USUÁRIO DE DROGAS: A POLÊMICA ACERCA DA …siaibib01.univali.br/pdf/Carolina Caminha da...

85
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO DE SÃO JOSÉ CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA USUÁRIO DE DROGAS: A POLÊMICA ACERCA DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO ART. 28 DA LEI 11.343/06 Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, na Universidade do Vale do Itajaí, sob a orientação de conteúdo e orientação metodológica da Professora MSc. Eunice Anisete de Souza Trajano. ACADÊMICA: CAROLINA CAMINHA DA NÓBREGA São José (SC), junho de 2007

Transcript of USUÁRIO DE DROGAS: A POLÊMICA ACERCA DA …siaibib01.univali.br/pdf/Carolina Caminha da...

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO DE SÃO JOSÉ CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

USUÁRIO DE DROGAS: A POLÊMICA ACERCA DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO ART. 28 DA LEI 11.343/06

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, na Universidade do Vale do Itajaí, sob a orientação de conteúdo e orientação metodológica da Professora MSc. Eunice Anisete de Souza Trajano.

ACADÊMICA: CAROLINA CAMINHA DA NÓBREGA

São José (SC), junho de 2007

2

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO DE SÃO JOSÉ CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA USUÁRIO DE DROGAS: A POLÊMICA ACERCA DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO

ART. 28 DA LEI 11.343/06

CAROLINA CAMINHA DA NÓBREGA

A presente monografia foi aprovada como requisito para a obtenção do grau

de bacharel em Direito no curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí –

UNIVALI.

São José, junho de 2007.

Banca Examinadora:

_____________________________________________________________ Profª. MSc. Eunice Anisete de Souza Trajano – Orientadora

______________________________________________________________ Prof. – Membro 1

______________________________________________________________ Prof. Membro 2

3

DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Marco e Anamaria, especialmente a minha

mãe, por não medirem esforços para que eu pudesse obter

essa conquista em minha vida. Pelo incentivo e por

acreditarem na concretização deste sonho. Por serem meus

alicerces, pessoas que eu admiro muito. Por estarem

incondicionalmente do meu lado, principalmente nos

momentos difíceis, amo muito vocês.

Aos meus avós maternos, Hamilton e Edy, em especial ao

meu avô (in memorian), que sempre contribuiu com todo amor

e compreensão durante toda a minha vida. Amor e saudade

eterna.

4

AGRADECIMENTOS

A DEUS por proporcionar-me a conclusão de mais uma etapa da vida que se consuma neste trabalho.

A minha orientadora Eunice Trajano que iluminou os meus caminhos nos momentos de dificuldades, me orientando e transmitindo seus conhecimentos.

Aos docentes do Curso de Direito que contribuíram com todos os seus conhecimentos para o meu aperfeiçoamento intelectual.

Ao Giuliano pelo carinho, atenção e ajuda oferecida, me auxiliando nas dúvidas ao longo da pesquisa.

Aos meus amigos e pessoas que, além do apoio e amizade demonstradas, contribuíram de alguma forma para a conclusão deste curso.

A eles, a minha eterna gratidão e lembrança.

5

LISTA DE ABREVIATURAS

§ Parágrafo

art. Artigo

CP Código Penal de 1940

CRFB/1988 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

JEC Juizado Especial Criminal

STF Supremo Tribunal Federal

LIPC Lei de Introdução ao Código Penal

6

SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS .....................................................................................5

SUMÁRIO ..................................................................................................................6

RESUMO ...................................................................................................................8

INTRODUÇÃO...........................................................................................................9

1 HISTÓRICO DAS LEIS DE TÓXICOS..................................................................13

1.1 DEFINIÇÃO DA PALAVRA DROGA...................................................................13

1.1.1 CONCEITO .........................................................................................................13

1.2 A PRÉ-CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS.........................................................15

1.3 SÉCULO XX: CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS ..............................................18

1.4 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO ANTIDROGAS NO BRASIL ..............................22

1.5 EFEITOS DA CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS NO BRASIL ...........................27

1.6 DIREITO COMPARADO.....................................................................................28

2 O USUÁRIO DE DROGAS FRENTE AS LEIS 6.368/76 E 10.409/02..................33

2.1 O ARTIGO 16 DA LEI 6.368/76...........................................................................33

2.2 USUÁRIO/DEPENDENTE: EFEITO NEFASTO À SAÚDE PÚBLICA OU À

SAÚDE DO PRÓPRIO CONSUMIDOR....................................................................34

2.3 A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 16 DA LEI 6.368/76 ......................36

2.3.1 A CRIMINALIZAÇÃO .............................................................................................36

2.3.2 A PENALIZAÇÃO .................................................................................................38

2.4 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA ....................................................................40

2.4.1 CONCEITO E SEUS FUNDAMENTOS .......................................................................41

2.4.2 O BEM JURÍDICO ................................................................................................45

2.4.3 NATUREZA JURÍDICA...........................................................................................47

2.4.4 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E O PRINCÍPIO DA LESIVIDADE/OFENSIVIDADE ........49

2.4.5 A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

PARA CONSIDERAR ATÍPICO O CONSUMO DE ÍNFIMA QUANTIDADE DE DROGA.....................51

2.5 ALTERAÇÕES DA LEI 10.409/02.............................................................................54

3 AS MODIFICAÇÕES LEGAIS RELATIVAS À FIGURA DO USUÁRIO NA NOVA LEI 11.343/06...........................................................................................................57

3.1 ELABORAÇÃO DA LEI 11343/06 .......................................................................57

3.2 O CONSUMO ANTE O ARTIGO 28 DA LEI 11.343/06 .......................................60

3.3 O CONSUMO E AS PENAS ALTERNATIVAS....................................................64

3.3.1 PRESTAÇÃO DE SERVIÇO À COMUNIDADE ...............................................67

3.4 O CONSUMO FRENTE À LEI 9.099/95..............................................................68

7

3.5 PROCESSOS DE DESCRIMINALIZAÇÃO ........................................................70

3.6 O POSICIONAMENTO DA DOUTRINA ACERCA DO CARÁTER DAS

MODIFICAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 11.343/2006, NO TOCANTE AO USO

DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES..................................................................73

3.7 A DECISÃO DO STF TRATANDO DO ENFOQUE DADO À CONDUTA DO

USUÁRIO PELA NOVA LEI DE DROGAS................................................................75

CONCLUSÃO ..........................................................................................................77

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................81

8

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo realizar um comparativo entre as legislações brasileiras de drogas, analisando o tratamento e as sanções atribuídas à figura do usuário, e focalizando o estudo, na polêmica acerca da discriminalização do artigo 28, da Lei 11.343/06, referente ao crime de consumo de substâncias entorpecentes. Demonstra-se que teoria adotada pelo sistema penal brasileiro, que tinha por objetivo preservar a dignidade humana e possibilitar seus objetivos finais, sejam elas, a prevenção e ressocialização do indivíduo, não tem conseguido cumprir suas metas, quanto aos seus objetivos declarados, não sendo capaz de acabar ou sequer reduzir o consumo e o tráfico destas substâncias. A repressão penal atual agrava a violência que assola a sociedade brasileira, aumenta a estigmatização e acentua a exclusão das camadas mais baixas e marginalizadas da população. Constatado os malefícios que a prisão causa ao usuário, surgiu a proposta de descriminalização por meio do princípio da insignificância, excluindo-se o ilícito penal, se a conduta for de irrelevante repercussão social e não atingir o bem jurídico tutelado pela norma penal. Foi crescente o posicionamento dos tribunais na aplicabilidade do princípio da insignificância. Diante do insucesso do modelo adotado na Lei 6.368/76, que fundava-se na idéia de que o cárcere seria a única e verdadeira punição, foi elaborada a Lei 10.409/02, sendo vedado o capítulo que tratava dos crimes e das penas, ante os equívocos no seu texto. Em agosto de 2006, foi promulgada a Lei 11.343/06, onde, surgiu grande polêmica acerca da ocorrência ou não da descriminalização do artigo 28, eis que este não pune o usuário de drogas com penas privativas de liberdade. Após muitas discussões, em recente decisão, o STF pacificou tal polêmica, determinando a não ocorrência da descriminalização, mas a mera despenalização da conduta do usuário, com a quebra da tradição de imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva. PALAVRAS-CHAVE: Drogas; Saúde pública; Princípio da insignificância; Descriminalização; Despenalização.

9

INTRODUÇÃO

Ao longo da história da humanidade, constata-se que houve diversos

conflitos entre pessoas, comunidades, países ou até mesmo entre civilizações.

Trata-se de conflitos de interesses, impostos por um pequeno grupo de pessoas

que tentam legitimar o seu anseio para gerir regras sociais, obrigando a sociedade

a cumpri-las, sem que esta tenha o direito de questionar se a regra imposta é de

todo correta.

Os indivíduos detentores do poder fazem valer sua vontade e exercer a sua

autoridade sobre a população utilizando-se de determinados instrumentos. No

passar dos séculos, dentre os instrumentos utilizados pode-se destacar a religião, o

racismo, a guerra e, um dos mais recentes, o sistema penal.

O sistema penal é utilizado pelas classes detentoras do poder como

instrumento de dominação, como forma de sobrepujar as camadas mais baixas e

marginalizadas de uma sociedade, por meio da criminalização de condutas

praticadas por estas e da seleção discriminatória de indivíduos originários destas

camadas.

Por meio de um discurso no qual se afirma que é preciso proteger os

cidadãos do mal que dissemina a violência, legitima-se a intervenção no domínio de

liberdade da população.

Para isso, é premissa retirar do convívio social os indivíduos perigosos,

aqueles que cometem as condutas lesivas aos bens selecionados pelas elites,

como aqueles que devem ser protegidos para ser possível o convívio social.

Em decorrência, a maior parte das pessoas acredita que o sistema penal

presta um serviço essencial à sociedade, já que, sem ele, o indivíduo “mau” traria a

desgraça e o caos, e o mal tomaria conta da sociedade, impossibilitando o convívio

harmônico entre as pessoas de bem.

No entanto, a realidade não tem se mostrado dessa forma, uma vez que

não é mencionado nesse discurso o fato de os indivíduos maus nada mais serem

do que aqueles pertencentes às camadas mais baixas e marginalizadas da

população, e que estes são estigmatizadas pelo sistema penal por meio dos

processos de criminalização e seleção. Assim, os indivíduos selecionados pelo

sistema são rotulados como criminosos, ou seja, como pessoas perigosas, e, por

10

isso, devem ser encarcerados e excluídos ainda mais do convívio social. Outra

grave conseqüência é a criação de estereótipos por parte do sistema, no qual

pessoas com certas características podem ser vistas como ameaça à ordem e às

pessoas de bem, mesmo antes de serem rotuladas como criminosas. Esses

estereótipos têm contribuição fundamental no processo de seleção e criminalização,

já que o sistema seleciona pessoas com as características que considera inerentes

a um sujeito perigoso ou criminoso.

Assim, este estudo, entre outras coisas, demonstra a relação do que foi

acima exposto com a política de guerra às drogas promovida pelos Estados Unidos,

país que se proclama como o grande defensor da liberdade e da democracia

mundial, garantidor do bem estar de todos os povos e combatente dos inimigos que

porventura venham a ameaçar a ordem estabelecida.

Sobretudo, a guerra contra as drogas funciona como uma estratégia de

dominação sobre as nações periféricas, sendo estas obrigadas a deixar que

aqueles intervenham na sua soberania em nome de uma guerra contra o que

consideram um dos grandes inimigos da sociedade.

Por sua vez, o Brasil não é deixado à margem dessa política de dominação

e também é obrigado a reprimir fortemente o consumo e o comércio de drogas. Por

via de uma legislação que prega cada vez mais o desrespeito aos direitos humanos

e às garantias consagradas na Constituição Federal, da forte repressão policial e

até militar, declara-se guerra contra os traficantes, provocando um surto de

violência e terror nas cidades.

Assim, o que se pretende no presente trabalho é expor a história das

drogas, bem como a sua evolução normativa, ao longo dos anos até os dias atuais,

e comprovar que a repressão às drogas, por meio da criminalização e conseqüente

penalização, somente acaba por gerar mais violência e mostra-se ineficaz para

atender aos declarados objetivos do sistema jurídico criminal: a erradicação ou

diminuição do consumo e comércio de drogas.

Por estes motivos, tem-se como objetivo mais importante demonstrar as

novas sanções alternativas aplicadas ao usuário de drogas, advindas da Lei

11.343/06, sendo, estas, soluções mais condizentes com um Estado de Direito

Democrático, de respeito aos direitos humanos.

11

Serão utilizados argumentos do minimalismo, movimento que prega a

máxima redução do sistema penal, para defender a nova lei de drogas, que propõe

soluções alternativas à criminalização para se tentar dirimir os problemas causados

pelo uso abusivo de drogas, como forma de acabar com os efeitos da condenação

penal.

O método de pesquisa empregado no desenvolvimento deste trabalho foi o

dedutivo. Será utilizada a técnica de documentação indireta de fontes primárias,

utilizando pesquisa documental em jurisprudências como também será utilizada a

documentação de fontes secundárias, com pesquisa bibliográfica em doutrinas,

artigos e na legislação constitucional e infraconstitucional.

No decorrer do primeiro capítulo, será analisada a definição da palavra

droga, a história das drogas, passando pela sua pré-criminalização e sua evolução

no decorrer do século XX, bem como o histórico da legislação anti-drogas no Brasil

e os efeitos causados pela criminalização e repressão às drogas no país. Faz-se,

também, breve comentário sobre a legislação de drogas na Europa, concentrando-

se o estudo no usuário.

O segundo capítulo será conduzido à análise da Lei 6.368/76, referente à

figura do usuário de drogas, o bem jurídico tutelado no artigo 16 e a criminalização

e penalização do crime de consumo. Igualmente, a aplicação do princípio da

insignificância no artigo 16, analisando-se o seu conceito, seus fundamentos, a sua

natureza jurídico-penal, a sua relação com o princípio da ofensividade/lesividade e a

sua aplicabilidade pelos tribunais brasileiros para considerar atípico o consumo de

ínfima quantidade de drogas. Serão abordadas ainda as alterações da Lei

10.409/02.

No terceiro e derradeiro capítulo, será analisada a novíssima Lei de Drogas,

promulgada em agosto de 2006, que propõe soluções para tentar minimizar os

problemas que a criminalização das drogas traz ao usuário, como forma de dirimir

os efeitos da estigmatização que a condenação penal proporciona ao condenado,

focalizando-se no artigo 28 (substituto do artigo 16, da Lei 6.368/76), gerando

controvérsias sobre a ocorrência ou não da descriminalização judicial deste artigo;

analisar-se-á as penas alternativas, especificamente as de prestação de serviço à

comunidade, os processos de descriminalização, incluindo-se a despenalização e,

12

por fim, o posicionamento acerca da descriminalização de doutrinadores e a recente

posição do Supremo Tribunal Federal.

Assim, tem-se a pretensão de esclarecer a grande discussão gerada em

decorrência das novas alternativas de penas aplicadas ao usuário nesta nova lei,

tema muito debatido na sociedade brasileira e que acabou tomando um grande

espaço na mídia.

Ao final são apresentadas sucintas considerações acerca de cada capítulo

tratado, com a finalidade de demonstrar se os objetivos do estudo foram ou não

alcançados, deixando clara a polêmica suscitada pela Lei 11.343/06.

13

1 HISTÓRICO DAS LEIS DE TÓXICOS

1.1 DEFINIÇÃO DA PALAVRA DROGA

1.1.1 Conceito

A palavra “droga” apresenta dificuldades na sua conceituação devido a

generalidade da sua definição.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu a palavra droga como “toda

substância que, introduzida num organismo vivo, pode modificar uma ou várias de

suas funções”. (KARAM, 1993, p. 26)

Diante desta definição, percebe-se a amplitude do seu conceito, que pode

abranger diversos tipos de substâncias e efeitos sobre o organismo humano. Assim,

compreende tanto substâncias lícitas quanto ilícitas, na forma de folha seca, pedra,

pó, como também de forma líquida e gasosa, como os chás, remédios produzidos

para a cura de enfermidades, álcool, estimulantes, maconha etc.

No Brasil, além de se utilizar a palavra droga como sinônimo de

medicamentos, é, também, bastante utilizada para indicar as substâncias que o

ordenamento jurídico brasileiro considera como ilícitas.

Rosa Del Olmo, na sua obra, refere a dificuldade da conceituação da

palavra droga:

Trata-se, pois, de uma palavra sem definição, imprecisa e de uma excessiva generalização, porque em sua caracterização não se conseguiu diferenciar os fatos das opiniões nem dos sentimentos. Criam-se diversos discursos contraditórios que contribuem para distorcer e ocultar a realidade social da ‘droga’, mas que se apresentam como modelos explicativos universais. (OLMO, 1990, p. 22)

A seguir, a autora prossegue:

Algo sim parece estar claro: a palavra droga não pode ser definida corretamente porque é utilizada de maneira genérica para incluir toda uma série de substâncias muito distintas entre si, inclusive em sua ‘capacidade de alterar as condições psíquicas e/ou físicas’, que têm em comum exclusivamente o fato de haverem sido proibidas. Por outro lado, a confusão aumenta quando se compara uma série de substâncias permitidas, com igual capacidade de alterar essas condições psíquicas e/ou físicas, mas que não se incluem na definição de droga por razões alheias à sua capacidade de alterar

14

essas condições, como por exemplo o caso do álcool. (OLMO, 1990, p. 22/23)

Olmo completa seu pensamento dizendo que o importante, por conseguinte,

não parece ser nem a substância nem sua definição, e muito menos sua

capacidade ou não de alterar de algum modo o ser humano, mas muito mais o

discurso que se constrói em torno dela. Daí o fato de se falar da droga, e não das

drogas. E continua:

Ao agrupá-las em uma única categoria, pode-se confundir e separar em proibidas ou permitidas quando conveniente. Isto permite também incluir no mesmo discurso não apenas as características das substâncias, mas também as do ator – consumidor ou traficante -, indivíduo que se converterá, no discurso, na expressão concreta e tangível do terror. Algumas vezes será vítima e outras, o algoz. Tudo depende de quem fale. Para o médico, será ‘o doente’, ao qual deve-se ministrar em tratamento para reabilitá-lo; o juiz verá nele o ‘perverso’ que se deve castigar como dejeto. Mas sempre será útil para a manifestação do discurso que se permita a estabelecer a polaridade entre o bem e o mal – entre Caim e Abel – que o sistema social necessita para criar consenso em torno dos valores e normas que são funcionais para a sua conservação. Por sua vez, desenvolvem-se novas formas de controle social, que ocultam outros problemas muito mais profundos e preocupantes. (OLMO, 1990, p. 22/23)

Diante disto, verifica-se que o conceito da palavra droga é bastante

genérico e que se pode coligar diversas substâncias, distintas entre si, e que

causam diferentes efeitos nos seres humanos, numa mesma categoria.

As drogas são classificadas em dois tipos, as drogas lícitas, as que

comercializadas livremente, e as drogas ilícitas, cuja comercialização é proibida por

lei. Dentre as principais drogas lícitas podemos citar o fumo e

as bebidas alcoólicas, e, dentre as drogas ilícitas, a maconha e a cocaína.

(KARAM, 1993, p. 26/27)

Rosa Del Olmo segue discorrendo acerca do critério para que as drogas

sejam classificadas como lícitas ou ilícitas, ou seja, o critério de criminalização de

determinadas drogas:

[...] a ilicitude ou licitude de uma substância está condicionada à conveniência de quem detém o poder e os meios de criminalizá-la. Determinam, por meio das leis, o que é bom e o que é ruim para todos, suprimindo, assim, a liberdade de cada indivíduo fazer de sua saúde o que melhor lhe aprouver. Por esta razão, a criminalização depende dos ‘interesses que estão em jogo, em outras palavras, a

15

proibição ou permissão do uso de uma droga está condicionada por fatores, principalmente, econômicos e políticos. (OLMO, 1990, p. 22/23)

De outro vértice, a juíza Maria Lúcia Karam fala sobre o desenvolvimento

que o conceito de drogas teve a partir da definição estabelecida pela OMS:

[...] definições um pouco mais precisas, sendo comumente aceito o conceito de droga como toda substância que, atuando sobre o sistema nervoso central, provoque alterações das funções motoras, do raciocínio, do comportamento, da persecução ou do estado de ânimo do indivíduo, podendo produzir, através de seu uso continuado, um estado de dependência física ou psíquica. [...] pode-se entender por dependência psíquica o impulso psicológico que leva ao uso contínuo da substância, para provocar prazer ou evitar o mal-estar provocado por sua falta, caracterizando-se a dependência física pelo estado fisiológico, manifestado por sintomas dolorosos, conhecidos como síndrome de abstinência, decorrente da interrupção da ingestão regular da substância em questão, também devendo se destacar o fenômeno da tolerância, entendido como o estado de adaptação orgânica, caracterizado pela necessidade de utilização de doses cada vez maiores de uma droga, para manutenção do efeito inicial. (KARAN, 1993, p. 26)

Diante deste conceito, percebe-se que a partir da acepção genérica de

droga estabelecida pela OMS, desenvolveram-se diversas outras definições, um

pouco mais precisas, havendo uma pequena restrição na abrangência da palavra

droga. Entretanto, a palavra ainda abriga uma diversa quantidade de substâncias,

tanto lícitas quanto ilícitas. (KARAM, 1993, p. 26)

Não obstante, constata-se que, com esse novo conceito, há uma relação

entre a palavra droga e a dependência física e/ou psíquica. O usuário passa a ser

tratado como dependente de droga, quer dizer, como pessoa doente.

