja viagem empreende

até às ínferas regiões do mundo. Num espectro que vai do épico ao bíblico, o sujeito

poético encarna (“devo ser”) o ethos de um Ulisses, um Eneias ou, em escala bíblica,

de um Jacob, descendo desde o “último degrau” da escada até ao “chão que [o]

recebe”, plantando-se como árvore (sugestão do potencial depoente do verbo) no

“escuro” da terra, voltado “para trás”,224 descendo cada vez mais na sua demanda

identitária (pela anáfora prescritiva “devo ser”). Este é um exemplo acabado daquilo

que Northrop Frye, referindo-se à metáfora vertical do axis mundi, designava como

“journey of consciousness to higher and lower worlds”, sendo que “images of

222 «Devo ser o último tempo», Explicação das árvores e de outros animais (2006:38). 223 Veja-se, por exemplo, um poema como “Neste lugar transitório mantém-me mendigo […] Deixa-me ser a porta no eixo […] Quero ser o degrau” (2006:305). 224 Relativamente ao tema do Purgatório em Dante, claramente outra formulação do axis mundi (pela ligação entre o céu e a terra e por ser representado como montanha, contendo ainda uma alusão à escada de Jacob no seu sétimo cìrculo), Frye chama a atenção apara o facto de que “the purgatorial theme in Dante also includes the image of moving from death back to birth again, as Dante is traveling toward the place of his original birth as a child of an unfallen Adam” (1990:161).

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ascent are conected with the intensifying of counsciouness, and images of descent

[…] by other forms of awareness, such as fantasy or dream” (1990:95, 151). E, não

por acaso, o episódio central que aqui nos ocupa desenrola-se em torno desses dois

vectores – o identitário e o onírico – nos padrões da consciência.

O sonho de Jacob desempenha neste contexto a função necessária de

enquadramento matricial à luz do qual os motivos do degrau e da escada fariana se

recolocam num outro patamar de significação. No episódio narrado no capítulo 28

do livro de Génesis, conta-se que a fuga da casa paterna (após o roubo do direito de

primogenitura que cabia a Esaú) em direcção a Haram – onde Jacob deveria

procurar noiva, de acordo com as indicações de Isaac, seu pai. A noite surpreende-o

no caminho, pelo que decide pernoitar “em determinado lugar” (Gen. 28:11), tendo

por único recosto “uma das pedras do lugar”. Proscrito, numa terra sem nome e no

meio do seu sono, a revelação teofânica ocorre para Jacob no ponto da sua maior

vulnerabilidade:

Teve um sonho: viu uma escada apoiada na terra, cuja extremidade tocava céu; e, ao longo desta escada, subiam e desciam os mensageiros de Deus. Por cima dela, estava o Senhor que disse a Jacob: “Eu sou o Senhor, o Deus de Abrãao, teu pai, e o Deus de Isaac. Esta terra, na qual te deitaste, dar-ta-ei, assim como à tua posteridade. A tua posteridade será tão numerosa como o pó da terra; estender-te-ás para o ocidente, para o oriente, para o norte e para o sul, e todas as famílias da terra serão abençoadas em ti e na tua descendência. Eu estou contigo e proteger-te-ei para onde quer que vás, e reconduzir-te-ei a esta terra, pois não te abandonarei antes de fazer o que te prometi. (Gen.28:12-15)

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Formando um díptico com o capítulo 32, o do regresso a casa, este capítulo fornece

a moldura para o inteiro ciclo de Jacob225 – no que prossigo a senda de Gunkel e de

Brueggemann (2010:241). No excerto central que aqui se destaca, dois são os

momentos dignos de menção, correspondendo cada um deles a duas fases distintas

da história do texto (como lembra von Rad226): um primeiro em que consiste a

matéria onírica da escada hierofânica e um segundo de que consta a revelação por

meio do discurso divino, em reforço da promessa que havia sido feita aos patriarcas,

Abraão e Isaac, antes de Jacob.227 Tal como nesses episódios, o protagonista sofre

uma renomeação essencial, que deverá ser lida à luz do pacto estabelecido com

Deus e da promessa de disseminação da prole (Abrão/Abraão, Isac/Isaac,

Jacob/Israel).

A escada que é dado a Jacob contemplar no seu sonho comunga do

simbolismo da verticalidade e é uma ponte de contacto entre o céu e a terra, de

onde provêm emanações da presença e da vontade divinas, descendo até ele. Por

outro lado, o discurso teofânico sugere um outro movimento, em sentido

horizontal, rente “ao pó da terra”, desenhando um raio que vai de “Oriente a

Ocidente” e de “Norte a Sul”, numa irradiação de eixos perpendiculares que, por via

do seu merismo, descrevem a totalidade do mundo. A presença da escada permite-

nos aferir que não se trata, portanto, de uma mera aparição localizada, mas de uma

225 Para um comentário adicional a esta matéria, reenvio para um outro momento desta tese, o do subcapítulo 3.1.4, no contexto da análise à poesia de Ruy Belo. 226 “The dream is a masterful combination of originally two nocturnal revelations, namely, the ladder to heaven (v.12) and the Yahweh manifestation (vs.13 ff.), a combination no longer perceptible to the unschooled reader of the Bible” (Rad 1961:278-279). Na base desta diferença é provável que esteja a proveniência diversa dos materiais, bem como a sua posterior ordenação pelo redactor final. Sobre estas questões remeto para a leitura actualizada de Friedman, Who wrote the Bible (1995), e para o volume seminal de Wellhausen, Prolegomena to the History of Ancient Israel (1885). 227 Génesis 12:7, 28:13.

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epifania de repercussões cósmicas, cuja concretização máxima se plasma na

perpendicularização dos eixos horizontal e vertical – esta escada é um sustentáculo

da arquitectura do mundo.

A esta revelação do divino, responde Jacob com a elevação de um pilar

(posteriormente reconfirmado com a elevação de um altar que ocorre em Génesis

35:1). Este é mesmo que, quando na horizontal, lhe havia servido de almofada –,

qual correlativo terreal da escada epifânica, numa troca de funções que, pela

renomeação dos objectos, vai no sentido da progressiva substituição onomasiológica

verificada em momentos vários, como o da passagem de “lugar vazio” a “Betel”,

“Jabbok” a “Penuel”, “Jacob” a “Israel”.228 Se, como afirma Northrop Frye, “the

ladder of the dream was a ladder from heaven rather than into it, it was not a human

construction but an image of the divine will to reach man”, então, por sua vez, “the

altar is also na image of a connection between earth and heaven, but one that

subordinates the human side of the connection” (1990:152).

Este episódio convoca, bem ao gosto da circularidade bíblica e suas rimas

internas, um outro parente figurativo da escada, ao recolocar as fronteiras do

humano e do divino numa polaridade demónica ou reverso paródico do que aqui

podemos encontrar – refiro-me a esse outro correlativo do arquétipo do axis mundi

que é a torre de Babel, cujo episódio (em articulação com o de Jacob) é fortemente

convocado no seguinte poema de Faria:

Nem o sonho era maior do que essa torre […] Nada era maior do que essa escada De degraus e degraus até às hastes […]

228 Cf. Génesis 28:11, 19; 32:22, 30; 32:28.

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E de lá os poetas avistaram Um deus terrível magoado Espetar um punhal sobre a muralha Nada era maior do que essa escada Nem o sonho era maior do que essa torre229

O eixo incomparável, que a torre e a escada a um tempo contituem, prolonga a

verticalidade potencialmente infinita que une o céu e a terra (veja-se a circularidade

que enforma o poema, pela repetição dos dois versos no fim). Este percurso

congrega a subida de todos os “degraus” ou “hastes”, sendo que a escada e a árvore

se equivalem como formulações possíveis do mesmo eixo. Esse é o ponto de onde é

dado aos “poetas” avistar o “terrìvel deus magoado”. O efeito que daqui resulta é o

de colocação significativa do poeta (herói anabático) como o ente mais próximo do

divino, que recupera a concepção platónica da inspiração poética.230 A esta aventura

de linguagem nenhuma coisa se oferece como ponto de comparação, “nada [...] nem

o sonho”. Não se trata já da figura intermediária da revelação onírica: o ideal de

feição mística requer o contacto húbrico do humano com o divino, a penetração de

um pelo outro: o “punhal que espeta” fornece a representação da descida vertical à

terra pela via do mesmo eixo de ascensão.

Erigida aos céus, num ímpeto de rebeldia humana, com o fito de

conseguir um nome para os seus construtores, a torre do capítulo 11 do livro de

Génesis descreve o mesmo eixo do sonho de Jacob, embora em sentido inverso: se

a escada traz do alto até à terra (plano vertical) a promessa divina de espalhar a

descedência de Jacob pelo mundo (plano horizontal), a torre estaria a ser construída

229 «Onde o ontem podia ser hoje», Das Madrugadas (2006:351). 230 Cf. ponto 2.1 desta tese.

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com o objectivo inverso ao do mandamento edénico (espalhar-se pela terra, Génesis

1:28), aspirando à congregação da comunidade humana numa estrutura que, à

semelhança de uma escada, lhes permitisse tocar o céu – em clara transgressão de

fronteiras entre o humano e o divino que, ao invés do altar de Jacob (o que lhe vale

o nome de Israel em Génesis 32:28), não se estabelecia no âmbito de um pacto

religioso.231

Díptico da torre de Babel em negativo, o episódio da escada de Jacob

situa-se em coordenadas afins. Não apenas pelo facto de se situarem a “Este”232,

como também pelo parentesco etimológico: conhecendo-se embora a etiologia de

babel, que faz derivar do episódio da dispersão das lìnguas (espécie de “punhal

sobre a muralha”, forma de interferência fálica do divino) toda a sua semântica de

caos e confusão (com correspondente hebraico em balal),233 não pode ser obviada a

raiz acádica babilim, que acabaria por derivar em Babilónia e significaria

aproximadamente „porta do céu‟ ou „portal da divindade‟ (cf. Metzger e Coogan

1993:70-71). Ora, é precisamente neste âmbito que se situa a designação que Jacob

utiliza, ao acordar do seu sono:

Despertando do sono, Jacob exclamou: “O Senhor está realmente neste lugar e eu não o sabia.” Atemorizado, acrescentou: “Que terrìvel é este lugar! Aqui é a casa de Deus e a porta do céu.” No dia seguinte de manhã, Jacob agarrou na

231 “Depois disseram: «Vamos construir uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus. Assim, havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfìcie da terra»” (Génesis 11:4). 232 Ou seja, na zona referenciával como Babilónia. Este é o sentido oposto ao de Abraão enveredando pelo caminho da Terra Prometida, Canaã, forma possível de regressar ao Éden. Este é ainda direcção mais referida no ciclo da Primeval History, no que a narrativa progride no sentido de uma progressiva degeneração (leitura da história de Israel como falhanço, de acordo com fonte J). 233 O que, por sua vez, encontrará a devida resposta ou anti-tipo no episódio do Pentecostes, com a descida das línguas de fogo, tal como narrado no livro de Actos dos apóstolos (2:1-4).

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pedra que lhe servira de travesseiro e, depois de a erguer como um monumento, derramou óleo sobre ela. Chamou a esse sítio Betel, quando, originariamente, a cidade se chamava Luz. (Génesis 28:17-19)

Se a consagração da pedra desempenha aqui a função de contrapeso da torre de

Babel erguida aos céus em desafio, já que são ambas figurações equivalentes (ainda

que com repercussões diversas) de uma mesma manifestação teofânica, a nomeação

de Betel faz deste um momento liminar, comparável ao da travessia do mar

vermelho por Moisés,234 por razões que espero ter deixado claras num outro

momento desta tese – atente-se nos motivos da luta fraterna, o do reconhecimento

da identidade, a travessia da fronteira ou a reencenação literária da Criação.235

Betel é, assim, casa e pedra: um centro do mundo, como postula Eliade.

Porém Babel, ainda que porta do céu, é o lugar da habitação impossível, o lugar da

infinita dispersão. Marca da pura ambivalência, o temor de Jacob (o pavor sacer de

que falava Otto) perante a manifestação do sagrado neste lugar dúplice encontra

tanto na torre como na escada uma forma ambígua de chegar ao céu e de, através

234 Alusão evidente num dos poemas de Daniel Faria: “Posso abrir trilhos no fogo: sei o ritmo da mão exacta / Que fez o povo passar enxuto o interior da água” (2006:40). 235 Relativamente a este aspecto, remeto muito particularmente para o subcapítulo 3.1.4, dedicado à poesia de Ruy Belo. Ainda sobre o caso de Jacob: antes de defrontar o anjo sombrio e incógnito, de cuja contenda resultará a alteração do nome de Jacob para Israel, este terá de atravessar o rio Jabok na companhia da sua família. Depois de retomar os laços de amizade com o seu irmão, dirigir-se-á a Betel, onde se havia asilado quando em fuga da ira de Esaú: “Jacob chegou, com todos o que o acompanhavam, a Luz, ou seja Betel, que está na terra de Canaã. Construiu um altar e chegou a esse lugar El-Betel, porque fora ali que Senhor Deus lhe aparecera, quando fugia por causa de seu irmão” (Génesis 35:6-7). Devo ainda acrescentar a recriação do episódio da luta entre Jacob e o anjo num dos poemas de Daniel Faria, que incorpora o motivo do recuo da estátua de sal, como segue: “Uma espécie de anjo ferido na raiz […] Não havia luz diurna nem silêncio que o fizessem avançar. O poema / Recuava como se o anjo o perseguisse / Juro que vi o anjo / E recuei. E vi que estava mutilado / Como um homem situado sem lugar” (2006:177).

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dele, se espalhar por toda a terra236 (em reivenção do gesto babélico, num

movimento que se estende do caos ao cosmos). O aspecto da fundação ritual, dar

nomes aos sítios onde encontra Deus, torna-se aqui decisivo como factor de

reconhecimento humano na travessia do mundo: o homo viator, ser em trânsito e

peregrino do mundo, no cumprimento do percurso com vista não apenas a chegar a

casa, mas a fazer desse mundo de viagem a sua verdadeira habitação – qual “homem

situado sem lugar”.237

3.2.6. Em torno do centro: pedras, escadas, árvores, casas

Em O Mito do eterno retorno, Mircea Eliade explora a memória humana das

imagens arquetípicas constitutivas do modo como o Homem interpreta o mundo,

nas suas mais variadas manifestações fenomenológicas, e a realidade, cujo sentido

estaria dependente da atribuição semântica feita pelo reconhecimento da repetição

de tais arquétipos. Uma dessas imagens fortes é precisamente a do centro. Este

seria, pois, “a zona do sagrado por excelência, da realidade absoluta” (2000:32).

Transpondo estas noções de Eliade para a poesia de Daniel Faria, em nada se perde

essa mesma valência do sagrado, tanto nos termos genéricos da sua imagologia

poética, como na vertente mais concreta de que se dá como exemplo o seu livro Se

236 Um dos seus equivalentes demónicos, na lógica da contra-resposta bíblica, seria o da maldição de Caim, como observa Frye: “Cain introduces the contrasting image of human life as an exile, and the exile, who can go everywhere except home, becomes intensified in the post-Biblical Jewish dispersion, symbolized in legend by the story of the Wandering Jew” (1990:185). 237 «Existia, no entanto, um poema a recuar», Homens que são como lugares mal situados (2006:177).

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fores pelo centro de ti mesmo, todo ele construido em torno de um mesmo centro bíblico,

que se centraliza aqui enquanto eixo basilar de estruturação poética da sacralidade.

Acumulando referências das mais diversas origens bíblicas, que se

oferecem como formas de enquadramento da leitura, há a registar toda uma

disseminação de motivos que, embora passíveis de comportar conotações outras (às

quais se abrem com proveito da sua riqueza literária), assinalam a presença

subliminar de uma textualidade bíblica que não se esgota enquanto fonte de

inseminação deste campo poético. A escada, a árvore ou a casa são alguns dos mais

representativos ícones de entre essa mesma cadeia de produção imaginante. A partir

de cada um deles é possível endereçar algumas das linhas que têm vindo a ser aqui

ser objecto de atenção crítica, já que em cada um se condensam modalidades de

aproximação ao sagrado que recolocam a importância da poesia como interlocutor

privilegiado de questões que fazem distar, ou não, humano e divino. Uma figuração

possível da abrangência dessa palavra poética é, conservemo-la como paradigma, a

do “pão”:

Ando um pouco acima do chão […] Estou ligeiramente acima do que morre Nessa encosta onde a palavra é como o pão […] Ando ligeiramente acima do que digo E verto o sangue para dentro das palavras Ando um pouco acima da transfusão do poema Ando humildemente nos arredores do verbo Passageiro num degrau invisível sobre a terra Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores No meio dos incêndios Estou um pouco no interior do que arde Apagando-me devagar e tendo sede Porque ando acima da força a saciar quem vive

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E esmago o coração para o que desce sobre mim238

A par de figurações como as da árvore, do fruto, do fogo e do degrau, o “pão”

consagra aqui a dimensão verbal do alimento do espírito239 (colocado em posição

ascendente na “encosta” do que se supõe ser a montanha primordial escalada pelo

poeta), remetendo significativamente para a passagem evangélica em que se diz

“nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”240 e

que encontra repercussão afim em momentos como o episódio da Última Ceia

(Mateus 26:26) ou aquele outro em que Jesus afirma “Eu sou o pão da vida. Quem

vem a mim não mais terá fome, e quem crê em mim jamais terá sede” (João 6:35).

Situado que está no ponto de confluência entre o divino e o humano, o poeta pode

dizer-se “passageiro num degrau invisìvel sobre a terra”. Ressurge aqui a figura do

poeta-Cristo, uma vez mais, por via das iterações adverbiais “um pouco acima”,

“ligeiramente acima” e pela progressiva associação ao verbo, cujo locativo

ablativizante se transfere dos “arredores” para “o interior”, num movimento

fusionista entre o verbo poético e o logos divino. A quantificação dess apertença

(“um pouco”, “ligeiramente”) aspectualiza o lugar do humano hipostasiado no

paradigma do poeta crìstico que redime e sacia “quem vive” por meio da transfusão

poética do “sangue para dentro das palavras”.

238 «Ando um pouco acima do chão», Explicação das árvores e de outros animais (2006:39). 239 Passìvel de cotejo com “Dai-me a chama, o inextinguível, dai-me / Para que me aqueça a boca – o pão […] Ó mãe […] dá-me o pão do céu porque morro / Faminto, morro à mìngua do alto” (2006:314-315). 240 Vide Mateus 4:4 que, por sua vez, cita Deuteronómio 8:3, reconhecendo-o textualmente pela fórmula “está escrito”.

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A isotopia da saciedade está, de resto, consignada no corpo do texto, quer

sob a forma de pão quer de vinho – no que a demiurgia do poema é comparável a

um cerimonial eucarístico em que o sangue se transfunde para as palavras,

encenando uma forma de transubstanciação poética. A fecundidade imagológica do

pão241 aproxima-o do elemento da terra, que alcança a sua figuração mais concreta

no referencial da pedra (de lastro herbertiano), aquele sobre o qual Eliade afirmava

revelar-se no seu potencial sagrado porque “a sua própria existência é uma

hierofania: incompreensível, invulnerável, ela [a pedra] é aquilo que o homem não é.

Resiste ao tempo, a sua realidade reveste-se de perenidade” (2000:18). É justamente

esse uma das isotopias poéticas da composição «Anuncio e pereço», cuja

produtividade resulta da simbiose propícia entre os dois termos – pão e pedra242:

Anuncio e pereço. Palavra redonda Removida e Redonda. Semente após morte. Depois da mão do homem. Pão e Pedra Removida e Redonda. Passagem aberta. Lado aberto. Pedra aberta Redonda e Redonda243

241 Co-referente da noção de vida activa, pela sua capacidade de multiplicação, o pão completa-se no símbolo do vinho, relativo à vida contemplativa, pela sua alteração qualitativa (de que o episódio das bodas de Canaã é exemplo). 242 Uma relação similar fora já estabelecida entre os dois vocábulos no texto evangélico: “Quem de vós dá ao filho uma pedra quando ele pede um pão” (Mateus 7:9). 243 «Anuncio e pereço», Explicação das árvores e de outros animais (2006:47).

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Aliando palavra e sacrifício ou, na terminologia do poema, anunciação e morte, aqui

encontramos formas partícipes de uma mesma ideia de redondeza ou circularidade,

que o poema reproduz até de um ponto de vista puramente formal, através de um

sistema de repetições sistemáticas do particìpio “removida” e do adjectivo

“redonda”.

A repetição sincopada de figuras circulares (e também por isso em torno do

centro) surge neste poema específico como complementar ao do eixo de verticalidade

do poema «Ando um pouco acima do chão», reproduzindo por sua vez uma mesma

cadeia em que vida e morte que se sucedem necessariamente com vista a uma

continuidade maior (“ando um pouco acima da força a saciar quem vive / esmago o

coração para o que desce sobre mim”). Apontam nesse sentido as marcas de uma

narrativa plutonizante, de que a imagem da semente que tem de morrer para nascer,

ou do mito subliminar de Perséfone indo e regressando do inferno, não são

aspectos menores. Em clave bíblica, tais referências apontam para o sacrifício

crístico, pelo modo como combinam parábola (Lucas 8:5-15) e ressurreição ou ainda

pelas alusões crìpticas ao “lado aberto”244 e à “pedra removida” – que pode ser

simultaneamente a do túmulo de Cristo (Marcos 16:4) e a pedra angular “que os

construtores rejeitaram”, como sublinha o próprio texto evangélico (Mateus 21:42).

Na verdade, assinale-se com Frye, “Christ is constantly associated with the

miraculous provision of food [...] The body of Christ is not only to be eaten, to be

divided, to be drunk […] but it is the source of the continuity of the life of his

244 Aspecto já referido na secção 3.2.4 deste capítulo.

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people, hidden within their bodies” (1990:257).245 E, neste ponto, regressamos a um

dos aspecto essenciais do poema «Ando um pouco acima do chão»: o de uma

consciência profunda de que o verbo (não apenas o crístico, como neste caso

também o poético, que daquele se soube fazer metonìmia) pode, perecendo, “saciar

quem vive”. É ainda esta mesma ideia de um corpo contìnuo e encapsulado que

encontramos no poema que se segue, de sabor herbertiano (onde se estende o filão

poético de Dante, Drummond e João Cabral de Melo Neto):

A pedra tem a boca dentro do ouvido E para dentro de si mesma sem cessar se diz […] É uma ideia ensimesmada. Uma pedra fechada Pelo lado de dentro246

Forma de absoluta tautologia, esta pedra encerrada na sua totalidade247 torna-se

veículo de reactualização poética de arquétipos vários, que poderão ir desde o altar

de Jacob à “pedra angular” de Cristo (ou à pedra de Heracleia, de extracção

platónica), todos eles símbolos capazes de conjugar as constelações do rito e do

verbo, num percurso semântico de flutuação entre abertura e fechamento,

contracção e expansão (“sem cessar”). Estamos então perante uma forma de

merismo, de substância absoluta, fundamento telúrico do mundo contido num

mesmo pólo aglutinador de antagonismos – oximoro de si mesmo, qual serpente

245 Outros momentos na poesia de Daniel Faria permitem atestar este aspecto, por exemplo o que retoma o episódio da aparição de Cristo aos apóstolos depois da sua morte (tal como narrado em Lucas 24): “Vimos a pedra vazia no interior da terra […] Nunca mais pensámos, dormirias na proa […] Em nossas viagens não amainaria mais, pensámos, e chegar a casa / seria ver multiplicar-se / A nossa fome como o peixe e como o pão // Chegámos a terra porém e esperávas-nos / Os pés furados como conchas sobre a areia / E sentámo-nos em redor para comer” (2006:259). 246 «A pedra tem a boca junto do ouvido», Explicação das árvores e de outros animais (2006:49). 247 Remeto neste ponto para a afirmação de José Ricardo Nunes, segundo o qual “a imagem da pedra, que surge completa, perfeita, fechada em si própria, é uma das mais presentes na poesia do Autor e das que melhor expressa [uma] ideia de totalidade” (2002:24).

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fechada sobre si, princípio e fim de si mesma (pelo adjectivo participial compósito

en/si/mesmada), cristalizando-se como expressão escatológica da autofecundidade e

do eterno retorno. Esta pedra, por sua vez simultaneamente vertical e circular,

sugere-nos ainda a imagem do pacto estabelecido com Jacob em Betel, pela

confluência de eixos, subsumíveis na imagem das árvores dispersas pela poética

fariana.

A expressão da circularidade em Daniel Faria não pode, assim, entender-se

desligada quer da tensão que se estabelece entre o centro e a circunferência quer do

eixo da verticalidade que atravessa o mundo, esse “degrau invisìvel” que se situa

“um pouco acima do chão”, como vimos. Essa é ainda a polarização actuante num

poema como o que se segue:

Os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes Para que a elevação e a profundidade se conjuguem Avanço sem jugo e ando longe De caminhar sobre as águas do céu248

Formulação da força centrípeta, o redemoinho congrega em torno do seu centro

todo o mundo em redor, “as nuvens e os peixes” enquanto expressões diametrais de

um mesmo elemento aquático, fazendo-os confluir nesse ponto nodal em que se

conjugam “elevação e profundidade”. Para esta dimensão reserva o poema o último

dos seus versos, em estrofe isolada, a dimensão em que é possìvel “caminhar sobre

as águas do céu” (ainda que mantendo o seu aspecto de locução prepositiva com o

advérbio “longe”, repare-se como a preposição “de” suspende o mecanismo de

248 «Caminho sem pés e sem sonhos», Explicação das árvores e de outros animais (2006:84).

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transporte, adquirindo o verso uma coloração explicativa ou causal), forma de

levitação aquática que incorpora em si o eco do episódio evangélico da pesca

nocturna e subsequente ventania, em que Cristo surge caminhando sobre as águas

(Mateus 14:24-33). Ritualizando o modelo divino, este sujeito poético encontra aqui

o acesso ao centro – o que, segundo Eliade, corresponderia “a uma consagração, a

uma iniciação; a uma existência ontem profana e ilusória, sucede agora uma nova

existência, real, duradoura e eficaz” (2000:33). É, portanto, a noção de uma nova

dimensão da existência que se joga aqui, equivalente a uma forma de iniciação, de

que a subida do degrau ou a casa consagrada são, uma vez mais, metáforas

extremamente representativas:

Há muitos metros entre um animal que voa E a escada que desço para me sentar no chão Mas basta-me um quadrado de sossego Para a distância absoluta Está para além do que se vê a janela onde me debruço definitivo Não é uma aparição Nem se pode alcançar sem se ir em frente caindo Só no fim da paisagem estou de pé como um paraquedista que desce Suspenso como os santos num arroubo místico Erguido como um anjo em suas asas E sinto-me ser alto como um astro. Nuvem Como se fosse um homem Que levita249

Recorrendo novamente à imagem da levitação, a que corresponde a ideia de

suspensão das leis actuantes num universo da referencialidade comum, o poeta faz-

se representar como ser em trânsito, consignado para subir (“erguido como um

anjo”) e descer (“paraquedista que desce”) a escada humana, que segundo a Oratio

249 «Há muitos metros entre um animal que voa», Homens que são como lugares mal situados (2006:134).

