Validacao de Material Didatico Para EAD - Desafios e Propostas

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ESUD2010 Artigos Completos 510 Validação de material didático para EAD: desafios e propostas Cristiane Brasileiro Mazocoli Silva 1 , Vinícius Carvalho Pereira 1 1 Centro de Educação a Distância do Estado do Rio de Janeiro (CEDERJ) – Rio de Janeiro – RJ – Brasil [email protected], [email protected] RESUMO No atual contexto de expansão da educação a distância, a escrita para EAD demanda competências sofisticadas e específicas, e é preciso buscar critérios mais consistentes para a validação desse tipo de material. Neste trabalho, buscamos indicar o lugar que essa produção ocupa no debate sobre EAD, apresentando um levantamento dos traços que distinguem o material autoinstrucional como gênero textual emergente. Tomamos como ponto de partida as propostas da Open University inglesa e da UNED espanhola a fim de depurar, detalhar e expandir as características macro e microtextuais do gênero autoinstrucional tais como constavam nos modelos europeus. Além disso, explicitamos o que poderia justificar o processo de especialização desse gênero, gerado pelo empenho em incorporar à escrita acadêmica voltada para fins didáticos alguns traços considerados relevantes da aula presencial. Por fim, apresentamos alguns pontos críticos em que a escrita para EAD se articula aos recursos tecnológicos disponíveis, com atenção para a composição das equipes envolvidas nesse tipo de produção. Palavras-chave: material didático; gênero autoinstrucional; design instrucional ABSTRACT Facing the present growth of distance education (DE), writing for DE demands accurate and specific competences, so that it is necessary to search for more consistent criteria for validating this kind of material. In this paper, we try to place this production in the DE debate, presenting the traits that distinguish the autoinstructional material as an emerging genre. We take as bases the proposals of the English Open University and the Spanish UNED, aiming at cleansing, detailing and expanding the macro and microstructural characteristics of the autoinstructional genre, considering the European model. Besides, we ellucidate what might cause this genre specification, due to the need to incorporate relevant features of presential classes to didactic-oriented academic writing. Finally, we present some critical points in which writing for DE is articulated to the available technological resources, focusing on the composition of professional teams who work with DE. Keywords: didactic material, autoinstructional genre, instructional design ESUD2010-VII Congresso Brasileiro de Ensino Superior a Distância. Novembro, 3-5, 2010, Cuiabá-MT, Brasil. Copyright 2010 UNIREDE

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Validação de material didático para EAD:

desafios e propostas

Cristiane Brasileiro Mazocoli Silva1, Vinícius Carvalho Pereira1

1Centro de Educação a Distância do Estado do Rio de Janeiro (CEDERJ) – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

[email protected], [email protected]

RESUMO

No atual contexto de expansão da educação a distância, a escrita para EAD demanda competências sofisticadas e específicas, e é preciso buscar critérios mais consistentes para a validação desse tipo de material. Neste trabalho, buscamos indicar o lugar que essa produção ocupa no debate sobre EAD, apresentando um levantamento dos traços que distinguem o material autoinstrucional como gênero textual emergente. Tomamos como ponto de partida as propostas da Open University inglesa e da UNED espanhola a fim de depurar, detalhar e expandir as características macro e microtextuais do gênero autoinstrucional tais como constavam nos modelos europeus. Além disso, explicitamos o que poderia justificar o processo de especialização desse gênero, gerado pelo empenho em incorporar à escrita acadêmica voltada para fins didáticos alguns traços considerados relevantes da aula presencial. Por fim, apresentamos alguns pontos críticos em que a escrita para EAD se articula aos recursos tecnológicos disponíveis, com atenção para a composição das equipes envolvidas nesse tipo de produção.

Palavras-chave: material didático; gênero autoinstrucional; design instrucional

ABSTRACT

Facing the present growth of distance education (DE), writing for DE demands accurate and specific competences, so that it is necessary to search for more consistent criteria for validating this kind of material. In this paper, we try to place this production in the DE debate, presenting the traits that distinguish the autoinstructional material as an emerging genre. We take as bases the proposals of the English Open University and the Spanish UNED, aiming at cleansing, detailing and expanding the macro and microstructural characteristics of the autoinstructional genre, considering the European model. Besides, we ellucidate what might cause this genre specification, due to the need to incorporate relevant features of presential classes to didactic-oriented academic writing. Finally, we present some critical points in which writing for DE is articulated to the available technological resources, focusing on the composition of professional teams who work with DE.