Conclui-se, assim, que a dependência provocada pela droga no corpo

humano não é fator que define a licitude ou ilicitude de uma substância,

constatando-se que determinada droga é classificada como permitida ou proibida

dependendo de um poder de definição e seleção.

As drogas quando referidas neste trabalho, serão as que a lei classifica

como proibidas, ou seja, ilícitas, tais como maconha, cocaína, crack, heroína, LSD,

ecstasy, entre outros.

1.2 A PRÉ-CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS

16

Registros históricos mostram que a droga sempre esteve presente na

história da humanidade. As plantas classificadas como psicoativas, tais como a

papoula - da qual é extraído o ópio - a coca e a maconha eram utilizadas pelas

civilizações antigas em cerimônias religiosas, práticas medicinais, culturais, bélicas

e sociais. (PASSOS, 2002, p. 34)

Estudos arqueológicos concluíram que determinadas pinturas da época da

Idade da Pedra teriam sido criadas sob efeito de transes provocados pelo consumo

de plantas psicoativas. (PASSOS, 2002, p. 34)

Segundo Passos, apontamentos históricos demonstram que o ópio já era

utilizado pelo homem em 5.000 a.c., na Mesopotâmia, com finalidade terapêutica.

Do ópio é extraída a morfina, palavra que vem do deus da mitologia grega Morfeu, o

deus dos sonhos, muito utilizada, como analgésico e hipnótico, na Guerra Civil

Americana, na Guerra do Vietnã e na Segunda Guerra Mundial.

Por vezes, o emprego do ópio tinha fins estratégicos, servindo ora para

enfraquecer o inimigo, ora como revigorante de energia para os soldados.

(PASSOS, 2002, p.34)

Mais tarde, por meio de uma pequena modificação química na fórmula da

morfina, esta passou a ser convertida em heroína. (PASSOS, 2002, p.35)

Da mesma forma, a mastigação da folha de coca in natura já é hábito dos

povos andinos há 2.000 anos. O seu emprego tinha finalidade terapêutica, ritual e

mística. Os camponeses usam-na, ainda, para suportar a altitude, o frio, a fome e

as adversidades do trabalho. (PASSOS, 2002, p. 35)

Por sua vez, os efeitos da planta psicoativa do gênero cannabis, em

especial a cannabis sativa, da qual se produz o haxixe e a maconha, e a cannabis

indica são conhecidos há milhares de anos por diversas civilizações. (PASSOS,

2002, p. 35)

Na Idade Média fatos demonstram que os efeitos das drogas sobre o

sistema nervoso central eram bem conhecidos. Tanto é que eram explorados por

feiticeiros, mágicos e exploradores da fé pública. (YAMADA, 1999, P.10)

Até então, as drogas não tinham valor econômico. Somente com o advento

do capitalismo, nos primórdios da Idade Moderna (século XV), as drogas passaram

a ser objeto de lucro, sendo considerada lícita sua comercialização como qualquer

outra mercadoria. (KARAM, 1993, p. 33)

17

No Brasil, desde a chegada dos portugueses em 1500, encontram-se

relatos sobre a utilização da maconha. Constam nas anotações de viajantes os

efeitos da maconha como intensificador de emoções pré-existentes. No período

anterior à abolição da escravatura, os senhores proprietários dos escravos sabiam

que estes utilizavam a maconha, no entanto, o uso era consentido, uma vez que

percebiam que seus efeitos contribuíam para inibir as rebeliões. No decorrer da

história, com a consolidação de duas classes sociais distintas, a aristocracia e outra

formada por escravos e pessoas menos favorecidas, há registros da utilização da

maconha por ambas as classes sociais até o início do século XX. (YAMADA, 1999,

P.10)

Na América Espanhola do século XVI, os espanhóis incentivavam o uso de

coca, pois consideravam um lucrativo negócio para muitos mercadores. Naquela

época, a Igreja Católica cobrava seu dízimo sobre suas plantações. (KARAM, 1993,

p. 33/34)

No século 17, caso semelhante acontecia com o ópio produzido na Índia

Britânica, o que motivou uma guerra. A companhia inglesa British East Índia

Company produzia ópio na Índia e o vendia em grande quantidade para a China.

Até que, em 1800, o Imperador Ch'ung Ch'en proibiu o consumo da droga, que se

alastrava pelo território chinês como uma verdadeira epidemia. Todavia o

contrabando prosseguiu e, em 1831, a venda de ópio em Cantão atingiu o

equivalente a 11 milhões de dólares, enquanto o comércio oficial deste porto chinês

não passou dos sete milhões de dólares. A insistência do governo chinês em

reprimir o uso e a venda da droga levou o país a um conflito com a Inglaterra,

conhecido como a Guerra do Ópio. Esta guerra começou em 1839, durou quase

três anos e terminou com a vitória dos ingleses, que obrigaram a China a liberar a

importação da droga e a pagar indenização pelo ópio confiscado e destruído em

todos esses anos, além de ceder Hong Kong aos vitoriosos. Como conseqüência,

metade da população adulta masculina da China era viciada em ópio no ano de

1900. (KARAM, 1993, p. 35)

18

1.3 SÉCULO XX: CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS

Nos primeiros anos do século XX iniciou-se o processo de criminalização

das drogas. A primeira droga a ser proibida foi o ópio. Em 1906 os Estados Unidos

promoveram a Conferência de Xangai, cujo tema era o ópio, a qual originou a

Convenção sobre o Ópio de Haia, em 1912, que resultou na proibição ao consumo

da referida droga. (PASSOS, 2002, p. 36)

Na verdade, os Estados Unidos instigaram a proibição ao uso do ópio com

segundas intenções. Havia, na época, interesse dos Estados Unidos em expulsar

os chineses, residentes naquele país, pois concorriam com os próprios americanos

no mercado de trabalho. Como aqueles imigrantes eram consumidores contumazes

do ópio, valeram-se do incentivo à proibição como estratégia para expulsarem os

chineses do país. (OLMO, 1990, p. 26)

Até a década de 1950, a droga não era vista como problema social, nem

seu consumo era considerado elevado. Os consumidores eram basicamente grupos

marginais da sociedade, ligados à perversão moral. (OLMO, 1990, p. 29)

A partir de então, com a expansão do capitalismo, as drogas que tinham

seu comércio praticamente restrito aos países da periferia, começaram a ser

comercializadas em maiores proporções dentro dos países centrais. Nesses países,

com o intuito de reprimir o processo de consumo, que registrou crescente aumento

na década de 60, as drogas passaram a ser consideradas ilícitas. (KARAM, 1993,

p. 36)

Na década de 60, com o surgimento do movimento hippie - que pregava

uma "ideologia libertatória”, com novas formas de pensar, sentir e perceber a

realidade, em protesto ao sistema social e cultural convencional do Ocidente - o

consumo de drogas, em especial da maconha, deixou de ser exclusivo dos grupos

marginalizados da sociedade, como os negros, mexicanos e delinqüentes, e passou

a ser também da juventude branca de classe média e alta. (OLMO, 1990, p. 36)

O aumento considerável no consumo de droga levou à consolidação do

discurso médico-sanitário, consolidado na Convenção Única sobre Estupefacientes

pelas Nações Unidas, em 1961, e ratificado, em 1962, pela Corte Suprema de

Justiça dos Estados Unidos, de que a droga estaria relacionada com a

dependência. O discurso fazia distinção entre o consumidor dependente e o

19

traficante. Considerava que o primeiro, pessoa de boa índole, filho de boa família,

qualificado como “doente”, era corrompido pelo segundo, o estereótipo do mal. As

drogas passaram a ser vistas como inimigo interno e o assunto matéria de

segurança pública. A opinião pública passou a exigir ação por parte do governo com

o intuito de reprimir o uso de drogas. (OLMO, 1990, p. 33/36)

Dessa forma, com as medidas de repressão e a criminalização do uso da

maconha, a partir da década de 70, o consumo de uma outra droga aumenta em

proporções consideráveis e torna-se o novo inimigo interno: a heroína. No entanto,

o seu consumo é extremamente solitário, individualista. Assim, os governantes

norte-americanos perceberam que os movimentos contestatórios dos jovens

consumidores de maconha, cujo consumo é coletivizado, foram esvaziando

gradativamente e a ordem, outrora ameaçada, foi sendo restabelecida. Os Estados

Unidos usaram como estratégia eleger um novo inimigo na guerra contra as drogas

para combaterem: o tráfico proveniente de países considerados oponentes aos

interesses político-econômicos norte-americanos. (OLMO, 1990, p. 44)

No ano de 1973, foi criada a agência americana Drug Enforcement

Administration (DEA), incumbida de vigiar, fiscalizar e reprimir as drogas. Tornou-se

o mais expressivo órgão internacional de combate às drogas. (PASSOS, 2002, p.

38)

Somente no início dos anos 70 o discurso americano de combate às drogas

chegou na América Latina. No entanto, difundiu-se uma série de informações

confusas que não levavam em conta a diferença entre as drogas, nem tampouco

entre os grupos sociais. A maconha era a droga mais consumida na América Latina,

porém as informações que eram divulgadas equivaliam à publicidade difundida

pelos meios de comunicação norte-americanos sobre a heroína. (OLMO, 1990, p.

44)

Outrossim, o tratamento dado aos portadores de drogas era diferenciado:

aos habitantes de favela eram aplicadas duras penas de prisão por traficância,

mesmo que somente portassem um cigarro de maconha. Já os filhos da classe

média e alta eram enquadrados como “doentes” e encaminhados a clínicas

particulares, mesmo que portadores de grandes quantidades da droga. Aos

primeiros correspondia o estereótipo criminoso, já aos segundos, o estereótipo da

dependência. (OLMO, 1990, p. 45/46)

20

Em meados dos anos 70, a heroína foi suplantada por uma nova droga no

cenário mundial: a cocaína. Produzida nos países andinos, em especial na

Colômbia, que, com o tempo, torna-se a principal produtora e fornecedora da

América Latina. A informação difundida acerca da cocaína era bem diferente das

outras drogas: seu uso era associado a personalidades em evidência que a

utilizavam de modo recreativo, sem risco de causar dependência. (OLMO, 1990, p.

48)

Na década de 80, na gestão de Ronald Reagan, os Estados Unidos

internacionalizam a política de combate às drogas. O objetivo era impedir que as

drogas entrassem naquele país, em especial a cocaína produzida nos países da

América Latina. Usaram de várias estratégias para erradicar as culturas de coca e

cannabis nos países periféricos, tais como tratados de extradição que possibilitaram

que os traficantes latino-americanos fossem julgados nos Estados Unidos;

aplicação de herbicidas nas plantações; intervenções militares (na Bolívia e mais

tarde na Colombia); a invasão do Panamá com o intuito de seqüestrar o General

Noriega, que, de antigo colaborador da CIA, passou a inimigo dos Estados Unidos

devido ao seu envolvimento com o tráfico de drogas. (KARAM, 1993, p. 41/43)

Aduz a criminóloga venezuelana Rosa Del Olmo (1990, p. 55/69) que a

estratégia de combate acirrado às drogas adotada pelos Estados Unidos deu-se por

fatores sociais, econômicos e políticos. Em 1980, os Estados Unidos verificaram

que estava ocorrendo grande escoamento de capital para contas bancárias fora do

país, por conta do tráfico de drogas, com o intuito de ser lavado e reintroduzido nos

Estados Unidos. Além do mais, apuraram que o negócio de drogas gerava

anualmente 100 bilhões de dólares, sendo estimada a sonegação, em tributos, em

bilhões de dólares por ano. Somado a essa questão, os Estados Unidos almejavam

solucionar um outro problema de economia doméstica: os colombianos

correspondiam ao maior percentual dos imigrantes ilegais residentes naquele país.

Criaram então, um novo estereótipo neste processo de erradicação das drogas: o

do criminoso latino-americano, mais especificamente o do criminoso colombiano.

O discurso médico vai sendo substituído pelo discurso político-jurídico

transnacional: não são mais discutidas as razões do consumo de drogas e o usuário

passa a ser visto como um consumidor de substâncias ilícitas. O argumento passa

a ser de que a solução é combater a entrada das drogas e, conforme as leis de

21

mercado da oferta e da procura, se a oferta é refreada, os preços praticados para

aquisição da droga se elevariam a tal ponto que inviabilizariam a demanda. (OLMO,

1900, p. 69)

Em 1988 realizou-se a Convenção contra o Trafico Ilícito e Estupefacientes,

na qual os Estados Unidos culpam os países periféricos, em especial os da América

Latina, pelo problema das drogas instalado no país e impõem a estes que ratifiquem

a convenção. A Organização das Nações Unidas (ONU) elege a cocaína como a

principal droga a ser combatida. (PASSOS, 2002, p. 44/45)

Com a globalização da economia, na década de 1990, o tráfico de drogas

atingiu dimensões mundiais. Surgem novas drogas no mercado, sintetizadas em

laboratórios a preços mais acessíveis. As organizações de tráfico de drogas

aprimoraram-se, assim como cresceu a corrupção entre as autoridades policiais e

judiciárias. (OLMO, 1990, p. 69/70)

Por fim, Rosa Del Olmo (1990, p. 70/71) expressa comentário sobre essa

situação:

A insistência no aspecto moral e criminal do fenômeno das drogas impediu a compreensão da natureza dinâmica do tráfico de drogas e, sobretudo, de suas dimensões como empresa transnacional dedicada à produção de bens e serviços ilegais. Reduz-se o fenômeno a uma questão delinqüencial-policial que considera o tráfico como uma categoria homogênea, o que oculta a complexidade da indústria das drogas ilícitas, assim como a diversidade dos autores que dela participam. Em sua verdadeira dimensão, é um problema econômico, social e político transnacionalizado, que desequilibra o Estado e a sociedade. E isso, apesar de existirem vários estudos que conseguiram sistematizar as principais características do tráfico e que demonstram não se tratar de uma forma ordinária de criminalidade, nem uma atividade parasitária e de pilhagem, mas de um processo produtivo, por mais ilícito que seja (Uprimny, 2000), que o economista canadense Tom Naylor qualificou de criminalidade econômica empresarial (Naylor, 1999). Em outras palavras, do ponto de vista estrutural, estamos diante de uma atividade produtiva mercantil de caráter internacional, e à margem da legalidade, desenvolvida por indivíduos e organizações interessados antes de mais nada na obtenção do lucro, como em qualquer empresa contemporânea.

22

1.4 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO ANTIDROGAS NO BRASIL

Foi com as Ordenações Filipinas1 que se tem registro dos primeiros indícios

de acusação sobre o uso, porte e venda de determinadas substâncias no Brasil. A

primeira referência que proibia a comercialização de drogas no país se encontra no

Título 89, Livro V: “Que ninguém tenha em casa rosalgar, nem o venda, nem outro

material venenoso”. Logo mais, foi promulgado o Código Penal Brasileiro de 1830,

conhecido como Código Imperial, que não fez qualquer referência a tal respeito,

sendo que em 1890, o Código Penal Republicado tipificou as condutas de “expor à

venda ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as

formalidades previstas nos regulamentos sanitários”. (CARVALHO, 1996, p. 19)

Entretanto, mesmo com a promulgação de tal dispositivo, não foi suficiente

para se conter a onda de toxicomania que tomou conta do país após 1914, sendo

que São Paulo foi comparado a Paris, um século antes, por formar um clube de

toxicômanos. (GRECO FILHO, 1996, p. 39)

Com a Consolidação das Leis Penais de 1932, houve uma maior

regulamentação sobre o uso e a comercialização de drogas no Brasil. No início do

século XX, o uso contínuo e desenfreado de tóxicos atingiu o seu auge no Brasil e

no mundo, principalmente pelos intelectuais da época, que passaram a consumir,

em quantidade significativa, ópio e haxixe. (CARVALHO, 1996, p. 20)

Diante deste quadro, nos anos subseqüentes surgiram diversas normas

legais tratando do tema:

Em abril de 1936, a publicação do Decreto 780, modificado pelo Decreto 2.953 de agosto de 1938, é considerada o primeiro ‘grande impulso’ na luta contra a toxicomania no Brasil. Todavia, o primeiro momento legislativo, no que tange ao ingresso do país em modelo internacional de controle de estupefacientes, dá-se com a edição do Decreto-lei 891 de novembro de 1936. Este Decreto-lei é elaborado de acordo com as disposições da Convenção de Genebra de 1936 e traz normas relativas a produção, tráfico e consumo, juntamente com relação de substâncias consideradas tóxicas e que, logicamente, deveriam ser proibidas nos países que ratificassem a orientação da Convenção. (CARVALHO, 1996, p. 20)

1 Compilação jurídica que constituiu a base do Direito Português, vigendo em nosso país por mais de dois

séculos, quanto à parte criminal. Encerrou sua vigência com o advento do Código Criminal do Império, em

1830. Foi o ordenamento jurídico penal que mais tempo vigorou no Brasil. (ZAFFARONI, 2006, p. 176)

23

Em 1942, entra em vigor o novo Código Penal que vem disciplinar a matéria

relativa a tóxicos em seu artigo 281:

Art. 281. Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a consumo substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de dois a dez contos de réis. (Redação dada pelo Código Penal de 1942)

A partir da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, que foi

promulgada no Brasil em 1964, que a lista de entorpecentes trazida pelo Decreto-lei

891 foi completada e adotada pelo Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e

Farmácia – SNFMF. (YAMADA, 1999, p. 31)

Tal diploma legal foi de suma importância no combate ao uso de

substâncias que causam dependência física e/ou psíquica ao indivíduo, sendo

elencadas, ainda, substâncias que se equiparam aos entorpecentes no que diz

respeito à dependência, não somente com o intuito de fiscalizar e controlar, como

também para os fins penais. (GRECO FILHO, 1996, p. 40)

Embora o artigo 281 do Código Penal ainda tivesse vigência sobre a

criminalização do uso e venda de entorpecentes, o STF começou a entender que tal

dispositivo não se estendia ao usuário, aplicando-se somente ao traficante.

(CARVALHO, 1996, p. 25) Em aresto relatado pelo eminente Ministro Antônio

Neder, o STF bem situou a incriminação do uso no contexto da nossa legislação:

Antes de ser editado o Decreto-lei n. 385/68, que deu nova redação ao art. 281 do Código Penal, o STF tinha como firme o entendimento de que tal norma não punia o uso de entorpecente, mas, isto sim, o seu comércio ou a facilitação de seu uso. Só depois da vigência daquele decreto-lei é que a Corte passou a entender punível o uso da droga que entorpece. (RT 62/613).

Desta forma, a falta de sanção para o usuário, pela jurisprudência, gerou a

descriminalização do uso (tema que será abordado no 3° capítulo), fato de extrema

importância ao cenário jurídico nacional, no que diz respeito à moderação e

impedimento ao uso de drogas.

Assim, diante de tal inércia, foi publicado o Decreto-lei 385/68, para

disciplinar o comércio, posse ou facilitação de entorpecentes ou substâncias que

determinem dependência física ou psíquica, passando a penalizar, da mesma

24

forma, o usuário e o traficante. (CARVALHO, 1996, p. 25) Rezava o artigo 281,

alterado pelo referido Decreto-lei:

Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor a venda, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou de desacôrdo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa de 10 a 50 vêzes o maior salário-mínimo vigente no país. (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 385, de 1968) § 1º Nas mesmas penas incorre quem ilegalmente: [...] III - traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. (Incluído pelo Decreto-Lei nº 385, de 1968)

Esta nova legislação ia totalmente contra o posicionamento jurídico

internacional, rompendo o sistema que preservava a diferenciação entre usuário e

traficante, tendo como resultado a sua inaplicabilidade pelos Tribunais de Justiça,

que, em vez de aplicar uma pena mais leve aos usuários, absolviam-lhes.

(CARVALHO, 1996, p. 25/26.)

O Decreto-lei 385/68 trouxe também outra aberração, utilizando-se das leis

penais em branco2, determinando que o laudo toxicológico fosse o instrumento que

definia a lesividade da droga, não necessitando, portanto, que a mesma estivesse

elencada no rol das substâncias proibidas previstas pela lei. (CARVALHO, 1996, p.

