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    O projeto neoliberal de resposta

    questo social

    e a funcionalidade do terceiro

    setor

    Carlos E. Montao

    Resumo:O artigo problematiza criticamente o debate sobre o conceito de terceiro setor, apartir no do que chamado terceiro setor, mas das reformas mais gerais operadassob a hegemonia do grande capital, particularmente o financeiro. Procura-secaracterizar a origem setorializadora desse termo que, de um lado, impede uma visode totalidade e, portanto, deita por terra a perspectiva de transformao social; e, deoutro, determina sua clara funcionalidade ao projeto hegemnico de reestruturao docapital que, orientado nos postulados neoliberais, mistifica a sociedade civil, desarticula

    e apazigua as lutas sociais, alm de propiciar maior aceitao reforma do Estado,particularmente no que refere Seguridade Social e responsabilidade estatal naresposta questo social como direito de cidadania.

    1. O novo trato questo social no contexto da reforma do estado de suma importncia inserir o debate do chamado terceiro setor

    no interior (e como resultado) do processo de reestruturao do capital,particularmente no conjunto de (contra) reformas do Estado (Montao,2001). Assim, mudanas na cultura (Mota, 1995); alteraes na racionalidade evalores sociais, ditos ps-modernos (Harvey, 1993); significativas alteraesno perfil do cidado, cada vez mais ligado ao consumo no lugar do trabalho;transformaes na legislao trabalhista, tais como flexibilizao e

    eliminao de leis que visam garantir direitos conquistados do trabalhador; nabase democrtica, cada vez menor participao da sociedade nos processosdecisrios nacionais; constituio de um novo contrato social que substituao do perodo fordista/keynesiano. Tudo isto emoldura um processo central: aconfigurao de uma nova modalidade de trato questo social. Este o verdadeirofenmeno escondido por trs do que chamado terceiro setor.

    Por um lado, a crisee a suposta escassezde recursos servem de pretextopara justificar a retirada do Estado da sua responsabilidade social e a expansodos servios comerciais ou desenvolvidos num suposto terceiro setor. Por

    Doutor em Servio Social. Prof. da UFRJ. Autor dos livros La naturaleza del ServicioSocial. Un ensayo sobre su gnesis, su especificidad y su reproduccin (1998) eMicroempresa na era da globalizao (1999). Coordenador da BibliotecaLatinoamericana de Servicio Social (Cortez).

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    outro, a recorrente afirmao de que existiria hoje uma nova questo socialtem, implicitamente, o claro objetivo de justificar um novo trato questosocial; assim, se h uma nova questo social seria justo pensar nanecessidade de uma novaforma de intervir nela, supostamente mais adequadas questes atuais. Na verdade, a questo social que expressa acontradio capital-trabalho, as lutas de classe, a desigual participao nadistribuio de riqueza social continua inalterada; o que se verifica o

    surgimento e alterao, na contemporaneidade, de suas refraes e expresses.O que h so novas manifestaes da velha questo social.

    No contexto do Welfare State, a questo social como alvo daspolticas sociais com uma resposta poltica e no apenas repressiva , internalizada na ordem econmico-poltica (Netto, 1992: 26). Entretanto, nocontexto atual, a resposta social nova questo social tende a serexternalizadada ordem social e transferida para o mbito imediato e individual.

    As polticas sociais universais, no-contratualistas e constitutivas dedireito de cidadania so acusadas pelos neoliberais de propiciarem oesvaziamento de fundos pblicos, mal aplicados em atividadesburocratizadas, sem retorno e que estendem a cobertura a toda a populao

    indiscriminadamente. No Brasil, a jovem Constituio de 1988 e suaconcepo de Seguridade Social constituda pelas Previdncia, Sade eAssistncia parecem ser, neste caso, as vils (Bresser Pereira, 1998).

