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V Encontro Nacional da Anppas 4 a 7 de outubro de 2010 Florianópolis - SC – Brasil _______________________________________________________ Urbanização contemporânea no Brasil e meio ambiente: compactação e dispersão como tendências de configuração territorial das cidades e como expressão de novas possibilidades de arranjo e de interação sociedade-natureza Manoel Lemes da Silva Neto (Pontifícia Universidade Católica de Campinas) Arquiteto e urbanista, professor do Programa de Pós-graduação em Urbanismo [email protected] Resumo Entende-se que o fenômeno de urbanização seja determinante no desenvolvimento de estratégias relacionadas à sustentabilidade dos espaços construídos. Consequentemente, (1) as interações homem-natureza estariam subordinadas a dependência dos homens em relação à sociedade e (2) a formulação de projetos de sustentabilidade, ao aperfeiçoamento das políticas públicas de caráter territorial, em detrimento às concepções fundamentadas no ambientalismo tal como se encontra atualmente mais largamente difundido. O texto envolve a análise crítica e propositiva da produção socioespacial das cidades no âmbito da problemática ambiental contemporânea e sob as circunstâncias da inserção territorial do estado de São Paulo e da área correspondente à Macro- metrópole paulista. Definida a partir de um raio de 120 km a partir da capital do estado de São Paulo, essa região apresenta grande variedade de configurações territoriais resultantes do arranjo de basicamente três variáveis-chave: concentração urbana, densidade urbana e qualificação ambiental. Pretende-se, assim, verificar a atualidade da concepção de que há uma relação inversamente proporcional entre qualidade ambiental e densidade populacional urbana, entendendo-a como instrumento urbanístico de planejamento e gestão. Palavras-chave Gestão urbana, conflitos socioambientais, sustentabilidade

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V Encontro Nacional da Anppas 4 a 7 de outubro de 2010 Florianópolis - SC – Brasil _______________________________________________________

Urbanização contemporânea no Brasil e meio ambiente: compactação e dispersão como tendências de

configuração territorial das cidades e como expressão de novas possibilidades de arranjo e de interação

sociedade-natureza

Manoel Lemes da Silva Neto (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)

Arquiteto e urbanista, professor do Programa de Pós-graduação em Urbanismo [email protected]

Resumo Entende-se que o fenômeno de urbanização seja determinante no desenvolvimento de estratégias relacionadas à sustentabilidade dos espaços construídos. Consequentemente, (1) as interações homem-natureza estariam subordinadas a dependência dos homens em relação à sociedade e (2) a formulação de projetos de sustentabilidade, ao aperfeiçoamento das políticas públicas de caráter territorial, em detrimento às concepções fundamentadas no ambientalismo tal como se encontra atualmente mais largamente difundido. O texto envolve a análise crítica e propositiva da produção socioespacial das cidades no âmbito da problemática ambiental contemporânea e sob as circunstâncias da inserção territorial do estado de São Paulo e da área correspondente à Macro-metrópole paulista. Definida a partir de um raio de 120 km a partir da capital do estado de São Paulo, essa região apresenta grande variedade de configurações territoriais resultantes do arranjo de basicamente três variáveis-chave: concentração urbana, densidade urbana e qualificação ambiental. Pretende-se, assim, verificar a atualidade da concepção de que há uma relação inversamente proporcional entre qualidade ambiental e densidade populacional urbana, entendendo-a como instrumento urbanístico de planejamento e gestão. Palavras-chave Gestão urbana, conflitos socioambientais, sustentabilidade

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Introdução

Compreendendo que a problemática ambiental é primordialmente decorrente do fenômeno da

urbanização, e a partir da perspectiva interdisciplinar e do ponto de vista urbanístico, o presente

texto propõe-se contribuir na produção do conhecimento relacionado às questões ambientais e na

formulação do pensamento ambientalista. Mais especificamente, pretende-se discutir a

associação entre as dinâmicas apresentadas pela urbanização contemporânea no Brasil e os

modelos de cidades compactas e de cidades dispersas.

As hipóteses de trabalho partem do pressuposto inicial de que, do ponto de vista da história das

técnicas, o pensamento ambientalista pode ser considerado inaugural ou, ainda, proto-técnico.

Isto é, encontra-se em um estágio relativamente rudimentar que o impede entrever possibilidades

de equacionamento dos problemas em bases fortemente ancoradas no uso intensivo da

tecnologia.

No caso em estudo, uma das implicações desse estágio inicial relaciona-se a concepções

urbanísticas conservadoras, a visões românticas que interpretam as aglomerações humanas

como se fazia até meados do século XX. Nestas, a qualidade ambiental é especialmente

alcançada por modelos que evocam as noções clássicas de cidades-jardim, onde predominam

baixas densidades populacionais, habitacionais e construtivas. Por consequência, e como causa e

efeito, a produção do mercado fundiário-imobiliário associa a imagem de “cidades verdes” ao ideal

de convivência, sociabilidade, “qualidade de vida” e sustentabilidade. Esse aspecto, ao lado do

espraiamento das periferias urbanas produzidas pelo mercado informal, contribui na explicação do

fenômeno da “urbanização dispersa” (GOULART, 2006), ou “macrourbanização” e “urbanização

do território” (SANTOS, 2005).