Keywords: didactic material, autoinstructional genre, instructional design

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Introdução: demandas & lacunas

Vivemos um contexto de estímulo incisivo à produtividade acadêmica – especialmente entre docentes da pós-graduação stricto sensu, mas presente em todos os níveis de ensino. A palavra de ordem é escrever e publicar – mesmo que os polos extremos dessa equação, que incluem o que deveria ocorrer antes da escrita ou depois da publicação, fiquem um tanto eclipsados (WATERS, 2006).

Nessa mesma esteira de produção textual acelerada, a educação a distância emerge e se expande em velocidade vertiginosa no Brasil (de pouco mais de 600 alunos, dez anos atrás, para mais 2.600.000 agora, de acordo com os dados do censo 2010 da ABED), e traz consigo demandas novas e importantes em relação à produção esperada dos docentes. Isso, no entanto, está ainda bem longe de ter sido objeto de atenção mais detida. Dois sintomas salientes: não há mais do que cerca de 100 trabalhos sobre EAD em língua portuguesa disponíveis no site do SCIELO, por um lado; por outro, a maioria dos processos de capacitação de conteudistas para produção de material didático (MD) para EAD ainda são ligeiríssimos, tomando apenas umas poucas horas – e isso, quando existem em caráter verdadeiramente institucional. Contrastando flagrantemente com esse olhar ainda descuidado, inocente ou incurioso, as novas e pesadas demandas que se configuram são cada vez mais nítidas. Grosso modo, podemos adiantar algumas das que mais saltam aos olhos:

- o material didático para EAD (ou ao menos parte substancial dele) deveria ser original, e ainda elaborado de acordo com um gênero textual específico (o que envolveria não só o desafio de uma sedimentação e uma organização refinada do que o professor já dominava e praticava no ensino presencial, mas ainda

uma reformulação e uma expansão de suas competências prévias, a fim de suprir fragilidades ou dar rendimento a potencialidades da modalidade de ensino a distância);

- os cronogramas de produção do material didático dos cursos em EAD demandam um ritmo de produção alto e são em geral bastante rígidos, pois esses cursos se voltam tipicamente para grandes públicos, e toda a estrutura de implementação dos mesmos depende do cumprimento das etapas planejadas. Nesse sentido, vale lembrar que a etapa da produção do MD é, via de regra, a mais demorada e sujeita a variações e imprevistos;

- a elaboração do material didático tende a ser (ou deveria ser) acompanhada e avaliada de perto por juízes especializados, e não só quando o material está pronto, mas ao longo da sua produção, já que o custo pedagógico e financeiro de corrigir eventuais problemas depois de sua publicação (via mídia impressa ou plataforma) é muito alto ou mesmo proibitivo (o que certamente ainda causa tensões, estranhamentos e mesmo desconfortos em vários dos profissionais convidados para atuar como conteudistas);

- bem diferentemente do que acontece com boa parte das demais publicações dos docentes, a função pedagógica e social do material didático produzido não é indireta ou quantitativa, mas crucial para os alunos da EAD, já que da qualidade do MD dependem muito as reais chances que eles terão de se desenvolverem ao longo dos cursos que escolheram, influenciando ainda boa parte dos índices de aproveitamento, repetência e especialmente evasão nos cursos a distância;

Em tal cenário, que é ao mesmo tempo excitante e tenso, paga-se preço alto pelo

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produtivismo mais mecânico e alucinado, na pressa em atender a demandas incomensuráveis ou de, no movimento empreendedor, abrir fontes antes inimagináveis de atuação. Nesse contexto, discutem-se sempre mais intensamente os contratos de compra e venda envolvendo as alternativas tecnológicas e de infraestrutura, enquanto se preparam muito rapidamente coordenadores e monitores e raramente se dá a importância devida ao esclarecimento mais detalhado sobre quais seriam os critérios de qualidade que deveriam nortear a escrita para EAD e, por fim, a validação dos materiais didáticos produzidos. É como se tecnologia se resumisse ao uso de aparelhos ou softwares recentes, e não englobasse, também, e tão dramaticamente, a própria linguagem. É como se não soubéssemos que os cronogramas de produção pra EAD explodem, via de regra, porque a absoluta maioria dos professores convidados para elaborar MD são surpreendidos pela complexidade da tarefa, ou como se não soubéssemos, por outro lado, que a produção muito aligeirada tem se articulado, via de regra, a materiais didáticos inadequados e de baixa qualidade, quando não simplesmente fraudados. É como se partíssemos do pressuposto de que esse “recheio linguístico” de todo o projeto dos cursos a distância não fosse especialmente novo, problemático, sofisticado ou trabalhoso. Mas é.a nossa prática profissional mais diária, que incluiu ao longo de mais de dois anos consecutivos a produção, o desenvolvimento e a supervisão de mais de 80 aulas por semana de cursos de graduação na modalidade a distância no Consórcio Cederj, e mais a análise da literatura disponível sobre a produção e validação, nos permite afirmar com boa margem de segurança que há muita desinformação e mesmo despreparo por