26/27)

Logo após, houve a edição da Lei 5.726/71, que reformulou e deu nova

redação ao artigo 281 do Código Penal, modificando, também, o seu rito

processual. A nova lei continuou considerando o usuário de drogas como um

dependente e o traficante de substâncias entorpecentes como um delinqüente. No

que diz respeito à sanção aplicada a estes, a referida lei aumentou em um ano a

pena aplicada anteriormente. (CARVALHO, 1996, p. 27/28) Vejamos o artigo in

verbis:

Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma, a consumo substância entorpecente, ou que

2 Chamam-se “leis penais em branco” as que estabelecem uma pena para uma conduta que se encontra

individualizada em outra lei – formal ou material -. (ZAFFARONI, 2006, p. 386)

25

determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, de 1 (um) a 6 anos e multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) vêzes o maior salário-mínimo vigente no País. § 1º Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente: [...] III - traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica; (Redação dada pela Lei nº 5.726, de 1971)

A Lei 6.368/76 veio substituir a Lei 5.726/71, e mesmo com o advento da

Lei 10.409/02, manteve vigente por muitos anos os dispositivos referentes aos

crimes em matéria de drogas e suas respectivas penas. Tal Lei, ao ser elaborada,

seguiu as regras internacionais, legitimando o discurso jurídico-político, no qual o

traficante passa a ser o inimigo da sociedade. Relatou Salo de Carvalho acerca

deste assunto:

No que concerne ao plano político-criminal, mantém-se o discurso médico-jurídico, com a diferenciação básica entre dependente e criminoso e a manutenção dos estereótipos consumidor-doente e traficante-delinqüente, instaurando-se, gradualmente, o discurso jurídico-político (plano da segurança) onde surgirá a figura do inimigo, igualmente encarnada do traficante. Percebe-se, neste ponto, o porquê da excessiva exacerbação da pena ao traficante em relação aos estatutos pretéritos. (CARVALHO, 1996, p. 29)

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária expede freqüentemente portarias

contendo listas com as substâncias proibidas, uma vez que a Lei 6.368/76, em seus

artigos 12 e 16, tratam sobre a matéria de drogas, não especificando as substâncias

ilícitas. (PASSOS, 2002, p. 54)

Em 1988, no mesmo ano da realização da Convenção contra o Tráfico

Ilícito e Estupefacientes, foi promulgada a Constituição da República do Brasil, que

previu em seu artigo 5°, inciso XLIII:

[...] a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Mais à frente, nos artigos 200, inciso VII, 227, parágrafo 3° e 243, parágrafo

único, a CRFB/1988 prevê:

Art. 200 Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

26

[...] VII – participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; [...] Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. [...] § 3° O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: [...] VII – programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins. [...] Art. 243 As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificadamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.

O artigo 5°, inciso LXIII, da Constituição foi ratificado pela Lei dos Crimes

Hediondos, criada em 1990, incorporando o tráfico ilícito de entorpecentes ao rol

dos crimes hediondos, ao dispor no seu art. 2º, que “os crimes hediondos, a prática

da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são

insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto;”, proibindo, assim, a concessão de

indulto ou liberdade provisória para os praticantes destes crimes.

Nos últimos tempos, foi criada a Lei 10.409/02, que dispõe sobre a

prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao

uso e ao tráfico ilícito de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, adotando o

modelo norte-americano, de que o usuário é visto como doente, devendo ser

tratado. (MARONNA e MENDES, 2002, p. 08)

Ocorreu, porém, que a nova lei que foi criada para substituir a Lei 6.368/76,

já foi editada com inúmeros artigos vetados, inclusive todo o Capítulo III, referente à

27

parte que tratava dos crimes e das penas. Assim, a antiga lei de tóxicos continuou

vigente nesta parte omissa.

Até então, a legislação brasileira que trata sobre a matéria de drogas seguiu

as normas internacionais, para criminalizar e combater a produção e a

comercialização de substâncias ilícitas. Entretanto, recentemente, a jurisprudência,

amparada pela Lei, tem sido mais branda na aplicação da pena imposta ao usuário

de drogas, tendo em vista que o mesmo é considerado como dependente, devendo

ser submetido a um tratamento, e não a uma pena. De outro lado, o traficante tem

sua pena cada vez mais severa.

Seguindo este caminho, em agosto de 2006, foi promulgada a Lei

11.343/06, que será analisada no Capítulo III deste trabalho.

1.5 EFEITOS DA CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS NO BRASIL

O sistema penal brasileiro, assim como ocorre nos Estados Unidos da

América, tenta combater as drogas que chegam ou são produzidas nos países da

América Latina, onde as crianças e adolescentes pobres são perseguidos pelos

órgãos competentes de repressão por venderem drogas aos consumidores de

classes médias ou altas.

Vera Malaguti Batista (2003, p. 31) disserta acerca da alta lucratividade da

comercialização de drogas, pelo fato de não existir qualquer regulamentação por

parte do governo, não haver controle de preços, de haver a possibilidade de se ter a

exploração exclusiva do produto em determinada região e, principalmente, não

haver o pagamento de qualquer tributo sobre o produto vendido. Assim, a

criminalização mantém os menos favorecidos numa situação inferior no mercado de

trabalho, fazendo com que os mesmos fiquem satisfeitos com subempregos. Por

estes motivos, os indivíduos de classes sociais baixas, ficam seduzidos com a

comercialização de drogas e o ganho de dinheiro de forma relativamente fácil e

bastante lucrativa, mostrando-se esta a única possibilidade de uma melhoria de

vida, já que o mercado de trabalho não poderia proporcionar um progresso

financeiro e social.

Alessandro Baratta, no prefácio do livro de Vera Malaguti Batista (2003, p.

15/16), analisa como o sistema penal brasileiro age sobre as classes

28

desfavorecidas da população, especificadamente quanto ao jovem vendedor de

entorpecente:

[...] o sistema de justiça criminal da sociedade capitalista serve para disciplinar despossuídos, para constrangê-los e aceitar a ‘moral do trabalho’ que lhes é imposta pela posição subalterna na divisão de trabalho e na distribuição de riquezas socialmente produzida. Por isso, o sistema criminal se direciona constantemente às camadas mais frágeis e vulneráveis da população: para mantê-las – o mais dócil possível – nos guetos da marginalidade social ou para contribuir para a sua destruição física. Assim fazendo, o sistema sinaliza uma advertência para todos os que estão nos confins da exclusão social.

E continua:

[...] o sistema de justiça criminal continua a funcionar como um direito penal do tipo de autor; e que o estereótipo do criminoso – que guia a ação da polícia, dos promotores, dos juízes e domina a opinião pública e os meios de informação de massa – corresponde às características dos grupos sociais entre os quais o sistema seleciona e recruta seus clientes reais entre todos os potenciais, isto é, entre os vários infratores distribuídos por todas as camadas da população. Isto, segundo as autoras, significaria dizer que o problema que move a ação do sistema não é propriamente a realização do delito descrito pelas leis ou a defesa dos bens jurídicos, mas o controle ou a destruição dos grupos mais pobres da população, aqueles percebidos e definidos como ‘classes perigosas’”.

Verifica-se que o que ocorre, na realidade, é que o tráfico traz diversos

problemas à sociedade em decorrência da criminalização da própria atividade. A

mídia nacional mostra a imagem do traficante como sendo um indivíduo de extrema

periculosidade e que comete diversos crimes das formas mais bárbaras possíveis,

e, por estas e outras razões, o mesmo precisa constantemente proteger-se da

perseguição policial e de outros traficantes, vivendo de forma permanente no meio

de uma guerra.

1.6 DIREITO COMPARADO

Com amparo ao artigo, “As drogas em destaque” (OEDT, 2002), na União

Européia (UE) a legislação em matéria de droga procura sempre atingir um

equilíbrio entre as sanções e o tratamento.

29

As três convenções das Nações Unidas (ONU) sobre droga limitam o

consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas exclusivamente a fins

médicos e científicos. Embora o consumo ilícito de droga não seja considerado um

crime, a Convenção de 1988, como o intuito de combate ao tráfico de droga

internacional, tipifica como uma infração penal à posse para consumo pessoal.

(OEDT, 2002)

Ao elaborar a sua legislação nacional, os Estados-Membros da UE

interpretaram e aplicaram com liberdade a matéria das políticas mais adequadas,

ao seu entendimento, tendo em conta as suas próprias características, cultura e

prioridades, mas mantendo uma atitude proibitiva. Conseqüentemente, as

abordagens adotadas na UE em matéria de consumo pessoal ilícito de droga, de

posse e de aquisição são variáveis. (OEDT, 2002)

Sobre o situação atual na matéria de drogas na Europa, Mike Trace,

presidente do conselho de administração do OEDT, afirma:

Embora as detenções relacionadas com a droga estejam a aumentar, e os recursos policiais estejam concentrados na ação contra os consumidores de cannabis, os sistemas judiciais da maioria dos países procuram freqüentemente formas de deixar em liberdade os infratores, aplicar sanções “leves” e só em última instância recorrer a sanções penais. Uma política eficaz de procedimento judicial contra a droga deverá ser mais consistente e, portanto, mais credível. (OEDT, 2002)

O relatório anual da OEDT de 2006, sobre a evolução do fenômeno da

droga na Europa, traz as novas legislações nacionais.

Duas importantes atividades na UE no domínio da redução da oferta de

droga foram caracterizadas pela entrada em vigor, em 18 de Agosto de 2005, dos

dois regulamentos comunitários relativos aos precursores adotados em 2004.

(OEDT, 2006)

O primeiro, a regulamentação do comércio de determinadas substâncias

entre a União Européia e os países terceiros e, em segundo, a regulamentação

dentro do mercado interno. (OEDT, 2006)

Alguns países alteraram significativamente as suas legislações em matéria

de droga, no período em apreço, tanto a respeito de infrações de posse e tráfico de

droga como em relação às respectivas sanções. (OEDT, 2006)

30

Na Roménia, uma nova lei e um novo código penal introduziram distinções

entre consumidores e tóxicodependentes e entre drogas de alto e de baixo risco. É

agora possível aplicar a isenção e a suspensão da pena às infrações à legislação

em matéria de droga. O tratamento dos tóxicodependentes pode realizar-se através

de um programa de assistência integrado, supervisionado por um responsável pelos

casos individuais. As penas de prisão foram agravadas no caso das infrações

relacionadas com o fornecimento de um local para o consumo de droga, a

tolerância de tal consumo nesse lugar, ou o incentivo ao consumo de droga. (OEDT,

2006)

Na Bulgária, a nova lei relativa ao controlo de estupefacientes e precursores

foi aprovada em Junho de 2004. Uma alteração suplementar eliminou a isenção de

responsabilidade criminal para os tóxicodependentes encontrados na posse de uma

única dose. (OEDT, 2006)

Na Eslováquia, o novo código penal redefine as infrações de posse de

droga para consumo próprio e para tráfico. Ao contrário da anterior infração de

posse para consumo próprio (que antes era limitada a uma única dose), a secção

171 cria duas infrações de posse para consumo próprio, dependendo do número de

doses. Também podem ser aplicadas duas novas sanções a estas infrações, quais

sejam, a prisão domiciliária sob vigilância ou a prestação de trabalho a favor da

comunidade. (OEDT, 2006)

Uma posse superior a 10 doses deve ser sancionada nos termos da secção

172, que, dependendo da existência de circunstâncias agravantes, prevê penas de

prisão que podem ir desde 4 anos à prisão perpétua. Além disso, a idade da

responsabilidade penal baixou dos 15 para os 14 anos. (OEDT, 2006)

Na Lituânia, a posse de droga com intenção de venda deixou de poder ser

punida com uma detenção de até 90 dias nas esquadras da polícia, tendo passado

a ser objeto de uma pena mínima significativamente mais severa, nomeadamente

com pena de prisão, embora a pena mínima tenha sido reduzida de 5 para 2 anos.

(OEDT, 2006)

Em Itália, algumas alterações recentes à legislação (Fevereiro de 2006)

reclassificaram a droga em dois grandes grupos, em vez de seis (todas as

substâncias sem utilização terapêutica estão agrupadas, eliminando o conceito de

drogas leves e duras); definiram o limiar entre a posse para uso pessoal e para

31

tráfico; reviram as sanções de modo a incluir a prisão domiciliária e a prestação de

trabalho a favor da comunidade; e aumentaram o acesso às sanções alternativas à

prisão. Além disso, todos os consumidores de droga têm agora o direito de escolher

livremente o tipo e a localização do tratamento que recebem, bem como a

instituição que atesta a sua situação de toxicodependência, deixando tais serviços

de serem exclusivamente prestados pelo setor público. (OEDT, 2006)

No Reino Unido, a Lei da Droga de 2005 introduziu alterações substanciais

à legislação nacional, permitindo que a polícia submeta os infratores a análises no

momento da detenção, em vez de só poderem fazê-lo no momento da acusação, e

exigindo que as pessoas cuja análise tenha tido resultados positivos, sejam

avaliadas quanto ao consumo de droga. (OEDT, 2006)

De um modo geral, há em toda a Europa uma tendência para reduzir ou

retirar as penas de prisão no caso das infrações relacionadas com o consumo

pessoal e, simultaneamente, para aumentar as sanções relacionadas com a venda

de droga. (OEDT, 2006)

A monitorização das sanções aplicadas aos infratores da legislação em

matéria de droga foi debatida ou introduzida em diversos países e, em alguns

casos, já foram tomadas medidas com base nos resultados obtidos. (OEDT, 2006)

Na Irlanda, foi aprovada a criação de uma unidade central de estatísticas

penais para monitorizar as estatísticas relativas às detenções, às ações judiciais e à

natureza das sentenças proferidas, em conformidade com a estratégia nacional de

luta contra a droga. (OEDT, 2006)

A Lei dos Estupefacientes alemã permite que o procurador público

abandone as ações penais por posse de droga sem a aprovação do tribunal, em

determinadas circunstâncias. (OEDT, 2006)

Na Roménia, as estatísticas sobre as decisões judiciais foram analisadas

para monitorizar o êxito da reintegração social dos consumidores de droga que

cometem infrações para além do consumo. Na maioria dos casos, a sanção

aplicada foi uma pena suspensa sob vigilância. A partir de 2004, constatou-se que

os tribunais aplicavam o tratamento obrigatório com menor freqüência, diminuindo

efetivamente o envolvimento dos serviços responsáveis pelo acompanhamento das

pessoas em liberdade condicional e, logo, a reabilitação social dos consumidores de

droga. (OEDT, 2006)

32

As estatísticas sobre o proferimento, ou não, de sentenças judiciais

oferecem um panorama muito mais exato da aplicação da política nacional em

matéria de droga do que os textos legislativos propriamente ditos. (OEDT, 2002)

Apesar de nem todos os Estados-Membros recolherem dados estatísticos

exaustivos sobre as decisões judiciais, ao contrário do que sucede com as

estatísticas relativas às detenções, os países começam a mostrar mais interesse na

monitorização dessa aplicação, o que está de acordo com a tendência para avaliar

os instrumentos políticos. (OEDT, 2002)

Estão atualmente previstas em toda a UE, alternativas ao processo penal,

geralmente de caráter terapêutico ou social, embora o seu impacto e qualidade

variem. A investigação demonstra que o tratamento dos consumidores de droga no

âmbito do sistema de justiça penal pode conduzir a resultados positivos, quer

terapêuticos, no caso da toxicodependência, quer educativos, no caso dos que

consomem pela primeira vez. (OEDT, 2002)

Alguns países, essas medidas são pouco utilizadas, devido a restrições

jurídicas ou a um cepticismo generalizado no que se refere à sua eficácia. Noutros

países o tratamento é a norma; num pequeno número de países, a aplicação dessa

medida é dificultada pela falta de recursos. (OEDT, 2002)

Os países onde a toxicodependência é considerada como a verdadeira

causa da criminalidade relacionada com a droga estão melhores preparados para

aplicar o tratamento em vez do processo penal, mesmo no caso de delitos mais

graves. (OEDT, 2002)

Outros são menos brandos, sendo os delitos relacionados com a droga

imediatamente passíveis de detenção. (OEDT, 2002)

33

2 O USUÁRIO DE DROGAS FRENTE AS LEIS 6.368/76 E 10.409/02

2.1 O ARTIGO 16 DA LEI 6.368/76

Em decorrência do aumento alarmante no consumo de drogas nos anos 70

e da carência de proteção à saúde pública, tornou-se, para os nossos legisladores,

necessário um ordenamento jurídico capaz de reprimir, com maior intensidade, o

traficante e o usuário, visto como um dependente em potencial, bem como

disciplinar formas de tratamento e recuperação destes. (VIEIRA, 1984, p. 45)

A Lei Antitóxicos foi criada para o aparelhamento jurídico, com fins de

modificar todo o sistema administrativo e penal referente à prevenção e repressão

aos tóxicos. Nela, foram conceituados crimes e determinando suas respectivas

penas. (VIEIRA, 1984, p. 45)

No artigo 16 da Lei 6.368/76, foram incriminadas as condutas de adquirir,

guardar ou trazer consigo. In verbis:

Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20 (vinte) a 100 (cem) dias-multa.

Rozimeri Aparecida Rigon (2005, p. 290) aborda os conceitos das condutas

tipificadas, alicerçadas em um acórdão do Tribunal de São Paulo:

Adquirir, quer dizer obter de forma gratuita ou onerosa; passar a ter pose de alguma coisa mediante compra, troca, oferta, etc.; já guardar, significa conservar, manter, vigiar com o intuito de defender, proteger ou preservar; trazer consigo, refere-se ao porte de substância. Veja-se: no verbo adquirir o delito é instantâneo; nas condutas de guardar e trazer consigo, é permanente. No verbo adquirir não importa se o adquirente não comprou a substância, basta que o agente a tenha na sua posse para se caracterizar o delito. (JUTACRIM 54/330)

Portanto, a consumação ocorre com a realização das condutas definidas no

tipo penal, e não com o uso da droga em si. Assim, o indivíduo que comprar a droga

pode não ser consumidor e este atuará como co-réu. Como se vê, a Lei não pune a

conduta de “usar”, uma vez que esta não está tipificada, assim, se o usuário

consumir toda a sua droga, momentos antes da prisão e, logo após, durante a

34

abordagem policial, não for verificada a conduta de guardar ou trazer consigo

substância entorpecente, o indivíduo não poderá ser enquadrado neste dispositivo

legal. (RIGON, 2005, p. 290/291)

O real motivo para de criminalizar estas condutas, é o suposto perigo social

que ela representa. O raciocínio implícito utilizado foi que ocorre perigo à saúde

pública no momento em que o usuário traz consigo a droga, antes mesmo de

consumi-la, resultando na difusão

Em suma, o que difere as condutas referentes ao tráfico e o consumo é a

finalidade do ato.

2.2 USUÁRIO/DEPENDENTE: EFEITO NEFASTO À SAÚDE PÚBLICA OU À SAÚDE DO PRÓPRIO CONSUMIDOR

O objeto jurídico tutelado pelo artigo 16 da referida Lei é a saúde pública, ou

seja, é a caracterização do perigo social que esta conduta representa. Este é o

posicionamento dominante na doutrina e na jurisprudência. (MARQUES, 2001, p.

82)

Entretanto, mesmo diante deste entendimento, resta a dúvida se o bem

jurídico protegido por tal dispositivo é realmente a saúde pública ou a saúde do

próprio consumidor. (MARQUES, 2001, p. 82)

Nos crimes contra a saúde pública o que se tenta proteger é o interesse

geral da comunidade, já que quando se trata de infrações de perigo geral ou

comum, o número de pessoas que podem ser afetadas é indeterminado, estando

inúmeras pessoas expostas à probabilidade de dano. (MARQUES, 2001, p. 83)

Contudo, a conduta de uma pessoa que adquire, guarda ou traz consigo

substância entorpecente ou que determine dependência física e/ou psíquica pra uso

próprio, não deve ser confundida ou equiparada com aquela que afronta a saúde

pública, já que naquela não há expansibilidade do perigo, eis que é evidente que as

condutas de ter algo para si próprio e ter algo para difundir entre outras pessoas

são completamente antagônicas. Seguindo este raciocino, pode-se concluir que a

conduta incriminada no artigo 16 da Lei de Tóxicos não ofende o bem jurídico

tutelado, ou seja, a saúde pública, sendo o fato, portanto, atípico. (MARQUES,

2001, p. 83)

35

Em outra análise, uma vez que já configurado que o consumo de droga não

afeta a saúde pública, verifica-se a ocorrência de verdadeira autolesão, conduta

esta que se restringe à esfera privada e que não está ao alcance do Direito Penal.