No Brasil, a urbanização, produzindo espaços com alta densidade técnica, além de concentrar a

população em áreas urbanas, o faz de modo acelerado tanto em áreas de urbanização

consolidada, como regiões metropolitanas, quanto em áreas a pouco praticamente despovoadas,

como é o caso dos resorts espalhados pelo litoral. No estado de São Paulo, a “urbanização

dispersa” organiza vastas continuidades territoriais a serviço do mercado fundiário-imobiliário. Em

tais conformações, a implantação e manutenção de infra-estruturas urbanas são altamente

custosas e, na maior parte das vezes, arcadas pelos cofres públicos, isto é, socializadas, ou,

então, a despeito dos danos ambientais, podem estender-se desprovidas de quaisquer infra-

estruturas básicas. Há, ainda, os efeitos desencadeados no tecido social e na configuração

cultural dos lugares, que se desagregam mais rapidamente ainda sem despertar maiores

comoções. São vistas como externalidades inevitáveis.

Contudo, o aperfeiçoamento técnico subjacente à produção social das cidades, bem como a

produção de análises sobre a crise ambiental em sentido largo – em que a relação homem-

sociedade antecede e subordina a relação homem-natureza – são dinâmicas que acenam

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potencialidades reais de superação dos problemas envolvendo as sociedades contemporâneas e

o meio ambiente. Essa é outra hipótese importante desse trabalho.

Compreende-se que a concepção de espaços urbanos produzidos mediante o emprego de

tecnologias desenvolvidas especificamente para reduzir ou eliminar impactos ambientais

negativos, à primeira vista, denotam aumento do grau de artificialização do meio ambiente, mas,

depois, incorporados à dinâmica social, podem corresponder a novo patamar na relação homem-

sociedade-natureza. O conceito de cidades compactas está sendo formulado sob tais argumentos.

A possibilidade de conduzir a planificação territorial a um patamar superior de ação política é

igualmente vital. Nesse contexto possível, a centralidade na produção do espaço seria ocupada

pelo controle dos agentes sociais e pelo Estado, agora, de fato, envolvido com o interesse

comum. Sem dúvidas, a aliança do Estado com os atores hegemônicos dificulta em muito o

desenvolvimento de projetos nacionais socialmente justos e ambientalmente simétricos em

relação ao interesse de todos.

As circunstâncias

A afirmação de que a sustentabilidade do espaço urbano está condicionada pela alocação dos

recursos disponíveis para a implantação de equipamentos, serviços e infra-estruturas é verdade

incontroversa. Basta verificar como o grau alarmante de contaminação dos recursos hídricos está

diretamente associado à ausência de verdadeiras políticas públicas de caráter territorial, de

investimentos1 e, especialmente, de fiscalização para que os parcos recursos orçamentários

disponibilizados sejam efetivamente executados.

Visível nas cidades em praticamente todo curso d’água, é um dos muitos exemplos que

dispensam maiores demonstrações. Evidentemente, há outros fatores que impedem alcançar

níveis mais propícios de sustentabilidade urbana. Por exemplo, os relacionados às convergências

políticas e econômicas do processo produtivo, à cultura da sociedade de massa, à malversação

do dinheiro público e, mesmo, pela retração do sentido de cidadania na esfera pública.

Contudo, no raio de ação da arquitetura e urbanismo, a interferência no processo de alocação de

recursos pode ser decisiva na medida em que é possível demonstrar as correlações entre

qualidade ambiental e densidade urbana: são inversamente proporcionais (ACIOLY e DAVIDSON,

1998).

As condições mais favoráveis para o aproveitamento dos recursos públicos são aquelas que se

concretizam em contextos espaciais densamente povoados. O desempenho da relação

custo/benefício social é melhor quando o valor per capita do investimento público é menor. Por

outro lado, a qualidade espacial do ambiente urbano tende a comprometer-se negativamente em

setores urbanos adensados.

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Nessa direção é possível admitir que a qualidade ambiental esteja diretamente associada à

sustentabilidade. Quanto maior a qualidade ambiental, melhor serão as chances de se produzirem

ambientes sustentáveis.

Esse princípio encerra um modo de se conceber projetos arquitetônico-urbanísticos não raro

associados ao partido de organização de espaços pouco adensados. Os exemplos do que se

pode denominar “arquitetura bioclimática” frequentemente apresentam-se em contextos urbanos

densamente vegetados e com taxas de ocupação do solo relativamente baixas. O mesmo se dá

em relação aos espaços públicos (ROMERO, 2002).

No entanto, recentemente, estão surgindo novas concepções de qualidade ambiental urbana que

preconizam o adensamento como forma de potencializar a sustentabilidade de espaços

construídos. Cidades mais dispersas induzem o uso veicular, o aumento do consumo de

combustíveis, o grau de poluição, os congestionamentos e o tempo gasto nos deslocamentos

(NETTO, 2008). Daí o surgimento de tipologias arquitetônico-urbanísticas compactas, não

rarefeitas, com surpreendente resultado plástico (MOZAS e Per, 2006; PER e MOZAS, 2007) e,

simultaneamente, mais compatíveis com estratégias de sustentabilidade aplicadas em “sistemas

fechados com relação ao fluxo de matéria, embora sejam abertos com relação ao fluxo de

energia” (CAPRA, 2001, p. 219). A noção advém da natureza cíclica dos processos ecológicos.