parte dos conteudistas, dos validadores e mesmo dos gestores, para compreender que o material didático (e em especial o impresso) constitui o eixo em torno do qual a modalidade EAD se organiza – e que, por isso, as lacunas e falhas nessa produção têm efeitos muito mais nocivos sobre o processo de ensino-aprendizagem do que no ensino presencial. Afinal, esses materiais devem conter não só boa parte do “conteúdo” mais central do curso, mas ainda muito do que se pode recordar, imaginar ou prever do que diz respeito às interações típicas entre professores e alunos, de onde costumam brotar perguntas, explicações complementares, comentários curiosos, indicações para expansão dos estudos etc. (FIALHO, 2007). Nesse sentido, o MD para EAD se constrói como uma ponte entre dois mundos que constituíram historicamente, no Brasil, trajetórias bastante apartadas: o da produção acadêmica qualificada e o do cotidiano tradicionalmente mais desprestigiado e vivo da rotina de sala de aula. No entanto, apesar desse papel crucial que tem na organização dos cursos em EAD, o material didático ainda parece ocupar uma espécie de ponto cego em relação aos processos mais regulares e institucionalizados de avaliação da modalidade no Brasil. Afinal, mesmo os critérios mais oficiais de avaliação dos cursos de EAD têm grande ênfase em questões quantitativas e relacionadas à infraestrutura dos cursos, com enfoque mais administrativo, abrangendo a avaliação do material didático apenas (e, mesmo assim, com clara dificuldade) com base em prescrições genéricas, imprecisas e instáveis. O formulário padrão para avaliação dos cursos pelo MEC, por exemplo, pede apenas que a instituição “tenha critérios para avaliação do material”, o que claramente devolve ou transfere para as instituições uma responsabilidade que em geral se espera

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que uma instância reguladora maior tenha podido formular de maneira mais explícita. Nesse vácuo, as instituições criam grandes variações e oscilações em relação aos critérios de produção esperados, e ao mesmo tempo uma área de aparente acordo é formada por pobres recomendações que misturam num mesmo pacote questões de natureza muito diversa: a recorrente e nebulosa exigência de “linguagem clara e objetiva” convive com recomendações de natureza administrativa e pedagógica, como “coerência com o projeto pedagógico do curso” ou outras mais da ordem da diagramação ou do design gráfico, a exemplo de “uso de tipos e tamanhos variados de letras para títulos e subtítulos”, ou mesmo a insondável “apresentação atraente”. Tais critérios de produção e validação dos materiais didáticos são, é claro, demasiado vagos e precisariam ser mais estudados e explicitados, a fim de garantir que o produto final recebido pelos alunos tenha qualidade e incorpore estruturas e características essenciais ao sucesso do ensino a distância. Não por acaso, há ainda falta de substância e muito de improviso nesse tipo de orientação para a produção pra EAD, o que tem gerado uma variação de qualidade na produção que merece ser olhada com mais cuidado. Mas como poderíamos contribuir mais diretamente para dar mais clareza a essas ações e permitir um processo de validação dos materiais didáticos pra EAD que seja mais transparente, regular e consistente? Nossa experiência e formação apontam para uma hipótese: para além de problemas políticos e culturais mais amplos, as dificuldades no processo de validação de materiais didáticos também têm se dado pela falta de amadurecimento de uma descrição mais detalhada do gênero textual que emerge

(e se desdobra, e se refina) com essa modalidade (e em torno do qual, inclusive, as equipes de produção precisariam se organizar com mais coerência). Estruturalmente, o lugar social de onde poderia se construir essa reflexão é frágil e improvável, por uma equação simples: quem está imerso nesse tipo de trabalho vive na carne a vertigem da demanda acelerada e mal pode parar para pensar no que está fazendo; quem avançou verticalmente numa reflexão resguardada por melhores condições de produção acadêmica qualificada em geral foi menos tocado pelos contextos, problemas e demandas de que estamos falando. Ainda assim, e do olho deste furacão, buscamos fazer uma descrição mais cuidadosa desse gênero a partir das próximas seções.