    Como soluo parcial da crise capitalista, o neoliberalismo visa areconstituio do mercado, reduzindo ou at eliminando a interveno socialdo Estado em diversas reas e atividades. o que j caracterizamos como apassagem do fundamento da legitimao sistmica das lgicas democrticas particularmente no mbito estatal para as lgicas da sociedade civil e do mercado(Montao, 1999). Desta forma, a desregulamentao e flexibilizao dasrelaes trabalhistas e a reestruturao produtiva vo da mo da reforma doEstado, sobretudo na sua desresponsabilizao da interveno na resposta s

    seqelas da questo social. Agora o mercado ser a instncia por excelncia,de regulao e legitimao social. O igualitarismo promovido pelo Estadointervencionista deve ser, na tica neoliberal, combatido. No seu lugar, adesigualdade e a concorrncia so concebidas como motores do estmulo edesenvolvimento social. Conforme Laurell, a crtica neoliberal ao Estado debem-estar centrada em oposio queles elementos da poltica social queimplicam desmercantilizao, solidariedade social e coletivismo (1995: 163)alm do carter universal e de direito das polticas sociais tpicas do regimefordista/keynesiano.

    Observa-se, pois, em decorrncia das novas necessidades do capital eda atual situao das lutas de classes, uma nova estratgia hegemnica(neoliberal) do grande capital, de reestruturao produtiva, de reforma do

    Estado, de globalizao da produo e dos mercados, de financeirizao do

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    reinvestimento do capital, face atual crise de superproduo esuperacumulao, que envolve, dentre vrios aspectos, umnovo trato questosocial. Desta forma, o projeto neoliberal, que confecciona esta novamodalidade de resposta questo social, quer acabar com a condio dedireitodas polticas sociais e assistenciais, com seu carter universalista, com aigualdade de acesso, com a base de solidariedade e responsabilidade social e diferencial(todos contribuem com seu financiamento e a partir das capacidades

    econmicas de cada um). Cria-se, em substituio, uma modalidadepolimrfica de respostas s necessidades individuais, diferente segundo opoder aquisitivo de cada um. Tais respostas no constituiriam direito, masuma atividade filantrpico/voluntria ou um servio comercializvel assimcomo a qualidade dos servios responde ao poder de compra da pessoa, auniversalizao cede lugar focalizao e descentralizao, a solidariedadesocial passa a ser localizada, pontual, identificada auto-ajuda e ajuda mtua.1

    assim que, no que concerne ao novo trato da questo social, aorientao das polticas sociais estatais alterada de forma significativa. Por umlado, elas soretiradas paulatinamente da rbita do Estado, sendoprivatizadas:transferidas ao mercado e/ou alocadas na sociedade civil. Por sua vez, essas

    polticas sociais estatais so focalizadas, isto , dirigidas exclusivamente aossetores portadores de carncias pontuais, com necessidades bsicasinsatisfeitas. Finalmente, elas so tambm descentralizadas administrativamente; oque implica apenas numa desconcentrao financeira e executiva, mantendouma centralizao normativa e poltica. Em idntico sentido, os serviossociais, a assistncia estatal, as subvenes de produtos e servios de usopopular, os complementos salariais etc., se vem fortemente reduzidos emquantidade, qualidade e variabilidade. O que significa que os servios estatais parapobres so pobres servios estatais.

    Desta forma, para cobrir os vcuos que, na previdncia e serviossociais e assistenciais, deixa este novo Estado minimizado na rea social,parcelas importantes das respostas questo social so privatizadas e

    transferidas ao mercado (quando lucrativas) e sociedade civil ou terceiro setor(quando deficitrias), que vende ou fornece gratuitamente os serviossociais. Enfim, em contraposio incondicionalidade, unicidade euniversalidade da resposta estatal tpica do contexto keynesiano, o novo trato questo social, contido no projeto neoliberal, significa a coexistncia detrs tipos de respostas:

    a precarizao das polticas sociais e assistncia estatais, isto , amanuteno destas, fornecidas gratuitamente pelo Estado, num nvel

    1. Para Laurell, as estratgias concretas idealizadas pelos governos neoliberais parareduzir a ao estatal no terreno do bem-estar social so: a privatizao dofinanciamento e da produo de servios; cortes dos gastos sociais, eliminando-seprogramas e reduzindo-se benefcios; canalizao [focalizao] dos gastos para osgrupos carentes; e a descentralizao em nvel local (1995: 163).