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Um parêntese. Paradoxalmente, no campo da atuação do arquiteto e urbanista, o planejamento

pode antepor-se à noção de organização. O termo planejamento provém, etimologicamente, de

planeamento, de “tornar plano” (Lello Universal). No extremo, o planeamento elimina diferenças.

De fato, o planejamento urbano dispõe de muitos instrumentos que reduzem a multiplicidade de

aspectos pelos quais o fenômeno urbano manifesta-se. Por exemplo, as funções urbanas da

Carta de Atenas reduzem a complexidade da organização espacial das cidades ao morar, ao

trabalhar, ao circular e ao lazer (LE CORBUSIER, 1942?(1989)). E mais. As funções adquirem

formas ao traduzirem-se em zonas de uso e ocupação. No outro caso, ao invés da eliminação, a

organização pressupõe combinar diferenças e acentuar a diversidade.

Por isso, além da dificuldade de encontrar soluções para o equacionamento da problemática

ambiental encenada nas cidades, há, também, a necessidade de mudança da cultura dos

construtores de espaços. Garantir que o exercício profissional do arquiteto e urbanista contribua

na busca de respostas e, em especial, na sua aplicação efetiva são, também, enormes desafios

para alcançar a sustentabilidade urbana.

Elementos intervenientes no desenho de estratégias de sustentabilidade como densidade urbana,

qualidade ambiental e alocação de recursos exigem disposição na busca de tecnologias

envolvendo sistemas combinados, ou a combinação de sistemas. Variáveis que comprometem a

sustentabilidade das cidades, como a capacidade de suporte dos sistemas urbanos e, em face

das mudanças climáticas, a potencialização da resiliência dos espaços construídos, devem

constar na agenda da cultura arquitetônico-urbanística como reflexão constante.

Entretanto, para que haja uma espécie de compromisso intelectual do arquiteto e urbanista em

prol da causa ambiental e da sustentabilidade, não se poderá incluir num mesmo acordo a noção

de desenvolvimento sustentável atrelada ao triple bottom line. Uma coisa é o esforço de se

perseguir metas de melhoria da qualidade ambiental das cidades, que é sinônimo de cidadania

plena e de equanimidade social. Outra, ignorar o discurso economicista e globalitário dos agentes

hegemônicos. A sustentabilidade oculta faces perversas (AFONSO, 2006).

Como forma de contribuir no desenvolvimento de questões dessa natureza, este texto reúne

alguns argumentos para discutir-se o tema da sustentabilidade circunstanciada na análise

comparativa entre duas formas e estruturas urbanas que se contrapõem dos pontos de vista

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teórico e experimental: cidades compactas e cidades dispersas. Em curso, os fenômenos que as

produzem evocam a “metropolização e macrourbanização” – apontada por Milton Santos como

tendência da urbanização brasileira (2005) – ou, ainda, a formação de extensas áreas

metropolitanas caracterizadas pela “urbanização dispersa” – estudada recentemente no estado de

São Paulo por Nestor Goulart Reis (2006).

Independentemente do aspecto que essas análises privilegiam para dar conta da complexidade

da organização espacial contemporânea, e em um lugar de paisagens contrastantes como o

estado de São Paulo, o fato é que as estratégias de sustentabilidade devem identificar desde

maciços densamente urbanizados – e, consequentemente, detentores de “rugosidades”

(SANTOS, 1986, p. 136) e grandes espaços fixos – até formas urbanas extremamente singelas,

como o caso de Borá, menor município brasileiro, também situado em São Paulo, e que, pela

contagem populacional de 2007 do IBGE, tinha 804 habitantes.

Por um lado, o modelo espraiado como o é a Região Metropolitana de Campinas (RMC), de outro,

um mais compactado, a exemplo da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Entre os

extremos opostos, situações intermediárias que não podem ser desprezadas.

Os modelos urbanísticos de baixas densidades, como o das cidades-jardim, emblemático do

urbanismo já clássico do final do século XIX e início do XX, também surge revelado como um dos

“devoradores de espaços”, para utilizar a expressão cunhada por Lewis Munford (1982, il. 48) ao

descrever situações como o dos estádios, centros comerciais e gigantescos complexos viários,

que juntamente a expansão de áreas residências de baixa densidade populacional, são

responsáveis pelo fenômeno do sprawling urbano (RIBEIRO e SILVEIRA, 2009).

Fonte: Ribeiro e Silveira, 2009.

Evidentemente, não fora a possibilidade de examinar as zonas urbanas de baixa densidade

populacional do ponto de vista das cidades compactas, a comparação não seria justificável. Os

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seguintes argumentos decorrem da equiparação do modelo espraiado de expansão urbana com o

das cidades compactas (Id. ibid.).

1. No modelo espraiado, o ciclo linear de consumo de espaço (obter > utilizar > descartar)

contrasta-se com o modelo circular das cidades compactas; isto é, com o princípio dos “3 R”

(reduzir o consumo do espaço natural > restaurar ou requalificar > reutilizar).

