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241 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004. 144p.* PETRÔNIO DOMINGUES. Doutor em História/USP Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) [email protected] Como o racismo à brasileira deve ser enfrentado? Célia Maria Marinho de Azevedo é professora de História aposentada da Universidade de Campinas (Unicamp). Seu campo de especialização é a história do negro e das “relações raciais”. Depois de ter publicado o importante trabalho, Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites, século XX, em 1987, foi a vez de Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX), em 2003, e Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo, um ano depois. É justamente esta última publicação o objeto da presente resenha. O livro é uma coleção de sete artigos que Célia de Azevedo escreveu entre 1997 e 2003. No primeiro capítulo (Cota racial e Estado: abolição do racismo ou direi- tos de ‘raça’?), a autora sustenta a tese de que seria mais eficaz a adoção de medidas universalistas (de cunho social) para a abolição do racismo do que medidas diferencialistas (ou específicas), em que o Estado tem que reconhecer a existência de raças. No entendimento de Célia de Azevedo, o “combate ao racismo significa lutar pela desracialização dos espíritos e das práticas sociais. Para isso é preciso rechaçar qualquer medida de classifi- cação racial pelo Estado com vistas a estabelecer um tratamento diferencial por raça, ou, para sermos mais claros, os direitos de ‘raça’” (p. 50). Já no segundo capítulo (Cota racial e universidade pública brasileira: uma reflexão à luz da experiência dos Estados Unidos), a autora analisa * Resenha recebida em 20/12/2006. Aprovado em 12/01/2007. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 23, nº 37: p.241-244, Jan/Jun 2007

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AZEVEDO, C. M. M. de. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004. 144p.

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    AZEVEDO, Clia Maria Marinho de. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexes sobre cota racial, raa e racismo. So Paulo: Annablume, 2004. 144p.*

    PETRNIO DOMINGUES.Doutor em Histria/USP

    Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS)[email protected]

    Como o racismo brasileira deve ser enfrentado?

    Clia Maria Marinho de Azevedo professora de Histria aposentada da Universidade de Campinas (Unicamp). Seu campo de especializao a histria do negro e das relaes raciais. Depois de ter publicado o importante trabalho, Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginrio das elites, sculo XX, em 1987, foi a vez de Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma histria comparada (sculo XIX), em 2003, e Anti-racismo e seus paradoxos: reflexes sobre cota racial, raa e racismo, um ano depois. justamente esta ltima publicao o objeto da presente resenha. O livro uma coleo de sete artigos que Clia de Azevedo escreveu entre 1997 e 2003.

    No primeiro captulo (Cota racial e Estado: abolio do racismo ou direi-tos de raa?), a autora sustenta a tese de que seria mais eficaz a adoo de medidas universalistas (de cunho social) para a abolio do racismo do que medidas diferencialistas (ou especficas), em que o Estado tem que reconhecer a existncia de raas. No entendimento de Clia de Azevedo, o combate ao racismo significa lutar pela desracializao dos espritos e das prticas sociais. Para isso preciso rechaar qualquer medida de classifi-cao racial pelo Estado com vistas a estabelecer um tratamento diferencial por raa, ou, para sermos mais claros, os direitos de raa (p. 50).

    J no segundo captulo (Cota racial e universidade pblica brasileira: uma reflexo luz da experincia dos Estados Unidos), a autora analisa

    * Resenha recebida em 20/12/2006. Aprovado em 12/01/2007.

    VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 23, n 37: p.241-244, Jan/Jun 2007

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    basicamente duas questes: o debate em torno da validade ou no da poltica de cotas para minorias discriminadas nos Estados Unidos e como a experincia estadunidense pode servir de inspirao para os brasileiros engajados na luta anti-racista e at que ponto ela pode ser importada para nosso pas.

    O terceiro captulo (Entre o universalismo e o diferencialismo: as pol-ticas anti-racistas e seus paradoxos) trata do espinhoso dilema: afinal, as propostas mais adequadas para se combater o racismo so as de cunho universalista ou diferencialista. Para Clia de Azevedo, faz-se necessria a criao de oportunidade para os segmentos da populao historicamente discriminada sem no entanto perder o sentido universal de humanidade (p. 73).

    No quarto captulo (A nova histria intelectual de Dominick LaCapra e a noo de raa), a autora esquadrinha, primeiramente, alguns postulados do historiador Dominick LaCapra acerca da Nova Histria Intelectual e, em um segundo momento, analisa como LaCapra e outros autores vm criti-cando o uso da noo essencialista de raa na produo do conhecimento histrico.

    O quinto captulo (13 de Maio e anti-racismo) problematiza a substitui-o, nas ltimas dcadas, do 13 de Maio data em que se comemora o aniversrio da Lei de Abolio, assinada pela Princesa Isabel pelo 20 de novembro, presumvel data da morte do heri negro Zumbi dos Palma-res. Clia de Azevedo defende a idia de que a Abolio foi resultado da luta de um amplo movimento contestatrio (protagonizado por escravos, libertos e seus aliados progressistas). Por isso, entende que no se podem distorcer os fatos: a liberdade foi uma conquista dos negros e no uma ddiva das elites brancas (ou da Princesa Isabel); logo, o 13 de Maio dos escravos tem que ser to revalorizado quanto o 20 de novembro de Zumbi dos Palmares.