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    marginal. Este tipo de resposta, no contexto da estratgia neoliberal, exige umduplo processo complementar de focalizao e descentralizao daspolticas sociais estatais. Isto configura o tipo de resposta do Estado questosocial fundamentalmente dirigido spopulaes mais carentes.

    a privatizaoda seguridade e das polticas sociais e assistenciais,seguindo dois caminhos:

    a) a re-mercantilizao dos servios sociais. Estes, enquantolucrativos, so re-mercantilizados, transformados em servios mercantis, emmercadorias, sendo traspassados para o mercado e vendidos ao consumidor,como uma nova forma de apropriao da mais valia do trabalhador. Istoconforma o tipo de fornecimento empresarial de servios sociais, dirigidos aoscidados plenamente integrados.

    b) a re-filantropizao das respostas questo social (Yazbek,1995). Na medida em que amplos setores da populao ficaro descobertospela assistncia estatal precria, focalizada e descentralizada, ou seja, ausenteem certos municpios e regies e sem cobertura para significativos grupospopulacionais e tambm no tero condies de acesso aos servios

    privados (caros), transfere-se rbita da sociedade civil a iniciativa deassisti-la mediante prticas voluntrias, filantrpicas e caritativas, de ajuda-mtua ou auto-ajuda. neste espao que surgir o terceiro setor, atendendo apopulao excluda ou parcialmente integrada. Isto se constitui como uma luvana mo do projeto neoliberal2.

    Portanto, com este triplo processo, no mbito do terceiro setor, deprecria interveno estatal, de re-filantropizaoda questo social, acompanhadade uma re-mercantilizaodesta, desenvolvida pela empresa privada, consolidam-se trs modalidades de serviosde qualidades diferentes o privado/mercantil, deboa qualidade; o estatal/ gratuito, precrio e o filantrpico/voluntrio,geralmente tambm de qualidade duvidosa para duas categorias de cidados3: osintegrados/consumidores e os excludos/assistidos.

    Esta trplice modalidade de resposta questo social (estatal,filantrpica e mercantil) exige um processo que cumpre tanto uma funoideolgica como de viabilidade econmica. Em geral, as organizaes dochamado terceiro setor no tm condies de autofinanciamento erequerem, particularmente, a transferncia de fundos pblicos para seufuncionamento mnimo. Esta transferncia chamada, ideologicamente, deparceria entre o Estado e a sociedade civil. O Estado, supostamente,

    2. Estas instituies, ao tomar para si tais funes deixadas pelo Estado, mesmo semquerer, entram no esquema de desestatizao (ou privatizao) das reaseconmicas e de re-mercantilizao e re-filantropizao da questo social.3. Vide os sistemas previdencirios pblico e privado, os servios de sade e o ensino(primrio e secundrio) estatais e privados, os sistemas de financiamento parahabitao, etc.

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    contribuindo (financeira e legalmente) para propiciar a participao dasociedade civil.

    2. a instrumentalizao e a funcionalidade do terceiro setor paraprojeto neoliberal

    Determinar a funcionalidade do debate sobre o terceiro setor para

    as transformaes do capital exige, antes de mais nada, caracteriz-lo comoinstrumento, como meio de realizao das mesmas. Como observa Guerra(2000), a instrumentalidade remete qualidade e capacidade de algo (pessoa,classe, mquina, instituio, valores, conhecimentos, etc.) em ser meio deobteno de finalidades.

    Ser meio para alcanar as finalidades desejadas significa serinstrumento (ou ser instrumentalizado) para tal propsito. Assim, ainstrumentalidade remete mediao entre teleologia (pr-ideaes) e ascausalidades dadas(condies naturais existentes) e postas(relaes e processossociais). O sujeito, para alcanar seu propsito, deve conhecer as condiesexistentes, possibilidades e dificuldades, determinando os meios para,superando as dificuldades e potencializando as possibilidades, atingir seu fim. 4

    A instrumentalidade , portanto, a categoria central para a compreenso dafuncionalidadede algo em relao a finalidades, a um projeto, e a modalidade deoperao em que comparece como instrumento para tal fim. Sem ela noteremos clara viso sobre a verdadeira funo social desse objeto, sujeito,instituio, etc. Ela d resposta sobre o para que e o como das coisas.

    Com o desenvolvimento scio-histrico, a produo no modocapitalista exige relaes sociais adequadas acumulao ampliada de capital, oque demanda certas mediaes de segunda ordem, de complexos sociais:ideologia, arte, direito, Estado, cincia e tcnica etc. (Guerra, 2000: 15-6). ParaNetto, a sociedade burguesa, com o monoplio organizado e regulando omercado, produz e reproduz os seus agentes sociais particulares (1992: 37), e

    mais, acrescenta Guerra, cria as estruturas, instituies,polticase prticascapazesde dar-lhe sustentao nos planos da sua produo e reproduo (2000: 17;grifos nossos).