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de Pico de la Mirandola representaria o derradeiro atributo específico do Homem: o

da escolha do camaleão, que lhe permitiria – subindo – simultaneamente distanciar-

se das bestas e equiparar-se aos anjos, propriedade aqui vertida como “animal que

voa” na singular formulação do poema. Ao nìvel das nuvens e dos astros, porém,

este é um sujeito em queda,250 profudamente marcado pela contingência inescapável

da descida, como se portador de um peso que não lhe permitisse elevar-se do chão:

“nem se pode alcançar sem se ir em frente caindo”. Trata-se, enfim, do mesmo

pondus de Pedro, o apóstolo, no episódio já referido de Mateus 14:24-33, que obsta à

caminhada por sobre as águas ao encontro da “aparição” (Mateus 14:26) que o

poema recusa, precisamente porque o aceita, na linha de uma teologia negativa: “não

é uma aparição” – tal como os apóstolos puderam confirmar.251 De algum modo, a

verdade do poema supera a incerteza humana que impregna o episódio evangélico;

o que num é confirmado pela efectiva presença de Cristo, no outro é acto de

reconhecimento pelo acesso anímico da alma à contemplação da transcendência,

“como os santos num arroubo mìstico/erguido como um anjo em suas asas”.

À ideia de circularidade, vem agora sobrepor-se a do “quadrado de

sossego”, que se repercute na figuração da “janela onde me debruço definitivo” e

que, de alguma forma, consubstanciam a representação da casa como centro de uma

geografia do humano:

250 Veja-se, a este respeito, a repetição do proverbial memento homo nos seguintes versos: “Um pássaro em queda mesmo / Quando é proporcional à pedra / Que tomba do muro nunca / Alcança a mesma coloração do musgo […] Retém na memória: o homem cai. [...]” (2006:285). 251 Esta passagem poética encontra o seu reverso antinómico na componente humana de Cristo: “Dinamitei depois tudo o que em mim tinha forma de aquário […] Dinamitei o vazio e encontrei um peso / Humano que não se afundava: / Era um milagre como Lázaro vindo para fora! / Era um homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa / E que partia o pão. E eu vi que era ele / Que partia/ O pão” (2006:137).

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De poderes abrir a vida como quem abre a casa Da casa que tu salvas com um sinal de sangue […] Estou por terra e vejo já do alto Com a saliva a saber-me Ao bolor do chão252

Lugar da habitação e do acesso privilegiado do ser, fórmula de castelo interior (Sta

Teresa d‟Ávila), a casa que surge convocada é a de Moisés antes da libertação do

cativeiro egípcio (Êxodo 12:22). Aceder ao centro é, recorde-se, a marca distintiva

da consagração iniciática, sendo que ali se definem as fronteiras do dentro e do fora,

delimitação do terreno esotérico (oposto naturalmente ao exotérico). É daqui, deste

centro da casa, que surgirá o rebento dessa videira, cujo tronco será uma forma de

núcleo de pertença. Falemos então, em seguida, da casa que é um livro.

3.2.7. O tronco intertestamentário

A ideia de tronco em Daniel Faria é aqui introduzida por via de um dos seus

poemas, que recoloca na agenda de leitura da sua poesia, também através da

figuração arbórea que lhe é tão cara, a reactualização de sentidos que remontam ao

Génesis bíblico bem como à representação axial do centro do mundo. Tal como no

centro do jardim, duas são também as árvores que sustentam a estrutura do poema

que se segue:

A chuva cai sobre a copa de ambas, quero dizer, Sobre a chaminé da casa e sobre a planta Sobre a magnólia pronunciada e a magnólia

252 «De veres o meu lugar», Homens que são como lugares mal situados (2006:187).

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Que cresce como a videira intertestamentária – mãe Bíblica no eixo da casa. Se quiseres posicionar-te Em relação à magnólia materna e à árvore que se abre nos [versos Ou entre ambas as faces da página […] Procura-o esmagando uma a uma as pequenas sílabas – foi [esmagando-me, acredita Que aprendi o que sei hoje: há uma diferença Entre a magnólia que nos cresce fora E aquela que regamos com o sangue253

Casa, árvore e livro são as três imagens fortes em torno das quais se agenciam os

mecanismos semânticos do poema, que elejo como um dos mais representativos de

um fazer poético literariamente consciente do seu investimento numa relação textual

biblicamente orientada. A incidência sobre o texto bíblico, que alcança dois outros

grandes focos quer em Se fores pelo centro de ti mesmo (viagem pelos corredores do

museu bíblico, onde figuram personagens como Sara, Agar, Abraão, Lot, Eliseu,

Raquel e Zaqueu, entre outros) quer em Das nascentes (onde se descreve um périplo

guiado pelos livros de Êxodo, Números, Ezequiel, Zacarias, Actos dos Apóstolos

ou Apocalipse), encontra neste poema expressão lúcida e assumida através de dois

eixos fundamentais: o da “magnólia pronunciada”, que Rosa Martelo faz remontar a

Luíza Neto Jorge (2010:291) e equipara à árvore de Belo (2010:16, 298), e o da

“magnólia que cresce como a videira intertestamentária”. Esta a “mãe bìblica”,

aquela a feitura de poesia. Entre uma e outra o leitor é convidado a tomar posição,

“procura-o”, e a nessa mesma busca a perceber a diferença entre a árvore de dentro

e a de fora, a que “se abre nos versos” e a que é sangue do seu sangue. A herança

bíblica não poderia ser reclamada de forma mais evidente, ao ser colocada como

253 «Nem ela sabe por onde te conduzo agora», Dos Líquidos (2006:329).

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eixo de sustentação da casa sob a formulação da videira (a par da oliveira e da

figueira, uma das mais representativas da esperança messiânica254). Por outro lado,

tal como as duas árvores do Paraíso ou os dois testamentos que perfazem a

Escritura (por isso intertestamentária), uma não existe sem a outra, pelo que “ambas as

faces da página” ilustram aqui a dualidade simbiótica de uma poesia cujas raìzes se

estendem em solo bíblico e, por sua vez, de uma árvore bíblica que produz assim os

renovados frutos que a poética fariana em si mesma consubstancia. “A chuva [que]

cai sobre a copa de ambas” ressurgirá no último verso sob a ideia de uma seiva

comum que percorre a cepa das duas árvores e que, por via do esmagamento do

sujeito como dos bagos255 de cada uva/sílaba, poderá designar o vinho/sangue que

– sob o signo de Cristo (isto é o meu sangue) – fertiliza decisivamente a leitura de

uma e de outra árvore/livro.

A Escritura assume, pois, em Daniel Faria a proporção de solo de

pertença ou reduto basilar. A ideia da represa aonde se vai beber surge já em «Do

livro das meditações I», associada ao “celeste sumo do livro que é a fonte”

(2006:213), e repete-se em outros momentos, como nesse em que o poeta assume

que “Começa no verbo o que escrevo […] Começa nele a primeira fonte. Assim / A

pedra cresce / Com o seu sangue derramado […] E o que escrevo é a fonte /

254 Vindima do Apocalipse (14:14-20). Outras referência à vinha e à videira em Daniel Faria podem ser encontradas em poemas como “Planta filial e nómada / Feixe de lenha que Isaac carrega na pergunta / Viagem que inaugura / A árvore nova, videira / Que se estende sobre todos os ramos (2006:254). 255 Este mesmo efeito é ainda procurado nos seguintes versos: “Entrei na sombra como alguém que via / Entrei devagar no ritmo de um salmo / E havia luz / Era uma luz como uma árvore quando cresce / E estando em flor era um dia inteiro […] Entrei para um laço sem saìda porque era um nó aberto / E tinha os pés regados pelo sangue que dá vida / Tinha umas sandálias de sangue para caminhar livre // Entrei em morte sucessiva no que vive / Era a luz de uma árvore quando cresce / E se ensombra para não ficar sozinha” (2006:175).

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Transformada”,256 deste modo ensaiando na criação poética a recriação do mundo,

pela glosa do motivo do princípio que o evangelho de João (1:1) retoma do livro de

Génesis (1:1). Tal como no poema de «A chuva cai sobre a copa de ambas», também

aqui surgem duas fontes (comungando do vitalismo que à árvore não é alheio), uma

primária e outra secundária. Se uma é o verbo bíblico, a outra terá de ser a poesia

biblicamente inspirada, no que se repete o efeito de transferência simbólica que o

evangelho de João opera sobre o Génesis. Na asserção de uma “fonte

transformada” repousa, então, o estatuto da poesia fariana, refeita também ela à luz

desse “livro escrito por dentro e por fora” e que dela retoma a aspiração do apontar

ao divino, esse todo-sem-fora. E então pode o poeta “[descer] à escritura como os

veados aos salmos”, percorrendo o eixo da verticalidade que à queda do homem alia

o amparo da terra e o tesouro das suas profundezas: “E desço à verdura das tuas

mãos / como as manadas que buscam as minas”.257 O símile quiasmático que neste

contexto toma forma permite a comutação das propriedades cristológicas do

veado258 para o poeta e, por sua vez, da Escritura (aqui na formulação do Salmo)

para uma jazida subterrânea de minérios preciosos – a matéria-prima desta poesia.

O efeito de fusionismo literário procurado pelo poeta, pelo processo de

irmanação de dois textos que se entrelaçam e sobrepõem, o poético e o bíblico, não

descura as figuras da escrita e da produção textual. As vias misteriosas da inspiração

são aqui tentadas por intermédio do silêncio (esse “instrumento difìcil”) e da

abertura do sujeito aos sentidos da visão e da audição:

256 «Começa no verbo o que escrevo», Dos Líquidos (2006:264). 257 «E desço à verdura das tuas mãos», Dos Líquidos (2006:247). 258 Remeto para Orígenes, sobre o tópico da perseguição da serpente, em Homilia III sobre o Cântico dos Cânticos.

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Quero a fome de calar-me. O silêncio […] Pedra Que trago para sentar-me no banquete A única glória no mundo – ouvir-te. Ver […] como abres A fonte, o curso caudaloso Da vergôntea – a sombra com que jorras do rochedo Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa Chaga do pastor Que abriu o redil no próprio corpo e sai Ao encontro da ovelha separada […] As mãos acima da cabeça adornam As águas nocturnas – pequenos Neúfares celestes. As estrelas como pinhas fechadas Caem – quero fechar-me e cair. O silêncio Alveolar expira – e eu Estendo-me sobre a mesa da aliança259

Em redor da mesa, parente eucarístico do banquete do fim do mundo (a ceia do

Senhor, cf. Lucas 14:16-24), o poeta toma o seu lugar em torno do centro, marcado

pela pedra de óbvia ressonância jacobeana (e messiânica260). Em seguida, o poeta

passa a endereçar o episódio de Moisés com quem Deus estabelecera também um

pacto ou “aliança” – de que resultaram as tábuas – no que a pedra de um se torna a

pedra de ambos. Dois pactos, tendo em vista um terceiro. Depois de Jacob e de

Moisés, é o poeta que interpela o divino – não directamente nomeado (como se

homem algum pudesse vê-lo e continuar vivo, de acordo com a lição mosaica261)

mas subsumido nas formas verbais de segunda pessoa do singular. O novo pacto

que aqui se encena é o da escrita poética, qual renovada aliança262 ou forma de

259 «Quero a fome de calar-me», Dos Líquidos (2006:279). 260 Cristo como pedra angular. 261 Êxodo 33:20. 262 Atente-se no modo como o ofício de poeta é comparado à nomeação por Noé e não por Adão, no que lhe subjaz a noção de criação de segunda ordem instaurada pelo Dilúvio, o que se repetirá

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terceiro testamento. Este “jorro da escrita verdadeira”, retomado do episódio da

água brotando no rochedo do deserto por intervenção do bastão de Moisés

(Números 20:7-13), é arduamente buscado pelo poeta que nele arrisca o sacrifício de

si mesmo, a “chaga do pastor […] no próprio corpo”. Abraçando a via crucis e as

chagas do pastor que não só toca como toma como suas, o poeta dispõe-se à saída

de si, numa espécie de rapto espiritual, ao encontro “da ovelha tresmalhada” e, desta

forma, se dá como palco de encenação mística da triplici via, de que falavam São

Boaventura e Dionísio Areopagita (Grant 1983:134): após a purgação pelo silêncio, o

poeta parte em busca da iluminação (as “estrelas que caem”) para finalmente alcançar

a união. Se primeiramente o poeta fora um dos convidados para a Ceia, ele é

finalmente a refeição que se serve sobre a mesa, encenando a sua morte pelo

“silêncio alveolar [que] expira”, ao passo que se abandona, e ao seu corpo, à

deglutição literária da “fome de calar-se” e se silencia para deixar falar o poema:

“porque me alimento da tua boca / E na palavra me sustento em ti”.263 Selado está

o pacto de uma nova aliança.

mais adiante na narrativa bíblica a quando do episódio da reescrita das tábuas da Lei: “Imagino o poeta sem dormir. Tento explicá-lo, compará-lo a Noé na arca / Saudoso de colocar de novo os pés descalços sobre a terra. / Penso que os animais saem de dentro das palavras / E vêm ter comigo / E querem ter um nome como no princìpio” (2006:294). 263 «Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe», Antemanhã (2006:19).

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3.3.

LER NO ESCURO.

POESIA E HERMENÊUTICA EM TOLENTINO MENDONÇA

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3.3.1. A noite abre meus olhos

Forma lapidar de titulação, A noite abre meus olhos é o nome com que se

apresenta a compilação da obra poética de José Tolentino Mendonça publicada até

ao ano de 2006.264 Este é um título que se me oferece como modo paradigmático de

enunciar aquela que será, na tese que aqui proponho, uma concepção do fazer

poético enquadrado numa experiência literária de sustentação hermenêutica. Nela

me parece estar também implicada, ainda que não numa lógica de correlação directa,

um potencial campo de indagação que encontra ressonância na área académica de

Tolentino Mendonça – as ciências bíblicas e teológicas.265 Sem descurar outros

aspectos relevantes, privilegiarei neste capítulo sobretudo as questões suscitadas pela

presença de um traçado bíblico que, de forma ora explícita266 ora implícita, vai

percorrendo esta poesia, que nele não se esgota e do qual parte para a interpelação

264 No ano de 2011, uma reedição da obra viria a incluir o mais recente livro de poemas O Viajante sem sono. 265 Destaque-se a sua produção ensaística neste campo com A Construção de Jesus (2004), A Leitura infinita (2008), O Hipopótamo de Deus e outros textos (2010) e O Tesouro escondido (2011). 266 Alguns dos exemplos mais evidentes dos câmbios bíblicos que Tolentino opera na sua poesia poderão ser encontrados em poemas como «Salmo dos filhos de Coré», «Os dias de Job», «Abraam», «Do canto de Débora», para nomear alguns dos que se filiam imediatamente, por via do seu título, na matriz da literatura bíblica.

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mais ampla da esfera do sagrado que aí figura, numa pluralidade de formulações

nem sempre atidas ao nível mais estrito da textualidade bíblica. Ora, estas são

questões que não surgem em si mesmas desligadas de um certo conceito de poesia

que, estou em crer, simultaneamente interroga o mundo e a ele se dá como resposta,

nesse caminho que se faz entre o que é da poesia e o que é da filosofia, como refere

María Zambrano:

A poesia é encontro, dádiva, achado pela graça, resposta, embora se apresente como pergunta. A filosofia é busca, pergunta guiada por método, ainda que ofereça e seja ela própria uma resposta. (2000: 61)

Parece-me ainda relevante que a afinidade entre uma prática hermenêutica,

oriunda dos foros da interpretação bíblica, e a escrita de poesia em Tolentino

encontre o seu primeiro esteio numa relação de conhecimento fundadora, que se

estabelece no movimento que vai do mundo até ao sujeito poético (que este, por sua

vez, lhe devolve) e o recentra como agente de uma leitura aberta. Nela o aprender a

ver estende-se interminavelmente à construção de ler, enformando toda uma visão do

mundo como do acto poético, de resto. A procura do sentido, de domiciliação

assumidamente hermenêutica, opera nesta poesia como linha de força, estatuída

numa das alianças de que esta tese tem vindo a ocupar-se, sem excluir de forma

alguma aquilo que nessa busca não deixa de ser ausência de sentido, ambiguidade,

neblina semântica, fronteira imprecisa dos versos, esses “saberes tão frágeis”.267

267 «Quando ainda se ignora a morte», Longe não sabia (2006:51).

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Num verso como “Tão perto o sol nasce / da planície que / o

esconde”,268 a possibilidade de iluminação (metáfora hermenêutica, por excelência)

convive lado a lado com a superfície textual que o desafia e relativamente à qual

mede a sua distância e a sua proximidade. Esta superfície ameaça absorver o feixe de

luz, obscurecê-lo, pela barreira que a sua própria matéria não-iluminada constitui.

Mas é também da superfície (ou “planìcie”, no dizer do poema), note-se, que se

soergue a possibilidade de iluminação ela mesma. Tal como na leitura, a

perspectivação da existência, de uma existência poética, é também uma questão de

visão e daquilo que nela resulta de uma vizinhança entre o que é das trevas e o que é

da luz – binómio que marca pela omnipresença o compasso desta poética e do qual

partem relevantes eixos de estruturação semântica, actuantes ao longo dos vários

momentos que compõem este livro. A poesia de Tolentino parece ter elegido essa

região da penumbra metafísica, fronteiriça da angústia humana do conhecimento

que o saber teológico não pode deixar de encerrar, nela encontrando sempre

renovados motivos de interrogação e de exploração da perplexidade que, ante si

própria, a poesia constitui.

O exercício crítico que aqui proponho procurará ocupar-se do modo

como esta poesia se transforma em atravessamento literário e se revela permeável a

uma transposição das coordenadas espaço-tempo do mundo referencial, vazando-os

nos termos de uma modalização literária de cariz místico-hermenêutico, que torna

possível ver na noite, esse lugar da contemplação do invisível e do aquém

interpretativo, o ponto em que “a obscuridade brilha para lá / da própria

268 «Olhar sobre a cidade», Os Dias contados (2006:13).

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enseada”.269 Creio que podem, pois, nesse sentido ser acomodadas as duas

referências escolhidas para abrir a obra na qualidade de epígrafes, a saber, uma de

René Char e outra de Michael de Certeau. Ambas as sentenças tecem considerações

fortes, em clave categórica de alcance gnómico, sobre as potencialidades do

discurso, referindo-se-lhe directamente ora como “poesia” ora como “mìstica”:

En poésie, on n‟habite que le lieu que l‟on quitte, on ne crée que l‟oeuvre dont on se détache, on n‟obtient la durée qu‟en détruisant le temps (Char), Il faut dont retraverser la mystique, à la recherche non plus du langage qu‟elle invente, mais du corps qui y parle (Certeau). (in Mendonça 2006:7)

Em cada uma das asserções, as categorias convocadas apontam no sentido

de um diferimento paradoxal que lhes é comum, só possível na base mesma da

modulação linguística que se consegue pela incorporação discursiva daquilo que

pertence às margens do discurso (os lugares de onde se parte, o corpo que fala). Um

mesmo aceno de retrospecção pendular as anima, o de uma contemplação do lugar

do qual só podemos tomar consciência quando dele nos afastamos o suficiente

(“retraverser”, “quitter”, “détacher”, e formas outras de estar “para lá da enseada”)

para podermos voltar a aproximar-nos. Note-se também no enquadramento que

estas referências conferem ao livro, inscrevendo genologicamente aquilo que são as

suas filiações retóricas (“poésie”, “mystique”) e permitindo-lhe conceptualizar as

fronteiras do seu próprio discurso, às quais vai buscar a devida dimensão meta-

reflexiva. De acordo com Silvina Rodrigues Lopes, esta dimensão perfaz a moldura

269 «A casa», Baldios (2006:107).

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ensaística desta poesia, convocando a revisitação dos textos primaciais de onde

parte, incluindo o património bíblico, e que com ela procuram entrar em diálogo:

a interpelação do poema [em Tolentino Mendonça] não se separa da sua dimensão crítica, entendida esta como confronto com tradições poéticas, nomes próprios e lugares da cultura. (2006: 228)

O gesto de eleição de uma epígrafe (a que poderíamos acrescentar a

existência de posfácio crítico da edição) denuncia uma atenção ao labor

hermenêutico que o fazer desta poesia pressupõe, e que não hesita em indiciar

perante os seus leitores a exploração dos seus interstícios, rondando os limites da

significação da linguagem. E interessante é que o faça aludindo à travessia e ao

afastamento, ao percurso que se faz no interior da sua geografia, pressupondo o seu

desdobramento em leitura, a revelação das suas implicações. Numa distinção clássica

cultivada por Valéry em “Poésie et pensée abstraite”270 (retomada depois por Sophia

de Mello Breyner), o que seria em prosa a explicação é em poesia a implicação,

aquilo que não pode abdicar da sua própria forma, o sentido que não tem outro

modo de se fazer sentir – o que, em Tolentino, poderia ser traduzido como a

devolução do inexprimível.271 Sobre esta questão, atentemos no que declara o poeta,

270 “Poesia e prosa […] utilizam as mesmas palavras, a mesma sintaxe, as mesmas formas. Só que na prosa o fim absorve o meio, o sentido é a única realidade que permanece (que é recordada), substituindo-se à forma ou discurso que o veicula. Em poesia, a significação produzida em nós exige de novo o retorno à forma, estabelecendo-se um movimento pendular entre o „fundo‟, ou „pensamento‟ (os valores do sentido, as imagens, ideias, sentimentos suscitados) e a forma (a entidade em presença – o discurso, com os seus ritmos, sons, timbres, etc.), ou voz em acção. Tudo se baseia na indissolubilidade do som e do sentido, que não existe de facto, devendo o poeta criar essa sensação” (apud Borges 1996: 41). 271 «O poema», Estrada branca (2006:202).

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precisamente numa página escrita em prosa, consagrando o fecho do seu livro de

poesia A estrada branca à reflexão metapoética:

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há verdadeiro poema que não torne o sujeito um foragido […] Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? […] O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia. (Mendonça 2006: 202)

Num gesto explícito de oficina literária, o poeta opõe àquela que é a lógica do

mundo os pilares de uma cosmogonia do poema, que desafia a pretensa ordem do

real, ao entrar nos domínios do invisível, do instável e do que está para além da

apreensão racional. O poeta e o leitor de poesia (que disso não está isento) terão de

assumir-se então como partícipes de um mundo secreto, proscritos de uma

determinada concepção luminosa do real que não explica o todo, inscrevendo-se no

fora do mundo como dissidentes, descrentes, foragidos – termos afins do postulado

platónico que excluía da república a figura do poeta – quais figuras das trevas,

vizinhas de uma tradição romântica de raiz miltoniana (actualizada no poète maudit de

Verlaine). Estas não são, porém, sinónimo do mal, que o ocidente alegorizou na

ausência de luz. As trevas são antes, no caso tolentinano, a marca de água do

indistinto, do chiaroscuro, do sfumato, evadido da lógica do real tridimensional para a

análise reflexiva, metapoética que recusa, ainda que se abeire perigosamente desse

abismo e aí escolha permanecer, ser confundida com o objecto de que se ocupa.

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Para esta espécie de credo poético tolentiniano, o de que “o poema é um

exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível,

do estável, do apreendido”, concorre ainda um outro momento de arte poética

explícita que encontramos em «Lourdes Castro, Rua da Olaria»: “A minha arte é

uma espécie de pacto: / não distingo as áreas selvagens das cultivadas / e elas não

distinguem a minha sombra / da minha luz”.272 Trata-se então, poderia dizer-se, de

um acordo tácito de não-categorização, no seio do qual as coisas valem, não pelo

modo como se nos dão a ver, mas antes precisamente pela ambiguidade ontológica

com que desafiam a nossa capacidade de conviver com o que de nós mesmos

desconhecemos. O que essa margem de incerteza tem de relevante é o facto de abrir

espaço, como se por entre um “corredor na penumbra” que iria das palavras às

coisas (assim queria Alberto Caeiro), àquilo que não pode habitar senão as trevas, a

verdade do que não ousa manifestar-se perante a luz do dia.

3.3.2. A palavra nocturna

Em L’Espace littéraire (1955), Maurice Blanchot, ao mover-se entre

instâncias tão diversas como profundidade, solidão e morte, elege também a noite

como uma das principais fontes da inspiração literária. Contígua da dissolução de

todas as coisas, a noite é vizinha da ausência e do silêncio, mas nem por isso imune

ao apelo da dialéctica e do paradoxo:

272 O Viajante sem sono (2009:45).

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quand tout a disparu dans la nuit, „tout a disparu‟ aparaît. C‟est l‟autre nuit. La nuit est apparition du „tout a disparu‟ [...] l‟invisible est alors ce que l‟on ne peut cesser de voir, l‟incessant qui se fait voir. (2009:213)

É precisamente este mecanismo contrastivo que me parece operar de forma

determinante na poesia de Tolentino Mendonça – o que vem sublinhado

precisamente no título sob o qual reúne a sua obra, A Noite abre meus olhos.

Conservando ainda a memória da noite mística de um princípio (também genesíaco)

de todas as coisas, de uma união superlativa ao divino invisível, como a que

encontramos sobretudo em São João da Cruz ou em Santa Teresa d‟Ávila, a noite

começa por representar em Tolentino “a profundidade lìrica, as origens abissais da

inspiração”, segundo Silvina Rodrigues Lopes (2006:228).

O lado nocturno desta palavra, porém, não se esgota na obscuridade

aparente de uma atmosfera poética, estendendo-se bem para além dela. Questão

complexa, a plurivalência da noite tolentiniana convida-nos a colocá-la como um

dos problemas centrais desta poesia. Reconhecendo-o, o poeta afirma que

a noite é um estado de consciência profunda de si, em que o Homem está só perante o horizonte de sentido ou perante o silêncio da própria vida [...] a noite é o contexto para a indagação antropológica mais funda que o trabalho poético exige. (Mendonça apud Marques 2009:31)

Não é portanto na tradição do logos racionalista e iluminado que Tolentino radica a

sua poesia; antes a situa numa geografia da indagação, do tentativo, do instável e da

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indefinição: “Faltam atlas com algum detalhe / para as emissões nocturnas / nos

agudos da nossa incerteza”.273

Disputando o primado da luz como elemento que prescreve a ordem do

mundo, o poeta encontra assim na noite a instância a partir da qual essa mesma

ordem poética do mundo é reescrita (“por isso assusta o rumor da noite fundando /

o obscuro lugar dos versos”274). Ambas as categorias são submetidas à

desconstrução do seu sentido primeiro: “a luz nunca existiu”275 ou “talvez a mais

completa escuridão nunca tenha existido”,276 pólos antinómicos de uma mesma

verdade, que se toca em cada um dos seus extremos. No decurso de uma viagem

iniciática, secreta, esta poesia aceita envergar a dimensão do foragido, que encontra

em Jacob277 e em Moisés278 os paradigmas do viajante a quem a noite se revela ou

que nela encontram o seu baptismo de sangue. É precisamente o mistério da sua

travessia nocturna que os habilita a decifrar no “restolhar de prata da folhagem […]

o passo do anjo, na escuridão”,279 que “toda a noite me seguiu”,280 cujo encontro

não é mais do que uma luta corpo a corpo pela demanda do sentido (quantas vezes

se decidem os versos no som do corpo que cai281), a busca do nome, essa unidade

(matricialmente edénica) a que o sujeito poético aspira na sua nostalgia encontrar,

273 «De profundis», O Viajante sem sono (2009:31). 274 «Canção», Os Dias contados (2006:21). 275 «O mal», A que Distância deixaste o coração (2006:128). 276 «Ziw», Estrada branca (2006:188). 277 Génesis 32:22-30. 278 Êxodo 4:20-26. 279 «O passo do anjo», Estrada branca (2006:180). 280 «Tristezza d‟estate», Os Dias contados (2006:60). 281 «Os versos», Baldios (2006:97). Verso de evidente ascendência em Luíza Neto Jorge.