Textos autoinstrucionais: descrição macroestrutural

Acreditamos que a maioria dos docentes convidados para escrever material didático para EAD esteja muito mais acostumada a produzir outros gêneros: projetos, relatórios, resumos, resenhas, ensaios, apostilas, manuais, ou até mesmo os chamados “livros didáticos”, entendidos como livros-texto concebidos para estruturar e dar suporte a cursos presenciais. Mas, sendo a expansão da EAD no Brasil um fenômeno relativamente recente, cujos critérios de qualidade estão ainda em construção, poucos estão acostumados, de fato, a escrever o que mais frequentemente se chama, na literatura especializada, de material “autoinstrucional”.

Vamos buscar, então, retomar uma proposta muito influente na área e que em grande parte definiu o gênero em questão, estabelecida a partir de experiências mais consolidadas da Open University inglesa. Tal iniciativa irradiou para o Brasil com a divulgação da coleção editada por Fred Lockwood

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(1998), através principalmente das primeiras atuações públicas mais sistemáticas na área. Nesse contexto, a proposta delineada na Inglaterra foi complementada pelos parâmetros sugeridos por uma consultoria especializada da espanhola UNED, ainda hoje uma das principais instituições de EAD do mundo.

Reparem que as características listadas abaixo buscam captar as especificidades dos materiais autoinstrucionais, contrastando-os mais diretamente com os livros didáticos tradicionais, já que estes pertencem a um gênero didático que parece ter mais proximidade com o que queremos descrever, e com o qual, portanto, as fronteiras seriam menos nítidas e por isso mais capazes de refinar a descrição do gênero emergente (MARCUSCHI, 2004). Assumimos claramente, nesse sentido, que as distâncias entre materiais autoinstrucionais e gêneros como apostilas e manuais seriam ainda mais gritantes, dado o caráter mais sintético, instrumental e esquemático destes, em oposição à estrutura mais desenvolvida, autônoma, complexa e reflexiva daqueles. E isso pra não falar de textos

elaborados para slides no power point, via de regra criados para servir como meros roteiros visuais de apoio a apresentações orais, e portanto ainda mais distantes do tipo de produção que se deveria esperar de um MD autoinstrucional.

Com esse procedimento comparativo, admitimos uma limitação de origem: é claro que tendemos a acentuar as características extremas dos gêneros em confronto no quadro abaixo, mesmo sabendo que entre eles pode haver gradações, nuances e contraexemplos consideráveis. Por limitações de espaço, também não podemos fazer cada item dos que apresentamos no quadro a seguir ser acompanhado por uma discussão e uma exemplificação que seriam bastante desejáveis. Mesmo assim, acreditamos que o quadro que estamos propondo, em formato econômico, possa lançar mais luz sobre o gênero emergente. Registramos, ainda, que tal quadro resultou, basicamente, de um processo de reorganização, edição e desdobramento do quadro proposto inicialmente por Fred Lockwood (1998) e retomado em parte, no Brasil, por autores como Neder e Possari (2001) e Preti (2009).

Tabela 1: Comparação entre livro didático e material autoinstrucional

LIVRO DIDÁTICO MATERIAL AUTOINSTRUCIONAL

Planejado para um público mais genérico, situado em um contexto espaciotemporal difuso

Planejado para um público mais específico, situado em um contexto espaciotemporal bem definido

Escrito para guiar professores Escrito para guiar alunos

Desenvolvido pelos autores do conteúdo Desenvolvido por equipes de produção que incorporam diferentes profissionais

Não prevê relação entre conteúdo apresentado e carga horária correspondente

Prevê relação de conteúdo e atividades com carga horária correspondente

Raramente explicita metas e objetivos a cada nova unidade temática

Tende fortemente a estabelecer metas e objetivos a cada nova unidade temática

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Tabela 1: (cont.) Comparação entre livro didático e material autoinstrucional