(MARQUES, 2001, p. 83)

Na definição de autolesão trazida por Maurício Antônio Ribeiro Lopes, o

termo significa “a conduta externa que, embora vulnerando formalmente um bem

jurídico, não ultrapassa o âmbito do próprio autor”. Depreende-se daí que a

autolesão se restringe a uma conduta privada, constitucionalmente assegurada no

artigo 5°, inciso X, que garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da

honra e da imagem das pessoas. (LOPES, 2000, 533)

No mais, além das garantias constitucionais à inviolabilidade da intimidade

e da vida privada, Salo de Carvalho entende ainda que não se pode esquecer do

princípio da lesividade, princípio de grande importância e fundamental no Direito

Penal, ensinando que “somente poderá ser aplicada penalidade no momento em

que a ação infrinja bem jurídico determinado, produzindo-lhe dano – resultado

material”. (CARVALHO, 1997, p. 89)

Acerca do princípio da lesividade, Nilo Batista (2001, p. 91) consagra quatro

funções específicas, dentre elas a “proibição de criminalizar condutas que não

excedam o âmbito do próprio autor”. Esta é a que mais importa no presente

momento. Hipótese em que incide a autolesão.

Maurício Antônio Ribeiro Lopes (2000, p. 532), fundamentou a aplicação

desta função do princípio da lesividade em sua obra na não punição de atos

preparatórios que não tenham a sua execução iniciada, ou, também, na não

punição do conluio entre duas ou mais pessoas para o cometimento de um crime se

sua execução não estiver sido iniciada. E continua:

O mesmo fundamento veda a punibilidade da autolesão, ou seja, a conduta externa que, embora vulnerando formalmente um bem jurídico, não ultrapassa o âmbito do próprio autor, como por exemplo o suicídio, a automutilação e o uso de drogas. (LOPES, 2000, p. 533)

Visto isto, não se pode considerar como típica a conduta descrita no artigo

16 da Lei 6.368/76, pois, como demonstrado, o uso de substâncias entorpecentes

constituem verdadeira autolesão, autoprejuízo, com efeito nefasto à saúde de quem

a consome, O que restou configurado é que se trata de uma conduta que não

36

ultrapassa o âmbito do próprio autor, restrita à esfera privada e longe do alcance do

Direito Penal. Não obstante, comprovou-se também que a conduta de usar

substância entorpecente não tem potencialidade de afetar terceiros,

conseqüentemente, não há lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, ou seja, não

há ofensa à saúde pública.

2.3 A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 16 DA LEI 6.368/76

2.3.1 A criminalização

O artigo 16 da Lei de Tóxicos criminaliza condutas relacionadas à posse de

substâncias entorpecentes qualificadas como ilícitas para uso próprio.

A ação típica está inserta no núcleo dos três verbos adquirir, guardar ou

trazer consigo, desde que combinados com a expressão para uso próprio.

Entretanto, como visto há pouco, tais ações não podem ser objeto de criminalização

por parte do Direito Penal, uma vez que as condutas não afetam bens ou interesses

de terceiros. Desta forma, o Direito Penal não pode criminalizar condutas privadas,

definidas como aquelas que somente afetam a pessoa que as executa, ou seja, tem

que verificar se a conduta atinge de alguma forma a terceiros e a sociedade.

(KARAM, 1993. p. 121)

É importante salientar que determinadas condutas privadas são passíveis

de reprovação moral e no entanto não podem ser objeto de criminalização. Neste

sentido, Maria Lúcia Karan (1993, p. 121/122) entende:

O Direito constitui um conjunto de normas disciplinadoras de relações sociais, sendo, portanto, de sua essência a intervenção tão somente em condutas que, saindo da esfera individual, tenham potencialidade para atingir terceiros. Das condutas privadas, ou seja, aquelas que não afetam bens ou interesses de terceiros, não se pode dizer que sejam permitidas ou proibidas juridicamente, não cabendo dar a elas qualificação jurídica, na medida em que, por sua própria definição, o Direito não deve alcançá-las.

Logo adiante continua:

É neste sentido que estabelecer normas proibitivas para proteção de determinados bens jurídicos, o Direito Penal tem que, necessariamente, ter em conta a repercussão na esfera de terceiros das condutas que irá criminalizar, não podendo, em qualquer hipótese, esquecer da necessária diferença entre Direito e Moral, entre crime e pecado.

37

Este é o fundamento básico da inadmissibilidade de criminalização da posse de drogas para uso pessoal, que, inegavelmente é uma conduta privada.

Assim, como na autolesão, adquirir, guardar e trazer consigo drogas para o

seu uso pessoal, também configura conduta privada, possuindo, portanto, as

mesmas garantias asseguradas pela Constituição, quais sejam, a liberdade, a

intimidade e a vida privada, não podendo o Direito nelas intervir. (KARAN, 1993, p.

129)

Em sua obra, Maria Lúcia Karan (1993, p. 129) cita a afirmativa de Eugênio

Raúl Zaffaroni, de que a finalidade do Direito é de estabelecer um convívio

harmônico entre os cidadãos, permitindo a cada um a plena disposição de seus

bens jurídicos, não podendo o Direito querer proteger bens contra a expressa

vontade dos seus titulares. Absurdo, portanto, a intervenção do Direito no domínio

de privacidade de cada indivíduo.

Destarte, constatado que a posse de drogas para o uso próprio se classifica

como conduta privada, não podendo ser objeto de criminalização pelo Direito Penal,

conclui-se que as condutas descritas no artigo 16 da Lei 6.368/76 não afetam em

nada o bem jurídico tutelado pela norma, sendo ele tão somente, a saúde pública.

Salo de Carvalho (1997, p. 91) confirma tais argumentos em sua obra.

Vejamos:

Desta forma, entendemos como atípicas as condutas descritas no art. 16 da Lei 6.368/76, bem como inconstitucional o conteúdo do dispositivo. O uso configura apenas autolesão, sendo sua criminalização totalmente incoerente e incompatível com a perspectiva metodológica utilizada nos estatutos criminais nacionais. Assim, se a posse, guarda ou aquisição de qualquer tipo ou quantidade de substância não configuram fatos típicos, porque ferem a lógica do Direito Penal moderno e a principiologia constitucional, é insustentável o posicionamento assumido pela jurisprudência, respaldado amplamente pela doutrina, que vê na posse de pequena quantidade de estupefaciantes delito a ser punido, tendo em vista a potencialidade de lesão à saúde pública.

Seguindo esse caminho, é inadmissível aceitar-se o entendimento de que a

posse de substância entorpecente para uso próprio possa afetar de alguma forma a

coletividade, uma vez que demonstrada a ausência de expansibilidade do perigo

pelo uso pessoal. Em conseqüência, é descabida a criminalização da posse de

38

drogas para o uso pessoal frente à proteção da saúde pública. (KARAN, 1993, p.

125/126)

2.3.2 A penalização

A criminalização das condutas tipificadas no artigo 16 da Lei de Tóxicos

surgiu através da Convenção Única de Entorpecentes, em 1961, quando ainda

acreditava-se que tais condutas estimulavam a criminalidade, sendo instituída,

então, a pena privativa de liberdade consistente em seis meses a dois anos de

detenção. Entretanto, nos últimos tempos, esta criminalização vem sendo

contraposta pela criminologia, por entender que o usuário é a própria vítima desta

prática, e mais, por não ter sido detectado o crime pelos meios formais de controle.

(RIGON, 2005, p. 301)

É cediço que o encarceramento nas prisões constitui realidade violenta,

demonstração de um sistema penal totalmente dessemelhante e opressivo,

funcionando como verdadeiro reprodutor de crimes. Há muito, o sistema prisional

tenta proporcionar à sociedade uma sensação de proteção, proteção esta

completamente ilusória, eis que a prisão somente reforça valores negativos aos

segregados. Resta configurado que quanto maior a pena e as medidas aplicadas

aos apenados, maiores são as chances de reincidência. Mais eficaz, seria o sistema

que evitasse a prisão de condenados em crimes de menor gravidade, distanciando-

os dos condenados por crimes graves. (RIGON, 2005, p. 298)

Acerca do tema, Rigon traz a afirmativa de Menna Barreto:

[...] o convívio carcerário entre os que traficam e aqueles sucumbidos pelo vício conduzem os primeiros a toda sorte de manobras para a manutenção do comércio ilegal de drogas. Além disso, ocasiona uma grande revolta pelo tratamento igualitário com o traficante e o viciado, retornará, inexoravelmente, à prisão, quiçá não mais como simples viciado.

As penitenciárias brasileiras mostram-se verdadeiras universidades

especializadas na formação do crime, uma vez que é verificado que muitos, ao

serem segregados, são delinqüentes primários, de bons antecedentes e de boa

conduta social. Diferentemente do traficante, o usuário de drogas não possui

periculosidade, visto que não passa de vítima da ação criminosa do tráfico de

39

entorpecentes, devendo ser declarado como isento de pena. (RIGON, 2005, p.

299)

Rigon cita Valois, acerca da sua dissertação que foi encaminhada ao

Congresso Nacional sobre drogas e execução penal:

[...] a política repressiva é generalizadora, marginalizante e estigmatiza o usuário, portanto extremamente nociva aos imprescindíveis esforços de prevenção, ao mesmo tempo em que estimula a imagem do uso como uma conduta rebelde e conseqüente fascínio por parte da juventude, proporcionando, outrossim, a isenção da sociedade para com o fenômeno da toxicomania. A estigmatização causa o medo do usuário da droga de uma aproximação com uma porventura existente medida assistencial preventiva, acabando esta atingindo apenas uma pequena parcela daqueles que se encontram já bastante prejudicados pelo uso de entorpecentes. (RIGON, 2005, p. 299)

Há de se considerar que o usuário de substâncias entorpecentes seja tido

como enfermo, opondo-se a idéia de ser visto como criminoso, como bem tenta

rotular a Lei, não merecendo, por isso, pena privativa de liberdade, já que esta

nunca atingirá os objetivos a que se destina, a reeducação e reinserção social.

Necessita, sim, de tratamentos terapêuticos, no caso de dependentes. No mais, tal

assertiva se confirma ao analisar que as penitenciárias não têm recursos para

cuidar das causas da dependência, sendo, ainda, o usuário lançado ao convívio de

delinqüentes perigosos. (MARQUES, 2001, p. 85/86)

Marques (2001, p. 86) segue seu pensamento citando sua obra realizada

em conjunto com Cláudio Guimarães:

Embora a pena de prisão ainda represente relevante papel no controle social, a sua aplicação, entretanto, fica estritamente condicionada aos crimes de maior gravidade e aos criminosos profissionais, com a única justificativa de incapacitação ou inocuização destes, a saber: segrega-se o criminoso para que pelo maior período de tempo possível ele não venha a causar danos no meio social, cientes de que tal medida dificilmente possa produzir algum benefício em relação ao mesmo.

Não obstante, Rozimeri Aparecida Rigon (2005, p. 300) mencionou o

pensamento de Carnelutti, ao referir-se aos malefícios causados ao indivíduo

quando posto em liberdade:

[...] as dificuldades ocasionadas ao libertado pelo cárcere pelas mudanças dos hábitos, pelas relações rompidas, pelos ambientes mudados; tudo isto não pode deixar de determinar uma crise, que poderia também se chamar crise do renascer. [...] O encarcerado

40

saído do cárcere, crê não ser mais encarcerado; mas as pessoas não; quando muito se diz ex-encarcerado; nesta fórmula está a crueldade do engano. [...], a sociedade fixa cada um de nós ao passado.

Desta forma, confirmam-se os diversos danos que a prisão causa ao

usuário ou dependente de drogas, pois ele entra nas penitenciárias como doente e

sai delas especialista no crime. Assim, a idéia da descriminalização se depara com

a resistência dos legisladores, que procuram apresentar uma ilusória solução para

este problema social, pressionados pela opinião pública ou de certos grupos

sociais. (RIGON, 2005, p. 300/301)

2.4 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Atualmente, há uma ampla preocupação no sistema penal brasileiro, com a

adequação e descriminalização de condutas que, mesmo sendo consideradas

típicas, não causam mais reprovação pela sociedade, ainda mais se comparadas

aos efeitos que seriam produzidos no caso de uma eventual condenação, tendo o

agente que cumprir pena privativa de liberdade, acarretando numa sanção

totalmente desproporcional à reprovação social.

A função ressocializadora da pena privativa de liberdade imposta pelo

sistema penal encontra-se amplamente divorciada da sua finalidade, tendo em vista

os diversos efeitos negativos que a prisão causa ao agente, impossibilitando

qualquer tentativa de um futuro reingresso social. Em decorrência disto, a pena

privativa de liberdade somente deveria ser imposta a condutas típicas de relevante

valor social ou quando não há outra pena alternativa. (PIVA, 2000, p. 61)

A partir desta idéia, surgiu a proposta de descriminalização. O sistema

penal brasileiro, para adequar-se à crescente evolução social, tem adotado, através

da doutrina e da jurisprudência, alguns princípios tendo em vista a

descriminalização sem pôr em risco a segurança jurídica do sistema. Dentre eles

está o princípio da insignificância, que atua como excludente de ilícito penal. (PIVA,

2000, p. 61)

A justificação para a utilização do princípio da insignificância como

instrumento descriminalizador no sistema penal, é, em suma, o consentimento da

41

sociedade com relação a determinadas condutas de ínfima gravidade, embora

típicas e definidas em lei. (PIVA, 2000, p. 61)

Tendo em vista as profundas e relevantes alterações nas condutas e

normas decorrentes da evolução social, disserta Paulo César Piva (2000, p. 62):

Assim sendo, o Direito Penal, que, como é cediço, regula e direciona as condutas delitivas, perseguindo uma adequação e boa convivência nas relações sociais humanas, também é merecedor da evolução e, certamente, vem sendo agraciado com alternativas eficazes para a solução da chamada boa política criminal.

E continua, acerca da aplicação de uma nova alternativa de controle social,

discorrendo sobre o princípio da insignificância:

Adotando-se este princípio, não há que se falar em ausência de direito ou de aplicação de justiça, mas, sim, na plena aplicação de outros meios de controle social, disponibilizados à pequenas e irrelevantes infrações, reservando-se o Direito Penal para investir na tutela jurisdicional em fatos e valores sociais estritamente relevantes.

Deste modo, fica evidenciado que, quando a conduta for considerada de

irrelevante repercussão social, não se deve aplicar uma reprimenda penal, pois

acarretaria numa sanção severa e desproporcional à ação praticada, sem

mencionar os diversos efeitos negativos que a prisão traria na vida social do

indivíduo. Deve, portanto, ser adotado o princípio da insignificância como

excludente de ilícito penal, como um caminho alternativo, mais justo, que satisfaça a

devida aplicação de uma boa política criminal que rege o Processo Penal. (PIVA,

2000, p. 64)

Assim, como nos crimes de pequeno potencial ofensivo, a

descriminalização do consumo de drogas na esfera judicial começou a ser

fundamentada no princípio da insignificância, sendo defendida pelos juristas como

alternativa necessária para minimizar os terríveis efeitos que a criminalização de

determinadas substâncias trazem à sociedade. Necessária, portanto, a análise de

alguns pontos importantes relacionados ao referido princípio.

2.4.1 Conceito e seus fundamentos

42

O princípio da insignificância encontra-se previsto de forma implícita no

ordenamento jurídico brasileiro, já que não há uma definição expressa de seu

conceito. Entretanto, encontramos tal resposta na doutrina e na jurisprudência, que

preocuparam-se em formular um conceito para o referido princípio (VICO MAÑAS,

1994, p. 60).

Sobre o tema, leciona Vico Mañas:

O princípio da insignificância, portanto, pode ser definido como instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal. (VICO MAÑAS, 1994, p. 81)

Na obra de Ivan Luiz da Silva, o autor comenta a afirmação do professor e

Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, Assis Toledo, que relaciona o

princípio da insignificância à gradação qualitativa e quantitativa do injusto, prevendo

a possibilidade de exclusão do tipo penal em relação ao fato que seja considerado

insignificante. Vejamos:

[...] o insigne jurista não apresenta um conceito, em sentido estrito, fornece apenas os elementos fundamentais para a dedução de uma definição do princípio em tela, quais sejam: a) o caráter de instrumento para aferição qualitativa e quantitativa do grau de lesividade da conduta típica, b) o efeito jurídico produzido pelo princípio, qual seja a exclusão de tipicidade da conduta insignificante. Do entendimento apresentado podemos inferir que o princípio da insignificância é o princípio penal que norteia a comparação entre o desvalor consagrado no tipo penal e o desvalor social da conduta do agente, aferindo, assim, qualitativa e quantitativamente a lesividade desse fato para contestar-se a presença do grau mínimo necessário à concreção do tipo penal; se nesse cotejo axiológico verificar-se que o desvalor do ato ou do resultado é insignificante em relação ao desvalor exigido pelo tipo penal, então esse fato deverá ser excluído da incidência penal, já que é desprovido de reprovabilidade jurídica. (SILVA, 2004, p. 93/94)

De outro vértice, entende Pierangelli:

[...] o bem jurídico constitui o ponto de partida e a idéia que preside a formação do tipo, a tipicidade penal reclama uma ofensa de alguma magnitude a esse mesmo bem jurídico. Cuida-se, aqui, do chamado princípio da insignificância, também denominado de princípio da bagatela, uma variante da teoria da adequação social,

43

pelo qual são excluídos do âmbito do injusto os “danos de pequena importância”. (PIERANGELLI, 1989, p. 44)

A conceituação do autor Pierangelli define o princípio da insignificância

como uma variante da teoria da adequação social. Tal teoria defende a idéia de que

não devem ser considerados típicos os comportamentos aceitos ou tolerados pela

sociedade, quer dizer, condutas que não causam reprovação social.

(PIERANGELLI, 1989, p. 44)

Maurício Antônio Ribeiro Lopes (2000, p. 121) segue o mesmo

entendimento de que “não são consideradas típicas aquelas condutas que se

movem por completo dentro do marco de ordem social, histórico, normal da vida

porque são socialmente adequadas”.

Já o princípio da insignificância age de forma diversa, em que não é

analisado a conduta insignificante do agente de forma isolada, mesmo ela sendo

aceita ou não pela sociedade, mas sim, se ocorreu a tal conduta insignificante

aliada à produção ou não dano insignificante ao bem jurídico tutelado pela norma

penal (VICO MAÑAS, 2000, p. 65).

No mesmo sentido entende Ivan Luiz da Silva (2005, p. 429), ao dissertar

que “o reconhecimento da conduta penalmente insignificante realiza-se com base

no critério objetivo de avaliação dos índices de desvalor da ação e do resultado da

conduta realizada, que busca aferir o grau de lesividade da conduta contra o bem

jurídico atacado”.

Assim, entende-se que se pode aplicar o princípio da insignificância quando

a conduta praticada for considerada irrelevante e não causar dano ao bem jurídico

tutelado pela norma, demonstrando-se a ausência da relevância penal na conduta,

mesmo que devidamente tipificada como crime no Código Penal. Deste modo, põe-

se em dúvida se a norma aplicada se encontra fora do seu contexto histórico e da

realidade em que foi posta a rigor.

Outro exemplo é a contravenção do jogo do bicho, prevista na Lei de

Contravenções Penais, a qual se tornou uma conduta moralmente reprovável por

alguns, sendo atualmente praticada por muitos sem ensejar qualquer repressão

penal.

A abordagem do princípio da insignificância neste trabalho procura

estabelecer uma fundamentação preliminar sobre a desconsideração da tipicidade

44

de ações que não afetem o bem jurídico tutelado pela norma penal. Em outras

palavras, quando a lesão ao bem jurídico é inexpressiva ou inexistente. A lei penal,

ao tipificar uma conduta como crime, o faz por considerá-la ofensiva ou perigosa ao

bem jurídico protegido. Assim, se tal conduta não ofender ou não se mostrar

perigosa ao bem jurídico tutelado pela norma penal, deverá ser considerada atípica

e o dano, portanto, insignificante.

Ivan Luiz da Silva (2004, p. 120) explica que as normas penais, por força da

Constituição, foram construídas e se fundamentam nos princípios básicos do

Estado Democrático de Direito, tais como a liberdade, a igualdade, a solidariedade,

a dignidade da pessoa humana e o pluralismo.

Da mesma forma que no ordenamento jurídico em geral, o sistema jurídico

penal além dos princípios básicos constitucionais, também possui princípios que

não estão expressos no texto legal, estes são conhecidos como princípios jurídicos

implícitos, dentre eles, se encontra o princípio da insignificância. Entretanto, é

visivelmente localizado na Carta Magna como complemento ao interpretar-se outros

princípios penais explícitos. O princípio da insignificância, por sua vez, visa

concretizar tais princípios explícitos ao analisar de forma restritiva o tipo penal.