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217

aceitando “diante do anjo […] que seja a sua escura seta / quem desloca os

sinais”.282

A poesia de Tolentino dá-se então como testemunho desse trajecto (e não

são despiciendas as múltiplas formulações que a viagem assume repetidamente em

vários momentos do livro), sondando como e “através de que perguntas, de que

respostas / se regressa às partes inseparáveis”,283 em que ressoam ainda os

postulados de Char e de Certeau. Repare-se como mesmo o inseparável é

constituído por partes, depois de perdida a unidade (também semântica) de um

mundo fendido entre luz e sombras, entre o puro e o impuro. É neste ponto que a

poesia toma partido, seguindo no encalço da epístola de Paulo aos Coríntios,284 em

que é a loucura de Deus, essa “impureza que o mundo repudia”, a verdade que “não

pertence a este mundo”, o percurso descrito pela seta do anjo que prevalece sobre a

razão do mundo. Ao invés de se afastar progressivamente de uma verdade

inteligível, esta poesia procura ir ao seu encontro (em disputa com o que seria

apanágio exclusivo da filosofia, para Platão), abraçando uma pureza estranha ao

fascínio do logos grego, o da esfera da razão e da luz. Esta verdade é, antes, a do

mistério, a que só se completa no exercício da revelação, de desocultação do que

esteve outrora encoberto – é esse manto de omissão ontológica e gnosiológica que

282 «A invenção da língua (sequência)», Longe não sabia (2006:78). 283 «Clareira» (2006:192). Note-se como a luz é tida como divisora, numa alusão à iluminação como atribuição de contornos e pela demarcação de fronteiras (que a noite, ao invés, abole), em «A invenção da língua», (2006:78). 284 «Pois já que o mundo, por meio da sua sabedoria, não reconheceu Deus, aprouve a Deus salvar os que crêem, pela loucura da pregação […] mas o que há de louco no mundo é o que Deus escolheu para confundir os sábios; e o que há-de fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte; escolheu os que nada são para reduzir a nada aqueles que são alguma coisa […]» (1Corìntios 1:21, 27-28).

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aqui se designa por “noite”. Remeto ainda para a observação de Silvina Rodrigues

Lopes a propósito da subversão que se opera aqui sobre o conceito de luz:

Note-se que nunca nesta poesia a luz é revelação ou conhecimento, o seu trajecto é o seu «caminho luminoso» […] Sempre excessiva, a luz irrompe no desfazer das formas como o inteligível que se dá a sentir. Sem nome ou sob o nome de Deus, ela designa as forças deslocantes da poesia, as que constituem a sua confiança inesgotável, que nem razão nem método alguma vez atingem […] o excesso de luz sorve até ao fim as distinções estabelecidas e conduz ao vazio de significação […]. (2006: 210, 224)

Daí que esta poesia encontre um esteio fundamental naquilo que é a

abertura desse potencial desdobramento, o lugar de exploração de uma dualidade

fundamental que pré-existe ao sentido das coisas (“é inútil repartir as águas”285) e

que encontra na noite bíblica (no caso, genesíaca) a instância de questionamento de

uma verdade que nunca pertenceu a este mundo, porque lhe foi sempre anterior.

Será esse ainda o ponto que se me oferece considerar na formulação paradoxal

encontrada no título da compilação, A Noite abre meus olhos: o lugar que se anuncia

como o de uma injunção dos contrários por excelência, endereçando a bivalência do

topos clássico dos olhos que não vêem e da cegueira visionária („cego uidens‟): “sou

um cego e vejo / as palavras o reunir / das sombras”.286 De natureza dúplice, a

palavra tanto comunica como equivoca, aberta que está aos mecanismos da

polissemia e da disseminação. Aqui entramos no território da conversão dos nomes,

de que a transmutação de Saulo em Paulo se dá como paradigma bíblico exemplar:

285 «Scriptum», Os Dias contados (2006:17). 286 «Os dias de Job», Os Dias contados (2006:29).

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“Saulo ergueu-se do chão mas, embora tivesse os olhos abertos, não via nada”

(Actos 9:8), como já havia notado Silvina Rodrigues Lopes:

Enquanto construção poética, a noite é um dos pontos que condensam a força pela qual a interpelação é afectabilidade e transformabilidade. Vindo de uma longa tradição, esse motivo transporta consigo, por um lado, a profundidade lírica, as origens abissais da inspiração e, por outro, uma tradição poético-religiosa que se sintetiza no muito comentado relato de S. Lucas […]. (2006: 228)

Esta questão anuncia-se logo no título do livro, vindo a escolha do verbo

abrir a configurar-se, na linha de um sentido maior que vai cosendo os vários

momentos ou “dias” deste livro (lembremos que é com a secção Os Dias contados que

se marca o seu compasso de abertura), como chave de uma legibilidade poética que

opera de modo funcional entre a noite e os olhos do sujeito de enunciação. A ligar os

membros da oração está uma relação essencial de conhecimento, que pressupõe a

apreensão do sentido que estava vedado ao sujeito e que, posteriormente, através de

um processo de abertura, passa a poder ser contemplado pelos seus olhos.

Consideremos ainda como é convocada a narrativa do Génesis, onde o

conhecimento em potência na árvore proibida se transfere para o homem através

desta mesma metáfora da abertura dos olhos, que significam o entendimento e a

capacidade de percepção intelectiva: “agarrou do fruto, comeu, deu dele também a

seu marido […] e ele também comeu. Então, abriram-se os olhos aos dois, e

[reconheceram] que estavam nus” (Génesis 3:6-7).

Nestes termos, bem como em outros afins (os da relação que se estabelece

entre ver e ler) me parece poder colocar-se a questão do entrelaçamento entre

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poesia e interpretação em Tolentino. Tanto mais que este é um postulado que desde

logo recupera um legado religioso, de lastro místico-alegórico, que encontra tanto na

noite como no olhar polaridades fundamentais que se concentram, cada uma delas,

em ocultar e dar a ver como percurso que vai do desvelamento à revelação. Se a

primeira categoria explica, a segunda implica, sendo que por „desvelar‟ se entende o

retirar do véu, o gesto de tornar visìvel, enquanto „revelar‟ pressupõe o visto como

provisório de um outro estado de cifração,287 fazendo-o diferir-se relativamente à

transparência do seu sentido último na assunção iterativa de re-velar, movimento

espiralar da encodificação. É, pois, entre estes dois eixos que entendo os

movimentos a partir dos quais a poética tolentiniana ganha em ser lida.

3.3.3. Regressar ao princípio

Por regresso ao princípio refiro-me aqui, em concreto, à transposição de

uma geometria poética que recupera a arquitectura do livro do Génesis e, muito em

particular, da sequência dos dias da criação divina: “podia […] contar-te a história

do mundo / desde que foi criado”.288 Este é um factor que, apesar de não encorajar

o esboço de correspondências directas, encontra a sua medida nos sete livros que

compõem a obra em análise, sobretudo se atentarmos no facto de este número se

perfazer com a soma de um livro inédito, Tábuas de pedra, que veio a lume

precisamente no momento de integrar o volume da compilação.289 A enumeração de

287 Vide Jacques Derrida, De um tom apocalíptico adoptado há pouco em filosofia (1997). 288 «Reconhecimento dos laços», Os Dias contados (2006:19). 289 Afirmação válida relativamente à edição de 2006.

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motivos como o dia, a noite ou as tábuas procura dar conta disso mesmo, ainda que

mais relevante se torne a sua sequência ou o modo como entroncam numa rede

semântica de relações concatenadas, a partir das quais se vai construindo a

arquitectura bíblica do edifício poético.

Repare-se que a presente compilação se inicia com o título Os Dias

contados, livro publicado em 1990, ano de estreia de Tolentino Mendonça como

poeta. Não é, no entanto, neste seu primeiro livro que a compilação encontra o

nome ao qual faz remontar o seu sentido primeiro ou de abertura. «A noite abre

meus olhos» é um poema que integra o sexto livro da produção de Tolentino e que,

num propósito de reordenação, foi recuperado para a capa do livro, o seu ante-

começo – lugar, afinal, da noite universal que precede a criação. Nessa deslocação

óbvia que ali se opera, entendo colocar-se em jogo um significativo gesto de

intervenção autoral ao nível da macroestrutura poética, de relevante alcance

interpretativo, que se concretiza ao instituir um nível superior de organização

semântica. Fica assim criado o espaço para uma poética que reclama para si um

estatuto criativo por excelência, uma metaliterariedade por meio da qual são “os dias

contados”, num particìpio ramificado entre a soma e a enumeração narrativa.

Também aqui se segue o rasto bíblico do Génesis, onde é a sequência dos dias que

perfaz a história do mundo:

No princípio era a ilha Embora se diga O Espírito de Deus Abraçava as águas290

290 «A infância de Herberto Helder», Os Dias contados (2006:11).

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Antes, porém, da contagem dos sete dias criativos, que o livro não pode

deixar de convocar, surge então a “noite”, esse estádio pré-criativo correspondente

“às trevas [que] cobriam o abismo”, aquando desse princìpio em que “Deus criou os

céus e a terra” (Génesis 1: 2, 1). Detecto aqui um cruzamento entre dois eixos de

sentido, um de alcance universal, cósmico, genesíaco, a par de outro no âmago do

sujeito, do eu singular, que empreende a sua viagem ao encontro do amor. Este

surge na extracção de uma lição final em “o amor é uma noite a que se chega só”,

do poema «A noite abre meus olhos»291 – peça de alcance simultaneamente singular

e antológico (em termos de potencial representatividade) na organização

macroestrutural do livro. Remontando-se ao horizonte bíblico da criação, o poema

encena o génesis de si mesmo, no âmbito de uma demiurgia do sujeito lírico,

simultaneamente deus e adão do livro que parte não da terra mas da ilha, essas

versões alternativas do verbo. Aí se cruzam, no primeiro verso do poema que abre

livro, tanto o primeiro versìculo do Génesis como o do evangelho de João: “No

princípio, [...] Deus criou os céus e a terra” (Génesis 1:1) e “No princìpio existia o

verbo” (João 1:1). A ambos assiste uma experiência básica de reescrita, que o poeta

terá ali querido convocar, sobrepondo ao modelo genesíaco o paradigma joanino,

que tenderá a prevalecer sobre aquele, na medida em que a revelação cristológica

vem suplementar (substituir na complementaridade) o sentido primeiro da criação,

por cumprir plenamente.292

291 Estrada branca (2006:181). 292 Sobre a leitura figural da Bíblia, ver a secção 2.3 desta tese.

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Esta sobreposição impõe-se na medida da concessiva de alcance

correctivo com que deparamos logo na primeira estrofe, “embora se diga”.293 No

entanto, a distorção do subtexto bíblico não se fica por aqui, já que também a ideia

de verbo se vê no poema traduzida na palavra “ilha”. Do ponto de vista do

imaginário bíblico, a ilha é um elemento que enfatiza a separação das águas, esse que

é um dos principais gestos divinos no percurso criativo. Em outros momentos do

seu livro, o poeta regressará a essa presença do elemento aquático, sempre constante

mesmo quando não nomeado. A divisão entre a água e a terra seca constitui, no

panorama de uma mitologia da criação de índole mesopotâmica, um dos traços

básicos distintivos de uma concepção de universo construído a partir de um caos

original (foi neste sentido cunhado, pela filologia bíblica de raiz germânica, o termo

“Caoskampf”294). Veja-se, a este respeito, Eliade:

L‟apsu, le tehom [elemento aquático] symbolisent à la fois le Chaos aquatique, la modalité préformelle de la matière cosmique, et le monde de la mort, de tout ce qui précède la vie et la suit. (1965:42)

A ideia de amplexo divino com que Tolentino enforma o primeiro

versículo da Bíblia inscreve-se, pois, na tradição do caos que ameaça a ordem por

Deus instaurada no Génesis e que a criação passa a conter. Essa linha amplexiva

demarca a fronteira entre o que é da terra e o que é da água, entre o que pertence à

ordem e o que pertence ao caos, entre o sentido do preenchimento e o não-sentido

do informe e do vazio. Estes configuram, digamos, as margens de uma estrutura

293 «A infância de Herberto Helder», Os Dias contados (2006:11). 294 Remeto para Gunkel, Creation and Chaos in the Primeval Era and the Eschaton. A Religio-Historical Study of Genesis 1 and Revelation 12 (2006). Ver ainda Leo Perdue.

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cósmica que permite a existência ou ainda as entrelinhas do logos criativo – porque a

questão do logos não está da poética tolentiniana, como vemos logo no poema de

abertura, no modo como se elabora em torno dos reenvios literários do logos –

ponto que uma vez mais nos aproxima de Eliade: “toute construction ou fabrication

a comme modède exemplaire la cosmologie. La Création du monde devient

l‟archétype de tout geste créateur humain” (1965:45). Isso mesmo se releva da

sobreposição entre os dois hipotextos bíblicos ali convocados, que o poeta não

arreda dos momentos que consagra à reflexão metaliterária, ao introduzir a caligrafia

como ponto intervalar entre a água e a terra, na sequência poemática

significativamente intitulada «A invenção da língua», de evidente filiação ao logos,

postado na margem que se decide entre a terra e a água:

Aquele assombroso lugar tomara o modo intranquilo da água nenhuma caligrafia por essa impossibilidade retinha a terra desconhecida que só me oferecia uma voz295

É na escrita, na obtenção de uma voz precisamente, que se encontra essa

capacidade de fazer representar o mundo, de o converter em palavra e pensamento

(ainda outras acepções do mesmo logos original) como forma de mediação que

permita a sua leitura, como quem “marcava a latitude das estrelas / ordenando

berlindes / sobre a erva”,296 criando o simulacro de uma nova geografia de terra e

água “que pode abalar a ordem do universo”.297 Com base no conhecimento que o

295 «A invenção da língua (sequência)», Longe não sabia (2006:76). 296 «A infância de Herberto Helder», Os Dias contados (2006:11). 297 Ibidem.

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aqui do poema pode oferecer ao sujeito (“agora sei”298), à luz de uma experiência de

escrita que ilumina a sua relação com o mundo, torna-se relevante para a voz lírica

perceber como se vê o que se pensa ver, como aprendeu o olhar a ler o mundo,

quando e em que condições o fez. Nisso reencena a criação de um génesis poético

que se forma a partir do traçado bíblico, hipotextualmente conservado, para

suplantá-lo no modo como concebe essa relação entre o sujeito e o universo

(também de radicação literária) que lhe dá o ser e que recoloca, no fundo, a questão

da aprendizagem do humano.

3.3.4. Uma retórica da visão

Presença constante como linha de força deste livro, a isotopia da visão

coloca-se repetidamente no ângulo da bifurcação onde se decide – sem, no entanto,

aniquilar o indecidível derridiano de que se alimenta – o ser ou o não ser das coisas:

“tão perto o sol nasce da planìcie que o esconde […] é manhã sim / mas já é tarde /

e tu sabes”299; sugerindo a dimensão do olhar como instância multimodal, esta

palavra-chave congrega as polaridades desse mesmo conhecimento que vai

chamando a si as revelações plurais que pontuam esta poesia.

Associando-se com frequência não despicienda a verbos prismáticos de

valência cognoscitiva, quer o verbo “olhar” quer o substantivo plural “olhos”

ocorrem em contextos de aprendizagem do mundo e da sua progressiva assimilação,

ao compasso de “não sabia, agora sei”, que marca o poema de abertura da

298 Ibidem. 299 «Olhar sobre a cidade», Os Dias contados (2006:13).

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compilação, «A infância de Herberto Helder». Ao longo dos poemas deste livro, não

é só a valência do olhar que vai oscilando, como sobretudo aquilo que conseguimos

ver através dessa mesma categoria que envolve os meandros da interpretação de um

mundo que também é texto, como é legítimo sublinhar a propósito desta poesia.

A retórica da visão, formulada no título do livro, está então subjacente

como sentido preferencial na relação de descobrimento dos sentidos que alimentam

a voragem interpretativa. Para esse fim concorre a operação poética da transição

entre a noite e o dia, sendo que a luz se torna indispensável à visão, no âmbito de

uma relação paradoxal onde é a noite, e não o dia, a desencadear a abertura dos

olhos do sujeito. A intermitência das relações entre dia e noite e a sua relação muito

especial com o sentido da visão poderão constituir uma rede sinalética básica que

indicia a presença hipotextual bíblica do livro do Génesis, no rasto do qual se

tornam legíveis algumas das mais importantes escolhas poéticas que aqui vimos

tomar lugar (no subcapítulo anterior), nomeadamente sob a forma de

enquadramento macrotextual que a poética de Tolentino deliberadamente convoca.

Na poesia de Tolentino, a recorrência semântica de motivos como

“olhos” e “olhar” assume poeticamente a consciência de que o mundo é uma

construção sensorial, e sobretudo visual, que cabe ao sujeito ordenar e apreender

nos seus sentidos dispersos, numa linha fenomenológica merleau-pontyana do

encontro primeiro com o mundo.300 De natureza simultaneamente substantiva e

verbal, o olhar implica o sujeito no sentido da visão, humaniza o gesto de ver e

amplifica o seu alcance. Na solicitação do compromisso de quem olha, o olho torna-

300 Vide Le Visible et l’invisible (1979) e L’Oeil et l’esprit (1985).

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se óculo ou lente de perspectivação do olhado (o particípio torna-se participado), na

medida em que assume a sua condição apriorística, que Kant estabeleceu como

categoria. Este é, porém, um trajecto existencial, uma descoberta a fazer no percurso

de amadurecimento que a voz desta poesia leva a cabo e que elege como um dos

seus temas mais recorrentes. A revisitação do passado surge então como uma das

isotopias que mais relevo adquirem quando se trata de comparar o aqui e agora a um

lá e então, relativamente aos quais o sujeito não esconde uma nostalgia trágica, a do

regresso impossível a um in illo tempore perdido.

Um dos motivos que mais se presta à recriação dessa mesma atmosfera é

o da infância, já distante, de um passado remoto que antecede o início da

experiência da idade adulta, o estádio a partir do qual o sujeito passa a saber, tendo

consciência de um conhecimento que se paga com a própria perda da inocência.

Estamos perante a aspiração do estado genesíaco ou pré-adâmico (quando “ainda

era possível / encontrar Deus / pelos baldios”301), em que a noção do mundo é toda

ela inteira e harmoniosa, sem presença do pecado nem da aprendizagem por

metades ou contrários, cuja formulação clássica encontramos no mesmerismo da

árvore do conhecimento do bem e do mal. Exercício acabado de uma tal visão do

crescimento humano é o poema «A infância de Herberto Helder», cujo tom de

abertura pressupõe claramente o intertexto bíblico, ao remeter-se aos primórdios da

301 Ibidem. Note-se que «Baldios» é coincidentemente o título de um dos livros reunidos nesta compilação de obra de Tolentino Mendonça, o quarto (publicado pela primeira vez em 1999) e onde se incluem poemas nos quais parece prolongar-se desse verso uma linha de sentido que liga a ausência de Deus à terra não cultivada, de potencial remissão pós-edénica, como em «A voz solitária do homem» (“vestìgios, indìcios, poeira […] o abandono”) ou ainda «Arte poética» (“ele mesmo se sentia perdido / diante dessa presença sem palavras / que lança trevas nos símbolos / e torna os argumentos / insustentáveis”).

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infância como princípio tanto do tempo quanto da escrita: “No princìpio era a ilha /

embora se diga / o Espírito de Deus / abraçava as águas”.302

Num gesto explícito de citação, o poema reserva lugar crítico para o

desdobramento poético auto-reflexivo, reescrevendo a matéria bíblica que toma

como ponto de partida. Ao fazê-lo, abre-se espaço para a contemplação de uma

poética de ancoragem hermenêutica, aqui entrevista na forma como estabelece a

ligação entre a matéria bíblica poeticamente trabalhada e o seu referente original –

“embora se diga”.303 Todo o percurso do poema de abertura remonta a esse tempo

primordial, indexado a cada anáfora repetitiva “Nesse tempo”304 (o in illo tempore do

evangelho), sem lhe retirar a ambiguidade temporal que coloca em concomitância a

leitura bíblica e a leitura poética. Uma outra ambiguidade presente no poema

encontra a sua formulação no diferimento de uma terceira pessoa para a primeira –

falando-se da infância de Herberto Helder (ele), é sempre um eu, eu de poeta, que se

enuncia na escrita, horizonte e sombra bloomiana (patrilinearidade, desleitura, vulto

referencial do poeta, actuante também em «Vat 69» de Ruy Belo). Há aqui uma

confluência de tempos e discursos que me parece digna de ser assinalada, na medida

em que dá conta de uma apropriação subjectiva semelhante à que teríamos num

esboço de leitura textual (que não se faz de sujeitos vazios, cf. Benveniste) – e,

também por isso, de cariz hermenêutico. Numa clara co-implicação de leituras, esta

é também uma forma de render tributo à importância de Herberto na formação do

poeta enquanto jovem, como nota Richard Zenith:

302 Ibidem. 303 Ibidem. 304 Ibidem.

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[…] the homage suggests that the senior poet has managed, in his verses, to conserve a child‟s direct understanding. The poem is also a homage to their common homeland […] The island is Madeira, but is also Herberto Helder, and José Tolentino Mendonça, and I who write and you who read. Contrary to the old dictum, everyman and every woman is an island. (2006)

Falar da infância do poeta significa isso mesmo, sendo o poeta um locus a que pode

indexar-se o nome de Herberto ou ainda o do poeta que aqui fala e que com aquele

partilha os mesmos termos de referência, uma mesma geografia poética, em torno

da ilha (uma vez que tanto Herberto como Tolentino nasceram na Madeira),

simultaneamente tempo e lugar de origem humanamente interrogada. Deste poema

poderia dizer-se ainda, tanto pela invocação herbertiana como pela sobreposição de

hipotextos bíblicos, ser uma nova máquina de emaranhar paisagens, as do Génesis e do

Apocalipse, as do antes e depois da morte.

Tempo mítico do sujeito, esvaziado de tempo ou anterior ao próprio

tempo, encapsulado nos limites indistintos de um “princìpio”305 difuso (que o uso

reiterado do pretérito imperfeito vem acentuar, prolongando a nebulosa do tempo

bíblico), a infância configura ainda esse limbo que antecede o exercício consciente

da linguagem como faculdade humana, num estádio incipiente em que se é “quase

um anjo / [escrevendo] relatórios / precisos / acerca do silêncio”.306 Partindo dessa

margem distante, o poema opera dentro de si o desdobramento necessário à

contemplação da outra margem, desenhada na justaposição dos paradigmas

genesíaco e joanino que marca o início do poema, pertencentes ao Antigo e ao

305 Ibidem. 306 Ibidem.

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Novo Testamento respectivamente. Assim como um oferece a antevisão das coisas

por vir e o outro a revelação do pleno cumprimento das coisas anunciadas, em clave

tipológica,307 do mesmo modo ao “nesse tempo”308 se apõe o “agora”309 que surge

no fim da quarta estrofe do poema. O primeiro é o tempo do silêncio, do “não

pensava”310 e do “não sabia”,311 enquanto o segundo se pauta pela atribuição do

sentido, pelo olhar semântico que nas “estrelas”312 vê agora “corpos de fogo”313

perigosos e no poema um poderoso catalizador da criação, capaz de abalar “a ordem

do universo agora”314 – e repare-se como a ausência de pontuação permite o

transporte do advérbio de tempo para o verso seguinte “acredito”,315

permeabilizando a ambiguidade entre as instâncias temporais cultivada desde o

inìcio do poema. O “agora”316 representa simultaneamente a eternidade, esse

instante presente em cada partícula de tempo, e o momento de enunciação no qual a

voz do poema institui uma nova ordem criativa a partir desse “tumulto”317 que é o

poema, um caos dos primórdios, uma noite onde se torna possível abrir os olhos à

luz do verbo poético, o logos que a “ilha”318 original concretiza.

A fronteira que demarca esse ritual de passagem é a aprendizagem da

álgebra, essa ciência da equação, a herança do pensamento humano e representação

307 Sobre a leitura tipológica da Bíblia, consulte-se Frye (1983:78-101). 308 «A infância de Herberto Helder», Os Dias contados (2006:11). 309 Ibidem. 310 Ibidem. 311 Ibidem. 312 Ibidem. 313 Ibidem. 314 Ibidem. 315 Ibidem. 316 Ibidem. 317 Ibidem. 318 Ibidem.

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matemática do mundo, com os seus níveis retórico e simbólico, continuamente

aperfeiçoados. É a álgebra que vem substituir no poema a ordenação dos “berlindes

sobre a erva”,319 numa alteração de paradigma em que o cartesiano suplanta o lúdico

como forma de relacionamento com a criação. Se de algum modo isso é compatível

com a história dos filhos de Adão e Eva sobre a terra, expulsos do jardim para uma

(des)ordem humana que a partir do pecado original passou a conceber o perigo das

estrelas e o tumulto, também pode constituir reminiscência dessa luta do divino com

o caos primordial de onde proveio a criação (se admitirmos que não está aqui em

causa o modelo creatio ex nihilo), fruto dessa equação que redistribuiu criativamente a

pré-matéria ou o corpo dilacerado de Tiamat.320

Poeta de uma nova criação, que complementa a anterior ou que é uma sua

extensão semântica, o sujeito abandona essa relação cristalina com o mundo,

deixando de produzir “relatórios”, e passa a um nìvel outro de complexidade verbal.

O mesmo é inferir um novo estádio de intelecção do mundo, cuja transparência é

fonte constante de problematização, orientado por padrões de conhecimento e

experiência de um olhar construído ao qual Deus já não se deixa entrever “pelos

baldios”321 como outrora pelo Éden, quando o totem era ainda o totum (Freud).

Aprendiz do olhar algébrico como da aritmética da ausência e da divisão, o poeta

assume-se como artífice do tumulto do real, de que é criador e simultaneamente

hermeneuta, se retivermos a lição do Íon de Platão, que à figura do aedo (produtor)

319 Ibidem. 320 O mito babilónico da criação vem narrado no épico mesopotâmico Enuma Elish, que é comummente assinalado como uma das fontes mais prováveis do Génesis bíblico. Remeto para nota 24. Ver o livro de David Damrosch, Narrative Covenant (1987:51-143). 321 Ibidem.

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232

apõe o paradigma do rapsodo (comentador), num ofício de invenção que implica a

interpretação. No último verso do poema, “Isso foi antes / de aprender álgebra”

ecoa ainda a releitura de um verso de Ruy Belo “era depois da morte de Herberto

Helder”, assim fechando circularmente o poema aberto com o título «A infância de

Herberto Helder», que opera uma clara indexação entre ambos os textos e aponta

Herberto como figura tutelar de um conceito de poesia.