Busca estilo mais impessoal e formal Busca estilo mais pessoal e informal

Estabelece, visualmente, rota única de leitura

Estabelece, explícita e visualmente, rotas variadas de leitura

Raramente antecipa dificuldades e dúvidas que o leitor possa ter

Alerta para dificuldades e dúvidas potenciais do leitor e incorpora-as ao texto

Tende a se concentrar quase que exclusivamente na apresentação do conteúdo

Tende a inserir, consciente e sistematicamente, elementos de mediação com o conteúdo

Tem conteúdo mais compactado (denso) Tem conteúdo mais aberto e detalhado

Concentra-se quase exclusivamente no texto escrito

Busca sistematizar conexões com outras mídias

Não requer, via de regra, resposta mais ativa e explícita do leitor

Requer, via de regra, resposta mais ativa e explícita do leitor

Dá pouca ênfase à autoavaliação, reservando para o professor a posição exclusiva de avaliador

Dá grande ênfase à autoavaliação, incluindo a elaboração de parâmetros claros e detalhados para isso

Tem estrutura de atividades ausente ou acanhada, em posição posterior, e com ênfase em revisão de leitura

Tem estrutura de atividades robusta e distribuída ao longo de todo o material, com ênfase na manipulação conceitual

Raramente oferece resumos Via de regra oferece resumos

Textos autoinstrucionais: descrição microestrutural

No que diz respeito aos aspectos mais microestruturais do gênero material autoinstrucional, isto é, o padrão sintático e lexical que ele apresenta, é importante notar que, dadas suas especificidades de função e forma, há uma série de diferenças relevantes, em comparação com os livros didáticos tradicionais. Longe de se apresentarem como detalhes de menor importância, essas diferenças, quando desconsideradas, podem gerar materiais que em nada diferem dos utilizados em cursos presenciais, e dessa inadequação nascem fenômenos notáveis de desmotivação e evasão de alunos. Afinal, se é pela linguagem que ocorre a mediação nas relações e a construção do

conhecimento, uma série de escolhas linguísticas impróprias tende a tornar o processo de ensino-aprendizagem menos eficaz (SMOLKA; GÓES, 1995).

No entanto, é importante deixar claro que orientações como “linguagem clara” ou “linguagem direta” dizem muito pouco a respeito das estruturas gramaticais e da seleção de palavras mais adequadas para a composição de um texto. A seguir, procederemos, portanto, a uma análise mais minuciosa das construções linguísticas e do tipo do vocabulário mais apropriados para a redação de um material autoinstrucional, dadas suas especificidades de função e contexto de uso.

1. Ordem direta – deve ser adotada não só na estrutura geral da aula (objetivo, introdução, desenvolvimento,

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atividades, conclusão, referências bibliográficas etc.), mas também no nível oracional. Isso quer dizer que, em vez de frases muito longas e cheias de inversões, períodos de tamanho moderado e organizados na forma genérica sujeito + verbo + complemento + adjunto facilitam a leitura (GARCIA, 1981). Vale lembrar que, como os alunos por vezes sentem dificuldade no manejo do texto escrito, o contato com parágrafos e frases estruturados na ordem direta, mais facilmente decodificada pelo cérebro, acostuma-os à sequenciação lógica das ideias e ensina-os, indiretamente, como deverão escrever seus próprios textos.

2. Substantivos concretos – ajudam o leitor, na forma de exemplos, metáforas e analogias, a depreender o significado de eventuais longos sintagmas formados por substantivos abstratos e adjetivos (mais difíceis de serem processados). A escrita acadêmica é especialmente marcada pela sucessão de compridas estruturas que encadeiam vários substantivos abstratos, como a “compreensão do processo de produção do saber epistemológico quanto à construção da alteridade”. No entanto, tal tipo de cadeia linguística dificulta a leitura, de modo que se for impossível reduzir a expressão, é interessante fazer comparações que empreguem substantivos concretos, a fim de tornar mais claro para o leitor o conteúdo que se quer passar.

3. Apostos e orações adjetivas – são empregados para "traduzir" a significação de palavras mais complexas, especialmente no caso de termos técnicos. Vale lembrar que, não se deve tomar como pressuposto que os discentes conheçam todos o jargão da área, especialmente no início do percurso acadêmico. Essas informações perifrásticas, por isso, podem vir

embutidas no texto ou inseridas em boxes ou hiperlinks;

4. Mecanismos de coesão referencial (pronomes e substantivos sinônimos e perifrásticos) – remetem a elementos anteriores no texto e permitem que se acrescentem a eles novas informações (KOCH, 2008). Embora presentes na maioria dos gêneros textuais, esses mecanismos são empregados de forma mais explícita e intensa em materiais autoinstrucionais, pois visa a antecipar possíveis dúvidas do leitor. A explicitação dos mecanismos de coesão referencial garante que as frases não tenham níveis de informatividade altos demais (KOCH; TRAVAGLIA, 2008), o que poderia dificultar a leitura.