(SILVA, 2005, p. 428/429)

Explica melhor Ivan Luiz da Silva:

Seu reconhecimento pode ser realizado ao complementar-se o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Princípio da Legalidade, no sentido de alcançar-se a justificação para a aplicação da pena criminal. Assim, a conjugação desses princípios na determinação da justificação e proporcionalidade da sanção punitiva revela o Princípio da Insignificância em matéria criminal, que vem a lume para afastar do âmbito do Direito Penal as condutas penalmente insignificantes como meio de proteger o direito de liberdade e igualdade na Constituição Federal vigente.

A concretização normativa judicial de princípios implícitos assume especial

relevância por ter que primeiramente descobrir tal princípio no ordenamento jurídico

e, após isto, densificar e precisar a base normativa deste princípio descoberto.

Nesta assertiva, o autor Ivan Luiz da Silva cita o entendimento de Márcia Dometila

Carvalho (SILVA, 2005, P. 430):

Admissível uma controlada criação do direito pela jurisprudência, com a finalidade de afastar as injustiças decorrentes de uma interpretação formal, quando esta se mostrasse inábil para fazer

45

justiça na situação concreta, justiça prevista, constitucionalmente, através de valores e princípios consagrados. A criação jurisprudencial seria, aí, o elo entre o Direito Penal e o Direito Constitucional. [...]

Assim, reconhecendo-se esta possibilidade, a jurisprudência

conceituou de forma objetiva o princípio da insignificância no campo da matéria

penal:

O princípio da insignificância pode ser conceituado como aquele que permite desconsiderar-se a tipicidade dos fatos que, por sua inexpressividade, constituem ações de bagatela, afastadas do campo da reprovabilidade, a ponto de não merecerem maior significado aos tempos da norma penal, emergindo, pois a completa falta de juízo de reprovação penal. (TACrim-SP, 1997)

Destarte, reconhecido o princípio da insignificância no Direito Penal pela

doutrina, bem como a possibilidade de aplicação de princípios implícitos em casos

concretos sem a violação de normas hierarquicamente superiores, a jurisprudência

passou a aplicá-lo de forma crescente, após a análise individual de cada caso, com

o intuito de definir o grau de lesividade ao bem jurídico atacado. (Silva, 2005, p.

431) Por fim, conclui Ivan Luiz da Silva que “a concretização judicial do Princípio da

Insignificância resgatou-lhe da ordem jurídica pressuposta e o positivou numa

norma de decisão – com normatividade concreta – autorizando, assim, sua

invocação na solução de casos concretos onde ocorra uma conduta penalmente

insignificante”.

2.4.2 O bem jurídico

Como visto, não se pode estudar o princípio da insignificância sem se falar

da lesão ao bem jurídico. Serão abordados de forma mais detalhada o conceito e as

funções do bem jurídico, para um melhor entendimento da matéria, uma vez que,

até o presente momento, entende-se o princípio da insignificância como a falta ou

ínfima lesão ao bem tutelado pelo ordenamento jurídico.

O bem jurídico é um valor elegido como relevante e fundamental para a

sociedade, necessitando, assim, de proteção do Direito. De uma forma mais

detalhada, o bem jurídico penal é um valor protegido ou tutelado pelo Direito Penal,

que criminaliza condutas que contrariem ou afetem o valor protegido pela lei penal.

46

A vida, a integridade física, a saúde pública, o patrimônio, entre outros, são

exemplos de bens jurídicos. Acerca do tema, ensina Ângelo Roberto Ilha da Silva

(2003, p. 37):

Pois bem: para buscarmos um conceito de bem jurídico, devemos ter em conta que o homem vive em função de valores. Nossas ações são produtos de valorações que empreendemos a respeito de coisas, situações, fatos e também de pessoas. Na verdade, tudo radica em torno de valores. Assim, se algum valor for de tal relevância que mereça a tutela penal, configurará em bem jurídico-penal.

Adiante:

Portanto, o fundamento do direito penal material, e o que o legitima, é a tutela de valores que se expressam nos bens jurídicos. Destarte, para nós o bem jurídico-penal pode ser definido como o bem valorado como essencial à convivência social de certa comunidade, em dado momento histórico, e por isso tutelado pela norma penal.

Desta forma, a finalidade do bem jurídico é instituir um sentido para as leis

penais, ou seja, definir os objetivos de se criminalizar uma ação que se for praticada

lesionará a norma penal que tutela o valor que necessita ser protegido por esta.

Acerca deste tema, ressalta Ilha da Silva (2003, p. 39):

O bem jurídico objetiva, portanto, embasar o trabalho de seleção dos tipos penais incriminadores, que somente se justificam na medida em que tutelem valores essenciais de uma comunidade, afastando, dessa forma, incriminações de mero dever. O proibido servirá a tutelar algum valor que seja significativo para a comunidade.

Em decorrência disso, visto que o bem jurídico só admite penalizar conduta

que o lesione ou que o ponha em perigo concreto, pode-se dizer que o bem jurídico

opera como instrumento limitador da intervenção punitiva do Estado. Assim entende

Maurício Ribeiro Lopes (2000, p. 129):

A função de garantia é a que corresponde à idéia de bem jurídico como conceito limitador da atividade punitiva do Estado, que permite sancionar unicamente aquelas condutas que lesionem ou ponham em perigo os bens jurídicos.

Na visão de Nilo Batista (2001, p. 96), são cinco as funções que o bem

jurídico no Direito Penal possui: axiológica, sistemático-classificatória, exegética,

dogmática e crítica.

47

A função axiológica é a indicadora das valorações que presidiram a escolha

do julgador. Na função sistemático-classificatória, o bem jurídico atua como um

critério que ordena o conjunto das infrações particulares encontradas na parte

especial do Direito Penal. Na função dogmática, para que seja considerada típica a

conduta, deve haver lesão concreta ao bem jurídico, considerando o tipo desde a

sua concepção material. Já na função exegética, o bem jurídico age como

instrumento que possibilita determinar a natureza do tipo, dando-lhe sentido e

fundamento. E por fim, na função crítica, a finalidade é definir quais bens jurídicos

são relevantes e necessitam de tutela penal. Em conseqüência, não só criminalizam

condutas típicas, mas também descriminalizam as condutas que, por algum motivo,

deixaram de ser avaliadas como lesivas ou que não produzem mais danos à

sociedade. (BATISTA, 2001, p. 96)

2.4.3 Natureza jurídica

No ordenamento jurídico brasileiro existem três correntes diversas acerca

da natureza jurídico-penal do princípio da insignificância. A primeira considera o

princípio em estudo como uma excludente de tipicidade, a segunda como uma

excludente de antijuridicidade, e a terceira e última corrente como uma excludente

de culpabilidade.

Somente serão abordadas a primeira e a segunda correntes, excludentes

de tipicidade e de antijuridicidade, uma vez que o princípio da insignificância produz,

como principal efeito, a exclusão do caráter criminoso da conduta típica realizada

pelo agente. Portanto, não há como aceitar a corrente de excludente de

culpabilidade, já que esta tem como efeito a exclusão da pena do tipo, e não do

caráter criminoso da conduta, que permanece na ação das duas outras hipóteses.

Primeiramente, a corrente que entende que o princípio da insignificância

age como excludente de tipicidade defende a tese de que as condutas que não

lesionam o bem jurídico tutelado pela norma penal são consideradas atípicas.

Carlos Vico Mañas, pioneiro acerca deste tema, sustenta que se deve impor um

conteúdo material ao tipo penal, para que determinadas condutas que não afetem

significamente o bem jurídico tutelado sejam consideradas típicas (VICO MAÑAS,

1994, p. 58).

48

Na concepção material de tipicidade, tem que haver, necessariamente,

lesão concreta ao bem jurídico tutelado pela norma para que seja caracterizado o

tipo penal, caso contrário, não sendo comprovada tal lesão, a conduta será atípica.

(VICO MAÑAS, 1994, p.58)

Assim, entende-se que será aplicado o princípio da insignificância nos

casos em que a conduta típica não causa lesão alguma ou lesão de forma

significativa ao bem tutelado. (VICO MAÑAS, 1994, p. 59)

De outro lado, a corrente que entende que o princípio da insignificância age

como excludente de antijuridicidade defende a tese de que somente serão

consideradas insignificantes as lesões a bens jurídicos tutelados cuja a

antijuridicidade seja devidamente verificada.

Júlio Fabbrini Mirabete (2000, p. 173) entende que será considerada

antijurídica a conduta praticada que contrarie as normas do ordenamento jurídico

vigente:

O fato típico, até prova em contrário, é um fato que, ajustando-se ao tipo penal, é antijurídico. Existem, entretanto, na lei penal ou no ordenamento jurídico em geral, causas que excluem a antijuridicidade do fato típico. Por esta razão, diz-se que a tipicidade é o indício da antijuridicidade, que será excluída se houver uma causa que elimine sua ilicitude. “Matar alguém” voluntariamente é fato típico, mas não será antijurídico, por exemplo, se o autor do fato agiu em legítima defesa. Nessa hipótese não haverá crime. A antijuridicidade, como elemento na análise conceitual do crime, assume, portanto, o significado de “ausência de causas excludentes de ilicitude”. A antijuridicidade é um juízo de desvalor que recai sobre a conduta típica, no sentido de que assim o considera o ordenamento jurídico.

Na concepção material de antijuridicidade, haverá a conduta considerada

típica e a lesão ao bem jurídico protegido. Entretanto, o ordenamento jurídico

brasileiro justifica tal conduta praticada, excluindo a ilicitude do ato diante do

princípio da insignificância pelo fato ou ato não atingir de forma concreta o bem

jurídico tutelado.

Verificou-se, com o estudo, que o princípio da insignificância pode agir tanto

como excludente de tipicidade, na qual, por meio da concepção material de

tipicidade, a conduta passa a ser caracterizada como atípica; quanto excludente de

antijuridicidade, na qual, embora a conduta seja caracterizada como típica, não é

antijurídica, visto que o ordenamento jurídico justifica a conduta realizada pelo

49

agente, por meio do princípio da insignificância, que atua como causa de excludente

de antijuridicidade.

2.4.4 O princípio da insignificância e o princípio da lesividade/ofensividade

O princípio da lesividade ou da ofensividade entende que apenas as

condutas que lesionarem o bem jurídico protegido é que devem ser punidas

penalmente, isto é, a conduta somente será incriminada se ocorrer um resultado

material. Segundo Salo de Carvalho (1996, p. 89), o princípio da ofensividade

“dispõe que somente poderá ser aplicada pena no momento em que a ação infrinja

bem jurídico determinado, produzindo-lhe dano – resultado material”.

Ao ver de Nilo Batista (2001, p. 91), o princípio da ofensividade possui

quatro funções específicas:

a) proibição de incriminações de atitudes internas; b) proibição de criminalizar condutas que não excedam o âmbito do próprio autor; c) proibição de incriminações de simples estados ou condições existenciais; d) proibição de criminalização de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico específico.

A primeira função citada, a proibição de incriminações de atitudes internas,

compreende as idéias, desejos, sentimentos, convicções e aspirações das pessoas,

prescreve que não podem ser punidas penalmente, mesmo se cogitada a prática de

delitos. (BATISTA, 2001, p. 92)

A segunda função é a proibição de se criminalizar condutas que não

excedam o âmbito do próprio autor, como por exemplo os atos preparatórios para o

cometimento de um crime, onde ainda não tenha sido iniciada a sua execução, ou,

também, a autolesão, como visto anteriormente. Estes atos não poderão ser

punidos. (BATISTA, 2001, p. 92)

Na terceira função é proibida a incriminação de simples estados ou

condições existenciais Diz respeito à autonomia moral da pessoa, que não poderá

ser julgada pelo que “é”, e sim pelo que faz, ou seja, pelos seus atos, uma vez que

o Direito é um ordenamento regulador de condutas. (BATISTA, 2001, p. 93)

Entretanto, o artigo 59, caput, do Código Penal, possibilita ao julgador a

aplicação da pena sob a análise de critérios relacionados ao caráter do indivíduo,

50

não se restringindo somente ao fato praticado. Percebe-se que o nosso Estatuto

Repressivo vincula a culpabilidade ao caráter do agente ou à sua periculosidade, e

não à capacidade de autodeterminação, seguindo as teorias positivistas etiológicas.

(CARVALHO, 1996, p. 68) Veja-se:

O juiz, atendendo a culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

Acerca da mencionada análise do caráter do agente e dos aspectos da sua

vida para a aplicação da reprimenda penal, leciona Vera Regina Pereira de

Andrade:

Doravante, a observação do delinqüente deve remontar não só às circunstâncias, mas às causas do seu crime; procurá-lo na história de sua vida, sob o triplo ponto de vista da organização, da posição social e da educação, para conhecer e constatar as inclinações perigosas da primeira, as predisposições nocivas da segunda e os maus antecedentes da terceira. Esse inquérito biográfico, antes de converter-se em condição do sistema penitenciário, é parte essencial da instrução judiciária, para a aplicação da pena. Deve, portanto, acompanhar o detento do tribunal à prisão, mas igualmente completar, controlar e retificar seus elementos no decorrer do cumprimento da pena. (2003, p. 250/251)

A quarta função, que proíbe a incriminação de condutas desviadas que não

afetem qualquer bem jurídico, refere-se a condutas desaprovadas pela sociedade,

ou, também, de condutas que somente podem ser objeto de julgamento moral.

(BATISTA, 2001, p. 94)

Esta última função é constitucionalmente assegurada. Em tese, procura-se

respeitar as diferenças uns dos outros, possibilitando aos cidadãos exercer práticas

e hábitos não comuns à maioria. Cita-se os artigos 3°, inciso IV e 5°, incisos VIII e

IX, da Constituição Federal de 1988:

Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

[...] Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

51

[...] VIII – ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Portanto, de acordo com o princípio da lesividade ou ofensividade, somente

as condutas que afetem de forma concreta o bem jurídico tutelado pela norma

podem ser penalizadas. Caso esta conduta não lesione o bem jurídico, ocorre uma

limitação da intervenção penal, que entende que o Direito Penal só pode intervir

quando houver grave ofensa ao bem jurídico, ficando proibida a penalização destas

condutas, mesmo sendo elas formalmente típicas. (LOPES, 2000, p. 318)

Pode-se concluir que o princípio de lesividade ou ofensividade serve como

base para a aplicação do princípio da insignificância, visto que a conduta somente

será considerada atípica se o bem jurídico tutelado pela norma não sofrer qualquer

ofensa concreta. Em outras palavras, o princípio da lesividade ou da ofensividade

comprova se ocorreu ou não a lesão, demonstrando a intensidade desta, e o

princípio da insignificância, baseado na demonstração da ocorrência da lesão pelo

princípio da lesividade ou da ofensividade, defende se tal lesão deve ou não ser

criminalizada, e conseqüentemente, penalizada.

2.4.5 A aplicabilidade do princípio da insignificância pelos tribunais brasileiros para considerar atípico o consumo de ínfima quantidade de droga

No entendimento predominante na jurisprudência, até mesmo do STF, e em

grande parte da doutrina, os crimes contra a saúde pública são crimes de perigo

abstrato e a finalidade do Estado é proteger os interesses coletivos.

Para Ângelo Roberto Ilha da Silva (2003, p. 72), os crimes classificados

como de perigo abstrato são os que oferecem perigo na própria conduta, quer dizer,

há presunção jure et de jure. Nestes crimes, não é necessário portanto a verificação

da ocorrência ou não de lesão ao bem jurídico protegido pela norma, pois a conduta

é automaticamente tipificada como crime.

No mesmo sentido Heleno Cláudio Fragoso (1988, p. 200) afirma que “a

maioria dos códigos modernos situa estes crimes entre os ofensivos a interesse

52

coletivo, ou seja, dirigidos diretamente contra o corpo social tendo em vista o perigo

que acarretam para indeterminado número de pessoas”. Assim, pacificou-se o

entendimento, não importando se realmente ocorreu lesão ao bem jurídico tutelado,

uma vez que a quantidade da droga apreendida e o grau de lesividade da ação não

altera a presunção absoluta de perigo para o bem jurídico saúde pública, bastando

a realização da conduta tipificada.

Entretanto, diante dos avanços na Teoria do Delito, o tipo penal passou a

ter elementos subjetivos, anteriormente encontrados na culpabilidade. O tipo penal

é posto como o núcleo da Dogmática Penal, concretizando-se o princípio da

legalidade, no qual restou claramente definido que não há crime sem tipo legal, pois

somente por meio deste é que são definidos os crimes formalmente. (CARVALHO,

1996, p. 50/51)

Como já exposto, a função da criminalização de uma conduta é a proteção

do bem jurídico, sendo, este último, elemento limitador do tipo penal que permite

criminalizar somente as condutas que o lesionem. Por meio do princípio da

intervenção mínima e o falido sistema penal, o Direito Penal deveria ser utilizado

somente nos crimes de maior gravidade e quando já tiverem sido esgotadas outras

formas de resolução de conflitos. Tornou-se inoportuno, portanto, dirigir-se ao

sistema penal como forma primária, uma vez que ele se mostra inoperante e

desgastante aos cidadãos. (CARVALHO, 1996, p. 56/57)

Desta forma, não basta a simples adequação da conduta praticada ao tipo

legal do crime, é necessário que ocorra uma lesão concreta ao bem jurídico, sob a

condição desta lesão se tornar insignificante. Assim, o Direito Penal é obrigado a

ocupar-se somente dos crimes que possuem maior gravidade, aqueles que

lesionem de forma efetiva o bem jurídico protegido pela norma. (CARVALHO, 1996,

p. 57) É crescente este posicionamento nos Tribunais:

Tratando-se de crime contra a saúde pública, a objetividade jurídica concentra-se na própria saúde pública. O delito só se tipifica e o fato só se torna punível quando existe dano efetivo ou concreto perigo de dano a saúde pública. (HC 25.832 – TJRS 89/28)

Seguindo este raciocínio, diversos tribunais vêm adotando tal

posicionamento, julgando atípicas as condutas de consumo e porte de drogas

quando a quantidade da substância entorpecente apreendida em poder do indivíduo

é muito pequena.

53

Com o fundamento no princípio da insignificância, está sendo possível

absolver o indivíduo quando a quantidade de droga apreendida em seu poder não é

capaz de produzir dano ao bem jurídico tutelado, neste caso, a saúde pública.

Colhe-se algumas decisões, de diferentes Tribunais, inclusive do Superior Tribunal

de Justiça, que passaram a julgar neste sentido:

RESP PENAL - ENTORPECENTE - QUANTIDADE ÍNFIMA - O crime, além da conduta, reclama resultado, ou seja, repercussão do bem juridicamente tutelado, que, por sua vez, sofre dano, ou perigo. Sem esse evento, o comportamento é penalmente irrelevante. No caso dos entorpecentes, a conduta é criminalizada porque repercute na saúde (usuário), ou interesse público (tráfico). Em sendo ínfima a quantidade encontrada (maconha) é, por si só, insuficiente para afetar o objeto jurídico. (TJSC - RESP nº 164.861/SP - Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro - j. 03.12.98 - DJU 17.02.99) [...] PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 16 DA LEI Nº 6368/76. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. Quando ínfima a quantidade da droga apreendida (2,0g), e estava o réu caminhando sozinho com as baganas no bolso, resta presumido que o fato não tem repercussão na seara penal. No caso não ocorreu efetiva lesão à bem jurídico tutelado, enquadrando-se o fato no princípio da insignificância. NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO MINISTERIAL E DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO DA DEFESA. (TJRS - Recurso Crime Nº 71001142934, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Alberto Delgado Neto, Julgado em 16/04/2007) [...] PENAL. ENTORPECENTES. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. - Sendo ínfima a pequena quantidade de droga encontrada em poder do réu, o fato não tem repercussão na seara penal, à mingua de efetiva lesão do bem jurídico tutelado, enquadrando-se a hipótese no princípio da insignificância. - Recurso especial conhecido. (Resp 286.178, Rel. Min. Vicente Leal, j. 13.02.2001.) [...] Penal. Apreensão de 0,25 de cocaína. Irrelevância penal – A apreensão de quantidade ínfima de droga – 0,25 g -, sem qualquer prova de tráfico, não tem repercussão penal, à mingua de lesão ao bem jurídico tutelado, enquadrando-se o tema no campo da insignificância. (HC – 7977/RJ – Relator Min. Fernando Gonçalves – DJU 14.06.99, p. 227)

Em suma, disserta Luiz Flávio Gomes (2001, p. 453) que

tanto a doutrina quanto a jurisprudência acolhem o princípio da insignificância como

“instrumento auxiliar de interpretação restritiva dos tipos penais”. E continua

afirmando que sua conseqüência é de “excluir do âmbito da tipicidade as condutas

que não afetam de modo significativo o bem jurídico, que de todo modo não

54

estariam compreendidas na ‘finalidade’ da norma ou em seu ‘sentido material’”. Não

basta, pois, para uma condenação, a mera realização da conduta, é preciso que

dentro de uma perspectiva material, a interpretação de acordo com o bem jurídico

protegido, bem como, levar em conta o princípio da fragmentalidade (somente serão

punidos os ataques significativos ao bem jurídico).