A este primeiro poema, «A infância de Herberto Helder», em mais do que

um sentido primeiro, aporia dois outros que com ele me parecem compor um

tríptico sobre o tema da infância e o modo como esta se relaciona com a construção

do olhar poético, a saber «Travessa da infância» e «Primeira morada». Ambos

assentam num exercício de reminiscência, de visitação reconstruída, que faz a

ligação entre o antes e o “muito depois”322 (que o subsequente verso “repito”323

vem indexar à aprendizagem da álgebra), regressando a essa morada primeira pelo

caminho intervalar da infância, que assim se realça na sua qualidade de fio condutor,

de pólo orientador de uma travessia existencial e poética como forma de habitação do

mundo. É a infância o lugar dessa “janela [de onde se olha] pela primeira vez o

mundo”.324 No entanto, relativamente àquele primeiro poema, cada um deles

propõe a articulação entre o olhar que interroga o mundo e dele retém as primeiras

imagens da infância e o motivo da viagem.

Espectador inquieto do mundo, o sujeito redescobre as verdades

incompletas que guardou na lembrança, esse passaporte do viajante que bem sabe

322 «Travessa da infância», Os Dias contados (2006:14). 323 Ibidem. 324 Ibidem.

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233

como “quietos fazemos as grandes viagens”.325 Tal como “Adriano não sabia”326 o

quanto são “são precárias / as imagens que / rolam pelas encostas difìceis”327

quando contemplava a neve “no alto do etna”,328 do mesmo modo o sujeito recorda

“a secreta glória que senti[u]”329 quando “seguindo o rumor dos autocarros /

olh[ou] pela primeira vez / o mundo”.330 Tanto um como outro experimentam

nessa verdade provisória a ilusão de uma felicidade que “jamais seria turva”331 – e

repare-se como o adjectivo convoca claramente a isotopia visual. Olhar implica,

portanto, estar consciente da precariedade das imagens, daquilo que permanece

remoto apesar do que elas representam:

Só mais tarde descobri que O último apeadeiro de todos Os autocarros Era ainda antes Do mundo332

O mundo tal como se nos dá a ver pertence ao domínio do provisório e é a viagem

o exercício pessoal que permite essa descoberta: a de que todo o deslocamento é

veículo de reposicionamento do sujeito no mundo e para com o mundo (veja-se a

complexidade da rede temporal tecida nesses versos pela carga adverbial) e, como

tal, antecede a possibilidade do reconhecimento. Tem aqui cabimento a herança

kantiana, na assunção de que o conhecimento não se origina mais do objecto que do

325 Ibidem. 326 «A primeira morada», Os Dias contados (2006:16). 327 Ibidem. 328 «A primeira morada», Os Dias contados (2006:15). 329 «Travessa da infância», Os Dias contados (2006:14). 330 Ibidem. 331 «A primeira morada», Os Dias contados (2006:16). 332 «Travessa da infância», Os Dias contados (2006:14).

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234

sujeito e que dessa dialéctica, ou “cìrculo mágico” como lhe chama Ricoeur

(2006:71), nasce enfim a possibilidade da representação, que deriva da formulação

clássica da Crítica da razão pura: “Das coisas conhecemos a priori somente o que nós

mesmos colocamos nelas” (apud Ricoeur 2006). O sentido último da viagem será

então perceber a capacidade de reinvenção do próprio mundo perante o enfoque do

olhar que encontra na deslocação um modo de vencer a turbidez de qualquer

contemplação.

Esta é, talvez por isso, uma poesia onde abundam viajantes,

contemplativos, foragidos e peregrinos. Os seus caminhos são feitos de roteiros, de

mapas, de sinais, de setas, de ruínas, de pousadas, de esplanadas, de praças, de

cidades. Nestes poemas caminha-se, figuram autocarros, comboios e bicicletas. As

cartas, como a memória, percorrem espaços distantes, entre os confins e a distância

(sobretudo a que se interpõe entre o agora da enunciação e o passado), esse estado

do longínquo que, de uma forma ou de outra, sempre marca presença – lembro que

dois dos livros compilados, o segundo e o terceiro, se intitulam respectivamente

Longe não sabia (1997) e A que distância deixaste o coração (1998).

A máxima mais relevante que assiste ao acto de viajar vai Tolentino

Mendonça buscá-la a Baudelaire: “os verdadeiros viajantes / são apenas aqueles que

/ partem por partir...”.333 Citando o autor de Les Fleurs du mal, o poeta integra em

«Brideshead Revisited» uma reflexão sobre o modo como toda a deslocação no

espaço é sobretudo uma movimentação na massa do tempo, elegendo o passado

como destino preferencial de uma revisitação da própria existência, a real e,

333 «Brideshead Revisited», Os Dias contados (2006:23).

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235

sobretudo, a sonhada: “A fonte do castelo de Brideshead / era o local ideal para

enterrar / uma pepita de oiro / se a tivéssemos”.334 O romance de Evelin Waugh

(1945), explicitamente reconduzido para o poema de Tolentino, assume desde logo

um tom memorialístico perpassado de uma atmosfera religiosa que constitui em si

mesma o grande argumento do livro – o que se torna de alguma maneira explícito

no subtítulo da obra, The Sacred & Profane Memories of Captain Charles Ryder. A pepita

de ouro representa no poema a possibilidade de desenterrar a memória de um

passado identitário, aquele que permitiria talvez reconstituir o trajecto de uma ideia

de felicidade que não se dá à vista. Nesse sentido é bem reveladora a sentença sobre

a mulher do pintor Turner (recorde-se que Ryder era também pintor) “para quem a

superfìcie já não é tudo” (em que se reconduz o motivo da profundidade).335 Essa

melancolia da totalidade perdida incita portanto à escavação, a uma certa ideia de

arqueologia do olhar, cúmplice com “a sucessão das árvores [e com] as paisagens

assinaladas no roteiro”.336 Partir por partir, como fará o verdadeiro viajante

desinteressado, será então render-se a esse mapa que nos indica a nós, mais do que é

indicado. Regressar a Brideshead, como Ryder que vive a coincidência fundamental

de regressar “num aquartelamento de acaso”337 ao único lugar que lhe permite

contar a sua história, actualiza assim o desejo de regressar ao início, ao verbo insular

de “No princìpio era a ilha”,338 que surge reactualizado na figura aquática da fonte

do castelo.

334 Idem, ibidem. 335 Ibidem. 336 Ibidem. 337 «Brideshead Revisited», Os Dias contados (2006:23). 338 «A infância de Herberto Helder», Os Dias contados (2006:11).

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236

A par de categorias poéticas como o regresso, que não por acaso marca

presença desde logo na epígrafe de René Char escolhida para a compilação (“en

poésie on n‟habite que le lieu qu‟on quitte”), a poesia de Tolentino encontra ainda a

sua medida na dispersão da viagem e, em cada uma delas, uma outra forma de

habitar ontologicamente o mundo (Heidegger), como acontece por exemplo em «A

casa onde às vezes regresso». De facto, estas duas categorias não se encontram

separadas em Tolentino, elas partilham entre si uma afinidade basilar que fornece o

substrato à sua mundividência poética: “pois / ver não é habitar / o espanto de as

coisas serem?”339 O olhar tolentiniano não enjeita aquela que é a extensão do olhar

disperso pelo horizonte de contemplação e a acuidade da atenção ao detalhe de que

se fazem as coisas, das mais imponderáveis (à partida) às mais relevantes, como o

valor sagrado da vida humana, na qual se completa o plano da criação. Olhá-lo

traduz-se em adorar a maravilha que a existência representa, ao passo que faz

daquele que olha um peregrino viajante no templo do mundo, ainda ao modo

baudelairiano.

Se ao regresso juntarmos a espera, como a que tem por objecto «O

próximo viandante», então veremos completo o périplo hermenêutico que busca o

conhecimento de Deus no texto de outros homens, para quem a revelação é

progressiva e não-epifânica, num fazer do caminho que não obstante dirigir-se ao

divino é sempre demasiado humano e sujeito às contingências do devir histórico. A

própria representação de Deus não está imune a esse estatuto do provisório que

subjaz ao olhar humano, que encontra na espera uma possibilidade de aproximação

339 «Dos olhos de Rubliev», Os Dias contados (2006:26).

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237

à verdade que o real presente sempre adia sob a forma do equìvoco: “não se deve

explicar demasiado cedo / atrás das coisas / o seu brilho cresce / sem rumor”.340

3.3.5. Do olhar turvo

É, pois, a uma região de quase-sombra, de brilho “sem rumor”, que vai a

poesia de Tolentino colher a medida de uma vivência humana tantas vezes

confrontada ante si mesma com a imagem de um reflexo em que se não reconhece,

obrigando-se a repensar os laços frágeis que a ligam a uma certa noção do real,

sempre precário e em transformação. Duas condições essenciais presidem a esse

estado de coisas: em primeiro lugar a lição do salmo bìblico, segundo a qual “[o]

homem é semelhante ao sopro da brisa, e os seus dias passam como sombra”

(Salmo 144:4), que o poeta soube verter em «Fragmento do Livro da Sabedoria»,341

recuperando o tópico da transiência humana nesse livro sapiencial: “A nossa vida é

como uma nuvem que passa sem deixar rasto, há-de dissipar-se como bruma”

(Sabedoria 2:4). Um segundo aspecto prende-se, quanto a mim, com a dimensão

nebulosa e sombria que o mundo assume perante o olhar humano, incapaz de o

conceber ou de o penetrar sob a luz fria da razão instrumental, mas apenas de o

reconstituir numa parcelaridade sempre dúbia e fragmentária: “Há ocasiões em que

o arco prateado se revela / sobre o solo em múltiplos vestígios / que o observador

displicente não reconhece”.342

340 «Da verdade do amor», Baldios (2006:120). 341 O Viajante sem sono (2009:24). 342 «Nuvem», O Viajante sem sono (2009:22).

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238

O topos do olhar encoberto parece-me uma das isotopias mais fortes e

relevantes da poética tolentiniana. Para José Ricardo Nunes, a visão e o olhar

constituem

núcleos semânticos [...] que se afirmam como imediação, como contacto directo e concreto entre o sujeito e o seu exterior [mas que] igualmente representam outros fundos desejos desta poesia: a transformação de indícios ou de sinais em oráculos. (2002:55, 60)

O observador que é este sujeito poético teve de aprender a linguagem dos vestígios

e dos indícios, a partir dos quais vai reconstituindo o seu entendimento de um

mundo toldado pela névoa que encobre todas as coisas. E nisto se aproxima, como

defendo, de um estatuto qoheletiano, na medida em que parece ter como seu o

célebre superlativo hebraico havel havalim, atribuído a Salomão, que Jerónimo na

Vulgata latina vazou no proverbial vanitas vanitatum. Por esta suposta “vaidade” deve

entender-se, antes de mais, a natureza vã ou a vacuidade de todas as coisas, no

sentido lacaniano de que a realidade não coincide com o real, ou ainda kantiano de

que o fenómeno não corresponde ao númeno. Aquilo com que nos debatemos é,

afinal, o limite do próprio conhecimento. E é justamente para esses limites que

Tolentino abre espaço na sua poesia: para o manto de opacidade ou de fumo que

obscurece as coisas, as zonas remotas, o inacessìvel, as “falhas de memória”,343 as da

falência do alcance humano.

Todas as coisas estariam assim cobertas de noite, a mesma “nox” que na

Eneida “rerum [...] abstulit atra colorem” (VI, 272), ou da mesma neblina de que

343 «Grafito», O Viajante sem sono (2009:13).

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239

somos feitos, na fórmula do salmo. Vapor, neblina ou fumo constituem os

correlativos directos desse havel sapiencial,344 cuja suprema lição assenta no

reconhecimento do vazio ou da ilusão que preexiste ao nosso contacto com o

mundo. O primeiro poema do livro aponta, estou em crer, esse mesmo caminho, ao

dizer que “Deus não aparece no poema”. A sua presença permanece oculta, num

predicado que do criador se estendeu à própria criação, solicitando esta poesia que

aceite essa condição para existir, em indagação de uma verdade opaca que

permanece por desvelar, como acontece nos versos que retomam parte do versículo

bíblico de Provérbios (4:18)345: “Os dias são um prólogo se uma pessoa caminha /

até que uma verdade lhe seja revelada”.346 Até porque esta é uma verdade nocturna

que, expirado o seu estatuto cartesiano, não pode senão entender-se no domínio do

apocalíptico, o da madrugada do dia do Senhor (2Pedro 1:19)347.

Em Descobrindo a existência com Husserl e Heiddeger (1997), Lévinas concentra-

se nessa região da fenomenologia husserliana no âmbito da qual se delineia a

temática da “ruìna da representação”. Ao admitir-se a presença do implícito, do

despercebido, do equívoco, no modo como percepcionamos a representação das

coisas, instala-se uma relação de desconfiança que vem minar a relação cognoscitiva

fundamental que se estabelece entre sujeito e objecto. Conceitos como o de

344 Frye nota que “this word (hebel) has a metaphorical kernel of fog, mist, or vapor, a metaphor that recurs in the New Testament (James 4:14). It thus acquires a derived sense of emptiness, the root meaning of the Vulgate‟s vanitas. To put Koheleth‟s central intuition into the form of its essential paradoxe: all things are full of emptiness [...]. The air we breathe is invisible because if it were visible nothing else would be [it is] an invisibility that enables another kind of reality to appear, a mystery turned into revelation” (1990:123, 127). 345 “Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora, que cresce até ao romper do dia.” 346 «Sintra, casa do parque», O Viajante sem sono (2009:41). 347 “E temos assim mais confirmada a palavra dos profetas, à qual fazeis bem em prestar atenção, como a uma lâmpada que brilha num lugar escuro, até que o dia desponte e a estrela da alva nasça nos vossos corações.”

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intencionalidade ou de horizonte influem activamente na posição que o olhar

assume consoante a situação do sujeito e o sujeito em situação, alterando o objecto

na sua representação fenomenológica e adiando a possibilidade de uma completa

acessibilidade ao mesmo. Ora, parece-me que a poesia de Tolentino Mendonça elege

um conjunto semelhante de preocupações na forma como alicerça o olhar enquanto

pilar poético fundamental, levando a cabo o que poderia designa-se uma

epistemologia poética. Como conhecemos o que julgamos conhecer? Constitui a

visão um sentido de captação translúcida do mundo; de que forma o transmite ou

altera? Que repercussões tem isso no modo de relacionamento do sujeito poético

com o mundo e como afecta o seu conhecimento do mesmo?

Estas são questões legitimamente enquadráveis no âmbito desta poética e

que terão funcionado significativamente como horizontes de reflexão e

posicionamento enunciativo. Por isso se interroga o poeta em «Scriptum»: “Poderá a

imagem / descrever o rosto? / e a voz explicar / a palavra?”348 Reflectindo sobre os

vínculos que ligam as palavras e as coisas (tópico foucaultiano), os signos e seus

referentes, a possibilidade e os limites do nominalismo são aqui pesados e sujeitos a

avaliação, questionada que é a sua capacidade para dividir as coisas em categorias

estanques ou, pelo menos, para pretender que as coisas são tão distintas quanto a

diferença entre as palavras nos faz crer: “Fala-me dos países / sem os nomear /

sabes é inútil / repartir as águas.”349 A partição das águas, memória textual do gesto

criativo que precede no Génesis a criação de Deus sobre a terra,350 bem como a

348 «Scriptum», Os Dias contados (2006:17). 349 Ibidem. 350 Génesis 1.

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travessia de Israel pelo Mar Vermelho (episódio que reencena a criação nas suas

premissas básicas de separação, nascimento, reunião e morte),351 convocam aqui a

noção de fronteira instável que o elemento líquido representa na Bíblia, com todo o

seu potencial transgressivo e ameaçador de uma ordem criativa sempre precária e

em constante negociação com o caos e o poder do desconhecido – como atesta a

passagem relativa ao Dilúvio bíblico.352 Como a água, assim também são movediças

as fronteiras desse scriptum que designa a escrita, insuficiente para ordenar o mundo,

assim como o “rosto” sempre excede a “imagem” e a “palavra” a “voz”353: “os

nomes flutuam mais leves que / as algas”.354

Poema de incerteza e de demanda, «Olhar descoberto» parte também da

interrogação sobre a água para endereçar-se regressar a essa categoria multimodal do

olhar, alicerce poético em Tolentino: “Diz-me se / na água reconheces o rumor /

adormecido nos búzios”.355 Uma vez mais, a instância do olhar constrói-se a partir

de fundamentos intelectivos, aqui endereçáveis na categoria filosófica do

reconhecimento, a que Paul Ricoeur dedica o seu Percurso do reconhecimento. Ricoeur

parte de uma perplexidade inicial, a de que, apesar da existência de várias correntes

de filosofia do conhecimento, persiste uma lacuna filosófica no facto de não existir

nenhuma teoria do reconhecimento. No quadro da sua proposta, o reconhecimento

parece conter toda uma gramática em que se fundem tanto a subjectividade como a

alteridade, aquilo que em mim identifica o outro e que no outro é por mim

351 Êxodo 14. 352 Génesis 7. 353 «Scriptum», Os Dias contados (2006:17). 354 «Reconhecimento dos laços», Os Dias contados (2006:19). 355 «O Olhar descoberto», Os Dias contados (2006:18).

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identificável, num jogo que entrecruza a activa e a passiva e que se não exclui da sua

convivência o desconhecimento: “A reivindicação de domínio do espírito sobre o

sentido do alguma coisa encontrou na fase do reconhecimento-identificação um

vector apropriado do verbo „reconhecer‟ tomado na voz activa. Essa pretensão à

captura é sempre acompanhada pelo temor do equívoco, que consiste em tomar

uma coisa, uma pessoa, por aquilo que ela não é” (2006: 267). Ora, é precisamente a

esse tìtulo que se torna relevante sublinhar a pertinência da forma verbal “Diz-me

se”, com que Tolentino povoa o poema na qualidade de anáforas erigidas em

hipóteses estruturantes do mundo.

Diz-me se o Outono tem A ver com as algas Com a incerteza das folhas E se há um sentido oculto No rodar das estações Diz-me se Toda a imagem é engano Ou filha enjeitada do fogo Diz-me se é certo Que o tempo É um único olhar Prolongado nos dias Se a vida é o avesso da vida E se há morte356

Na busca de sentidos para a indagação que move o poema, a forma “diz-me” aponta

a via da interlocução para o conhecimento do mundo, assumindo uma formulação

356 «O olhar descoberto», Os Dias contados (2006:17).

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discursiva que se aproxima da interlocução divina, para a qual se transferem

dialogicamente as respostas que aqui não vemos apresentadas. Este é, por isso, o

ponto de vista humano, demasiado humano na sua “incerteza” perante aquilo que é

o “sentido oculto” das coisas e o “engano” das imagens com que se equivoca o

nosso olhar.

Que olhar é, pois, este que se diz “descoberto”? Duas vias poderiam

oferecer-se como exploratórias neste sentido: a primeira seria a de que por

“descoberto” tomamos um particìpio, que faz do olhar o objecto de uma descoberta

(é daqui que parte a consciência da interrogação do mundo); a segunda, a de que

“descoberto” constitui um adjectivo, transformando o olhar num destinatário ao

qual o poema se dirige (o que justificaria o recurso à forma verbal “diz-me”, pela

assunção do desconhecimento, que actualiza o “não sabia”357 de outrora). Na

primeira se representa a inquietação, na segunda a revelação. Cada uma destas

categorias se estende como eixo semântico que atravessa não apenas este poema

mas também, de resto, o substrato argumentativo ou solo epistemológico (Foucault)

cultivado pela poética tolentiniana. Na sua oscilação entre a angústia cognoscitiva

(derivada de uma consciência sensível, de uma lucidez aguda358 relativamente aos

limites do que é possível saber, pontuada de incertezas e desconfianças) e a

esperança de uma redenção que subtraia o olhar à sua condição turva se joga afinal a

possibilidade de conhecer em transcendência. Note-se o quanto devem à esperança

357 «A infância de Herberto Helder», Os Dias contados (2006:11). 358 «Reconhecimento dos laços», Os Dias contados: “podia […] falar horas seguidas / da lucidez assustadora / deste poema” (2006:19).

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de uma revelação transcendente as questões enunciadas no poema: só aos olhos de

Deus o tempo pode ser “um único olhar / prolongado nos dias”.

Não obstante o tom dubitativo que assume a indagação, é ainda assim

possível aproximar este enunciado do perfil do sábio qoheletiano, a voz bíblica do

cepticismo sapiencial. Apontaria como mais determinante nesta relação de afinidade

a ideia de um esvaziamento ontológico que fere todas as coisas passíveis de serem

conhecidas: “toda a imagem é engano”, lembra o poema. Esse constitui o

sentimento fundamental do Eclesiastes para com o mundo, o de que “tudo é

vaidade”.359 Nesta expressão se cifra o saldo literário do Eclesiastes, cuja

ambiguidade radica no conceito de havel, cristalizado na tradição/tradução ocidental

sob a forma de vanitas, que tem sido entendido como chave para descerrar o sentido

do livro. Em Symbol and Rhetoric in Ecclesiastes. The Place of Hebel in Qohelet’s Work

(2006), Miller reforça aspectos tão relevantes como o seu sentido material de

substância transiente, compatível com a ideia de vapor, neblina ou fumo. Estes termos

terão certamente uma aplicação metafórica quando exprimem a decepção, o vazio e o

absurdo nas reacções de Qohelet perante o carácter contraditório da vida.

Questões como a natureza do tempo, o ciclo das estações, a verdade da

vida e da morte, são para Qohelet pilares fundamentais da sua aventura

gnosiológica. No entanto, estes ecos bíblicos ressoam no poema modalizados, já

sem o grau de certeza com que o sábio bíblico anuncia à comunidade espiritual que

conduz os princípios da sua descoberta. O caminho que a poética de Tolentino

traça, porém, não partilha dessa dimensão autoritativa e gnómica que atravessa o

359 Eclesiastes 1:3. Na tradução da Bíblia dos Capuchinhos, este mesmo versículo é vertido por “Ilusão das ilusões”.

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Eclesiastes, ela desbrava terreno próprio e remete aquilo que constituem as suas

observações do mundo para o domìnio do “se”, para o primado da tese sobre a

teoria e da hipótese sobre a confirmação, a compreensão sobre a explicação

(Dilthey), situado nessa região epistemológica sempre instável que é o

(des)conhecer. Sublinhe-se ainda o tom dialógico que é procurado no poema, mas

que não encontra resposta, no que o alcance do entendimento humano se vê

remetido ao estatuto do provisório, do tentativo, do pré-validatório.

A clarividência do olhar descoberto, essa, não pertence ao olhar poético

tolentiniano, da busca titubeante, da lucidez do incerto, do esboço cognitivo dos

“saberes tão frágeis”360 que são os versos, “cinza do lume”.361 O engano das

imagens, sentidos ocultos, o avesso das coisas são formas outras de prolongar essa

mesma névoa do olhar de que padecia o sábio Qohelet, colector de provérbios e

investigador do humano saber de como melhor viver no mundo. “Vaidade das

vaidades” representa ainda a assunção do conhecimento precário, turvo, do mundo

como lugar de ilegibilidades de que nos vamos apossando, na margem do instável

que é o equívoco, maldição do conhecimento e condição sine qua non para o

conhecimento impossível que ainda vamos tendo das coisas e de nós próprios, no

lugar da noite do nosso desconhecimento: “Depois vinha o dia e a rasura / a

repetida ordenação que os acentos concedem / às palavras / a quase paixão que

jamais tocava os seres / sempre e só a sua representação”.362

360 «Quando ainda se ignora a morte», Longe não sabia (2006:51). 361 «Cinza do lume», Longe não sabia (2006:66) 362 «Teorema», Longe não sabia (2006:72).

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3.3.6. O círculo do ilegível

O tópico da ilegibilidade atravessa a poesia de Tolentino a par de um

outro, o da contemplação do mundo, aliança clássica na história da literatura,

cristalizada na ideia do livro do mundo (cf. Blumenberg 2007 e Foucault 1988).363 Se

por um lado olhar o mundo significa, em primeira análise, apreendê-lo por via do

sentido da visão, à ideia de ler o mundo acresce, por outro lado, a atribuição de um

elo semântico agregador da informação recolhida que atribui a quem olha o estatuto

de intérprete daquilo que vê, por via de uma transmutação de voz passiva em

activa.364 O sujeito perfila-se assim como interrogador do mundo, espectador de

sentidos, hermeneuta visual do que se lhe depara diante dos olhos e se lhe oferece

como enigma do real. Isto mesmo surge configurado numa das imagens poéticas

mais fortes, sob este ponto de vista, no livro de Tolentino, a da «Mesa virada para

Patmos»:

Ao fundo da esplanada na mesa virada para Patmos Gritei pelo anjo da revelação «ninguém no céu na terra ou sob a terra era capaz de abrir e ler o livro»365

363 Tomemos como exemplo «A mão, o muro, o mundo», poema no qual o mundo surge como “livro de incêndios” que a mão do poeta folheia ao mesmo tempo que “sobre o muro traça os vincos / os primeiros versos”, no que a justaposição de escrita e leitura se complementam como formas do olhar sobre o mundo que simultaneamente alimenta e por ele se vê consumida. 364 Considera Josef Bleicher a este respeito o seguinte: “[…] a função do intérprete é a mera descoberta do sentido visado por uma manifestação do pensamento de alguém e a compreensão do estilo de pensamento e imaginação nele patente. O sentido e a forma de imaginar não é, no entanto, algo que se ofereça, pura e simplesmente, a um intérprete passivo, através de formas significativas, e que precise, somente, de ser recolhido por um processo mecânico. Pelo contrário, é algo que o intérprete tem de reconhecer e reconstruir dentro de si mesmo, com o auxílio da sua intuição e com base no seu próprio conhecimento criativo e prático” (2002: 91-92). 365 «Na mesa virada para Patmos», Longe não sabia (2006:44).

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247

Reflexão poética sobre os limites da interpretação, o alcance desta composição

funda-se antes de mais na citação textual do livro do Apocalipse (5:3), donde parte

para a interpelação da leitura a partir de motivos bíblicos integrantes do seu campo

associativo. Figura de contiguidade, a mesa oferece-se aqui como metonímia da

produção escrita, fórmula actualizada das tábuas de pedra que o poeta irá indexar ao

perfil de Moisés na última parte do seu livro. Este movimento constitui uma forma

de focalização da escrita e do que nela implica o necessário gesto de leitura, as suas

margens de possibilidade, mas sobretudo aquilo que nela sempre permanece para lá

da tangibilidade enunciativa.

É essa margem da distância que uma vez mais se desenha em “ao fundo”,

sugerindo a circunstância do isolamento quando na verdade se trata do isolamento

enquanto ontologia. A mesa aparece recortada entre as outras mesas que compõem

a esplanada, no seu conjunto de mesas mais ou menos povoadas, como ilha entre as

ilhas,366 ou não fosse a condição da insularidade manifestar-se aqui sob o signo de

Patmos, ligada pelo mesmo eixo que direcciona e simultaneamente prolonga:

“virada para”. É ela ainda a ilha com que abre “no princìpio”367 o livro de

Tolentino, actualizando nele a herança de um génesis subjectivo, poético e literário

em que se fundem a origem do eu, a formação do poeta, as relações de

intertextualidade que se estabelecem, em sentido fundacional, entre a escrita e o

grande código literário que a Bíblia constitui e a dívida que para com ela assume esta

366 Cf. a associação entre a mesa e a evocação da ilha em «Reis magos»: “Uma mesa de plástico, branca […] / de repente estávamos sozinhos / as ilhas muito inacessìveis […] a mesa estava encostada às janelas do café / e nós de forma desolada / ignorados, aturdidos, de passagem […]” (2006:126). 367 «A infância de Herberto Helder», Os Dias contados (2006:11).