2. As cidades compactas tendem a poupar os espaços naturais e os ecossistemas, “que seriam

mantidos ativos, realizando seu trabalho ambiental, inclusive em favor da qualidade ambiental

e da qualidade de vida urbana. Também se poupariam muitas terras produtivas em sua função

rural, evitando-se migrações populacionais e os efeitos do uso apenas especulativo sobre a

terra”.

3. As cidades compactas tendem a preservar mais intensamente os valores patrimoniais “que

podem ser conservados e transmitidos às gerações posteriores sendo, portanto, também

aspectos da sustentabilidade urbana”.

4. “A compactação permite reduzir as distâncias dos deslocamentos”, bem como “(...) viabilizar

de forma concreta a utilização eficiente de sistemas coletivos de grande capacidade, muito

mais eficientes no consumo energético e com menor emissão de poluentes”.

5. A continuidade e a compactação têm grande influência nos custos de urbanização e na

redução do consumo energético.

Não é de hoje que o tema das cidades compactas desperta a atenção como uma conformação

relacionada à racionalização do uso energético. Em texto publicado em 1973, Ivan Illich

denunciava que os automóveis contribuíam para diminuir a velocidade dos deslocamentos e que

seria imprescindível transformar os hábitos de consumo ao invés de buscar alternativas de fontes

energéticas. Para ele, o impacto dos deslocamentos dos veículos automotores contribuía para a

destruição do ambiente físico e na agudização dos problemas econômicos, sociais, energéticos,

interferindo, inclusive, no modo de vida, como o aumento da falta de tempo e o sedentarismo

(2005, p. 43).

Portanto, as questões relacionadas à sustentabilidade dos espaços construídos ainda tem muito

por revelar. Há pouco, os gigantescos maciços urbanizados apresentavam-se como ameaças que

rondavam o destino das aglomerações humanas. Mesmo do ponto de vista da dinâmica social, os

habitantes das grandes cidades pareciam vaticinados ao isolamento e à solidão. Agora,

ressurgem como localidades onde a sociodiversidade floresce com maior vigor e, como ela, uma

cultura popular que, apropriando-se dos meios técnicos antes exclusivos para alguns, estabelece

as pré-condições para o surgimento de outro período histórico (SANTOS, 2000, p. 20-21).

Daí as razões de se verificar a atualidade da concepção de que há uma relação inversamente

proporcional entre qualidade ambiental e densidade populacional urbana, entendendo-a como

instrumento urbanístico de planejamento e gestão. É possível que o cenário apontado pelas

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cidades compactas venha a se constituir em fonte capaz de subsidiar estratégias de

sustentabilidade.

De toda maneira, o tema é político. A decisão por uma mudança de marco civilizatório é,

eminentemente, política. A resistência norte-americana ao protocolo de Kyoto é prova cabal do

interesse hegemônico de alguns contra o interesse comum da maioria. Héctor R. Leis, ao

mencionar o novo contrato natural proposto por Michel Serres (1991), lembra que a superação

dos limites que impedem a sustentabilidade, além de política, é, em suma, de natureza moral

(2004, p. 145).

Elementos do discurso analítico

Em 2007, o Brasil tinha 5.564 municípios, dos quais 1.334 (24% do total) com menos de 5 mil

habitantes. Esses municípios abrigavam 2,4% da população brasileira. Já os 36 municípios com

mais de 500 mil habitantes, 29%.2 No estado de São Paulo estão o maior e o menor municípios do

país: São Paulo, com 10,8 milhões, e Borá, com 804 habitantes. Esses desequilíbrios, entre o

grande e o pequeno, o máximo e o mínimo, expressam-se igualmente no rendimento familiar. O

Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A renda per capita dos 10% mais ricos da

população brasileira é 32 vezes maior que a dos 40% mais pobres (NAÇÕES UNIDAS, 2005, p.

49). Neste cenário, na região sudeste – que abriga as duas maiores regiões metropolitanas do

Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro – em 50 anos (1950-2000), o grau de urbanização cresceu

190% e a população urbana, 610%. No mesmo período, o grau de urbanização da região Centro-

oeste cresceu 326%. Já a população urbana, 2.537%.3

Então, do ponto de vista instrumental, como é possível relacionar meio ambiente e espaço

construído? Qual o peso da variável clima em face da variável demográfica e da econômica? O

que desencadeará as consequências mais severas no prazo de sobrevivência das gerações do

presente histórico? Uma, outra, ou o efeito combinado de todas?

Não é o caso requentar polêmicas anteriores à proposição do triple bottom line, como a do debate

ambientalista dos anos 60 em torno da poluição industrial e do crescimento populacional (LEIS,

2004, p. 54). Mas uma coisa é certa. Não há como refletir propositivamente a sustentabilidade

ambiental e, particularmente, intervir no equilíbrio dinâmico da ecologia urbana, relegando ao

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brasileira.

segundo plano um processo determinante e que perdura há cinco mil anos como o é a

urbanização.