2.5 Alterações da Lei 10.409/02

A Lei 6.368, de 21 de outubro 1976, concretizou o estereótipo

do usuário e do traficante, determinou condições para tratamento e recuperação a

que o usuário/dependente ficaria sujeito, independente dele ter cometido ou não o

delito, articulando, de forma implícita, que a dependência deveria ser considerada

perigo social. Neste sistema proibicionista, havia uma maior preocupação em punir-

se a posse de drogas à proporcional tratamento adequado e eficaz ao

usuário/dependente. (CARVALHO, 1997, p. 37)

Após vinte e seis anos de vigência da lei acompanhou-se a

modificação da visão proibicionista. Para muitos penalistas, ela estava ultrapassada

pelas modificações que a sociedade brasileira sofreu ao longo dos anos e não

servia mais como instrumento de controle penal eficaz e adequado, uma vez que se

encontrava totalmente divorciada da finalidade a que se propunha, qual seja a

prevenção, tratamento e repressão aos usuários e traficantes de substância

entorpecente. (BITTENCOURT, 1993, pág. 202)

Diante da falência do sistema prisional, principalmente no caso

de crimes relacionados a tóxicos, resultava imprescindível transformar a cultura

dominante, baseada na opinião de que o cárcere seria a verdadeira punição.

(BITTENCOURT, 1993, pág. 202)

Assim, foi elaborada e aprovada a Lei 10.409, de 11 de janeiro

de 2002, pautada na prevenção, tratamento, fiscalização, controle e repressão à

produção, ao uso e ao tráfico ilícito de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que

causem dependência física ou psíquica. Estas substâncias que são relacionadas

pelo Ministério da Saúde, com o intuito de substituir a anterior. A lei 10.409/02

preconizava a distinção do tratamento dispensado anteriormente ao usuário-vítima,

55

mais benigno ao portador de substância tóxica para uso próprio. (HABIB, Revista

Jurídica Consulex, nº 139, p. 13)

A partir da entrada em vigor do novo diploma legal, percebe-se

que houve grande inquietação por parte dos doutrinadores, estudiosos e

aplicadores do Direito, haja vista o grande número de equívocos legais presentes

na nova lei, que não poderiam ser mantidos por afrontarem, alguns deles, a própria

Constituição. (GUIMARÃES, 2004, p. 20)

Esta lei, idealizada para disciplinar toda a questão referente às

drogas em nosso país, tanto nos aspectos jurídicos quanto administrativos, acabou

sendo parcialmente vetada pelo Presidente da República, que aprovou o Projeto de

Lei n° 1.873, de 1991 (n° 105/96 no Senado Federal), fundamentado na sua

inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. O veto alcançou cerca

de 30% do texto integral. Em linhas gerais, eis as razões dos vetos:

A inconstitucionalidade de artigos isolados do projeto, bem como o veto sugerido a todo o Capítulo III, que trata dos Crimes e das Penas, resulta na incapacidade de o sistema legal proposto substituir plenamente a Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976, que "dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências”. Além disso, o espírito do projeto é compatível com a Lei no 6.368/76, que, embora carente de atualização, vem permitindo a sedimentação da jurisprudência ao longo de mais de duas décadas. O legislador, ciente dos avanços tecnológicos, da complexidade crescente da criminalidade, e da necessidade de tratamento jurídico diferenciado entre traficantes e usuários de droga, aprovou o projeto. Todavia, repita-se, a incompatibilidade de alguns dispositivos com a Constituição barrou alguns avanços. Por causa disso, estuda-se a elaboração de projeto de lei em regime de urgência para, sanados os vícios, alcançar à sociedade os aspectos positivos que o legislador sensivelmente expressou. Assim, o projeto soma-se à ordem legal já vigente. Apenas são derrogadas as normas que tratam de matéria especificadamente veiculada nos artigos, parágrafos e incisos sancionados. (Mensagem de Veto 25)

A lei é extremamente confusa e dá azo a enormes confusões

interpretativas. Das boas novidades, algumas foram vetadas, como pode ser

conferido adiante. É de uma atecnia absoluta, sem falar que desatendeu

manifestamente a Lei Complementar nº. 95/98 (alterada pela Lei Complementar nº.

107/2001), que dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das

leis. Como bem acentuou João José Leal, "ao contrário de trazer consigo a solução

56

para as questões jurídico-penais e processuais relativas à matéria, acabou se

constituindo num grande problema de hermenêutica jurídica”. (Boletim do IBCCRIM,

nº 118, setembro/2002).

Em resumo, dentre os diversos dispositivos da lei que foram

vetados, encontra-se o capítulo que tratava do consumo de drogas, permanecendo

vigente, quanto a essa parte da matéria, a Lei nº 6368/76. Em conseqüência, o

crime de uso continuou recebendo tratamento penal rígido, por meio da imposição

de pena privativa de liberdade ao usuário de drogas.

Com a promulgação da Lei n.º 10.409/02, desestimulou-se um

corajoso avanço no caminho da diminuição dos prejuízos causados pelas drogas.

Perdeu-se a oportunidade, ainda, de consolidar a idéia de que qualquer legislação

sobre o tema deve ter como ponto de partida o combate à estigmatização do

usuário, renunciando à utilização do direito penal como solução de problemas para

os quais ele não encontrou solução. (Boletim IBCCRIM, nº 111, fevereiro/2002)

57

3 AS MODIFICAÇÕES LEGAIS RELATIVAS À FIGURA DO USUÁRIO NA NOVA

LEI 11.343/06

3.1 ELABORAÇÃO DA LEI 11343/06

O Brasil, com a Nova Lei de Drogas, n. 11.343, promulgada em 23 de

agosto de 2006, adotou uma nova política criminal no tratamento do usuário de

substâncias entorpecentes, adequando-se às novas tendências provenientes do

direito alienígena.

Luiz Flávio Gomes destaca que, na atualidade, em termos mundiais, quatro

são as tendências político-criminais em relação às drogas:

A primeira segue o Modelo norte-americano, que defende a abstinência e a

tolerância zero. As drogas são tratadas como problema policial e particularmente

militar. A política criminal norte-americana, para resolver o problema das drogas,

adota o encarceramento em massa dos envolvidos, tanto usuários quando

traficantes. ‘”Diga não às drogas” é um programa populista, de eficácia

questionável, mas bastante revelador da política norte-americana. (GOMES et al.,

2006, p. 100)

Outra tendência destacada pelo autor é o Modelo liberal radical

(liberalização total), que enfatiza o caráter classista do sistema penal,

potencializado no caso do consumo de drogas. Segundo ele, tal corrente, pautada

pelos clássicos pensamentos de Stuart Mill, vem defendendo a necessidade de

liberação total da droga, sobretudo frente ao usuário; salienta que a questão da

droga potencializa o caráter seletivo do direito penal, realçando que somente pobres

vão para a cadeia. (GOMES et al., 2006, p. 101)

A tendência que vem ganhando força em toda a Europa é o Modelo de

redução de danos. Luiz Flávio Gomes explica que na Europa adota-se uma

estratégia, em oposição à política norte-americana, totalmente divorciada com o

modelo que prega a abstinência e a tolerância zero. Desta forma, esse modelo

confia que “a ‘redução de danos’ causados aos usuários e a terceiros (entrega de

seringas, demarcação de locais adequados para o consumo, controle do consumo,

assistência médica, etc.) seria o correto enfoque para o problema”. E segue,

discorrendo que “esse mesmo modelo, por outro lado, propugna pela

descriminalização gradual das drogas assim como por uma política de controle

58

(‘regulamentação’) e educacional; droga é problema sobretudo de saúde pública”.

(GOMES et al., 2006, p. 102)

O quarto e último modelo é o da chamada justiça terapêutica, que propugna

pela disseminação do tratamento como a forma adequada para cuidar do usuário ou

do usuário/dependente. Centrando sua atenção nessa reação, entende que o uso

de drogas deve ser encarado como problema de saúde pública, cabendo a

imposição coercitiva de tratamento ao usuário. (GOMES et al., 2006, p. 103)

A crítica desferida contra tal modelo é centrada na não diferenciação entre o

usuário e o dependente, impondo-se tratamento a ambos, podendo tornar suas

conseqüência mais perniciosas do que a completa omissão estatal.

Elisangela Melo Reghelin, tratando das diversas políticas adotas no

combate às drogas, destaca:

Dentro desse panorama internacional destacam-se os Estados Unidos, ocupando a liderança das posições mais repressivas, e, por outro lado, a Holanda, contrapondo a tendência ‘universal’, adotando desde o inicio da década de 70 uma política tolerante em relação a drogas como a maconha. É bom lembrar que, nesse mesmo período, os EUA, ainda no governo Nixon, declaram ‘guerra as drogas’, nome pelo qual se convencionou chamar, desde então, a política norte-americana de combate. Contraditoriamente às pretensões dessa prática, a amplitude do consumo de drogas licitas e ilícitas e dos problemas a ele associados naquele país ainda são os maiores do mundo. (REGHELIN, 2007, p. 59)

A moderna Criminologia tem buscado, frente às danosas e estigmatizantes

conseqüências do processo de encarceramento, em especial em relação ao usuário

de droga, novos rumos para o enfrentamento de condutas ilícitas, objetivando a

redução de danos e afinando-se com os discursos minimalistas.

Neste sentido, Zaffaroni e Pierangeli observam que:

[...] ante a constatação de que em toda a sociedade existe o fenômeno dual ‘hegemonia-marginalização’, e que o sistema penal tende, geralmente, a torná-lo mais agudo, impõe-se buscar uma aplicação das soluções punitivas da maneira mais limitada possível. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 80)

Zaffaroni e Pierangeli (1999, p. 81) asseveram ainda, voltando suas

atenções ao caso específico dos países latino-americanos, que o princípio da

intervenção mínima tem mais razões ainda para ser consagrado:

[...] não somente pelas razões que se apresentam válidas nos países centrais, mas também em face de nossa característica de

59

países periféricos, que sofrem os efeitos do injusto jushumanista de violação do direito ao desenvolvimento.

Assim, o princípio da intervenção mínima, que visa evitar o processo de

encarceramento, vem ganhando força junto ao pensamento criminológico brasileiro

e mundial, sendo que melhor se harmoniza com ele, tratando de políticas criminais

de combate às drogas, o modelo Europeu de redução de danos, que vem sendo

contemplado pela doutrina brasileira e que foi inspirador da Lei n. 11.343/2006, a

nova Lei de Drogas.

Neste sentido, tem-se entendido que:

O Direito Penal não deve invadir as áreas da moral, da ideologia ou do bem-estar social, o que corresponderia a ultrapassar seus próprios limites, sem prejuízo de seu papel fundamental de defender os valores e interesses indispensáveis à ordem social” (SMANIO, 1998, p. 26)

Tal visão tem focado o usuário de drogas como merecedor de auxílio por

parte do estado, não de repressão jurídico-penal.

São Centralizadas as opiniões em torno do grau de ofensividade da conduta

do usuário. A orientação vem sendo a de que o uso de drogas volta seu potencial

danoso principalmente, senão exclusivamente, para o próprio usuário. Segundo

Isaac Sabbá Guimarães:

Deverá haver um apelo para a noção de adequação da norma jurídico-penal à ordem social vigente. Assim, se a Constituição reconhecer o pluralismo da sociedade brasileira (preâmbulo da CR), deverá viger um regime de maior tolerância e respeito pela autodeterminação de cada individuo, inclusive em relação às suas opções de vida (desde que não afetem a harmonia e os valores da sociedade), mesmo que sejam autodestrutivas. Sob o principio da proporcionalidade, deverá, ainda, a lei penal mostrar-se necessária para a solução de certos conflitos ou problemas sociais. Quer isto dizer que, havendo um convencimento prévio de que os fenômenos do uso e da dependência são verdadeiros problemas de saúde, deixará a lei penal de ser necessária. Além do mais, correlacionado com o princípio da dignidade da pessoa humana, poderíamos referir que a lei penal cria estigmas indeléveis na pessoa de um doente (o tóxico dependente), já que ele passa a ser tratado como um autêntico criminoso. (GUIMARÃES, p. 17)

Neste esteio é que a nova Lei procura auxiliar o usuário, visando dar

esclarecimento sobre um problema que é antes de saúde pública do que

propriamente criminal.

60

3.2 O CONSUMO ANTE O ARTIGO 28 DA LEI 11.343/06

A Lei 11.343/2006, que substituiu as disposições legais que anteriormente

tratavam do combate ao tráfico e uso de drogas, regulou a situação do usuário em

seu artigo 28, assim dispondo:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1° Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. § 2° Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. § 3° As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses. § 4° Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses. § 5° A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. § 6° Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I - admoestação verbal; II - multa. § 7° O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

Cinco, agora, são as condutas sancionadas: adquirir, guardar, ter em

depósito, transportar e trazer consigo. Adquirir significa comprar, obter a posse da

droga; guardar exprime a conduta de ocultar, ter sob guarda, sem que terceiros

saibam dessa posse; ter em depósito alcança a conduta de manter a droga sob

controle, sob imediato alcance e disponibilidade; transportar expressa a idéia de

61

deslocamento, de um local para outro; trazer consigo é a mesma coisa que portar a

droga, tendo disponibilidade de acesso, de uso. (GOMES et al., 2000, p. 119-120)

O novo tipo penal afeto às condutas que antecedem ao uso, parti do núcleo

do art. 16 da Lei 6.368/76, acrescentando as condutas de quem tiver em deposito e

transportar drogas para uso seu. São ações coincidentes com as de tráfico, não

prevendo o legislador regras objetivas que diferenciem o usuário do traficante.

(GUIMARÃES, 2006, p. 32)

Distinguir o crime de trafico ilícito de entorpecente do simples porte para o

uso nunca foi tarefa fácil e continuará a ser árdua atribuição do magistrado.

Guilherme de Souza Nucci afirma ser:

[...] fundamental que se verifique, para a correta tipificação da conduta, os elementos pertinentes à natureza da droga, sua quantidade, avaliando local, condições gerais, circunstancias envolvendo a ação e a prisão, bem como a conduta e os antecedentes do agente. (NUCCI, 2006, p. 759).

Luiz Flávio Gomes, visando objetivar minimamente os critérios de distinção

entre as duas figuras típicas, afirma que:

[...] são relevantes: o objeto material do delito (natureza e quantidade da droga), o desvalor da ação (local e condições em que ela se desenvolveu) assim como o próprio agente do fato (suas circunstâncias sociais e pessoais, a conduta e antecedentes). (GOMES et al., 2006, p. 132)

Ou seja, fica claro que a configuração de crime de uso ou de tráfico

dependerá do caso concreto. Utilizando-se da proporcionalidade e do bom senso o

julgador deverá sopesar as circunstâncias do fato, optando sempre, em caso de

dúvida, por enquadrar a conduta no tipo penal mais brando do artigo 28.

Isaac Sabbá Guimarães destaca que “o agente que consumiu

completamente a droga e que não deixou vestígios da ação física, não pode ser

conduzido à condenação por falta de configuração do delito”. (GUIMARÃES, 2006,

p. 31). Afinal, sem a apreensão da substância (sem o objeto material do delito), não

é possível a constatação de sua idoneidade tóxica. Não se comprova, portanto, a

materialidade da infração.

Elemento normativo do tipo que merece destaque é a expressão sem

autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, pois

constitui fator vinculado à ilicitude, inserido no tipo incriminador torna-se elemento

62

deste e, uma vez que não seja preenchido, transforma o fato em atípico. A

constatação dessa determinação legal ou regulamentar deve ser feita pelo juiz

(NUCCI, 2006, p. 756).

Outro ponto inovador trazido pela Lei 11.343/2006 foi em relação ao plantio

de semente ou planta voltada para a preparação de substância entorpecente

visando o consumo pessoal. Antes do advento da Nova Lei de Drogas não havia

previsão legal para este tipo de conduta, somente era previsto o plantio para fins de

traficância. Ao se deparar com tais situações, três opções eram postas diante do

julgador. A primeira era equiparar o fato ao uso; a segunda era enquadrar no tipo de

tráfico; a terceira e ultima era entender pela atipicidade do fato. (CAPEZ, 2006, p.

70)

Fernando Capez entendia que “o plantio para uso próprio não estava

previsto em lugar nenhum, nem como figura equiparada ao art. 12, nem como figura

analógica ao art. 16: tratava-se de fato atípico”. (CAPEZ, 2006, p. 71)

A partir da Lei 11.343.2006 não há mais que se falar em crime de tráfico

diante do caso sob comento, semear (espalhar sementes para que germinem);

cultivar (propiciar condições para o desenvolvimento da planta); colher (recolher o

que a planta produz) são as condutas equiparadas à do usuário descritas no caput

do artigo 28. (NUCCI, 2006, p. 758-759).

O bem jurídico aqui contemplado é a saúde pública, exigindo-se para a

caracterização da infração, além do dolo, uma finalidade (intenção) especial do

agente, que seja a droga destinada “para consumo pessoal”. Esse é o dolo

específico (como diz a doutrina italiana) ou elemento subjetivo do injusto (como diz

a doutrina alemã) que o tipo requer. (GOMES et al., 2006, p. 120)

Não foi prevista a forma culposa do crime em comento (que é atípica,

portanto). Da mesma forma a tentativa não pode ser punida. Assevera Luiz Flávio

Gomes que “do ponto de vista fático é possível. Por exemplo: tentar adquirir droga

para consumo pessoal. Mas para essa conduta nenhuma sanção foi contemplada

pela nova Lei”. (GOMES et al., p. 122)

Guilherme de Souza Nucci observa que o tipo sob exame se trata de norma

penal em branco, ou seja, o tipo penal depende de um complemento a lhe dar

sentido e condições para aplicação.

63

O termo drogas não constitui elementos normativos do tipo, sujeito a uma

interpretação valorativa do juiz (NUCCI, 2006, p. 755). Tal complemento é dado

pela lista de drogas expedida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância

Sanitária), que é vinculada ao Ministério da Saúde.

Porém, pode-se afirmar que a principal modificação promovida pela Lei 11.343/2006 foi a consolidação de um política criminal que vem sendo defendida pela moderna criminologia em relação ao usuário, a adoção da política de redução de danos, excluindo a possibilidade de cominação de pena de privação de liberdade ao sujeito que comete o fato típico.

Parece que, temendo a reação social à eventual descriminalização da

conduta do consumidor, o legislador preferiu eliminar a pena privativa de liberdade,

optando por outras formas de sanções extremamente brandas. (NUCCI, 2006, p.

756)

Tal modificação no tratamento despendido ao usuário passa por uma

mudança paradigmática em relação à posição do sujeito frente ao direito penal.

Deixa o usuário de ser visto como objeto do processo de ressocialização (hoje

desacreditado), e passa a ser tratado como sujeito de direitos, resguardando-se sua

esfera de liberdade, de autodeterminação, dentro da qual a ingerência estatal nada

mais é que violação de garantia fundamental. (NUCCI, 2006, p. 756)

Dentro dessa nova perspectiva, que observa a temática das drogas menos

como questão criminal e mais como questão de saúde pública, que o legislador

pátrio, abandonando as penas de privação de liberdade, sancionou a conduta

daquele que “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo,

para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com

determinação legal ou regulamentar”, com as penas alternativas de advertência

sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida de

comparecimento a programa ou curso educativo. O estudo destas sanções será

aprofundado no item seguinte. (NUCCI, 2006, p. 757)

Em relação à Lei Penal no tempo, Guilherme de Souza Nucci observa que:

[...] o crime de consumo de drogas para uso pessoal (atual art. 28) tem perfil evidentemente favorável, em comparação com o delito anteriormente previsto no art. 16 da Lei 6.368/76. Não há mais pena privativa de liberdade nesse contexto. Portanto, entrando em vigor a nova lei, todos os condenados com base no art. 16, que sejam eventualmente presos, devem ser imediatamente libertados,

64

substituindo-se a pena privativa de liberdade pelas novas punições previstas no art. 28ª da Lei 11.343/2006. (NUCCI, 2006, p. 757).