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poesia: “a Tua palavra / É o fio de prata / Que guia as folhas / Por entre o

vento.”368

Cabe também a esta ilha, imagem do princípio e concomitantemente da

escatologia poética, a função de justapor o Génesis ao Apocalipse, retomando a

heraclitiana figura do círculo, em que se confundem o princípio e o fim, que por sua

vez pressuporá um novo recomeço. O símbolo da ilha coloca-se aqui à cabeça das

figurações da circularidade que se denunciam neste poema, nos “braços”369 que se

abrem e se fecham, no “escuro da roda [em que] as orações são perpétuas”,370 na

“coroa”371 sobre a cabeça da pequena irmã, no “poço da quinta”372 ou ainda na

forma dessa “coisa tão pesada [que] é a Lua.”373 Estas são, no fundo, expressões da

totalidade e da permanência sempre ameaçadas pelo reposicionamento sistémico

que a relação entre Génesis e Apocalipse nunca deixa de pressupor: “a medida do

que perdemos é a medida do brilho”.374 Indo mais longe, a ilha configura ainda o

modo como a leitura se constrói na refeitura circular de si mesma, o pacto que torna

possível a compreensão do sentido por via do círculo hermenêutico, que implica a

existência de uma unidade acabada de sentido que permita a refeitura do sentido

final do texto (Gadamer). Partindo do esboço do conjunto, de um pré-sentido

inicial, a leitura progressiva tenderá ao aperfeiçoamento, à revisão dos pressupostos

iniciais sem os quais não teria lugar a leitura, fazendo de todo o entendimento um

processo sempre prévio e provisório, que carece constantemente de validação. Na

368 «A fala do rosto», Os Dias contados (2006:31). 369 «Na mesa virada para Patmos», Longe não sabia (2006:44). 370 Ibidem. 371 Ibidem. 372 Ibidem. 373 Ibidem. 374 Ibidem.

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articulação entre parcela e totalidade, assinala-se a pré-compreensão e a sua

importância como estádio correspondente à infância, lugar poético tão caro a

Tolentino Mendonça, de leitura do mundo.

A questão que aqui terá ainda de colocar-se é a de se é possível encontrar

a unidade do sentido num texto que resiste à leitura ou para o qual não existe leitor à

altura (“ninguém no céu na terra ou sob a terra / era capaz de abrir e ler o livro”).

Para Heidegger, “what is decisive is not to get out of the circle, but become into it in

the right way” (1996: 195). Mas o problema parece ser prévio, na medida em que o

livro a que se reporta Tolentino através da explícita referência bíblica sempre esteve

fechado, o que faz do leitor um elemento externo e do livro um objecto impossível,

incomportável, completo apenas na sua inacessibilidade. Haverá então de

considerar-se o duplo alcance da questão hermenêutica, uma vez que, na esteira de

Heidegger, não se trata apenas da estrutura metodológica da compreensão

hermenêutica mas, o que é mais, da natureza da própria inteligibilidade humana. A

interpretação não encontra, deste modo, o seu fim último na explicação de um texto

mas antes na compreensão da natureza humana, que se coloca em Tolentino como

problema poético. Ler o livro constituirá assim exercício afim de olhar o mundo, e

do sentido de viver nele: “Também eu pensava na minha vida / contada a distraídas

crianças”.375

O enfoque tolentiniano sobre a leitura, porém, coloca o problema da

ilegibilidade do livro, ou em última instância do mundo (num quadro de extensão e

transferência com que a sua poética parece jogar constantemente). A pergunta “o

375 Ibidem.

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que é ler”, “o que é olhar”, soergue-se de entre todas as outras como motor da

produção poética. Ao contrário dos olhos, que se abrem na noite, o livro permanece

fechado e ilegível, sob a mesa virada para Patmos, a ilha em que o Apocalipse

declara textualmente ter sido escrito.376 Que livro é este que resiste à abertura, à

leitura, à contemplação dos olhos? O livro de poesia que o leitor tem em mãos (de

sete partes), o livro do Apocalipse (onde se menciona o rolo de sete selos), ou a

própria ideia de livro? A resposta a esta questão não se deixa resolver numa simples

escolha; antes, co-implica todas as hipóteses na experiência de leitura que

proporciona ao leitor: leitor de livros, que lê este livro de poesia em concreto e que,

por meio dele, é dirigido à leitura da Bíblia, o paradigma do livro em si mesmo. E

uma vez mais regressamos à manifesta circularidade procurada pelo poema, como

um rolo dobrado sobre si próprio: «Mas não havia ninguém […] capaz de abrir o

rolo ou olhar dentro dele» (cf. Apocalipse 5:3). Que forma de leitura é, afinal, a que

solicita a poesia de Tolentino Mendonça? “Também eu me recuso a dizer apenas /

o que pode ser dito”,377 uma poesia que “[desce] o sombrio, o nocturno atalho” que

conduz “à beira não do fim / mas do informulável”.378

Ler o livro fechado será ainda prolongar esse feixe aporético que serve

aqui de pedra-de-toque a uma concepção poética que se funda na noite, na ausência

de luz, na condição diferida do sentido, porque não unívoco nem manifesto – ler no

376 “Eu, João, sou vosso irmão e companheiro na perseguição, no reino e na constância cristã, encontrava-me na ilha de Patmos, por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Apocalipse 1:9). 377 «Hotel inglês», A que Distância deixaste o coração (2006:91). 378 «O nocturno atalho», Baldios (2006:116).

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escuro.379 O livro aberto seria necessariamente incompleto, em refeitura constante,

ao passo que fechado, inacessível, ele permanece perfeito, acabado, ilegível na sua

completude. Trata-se, no rasto da citação, de uma legitimação apocalíptica para a

busca de sentido que se confronta com os limites da interpretação, em tensão

literária que oscila fundamentalmente entre superfície e profundidade.380 Estamos

perante uma rejeição da hipótese da evidência como fundamento basilar do

conhecimento, na encruzilhada entre o real objectivo e a noção, de raiz

hermenêutica, de que a verdade permanece inacessível aos sentidos primeiros – a

ideia de que a essência do real só é atingível pela decifração. Não poderíamos andar

mais perto da acepção etimológica da palavra “apocalipse” (do grego, o que está por

baixo, oculto, por revelar),381 o que mais do que justifica a convocação do anjo da

revelação por parte do poeta-profeta, que espera “diante do anjo […] que seja a sua

escura seta / quem desloca os sinais”.382

3.3.7. Uma poética da revelação

Perante o desafio da impossibilidade da leitura e, em última instância, da

inexistência de um sentido das coisas apreensível pelo olhar humano, eis que na

ambivalência do termo apocalipse se permite entrever não apenas o que permanece

oculto, mas talvez acima de tudo o que está ainda por revelar. A revelação surge

379 Veja-se a formulação afim em «Compaixão», “Lemos nos olhos fechados […]” (2006:92). 380 Cf. «Terras escuras»: “desces à cisterna para medir / com vara-de-ouro / a altura das águas / devolves teus haveres / a uma ordem indecifrável” (2006:106). 381 Sublinham Alter e Kermode que “Apocalypses, by their very nature, were designed both to reveal (to believers) and to conceal (from the unworthy) […] Apocalypses belong to a literary form that absolutely requires to be read as containing more than apparent senses” (1983: 526, 527). 382 «A invenção da língua (sequência)», Longe não sabia (2006:78).

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então como via privilegiada para a emergência do sentido. O que está aqui em causa

é o predomínio do transcendente sobre o imanente, a insuficiência do olhar humano

na captação do verdadeiro sentido do que se passa à sua volta, que seria o sensus

spiritualis da hermenêutica clássica.383 Este não se encontra acessível senão por

interferência externa ou transcendente, é esse o significado da revelação, a

desocultação visual de todas as coisas, a percepção de uma verdade inelutável que

permanece adiada diante dos mecanismos do entendimento humano.384 Esta é uma

temática transversal à poesia tolentiniana, que mesmo quando não directamente

evocada se manifesta ao nível da epistemologia do olhar, o conhecimento prévio da

natureza do olhar, seu alcance e seus limites. Tomemos em consideração «Strange

eyes», poema exemplar a este título:

Que revelações nos esperam Sem modo nenhum de compreensão […] Um caminho de barro vermelho e poeira E eu abraçado a ti na grande bicicleta Nunca tirava os olhos dos campos Às vezes avistava um anjo de costas voltadas […] De terra em terra indivisíveis Somos uma coisa que Deus toca A história será apenas Um indício para a história

383 “The first orientation aims to establish what the words in a passage say, to determine the sensus litteralis. The second asks in addition what the passage means, what the words, as mere signs, point to. This is the interpretation of the sensus spiritualis, allegorical exegesis. Both orientations shaped the beginnings of philological and theological hermeneutics” (Szondi 2003:5). 384 Remeto para o ensaio de José Augusto Ramos sobre literatura apocalíptica e a importância do conceito de revelação nesse contexto: “Este conceito [o de revelação] define um tipo de conhecimento e um domínio de certezas cuja origem ou cuja fundamentação são superiores àquilo que a condição humana poderia conseguir” (2002: 51).

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Um sinal que nos escapa385

A justaposição da revelação à compreensão parece sublinhar a dialéctica

entre revelação e hermenêutica (no sentido lato da interpretação do texto-mundo) –

que relações, que fronteiras se estabelecem entre ambos os termos da equação?

Ambas têm por objecto a história, o discurso sobre o percurso do homem no

mundo ao longo das épocas/a verdade do passado e conjunto de passado presente e

futuro/a ficção ou a narrativa literária (este poema em concreto), que o poema

indicia como destino final e na resolução da qual desemboca. Perante a falência das

estruturas humanas, esta poética reencena o confronto já clássico entre sabedoria

humana e sabedoria divina, ou se quisermos a margem que dista a filosofia da

teologia. Chegados ao limite da escatologia semântica, cuja matriz apocalíptica deve

ser sublinhada (a história como fim, a solução do mistério do tempo),386 assinale-se

que esse “caminho de barro vermelho e poeira” (que não pode deixar de ser a vida

do homem terreno, “[formado] do pó da terra”387) descreve o movimento circular,

plasmado no abraço humano do mundo, que gira como a roda da “grande bicicleta”

– figuração aristotélica do motor imóvel e círculo neoplatónico do divino, cujo

centro está em todo o lado.

No quadro referencial do pensamento apocalíptico, acrescente-se ainda

que a revelação constitui o modo privilegiado através do qual Deus se dá a conhecer

385 «Strange eyes», De Igual para igual (2006:152). 386 Remeto para a observação de Derrida sobre a presença do elemento escatológico no seio de uma lógica apocalíptica (quen não têm necessariamente de coincidir, como nos mostra José Augusto Ramos 2002): “o escatológico diz o escathon, o fim, ou antes o extremo, o limite, o termo, o último, o que vem in extremis concluir uma história, uma genealogia ou muito simplesmente uma série numerável” (Derrida 1997: 16). 387 Génesis 2:7.

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à humanidade, não apenas na qualidade de criador como também na de condutor da

História, como destaca John Doll: “God is revealed throught the history and life of

Israel […] Though events are vehicles of history, these become revelational only

when interpreted” (1994: 7, 8). No entanto, ao homem cabe apenas interpretar essa

manifestação, que em nada depende deste para ocorrer e para o qual não possui

conhecimento pré-existente, se bem lermos Clemente de Alexandria:

[God] cannot be comprehended by knowledge, which is based on previously known truths, whereas nothing can preceed what is self-existent. It remains that the Unknown be apprehended by divine grace and the word proceeding from him. (1963:169-170)

Esta parece ser uma condição que a poética tolentiniana está disposta a

aceitar, a de que é necessário que algumas coisas permaneçam por conhecer, já que

nela encontra motivo para a sua formulação, como se a poesia precisasse dessa

matéria do desconhecido para poder acontecer, para poder endereçar-se ao mundo

que pode apenas interrogar, como lemos em «O olhar descoberto». Interlocutora

privilegiada do sentido da revelação, a poesia não pode sucumbir à limpidez do logos

que ilumina, sob pena de anular o seu potencial trancendente, a sua vocação das

coisas últimas, a sua vocação metafísica que intui o que nem sempre o

conhecimento filosófico ou racional consegue alcançar: “Debaixo do véu não

modifiques / as percepções antigas / sejam os enigmas quem adestra / suas

próprias sequências” – disso depende afinal «A invenção da língua», máquina do

divino, instrumento do homem para interpretá-lo. E nisto a hermenêutica parece

conviver a par com uma consciência do mundo como fenómeno hermético, que não

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se dá ao olhar mas que repetidamente o desafia a conviver com o lado turvo sem o

qual não há possibilidade de entrever essa luz escura da qual nasceu o mundo: “[…]

o fortuito significado dos campos / explica por outras palavras / aquilo que tornava

os olhos incomparáveis”.388

É por isso necessário regressar ao princípio, admitir a nossa cegueira para

melhor contemplar o mistério do mundo. Esse é, afinal, um dos pilares da revelação,

a possibilidade de germinação de um novo começo, se seguirmos na rota do círculo

hermenêutico bíblico que a partir do Apocalipse “renova todas as coisas”

(Apocalipse 21:5). E deste movimento de renovação universal parece não se

descartar a poesia de Tolentino, uma vez que se oferece como espaço dessa

manifestação, elemento partícipe do desígnio verbal do divino, como se sugere em

«Revelação»:

Meu o ofìcio incerto das palavras […] Meu o provisório olhar […] Meus os dedos que em tumulto modelam capitéis […] Mas oculto na brisa És Tu quem percorre o poema Despertando as aves E dando nome aos peixes389

A margem de imperfeição de que o poema se lança para o mundo dá-se como lugar

privilegiado para o movimento do divino que, oculto, longe do olhar, participa nesse

tumulto criativo que o poema faz remontar ao génesis primeiro, ao aludir à imagética

do jardim do mundo, em que se destacam a brisa, as aves ou os peixes. O sentido

388 «Os amigos», De Igual para igual (2006:150). 389 «Revelação», Os Dias contados (2006:25).

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profundo do texto está nesse regresso ao magma da literatura de criação, que

encontra no Génesis a sua primeira matriz e, sem a qual, nada poderia ser revelado –

é necessário que o poema exista para que possa ser percorrido por Deus, do mesmo

modo que o Apocalipse nunca poderia fechar o círculo que o Génesis não tivesse

começado por descrever. O poema é, assim, um duplo tipológico da criação (ela

mesma já duplicada no dilúvio e nas tábuas da lei), o tudo que existe com vista a um

poema, para recorrer à formulação de Mallarmé (“tout, au monde, existe pour

aboutir à un livre”).

Se é certo que, por um lado, “nós estaremos quem sabe longe / do que

tem significado”,390 também por outro “olhos buscam na clareira o ponto invisìvel /

um único sentido, infinitas vezes”.391 Entre um e outro, oscila o humano

movimento pendular do qual a ânsia hermenêutica nunca está excluída e que remete,

em última instância, a revelação para o domìnio da visão, até porque “o Apocalipse é

essencialmente uma contemplação (hazôn)392 ou uma inspiração (neboua) perante o

vislumbre, o descobrimento de YHWH e, aqui, de Yeshoua‟, o Messias” (Derrida

1997: 9). Na verdade, a lição tolentiniana extraível no contexto da exploração das

fronteiras entre poesia e hermenêutica poderá ser a de que a revelação só se torna

possível se nos mantivermos acordados para os sentidos do mundo e para a

presença de Deus nele (mesmo quando oculta, o paradoxo da parusia). Revelar não é

outra coisa senão estar acordado, esse (re)velar que nos convida a manter abertos os

olhos e com eles ler os mundos dentro do mundo, os textos de que se faz o texto –

390 «Às escondidas», De Igual para igual (2006:164). 391 «Clareira», Estrada branca (2006:192). 392 Derrida chama a atenção para o facto de que, na tradução de Chouraqui, o Apocalipse de João é chamado de “Contemplação de Yohanân.”

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e que aqui podemos acompanhar no modo como o texto bíblico sustenta essa

ambição tão teológica quanto literária.

Para isso teve o poeta de ver no escuro e de dar-se a ler nessa mesma

escuridão profícua que, para regressar a Maria Zambrano, representa a elevada

forma de amor com que a poesia estabelece os seus laços para com o mundo:

Só no amor, na absoluta entrega, sem que fique nada para si, vive o poeta, enfim. A poesia é um abrir-se do ser para dentro e para fora, ao mesmo tempo. É um ouvir no silêncio e um ver na escuridão […] uma entrega ao que não se sabe ainda, nem se deixa ver. (2000: 128)

Lembremos como “O amor é uma noite a que se chega só” se deixa eleger como

súmula poética de «A noite abre meus olhos», sendo essa ainda uma forma mais de

exprimir o entendimento de um Deus em revelação, esse nome em que por vezes se

transfigura o grau último do sentido.

3.3.8. O Viajante sem sono: palavra transfigurada e palavra sacral

Proponho que, no fecho deste capítulo, as questões em torno da

transfiguração da noite e do sagrado sejam os eixos orientadores da minha reflexão;

a sua escolha radica não apenas no modo como se impõem naturalmente per se ao

leitor de O Viajante sem sono, bem como da restante produção do poeta, mas também

na medida em que solicitam a esse mesmo leitor uma atenção hermeneuticamente

vocacionada para a questão da própria leitura. Uma leitura de poesia, é certo, mas

também dos textos que nela e com ela entram em diálogo, em ecuménica

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confluência literária. E com isso quero significar a forma como este é um diálogo

profícuo que implica o mundo, e a ele replica, à maneira deleuziana de uma dobra

que agencia a multiplicidade do fenómeno vivencial da arte e do pensamento

humano, que se estende da percepção e subjectividade individuais às formas

monádicas da representação do mundo.

A questão figural parece-me determinante, com efeito, na poética

tolentiniana. Entramos, pois, em território afecto aos problemas da representação

literária, lato sensu, a cuja trajectória dedicou Auerbach vários estudos de referência,

sendo que em Figura. La Loi juive et la promesse chrétienne (1938) traça especificamente a

evolução semântica do termo, partindo da sua acepção plástica na Antiguidade,

passando pela conotação retórica tradicional que conserva até aos dias de hoje e

contemplando ainda o alcance teológico que alcançou por intermédio da exegese

patrística. É neste âmbito que o autor sublinha a importância de Orígenes (a quem

Henri de Lubac viria posteriormente a consagrar, em 1950, a obra Histoire et esprit:

l’intelligence de l’écriture d’après Origène) como fautor de uma teoria do alegorismo, a que

Santo Agostinho se oporá com a interpretação figural das Escrituras, na senda de

Tertuliano. Embora a fronteira entre alegoria e figura não chegue sequer a ser

delimitada em muitos autores, como nota Auerbach, a distância entre uma e outra

poder-se-ia dizer o ponto que separa a universalidade das Escrituras Hebraicas da

valência tipológica, e por conseguinte prefigurativa, das Escrituras Gregas; enquanto

a figura possui um direccionamento historicamente localizado, a alegoria projecta-se

para um nível supra-histórico; uma é promessa e concretização temporal, i.e.,

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horizontal, outra a extrapolação filosófica do sentido vertical; uma é sincretismo e

aculturação, a outra entendimento generalizante e reenvio espiritual.

Se bem que em Tolentino Mendonça não possa dizer-se que exista uma

referenciação directa a esta questão hermenêutica, ao leitor e ao crítico, porém, é

solicitada a capacidade de entrevê-la. Por isso mesmo, não deve estranhar-se que a

referência inaugural de O Viajante sem sono nos chegue de uma declaração do

apóstolo Pedro, proferida por ocasião da subida à montanha onde Jesus opera o

momento da sua transfiguração: “Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: «Mestre, é

bom estarmos aqui»” (cf. Marcos 9:5). Circunstância de excepcional revelação

divina, a metamorfose cristológica combina em bíblico triângulo a pluralidade da

manifestação do sagrado: a palavra, a lei e a profecia, representadas respectivamente

nas figuras de Cristo, Moisés e Elias. Na verdade, a Pedro e aos apóstolos é dado o

privilégio de presenciar nesse episódio relatado nas Escrituras Gregas aquilo que

não poderiam conhecer senão das Escrituras Hebraicas: a continuidade da auto-

revelação de Deus através das teofanias da montanha,393 das nuvens ou do fogo. É

esta a chave com que Tolentino começa por convidar os seus leitores a descerrar a

porta que abre para a viagem poética do despertar humano, das revelações

manifestas (através) da palavra. Aquilo que me parece ser de sublinhar é, justamente,

a dimensão dessa palavra poética desdobrando-se em si mesma, em processo

contínuo de auto-desvelamento enquanto origem e representação meta-reflexiva do

393 Diz-nos Northrop Frye que “transfiguration, unlike resurrection, is a mountain-top epiphany [...], it takes place on a height that suggests the summit of the order of nature. [It also] represents the identity of the Word as the person of Christ with the Word as the Bible. Jesus appears inthe transfiguration with Moses and Elijah, the law and the prophets, the major components of scripture” (1990:184).

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mundo, que o deìctico “aqui” vem reforçar na sua textualidade, remetendo para as

Escrituras assim convocadas e decompostas em três dos seus princípios

constitutivos.

Prossegue o relato evangélico apontando a incompreensão dos apóstolos e

o medo que sentiram, incapazes de mensurar a real dimensão do evento teofânico,

quando confrontados com o manto nocturno do seu desconhecimento: “formou-se

então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra” (Marcos 9:7). O motivo da

cegueira é aqui reconduzido no momento da confirmação divina das credenciais

cristológicas pela voz que desce dos céus, forma de subscrição da autenticidade do

Filho pelo Pai: “de repente, olhando em redor, já não viram ninguém” (Marcos 9:8).

E não por acaso retomo aqui a senda textual do evangelho de Marcos, escolhido por

Tolentino para abrir sob a forma de epígrafe o seu livro. É de realçar que a matriz

do livro de Marcos traz consigo a cartografia do pensamento sinóptico, sendo

modernamente aceite como o primeiro dos relatos evangélicos (cf. Styler 1993:726),

cujos principais pilares se firmam em torno dos filões do desconhecimento e dos

limites da fé face à obscuridade da ignorância humana, como salienta Culbertson no

seu The Poetics of Revelation:

Mark‟s gospel is about the difficulty of understanding, not the difficulty of getting the right information. The message is frequently subjectively incomprehensible at the time it is uttered. The fullness of truth is present to the characters in Mark‟s narrative only as promise. (1989:144)

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Ora, julgo que não andaremos longe daquilo que, a meu ver, é uma isotopia

estruturante da poética tolentiniana, a de que as linhas de força actuantes no devir

humano se intersectam no limiar da contraposição de si mesmas, o claro-escuro da

certeza incerta, como aquela que Tolentino coloca logo após o pórtico de entrada

do seu livro. Poema de iniciação aos “noviços”, a condição do noviciado abrange

aqui a tomada de votos poéticos antes da consagração à leitura, servindo portanto

de roteiro interpretativo, exercício de introdução ao apostolado poético. Ao retomar

o episódio da transfiguração, e remetendo por conseguinte para a nossa condição de

leitores-apóstolos, a lição está cristalizada nesse incipit primeiro, como suma de tudo

aquilo que virá ainda a ser dito: “Deus não aparece no poema”. O tom forte da

premissa, afim dos domínios da apofática, levar-nos-á a procurar a intersecção

possível com «Revelação», poema publicado em Os Dias contados, de que “oculto na

brisa / és Tu quem percorre o poema, / despertando as aves / e dando nome aos

peixes”, no que se reforça a ideia tomista de um Deus absconditus que habita o poema

(como, de resto, a criação) e solicita à cegueira do nosso olhar provisório a

hospitalidade necessária à sua revelação.

De facto, a palavra poética é o único indício da presença desse Deus que

caminha adiante do sentido, como a estátua de fumo que guia o percurso incerto do

povo no deserto – movimento animado pela promessa e da esperança que faz de

nós, homens e intérpretes, figuração possível do homo viator (em acepção marceliana

ou ainda em remissão ao sentido rilkeano da peregrinação) que é todo o potencial

hermeneuta da vida. O passo que o acompanha, feito da espera e da indagação

tentativa que constitui o processo de intelecção, não pode senão reduzir-se à sua

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condição de permanente diferimento, do atraso que consiste em chegar depois,

apenas a tempo de “[escutar] a sua voz de cinza”, rasto do que já não é, traçado de

um in absentia mais que evidente. Não podemos senão chegar tarde, condenados que

estamos a um atraso essencial, ao abismo ontológico que intermedeia sujeito e

objecto, em clara consciência de que “o mundo é aquilo que nos separa do mundo”,

como aponta o poeta em «Trieste».394 Horizonte de uma poética que dramatiza o

humano, a poesia de Tolentino estatui-se como figura de um sentido por revelar,

ante os olhos a conservar abertos, nostalgicamente projectados para o sempre-

futuro de um (im)possível cumprimento.

Aquilo de que os poemas deste livro nos falam é, ainda e sobretudo, de

um itinerário pela natureza das coisas, atravessando as regiões e as fronteiras do

conhecimento humano, agrupados que estão em torno da experiência e da memória

de um viajante desperto, cujos olhos “são o que resta dos livros sagrados” – como

reconhece o poeta em «De Profundis»,395 onde recapta a dimensão vocativa do

clamor davídico (Salmo 130) que ergue a voz ao divino, a partir da deixis recôndita

do humano. Trata-se, no fundo, de uma viagem iniciática pelos mistérios que ligam

o humano ao divino, da força que move essa procura, da indagação que a norteia e

das interrogações com que se depara e em que procura reconhecer-se: “a tua seta

atirada ao alvo / fende o céu / e este logo se une”.396 Porque é precisamente a

questão de um re-conhecimento unitivo, tão a par do sentido da visão, que se

assume como ponto obsessivo desta poesia, como acontece repetidamente em «O

394 O Viajante sem sono (2009:19). 395 O Viajante sem sono (2009:31). 396 «Fragmento do livro da Sabedoria», O Viajante sem sono (2009:24).