    O sistema capitalista de produo, na sua fase monopolista (madura econsolidada), transforma todas as relaes sociais, instituies, indivduos,valores, atos, em meios para a acumulao capitalista e a reproduo dasrelaes sociais. Instrumentaliza todas as esferas da vida social para o seu primordialfim: a acumulao ampliada de capital. Desta forma, um objeto, sujeito,instituio etc., no necessariamente representa um meio ou instrumento

    4. Para Lessa, a necessidade, essencial ao trabalho, de captura do real pelaconscincia, de modo que possa transformar com sucesso a realidade segundo umafinalidade previamente idealizada, o fundamento ontolgico de um impulso aoconhecimento do real que Lukcs, aps Hartmann, denominou intentio recta (1997:34).

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    natural para atingir a finalidade. Deve ser adaptado, convertido em meioadequado, ser instrumentalizado. Assim, o ferro deve ser convertido em foice, otrabalhador em assalariado, os servios sociais em instrumentos de controle einterveno na vida cotidiana da populao, o ensino em meio de treinamentode fora de trabalho sem nus para o capital etc. De acordo com Guerra, oprocesso produtivo capitalista detm a propriedade de converter asinstituies e prticas sociais em instrumento/meios de reproduo do

    capital (2000: 13). A instrumentalidade do Estado de bem-estar, porexemplo, consiste em ser meio para ampliar a acumulao capitalista e para areproduo das relaes sociais necessrias a ela, num determinado contextohistrico.

    Porm, no existe uma nica e unvoca relao meio/fim. Se serinstrumental significa ser resultado da relao tensa entre teleologia ecausalidade ou, melhor, entre as diversas teleologias e as causalidades dadas,ento, uma mesma coisa pode constituir meio para diversas finalidades. Se,como analisamos, o Estado de bem-estar instrumento para a ampliao daacumulao capitalista, tambm incorpora demandas sociais, isto , constituiinstrumento para a satisfao de certas necessidades e reivindicaes das

    classes trabalhadoras.O capitalismo monopolista na atualidade, orientado pelos princpios

    neoliberais, desenvolve uma nova estratgia geral de enfrentamento da atualcrise de acumulao capitalista, de reproduo das relaes sociais e delegitimao sistmica, tal que exige re-institucionalizar sujeitos, instituies,prticas, valores, etc. A estratgia para isto complexa e opera em diversasfrentes: instrumentalizarvrias questes, torn-las meiospara estes fins, faz-lasfuncionaisaos objetivos neoliberais.

    A estratgia neoliberal tende, sobretudo, a instrumentalizar umconjunto de valores, prticas, sujeitos, instncias: o chamado terceiro setor,os valores altrustas de solidariedade individual e do voluntarismo e as

    instituies e organizaes que em torno deles se movimentam. O capital lutapor instrumentalizar a sociedade civil torn-la dcil, desestruturada,desmobilizada, amigvel. O debate sobre o terceiro setor, como ideologia,transforma a sociedade civil em meiopara o projeto neoliberal desenvolver suaestratgia de reestruturao do capital, particularmente no que refere reforma da Seguridade Social. Portanto, a funcionalidade do terceiro setorao projeto neoliberal consiste em torn-lo instrumento, meio, para:

    a) Justificar e legitimar o processo de desestruturao daSeguridade Social e desresponsabilizao do Estado na intervenosocial

    Concretamente, no Brasil, tende-se a justificar o desmonte daquela

    Seguridade Social estatal configurada na Constituio de 88, constituda naarticulao da Sade, Previdncia e Assistncia. Com o terceiro setor

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    operando ideologicamente na necessidade de compensar, substituir ouremediar as atividades sociais precarizadas ou eliminadas dasresponsabilidades do Estado, a populao tende a melhor aceitar a suadesresponsabilizao nas respostas s seqelas da questo social.5Asperdasde direitos universais por servios pblicos de qualidade tendem a ser vistascomoganhosnas atividades desenvolvidas pelo conjunto das foras voluntrias,no governamentais, filantrpicas. Verdadeiras perdas de conquistas histricas

    so convertidas, pela ao ideolgica do terceiro setor, em nova conquistade um tipo de atividade supostamente solidria.