    No sexto captulo (Quem precisa de So Nabuco), Clia de Azevedo questiona um dos personagens mais santificados da Histria do Brasil, Joaquim Nabuco (1849-1910), da o porqu do So Nabuco do ttulo. A autora demonstra que seu personagem pensava como as pessoas ilustra-das de seu tempo. Se do ponto de vista racial as teorias que apregoavam a superioridade biolgica, intelectual e cultural do homem branco sobre o negro estavam em voga na Europa e no Brasil no final do sculo XIX, Nabuco no ficou imune e bebeu em tais postulados. Para alm de abolicionista, Nabuco como um bom proprietrio, senhor de escravos e poltico de sua poca seria defensor de seus interesses de raa e classe, isto , para a Clia de Azevedo, Nabuco concebia a Abolio em dupla perspectiva: como uma medida que garantiria a manuteno da ordem (e da grande propriedade) e como um mecanismo que facilitaria a entrada massiva de

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    Resenhas

    imigrantes brancos europeus a fim de promover a purificao racial da populao brasileira.

    Por fim, no stimo captulo (Para alm das relaes raciais: por uma histria do racismo) a autora preconiza a necessidade de superar a noo de raa, bem como a de relaes raciais, para eliminar o racismo no dia-a-dia. Em lugar de raa, a autora entende que deveria existir apenas a noo universalista de humanidade.

    A despeito de o livro abordar temas correlatos, o escopo central escrutinar a proposta de aes afirmativas para negro, especialmente em sua verso mais conhecida (e polmica), as cotas raciais. Clia de Azeve-do deixa patente que tal proposta no a melhor soluo para atacar as desigualdades raciais no Brasil. Primeiro, porque a poltica de preferncia racial esteve longe de ser um sucesso nos EUA; segundo, porque existi-riam programas mais eficazes para se combater o racismo institucional e o estado de penria de boa parte da populao negra. Esses programas no teriam um recorte racial e, sim, social, como o da reforma agrria, o da recuperao da qualidade das escolas pblicas de ensino fundamental e mdio; o Projeto de Renda Bsica Universal e o Programa Bolsa-Escola. Que se sabe, os defensores das cotas raciais no so contrrios reforma agrria ou melhoria da escola pblica. Porm, o mais paradoxal que alguns dos programas preconizados por Clia de Azevedo (como renda bsica e bolsa-escola) esto no bojo das chamadas polticas compensa-trias, e tais polticas seguem o mesmo princpio das aes afirmativas (do qual as cotas raciais fazem parte): reparar as injustias do passado (e do presente) para os grupos que so discriminados negativamente, por motivo de cor, gnero, classe social ou orientao sexual.

    Um dos motivos pelos quais Clia de Azevedo se ope poltica de cotas raciais que ela consiste numa poltica pblica especfica (ou di-ferencialista). Em sua opinio, no so as polticas especficas e sim as universalistas as mais apropriadas para garantir a promoo dos negros. No entanto, no isso o que as pesquisas apontam. A implementao de polticas pblicas universalistas, quais sejam, programas governamentais que atacariam as causas sociais da desigualdade no sinalizam para a er-radicao do racismo no pas. Conforme apurado pelo Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) no ano de 2001, todas as polticas pblicas universalistas empreendidas pelo governo, desde 1929, no conseguiram eliminar a taxa de desigualdade racial no progresso educacional do brasi-leiro. Os brancos estudam em mdia 6,6 anos e os negros 4,4 anos. Esta distncia, de 2,2 anos, praticamente a mesma do incio do sculo XX. A concluso reveladora: apesar de ter acontecido uma elevao do nvel de escolarizao do brasileiro, de 1929 para os dias atuais, a diferena de anos de estudos dos negros frente aos brancos permanece inalterada.

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    Isso significa que programas sociais ou polticas pblicas universalistas, por si s, no evitam as desvantagens que os negros levam em relao aos brancos no acesso s oportunidades educacionais. Para se corrigir esta deficincia do sistema racial, so necessrias tambm polticas pblicas especficas em benefcio da populao negra, ou seja, programas sociais que adotem um recorte racial na sua aplicao. Os problemas especficos dos grupos que historicamente sofreram (e sofrem) discriminao (como negros, mulheres, gays, entre outros) se resolvem, combinando medidas gerais e especficas. Portanto, a discriminao contra o negro deve ser enfrentada, igualmente, com aes anti-racistas.

    Um outro motivo pelo qual Clia de Azevedo rejeita a poltica de cotas raciais que ela exige que o Estado classifique racialmente a populao. E, segundo a autora, enfrentar o racismo significa lutar pela desracializao dos espritos e das prticas sociais. Se a raa foi uma inveno nociva aos destinos da humanidade, afirma Clia de Azevedo, por que reivindicar a racializao pelo Estado?. Ora, sabido que raa uma construo social, com pouca ou nenhuma base biolgica, mas no adianta o Estado negligenci-la, porque as pessoas classificam e tratam o outro de acordo com as idias socialmente aceitas. Ademais, o Estado brasileiro nunca teve a tradio de desenvolver polticas de identidade racial junto populao (haja vista a deciso do governo federal de retirar o quesito cor ou raa do censo oficial em 1970), mas nem por isso o racismo deu sinais de sub-trao ou perecimento.

    Como de praxe nas coletneas, o livro peca pela redundncia das idias e, em casos extremos, pela repetio literal de trechos, como o que acontece no primeiro pargrafo da pgina 72 e no terceiro da pgina 81. De toda sorte, o livro uma equilibrada contribuio terica para o importante debate que est pautando a agenda nacional no momento: como o racismo brasileira deve ser enfrentado? Ningum tem mais dvidas que o Brasil um pas marcado pela desigualdade de oportunidades entre negros e bran-cos, seja no mercado de trabalho, na esfera educacional, na vida pblica, etc.; entretanto, no h consenso acerca das medidas a serem tomadas para se atacar um mal que penaliza quase metade da populao brasileira e a impede do pleno exerccio da cidadania. S existe um consenso: no d mais para ficar de brao cruzado e aceitar a falcia de que o Brasil o pas do paraso racial.

    Petrnio Domingues