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Vento», “[t]alvez [...] pelas fagulhas da luz reconheças o vento”,397 ou ainda em «O

Corredor na penumbra», “quando [...] os espelhos não nos reconhecem”.398

A vertigem do conhecimento está aqui, como de resto em toda a

produção poética tolentiniana, associada a um labor interpretativo, de cariz

eminentemente hermenêutico, no âmbito do qual me parece fazer sentido o

equacionamento de uma herança de leitura bíblica ou de tradição religiosa. É este

um dos esteios que avizinha esta poesia da esfera do sagrado, o que o poeta assume

em discurso directo: “a poesia [torna] mais exigente a indagação por Deus [...] os

novos livros que se estão a publicar são também textos sagrados e de certa forma

são novos textos sagrados” (Mendonça apud Marques 2009:36-37), na mesma linha

que prolonga a célebre máxima de Gregório Magno, segundo a qual scriptura cum

legentibus crescit. Texto aberto, livro sem fim: esse é ainda o desafio que alimenta a

chama da poética tolentiniana, a de uma abertura fundamental ao por-vir de

Blanchot, reserva de uma disponibilidade interior consagrada à espiritualidade que,

em óptica levinasiana, como o poeta assume em epígrafe ao poema «Grafito»,

definiria uma certa praxis da poesia, no seu grau de pureza mais elevado – a do “acto

espiritual por excelência”.399

O texto sagrado continua, assim, a ser escrito, em contínua revelação, e a

reescrever-se poeticamente na inscrição que todo o processo hermenêutico nunca

deixará de pressupor. Por um lado, O Viajante sem sono, como os restantes livros de

poesia que o antecederam, acorda uma ligação ao texto bíblico matricial através de

397 O Viajante sem sono (2009:30). 398 O Viajante sem sono (2009:26). 399 O Viajante sem sono (2009:13).

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264

referências várias como as que aqui pudemos destacar em de «De Profundis» ou no

«Fragmento do Livro da Sabedoria». Mas, por outro, aceita prolongá-lo e prolongar-

se nele, nesse caudal infinito que se inicia na leitura bíblica e contagia toda uma

leitura do mundo, oferecendo-se à refracção inspirativa desse divino que, como

outrora, sem aparecer no poema vem despertar as aves e dar nome aos peixes que o

habitam. E assim se perpetua o paradoxo de uma noite que desperta, de um Deus

que se manifesta sem aparecer, de um verso que oculta e desse modo dá a ver,

justamente na senda de uma revelação que surge no fim, remetendo para o princípio

– pleno apocalipse de si mesma.

Velando para manter-se desperto, desvelando para retirar o manto que

cega, O Viajante sem sono, na linha de A Noite abre meus olhos, vem render-se a esse

movimento simultâneo feito de paradoxo e de pleonasmo que é a re-velação, na

senda do offenbarung hegeliano, misto de aparição e ocultamento. Figura e sombra de

si mesma, a poesia de Tolentino permanece com desassombro frente ao espelho

alegórico, o mesmo que já havíamos encontrado em «O Corredor da penumbra», da

promessa que Paulo anuncia e descerra nesse berço da exegese que é a passagem de

1Coríntios 13:12: “Agora, vemos como num espelho, de maneira confusa: depois,

veremos face a face. Agora conheço de modo imperfeito, depois, conhecerei como

sou conhecido”. A indagação do enigma é tarefa dos que buscam ver o seu, bem

como o rosto de Deus, faces de uma moeda feita de imagem e semelhança; a

questão que sempre se-lhes porá, herdada do tempo de Moisés, será a de conseguir

vê-l‟O e, ainda assim, permanecer vivo.

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265

IV

CONTRA-LIVRO, CONTRA MUNDUM.

O CASO DE MIGUEL TORGA

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266

Uma das utopias distintivas do enciclopedismo alemão é a ideia hegeliana

de que o livro ideal e absoluto comportaria dentro de si o seu contra-livro. Novalis,

já referido no primeiro capítulo desta tese, buscara no seu idealismo mágico uma

fórmula romântica da totalidade do conhecimento livresco na súmula bíblica (cf.

Blumenberg 2007:276). Este desejo é passível de tomar múltiplas formas. Ao longo

da feitura desta tese, explorando formas possíveis de aliança entre poesia e teologia,

fui encontrando pactos diversos que de si mesmos dão conta através de

manifestações várias: entre o sagrado e o profano (Ruy Belo), entre poesia e mística

(Daniel Faria) e entre poesia e hermenêutica (Tolentino Mendonça). No entanto, fui

sentindo também a necessidade de equilibrar este balanço, do acordo mais ou

menos tácito que estes poetas fizeram com o intertexto bíblico, com uma voz

poética que fosse capaz de se insurgir contra esta aliança. Essa voz, não poderia tê-la

encontrado senão na poesia de Miguel Torga. É precisamente de um tal desacordo

que trata este capítulo, colocado no lugar de encerramento da presente dissertação.

A esta escolha me moveu não apenas o desejo do contraditorium literário, mas

sobretudo a vontade de explorar um filão poético que, sendo ele assumidamente

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267

contra-bíblico (no seu corpo cristalizado de valores religiosos), não deixa de se situar

no mesmo campo de referencialidade bíblica.400 E fá-lo através de uma estratégia

literária que deliberadamente convoca a herança bíblica, para deformá-la e

contraditá-la, a partir da sua polifonia essencial e dos seus momentos de coloração

mais heterodoxa. É este efeito que pretendo suscitar com a fórmula patrística do

contra mundum, que celebrizou Atanásio (295-372 d.C.) no seu texto apologético do

cristianismo contra a heresia ariana e a perseguição dos cristãos pelo imperador

romano Diocleciano. A evocação de um tal texto não é operada aqui por ironia, mas

enquanto forma de subversão de um discurso religioso pela afirmação poética do

humanismo torguiano. A palavra de fecho desta tese reserva assim lugar para aliança

e a contra-aliança, a velha aliança e as novas formas de aliança. A poesia de Torga

encontra neste contexto uma posição externalizante, conflitual, agónica que passa

pela escolha deliberada e polemizante de uma voz bíblica como a de Job, na linha de

uma tradição bíblica contestatária e contra-canónica.401 Estou em crer que a

dimensão heterodoxa desta poesia se encena na dramatização do humano, por meio

de uma pluralidade de vozes que se unissonizam em Job, feito paradigma de um

dialogismo bíblico que alteriza radicalmente Deus como o outro absoluto, ou o

400 Veja-se, neste sentido, a declaração de Eduardo Lourenço, para quem Torga se situa “na linha de Antero, de Junqueiro, da contestação cada vez mais radicalizada da imagem de Deus inculcada por séculos de teologia e de prática efectiva e afectiva do nosso catolicismo [...]. Esta glaciação da imagem divina [à maneira de Rimbaud e de Nietzsche] nunca teve lugar em Portugal. Aflorou darwinisticamente em Aquilino, está latente no «humanismo prometaico e lírico» de Torga, mas em nenhum deles encontramos um «ateísmo» assumido, senão como uma espécie de abordagem poética para convencer Deus a ser natural, como o era na sua versão pagã [...]. Deste movimento, Torga é, não a crista da vaga, mas a expressão mais «religiosa» dela” (in Sousa 2009:14, 15). 401 Ainda Eduardo Lourenço lembra que “Deus não é uma palavra morta na poesia de Miguel Torga [...] este homem de expressão voluntariosa e forte vive crucificado numa contradição [...] joga no tabuleiro de Deus e do Homem” (2003:97).

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268

“totalmente outro”, na nomenclatura de Rudolf Otto (2005:44). É em torno de um

tal eixo que se constrói este capítulo de fecho.

Figura de múltiplos rostos, o ethos da voz poética torguiana recorre a

máscaras de alcance simbólico que reactualizam, por virtude dos modelos

semânticos que convocam, o potencial arquetípico das dobras da sua própria poética

(Deleuze), de que resulta para Eduardo Lourenço a configuração do poeta como

uma dessas figuras de vitral, essa espécie de seres à parte, únicos, destinados a iluminar caminhos alheios como um Moisés a quem se identificará no mais célebre poema-mito, e mitificante, dos muitos onde essa figura profética reiteradamente se confirma e se glosa. Profeta de si mesmo, entenda-se, em nome próprio ou através das múltiplas máscaras ostentatórias onde o reconhecemos, Job, Jonas, Lázaro. Figuras que precocemente encontramos no que foi o Livro-único do poeta de O Outro livro de Job, recebido das mãos de sua mãe: a Bíblia. (in Sousa 2009:11-12)

A análise da produção de Miguel Torga, no âmbito da leitura de escopo bíblico a

que aqui se procede, implica a dinâmica de um desdobramento literário no quadro de

uma herança bíblica. Na circularidade da justaposição analítica em causa, a dimensão

de um Torga bíblico é então aquela que investe não apenas no que de bíblico há na

sua poesia como sobretudo naquilo que de proto-torguiano existe já em potência

nas Escrituras. Esta forma de operar com o entretexto que é a Bíblia para Torga e que

Torga não deixa de ser também para a Bíblia (na medida em que se faz arauto de

uma tradição bíblica da contestação que nele se prolonga e completa). Plasmada na

recursividade da linguagem no eixo que vai da figuração à mostração (Gusmão

1987:5-10), a um tempo representa e indexa, presentifica em si e simultaneamente se

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entrecruza com textos outros, a poética de Torga revela-se mítica no fazer da sua

própria narrativa, sem abdicar da tessitura mitológica (a narrativa de outros mitos) que

persiste em trazer para si mesma,402 como atesta Eduardo Lourenço: “faz parte da

mitologia pessoal de Torga este baptismo de Orfeu Rebelde, de novo Job

inconformado” (in Sousa 2009:16).

É, como creio, nessa forma de enunciação da persona poética torguiana que

se processa a transmutação de paradigma onde a imagem do eu se faz acrescentar da

sombra de protagonistas terceiros que àquela biografia literária adicionam o valor da

sua narrativa épica (o epos da terceira pessoa), resgatando-os por sua vez para o

plano da pura pessoalidade (o ethos da primeira pessoa de Benveniste) e

constituindo-os como sujeitos pela linguagem, “parce que le langage seul fonde en

réalité, dans sa réalité qui est celle de l‟être, le concept d‟ego” (Benveniste 1966:259).

Neste sentido vai a observação de Vincenzo Arsillo, a propósito de A Criação do

mundo, que eu subscreveria ainda relativamente à poesia de Torga:

A reconstrução da «memória de si» é um processo in fieri: uma visão sucessiva, post, que procura fazer-se paralela; uma reconstrução de si que seja também e sempre restituição de si. Se, então, no Diário temos uma visão contemporânea, uma perspectiva contemporânea, na Criação temos um olhar especular: o olhar-se no/ao espelho do próprio ter vivido e viver. E a forma, a modalidade desta ideia-sentimento ético e estétito é a etopeia [formação do carácter]: na retórica, a descrição dos costumes morais de uma personagem realizada com procedimentos especiais. (in Sousa 2009:157)

402 Para uma abordagem dos aspectos de uma mitologia designadamente clássica em Miguel Torga, que convive “ao lado de uma tradição bìblica quase omnipresente”, remeto para o ensaio de Maria Helena da Rocha Pereira (1988:288).

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270

A conversão da história em discurso é assim fecundada no encontro com uma

enciclopédia literária e iconológica a partir da qual se define a figura da enunciação,

no exercício mesmo do gesto enunciativo – como, aliás, bem aponta Clara Rocha,

num postulado que eu estenderia a Miguel Torga (sobretudo em Nihil Sibi):

O eu dos Salmos do Antigo Testamento, por exemplo, é menos um sujeito determinado do que um indivíduo potencial que, em determinada altura, faça do acto de enunciação um «processo de apropriação». (1977:48)

Apropriando-se discursivamente da voz de heróis, personagens e mitos, a poética de

Torga persiste na recriação de um mitodrama constante, em que o eu se encena

consecutivamente, amplificando as suas possibilidades de fazer sentido enquanto eu-

em-dilema ou eu-em-transe (veja-se o poema, a todos os títulos paradigmático,

«Drama»,403 em que o poeta opera a sua transfiguração). Maria Grassiete Besse

observa o seguinte:

Dotada em primeiro lugar de fundamentos ontológicos, [...] a escrita pode também constituir para Miguel Torga um acto individualmente militante, capaz de revelar a condição trágica do homem e de abrir o ser ao drama do mundo. Nesta perspectiva, a consciência subjectiva nunca é um território fechado sobre si mesmo pois à identidade-raiz [...] (Glissant), o poeta prefere a identidade-rizoma cuja extensão vai das diferentes figuras do Sujeito até à opacidade do Outro. (in Sousa 2009:82)

Aí tem origem a importância de uma categoria como epos, já que esta voz se

heroifica num processo de mitificação literária. Este constitui um canal de

presentificação poética de figuras que, no trânsito do eu para o outro-de-mim (num

403 Penas do Purgatório (2007b:37).

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quadro de repercussões filosóficas, bem como psicolinguísticas), têm em comum

com esta poesia a busca permanente de uma forma de expressão ideal de identidade

que corresponda, na minha leitura, à categoria de uma supra-identidade – a humana.

Neste sentido vai a leitura de Helena Buescu, no seu ensaio “Torga: identidades

humanas numa geografia literária”, no qual dá conta de “um fenómeno de

reconhecimento identitário que, entretanto, transita do concreto ao abstracto por via

alegórica” (2005:252).

Na dialéctica que vai do universal ao particular e àquele regressa, joga-se a

pulsão de uma entidade personalítica que representa metonimicamente a

comunidade do humano, da qual herda a “macerada” condição e à qual pretende

restituir uma subsumida voz original, que a ele não lhe seria estranha, segundo o

postulado de Terêncio (nihil humanum a me alienum). Trata-se, pois, como defende

Clara Rocha, de um “eu que se constrói na sua descontinuidade, na sua

conflitualidade, na sua opacidade a si mesmo, e naquilo que tem de singular e de

comum a todos os da sua espécie” (2000:179). Esta seria, num esteio profundo de

sustentação bíblica, a voz patrilinear de Adão, de Caim, de Moisés, do Salmista, de

Jeremias, mas sobretudo a de Job. Seja embora esta uma linha constante, como

considero, ao longo de toda a obra poética de Torga, já para não mencionar a sua

produção diarística, romanesca ou dramática – de que a presente investigação não se

ocupa por excederem o escopo dos seus objectivos –, é justamente em O Outro livro

de Job, pedra basilar da sua mitografia bíblica, que a poética de Torga contrai a sua

maior dívida para com a Bíblia, código literário sem o qual não pode senão aspirar a

uma leitura naturalista, como defende Eduardo Lourenço:

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Sem esse texto duplamente sagrado, como palavra de Deus e como texto de poesia e ficção ímpar do nosso Ocidente, a sua obra não tem leitura. Ou apenas, a óbvia leitura «naturalista» que o mais celebrado dos seus livros escritos quis configurar e que não é mais que a versão para «humano», ou para «vivente», da história divina, que no texto sagrado é palavra de outrém, voz de um Outro, transcendência absoluta, que nesse texto imperativa e enigmaticamente é proposta ou se revela (in Sousa 2009:12)

Sem descurar o horizonte abrangente da sua produção poética, considerarei muito

especialmente os modos de renovação da voz poética por contiguidade com vários

géneros bíblicos. Teremos então de avaliar de que modo esta poesia pode reenviar

às metamorfoses da dimensão humana na Bíblia, numa constelação de figuras que

vai de Job a Jeremias e a David. Será em torno desses momentos que se orientará a

estruturação argumentativa deste capítulo, numa leitura particular de O Outro livro de

Job que, a meu ver, encontra eco em livros outros, como Lamentação e Salmos (a

segunda parte de Nihil Sibi), derivações suas que directamente indigitam dois outros

livros da Bíblia pelo seu modo de titulação explícita.

Constituindo uma forma de cadinho poético para o ensaio do que virá a

ser algumas das principais linhas temáticas, estilísticas e de problemas na poesia de

Miguel Torga, O Outro livro de Job vem esboçar sobre o lastro de uma consistência

bíblica algumas das isotopias do seu confessionalismo.404 Ombreando com o alcance

do mito de Orfeu na sua obra (cf. Maria Helena Rocha Pereira), a figura bíblica de

Job por seu turno oferece a Torga um manancial de referências que mais de perto se

prendem com os problemas da religação humana à sacralidade e de uma pertença à

terra, a uma epistemologia do pensamento sobre o ser homem, a que Torga chama a

404 Cf. Carlos Mendes de Sousa, Dar o mundo ao coração. Estudos sobre Miguel Torga (2009).

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“sabedoria de / andar em pé”.405 A demanda do sentido, concebendo a realidade a

partir do logos do caos e da criação, é neste livro da sapiência bíblica uma força

motriz da narrativa que Torga procura vazar tanto no recorte da sua palavra poética

como na interpelação maior ao propósito da vida debaixo do sol (expressão do

Eclesiastes, também ele um livro sapiencial que Torga visita particularmente em

«Tantum ergo»406). Se a produção poética de Torga anterior a este livro consagrava

já aquilo a que Óscar Lopes se refere como “prometeìsmo, uma revolta da

imanência humana (e animal, e terrena), contra a divindade transcendente, uma

«megalomania da humanidade»” (1987:720), é entretanto com O Outro livro de Job que

o poeta vem colocar-se sob a insígnia bíblica da qual Job se torna ícone poético,

congregando sob o seu nome, a sua eponímia, o conjunto de tensões tão caras a

Torga. Ancorado no mito, que reescreve com a liberdade de autor que lhe assiste, o

poeta distorce (cf. Rocha 1977:153) a narrativa (o mythos) no seu fazer poeiético – e aqui

se aplica também a máxima do fingere pessoano – que nunca é operação unilateral,

pois que se instaura enquanto quadro de leitura e interpretação do poema e se

guinda como instância de endereçamento ao texto bíblico que cada leitor a seu

modo dissemina: reescrever a aliança é, pois, inscrever-se nela.407

Publicado em 1936, O Outro livro de Job constitui-se como a primeira obra

que Torga viria a perfilhar integralmente no corpus da sua produção poética, uma vez

que, como assinala Clara Rocha,

405 «Primeira lamentação», O Outro livro de Job (2007a:54). 406 O Outro livro de Job (2007a:78). 407 Remeto, neste ponto, uma vez mais para Vincenzo Arsillo: “Em Torga, o mundo e a vida do mundo são sempre, contemporaneamente, lugar da criação e lugar do seu pensamento, do seu pensar literário. Tarefa do escritor, então, será sempre a de ins-crever o tempo pessoal – a autopoiese do demiurgo-escritor – no espaço da criação fraterna” (in Sousa 2009:156).

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o Autor renegou o seu primeiro livro de versos, Ansiedade (1928), e nunca quis reeditar os livros Rampa (publicado em 1930 nas edições da revista Presença), Tributo (1931) e Abismo (1932). (in Torga 2007:9)

Digna de referência, a este propósito, é também a passagem do nome civil ao nome

de autor no pseudónimo Miguel Torga, assumido em 1934, na publicação de A

Terceira voz, com que o autor viria a assinar pela primeira vez, dois anos depois, um

livro de poesia.408 Num jogo de ressonâncias metatextuais, vemos assim Adolfo

Rocha diferir-se em gestos autorais sucessivos em virtude do efeito de leitura

conseguido com um título como O Outro livro de Job. Se a crítica tem destacado que é

outro o Job deste livro, que não propriamente o do modelo da paciência proverbial,

então é também de particular relevo a coincidência envolvida na escolha daquele que

é precisamente o outro nome do poeta – no que, além do mais, se opera uma

correspondência significativa entre o ethos de Torga e o epos de Job.

Sou, neste ponto, levado a expressar a minha concondância com

Fernando Martinho quando assinala, num ensaio a propósito de O Outro livro de Job,

que “o livro de Torga não se pretende […] uma simples glosa do livro do Velho

Testamento”, tanto pela sua capacidade de recriação dos problemas latentes no livro

408 Pseudónimo composto por elementos enquadráveis produtivamente no âmbito do seu programa literário (cf. A terceira voz, 1934), tem sido apontado, começando pelo próprio, que os nomes Miguel e Torga são dotados de uma intencionalidade semântica não despicienda, a propósito dos quais remeto para um fundamental ensaio de Eduardo Lourenço (1994). De destacar também a ligação telúrica consubstanciada pelo nome que “passa de arbusto persistente a nome de autor, e por isso a substantivo próprio maiusculado” (Buescu 2005:269). Por outro lado, o nome próprio Miguel oferece-se a leituras várias, sendo bem conhecida a admiração do poeta por Miguel de Unamuno (autor de O Sentido trágico da vida e de A Agonia do Cristianismo), que “falava com Deus em castelhano” («Unamuno», 2007b:288). Miguel é ainda o nome do arcanjo de Deus, cujo significado é „quem é igual a Deus‟. Parece-me frutuosa a retenção dessa possibilidade, a propósito de uma poesia que tão claramente desafia a comparação com o divino pelo que de si vai buscar à terra (torga).

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(no que é mais fiel ao espírito do que propriamente à letra) como até pela cadeia de

associações literárias e metaliterárias que entre ambos se estabelece e na qual radica

o potencial alusivo do título de Torga, como argumentarei neste capítulo. No

entanto, não consigo partilhar do mesmo modo o postulado de que

Ele é «o outro livro» também porque, desde logo, é outro o Job que tem por herói […] contrariamente ao seu irmão na dor e no desafio, ele [o Job de Torga] é um ser torturado pela dúvida e pela descrença. (1997:40-41)

Esta é uma questão essencial, a de determinar se Job é fundamentalmente ortodoxo

ou heterodoxo, crente ou ateu, devoto ou contestatário de Deus. Como assinalam

Patrick e Scult, num ensaio sugestivamente intitulado “Finding the best Job”: “the

book has the density and opaqueness of human existence itself, so it is not

surprinsing that it has generated an array of interpretations practically as diverse as

the world views generated by the experience of living” (1990:83). A resposta a esta

questão não é óbvia, nem tem de sê-lo – é um dilema que deflui da própria leitura

do livro, na solicitação que esta faz de um leitor interventivo na determinação do

sentido.409 Quanto a mim, estou em crer que Torga, como aliás procuro mostrar

neste capítulo, soube captar essa natureza profundamente ambígua do Job bíblico e

409 Sobre a solicitação bìblica de uma leitura participada, ainda Patrick e Scult sublinham que “Job is one of those texts about which little can be taken for granted [...] the interpreter must create the text to be interpreted” (1990:88). Veja-se também Alter: “the Bible has invited endless exegesis not only because of the drastic economy of its means of expression but also because it conceives of the world as a place full of things to understand in which the things of ultimate importance defy human understanding” (1992:22). Ver ainda Auerbach: “In the story of Isaac, it is not only God‟s intervention at the beginning and the end, but even the factual and psychological which come between, that are mysterious, merely touched upon, fraught with background; and therefore they require subtle investigation and interpretation, they demand them. Since so much in the story is dark and incomplete, and since the reader knows that God is a hidden God, his effort to interpret it constantly finds something new to feed upon” (1953:15).

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dar-lhe a sua dimensão mais adequada, ao inscrevê-lo sob o signo de uma outridão de

si próprio – não se trata, então, de um outro Job mas da face outra do mesmo Job,

aquele que por um lado rende “o seu último suspiro de inocente”410 e que por outro

está “carregado de pecados”.411 Isto mesmo me parece ser sublinhado ainda por

Eduardo Lourenço:

Do mesmo texto Torga fez uma leitura diferente. Ou antes, tal como era, lê esse texto no seu próprio texto reclamando e recusando nele essa omnipotência de um outro que o deixaria a ela (e a nós) sem realidade digna desse nome, quer dizer de um Homem que Deus resume em si e concentra o sentido da Vida. (in Sousa 2009:17)

Note-se, porém, que não há em Torga lugar para a revelação teofânica (a marca de

Deus é apenas intuída, citada ou relatada, como em «Notícia»,412 onde o carro

alegórico de Deus, do livro de Ezequiel, na sua condução incauta e despótica, ignora

fatalmente “o verme [que] também vivia…”). Esse efeito exalça a solidão absoluta

deste outro Job e, em simultâneo, relativiza a importância (da ausência) da

explicação divina ao enigma de Job – no que se pode entrever tanto a eliminação da

redundância do divino (em Job, Deus não constitui explicação do problema) quanto

a leitura do mundo como essencialmente desprovido de sentido transcendente.

No enquadramento fornecido pelo título, aberto à alternância dialógica e

ao desdobramento de si pelo logos, o determinante outro passa a revestir-se, tanto ali

como de resto em momentos disseminados ao longo dos poemas do livro de Torga,

de uma capacidade assinalável de exploração da ambiguitas. Se, por um lado, ao

410 «Segunda lamentação», O Outro livro de Job (2007a:56). 411 «Primeira lamentação», O Outro livro de Job (2007a:54). 412 O Outro livro de Job (2007a:17).

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termos por referência as leituras segundo as quais Job pode ser fundamentalmente

sopesado como paciente sem contrariar uma certa ideia de ortodoxia

(correspondente ao Job do prólogo e do epílogo narrativos)413, é o reverso Job da

impaciência aquele que Torga decide resgatar (o dos discursos poéticos); também

por outro, importa ressalvar que no centro da relação entre outro e Job se encontra

precisamente o livro. Podendo ser outro o Job de que se fala (e aqui a duplicidade

estende-se num prolongamento que pode abranger uma face desconhecida ou

improvável de Job e ainda outro alguém merecedor de um tal nome), é sobretudo

outro o livro que aqui se dá a ler. Destaco ainda que a comparação entre os livros, o

bíblico e o de Torga, já se deixa adivinhar na referência que Torga, anos antes, havia

feito em «Terceira endecha» (poema de Abismo) ao mencionar as “loucuras

pequenas”, afinando-as pelo diapasão da diferença e do diferimento: “Nem parece o

que se lê / No santo livro de Job” (1934:10).

Digno de nota é, neste sentido, o facto de que, com uma frequência não

comum relativamente a outros livros da Bíblia, o título deste se desdobra num gesto

de explicitação óbvia da sua dimensão literária, na qualidade de objecto escrito.

Amiúde, falar de Job é fazer menção ao livro de Job. Isto parece-me ser duplamente

significativo, atendendo ao substantivo enquanto objecto textual mas acima de tudo

enquanto praxis – a da escrita de Job. Torna-se, pois, relevante referir a passagem

413 É o caso das fontes de que Fernando Martinho se socorre, sustentadas no eco bíblico contido na epìstola de Tiago: “Eis que temos por bem-aventurados os que sofreram. Ouvistes qual foi a paciência de Job, e vistes o fim que o Senhor lhe deu; porque o Senhor é muito misericordioso e piedoso” (5:11). Porém, como bem aponta Marvin Pope, “It is, however, scarcely a balanced view, since it ignores the thrust of more than nine tenths of the book and appears to take account only of the beginning and the end of the story. The vehement protests of the supposedly patient Job will surprise and even shock any who expect to find the traditional and patient and pious sufferer throughout” (1975:xv).