    Se as polticas sociais eram, no Welfare State, funcionais ao capital,eram-no tambm, mesmo que de forma subordinada, contraditria econcomitantemente, funcionais consolidao de demandas trabalhistas pordireitos sociais universais. Se elas colaboravam com a acumulao capitalista,tambm confirmavam certas conquistas histricas dos trabalhadores. Com odesmonte neoliberal desse padro de resposta estatal, essas conquistastrabalhistas esfumam-se, esvaziam-se. Aqui o debate do terceiro setor prestaum grande servio, pois converte-se em instrumento, em meio para oocultamento desse processo e para a maior aceitao da populao afetada.

    O terceiro setor tem a funo de minimizar os impactos daoposio s reformas neoliberais. Petras enfatiza que enquanto os neoliberaistransferiam lucrativas propriedades estatais ao rico setor privado, as ONGsno faziam parte da resistncia dos sindicatos (1999: 46).6

    Paralelamente, ao definir as novas entidades do terceiro setor,responsveis pelos servios sociais e cientficos (Bresser Pereira, 1998: 101),como de carter pblico, conservando o financiamento pelo Estado, masde direito privado (idem: 246-7), atribui a responsabilidade pblica dasrespostas s seqelas da questo social s organizaes da sociedade civil,porm retira seu controle da gesto estatal e do direito pblico, transferindo-o para o direitoprivado. As possibilidades de controle democrtico e de presso poltica

    diminuem significativamente com este movimento.Esta verdadeira desresponsabilizao do Estado no trato da questo

    social s possvel de ser realmente compreendida na sua articulao com aauto-responsabilizao dos sujeitos carenciados e com a desonerao do capital nainterveno social, no contexto do projeto neoliberal. Desresponsabilizaoestatal no pode significar que o Estado no faa parte deste movimento de

    5. Neste sentido, afirma Petras, de certo modo, as ONGs assumiram as funesanteriormente cumpridas pelas agncias estatais, o que permitiu aos governosnacionais a reduo da sua responsabilidade pela promoo do bem-estar dapopulao (1999: 72).6. Segundo Petras, enquanto os regimes neoliberais centrais foram devastandocomunidades, estimulando a dvida externa, promovendo a pauperizao cada vezmaior, as ONGs foram sendo financiadas para oferecer projetos de auto-ajuda,educao popular, treinamento profissional, etc. (1999: 45).

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    transformao da modalidade de interveno na questo social. O Estado,dirigido pelos governos neoliberais, se afasta parcialmente da interveno social,porm, ele subsidiador e promotor do processo ideolgico de transferncia da ao socialpara o terceiro setor. Ele um ator destacado nesse processo.

    b) Desonerar o capital da responsabilidade de co-financiar asrespostas s refraes da questo social mediante polticas sociais

    estataisO fato de o Estado ser responsvel pela resposta questo social

    significa que toda a sociedade que tem essa responsabilidade, numa forma desolidariedade sistmica. A sociedade que responsvel pela resposta sseqelas da questo social, o Estado , na verdade, o instrumentoprivilegiado de sua realizao. Assim, a interveno estatal na questo social financiada mediante a contribuio compulsria de toda a sociedade,incluindo o capital. As classes e o conjunto dos cidados participamdesigualmente (segundo sua renda e/ou seu patrimnio) no financiamentodessa interveno social do Estado.

    Ora, se temos hoje uma sensvel diminuio da interveno estatal, via

    privatizao das polticas e servios sociais (tanto para o mbito lucrativo domercado, quanto para o terceiro setor), via terceirizao dos mesmos, viarecorte dos gastos sociais, passando esta ao cada vez mais para aresponsabilidade dos prprios sujeitos portadores de necessidades, isto no ssignifica a retirada parcial do Estado desta funo, mas fundamentalmente apassagem de uma responsabilidade do conjunto da sociedadeem financiar esta aoestatal para uma auto-responsabilidade dos necessitados pela soluo dos seusprprios carecimentos. Isto significa que passa a haver um auto-financiamentopelos prprios sujeitos carenciados, complementado pela participaovoluntria.

    A ao social deixa de ser financiada pelo conjunto da sociedade, pelocapital, pelo trabalho, etc. e passa agora a ser cada vez mais financiada pelos

    setores carenciados, mais ligados aos trabalhadores de mdia e baixa renda. Ocapital deixa de ser obrigadoa co-financiar as polticas sociais estatais; passa-sede uma solidariedade sistmica (mediante a contribuio compulsria ediferencial) para uma solidariedade individual e voluntria (segundo osprincpios da auto-ajuda e da ajuda-mtua).