Por fim, cabe ressaltar que a tentativa de adoção da justiça terapêutica,

que constava no Projeto que culminou com a promulgação da Lei 10.409/2002, o

qual previa como pena a submissão a tratamento, foi completamente abandonada

pela Lei 11.343.2006. O que fez o novo diploma foi somente, no § 7° do artigo 28,

determinar que o poder público disponibilize ao usuário, gratuitamente, tratamento

especializado, sem qualquer espécie de imposição. (GOMES et al., 2006, p. 138)

Assim afirma Luiz Flávio Gomes:

De acordo com o diploma legal em questão cabe ao juiz determinar ao Poder Público (ou seja: ao setor do Poder Público que cuida da administração da saúde pública) que coloque a disposição do infrator o referido tratamento. Verifica-se que o tratamento deve ser oferecido (não imposto) ao infrator. É da essência de todo tratamento a adesão do sujeito. (GOMES et al., 2006, p. 138)

3.3 O CONSUMO E AS PENAS ALTERNATIVAS

Antes mesmo do advento da Lei 11.343/2006 já vinha se desenhando uma

nova tendência de enfrentamento dos chamados crimes de menor potencial

ofensivo, dentre os quais se inseria a figura típica do usuário de substâncias

entorpecentes. Inseria-se, pois, segundo Guilherme de Souza Nucci, ora deve ser

considerado de “ínfimo potencial ofensivo” o crime previsto no art. 28 da Lei, tendo

em vista que, “mesmo não sendo possível a transação, ainda que reincidente o

agente, com maus antecedentes ou péssima conduta social, jamais será aplicada

pena privativa de liberdade”.(NUCCI, 2006, p. 755).

A moderna política criminal vinha orientando o operador do direito no

sentido de, sempre que diante de um crime de menor potencial ofensivo, evitar a

pena restritiva de liberdade, como é o caso do crime de uso.

O art. 44 do CP, com a redação dada pela Lei 9.714, de 25 de outubro de

1998, reflete bem esta política criminal, deixando implícita a orientação de que não

se aplicará pena restritiva de liberdade aos crimes de menor potencial ofensivo,

ficando tal punição reservada para os crimes punidos com mais de 4 anos,

cometidos mediante uso de violência ou de grave ameaças, quando o réu for

65

reincidente em crime doloso ou quando as circunstancias pessoais indicarem sua

necessidade. (GUIMARÃES, 2006, p. 36-37)

O Código Penal, reservando a pena privativa de liberdade para os casos

mencionados, elenca, em seu artigo 43, uma série de penas alternativas que seriam

aplicadas em substituição àquelas nos demais casos. São elas: prestação

pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviço à comunidade ou a

entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana.

(GUIMARÃES, 2006, p. 36-37)

Neste contexto, Fernando Capez afirma que, para o crime de uso, vinha

sendo aplicada, via de regra, o sursis e a substituição por pena restritiva de direitos,

se presentes às condições gerais do Código Penal. (CAPEZ, 2006, p. 67/68)

Acerca do assunto se manifestou Luiz Flávio Gomes da seguinte forma:

Ao usuário não se comina pena de prisão. Pretende-se que nem sequer ele passe pela polícia. O infrator da Lei será enviado diretamente aos juizados Criminais, salvo onde inexistem tais juizados de plantão (art. 48, §2°). Não há que se falar, de outro lado, em inquérito policial, sim em termo circunstanciado. Não é possível a prisão em flagrante (art. 48, §2°): o agente surpreendido é capturado, mas não se lavra auto de prisão em flagrante (no seu lugar, elabora-se o termo circunstanciado). A competência para a aplicação de todas as medidas alternativas é dos Juizados Criminais. Na audiência preliminar é possível a transação penal, aplicando-se as penas alternativas do art. 28. Não aceita (pelo agente) a transação penal, segue-se o rito sumaríssimo da Lei 9.099/95. Mas, no final, de modo algum será imposta pena de prisão, sim, somente as medidas alternativas do art. 28. (GOMES et al., 2006, p. 7)

Isso significa uma nova despenalização a partir do próprio diploma. Em

hipótese alguma será imposta pena restritiva de liberdade ao autor de crime de uso,

cabendo somente a aplicação de medidas alternativas, dentre as quais, a

“advertência”, novidade nessa seara, a prestação de serviços à comunidade e a

medida de comparecimento a programa ou curso educativo. As medidas poderão

ser aplicadas isoladas ou conjuntamente, mas em caso de descumprimento, caberá

admoestação verbal e/ou multa, nunca a pena de prisão. (REGHELIN, 2007, p. 69-

70)

Desta forma, observa Júlio Victor dos Santos Moura, a pena restritiva de

direitos é selecionada pelo legislador como resposta penal cabível a pratica do

delito capitulado no art. 28 da Lei n° 11.343/06, o que fez com que as penas

66

alternativas passassem, ao lado das penas privativas de liberdade e de multa, a

integrar o rol das sanções penais que podem ser aplicadas diretamente pelo

Magistrado (Moura, 2006, p. 99).

Não se trata mais de definir a pena restritiva de liberdade e promover a sua

substituição por pena alternativa, mas sim se comina diretamente a media

alternativa, que passou a ser pena principal.

A partir de então somente três sanções podem ser impostas àquele que é

surpreendido ao “adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trouxer consigo,

para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em descordo com determinação

legal ou regulamentar”, são elas: advertência sobre os efeitos das drogas,

prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a

programa ou curso educativo.

Da redação inicial do Projeto ao texto final da nova Lei de Drogas, algumas

alterações foram efetuadas no tocante às penas a serem aplicadas.

Observa Isaac Sabbá Guimarães que “Incluiu-se, no entanto, a pena de

‘advertência sobre os efeitos da drogas’, e excluíram-se as medidas de ‘proibição

de freqüência a determinados lugares’ e de ‘submissão a tratamento’“

(GUIMARÃES, 2006, p. 16). Tais modificações são resultado do descrédito da

justiça restaurativa. Entendeu o legislador que nenhum tratamento que careça da

voluntária adesão do paciente surtirá algum efeito positivo se imposto.

Ressalte-se que, nem mesmo ao ofertar a transação penal (art. 76 da Lei

9.099/95), poderá o Ministério Público propor a cominação de pena alternativa

diferente das elencadas no artigo 28 da Lei 11.343/2006. Neste sentido, ensina

Rômulo de Andrade Moreira que “a proposta terá como objetivo uma das medidas

educativas (como define a própria lei) prevista no art. 28”. (MOREIRA, 2006, p. 76).

Guimarães conceitua a pena de advertência da seguinte forma:

A advertência consiste em explicar ao infrator os efeitos provocados pelo uso de drogas e, ao que nos parece, aqueles mais diretamente relacionados à saúde. Em termos simples, diríamos que, transacionada ou aplicada em sentença, a advertência requererá um ato personalíssimo entre Juiz e reeducando, em o qual o magistrado lhe dirá sobre os malefícios do uso de drogas, tudo, segundo nos parece mais lógico, consignado em termo para o especial efeito. (GUIMARÃES, 2006, p. 42)

67

Trata-se, portanto, de ato solene, não se configurando em repreensão de

cunho moralista ou religioso. É sanção legal, de razão jurídica, na qual deverão ser

abordados os efeitos nocivos do uso de drogas. (GUIMARÃES, 2006, p. 42)

3.3.1 PRESTAÇÃO DE SERVIÇO À COMUNIDADE

A prestação de serviços à comunidade, nos termos do artigo 46 do Código

Penal, se caracteriza por ser a atribuição de tarefas gratuitas ao apenado, não

gerando qualquer relação de emprego para com a instituição em que for cumprida.

As atividades deverão levar em conta as aptidões do sujeito, sendo cumpridas em

horário que não prejudique o desempenho de suas atividades regulares e

preferencialmente, conforme o § 5°, artigo 28, da Lei 11.343/2006, em instituição

que trabalhe no combate ao uso de drogas ou no tratamento de dependente

químico. (GUIMARÃES, 2006, p. 43).

Zaffaroni e Pierangeli (1999, p.810).destacam:

[...] que a pena, pela sua natureza, possui um certo aspecto estigmatizante, que é quase impossível de se evitar, mas que o sistema penal deve procurar reduzir ao mínimo possível. Se se instrumentalizar a prestação de serviços à comunidade de forma infamante, o resultado será um aumento de efeito estigmatizante, que já existe em qualquer tipo de pena.

Por último temos a pena de comparecimento à programa ou curso

educativo, que não guarda correspondência com qualquer das penas restritivas de

direito previstas no Código Penal. Caberá ao juiz precisar em que curso deverá o

apenado comparecer, indicando em que local e com que freqüência. Lembre-se que

deverá ser cumprida em horário que não prejudique o desempenho das demais

atividade do sujeito. (GUIMARÃES, 2006, p. 43)

As penas previstas nos inciso II e III, artigo 28, da nova Lei de Drogas terá

duração máxima de 5 (cinco) meses (§ 3° do artigo 28). Em caso de reincidência,

poderão ser aplicadas pelo prazo de até 10 (dez) meses (§ 4° do artigo 28).

Luiz Flávio Gomes, ao comentar os citados parágrafos, observa a

necessidade de que a reincidência seja específica. Segundo ele:

[...] o usuário (que tem posse da droga para consumo pessoal) quando surpreendido pela primeira vez (mesmo que condenado antes por outros crimes: roubo, furto etc.) cumprirá no máximo cinco

68

meses de pena. Sendo reincidente específico nessa infração, sua sanção poderá chegar a 10 meses. (GOMES et al., 2006, p. 134)

Há que se observar, ainda, que, na opinião de Guilherme de Souza Nucci,

pode o magistrado optar, com fundamento nos elementos do art. 59 do Código

Penal Brasileiro, pela aplicação cumulativa das penas previstas nos incisos do

Artigo 28. Ainda, estabelecida a pena de comparecimento a programa ou curso

educativo, pode-se até, durante seu cumprimento, constatada sua ineficácia,

substituí-la por prestação de serviços à comunidade, ou esta pode ser transformada

naquela. (NUCCI, 2006, p. 754)

Para garantir o cumprimento das medidas fixadas, o juiz irá admoestar o

agente (adverti-lo) e, sucessivamente, caso a advertência não funcione, irá impor a

pena de multa, que será cominada conforme o disposto no art. 29 da Lei

11.343/2006. Ressalte-se que a admoestação verbal e a multa serão aplicadas

sucessivamente, nunca cumulativamente, ou seja, primeiro a admoestação verbal

(advertência), e caso não surta o efeito esperado, aí sim a multa. (OLDONI, 2006, p.

114)

3.4 O CONSUMO FRENTE À LEI 9.099/95

A tendência descarcerizadora ganhou maior propulsão com o advento da

Lei 9.099, em 26 de setembro de 1995. O procedimento sumaríssimo nela previsto

era aplicado aos crimes considerados de menor potencial ofensivo, que eram “as

contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a

um ano, excetuadas os casos em que a lei preveja procedimento especial” (redação

original do artigo 61). O processo perante o Juizado Especial orienta-se pelos

princípios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade,

objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a

aplicação de pena não privativa de liberdade (artigo 62 da Lei n. 9.099/1995).

(CAPEZ, 2006, p. 67/68)

O crime de porte ou posse de droga estava previsto no art. 16 da Lei n.

6.368/1976, que cominava pena de detenção de 6 meses a 2 anos, além de ser

previsto procedimento especial para o crime em comento, nos termos dos artigos 20

e seguintes da Lei 6.368/76, aplicando-se subsidiariamente o Código de Processo

69

Penal. Não era, portanto, considerada infração de menor potencial ofensivo, pois

não preenchia os requisitos legais previstos no artigo 61 da lei 9.099/1995. À época,

Gianpaolo Poggio Smanio, em obra dedicada ao estudo dos juizados Especiais

Criminais, já se referia a tal posicionamento afirmando que:

[...] a jurisprudência já sedimentada reconheceu a impossibilidade da transação penal para o crime de uso de entorpecente, previsto no art. 16 da Lei n. 6.368/76, por não se tratar de crime de menor potencial ofensivo (TJSP, ACs. N. 201.046-3/4; 206.049-3/6, 200.307-3). (SMANIO, 1998, p. 77)

Ocorre que a Lei 10.259/01, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e

Criminais no âmbito da Justiça Federal, deu nova definição aos crimes de menor

potencial ofensivo, prevendo no parágrafo único do seu artigo 2° que “consideram-

se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que

a Lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa”.

Doutrina e Jurisprudência, entendendo impossível a coexistência de duas

definições legais para um mesmo termo, estendeu o novo conceito ao âmbito dos

Juizados Especiais Criminais da Justiça Comum. Tal entendimento foi ratificado

pelo legislador com a promulgação da Lei 11.313/2006, modificando a redação do

artigo 61 da Lei 9.099/1995, que passou a ser a seguinte:

Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

Luiz Flávio Gomes observa que com a citada alteração, passou o crime de

uso a ser considerado de menor potencial ofensivo, pois a pena máxima cominada

pela antiga Lei de Tóxicos era de 2 (dois) anos, bem como há agora a possibilidade

de incidência da Lei 9.099/1995 ao crimes aos quais a Lei prevê procedimento

especial, uma vez que tal limitação foi excluída. Assim escreve:

Com base na Lei 10.259/2001 (vigente desde 14.01.2001), o novo limite nacional (e único), para as infrações de menor potencial ofensivo passou a ser interpretado pela doutrina e jurisprudência majoritárias como sendo de dois anos. O art. 16 da Lei de Tóxicos tornou-se infração de menor potencial ofensivo (da competência dos Juizados Criminais). Essa situação consolidou-se com a Lei 11.313/2006 (que alterou a redação do art. 61 da Lei 9.099/95). Já não se aplicava, desse modo, pena de prisão para o simples usuário”. (GOMES et al., 2006, p. 104-105)

70

Assim, com a nova definição dada pela Lei 10.259/2001, posteriormente

confirmada pela Lei 11.313/2006, que além de reduzir o quantum máximo da pena

cominada em abstrato exclui o requisito de não o autor de fato tipificado como crime

de uso passou a ser submetido ao procedimento da Lei dos Juizados Especiais,

sendo-lhe aplicados todos os benefícios ali previstos, tais como a transação penal,

na forma e segundo o que faculta o art. 76 da Lei 9.099/95 e, malograda a

transação, o Promotor de Justiça ofereceria denúncia, propondo, no entanto, a

suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 89 da Lei 9.099/1995.

(GUIMARÃES, 2006, p. 23)

Isaac Sabbá Guimarães afirma: “A pena, diversa da restritiva de liberdade,

poderá ser restritiva de direitos ou multas, qualquer delas proposta atendo-se em

consideração as circunstancias do fato e o autor, como normalmente a doutrina

mais autorizada refere”. (GUIMARÃES, 2006, p. 23)

Porém, até então, apesar do grande avanço proporcionado pelos citados

dispositivos legais, ainda era admitida a prisão em flagrante do usuário e, ao final da

tramitação da Ação Penal, seria possível a aplicação de pena privativa de liberdade.

Avançando ainda mais no sentido de reduzir os danos causados pela intervenção

do poder punitivo estatal sobre a esfera de liberdade individual, a nova Lei de

Drogas proíbe a aplicação de qualquer espécie de restrição de liberdade àquele que

é surpreendido no porte ou posse de substância entorpecente.

3.5 PROCESSOS DE DESCRIMINALIZAÇÃO

Partindo da constatação da falência do sistema punitivo, de efeitos

deletérios sobre a personalidade do indivíduo, estigmatizador e violento, têm

ganhado força as tendências de minimização da atuação jurídico-penal.

Raul Cervini, tratando destes e de outros problemas relacionados ao

sistema penal, observa:

Como se todos esses problemas fossem poucos, também não conseguimos resolver o dos métodos de tratamento que podem ser aplicados para conseguir a terapia social. É muito fácil dizer que o delinqüente deve ser tratado; mas já não o é tanto, dizer de que forma isso deve ser feito. Como e para que ressocializar alguém que por razões conjunturais de desemprego, grave crise econômica, etc., comete um delito

71

contra a propriedade, enquanto tais razões de desocupação e crise econômica continuam existindo. Como ressocializar para o respeito à vida um delinqüente violento, sem criticar ao mesmo tempo uma sociedade que continuamente reproduz a violência através dos meios de comunicação e desencadeia ou exerce uma agressão brutal (guerras, violação de direitos humanos) contra outros grupos mais fracos ou marginais, entre os quais provavelmente se encontra o delinqüente? (CERVINI, 1995, p. 36)

Focando no processo de prisionização, na extrema violência em que se

configura, Raúl Cervini destaca que alguns de seus efeitos são, am relação ao

sujeito aprisionado, a diminuição da adaptabilidade depois da aplicação das penas

privativas de liberdade e os efeitos adversos da estigmatização que dela resulta.

Em relação à sociedade, os principais fatores para que venha sendo

paulatinamente evitado, são a não solução dos problemas sociais através de um

enfoque estigmatizante e o custo do crime. (CERVINI, 1995, p. 49)

Dentro desta nova tendência, é importante destacar a lógica do processo de

evolução do Direito Penal, que corresponde à superação de uma realidade por

outra, partindo das novas concepção oriundas da sociedade, traduzindo-se em

medidas de descriminalização, por vezes articuladas com medidas de

neocriminalização. (SMANIO, 1998, p. 25).

Cumpre, então, tratar dos processos de desinstitucionalização, ou

desestatização, que se consubstanciam em retirar das instancias formais (forças

policiais, poder judiciário, sistema prisional) de controle a resolução de certos

conflitos (SMANIO, 1998, p. 26)

Raul Cervini destaca três conceitos importantes:

Descriminalização é sinônimo de retirar formalmente ou de fato do âmbito

do Direito Penal certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas. Na visão

do autor a descriminalização pode manifestar-se sobre três enfoques: O primeiro é

a “descriminalização formal” (abstenção do Estado em intervir, legalizando o fato), o

segundo é a “descriminalização substitutiva” (as penas são substituídas por

sanções de outra natureza, não há legalização da conduta, mas sua transferência

para outro campo do direito), por fim a descriminalização de fato (ocorre quando o

direito penal deixa de funcionar sem que tenha perdido formalmente sua

competência). (CERVINI, 1995, p. 72-73)

72

O segundo conceito referido é o de despenalização. Nos dizeres de Cervini:

Por despenalização entendemos o ato de diminuir a pena de um delito sem descriminalizá-lo, quer dizer, sem tirar do fato ao caráter de ilícito penal. Segundo o Comitê do Conselho Europeu, este conceito inclui toda a gama de possíveis formas de atenuação e alternativas penais: prisão de fim de semana, prestação de serviços de utilidade pública, multa reparatória, indenização à vitima, semidetenção, sistemas de controle de condutas em liberdade, prisão domiciliar, inabilidade, diminuição de salário e todas as medidas reeducativas dos sistemas penais (Informe Del Comitê Europeu sobre problemas de la criminalidad, 1980). (CERVINI, 1995, p. 75)

Por fim, refere-se ao conceito de diversificação, que consiste na suspensão

dos procedimentos criminais em casos em que o sistema de justiça penal mantém

formalmente sua competência. Pauta-se na autocomposição dos litígios por meio

dos processos de mediação e conciliação. (CERVINI, 1995, p. 76)

Aos já mencionados, Luis Flávio Gomes acrescenta o conceito de

descarcerização, que consiste em evitar o máximo possível a prisão cautelar.

(GOMES, 1995, p. 97)

Zaffaroni e Pierangeli trabalham os mesmos conceitos, acrescendo a eles

uma nota sobre a intervenção mínima:

A descriminalização é a renuncia formal (jurídica) de agir em um conflito pela via do sistema penal.(Zaffaroni, p.357) A descriminalização pode ser “de fato”, quando o sistema penal deixa de agir, sem que formalmente tenha perdido competência para isso. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p.357) A despenalização é o ato de “degradar” a pena de um delito sem descriminalizá-lo, no qual entraria toda a possível aplicação das alternativas à penas privativas de liberdade. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p.358). Diversificação é a possibilidade legal de que o processo penal seja suspenso em certo momento e a solução ao conflito alcançada de forma não punitiva. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p.358) Intervenção mínima é uma tendência político-criminal contemporânea que postula a redução ao mínimo da solução punitiva dos conflitos sociais, em atenção ao efeito freqüentemente contraproducente da ingerência penal do estado. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p.358)

Tem-se, portanto, que a descriminalização “consiste na retirada do sistema

de um valor como objeto da tutela penal, reputando esse valor como passível de

proteção por outros ramos do direito” (SMANIO, 1998, p. 26). Por sua vez,

73

despenalização “é um processo de redução das sanções penais aplicadas a

comportamentos que continuam a ser ilícitos penais”. (SMANIO, 1998, p. 26)

3.6 O POSICIONAMENTO DA DOUTRINA ACERCA DO CARÁTER DAS

MODIFICAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 11.343/2006, NO TOCANTE AO USO

DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES

Questão que tem gerado controvérsia entre os doutrinadores brasileiros diz

respeito ao enfoque dado pela nova Lei de Drogas à conduta do usuário. Parte da

doutrina defende que houve a descriminalização, parte entende que ocorreu a

despenalização.

Luis Flávio Gomes sustenta a tese de que houve a descriminalização da

conduta do usuário de entorpecentes, sob o argumento:

[...] “crime” é a infração penal punida com reclusão ou detenção (quer isolada ou cumulativa ou alternativamente com multa). Afirma que “não há dúvida que a posse de droga para o consumo pessoal (com a nova Lei) deixou de ser ‘crime’ porque as sanções impostas para essa conduta (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos – art. 28) não conduzem a nenhum tipo de prisão. (GOMES et al., 2006, p. 109)

Ou seja, baseia-se na definição de crime que nos é dada pelo art. 1° da Lei

de Introdução ao Código Penal, redigido em 1941, para afirmar que houve a

descriminalização.