Na análise de macro-tendências das regiões brasileiras, as regiões norte e centro-oeste

caracterizam-se por apresentarem, grosso modo, biomas ainda preservados: a Amazônia, o

Pantanal e o Cerrado. Eles correspondem, respectivamente, a 43%, 23% e 2% do território

brasileiro.4 Em 2000, as regiões norte e centro-oeste obtiveram cada qual graus de urbanização

de 70% e 87%. As mais urbanizadas, o sudeste e o sul, 91% e 81%.5

Em 2007, o percentual da população brasileira residente em área costeira era de 24% da

população total. Na região nordeste, a segunda mais povoada do país, com 28% da população

total, a população residente em área costeira chegou a 38%.6 Conflituosamente, essa mesma

região abriga a Caatinga, bioma de clima semi-árido que há tempos vem justificando enormes

dificuldades de acesso a bens e serviços. Nela habitavam cerca de 16 milhões de pessoas

(HOGAN, 2005, p. 4) em condições muito severas de sobrevivência,7 fatores que há mais de um

século explicam porque, ainda hoje, a região nordeste ocasiona importantes fluxos migratórios (Id.

ibid., p. 10).

No presente histórico, em que pese abrigar a extensíssimas áreas praticamente despovoadas, o

Brasil, em síntese, é um país intensamente urbanizado. A tendência mais provável é a de

crescimento da população urbana nas metrópoles milionárias e nas cidades com população entre

100 mil a 200 mil habitantes, assim como o aumento expressivo do número de cidades com mais

de 200 mil habitantes (SILVA NETO, 1998, p. 118).

Em pouco mais de cinco séculos, a experiência da sociedade urbana no Brasil variou de zero a

100% de urbanização. Com densidade demográfica média de 22 habitantes por Km2 em 20078,

valor que representava oscilações que iam de 1 a 12.911 habitantes por Km2 em 20009, a

variação de zero a 100% é somente uma metáfora para explicar a dinâmica do processo de

urbanização

Mas tal afirmação não é de todo falsa. Havia, em 2000, 60 municípios cujo grau de urbanização

correspondia a rigorosamente igual a 100%. Embora persistam muitas perguntas sem explicação

a respeito do que territorialmente corresponderia ao perímetro urbano em cada uma das

municipalidades brasileiras, o fato é que esses 60 municípios correspondiam a 18% da população

residente urbana do país. Por aproximação decimal a 100% de urbanização, o número de

municípios saltaria para 84, com 24% da população urbana e, se levada em conta desde a faixa

acima de 99%, eram 123 municípios correspondendo a 31% dos residentes em cidades no Brasil.

O município de São Paulo estava na casa dos 94% de grau de urbanização. Do intervalo que

abrange São Paulo até aos municípios integralmente urbanizados, isto é na classe de 94 a 100%

de urbanização, existiam 369 municípios, 7% do total de 5.564. Neles habitavam 59% da

população com domicílio urbano no Brasil. Já os 466 municípios que conformam as 29 unidades

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metropolitanas brasileiras, abrigavam 41% da população total e 48% da população urbana.10

Portanto, de um modo ou de outro, é possível afirmar-se que o país, ou melhor, a sociedade

brasileira é francamente urbanizada e seu retrato mais fiel é, sem dúvidas, o estado de São Paulo.

Nele pode-se definir um plano empírico para contextualizar a argumentação central deste texto.

Mais precisamente, propõe-se focar os 135 municípios abrangidos pelo raio de 120 km a partir da

capital do estado. Eles conformam a Macro-metrópole paulista, delimitação territorial que, desde a

década de 1970, chamava a atenção pelo alto grau de vulnerabilidade das condições de vida.

Ainda nos anos 1970, as diretrizes gerais do Plano de Desenvolvimento Urbano e Regional

atribuíam à região metropolitana de São Paulo e Baixada Santista as características de “área de

recuperação da qualidade de vida”. Dizia-se, então, que “nesta área teve lugar o maior processo

de urbanização e de desenvolvimento do Estado e do País, com manifestações patológicas” (SÃO

PAULO (ESTADO), 1976, p. 23). No caso, a estratégia visava desconcentração urbana e

industrial com especial atenção à conurbação iminente com as “áreas de controle”, tais como os

eixos Rio-São Paulo e São Paulo-Campinas, cidades turísticas, abrangendo inclusive o litoral

norte (Id. ibid. p. 23).

Note-se que o fenômeno da “desconcentração da concentração” identificada por Carlos Roberto

Azzoni em 1986, ainda encontra-se em atividade. Expresso em termos populacionais, a

sinalização do fenômeno está relacionada à aceleração da densidade demográfica. Para efeito

comparativo, a densidade demográfica em todas as dimensões espaciais do país apresenta

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tendência crescente. Em 1980, a densidade demográfica do Brasil era de 14 habitantes/km2 e, 27

anos depois, em 2007, passou a 22 habitantes/km2.11

Crescente no país, a tendência é acentuada no estado de São Paulo e ainda mais na área

correspondente à Macro-metrópole paulista. Em 2007, essa área apresentou a densidade

demográfica de 683 habitantes/km2.

