Veja 1999 - Peter Gay Sobre Freud

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Entrevista com o recentemente falecido escritor Peter Gay, sobre Freud, publicada pela revista Veja em 1999.

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Entrevista concedida a Veja (19/05/1999), a Tania Menai, com o Entrevista concedida a Veja (19/05/1999), a Tania Menai, com o historiador americano.Veja A exposio Sigmund Freud: Conflito e Cultura, aberta em Nova York e programada para ir ao Brasil no ano que vem, mostra 180 clipes de filmes e programas de televiso que mencionam a psicanlise de Alfred Hitchcock aos Flintstones. Sem falar nos jornais e revistas que trataram do assunto. Que impacto Freud teve nas artes e cultura do nosso sculo? GAY A psicanlise teve impacto em quase tudo. As pessoas vm usando o jargo psicanaltico e at mesmo as idias muito livremente s vezes de forma errada e superficial. Ao mesmo tempo, isso sugere que essa influncia tem sido bem profunda. Veja A psicanlise e Freud emplacam o prximo sculo ou o Prozac os matou? GAY Freud vive. Uma das razes pela qual acho que ele est vivo o nmero de obiturios escritos sobre ele. Normalmente, quando uma pessoa morre, basta um nico obiturio para que descanse eternamente. O Prozac e outros medicamentos do tipo podem at atacar os sintomas dos males psquicos. Isso bom. Porm, a maior parte desses medicamentos no alcana as causas do problema. Isso a psicanlise faz muito bem. A busca da natureza humana continuar para sempre, com ou sem remdios. Veja A psicanlise tem futuro?GAY Nosso julgamento se ela vai durar ou no, se ela vai virar um p de pgina na Histria ou permanecer um elemento essencial para a compreenso integral dos seres humanos. Meu palpite que sim, ela e ser til. Outros podem dizer "bem, melhor esperar para ver". Mas o caso dos genes do homossexualismo um bom exemplo. H muitas pessoas dando nfase pesquisa cerebral, entretanto elas tambm esto comprometidas em investigar o crebro de forma biolgica e fisiolgica, considerando que ele o responsvel por tudo o que ns somos. Estou dizendo outra coisa, estou dizendo "espere, ainda h algo mais dentro dessa estrutura biolgica". Exatamente o que essa coisa no sabemos. Ainda muito, muito vaga a idia que fazemos da mente. Veja As idias no nosso sculo foram sustentadas por trs pilares: o conceito de evoluo de Charles Darwin, o determinismo histrico de Karl Marx e a psicanlise de Freud. Parece que Darwin o nico pilar ainda inatacado dos trs. Por qu?GAY O comunismo claramente foi falncia e, com ele, naufragou Marx. No geral, ele foi muito simplista. Fica fcil rejeit-lo integralmente. Por outro lado, existem darwinistas dos quais discordo, no por discordar de Darwin, mas desse tipo de nfase exclusiva numa parte da experincia humana. No fundo, acho que cedo para analisarmos se essas heranas sero todas descartadas ou se existir uma sntese delas. O futuro dir. O que acho fundamental termos em mente que essas fabulosas arquiteturas colocadas de p por esses pensadores no explicam todos os detalhes da vida. Continua sendo decisivo investigar cada cultura, cada figura social de projeo, cada classe social, de modo que um dia, de posse desses dados, possamos ter uma noo clara de como as influncias, sejam de Darwin, Freud ou Marx, agem sobre ns. Veja Ainda h o que descobrir sobre Freud ou tudo agora se resume interpretao de sua obra ? GAY Sim, cerca de 450 cartas que Freud escreveu para sua noiva nunca foram publicadas. Essas cartas nos ajudariam a conhecer o corao e a mente do jovem Freud. Mas, de modo geral, todo o material restante est disponvel, no havendo mais muito a fazer, a no ser refletir sobre os trabalhos que conhecemos. Veja A psicanlise ainda tem seu lugar como terapia ou Freud ser lembrado apenas como um extraordinrio escritor em lngua alem?GAY A influncia de Freud mais abrangente e profunda do que se poderia esperar de um escritor. Todos ns usamos a linguagem inventada por ele o tempo todo. Suas idias so nossas idias em muitos casos. At aqueles que dizem abominar a psicanlise acabam envolvidos por Freud. Acho que ele mudou definitivamente a