Continua:

[...] diante de tudo quanto foi exposto, conclui-se que a posse de droga para consumo pessoal passou a configurar uma infração sui generis. Não se trata de ‘crime’ nem de ‘contravenção penal’ porque somente foram cominadas penas alternativas, abandonando-se a pena de prisão. (GOMES et al., 2006, p. 110)

Assevera que tais penas pertencem ao âmbito do “Direito Judicial

Sancionador” (GOMES et al., p. 111).

Fernando Capez possui opinião divergente, afirmando que:

Entendemos, no entanto, que não houve a descriminalização da conduta. O fato continua a ter a natureza de crime, na medida em que a própria Lei o inseriu no capitulo relativo aos crimes e às penas (Capitulo III); além do que as sanções só podem ser aplicadas por juiz criminal e não por autoridade administrativa, e mediante o devido processo legal (no caso, o procedimento criminal do Juizado

74

Especial Criminal, conforme expressa determinação legal do art. 48, § 1°, da nova Lei). A LICP está ultrapassada nesse aspecto e não pode ditar os parâmetros para a nova tipificação legal do século XXI. (CAPEZ, 2006, p. 68)

No mesmo sentido é possível citar a opinião de Júlio Victor dos Santos

Moura, segundo o qual, na hipótese de crime do porte ou posse de drogas para uso

pessoal, aconteceu mero abrandamento do rigor penal, passando-se da cominação

de pena privativa de liberdade e pena pecuniária à, no lugar delas, penas restritivas

de direitos. Cita-se:

[...] configurando, dessa forma, verdadeira despenalização, em que o crime – antes previsto pelo art. 16 da Lei n° 6.368/76, agora disciplinado pelo art. 28 da Lei n° 11.343/06 – continua a fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro, na condição de ilícito penal, punido somente com pena alternativa”. (MOURA, 2006, p. 100)

Elisangela Melo Reghelin entende que não houve a descriminalização da

conduta, mas mera despenalização. Segundo ela, apesar da nova lei de drogas

distar, no plano político criminal, do ideal da descriminalização, seguiu dois

importantes rumos: a exclusão da justiça terapêutica, e a adoção de uma política de

redução de danos. Menciona, com base no entendimento de Zaffaroni, que “o

usuário de drogas permanece visto segundo a perspectiva do binômio doente-

criminoso. De qualquer maneira, seja por meio de uma pena, seja mediante uma

medida de segurança, o usuário acaba submetido a uma sanção penal”.

(REGHELIN, 2007, p. 73)

Confirmando a majoritária inclinação da doutrina em entender a modificação

como mero processo de despenalização, Maria Lúcia Karam afirma:

No Brasil, a nova lei 11.343/2006 mantém a criminalização da posse para uso pessoal de drogas qualificadas e ilícitas, apenas afastando a imposição de pena privativa de liberdade, o que, dada a pena máxima de detenção de 2 anos prevista na lei 6.368/76, a indevidamente criminalizada posse para uso pessoal já se enquadrava na definição de infração penal de menor potencial ofensivo, sendo aplicáveis as regras contidas na Lei 9.099/95, que prevêem a imposição antecipada e “negociada” de pena não privativas da liberdade. (KARAM, 2007, p. 138).

Restou claro, de tudo quanto exposto, que a inovação trazida pela Lei

11.343/2006 foi bastante cometida, mais ratificando uma situação que já vinha

sendo a prática dos Juizados Especiais Criminais. A doutrina majoritária (e agora

75

também o Supremo Tribunal Federal, em sentença que será analisada a seguir) é

uníssona ao afirmar que não ocorreu a descriminalização da conduta do porte ou

posse de substância entorpecente. È significativa a crítica tecida contra a covardia

legislativa, que perdeu valiosa oportunidade de avançar ainda mais em relação ao

tratamento jurídico do usuário de drogas, podendo firmar de vez o entendimento da

quase unanimidade dos doutrinadores de que a questão é de saúde pública.

Neste sentido, Isabel Melo Reghelin lamenta que “o legislador não tenha

avançado e extirpando, definitivamente, o tipo penal em apreços, eis que carente de

dignidade penal”. (REGHELIN, 2007, p. 70)

3.7 A DECISÃO DO STF TRATANDO DO ENFOQUE DADO À CONDUTA DO

USUÁRIO PELA NOVA LEI DE DROGAS

Recentemente, em decisão proferida nos autos do recurso extraordinário n.

430.105-9, do Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal se manifestou acerca da

mudança promovida pela Lei 11.343/2006 à conduta do usuário de droga.

Transcreve-se a ementa da decisão:

I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 – nova lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP - que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção – não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 – pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo “rigor técnico”, que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas”, só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão “reincidência”, também não se pode emprestar um sentido “popular”, especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição

76

segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de “despenalização”, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário julgado prejudicado. (STF, Recurso Extraordinário n. 430.105-9/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, prolatada em 13.02.2007)

Em sessão presidida pelo Ministro Sepúlveda Pertence, presentes os

Ministros Marco Aurélio, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski e a Ministra Cármen

Lúcia, entendeu a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade,

que não ocorreu a descriminalização da conduta do usuário de drogas, mas mera

despenalização, pacificando o posicionamento jurisprudência acerca do tema.

Divergindo da posição defendida por Luiz Flávio Gomes, os argumentos

expostos pelo Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, e amplamente encampados

pelos demais presentes, vão no sentido de negar que seja o artigo 1° da Lei de

Introdução ao Código Penal óbice a que a Lei 11.343/2006 criasse crime sem a

imposição de pena privativa de liberdade. Entende que o mencionado dispositivo

simplesmente estabelece critério que permite distinguir crime de contravenção

penal.

Aduz, ainda, que não pode supor a ausência de rigor técnico na redação da

nova Lei de Drogas, sendo que a alocação da conduta do usuário no capítulo que

trata “dos crimes e das penas” não se dá por equívoco do legislador.

Conclui, alinhando-se ao que vinha interpretando a doutrina majoritária, que

não ocorreu abolitio criminis, mas mera despenalização da conduta do usuário, no

sentido em que vem sendo interpretado o termo, ou seja, como rompimento da

tradição de imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou

substitutiva.

77

CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou demonstrar a caminhada da criminalização das

drogas, e as conseqüentes disposições legais promulgadas até os dias de hoje,

focalizando a figura do usuário de substâncias entorpecentes, bem como o

tratamento e as sanções impostas a estes.

Como visto, a internacionalização do combate às drogas, liderada pelos

Estados Unidos, não tem conseguido cumprir suas metas quanto aos seus objetivos

declarados, não sendo capaz de acabar ou sequer reduzir o consumo e o tráfico

destas substâncias. Uma guerra pautada no combate denominado “narcotráfico”

somente poderia ser falha na eliminação deste, uma vez que o que se deve

combater é a demanda, sem a qual não existiria oferta.

O Brasil, influenciado pela política norte-americana aderiu à guerra contra

as drogas, promulgando normais legais de exceção e disseminando o terror pelas

cidades, utilizando-se da repressão penal contra os consumidores e traficantes.

Repressão esta que não surte efeitos no sentido de acabar com o tráfico e o

consumo, pelo contrário, somente agrava a violência que assola a sociedade

brasileira, aumenta a estigmatização e acentua a exclusão das camadas mais

baixas e marginalizadas da população. Comete-se o erro de pensar que o Direito

Penal é a solução para os problemas sociais.

Partindo da premissa de que a teoria adotada pelo Brasil tem por objetivo

aplicar penas e modos que tenham eficácia duradoura e causem menos danos ao

apenado, e que tais penas devem ser cumpridas em condições que preservem a

dignidade do homem e possibilitem seus objetivos finais, que é a prevenção e

ressocialização do indivíduo, percebe-se que o atual sistema carcerário aplicado no

Brasil em nada tem contribuído para o alcance de tais fins.

O tema estudado é extremamente complexo, tanto que é verdade que até

hoje não se conseguiu adotar uma política eficaz de combate às drogas. Muito

embora o legislador não tenha tipificado a conduta “usar” no artigo 16, tendo

descrito somente as de adquirir, guardar e trazer consigo, estas últimas são

premissas para a configuração da primeira (usar), isto é, para usar a droga é

necessário adquirir, guardar e trazer consigo.

78

O traficante sim é a causa de toda a degradação moral e social, sendo

responsável pela difusão do vício em nossa sociedade. O dependente químico, por

sua vez, não possui capacidade de entender o caráter ilícito do fato, pois o vício, a

dependência da droga, age como força a inibir o entendimento do que é certo ou

errado e neste caso não se poderia dizer que ofende um bem jurídico.

No entanto, à luz dos entendimentos citados e das mais variadas doutrinas

pesquisadas, é incompreensível a criminalização do usuário. A sanção penal

atualmente aplicada ao usuário ou dependente químico gera malefícios ainda

maiores do que a própria droga ao ser encaminhado para a prisão. Pode um mero

usuário ou dependente químico, de bons antecedentes e boa conduta social, ser

encarcerado e passar a conviver com aqueles que traficam, bem como com outros

tipos de criminosos, sendo que muitas vezes, ao ser libertado do cárcere, sai não

mais como um simples doente, mas como um criminoso de fato.

Ora, a pena só é válida se tiver como objetivo evitar a reincidência,

ressocializar o indivíduo e impor respeito à ordem jurídica. Constatados os diversos

malefícios causados ao usuário quando submetidos ao regime penitenciário, surgiu

a proposta de descriminalização a estes, utilizando-se do princípio da

insignificância. Este enunciado defende a exclusão de ilícito penal quando a

conduta for considerada de irrelevante repercussão social e quando não atingir o

bem jurídico tutelado pela norma penal. Foi crescente o posicionamento dos

tribunais na aplicabilidade do princípio da insignificância.

Há tempos que alguns doutrinadores defendem a idéia da

descriminalização, baseando-se nos fatos ocorridos ao longo dos anos, e

demonstrando que a penalização do usuário ou dependente químico produz crimes

secundários diferentes e mais graves que os das condutas proibidas, gerando

novos criminosos.

Ao longo dos vinte e seis anos de vigência da Lei 6.368/76, acompanhou-se

a modificação da visão proibicionista para uma política abolicionista, impulsionada

pela falência da pena privativa de liberdade e a ausência de reprovação social,

relativamente aos delitos relacionados com o uso de entorpecentes.

Ante um contexto social fortificado por estereótipos, rodeados de imagens e

crenças que influenciam no modo de sentir o problema, a criminalidade aumentava

de modo alarmante. Em resposta ao insucesso do modelo adotado, resultava

79

indispensável modificar a cultura predominante, alicerçada na idéia de que o

cárcere seria a única e verdadeira punição.

A Lei 10.409, de 11 de janeiro de 2002, foi elaborada no intuito de substituir

a anterior. A nova lei buscava uma harmonia, até então inexistente, com as

legislações internacionais, pautada na prevenção, tratamento, fiscalização, controle

e repressão à produção, ao uso e ao tráfico das drogas. Entretanto, ante as

diversas falhas e equívocos no seu texto, foi totalmente vetado o capítulo que

tratava dos crimes e das penas. Voltando-se a aplicar a lei anterior.

Diante de extrema necessidade, foi elaborada e promulgada a novíssima Lei

de Drogas, n. 11.343/06, que revogou o art. 16 da Lei 6.368/76, e tipificou conduta

similar em seu art. 28, caput e §1º, operando rebaixamento em seu status jurídico-

repressivo, caracterizando-a como autêntica contravenção penal.

Constatou-se que o legislador deu à conduta "posse de drogas para

consumo próprio” uma reprovação menor, impondo medidas mais brandas, que

foram chamadas na Lei de "medidas educativas", mesmo ainda sendo consideradas

por ele, um fato típico, antijurídico, culpável e punível. São os objetivos da Lei

11.343/06 que se mostram bem distintos: o da prevenção e o da repressão.

Diante da nova lei, surgiu grande polêmica acerca da ocorrência ou não da

descriminalização do artigo 28, eis que este não pune o usuário de drogas com

penas privativas de liberdade.

Alguns autores, como visto, defendem a idéia de ter havido a

descriminalização da posse de drogas para consumo próprio, afirmando que a

posse de droga para consumo pessoal passou a configurar uma infração sui

generis, que constitui um fato ilícito, porém, não penal.

A norma contida no art. 28 da Lei n. 11.343/06 revela, subliminarmente, a

descrença do próprio legislador na sanção penal como mecanismo apto a proteger

o bem jurídico saúde pública. E, apesar de estabelecer uma categoria sui generis,

ou melhor, simbólica, de sanção penal, manteve, pretendendo um efeito meramente

simbólico, a ameaça de imposição de "penas" para as condutas desviantes,

categorizadas como crime.

O legislador optou por adotar medidas educativas. Duas delas afastam por

completo a aplicação de pena, quais sejam, a advertência sobre os efeitos das

drogas e comparecimento a programa ou curso educativo. Por isso, pode-se

80

entender como medidas despenalizadoras. Contudo, impôs ao usuário uma pena

restritiva de direitos, a prestação de serviços à comunidade. Diante da inocuidade

das medidas educativas, para a garantia de seu cumprimento, o legislador cominou

mais duas "sanções": admoestação verbal, tão inútil quanto a advertência sobre os

efeitos da droga, e multa, de caráter pecuniário, mas sem perder o cunho de sanção

penal, já que os critérios para sua aplicação demonstram isso.

Pela análise dos textos legais retromencionados, já se poderia concluir que

a Lei 11.343/06 não descriminalizou a conduta de posse de drogas para consumo

pessoal, pois que o artigo 28 comina uma pena restritiva de direitos, a prestação de

serviços à comunidade, bem como a multa.

Recente decisão do STF pacificou tal polêmica, posicionando-se no sentido

de que não ocorreu abolitio criminis, mas mera despenalização da conduta do

usuário, com a quebra da tradição de imposição de penas privativas de liberdade

como sanção principal ou substitutiva.

Ainda que se tenha o crime como fato típico e antijurídico, encontrando-se

na culpabilidade o pressuposto da pena, obrigatoriamente há de se reconhecer do

caráter penal do artigo 28 da Lei 11.343/06.

Acredita-se que tenha sido justamente na "culpabilidade" do usuário que o

legislador tenha buscado a aplicação das medidas educativas, diante do juízo de

menor reprovação penal na conduta daquele que possui drogas para consumo

próprio, do que na conduta daquele que fomenta o crime e dissemina a violência

com o tráfico.

Tão importante quanto conhecer o texto legal, é reconhecer e

identificar a política criminal motivadora da produção legislativa. Na novel legislação

antidrogas, ficaram estabelecidos os objetivos da Lei: prevenção e repressão. Por

isso, o legislador preferiu dar tratamento distinto ao usuário, aplicando-lhe sanção

mais branda do que a do traficante que, aliás, terá uma resposta penal mais severa

a partir da vigência da nova Lei.

81

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. BITTENCOURT, César Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, pág. 202 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 04 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 05 março 2007. _____. Decreto-lei nº 385, de 26 de dezembro de 1968. Dá nova redação ao artigo 281 do Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 15 abril 2007. _____. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 15 abril 2007. _____. Lei nº 5.726, de 29 de outubro de 1971. Dispõe sobre medidas preventivas e repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 05 março 2007. _____. Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 05 março 2007. _____. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 05 março 2007.

82

_____. Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 05 março 2007. _____. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 05 março 2007. _____. Mensagem n. 25, de 11 de janeiro de 2002: razões de veto parcial ao projeto de lei n. 1.873, de 1991 (n. 105/96 no Senado Federal). Brasília, Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/Mensagem_Veto/2002/Mv025- .htm>. Acesso em: 24.03.2007. CAPEZ, Fernando. A nova lei de tóxicos: Modificações Legais Relativas à Figura do Usuário. In: Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Magister, ano 3, n. 14, out/nov 2006. CARVALHO, Salo de. A política criminal das drogas no Brasil: do discurso oficial às razões da descriminalização. Rio de Janeiro: Luam, 1996. _____. A política criminal das drogas no Brasil: Do discurso oficial às razões da descriminalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Luam, 1997. CERVINI, Raúl. Os Processos de Descriminalização. Tradução: Eliana Granja et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. GOMES, Luiz Flávio (coordenação) et al. Nova Lei de Drogas Comentada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

_____. Direito de bagatela: princípios da insignificância e da irrelevância penal do fato. Revista dos Tribunais, v. 90, n. 789, p. 439-456, jun. 2001. _____. Direito Penal mínimo: lineamentos das suas metas. In: Revista do conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, v. 1, n. 4, Ministério da justiça, jul/dez 1994. GRECO FILHO, Vicente. Tóxico: prevenção-repressão: comentários à Lei n.° 6.368, de 21-10-1976, acompanhados da legislação vigente e de referência e ementário jurisprudencial/ Vicente Greco Filho. 11. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1996.

83

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Nova Lei de Drogas Comentada: Crimes e Regime Processual Penal. Curitiba: Juruá, 2006. _____. Tóxicos: comentários, jurisprudência e prática (à luz das Leis 6.368/76 e 10.409/02). 3. ed. Curitiba: Jaruá, 2004. KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. 2. ed. Niterói: Luam, 1993. _____. Drogas e redução de danos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 15, n. 64, jan/fev 2007, p. 128-144. LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. et al. Comentários à lei dos juizados especiais cíveis e criminais. 3. ed., atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2000. _____. Teoria Constitucional do Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. MAÑAS, Carlos Vico. O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994. MARONNA, Cristiano Ávila; MENDES, Carlos Alberto Pires. Nova Lei de Tóxicos: O Reflexo do Irrefletido. Boletim IBCCRIM, ano 09, nº 111, fev. 2002. Disponível em <http://www.ibccrim. org.br/ boletim/0004>. Acesso em: 01 ago. 2002. MARQUES, Ednarg Fernandes. O uso e abuso de drogas: prevenir ou punir?. Revista do Ministério Público do Maranhão, n. 8, p. 81-87, jan./dez. 2001. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2000. MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Nova Lei de Tóxicos: Aspectos Procedimentais. In: Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Magister, ano 3, n. 14, out/nov 2006, p. 73-96. MOURA, Júlio Victor dos Santos. A Nova Lei de Tóxicos: a Posse e o Porte. In: Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Magister, ano 3, n. 14, out/nov 2006, p. 97-102. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, 894 p. Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT). As drogas em destaque: Os consumidores de drogas e a legislação na EU. Nota 2, bimensal. Lisboa, Março-Abril de 2002. Disponível em: http://www.emcdda.europa.eu

84

Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT). Relatório Anual 2006: A Evolução do Fenômeno da Droga na Europa. Capítulo I: Política e legislações. Luxemburgo, 200. Disponível em: http://ar2006.emcdda.europa.eu/download/ar2006-pt.pdf OLDONI, Fabiano. Condutas típicas: as alterações trazidas pela Lei 11.343/2006. In: Revista Jurídica. Porto Alegre: Editora Fonte do Direito, ano 54, n. 349, nov 2006, p. 111-122. OLMO. Rosa Del. A face oculta das drogas. Rio de Janeiro: Revan, 1990. PASSOS. Alicildo José dos. A política criminal de drogas contemporânea: o caso da intervenção na Colômbia. (Mestrado em Direito). Centro de Ciências Jurídicas. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2002. PIVA, Paulo César. Princípio da insignificância: excludente de ilicitude e tipicidade penal. Revista Jurídica, v. 48, n. 274, p.61-64, ago. 2000. REGHELIN, Elisangela Melo. Considerações político-criminais sobre o uso de drogas na nova legislação penal brasileira. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 15, n. 64, jan/fev 2007, p. 57-77. RIGON, Rozimeri Aparecida. A (des) penalização ou (des) criminalização do consumidor de substâncias entorpecentes frente à legislação penal brasileira. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, v. 12, n. 2, p. 153-173, 2000. SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. SILVA, Antônio Vieira da. Drogas: descriminalização e outras alternativas. Revista do Ministério Público do Estado da Bahia: Série Acadêmica, v. 2, n. 2, p. 153/173, 2000. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 20° ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. SILVA, Ivan Luiz da. Princípio da insignificância no direito penal. Curitiba: Jaruá, 2004. _____. Teoria da insignificância do direito penal brasileiro. Revista dos Tribunais, v. 94, n. 841, p. 425-437, nov. 2005. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Criminologia e Juizado Especial Criminal. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1998, 106 p.

85

YAMADA, Renato Kenji. A prevenção do uso de drogas que causam dependência e a novas tendências relativas à política nacional de drogas. (Bacharelado em Direito). Centro de Ciências Jurídicas. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 1999. ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 2ª ed ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, 888 p.