Densidade demográfica (habitante/km2)

0

100

200

300

400

500

600

700

800

Brasil

Estado de São Paulo

Macrometrópole

Brasil 14 17 20 22

Estado de São Paulo 100 126 149 160

Macrometrópole 417 528 629 683

1980 1991 2000 2007

0

2000

4000

6000

8000

10000

12000

Macrometrópole

Campinas

São Paulo

Osasco

Taboão da Serra

Macrometrópole 417 528 629 683

Campinas 744 948 1091 1172

São Paulo 5617 6369 6909 7214

Osasco 6958 8317 9584 10309

Taboão da Serra 4845 7937 9862 10960

1980 1991 2000 2007

No interior da RMSP, a dinâmica repete-se, porém mais intensamente. No município de São

Paulo, em 2007, a densidade demográfica foi de 7.214 habitantes/km2, mas em Osasco e Taboão

da Serra – e particularmente neste último – o ritmo de crescimento não foi apenas muito

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acentuado. Também foi gigantesco. Nesses dois municípios a densidade demográfica

correspondeu, respectivamente, a 10.309 e 10.690 habitantes/km2.

Nos 20 km2 da extensão territorial do município de Taboão da Serra, a densidade demográfica

total equivaleu a 110 habitantes/ha em 2007. Para se ter uma noção das dimensões desses

valores, no bairro de Nova Campinas, em 2000, a densidade urbana média estava na ordem 31

habitantes/ha. Empreendimento da Companhia City12, esse bairro foi desenhado segundo o

modelo das cidades-jardim.

Pois bem. Se esse bairro fosse ocupado com a densidade demográfica total de Taboão da Serra,

poderia abrigar quase 15 mil habitantes, ao invés de 3.900 habitantes que correspondeu,

aproximadamente, a população de Nova Campinas em 2000. Isto é, a qualidade ambiental

existente no bairro, expresso pela vegetação, equipamentos e infra-estruturas urbanas instaladas

poderia ser compartilhada por três vezes mais pessoas além das ali residentes.

E o detalhe é que essas estimativas são inverossímeis, uma vez que se equiparou a densidade

demográfica total de Taboão da Serra com a densidade urbana de Nova Campinas.13 Ainda

assim, é possível aproximar-se da hipótese de que as altas densidades urbanas em um país como

o Brasil são, por enquanto, absolutamente inviáveis. E a razão é uma só. O Estado não garante os

custos da urbanização e nem tampouco os de manutenção dos serviços, equipamentos e infra-

estruturas urbanas. O contexto de potencialização da sustentabilidade possível por meio das

cidades compactas está longe de ser uma realidade para os brasileiros.

Vejam-se as seguintes comparações. A densidade urbana em torno de 300 habitantes por hectare

(habitantes/ha) era recomendada pelo urbanismo funcionalista como ideal para a compatibilização

de fatores como custos de urbanização, ventilação, insolação, salubridade, etc. Foi a densidade

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urbana projetada por Lúcio Costa para as superquadras do Plano Piloto de Brasília. Em 2000, a

densidade urbana média da RMC foi de 83 habitantes/ha. Em Campinas, a média foi de 105

habitantes/ha, embora haja setores urbanos muito adensados, atingindo mais de 1.200

habitantes/hectare. Os 100 setores urbanos mais adensados da cidade de Campinas

apresentaram a média de 445 habitantes/hectare. Na cidade de São Paulo, também em 2000, a

média dos 100 setores urbanos mais adensados foi de 8.039 habitantes/ha.

Por fim, o contexto da macrometrópole paulista é um laboratório instigador para o estudo e

proposição de estratégias de sustentabilidade. Nessa área pode ser encontrado um conjunto

enormemente variado de particularidades. Desde as situações mais graves, como as comentadas

acima, até exemplos característicos da urbanização dispersa e fragmentada. Campinas é um

deles. No entanto esse seu quadro pode alterar-se ao sabor das forças especulativas do mercado

imobiliário. O imenso estoque de terras garantidas pelo município pari passu à constituição dessa

enorme região de metrópoles centrada na capital, São Paulo, e ao aumento e expansão da

densidade técnica presente no território são alguns dos fatores que podem produzir efeitos

perturbadores de certa qualidade ambiental ainda presente em Campinas. Mas esses prenúncios

ainda podem ser evitados.

Explorando tais dinâmicas e processos do ponto de vista sistêmico-tecnológico, e se, de fato,

comprovar-se a hipótese de que o aumento da densidade técnica e, por consequência, a de

viabilização das concentrações demográficas pode constituir fator favorável da relação homem-

sociedade-natureza, a análise desses resultados pode ser qualitativamente reangulado.

Paradoxalmente, e por hipótese, as áreas densamente povoadas seriam mais susceptíveis à

sustentabilidade.

Sobre novas possibilidades de arranjo das relações homem-natureza

O tema das cidades compactas está diretamente relacionado a uma tipologia arquitetônica que

não é novidade: edificações com altas densidades construtivas e habitacionais. Os exemplos mais

emblemáticos remontam ao século II a. C.: as insulae, ou ilhas. Segundo Lewis Munford,

competiam “(...) com as covas de detritos de Roma, como exemplos clássicos de imunda

administração municipal. (...) Enquanto um punhado de patrícios, cerca de mil e oitocentas

famílias, ocupava grandes mansões privadas, não raro com amplos jardins e casas

suficientemente grandes para conter todo um agrupamento de servos livres e escravos, (...) a

grande massa do proletariado, em agudo contraste, vivia em cerca de quarenta e seis mil prédios

de apartamentos que devem ter contido, em média, perto de duas mil pessoas cada um” (1982, p.