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bíblica, central até por aquilo que nela faz convocar a leitura do livro de Torga, em

que a personagem Job alude ao acto simbólico de gravação da escrita na pedra:

Quem me dera que as minhas palavras se escrevessem e se consignassem num livro, ou gravadas em chumbo com estilete de ferro, ou se esculpissem na pedra para sempre! Eu sei que o meu redentor [goel] vive e prevalecerá, por fim, sobre o pó da terra. (19:23-25) [parêntesis meu]

Investindo num efeito de mise en abyme que cria espaço auto-reflexivo para o livro

dentro do livro, este trecho fundamental dá também conta da materialidade

documental da escrita, do modo como o gesto da gravação da palavra se constitui

monumento memorial, de efeitos comparáveis aos de uma lápide funérea

(envolvendo a confirmação da morte e também, por isso mesmo, a atestação de que

se esteve vivo). Em óbvia consonância com esta passagem, mencione-se ainda outra,

a do momento em que Job lacra o seu argumento com uma assinatura, no capítulo

31, em pungente e derradeira solicitação do livro, extinguindo-se depois num último

sopro de voz:

Oxalá eu tivesse que me ouvisse! Eis a minha assinatura! Que o Omnipotente me responda! O libelo de acusação escrito pelo meu adversário, não o levaria eu sobre os meus ombros e não cingiria com ele a minha fronte como se fosse um diadema? (31:35-36)

É precisamente esse poder da palavra, a consignar na escrita de um livro

(ponto em que voltarei a incidir), que em «De Profundis»,414 ponto alto na

composição do livro, constitui uma súmula essencial do ímpeto que move Job, ícone

414 O Outro livro de Job (2007a:87).

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capaz de fazer cristalizar essa tensão vertical entre a altura e a profundidade a que o

autor de Rampa e de Abismo aqui regressa com propriedade. Reformulando o incipit

do Salmo 130, de que resgata a expressividade fundamental do vocativo (“Senhor,

que sabes quem eu sou, / Sabe lá também o resto”), este poema aposta no problema

dialógico que alimenta o motor da narrativa ao longo do livro de Job, e que se

manifesta em pares isotópicos recorrentes tais como solidão de Job/ausência de

Deus, inocência de Job/culpa de Deus, culpa de Job/justiça de Deus, pergunta de

Job/silêncio de Deus, pergunta de Deus/silêncio de Job. Tais tensões encontram na

figura da litotes (assente nume estrutura básica de repetição, afim da epidiortose na

correctio de um enunciado provisório, “Não é isto, nem aquilo”) a adequada

representação da recusa, da ausência e da negatividade com que se debate o

propósito literário do livro, no encalço de um sentido esquivo, em constante

diferimento, tal como os “gestos que passaram / Pelo meu corpo”, mas que “nada”

são “sem a minha assinatura, / Que sou eu”. Trata-se aqui no fundo da dialéctica,

sistematizável em clave derridiana, entre complementação e substituição de uma

ausência (a de Job, a de Deus, a de um sentido final) que se procura ou que se

afirma, tal como está em causa nos vectores da narrativa acima sumariados.

Lembremos com Derrida que

Uma assinatura implica a não presença actual ou empírica do signatário. Mas, dir-se-á, marca também e retém o seu ter-estado presente num agora passado, que permanecerá um agora futuro portanto num agora em geral, na forma transcendental da permanência. (1972:431)

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Garantindo uma forma de permanência cristalizante da enunciação do Job torguiano

(“a minha assinatura, / Que sou eu”, que o poeta menciona na estrofe que encerra o

poema), o livro assinado perpetuaria a sua voz e serviria de testemunho do seu

libelo, pesando em favor do reconhecimento futuro da sua inocência. Esta palavra

escrita adicionar-se-ia então ao discurso de Job, ritualizando-o numa forma de ofício

iterativo e funcionando ainda como substituto da sua impossível presença após a

morte (simbolicamente, o Job que nos fala do seu livro bíblico é já uma voz

engolida pelas trevas, como veremos por exemplo também em «Noite»,415 poema no

qual o devaneio poético e a inquietação metafísica se tocam como expressões de um

mesmo estado de queda e perdição tanto física como moral). Será assim este um dos

grandes gestos de transcendência que Job opera na sua narrativa, o de prolongar-se

no movimento da história em direcção a um presente que já não é o seu, mas que

será certamente o do seu leitor. Antes de calar-se (as suas últimas palavras serão

apenas sussurros tartamudeados perante um Deus irado e, a seu modo, ab-surdo),

Job deixa um último pedido, revestido da forma de uma incumbência quasi-

testamentária – o de que lhe escrevam um livro.

Em o Outro livro de Job, Miguel Torga pode, então, responder àquele apelo

que vem de dentro do próprio livro bíblico original, prolongando o feixe da história

de Job e descerrando a sua capacidade de remeter-se à leitura de outras histórias a

partir desse paradigma deslocalizável e universalizante que é o da figura jobeana,

modelo arquetípico de uma específica experiência humana416 ou ainda, como diz

415 O Outro livro de Job (2007a:53). 416 A este respeito, leia-se Maria João Reynaud: “Em Torga, o poema é operador de uma fusão milagrosa entre o individual e o universal, entre a mudança e a permanência, entre a imanência e a

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Marvin Pope, “the type of any and every man who experiences the mystery of

seemingly senseless and undeserved suffering” (1975:xxx).

Esta vertente de distanciação e de visão da história humana encontra

ancoragem na escolha da epígrafe com que Torga abre o seu livro. Colocando-se

sob a alçada do último livro da Bíblia, o volume resgata o seu estatuto de

completude e selamento, na medida em que cabe ao Apocalipse encerrar o cânone

das Escrituras, fechando o círculo hermenêutico que possibilita a leitura da Bíblia

como um todo.417 Remetendo-se a um sentido transcendente da História, o teor

profético do Apocalipse torna possível a transição entre dois mundos diametrais:

um mundo de mal e de pecado, condenado à destruição, sob o signo da anátema

Babilónia; e um novo mundo onde se vem a realizar plenamente o plano teológico

(frustrado no Génesis e que ali se reabilita), sedeado na luminosa Jerusalém. Esta

passagem é, na verdade, uma travessia das eras, em que se acaba um tempo e

começa um outro – ou, no dizer do poeta em «Romance»,418 “Deixou de ser um

mundo e foi um outro”, no âmbito de uma referência claramente indexável ao dos

quatro cavaleiros do Apocalipse (“Foi a fome, a peste e guerra”) –, envolvendo uma

ideia de fim na qual o princípio, simbolicamente implicado, volta a ser possível.

transcendência, entre o Mesmo e o Outro. Como também escreve Manuel Antunes, «profeta não é só aquele que prediz o futuro, é também – e originariamente – aquele que fala em nome do Outro, sobretudo do Outro que é Deus, a transcedência absoluta»” (in Marinho 2008:170). 417 Sobre a importância da unidade do cânone da Bìblia, remeto para Frye: “the Bible has traditonally been read as a unity, and has influenced Western imagination as a unity [...] it has a beginning and an end, and some traces of a total structure. It begins where time begins, with the creation of the world; it ends where time ends, with the Apocalypse, and it surveys human history in between [...]. There is also a body ofconcrete images: city, mountain, river, garden, tree, oil, fountain, bread, wine, bride, sheep, and many others, which recur so often that they clearly indicate some kind of unifying principle. [There is] a unified structure of narrative and imagery in the Bible” (1983: xiii). 418 O Outro livro de Job (2007a:48).

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Uma tal cadeia de associações tende, deste modo, a estender-se à

revisitação poética que Torga realiza ao livro de Job, contiguando-o numa mesma

rede de questões, sobretudo as que se prendem com as fronteiras de um tempo-

lugar que “ainda” persiste mas que, por isso, já não pode prolongar-se do mesmo

modo na existência – no que estas são, a meu ver, formulações possíveis de uma

ideia essencial de releitura na linha das contingências de uma leitura hermenêutica do

Apocalipse.

A epígrafe do Apocalipse surge no contexto da transmissão angélica e do

exercício correspondente da escrita apostólica, sendo que alguns versículos antes

pode ler-se: “Eu, João, é que sou aquele que ouvi e vi estas coisas e, depois de ouvir

e ver, caí aos pés do anjo que mas mostrava” (Apocalipse 22:8). Instância de

mediação da escrita, João opera aqui o câmbio entre a mensagem do anjo e o registo

escrito do que lhe foi dado experimentar pelos sentidos, tendo produzido, por sua

vez, uma versão dos conteúdos revelados – no que até o Apocalipse é ainda o outro

livro do Apocalipse. Há aqui, estou em crer, uma tendência para a exploração de

formas de diferimento referencial em que Torga parece estar particularmente

interessado e que me levam a endereçar o problema sob a fórmula das dobras da sua

poética, a que já tive oportunidade de referir-me no início deste capítulo. A escolha

do versículo em epígrafe (22:11) parece funcionar à luz desse princípio, aqui tornado

claro pela substituição de um substantivo concreto pela antonomásia anafórica de

efeito despersonalizante:

Aquele que faz injustiça, faça-a ainda: e aquele que está sujo, suje-se ainda:

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e aquele que é justo, justifique-se ainda: e aquele que é santo, santifique-se ainda.419

Fazendo convergir ontologia e predicação, através de um difuso processamento

tautológico, o versículo trabalha com categorias em aberto, em que o sujeito se

define retroactivamente pela sua acção. Por um lado, a epìfora “ainda” marca tanto

a fronteira espacial do verso (com especial cadência rítmica na transcrição dos

versículos por Torga) como a do tempo que resta para se ser o que se faz, enquanto

dobra espacio-temporal; por outro, a antonomásia elide essa fronteira pelo verbo

copulativo, superando a distinção entre nome e definição ontológica e desdobrando

assim os meandros da categoria de sujeito. Para se ser Job, outra coisa mais não é

necessária para além de se ser aquele que é, está ou faz o que quer que possa caber na

categoria dos predicados atribuíveis a Job. A propriedade da escolha da presente

epígrafe torna-se ainda justificada pela presença do par justiça e santidade/pureza, a

um tempo emparelhados (injusto, sujo; justo, santo) e a outro entrecruzados

(injusto, justo; sujo, santo), que são ambos tópicos da maior pertinência em torno

dos quais se desenvolve a narrativa de Job.

Porém, não apenas o Apocalipse marca presença no pórtico de entrada de

O outro livro de Job. Se a epígrafe é um modo de enquadrar referencialmente o texto

que introduz, inscrevendo a sua leitura na orientação das coordenadas que lhe

fornece, o mesmo se poderia dizer do título do primeiro dos vinte e cinco poemas

deste livro – «O vos omnes». Esta é uma fórmula latina com origem na Vulgata de

419 O Outro livro de Job (2007a:45).

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Jerónimo pertencente às Lamentações atribuídas a Jeremias que, por sua vez, deu

origem a um canto de oração que ali foi tomar o nome420:

Ó vós todos que passais pelo caminho, olhai e vede se existe dor igual à dor que me atormenta, pois o Senhor feriu-me no dia da sua ardente cólera. (1:12)

A forma de citação que o título integra no poema reproduz, por intermédio da

figura da prosopopeia, o lamento da Jerusalém devastada pela invasão de Babilónia.

Neste momento, suspende-se a voz do poeta para deixar falar a cidade em ruínas,

que assume as vestes de uma viúva personificada, a braços com a morte. Ao pathos

do seu canto vai Torga buscar o vocativo por meio do qual se endereça aos leitores

do texto, como se de uma inscrição lapidar se tratasse. Resgatando o efeito de um

epitáfio que interpela o viator em cujo caminho se lhe depara um letreiro tumular,

este poema de abertura que da Jerusalém desolada toma a voz emprestada serve de

iniciação a um roteiro de leitura, um pouco à semelhança da tabuleta à entrada do

«Inferno» de Dante – “[…] voi ch‟intrate” (III:9) –, em que a porta sinaliza um

percurso e também uma chave de procedimento, uma ética do viajante421 e, por

420 Fernando Martinho considera plausìvel a hipótese de que “o tìtulo do poema […] não será tanto uma alusão ao texto do profeta, como ao “Canto da Verónica”, que se entoava em muitos pontos do país, no decorrer da procissão do enterro do Senhor, em Sexta-Feira de Paixão […] que o poeta terá muito provavelmente ouvido na sua infância, em Trás-os-Montes […] A própria referência à Verónica na última estrofe do poema vem, aliás, confirmar a origem do tìtulo” (1997:49). 421 Remeto para o comentário de Maria Grassiete Besse: “Para Miguel Torga, circular através dos caminhos do mundo constitui um exercício epifânico capaz de restituir o espesso sabor do real [...]. A experiência viática de Torga, fundada numa topografia rigorosa, adquire a forma de uma escrita-ligação, susceptível de acolher o mundo exterior cujo apelo se torna irresistível [...]. Os vestígios do silêncio inaugural do começo do mundo alternam com uma solicitação auditiva em que ressoa o motivo da pedra igualmente relacionado com a origem e com a ancoragem do poeta” (in Sousa 2009:72, 73).

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conseguinte, uma forma de se ser leitor – no que o poema ganha uma expressiva

tonalidade de arte poética que mapeia significativamente os pontos cardeais do livro.

Eleito por tema o canto em «O vos omnes», forma clássica de implicar o

fazer poético (e dando o tom a outros poemas como «Serenata em dó maior»,

«Cântico», «Cantar de amigo», «Canção de uma outra vida» ou ainda «Canto da

múmia»), este serve de divisória entre o “eu” e “os outros”. A distinção radica numa

nota dissonante, que o poeta diz ser “discordante”, num extremar das margens da

diferença entre os homens. O seu canto é, por isso, marca de uma individualidade

dificilmente integrável no seio de uma comunidade de pares, mesmo admitindo a

concessão no canto – “ainda que eu cantasse como os outros” 422 (motivo pelo qual,

como já referi, cabe a Torga o encerramento desta dissertação). Essa forma de ser

diferente está na raiz do próprio sujeito, no plano de um insondável subjectivo que

“por motivos tais e tão ocultos / […] mesmo minha Mãe os desconhece”.423 A voz

que se adivinha aqui é assim envolta na intangibilidade de algo que permanece

oculto e de um desconhecimento que, nem do ventre nem do túmulo (aceitando que

“mãe” funciona como locativo da origem e do aniquilamento do sujeito – efeito,

aliás, similar a uma passagem de Job424), é passível de ser explicado ou sequer

compreendido. O canto, na linha da epígrafe do Apocalipse em que Fernando

Martinho lê “a proclamação de fidelidade à sua própria natureza” (1993:42), acima

de tudo é.

422 «O vos omnes», O Outro livro de Job (2007a:47). 423 Idem, ibidem. 424 Job 1:21 – “Saí nu do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá. O Senhor o deu, o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor”.

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Resta então a aceitação da vida, como do mesmo modo deve o leitor

resignar-se às condições do canto tal como este se dá: “agora é deixar-me e

respeitar-me / Como se faz às pedras das montanhas”.425 Figurando aqui

explicitamente, a pedra da lápide vem a concretizar-se verbalmente no meio do

poema (na segunda de três estrofes), projectando-se literalmente no meio do caminho

do viajante-leitor que atravessa o trilho de lamento sobre a vida de uma voz

ecoando além-túmulo – admitindo a exploração de uma linha com ressonâncias

evidentes em Drummond de Andrade («No meio do caminho», 1930) em eco de

Dante Alighieri, que voltará a manifestar-se neste livro em outros momentos, de

entre os quais um dos mais explícitos na sua oscilação entre o além e o aquém será o

poema «Lápide».426 Neste como naquele, o acto de inscrição constituirá, como não

poderia deixar de ser, uma forma mais de autografia.

O mesmo problema pode colocar-se ainda em «O canto da múmia»,427 de

onde ressalta a obsessiva imagem do cadáver enfaixado, comparável em

permanência às “sete pragas [que] vieram e ficaram”, ou ainda à conservação do

momento da morte dos habitantes da cidade de “Pompeia”. Este quadro de

estatismo não se completa em si mesmo; ele obedece a um princípio

fenomenológico – o de servir de monumento testemunhal, o de contar: “Era uma

vez…”. O que se conta, no entanto, é um canto de morte “para uns desgraçados

vermes”, um canto de “aves [agoirentas]” que, à semelhança das “sereias” a que

também este poema se refere, procura fazer-se ouvir pelos que ainda vivem (o pacto

425 «O vos omnes», O Outro livro de Job (2007a:47). 426 O Outro livro de Job (2007a:76). 427 O Outro livro de Job (2007a:75).

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entre canto e morte é, de resto, a chave para a leitura de «Canção de uma outra

vida»428). É de reter que o desejo maior de ser ouvido, o impulso para-dialógico, que

o poeta soube captar neste e noutros poemas como «De profundis», «R-7» ou ainda

nas três composições de «Primeira [segunda e terceira] lamentação», serão da maior

importância no posicionamento de Job em pleno exercício de uma enunciatividade

agónica, que marca o grosso da narrativa do livro bíblico.

O conjuntivo de pendor exortativo vem por fim selar o epitáfio que é «O

vos omnes», dirigindo-se ao “penitente”, em cuja silhueta se deixa entrever tanto

aquele que neste livro se confessa como o peregrino que, atravessando-o pela

leitura, na sua confissão possa rever-se. Sublinho ainda que o alcance deste trecho

remonta ao facto de que muito daquilo que está envolvido na feitura de um epitáfio

assenta neste calculado efeito de comutação, fundeada na certeza da morte, entre o

leitor e a voz que se deixa ler:

Que o penitente conserve O seu rosto verdadeiro No doloroso caminho Do Calvário Para que possa Verónica Com a toalha de linho Tirar-lhe o santo sudário…429

Remetendo para uma isotopia fundamentalmente cristológica, a sucessão de alusões

nesta estrofe faz relevar a ideia, que aliás se mantém como faixa longitudinal ao

longo deste livro, da vida como um caminho para a morte, uma aprendizagem do

sofrimento, um “doloroso […] Calvário” – elementos todos eles indexáveis ao

428 O Outro livro de Job (2007a:73). 429 «O vos omnes», O Outro livro de Job (2007a:47).

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postulado de Cristo na sua qualidade de “o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6).

Na vida como na morte, onde a referência a Cristo se abre a todo o género de

comutações pela insinuação da possibilidade da ressurreição no poema, importa

conservar o “rosto verdadeiro”. Vértice da identidade, a par do nome e do sexo

(categorias também merecedoras de consideração no livro de Torga, por exemplo

em «Romance» e «Lápide»), a impressão do rosto vem de resto juntar-se à nota

discordante, funcionando como marca pessoal irrepetível que é a da individualidade

do sujeito. O poeta inscreve assim numa mortalha de linho, um pouco à semelhança

de Job na pedra ou ainda de um Pessanha em cujos “lençóis de linho [se espera]

morrer” (Clepsidra, 1920), e encontra no poema uma outra forma de sudário que lhe

conserva os moldes do rosto para entregar à contemplação do penitente, como

figura de interlocução. Nas antecâmaras da subjectividade e das suas projecções, o

viator terá já vislumbrado as máscaras de Jeremias, de Job e de Cristo, sem que tenha

durante a viagem por este livro-sudário alguma vez entrevisto o rosto de Deus, cujo

“nome ressoa no seu peito / […] Desfigurado…”430 ao longo de tais páginas feitas à

imagem e semelhança deste eu. A rasura da revelação teofânica a ter lugar no fim do

livro de Job encontra aqui uma forma de correlativo objectivo neste desfiguramento

(diria mesmo des-figuração) a que Deus é sujeito (lembre-se que o eu poético não se

apresenta perante Deus mas sim “Aqui, diante de mim”431).

Desdobrado entre o original e a cópia, o modelo e a reprodução, este é um

sujeito que se assume precisamente em reflexo, enquanto ser especular que encontra

no seu rasto uma forma de rosto a assumir, numa evidente relação de polimorfismo

430 «Fábula do servo de Deus», O Outro livro de Job (2007a:81). 431 «Livro de horas», O Outro livro de Job (2007a:85).

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ontológico, em sucessiva transferência, para com a imagem de si – no que nos

aproximamos do que Clara Rocha, no contexto da contemplação do narcisismo

autobiográfico, havia já sublinhado ao afirmar:

A imagem especular é uma reprodução, isto é, ao mesmo tempo um outro e o mesmo ser, uma identidade confirmada pelo reconhecimento e uma identidade roubada pela imagem […] Um dos sinais da autobiografia é precisamente o equívoco desta relação entre o eu e o outro […] O eu confirma-se na reprodução de si próprio, que é já um outro […]. (1977:73)

Levando mais longe a cadeia de ressonâncias, haverá de considerar-se ainda aquilo

que me parece ser um traço irredutível entre a linhagem poética de Torga e,

precisamente, um legado filosófico levinasiano, à luz do qual a problemática do

rosto se alinhará na sua centralidade no âmbito de uma dialéctica entre o rosto próprio

e o livro de outro. Neste sentido, a figuração do sudário parece-me convocar aquilo a

que eu chamaria uma trans-angulação do olhar, na medida em que ele se torna medium

imagológico de superação da impossibilidade de um sujeito se contemplar pelos seus

próprios olhos, franqueando-lhe assim a possibilidade de, nesse desdobramento

auto-implicado que alcança no lugar do morto, deixar-se ver pelo outro-de-si.

Não sendo de excluir a hipótese de uma leitura subtextual432, o

pensamento de Levinas em torno do conceito de “rosto” é, parece-me, iluminante

432 São, com efeito, anteriores à publicação de O outro livro de Job (1936) as duas primeiras obras de Emmanuel Levinas, nas quais já se anuncia, ainda que não na formulação mais acabada que a sua produção filosófica viria a atingir, o tratamento das questões que a este propósito interessam. São elas La théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl (1930) e De l’évasion (1935). Algumas das suas obras posteriores, como Totalité et infini. Essai sur l’éxteriorité (1961) e Autrement qu’être ou Au delà de l’essence (1974), contêm muito do pensamento passível de oferecer ponto de contacto com a poética de Miguel Torga. No que ao poema «O vos omnes» diz respeito, adiante-se ainda que “o

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relativamente às possibilidades de sentido que adiciona à leitura de Torga.

Explorando a viabilidade expressiva do rosto, no âmbito de uma ética da acção e da

percepção que transcende a pura dimensão plástica do que se vê, Levinas defende

que

Aucun langage autre que l‟éthique n‟est à même d‟égaler le paradoxe où entre la description phénoménologique qui, parlant du dévoilement du prochain, de son apparaître, le lit dans sa trace qui l‟ordonne visage selon une diachronie non-synchronisable dans la représentation. (1974:120)

É precisamente um tal vínculo entre linguagem e representação de si que

se coloca como questão neste livro, deixando entrever-se muito especialmente em

poemas como «Lázaro» ou «A ceia». À semelhança de outras passagens nas quais

este eu se desvela na posse dos seus atributos polimorfos, confessando-se “de ser

tudo […] de ser Homem […] de ser eu”,433 numa afirmação que caberia num

enquadramento plausível de existencialismo filosófico, o problema que alimenta

estes poemas pode dizer-se radicado num foro identitário. Este é precisamente um

dos rastos passíveis de aproximação levinasiana, porquanto

Ser eu é, para além de toda a individualização que se pode ter de um sistema de referências, possuir a identidade como conteúdo. O eu não é um ser que se mantém sempre o mesmo, mas o ser cujo existir consiste em identificar-se, em reencontrar a sua identidade através de tudo o que lhe acontece. É a identidade, por excelência, a obra original da identificação. (Levinas 1980:24)

sintagma «rosto verdadeiro» [se encontra] na última edição revista pelo Autor, a 5ª, de 1986” (Martinho 1997:49). 433 «Livro de horas», O Outro livro de Job (2007a:85).

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Encontrando no rosto uma forma de descrição, “nalgumas rugas perdidas”434 um

análogo de coordenadas geográficas, que se faz acompanhar de uma legenda

essencialista por parte do sujeito (o “Sou eu” que se repete, em antecanto, no inìcio

de todas as estrofes), o poeta de «Lázaro» começa pelo fim, fazendo-se valer de uma

anagnórise improvável ao reabrir uma história já contada que vira do avesso, quando

afirma: “O Lázaro sou eu, não foi o Outro”. Justapondo na representação de si dois

quadros numa relação de simetria-em-negativo, o sujeito reclama para si a identidade

de Lázaro (sobretudo o da parábola relatada em Lucas 16:19-31, comummente

conhecida como a parábola do rico e do Lázaro; embora seja curiosamente na

qualidade do Lázaro outro, o ressuscitado, que regressa) enquanto, ao mesmo tempo,

se faz diferir dele. A possibilidade contida na enunciação permite assim o

estabelecimento de uma relação dialógica entre o Mesmo e o Outro, de que o eu

depende ainda que para a definição retroactiva de si mesmo, porque sabe na exacta

medida que sem o outro Lázaro não poderia haver o Lázaro que ele pretende ser no

uso da linguagem em torno do centro que é o ego.

[…] a relação do Mesmo e do Outro […] é a linguagem. A linguagem desempenha de facto uma relação de tal maneira que os termos não são limítrofes nessa relação, que o Outro, apesar da relação com o Mesmo, permanece transcendente ao Mesmo. A relação do Mesmo e do Outro – ou metafísica – processa-se originalmente como discurso em que o Mesmo, recolhido na sua ipseidade de eu – de ente particular único e autóctone – sai de si. (Levinas 1980: 27)

434 «R-7», O Outro livro de Job (2007a:87).

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Da ipseidade à aloctonia, o sujeito busca-se em trânsito, incapaz de permanecer no

eu em si que está radicado da transcendência do Outro, relativamente ao qual

subsiste uma necessária demarcação de origem:

Sou eu, que não sou feliz no Céu nem no Inferno, Porque no Céu há paz, e no Inferno há guerra, E a minha paz é outra, e a minha guerra é outra…435

A rede de oposições estende-se a outros pares como “grande e pequeno”, “tudo ou

nada”, “Vida ou Morte”, com uma veemência antitética que aos leitores do capìtulo

3 do livro de Job será certamente familiar, e cuja dilaceração desemboca num

fraccionamento do próprio sujeito (“Sou eu, que me disse adeus / E fiquei à minha

espera”436). Esta cisão alcançará em «Terceira lamentação» a sua expressão

culminante, até pelo seu cunho paradoxal, com “E grito quando a voz do teu açoite

/ Fende o meu corpo em dois e o deixa inteiro…”.437 Para além da fissura interna

(“fenda”), a substituição das feições e a metamorfose do ser serão outras das formas

de endereçar ainda a questão do rosto geminado, por meio da qual Torga capta com

propriedade a laceração fundamental entre os destinos dos homens, expressa na fala

de Abraão:

Além disso, entre nós e vós há um grande abismo, de modo que, se alguém quisesse passar daqui para junto de vós, não poderia fazê-lo, nem tão-pouco vir daí para junto de nós. (Lucas 16:26)

435 «O Lázaro», O Outro livro de Job (2007a:63). 436 «O Lázaro», O Outro livro de Job (2007a:64). 437 «Terceira lamentação», O Outro livro de Job (2007a:60).

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Será precisamente esta linha divisória que será sondada no poema «A

Ceia» como possibilidade de atravessamento. Ainda em «O Lázaro», e despojando-

se progressivamente de máscaras como a de Moisés (“Sou eu [aquele que] atira a

praga / Que o traga / Àquela redentora incompreensão / Do seu povo”438) e até a

de Deus (“Sou eu, o Alfa e o Ómega”439), o eu por detrás do poema aposta num

desnudamento literário que afirma e em concomitância denega as referências com

que vai laborando no seu discurso até ao gesto final de pura exibição de si – “Sou eu

– e mostro-me todo”. Colocando-se aqui ante oculos, qual ecce homo, a tónica discursiva

investe numa questão de reconhecimento capaz de prescindir dos modelos

convocados para dar acordo do “Lázaro real / Que não vem nos Evangelhos / Mas

é!...”.440 Na oscilação que vai do real ao ideal, ou do tipo ao arquétipo, está também

implicado o modo de ver, ou de ler, do leitor, a quem por paradoxo se diz que

“arranque os olhos” para poder “ver” precisamente aquele Lázaro que não aparece

nos Evangelhos mas que é, afinal, o único que se dá à contemplação, na sua

encenação do showing. Sublinho ainda que a metáfora da visão desempenha aqui,

como não poderia deixar de ser, um efeito de alusão bíblica relativa ao conceito de

fé: esta radica, justamente, na capacidade do crente em doar e reconhecer sentido à

realidade do que está para além dos olhos e que é, também por isso, metafísica (cf.