maneira como pensamos sobre ns mesmos. No conheo nenhum pensador srio de rea alguma que negue a existncia do inconsciente. Essa uma idia freudiana que, a meu ver, ter longa vida. Veja Mas, com o corre-corre da vida moderna, ainda h quem tenha tempo para o div?GAY Se tem menos gente fazendo anlise eu no sei. Sempre haver quem faa. Isso no tem nada a ver com estar atarefado. As pessoas sempre foram muito ocupadas. Analisar-se uma prtica cara, difcil identificar o tipo de terapia adequado para cada pessoa. So complicaes. Mas o fato de as pessoas estarem ocupadas no as faz desistir da anlise. Mesmo a competio qumica do Prozac, medida que o tempo passa, pode transformar-se em aliada, em vez de inimiga mortal da psicanlise. H pessoas hoje, tanto terapeutas de resultados quanto os interessados em psicologia profunda, que esto comeando a trabalhar juntas para construir pontes entre a anlise e a nova escola da neuropsiquiatria. Temos ainda de ver como isso vai funcionar. Mas h gente boa observando ativamente se essas idias desenvolvidas em conjunto por ambos os campos de estudo podem ser sintetizadas. Vale a pena esperar. Veja As famlias modernas so bem diferentes das que Freud estudou. Como isso afeta a validade das idias dele hoje? GAY As diferenas tnicas ou geogrficas e, especialmente, as de classe social no devem ter nenhuma influncia especfica em suas idias. O fato de haver hoje uma grande quantidade de divrcios no significa que a famlia atual no se compara da poca de Freud. Ela menos estvel do que no passado, concordo, mas a idia de adultrio, ou, nesse caso, mesmo a idia de divrcio e separao legal de casais, est presente nos escritos de Freud. No vejo isso como um obstculo aos fundamentos de suas teorias sobre a natureza do animal humano. O que pode haver so diferentes expresses de um mesmo complexo. Freud sabia muito bem que essas diferenas seriam levantadas como um desafio a sua teoria. Mas ele estava seguro de que isso no afetaria os fundamentos da psicanlise. Veja Freud saiu-se com a idia de que certos comportamentos femininos derivavam da "inVeja do pnis". Quando ele escreveu isso, o papel da mulher na sociedade era muito restrito. Desde ento, elas conquistaram direitos iguais aos dos homens e equipararam-se a eles profissionalmente. O que Freud diria sobre isso? GAY Nos seus ltimos anos de vida, no fim dos anos 20, comeo dos 30, Freud escreveu trs artigos sobre a sexualidade feminina. Eles foram bastante criticados tanto pelas feministas quanto pelos adeptos da psicanlise. Os artigos no tiveram sucesso, nem em termos tericos, nem em termos empricos. Quase nenhum deles avanou muito sobre o estudo das mulheres. Na verdade, os artigos no foram levados muito a srio. muito difcil explicar como Freud chegou a escrev-los. Anteriormente, ele defendia que meninos e meninas tinham um desenvolvimento paralelo. Depois abandonou essa idia. Enfim, nunca teve clareza sobre a questo da sexualidade feminina. As crticas feitas a Freud pelas feministas nesse particular so corretas. O que me incomoda que algumas dessas crticas sugerem que o fato de ele ter errado nesse ponto especfico leva a crer que todo o resto de sua obra deva ser desprezado. Veja Os casais homossexuais so cada vez mais aceitos pela sociedade. Em alguns pases eles podem adotar crianas. Como entender nesses casos os complexos de dipo e Eletra to fundamentais na obra de Freud?GAY Em muitos casos eles continuam valendo. No sei o que Freud diria se ele morasse em Nova York ou San Francisco e soubesse que casais homossexuais podem adotar filhos. Sei que ele no via o homossexualismo como crime, pecado ou doena, mas no estou certo se ele seria capaz de reconhecer essa confuso dos papis de pai e me que existe nos relacionamentos homossexuais. Conheo dois casais de lsbicas com filhos. Parece-me que em ambos os casos uma representa a me e a outra o pai, mas claro que isso tudo bem mais complicado do que Freud poderia sonhar. Sinceramente no saberia dizer qual seria a reao dele, afinal. Veja Freud no viveu o suficiente para conhecer os avanos da qumica cerebral, o papel dos neurotransmissores na formao dos