242).

Grandes cidades com altas densidades populacionais também não são fatos recentes. No séc. II

d. C., Roma contava com um milhão de habitantes e as insulae chegavam a atingir sete

pavimentos. A estratégia dos arquitetos era ganhar em altura o espaço que faltava no solo,

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propiciando aos proprietários desses edifícios lucro garantido decorrentes do aluguel de quartos

ou apartamentos aos expropriados de Roma. Comerciantes e artesãos ocupavam os pisos

térreos.

Situação semelhante, mas em proporções historicamente inéditas, ocorreria no século XIX, com

as cidades industriais. “Os escravos galés do Oriente, os miseráveis prisioneiros empregados nas

minas de prata atenienses, o proletariado deprimido das insulae de Roma – tais classes

conheceram, não há dúvida, desgraças semelhantes; nunca, porém, os rigores humanos tinham

sito tão universalmente aceitos como coisa normal: normal e inevitável” (Id. ibid., p. 513).

E é nessa dimensão social, no plano da cultura, que se impõe romper a cisão das ciências

naturais com as sociais. Encarar situações críticas como fatalidades que não se pode evitar – e os

problemas ambientais oriundos da urbanização contemporânea, tais como poluição, geração de

resíduos, racionalização energética, etc. vem sendo apresentados como meros temas da “pegada

ambiental”, desfalcando-lhes a dimensão política fundamental – é uma noção ideologicamente

produzida pela cisão artificial do conhecimento. Uma vez herdada pelas sociedades

contemporâneas, permite apenas a construção de uma visão de mundo extremamente limitada e

utilitarista.

Bruno Latour situa as origens dos problemas relacionados à compreensão do mundo

contemporâneo por volta do século XVII, quando teriam sido criadas, “‘por purificação’, duas

zonas ontológicas inteiramente distintas” que instauram os discursos da modernidade: a dos

humanos e dos não-humanos (1997, p. 21)14.

Por isso, a versão banalizada do ambientalismo ao antepor o homem à natureza, ao invés de

servir como elemento de dissuasão a favor da causa ambiental pode surtir efeito contrário.

Centrado na dependência do homem em relação à natureza, e geralmente relegando ao segundo

plano a primazia das relações sociais em face de qualquer outra classe de relações, o discurso

enfeixado na causa ambiental pode dificultar compreender a problemática da crise

contemporânea.

A dependência crescente dos artefatos criados pelo próprio homem. Os limites da vida e da

corporeidade humana compreendidos como condições inaceitáveis a serem eliminadas e, o que é

mais grave, que realmente podem sê-lo. O mercado global que une e separa os agentes sociais,

misto de fatalidade do mundo das finanças e da economia e de maravilha técnica que viabiliza a

produção de objetos de consumo cobiçados e consumidos por milhões e milhões de pessoas. A

unificação política das nações do planeta. Estes poucos exemplos permitem traçar as linhas

gerais da configuração cultural da atualidade que pode estar engendrando o estranhamento do

homem em relação à natureza sem lhe dar o benefício de compreender os processos

socioespaciais que estão na base das questões ambientais.

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No Brasil, fenômenos que promovem a destruição do ambiente em proporções jamais vistas estão

longe de serem difundidos pelos meios de comunicação e debatidos e trazidos a público pela

classe política. O mais estranho é que, contraditoriamente, no período militar, a preocupação com

a “qualidade de vida e do meio ambiente” estava explicitamente associada ao processo de

urbanização e não à temática ambiental, que diga-se, já estava aflorada. A violência no trato com

o ambiente ocorria nos anos do “milagre econômico”, ao mesmo tempo em que já nascia a reação

indignada de cientistas como a de José A. Lutzenberger, em seu “Manifesto ecológico brasileiro”.

Antes de tornar-se livro, esse documento pioneiro, corajoso para uma época como a de meados

dos anos 70, no auge do regime militar, podia ser adquirido em bancas de jornal, como mero

pasquim.

Atualmente, não se fala em desconcentração espacial, não se relaciona a deterioração acelerada

das condições de vida à urbanização que interessa ao mercado fundiário e imobiliário e aos

agentes bancário-financeiros e nem tampouco ao tema da ideologia negligenciado, inclusive, nos

estudos acadêmicos. O homem, vilão, a natureza, indefesa, são atores que se digladiam

publicamente deixando, na penumbra protetora do medo gerado por essa luta desigual e

sangrenta, os verdadeiros agentes e as dinâmicas socioespaciais que fragilizam o direito ao futuro

para todos. Eles ficam praticamente indetectáveis.

Desse modo, parece difícil advogar a favor de novas possibilidades de arranjo e de interação

sociedade-natureza e, mesmo, sobre a compactação como tendência admissível de organização

espacial das cidades. Ainda assim, e porque se entende que as poucas chances de equacionar de

modo satisfatório a problemática ambiental se dão por intermédio da configuração territorial

produzida historicamente pelas sociedades, propõe-se lançar ao debate as seguintes proposições.