Hebreus 11:1). Ocultas e reveladas na escrita, as figuras bìblicas que dizem “eu”

transitam nessa fronteira que se pode aristotelicamente divisar entre potência e acto,

de onde ressurge o sujeito enunciativo como acidente do mundo, o ponto de

438 «O Lázaro», O Outro livro de Job (2007a:64). 439 «O Lázaro», O Outro livro de Job (2007a:64). 440 «O Lázaro», O Outro livro de Job (2007a:64).

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convergência sagrada de todas as possibilidades do ser, reunidas uma vez mais nessa

instância ontológico-enunciativa que no rosto se oferece:

O rosto […] traz uma noção de verdade que não é o desvendar de um Neutro impessoal, mas uma expressão: o ente atravessa todos os invólucros e generalidades do ser, para expor na sua forma a totalidade do seu conteúdo, para eliminar, no fim de contas, a distinção entre forma e conteúdo […]. (Levinas 1980:38)

Ao situar “o frágil véu que nos separa”, o poema «A ceia»441 vem por sua vez

localizar-se neste ponto intermédio entre quem está e quem “há-de vir”, reunindo-

os em torno da mesa do “banquete que eu lhe der” ao longo dos três momentos do

poema, seguindo a estrutura “Se”, [então] “Serei” e “Nunca mais”.

Aponte-se ainda que uma das relações que entre este poema e «O Lázaro»

se estabelecem é, desde logo, a da trama de relações em torno da refeição, lugar

simbólico da “semântica de relação” – para usar uma expressão de Tolentino

Mendonça, a propósito da refeição relatada em Lucas 7:36-50 (2004:66).

Simultaneamente anfitrião e convidado do seu banquete, o sujeito que aqui diz eu

encena uma flutuação difusa entre as várias formas de se ser Cristo (lembre-se a

referência apocalíptica à parusia, do grego „vinda‟ ou „presença‟, segundo a qual

Cristo é “aquele que há-de vir”), em clara hipóstase, ou dupla natureza, enunciativa.

As figuras da divisão povoam o poema, apontando para o ponto do meio onde se

tocam as extremidades do ser: o “frágil véu”, o “sésamo fechado” que se abre “de

meio a meio”, a “vara” com que Moisés toca “cada fruto” são todos eles instâncias

441 O Outro livro de Job (2007a:79).

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de uma bisturização do sujeito que, a um tempo, espera os convidados para a ceia (e a

alusão evangélica à Ceia do Senhor torna-se por demais evidente – cf. Lucas 22 e

também Mateus 22:1-14) e é convidado de si mesmo: “Serei / Verdadeiro sabor do

meu banquete”.442 Ao alegorizar o potencial simbólico contido em Cristo, o sujeito

do poema opera em si mesmo afinal um gesto de transubstanciação, em deglutição

ontológica, oferecendo em sacrifìcio o “gosto do meu sangue e do meu corpo […]

todo eu me darei (ao tal quem vem)” de modo a fundir-se com a pessoa de Cristo –

o que vai ao encontro do projecto “metaforicamente omnìvoro”, assinalado por

Helena Buescu a propósito das metáforas de assimilação e deglutição (2005:253).

Ganham então especial ressonância os conceitos de presença e de

essência, na linha que vai da consubstanciação (presença de Cristo na substância) à

transubstanciação (transformação da substância em Cristo), uma vez que este sujeito

se deixa canibalizar de modo a transferir a sua natureza para “dentro dele […]

porque entre nós qualquer distância tem / O seu caminho andado e destruìdo”.

Aberto a toda a sorte de metamorfose, o sujeito converte-se pois no cumprimento

da promessa tanto do antigo pacto de Moisés como do novo pacto com Cristo (“a

tal boda / Entre o fogo e a casa toda, / Sem uma porta estreita de saìda…”), a fim

de “[ser] tudo”, projectando-se da “roda / Do ermo da [sua] vida” para o centro da

“Força inteira” que é a da vida:

E eu serei A bica de água fresca no deserto, O mar Vermelho aberto

442 Um efeito semelhante, aliás, ao de um poema de Daniel Faria, analisado na secção 3.2.7 desta tese.

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E a Terra de Canaã, que mostrarei Perto…443

Este gesto de aliança explícita, porém, não se processa sem uma dose

substancial de perda de si (em comum, por exemplo, com o final do «Lázaro» de

Régio), forma de reactualização da queda original do Homem – e relembro de

passagem o quanto o tópico da perda se constitui como veio dialéctico que opera

em Job a passagem da dita para a desdita, entreabrindo a porta ao trágico (linha que

encontrou em tempos o seu ponto máximo de exploração, e até de exaustão, nas

teorias que defendiam a contaminatio entre a literatura bíblica e a literatura grega444).

Ao adentrarmo-nos pelo núcleo poético que mais próximo se situa da narrativa de

Job, convém notar que o eu que aqui se dará todo “ao tal quem vem” por não ter

“terra onde nasça / Uma flor que cresça em mim”445 é precisamente aquele que, em

«Cantar de amigo», se anunciará como “O Homem que se perdeu / Em todos os

paraìsos”.446 O arco de simultaneidade que religa este eu a uma genealogia humana,

de raiz bíblica, estender-se-á ao longo dos poemas «Primeira lamentação», «Segunda

lamentação», «Terceira lamentação» e ainda «Fábula do servo de Deus», que mais de

perto remetem para o livro de Job e para a sua dissensão agónica, à qual vai Torga

resgatar “o tom geral […] de imprecação contra a injustiça de que o Homem fora

vìtima na queda original”, no dizer de Óscar Lopes (1987:722). A deambulação da

expectativa do leitor virá a encontrar sobretudo nestes poemas a derivação lógica do

443 «A Ceia», O Outro livro de Job (2007a:79). 444 H. M. Kallen. 1918. The Book of Job as Greek Tragedy Restored; J. P. Migne. 1864. Patrologia, LXVI, 697 f.; Theodore Beza. 1589. Preface. Job Expounded.; Rowley. 1958. Bulletin of the John Rylands Library 41, 168, n.3. Hoje a academia inclina-se muito mais para as relações do livro com as literaturas egípcia e babilónica (cf. Perdue 1991:32-75). 445 «A Ceia», O Outro livro de Job (2007a:80). 446 O Outro livro de Job (2007a:68).

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percurso poético torguiano que, a propósito de Job, tantos outros rostos bíblicos

convoca. Esta será justamente uma das questões capitais em «Primeira lamentação»,

que situarei de seguida no livro bíblico, dando especial destaque à importância

funcional e estruturante de Job 3, por razões que espero deixar claras.

Pode dizer-se que o sofrimento do justo é o grande tema do livro de Job,

uma das primeiras grandes contribuições da história da literatura para o problema

do mal, a que Leibniz convencionou chamar teodiceia.447 Entre o prólogo e o

epílogo do livro, onde se trata da queda (perda dos bens, da família e da saúde) e da

reabilitação de Job (compensação em bens, prole familiar e reputação), situam-se os

três ciclos de discursos de Job (4-15, 15-21, 22-27), em que este toma a palavra para

se debater com Deus e com os pares. É a estes que Torga suprime a voz, para vir

depois a restituí-la condicionadamente em «Cantar de amigo» (e aqui a solicitação da

tradição trovadoresca vem sublinhar o problema da ausência, mesmo a daqueles que

“vieram ver-me de longe”, estando presentes mas furtando-se à possibilidade de um

verdadeiro diálogo). Em causa estaria a validade do esquema preceitual teológico

yahwista, segundo o qual existe uma relação linear de proporcionalidade directa

entre a integridade espiritual e a prosperidade temporal do indivíduo.448 Sofrendo,

Job teria necessariamente de ter pecado e estaria a ser punido por isso; se é inocente,

como de facto o atesta a narrativa (ao revelar o teste à fidelidade de Job que Satanás

propõe a Deus e que este aceita), é então toda a doutrina da retribuição sapiencial

447 Duas referências me parecem fundamentais a este propósito, uma no contexto do mundo bíblico e do caldo cultural e literário mesopotâmico (Antti Laato e Johannes De Moor (eds). 2003. Theodicy in the World of the Bible. Leiden, Boston: Brill) e outra no âmbito das repercussões filosóficas desta questão no Ocidente (Susan Neiman. 2005. O mal no pensamento moderno. Uma história alternativa da filosofia. Lisboa: Gradiva). 448 Cf. James Crenshaw, Old Testament Wisdom (1981:100-125).

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que necessita de reequacionação, sob pena de o mundo se dar a percepcionar como

absurdo e destituído de assistência divina.449 A este respeito, Eduardo Lourenço

formula a questão: “Será Deus o tentador supremo?” (in Sousa 2009:16).

«Primeira lamentação» pode, assim, situar-se precisamente depois do

ponto do livro em que Job, quebrando um significativo silêncio de sete dias – o

tempo empregue na criação do mundo e símbolo da fase concluída a que se segue

uma mudança e uma renovação –, dá início ao ciclo que virá a encerrar-se com o

grande solilóquio do capítulo 31. A odisseia de Job pelo mundo das palavras começa

efectivamente aqui, no capítulo 3, cujos momentos mais marcantes Torga foi

disseminando ao longo de vários poemas.450 Ao encarnar a persona do poeta

atormentado pelo desconcerto do mundo, o Job bíblico anuncia o Camões por vir

(«O dia em que nasci moura e pereça») e dá o mote ao paradoxal “To be or not to

be” de Hamlet:

Desapareça o dia em que nasci E a noite em que foi dito: „Foi concebido um varão!‟ Converta-se esse dia em trevas! (Job 3:3-4)

Coibindo-se de atentar contra Deus, Job transfere para o dia do seu nascimento o

voto de maldição que a esposa o compeliu a formular e que Satã garantiu que

proferiria, do qual ressalta um desesperado desejo de morte. Depois de descer ao

449 Remeto neste ponto para Dermot Cox. 1978. The Triumph of Impotence: Job and the Tradition of the Absurd. Vol. 212, Analecta Gregoriana. Roma: Universitá Gregoriana Editrice. 450 Eis de seguida algumas das passagens passíveis de indexação ao capítulo 3 do livro de Job. «Romance»: “Parir assim alguém, tão nu, tão desgraçado! / Por mim, / Ainda disse que não!”; «Diário»: “Toda a semana me apeteceu gostar da vida, / Por causa deste dia, que sonhei / Tão grande como o Dia de Juìzo […] Adormecer como um justo / E acordar roubado e morto; / É tão natural em mim / A ânsia de ser um aborto”.

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nível do pó do solo, aniquilado sob o peso do funesto que sobre ele se abatera, Job

soergue-se tomado pelo furor do daimon (Otto 2005:104) e, enunciando-se nos

limites indistintos da sanidade, investe-se de uma aura destruidora através da qual se

coloca no exterior das fronteiras da História, onde nunca poderia ter existido, já que

estariam proscritas todas as condições para tal. Pintando à sua volta uma atmosfera

impregnada de tetricidade, ao invocar as forças mais obscuras do cosmos, o silêncio

de Job converte-se numa fúria transfiguradora do seu ethos pacífico. Job empossa-se

ali de uma autoridade inaudita que o torna maior do que ele próprio. Munido da

tradição literária que do caos primordial resgata a ordem, da noite o dia e do nada a

vida, Job empreende uma empresa verbal desconstrutiva do percurso da criação,

substituindo-se ao Deus do logos performativo. Na reescrita do Génesis (1:4), Job

instaura a (des)ordem do contra-natura a que preside a noite e não o dia; à sentença

divina “Faça-se luz”, Job opõe o desiderato inverso “Converta-se esse dia em

trevas!”. Assim faz Job naufragar consigo o mundo no abismo na inexistência – a

anteriana “noite eterna, noite do não-ser”. De facto, os eixos luz/escuridão, bem

como as suas derivadas (vida e morte, ordem e caos, conhecimento e mistério), são

vectores estruturantes de todo o discurso de Job, um pouco à semelhança da

dialéctica pergunta/resposta à escala do livro. Esta é, como considero, uma forma

de estabelecer o diálogo entre a literatura da criação e a literatura sapiencial,

profundamente entrelaçadas, uma vez que a mundividência que sustenta as

concepções sapienciais assenta na crença de que o céu e a terra foram criados por

Deus e por ele governados através da Palavra. Na verdade, o primeiro dos seus

actos criativos terá produzido a Sabedoria, na figura de uma mulher – donde se

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extrai a lição, subjacente a este género, de que procurar a sabedoria é ir ao encontro

do sentido da criação451. Porém, no contexto deste poema (Job 3:1-26), a sabedoria

é antes de mais uma ausência, sintomática do sentido postado além de qualquer

possibilidade de apreensão.

O uso que Torga faz aqui do substantivo “lamentação”, relativamente ao

discurso que sucede ao capítulo 3 do livro bíblico, exprime uma modulação do

alcance do primeiro discurso de Job, até pelo modo como a inverte, vindo a ganhar

especial ressonância com a leitura dos poemas de Lamentação, livro todo ele

concebido em termos de peça oratória cuja parateatralidade implica a interpelação

de um “Tu”, indexável a um Deus ausente porque “Senhor morto / do reino da

misérrima ambição”.452 «Primeira lamentação» desenha-se sobretudo em torno do

pronome indefinido “Tudo”, assim como a «Segunda lamentação» se estrutura em

torno de “Por tão pouco”, que se repete como um refrão no inìcio de todas as

estrofes do poema, tomado das audiências celestiais do prólogo do livro em que Job

não participa:

Mas estende a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face! E o Senhor disse a Satanás: Eis que tudo quanto tem está na tua mão […]. Então Satanás respondeu ao Senhor: Pele por pele, e tudo quanto o homem tem dará pela sua vida. (Job 1:12, 2:4) [itálicos meus]

Os bastidores da conspiração jobeana voltam a tomar lugar no poema «Fábula do

servo de Deus», verdadeiro poema da lacuna, que fornece o material lírico para o

451 Sobre as componentes mítica, teológica e retórica que ligam a literatura da criação e a literatura sapiencial, consulte-se Perdue (1991:12-73). 452 «XII», Lamentação (2007a:135).

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preenchimento dos espaços em branco da narrativa bíblica. O pronome «tudo»,

forma de deixis vazia onde cabem as referências de totalidade e absoluto – no âmbito

de uma leitura que é a da desgraça humana no curso da História –, reaparece ainda

em “Depois de tudo perdido, / Satanás disse a Deus”, no momento em que se

ensaia o balanço da provação de Job. Ainda aqui é o silêncio de Deus que ressoa,453

distante e impassível perante a condenação de Satanás – Deus terá assim fracassado

no seu próprio teste: “Mas o teu amor não tem / As humanas raìzes naturais!...”.

Convém sublinhar a modulação que esta sentença opera sobre a figura de Satanás,

de quem se diz em «Romance»: “A voz de Satanás já nesse tempo / Era humana e

natural…”.454 A transmutação do deuteragonismo oscila deste modo entre Deus e

Satanás, que se vê significativamente reabilitado perante a reprovação que recai

sobre Deus (veja-se, a este título, a tradição romântica de raiz miltoniana). O “tudo”

que fora perdido envolve, portanto, mais do que o caso pessoal de Job, pois que se

remete à ordem universal e ao seu sentido irrecuperável, tanto quanto a inocência de

Job está do mesmo modo perdida:

E agora… podes salvá-lo… E dar-lhe sete filhos e três filhas E catorze mil ovelhas E cento e quarenta anos de velhice lisonjeira… São enganos que te enganam… São remédios que não sanam a doença verdadeira…455

453 Ver ponto 3.1. desta tese. 454 O Outro livro de Job (2007a:48). 455 «Fábula do servo de Deus», O Outro livro de Job (2007a:82).

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O canto possível terá de ser então de lamento, de choro cósmico, de

viuvez pátria – no seguimento da devastação matricial de Jerusalém que inaugura o

livro de Torga. É de facto um homem saìdo “das cinzas” o que se apresenta em

«Segunda lamentação», renascendo delas quando outrora eram elas que constituíam

a própria marca da sua aniquilação (Job 2:8, 42:6). Este Job assume-se finalmente

como “o Homem do Bem e do Mal”, o arquétipo que sobrevive ao tipo e se

demarca do “esqueleto descarnado / Que está no chão desenhado / A

apodrecer…”.456 A assunção clara da despersonalização como etapa da

reconstituição do ser, a fractura basilar entre as duas ordens da criação, o bem e o

mal, encontra neste sujeito a fórmula possível da habitação do mundo, tal como este

se dá a percepcionar na sua arquitectura desde o Génesis. Ao invés da árvore do

bem e do mal, é agora ao homem que cabe o ensejo da mesmerização da vida (em bem

e mal, em céu e terra) por meio do canto de lamento no qual se acolhe o

conhecimento do todo, a possibilidade de escolha em si mesmo, a combinação dos

opostos que perfazem a totalidade do ser – o que incorpora necessariamente a

experiência da morte (note-se como é relevante a escolha de Torga, no que segue o

rasto genesíaco, pela árvore do conhecimento em detrimento da da vida). Esta

poesia está então finalmente habilitada a “ser tudo” e a “eternizar / O mesmo

Homem de sempre” – o “mesmo Adão”, o “Pedro / Que no transe da tua

divindade / Te negou”457 – e ainda a encarnar o patriarca humano que, à

semelhança da transferência vital que permeia «Evolução» de Antero, fala como o

eterno Adão perante as vicissitudes da história humana relatadas num remoto

456 «Segunda lamentação», O Outro livro de Job (2007a:56). 457 «Primeira lamentação», O Outro livro de Job (2007a:54).

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Pentateuco: “Meu filho Abel inaugurou a Morte / E meu filho Caim sujou as mãos

[…] E meu neto Moisés subiu ao monte”.458 Percorrendo as páginas memoriais do

passado humano, esse monumento à imperfeição na óptica da história como

degeneração progressiva da Criação (na linha do que seria a corrente J do Génesis

por contraste com P, a da Criação sustentada nos valores solenes da continuidade e

da ordem, ambas intercaladas e entrelaçadas nas narrativas do Génesis459), Adão

chega finalmente à ponta extrema da galeria de figuras que compõem o arquétipo de

humanidade para tornar-se Job: “Desci todos os degraus / E cheguei à Terra de

Hus”.460 O traçado da árvore da vida, o de uma descendência humana, converte-se

assim em árvore genealógica cujas “raìzes […] ninguém pode arrancar”. Aquele que

“morto ou vivo [aparece]” revela ainda ser o pater da humanidade que vem reclamar

a injusta sorte de seus filhos, expressando aquilo em que Óscar Lopes reconhece a

[…] revolta do titã humano, do Homem eterno, redivivo através de sucessivas mortes, tal como sugerem velhos mitos agrários do perpétuo renascer, na terra, a partir do sémen ancestral. (Lopes 1987:722)

O ajuste de contas de Job vem a ser, na verdade, forma de reencenação do titânico

recontro entre Prometeu e o Olimpo (tópico também cultivado pela tradição

romântica), se não desmerecermos o paradigma mítico que perpassa a voz de Adão,

envolvendo o fogo da vida e o destino da humanidade, pelo qual se sacrifica:

“Porque, Senhor, onde chego / Chega o calor da fogueira… / Ardo e dou calor à

458 «Segunda lamentação», O Outro livro de Job (2007a:56). 459 Relativamente à abordagem filológica do Génesis, remeto para Normal Habel. 1971. Discovering Literary Sources. Literary Criticism of the Old Testament. Philadelphia: Fortress Press. 460 «Segunda lamentação», O Outro livro de Job (2007a:57).

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Vida / Para me aquecer a Ela…”.461 À sua hybris inicial, Adão assimila aquela que é

a desmesura de Job, o sair de si próprio pela palavra. Entre ambos a partilha de uma

transgressão essencial das fronteiras do terreno os contigua numa irmanação

humana. Porta-voz da humanidade, o Job por meio do qual nos fala o Adão que há

em todos os homens toma em braços a demanda sapiencial do seu lugar no mundo

e fá-lo em questionamento do processo de Criação do Deus que já o era antes de o

Homem ser Homem. A presença de Job aqui é, portanto, a expressão de toda uma

visão antropologicamente marcada e do seu modo de constituir literatura.

O ónus do problema humano que sobre estes protagonistas recai encontra

a sua raiz precisamente no mesmo atributo que Pico de la Mirandola, no Discurso

sobre a dignidade do homem (1480), considera distintivo do homem – a capacidade de

transformar-se no que quiser. Estando colocado a meio da escada de Jacob (Génesis

28:10-22), é dado ao homem ascender às alturas ou descer às profundezas,

assemelhar-se aos anjos ou, pelo contrário, às bestas. Tensão insanável, o que era

miraculum torna-se maldição ao conjugar num “salto mortal”462, que é o da luta com

o anjo que lhe “[quebra] as pernas”,463 o lugar da queda e simultaneamente da ascensão

humanas. Nada poderia ser mais adequado àquele que, em «Livro de Horas», se diz

“ser tudo” e se confessa “de Abel e de Caim”, de “ser um anjo caìdo […] de ser um

monstro saído / Do buraco mais fundo da caverna”,464 algures entre a Rampa e o

Abismo.

461 «Terceira lamentação», O Outro livro de Job (2007a:59). 462 «Terceira lamentação», O Outro livro de Job (2007a:60). 463 «Terceira lamentação», O Outro livro de Job (2007a:60). 464 «Livro de horas», O Outro livro de Job (2007a:86).

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Regressado das remotas profundezas do ser, a voz de Homem que se faz

aqui ouvir é metonímia de toda uma genealogia de entes que, se por um lado, se

compaginam com o drama de Job, por outro, respondem ao seu apelo original e lhe

fornecem o meio da sua expiação, fazendo-lhe justiça na qualidade de testemunhas

de defesa, por assim dizer. Disso se faz O Outro livro de Job, provendo-lhe o goel

(testemunha, resgatador, vingador) pelo qual chamou desde os primórdios da sua

indignação465: é este o apelo que Torga aceita, ao recordar esse Job que “com

palavras de dor chamou alguém”.466 Ao invés de reabilitá-lo à sua condição primeira

com “remédios que não sanam a doença verdadeira”,467 o livro de Torga vem

devolver-lhe a palavra que Deus lhe proscreveu, resgatando-o do silêncio e da

contrição em que se havia olvidado, perante a sublime aparição de um Deus que

nem por isso deixa de ser absconditus. Em plena engrenagem do logos, Job pode assim

regressar na voz do poeta que diz “eu” e que, dizendo-o, se confessa “para dizer que

sou eu / Aqui, diante de mim!”468 no lugar da enunciação torguiana e se dá a ler

nesse acto sobretudo literário, mais do que retórico no seu alcance de uma auto-

referencialidade metafísica, da expressão de um rosto que tanto a ele como a nós,

porque também humanos, nos diz de nós próprios que um mesmo eu demiúrgico

tudo pode ser. E é-o, de facto, pela poesia, que lhe oferece essa possibilidade de

ensaio da “imagem fundadora da identidade […], o seu rosto autêntico e a sua

prosopopeia ou máscara retórica” (Rocha 2003:107).

465 Observa Steiner que “este termo pode definir uma testemunha, um advogado, um fiador, um porta-voz. Remonta à praxe legal hebraica. E quando Job invoca o seu goel, dá-nos a imagem de um vingador numa rixa sangrenta” (1996:37). 466 «Fábula do servo de Deus», O Outro livro de Job (2007a:81). 467 «Fábula do servo de Deus», O Outro livro de Job (2007a:82). 468 «Livro de horas», O Outro livro de Job (2007a:86).

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Importa por isso considerar ainda, como etapa de conclusão do presente

capítulo, a contribuição de livros como Lamentação e Salmos, onde se encontram dois

outros momentos afectos à mundividência bíblica de Torga, que impregna

abundantemente toda a sua restante obra. Aquilo que era solicitação do livro em O

Outro livro de Job conhece aqui a transmutação natural em solicitação da poesia, numa

polarização de paradigmas em que ombreiam o bíblico (de Job e de Jeremias) e o

órfico, como forma de superação de uma matriz fundamentalmente davídica – até

pela flutuação poética entre os símbolos da lira e da harpa. Em Lamentação, na sua

revolta imanentista, como em Salmos, a segunda parte de Nihil Sibi e em exaltação da

transcendentalidade poética, o canto joga-se no encontro procurado com formas

consagradas de entoação bíblica, para depois se acrescentar a elas ou mesmo

substituí-las sem, contudo, lhes retirar a força da sua tradição. Tanto de um como de

outro pode dizer-se serem os outros livros de Lamentações e dos Salmos, sendo-o

precisamente na linha que tornou possível um Outro livro de Job, atestando a

sobrevivência de uma leitura bíblica sem a qual o exercício, quer de denegação de

uma sacralidade instituída quer da sua reorientação de acordo com outras

coordenadas poéticas, não seria possível. Resgatar a ideia de cântico de lamento, de

súplica ou de louvor para com eles não lamentar, nem suplicar, nem sequer louvar é,

parece-me, forma de reescrita intencional dos postulados bíblicos que se conservam

sempre como ponto de partida e linha paralela.469 Daí também o carácter não

despiciendo do movimento enunciativo sempre em diálogo, cuja fronteira é

469 Assinala Robert Alter sobre a polifonia bakthiniana que “when the discourse of another is incorporated in a literary text, even to be debated or invalidated, it is given, at least momentarily, a voice of its own” (1992:100).

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necessário transpor para depois, na sugestão de uma novo elemento bíblico,

transmutar-lhe a forma e o saber em nome de uma outra poeticidade: Cântico do

Homem, em que o genitivo ocupe o lugar do superlativo hebraico, é para ela um

nome mais do que possível, enquanto forma de naturalização do elemento bíblico

no corpo literário, como sublinha significativamente Eduardo Lourenço: “Essa

naturalização do texto sagrado estará há muito a caminho da nossa tradição

ocidental – nem a nossa literatura, vendo bem, é outra coisa do que essa permanente

transubstanciação do «verbo divino» em «verbo profano» e, sob ela, uma recriação

do texto-sagrado em termos cada vez mais profanos, ou melhor, unicamente

humanos” (in Sousa 2009:12).

Elidir-lhe o conteúdo e conservar-lhe o nome só pode ser, na verdade, e

na linha de revisionismo bíblico encetada em Job, intuito de uma poética que se

quer da sensibilidade bíblica, por muito que o negue, e que nessa medida encontra

novo modo de religação com o que de sagrado há nas formas de enunciação do

humano e que, no fundo, habita a própria ideia torguiana de literatura, esse

fantasma de tinta […] Anfitrião da sua própria ausência. Testemunho do presente no passado, Cada passo que dá deixa no chão Não a marca dos pés, mas a ilusão De ter um dia por ali andado470

Formas de novas e velhas alianças, como as que encontramos em Torga e nos três

outros poetas do corpus desta tese, constituem os fantasmas cujas pegadas de tinta

470 «Ecce homo», Nihil Sibi (2007a:330)

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não se apagam do chão e que se tornam anfitriões da própria ausência, num

paradoxo que oferece a melhor das imagens para a presença obnubilada da aliança,

ainda não desfeita, que se estabeleceu entre texto poético e texto bíblico e foi

perdurando ao longo da história da literatura. A velha aliança, “testemunho do

presente no passado”, refunda-se aqui, como procurei demonstrar no decurso da

presente dissertação, por meio de novas e, sobretudo, renovadas alianças poéticas,

que continuam a vincular a Literatura Portuguesa. E fazem-no dando-lhe sentido,

até porque nunca deixaram de fazer sentido nela.

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