5. Mecanismos de coesão sequencial (conjunções) – deixam claras as relações entre as ideias apresentadas ao longo texto (KOCH, 2008), pois, em um material autoinstrucional, além do conteúdo das frases, há um foco evidente nas concatenações lógicas entre elas. Isso se deve à função central desse gênero textual, que é promover a construção do conhecimento, evidenciando esse percurso intelectual, e não simplesmente apresentando as informações já prontas. A necessidade de explicitar esses mecanismos de coesão é ratificada pela organização geral do texto autoinstrucional, que apresenta poucas estruturas topicalizadas, mais comuns em apostilas.

6. Performativos – explicitam os atos de fala realizados por meio do discurso, evidenciando que o foco não está apenas no conteúdo em si, mas no processo de construção do conhecimento junto ao aluno. Segundo Austin (1965), todos os enunciados são performativos, pois, no momento em que são enunciados, realizam algum tipo de ação. No caso do material autoinstrucional,

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para que o aluno reconheça o caráter dialógico da negociação de sentidos e da construção do conhecimento em torno de dado objeto, geralmente se opta por enunciar claramente os performativos. Na prática, isso corresponde a não dizer simplesmente "A educação é importante", mas “afirma-se/concordamos/julgamos/espera-se que a educação seja importante”. Geralmente, afirmações dessa natureza vêm acompanhadas das justificativas que as respaldam. Desse modo, o autor leva o aluno a refletir sobre o processo de produção dos dados, em vez de meramente incorporá-los de forma mais imediata.

7. Marcas de interlocução – incorporam a figura do aluno ao texto do material didático, tentando restabelecer a experiência de diálogo que ocorre naturalmente na aula presencial. Antecipando possíveis dúvidas e anseios dos alunos, o autor se dirige diretamente a um aluno potencial, cujas características ele infere a partir do perfil geral dos discentes do curso. Em termos gramaticais, esse diálogo direto com o aluno se dá por meio de interrogações que convidam à reflexão, ao longo da exposição; imperativos que chamam o leitor a desempenhar determinada atividade mental; e vocativos e pronomes de tratamento que se dirigem diretamente ao discente (AZEREDO, 2008).

8. Marcas de enunciação – incorporam a figura do autor e o contexto de produção do material didático ao texto. Se, como recomendação geral para a redação acadêmica, costuma-se ouvir que é preciso manter a impessoalidade da escrita, isso não se aplica ao gênero material autoinstrucional. Nesse tipo de escrita, o autor coloca-se claramente no texto, deixando-lhe impressa uma marca autoral, como um pouco de si que os alunos possam conhecer. Mais uma vez,

esse tipo de recurso visa a ratificar o caráter dialógico do processo de ensino-aprendizagem e recriar um pouco do contato presencial. Quanto à escolha de palavras que permeia a tessitura do texto, vê-se que o material autoinstrucional incorpora o uso da 1ª pessoa do discurso (eu ou nós); de adjetivos que expressem subjetividade, ou seja, a visão de mundo de quem fala; e bastante de autorreferencialidade, o que implica em referências ao próprio texto, como objeto do mundo biossocial e produto composto de uma série de informações já mencionadas ou ainda por vir (AZEREDO, 2008).

Considerações finais: uma visão orgânica

Para além de uma lista detalhada ou exaustiva de quais seriam as características desse gênero emergente, no entanto, acreditamos que seja importante buscar o que as unifica, de certa forma, ou de que fonte comum elas emergem.

Apesar de sua aparente variedade e dispersão, as características da escrita para EAD parecem derivar de um mesmo impulso: o esforço de incorporar ao material didático algo central e ainda valioso do que acontece de melhor na sala de aula presencial, ou então criar sistemas de compensação diante das perdas mais evidentes decorrentes da “desmaterialização” da cena da aula.