pensamentos e das emoes. Se ele tivesse tido essa oportunidade, o senhor acha que ele ficaria fascinado com ela a ponto de deixar a psicanlise de lado e mergulhar num laboratrio? GAY Tenho certeza de que ele ficaria fascinado. Mas acredito que isso no o faria desistir da psicanlise. Volto ao meu ponto sobre o aliado e o inimigo. Por exemplo, recentemente houve um alvoroo sobre o fato de cientistas terem descoberto o gene da homossexualidade. Todo o universo do qual Freud falava poderia ter desabado. Mas ainda no se conseguiu repetir esses experimentos e as dvidas quanto existncia desse gene persistem. O problema central que a homossexualidade o resultado da interao de causas psicolgicas, fisiolgicas e biolgicas. Freud no tinha objeo a essa viso multidisciplinar. Numa carta para Wilhelm Fliess, seu melhor amigo, no comeo da dcada de 1890, ele escreveu "no devemos esquecer nossa base biolgica, sem a qual estaramos em algum lugar pelos ares". Em seu ltimo livro, Esboo de Psicanlise, inacabado por causa de sua morte, ele escreve sobre a possibilidade de um dia existir uma medicao capaz de mudar a mente das pessoas no apenas drog-las, faz-las se sentir melhor ou bbadas, mas sim mudar certos equilbrios mentais. "Se esse tempo chegar", escreveu ele, "no precisaremos mais desse procedimento caro e incerto chamado psicoterapia". Aos 82 anos, ele estava claramente admitindo o poder das drogas que afetam a mente. Ele no quis dizer com isso que suas idias sobre o inconsciente ou o desenvolvimento do ser humano em fases deveriam ser abandonadas. O que poderia se tornar intil, segundo ele, era a terapia. Veja Os fundamentos de Freud so aplicveis a todas as culturas? GAY Os fundamentos continuam os mesmos, ainda que as expresses mudem. H um debate muito interessante sobre as sociedades matriarcais das ilhas do Pacfico. O antroplogo Bronislaw Malinovski estudou-as em 1920 e saiu de l com sentimentos muito confusos em relao a Freud. Por um lado ele estava bastante entusiasmado com a psicanlise. Por outro, ele achava que ela no funcionava. A ambivalncia em relao criao das crianas pelos adultos continuar para sempre. As figuras podem variar, as expresses podem variar, mas certas regras fundamentais sero vlidas tanto para a China ou Sudeste Asitico quanto para a Europa. Veja Qual a relao entre o bigrafo e o biografado? No seu caso, a sua relao com a figura de Freud.GAY Como bigrafo, voc tenta descobrir o mximo sobre o assunto e, ao mesmo tempo, manter distncia. Por sinal, Freud achou que essa relao era impossvel. Ele sustentava que, por estar investindo muito no biografado, voc tem ou raiva ou adulao pela pessoa dele. Voc a idealiza ou a converte em demnio. Eu simplesmente discordo de Freud nesse aspecto. Parece-me que possvel ser informativo e neutro. preciso nunca negar evidncias que sigam na contramo dos preconceitos do bigrafo. necessrio que se revise a obra constantemente. Eu o fiz. A noo dos 100% de objetividade uma iluso ou simplesmente um ideal. Talvez, no meu caso, ser um historiador ajude em termos de ter capacidade de equilibrar os fatos, no distorcer demais. Veja O senhor fez anlise?GAY Sim, participei de treinamento de anlise que consiste em palestras, cursos e seminrios. Cheguei a fazer um pouco de avaliao de pacientes, mas decidi no praticar, mesmo tendo passado nos exames que permitem a prtica de no mdicos. Isso durou uns seis anos. E, claro, ser analisado parte importante do treinamento. Veja O seu analista deu-lhe alta? GAY Sim. A alta um processo, e no um simples anncio. No meu caso, ela veio um ano antes do trmino das sesses. uma maneira de o analista expressar que fizemos as descobertas necessrias ou que foram feitos progressos suficientes. Ento hora de pensar na alta. medida que o fim do processo de anlise se aproxima, os sintomas somem ou podem piorar. A relao com o analista algo que em geral no se quer abandonar. Afinal, ele envolve muita emoo e investimento no analista. Ento o paciente tenta ao mximo provar ao analista que deveria continuar a anlise at que chega a hora em que ele concorda que chegou o momento de parar.Envio para o Scribd.