    O capital, assim, se desonera da contribuio compulsria. Sua interveno naao social assume a forma voluntria de doao (segundo suaconscincia cidad e sua responsabilidade social), no de obrigao.

    c) Despolitizar os conflitos sociais dissipando-os epulverizando-os, e transformar as lutas contra a reforma do Estadoem parceria com o Estado

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    Com isto, a relao Estado/sociedade civil tende a serinstrumentalizada, convertida em meio para alterar as lutas sociais articuladasem torno de condies de classe, dirigidas contra a reforma do Estado, contraa reestruturao produtiva, contra a globalizao em parceriacom o Estadoe em articulao com a filantropia empresarial, na procura do melhorpossvel.

    Ora, toda demanda social, atendida por essas entidadesindependentes, filantrpicas e voluntaristas, tende a ser, via de regra,transformada em demanda emergencial isto , retirada dos seus fundamentossistmicos e, eliminado as mediaes, transformada em demanda imediata,apenas tratando a forma manifesta da questo de fundo , portanto, tratadaassistematicamentee de forma assistencialista sem constituir direito, sem garantiade permanncia e como atividade curativa. Por um lado, cria-se umadependncia crnica do necessitado com esse servio emergencial que, noentanto, no garante permanncia na prestao. Por sua vez, tende aresponder demanda de forma precria, insuficiente para minimamenteatender s necessidades do demandante. Finalmente, a ateno, por partedestas entidades, da demanda social, termina por calar as vozes

    desconformes com as condies de vida dessa ordem social. , portanto, umaatividade ainda mais desarticuladora e inibidora do descontentamento e datendncia rebeldia. Os conflitos de classes, as tendncias subversivas etransgressoras da ordem, seriam canalizadas por mecanismos institucionais econvertidas em confrontos dentro do sistema, e no mais contra osistema. De lutas de classes, desenvolvidas na sociedade civil, passa-se a atividadesde ajuda-mtua em parceria com o Estado e o empresariado. E, com isso,enquanto a populao se debrua exclusivamente no mbito da sociedadecivil, a direo central do governo fica nas mos dos neoliberais.

    Para o povo a participao no terceiro setor, o governo para ocapital deixando a correlao de foras ainda em maior desvantagem para ossetores populares.7 Internaliza-se e dissipa-se o conflito, dentro dos marcos

    institucionais da relao amigvel e dependente entre um conjuntopulverizado e desarticulado de organizaes do terceiro setor e o Estadoparceiro. Dociliza-se o conflito social. Neste sentido, o Estado, mais do queparceiro, um verdadeiro subsidiador e promotor da expanso destasorganizaes e aes do terceiro setor, sendo a parceria e a legislao umcaminho para tal propsito.

    d) Criar a cultura/ideologia do possibilismo

    7. Para Petras, a nfase na atividade local serve muito bem aos regimes neoliberais,pois permite que os seus simpatizantes internos e externos dominem as polticas macroe socioeconmica (1999: 35). E, segundo ele, a localizao das lutas a marca dasONGs e movimentos emergentes (1999: 36).

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    Opera-se um descrdito ao iderio/projeto socialista (como se tivessefracassado)8 que, juntamente com o descrdito sobre as formas social-democratas no sistema capitalista (no legislativo, na justia, na burocraciaestatal, na capacidade de influenciar nas decises democrticas), leva a umadesconfiana na interveno estatal nas seqelas da questo social que afligea populao. Isto tem como conseqncia a desesperana, a busca da ajuda doalm com o crescimento do esoterismo e de seitas que pregam a riqueza na

    vida terrena ou num aqum mistificado na auto-ajuda. No se acreditamais nas instituies democrticas/estatais ou classistas (partidos e sindicatos),mas na auto-ajuda, na ajuda mtua, ou na ajuda divina todas formasindependentes da atividade do Estado. Se acredita menos ainda natransformao social. Combater o neoliberalismo, a globalizao, astendncias mundiais modernas, parece ser uma rebeldia sem causa, deteimosos e nostlgicos dos velhos projetos macrossociais que tinham oEstado como centro: o socialismo e a social-democracia.