Vejamos, nesse sentido, alguns dos vetores que governam esse impulso:

- criação de um ambiente suficientemente coeso para favorecer a concentração nos estudos e a criação de uma comunidade de aprendizagem, a fim de compensar a perda do ambiente físico mais nitidamente diferenciado e protegido. Para tanto, utiliza-se uma estrutura com graus planejados de redundância, com alto nível de explicitação da organização

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interna e reforço na coesão, de modo a contrabalançar o contexto social efetivamente mais dispersivo e fragmentário em que a recepção da aula pode vir a ocorrer;

- criação de um ambiente suficientemente aberto para troca ativa de experiências entre seus integrantes e atendimento a demandas de grupos heterogêneos, por meio da incorporação da perspectiva do aluno e da criação de arquitetura de informação com rotas de leitura variadas, de modo a atender a demandas relacionadas a lacunas de formação ou ao interesse por desdobramentos suplementares de conteúdo;

- abertura para a emergência de professores e alunos como indivíduos singulares, através de um estilo de escrita mais pessoal por parte do autor do material, além da abertura de espaços para inscrição efetiva da produção do aluno, incorporação da figura do aluno ao texto autoinstrucional ainda que através de recursos à memória e à imaginação a respeito de interações possíveis, e ainda uma articulação refinada entre o texto autoinstrucional e recursos como ferramentas interativas e tutoria (não apenas fornecer isso, portanto, mas fazê-lo de forma consciente e bem estruturada).

Considerando o impulso mais geral que parece governar o processo de diferenciação e especialização da escrita para EAD, um último ponto merece um destaque especial: quem, afinal, deve estar envolvido nessa produção?

De fato, a estruturação das equipes ainda é um dos pontos em que a falta de critérios ou consenso relativos à produção de cursos para EAD gera mais dissonâncias, inclusive porque boa parte desses perfis ainda está em processo de construção e reconhecimento, os organogramas das equipes nem sempre

estão definidos, e os fluxos preferenciais de produção ainda estão sendo testados. No entanto, fatores como quem e quantos são os profissionais que as integram, além de como eles se relacionam, são fortemente definidores da qualidade final do material didático produzido.

Alguns dos pontos mais sensíveis da produção, no entanto, se articulam em torno de dois atores:

- conteudistas/ autores: em geral advindos do ensino presencial e com alguma experiência de publicação, são chamados a integrar, num nível superior, experiências que pouco se tocavam antes de sua imersão na EAD: reflexão e produção escrita avançada, por um lado, e imersão na sala de aula, por outro. Nesse contexto, a atenção dedicada ao planejamento da aula se intensifica muito e passa por um nível de controle e avaliação institucional do evento aula (reconstruído ou criado no discurso) possivelmente inéditos.

- designers instrucionais: com descrição ainda recente no CBO (Código Brasileiro de Ocupações), publicado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, esses profissionais deveriam ser capazes, teoricamente, de orientar todo o processo de criação e refinamento do gênero textual autoinstrucional e ainda reger as articulações entre toda e equipe envolvida, englobando num mesmo esforço coordenadores de curso e revisores de português, designers gráficos e especialistas em TICs, professores e ilustradores (FILATRO, 2008). Na prática, porém, a função pode ser amesquinhada ou, pelo contrário, ganhar força, dependendo basicamente do nível de formação e experiência da equipe, do grau de aderência acadêmica em relação aos cursos em produção, do fluxo previsto e da estrutura institucional (AMARAL, 2009; CLARO, 2007).

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Chamamos a atenção, por fim, para a ausência predominante de “juízes de conteúdo” que possam contribuir para o processo de validação do MD para EAD: se estamos entendendo que essa produção tem características específicas e é, de muitas formas, extremamente exigente e original, seria de se esperar que esse filtro fosse acionado mais sistematicamente. Afinal, se é verdade que no ensino presencial as aulas de cada professor não passam por tantos crivos, é fato que no mundo da EAD os erros e os acertos se dão tipicamente em grande escala, e com consequências mais definitivas.

Além disso, o que temos visto é que todo esse cuidado, quando existe, acaba por transbordar também para o ensino presencial, num “efeito colateral” da produção de cursos para EAD que é muito sintomático: talvez indique que, na nova convergência entre a escrita acadêmica e a sala de aula, algumas propriedades imprevistas estejam emergindo. Qualidades do ensino e da aprendizagem que não existiam separadamente antes deste momento de convergência e ebulição, mas que não estão surgindo em vão, e cujo valor final só se definirá com nossa atenção a essas novas realidades e com as decisões que, mesmo no meio das engrenagens mais vertiginosas, precisaremos saber discernir e tomar.

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ESUD2010 Artigos Completos

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