    Destinar esforos em criticar o que seria imodificvel (as reformasestatais e produtivas, o neoliberalismo, a globalizao) ou investir em utopias,seria, segundo esta cultura, em vo. Deveria se dedicar a fazer o que possvel

    ser feito dentro das margens permitidas pelas naturais tendncias atuais.9

    Institui-se a ideologia dopossibilismo.

    e) Reduzir os impactos (negativos ao sistema) do aumento dodesemprego

    Afirma-se que o terceiro setor emprega grande volume detrabalhadores.10Com isto, as ONGs, as OSCIPs, mais do que organizaes deajuda comunidade, tm-se transformado em organizaes de auto-ajuda,porquanto tm uma utilidade fundamental voltada para seus membros: sofonte de emprego. Para o caso boliviano, Petras mostra que para cada 100dlares gastos nos projetos de desenvolvimento social realizados pelas ONGs,somente cerca de 15 a 20 dlares chegam at os seus beneficirios finais

    (1999: 87); presume-se que a maior parte destinada a salrios.Seu efeito direto a diminuio dos impactos do desemprego

    operado sobretudo na indstria; mais ainda, o encobrimento das reais

    8. Duas observaes merecem ser feitas: por um lado, o esgotamento do chamadosocialismo real no deita por terra o projeto socialista, bem maior do que aquele. Poroutro, devemos distinguir, como sugere Petras, o fracasso devido s inadequaesinternas de prticas socialistas, daquele devido a derrotas poltico-militaresproduzidas por agressores externos (1999: 21). Para o autor, Regimes capitalistasterroristas (como no Chile, Argentina, Bolvia, Uruguai, Repblica Dominicana, ElSalvador, Afeganisto e Brasil) desempenharam importante papel no declnio daEsquerda revolucionria (1999: 21).9. Assim, conforme Petras, tendo decidido que as revolues so coisa do passado,eles [os ps-marxistas] concentram-se nas vitrias eleitorais neoliberais, e no nosprotestos de massas ps-eleitorais e nas greves gerais (1999: 37).10. Estima-se no Brasil, para 1995, cerca de 1.119.533 ocupados no terceiro setor(Landim, 1999: 85).

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    dimenses desse processo de demisso em cascata. O que tenderia aconformar maior convivncia com estes ndices de desemprego, relativizadospela absoro de trabalho no terceiro setor. No ignoramos a relativaimportncia do terceiro setor como estratgia de sobrevivncia dotrabalhador desempregado, apenas ressaltamos que este fato instrumentalizado pelo capital para aplainar e apaziguar os nimos, diminuirinsatisfaes, reduzir a conflitividade. Coincidentemente, para Antunes, o

    Terceiro Setor no uma alternativa efetiva e duradoura ao mercado detrabalho capitalista, mas cumpre um papel de funcionalidade ao incorporarparcelas de trabalhadores desempregados pelo capital (1999: 113).

    A isto soma-se o efeito ideolgico dos postulados de Lipietz, De Masie de Rifkin, de utilizao do cio criativo e do tempo livre (sic). Segundoestes, o desenvolvimento tecnolgico libera tempo do trabalhador, quepode utiliz-lo para desempenhar atividades voluntrias em proveito da suaprpria comunidade ou vizinhana. A misria e a desgraa parecem se tornarmais amenas, mais suportveis, quando se ocupa o tempo (desprezado e/ouno remunerado pelo capital) para atividades filantrpicas e de ajuda-mtua.Encobre-se o desemprego, transformado ideologicamente em tempo livre.

    f) A localizao e trivializao da questo social e a auto-responsabilizao pelas respostas s suas seqelas

    Com o terceiro setor tornado instrumento da estratgia neoliberal,este assume a funo de transformar o padro de respostas s seqelas daquesto social, constitutivo de direito universal, sob responsabilidadeprioritria do Estado, em atividades localizadas e de auto-responsabilidade dossujeitos portadores das carncias; atividades desenvolvidas por voluntrios ouimplementadas em organizaes sem garantia de permanncia, sem direito.Transfere-se, como vimos, o sistema de solidariedade universal emsolidariedade individual.

    O que era de responsabilidade do conjunto da sociedade passa a ser

    de (auto)responsabilidade dos prprios sujeitos afetados pela questo social;o que era sustentado pelo princpio da solidariedade universal passa a sersustentado pela solidariedade individual, micro; o que era desenvolvido peloaparelho do Estado passa agora a ser implementado no espao local, o que eraconstitutivo de direito passa a ser atividade voluntria, fortuita, concesso,filantropia.

    Neste processo de constituio de um terceiro setor assumindoatividades sociais que eram prioritrias do Welfare State, a funo social daresposta s refraes da questo social deixa de ser, no projeto neoliberal,responsabilidade privilegiada do Estado, e atravs deste do conjunto dasociedade, e passa a ser agora auto-responsabilidade dos prprios sujeitos

    portadores de carecimentos, e da ao filantrpica, solidria-voluntria, deorganizaes e indivduos. A resposta s necessidades sociais deixa de ser uma

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    responsabilidade de todos (na contribuio compulsria do financiamento estatal,instrumento de tal resposta) e um direito do cidado, e torna-se, sob a gideneoliberal, uma opo do voluntrio que ajuda o prximo, e um no-direito doportador de carecimentos, o cidado-pobre.

    Escamotear a veracidade deste processo exige um duplo caminho:primeiro da induo a uma imagem mistificada de construo e ampliao da

    cidadania e democracia, porm retirando as reais condies para sua efetivaconcretizao; segundo, o da induo a uma ideolgica imagem detransferncia de atividades, de uma esfera estatal satanizada (consideradanaturalmente como burocrtica, ineficiente, desfinanciada, corrupta) para umsantificado setor supostamente mais gil, eficiente, democrtico e popular (ode uma sociedade civil transmutada em terceiro setor). Adesresponsabilizao estatal das respostas s seqelas da questo social compensada pela ampliao de sistemas privados: mercantis (empresariais,lucrativos) e filantrpicos-voluntrios (do chamado terceiro setor).

    Assim, derivando a ateno para as pontuais medidas estataiscompensatrias (combate pobreza, respostas focalizadas etc.)11 e para asnovas respostas do terceiro setor, escondem-se os verdadeiros fenmenos

    e esvaziam-se os debates sobre estes: a desregulao da relao capital-trabalho, o esvaziamento dos preceitos democrticos, a anulao daperspectiva de superao da ordem, a precarizao do trabalho e do sistema deproteo social (estatal) ao trabalhador e sociedade no seu conjunto, o pesopara o trabalhador dos custos do ajuste estrutural orientado segundo asnecessidades do grande capital (sobretudo financeiro), etc.

    Neste sentido, o objetivo de retirar o Estado (e o capital) daresponsabilidade de interveno na questo social e de transferi-la esferado terceiro setor, no por motivos de eficincia (como se as ONGsfossem naturalmente mais eficientes que o Estado), nem apenas por razeseconmicas, como reduzir os custos necessrios para sustentar esta funo

    estatal. O motivo fundamentalmente poltico-ideolgico: retirar e esvaziar adimenso de direito universal do cidado em relao a polticas sociais(estatais) de qualidade; criar uma cultura de auto-culpa pelas mazelas queafetam a populao, e de auto-ajuda e ajuda-mtua para seu enfrentamento;desonerar o capital de tais responsabilidades, criando, por um lado, umaimagem de transferncia de responsabilidades e, por outro, criando, a partir daprecarizao e focalizao (no universalizao) da ao social estatal e do

    11. Note-se que, como afirma Mota, as aes compensatrias relacionam-sediretamente com a legitimao da desigualdade social inerente constituio dasociedade capitalista e apiam-se na possibilidade de humanizar o trato dadesigualdade. Carregam uma moral e uma tica conservadoras e tm no voluntarismopoltico e no mercado de consumo o paradigma da sua constituio. Em geral, afastam-se de uma concepo de poltica social como parte do exerccio dos direitos e garantiassociais para mobilizar aes da sociedade civil, em parceria com o Estado, naimplementao de programas de corte assistencial (2000: 6).

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    terceiro setor, uma nova e abundante demanda lucrativa para o setorempresarial.

    Desta forma, o terceiro setor, instrumentalizado pela estratgianeoliberal, tem a funo tanto de justificar e legitimar o processo dedesestruturao da Seguridade Social estatal como de transformar a luta contraa reforma do Estado em parceria com o Estado; assim, no s reduz os

    impactos negativos ao sistema do aumento do desemprego como tambmtorna as respostas questo social atividades cotidianas. Tudo istominimizando aparentemente as contradies de classe, redirecionando as lutassociais para atividades mancomunadas com o Estado e o empresariado,gerando maior aceitao e menor enfrentamento ao projeto neoliberal.

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