Quanto à potencialidade de encontro dos atores sociais

No período histórico atual, a concentração da população em áreas urbanas surge como um

quadro com poucas chances de se reverter. Há estimativas de que 80% da população urbana do

Brasil viverão em 10% das cidades (Hotz, 2001). Mesmo assistindo-se a um processo de

diminuição das taxas de crescimento da população nas grandes cidades, o espraiamento do

fenômeno da urbanização concentrada ao redor das regiões metropolitanas é categórico, o que

faz recrudescer os problemas ambientais. Por exemplo, o equacionamento da questão dos

recursos hídricos ao redor da capital de São Paulo envolve, no mínimo, duas regiões

metropolitanas – São Paulo e Campinas – e a gigantesca comunidade de mais de 22 milhões de

pessoas.

No entanto, essas condições podem apontar cenários benéficos? Sim, pode. E a explicação está

relacionada à possibilidade de aumento das sinergias potencializadas com as aglomerações

humanas. Se a urbanização industrial marca os primórdios da produção de um tipo cidade

interpretada por autores consagrados da história urbana como retrocesso (MUNFORD, 1982),

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visto por outro ângulo o fenômeno propiciou outros desdobramentos que, para todos os efeitos, foi

exitoso. Por exemplo.

“Pela metade do século XVII havia muitos que viam claramente que [a] cooperação entre ciência e

engenharia prática formava a base primordial dos melhoramentos técnicos. Nesse século e no

século seguinte houve um aumento notável do número de patentes (figura 1)” (FORBES, (1958)

1976, p. 74).

Também, a natureza gregária do ser humano, a necessidade do encontro é algo que não pode ser

deixado de lado, apesar das implicações negativas que as aglomerações urbanas, especialmente

as gigantes, possam trazer. A polis teria sido um “lugar de encontro” para a discussão dos

assuntos políticos, de “indagação a respeito da existência”, em contraposição aos assuntos

domésticos, tidos como menores. Os cidadãos da polis distinguiam-se na sociedade grega por

desfrutarem da liberdade de “pensar”, de “agir” e de usufruir a “vida activa”15 (ARENDT, 1991,

p.15-26).

A “sociodiversidade” é outro fenômeno que não se pode ignorar como estratégia que a própria

natureza social dos homens urde como estratégia com a virtude de reverter a tendência de

destruição do habitat artificial das sociedades contemporâneas. Num mesmo lugar, e

especialmente nas grandes cidades, há enorme heterogeneidade de tipos de pessoas que as

habitam, o que pode produzir o que Milton Santos definiu como revanche do território. Isto é, a

sociodiversidade é capaz de produzir outro período histórico formulado sob outras bases de

existência social dos homens no ecúmeno16.

Quanto à viabilidade econômico-financeira da compactação urbana

Ora, o adensamento populacional, traduzido sob formas compactas, dá mostras de sobra de que

é um negócio viável. Caso contrário, a história, tanto a remota, quanto a recente não teriam

registrado a densidade urbana como um fato diretamente relacionado à obtenção do lucro, à

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produção da mais-valia urbana. Então, porque, sob novas condições históricas, a compactação

deixaria de surtir o mesmo efeito, com a diferença de que, agora, a geração da “lucratividade”

pudesse reverter-se a favor das comunidades urbanas envolvidas? O processo produtivo é o

mesmo, a organização do trabalho semelhante, enfim, as etapas desenvolvidas na construção dos

espaços compactos não divergem do que, atualmente, estão colocadas em jogo pelo mercado da

habitação popular. A diferença estaria no controle social e nas finalidades do processo produtivo.

Tanto o controle social, quando as finalidades do processo produtivo estariam direcionados ao

interesse comum, visto como interesse de todos, e às estratégias socialmente necessárias. Nelas,

a de equacionamento da problemática ambiental contemporânea.

Não há porque abandonar a perspectiva, e não se trata de colocar em marcha qualquer espécie

de movimento revolucionário. Trata-se, sim, de outro movimento histórico, de novo arranjo das

forças sociais capaz de restabelecer as relações homem-sociedade-natureza.

Quanto à dimensão sistêmico-tecnológica da sustentabilidade do espaço

construído

Por fim, não há dúvida de que os espaços compactos são muito mais viáveis para que se alcance

os efeitos benéficos da sustentabilidade do que os espaços dispersos. Basta refletir a respeito da

veracidade dessa hipótese a partir de um mero exemplo como a da reciclagem dos resíduos

sólidos. Porque são dispostos de modo a se concentrarem e a se dividirem?

Assim como os recipientes coloridos que auxiliam a triagem de toneladas e toneladas de lixo, as

residências, os edifícios, as quadras, os bairros, as cidades, as regiões, etc., poderiam dispor de

organizações sistêmicas onde cada qual corresponderia a uma unidade em interação dinâmica

com as demais, a exemplo da matriz insumo-produto.

Quanto ao sprawl urbano, pelo menos desde meados dos anos 1990 o fenômeno é reconhecido

como rigorosamente insustentável (ACIOLY e DAVIDSON, 1998, p. 7)17

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Conclusões, sob a forma de hipóteses

1) Não há como refletir, analítica ou propositivamente, a sustentabilidade ambiental e, em

particular, intervir no equilíbrio dinâmico da ecologia urbana, relegando ao segundo plano um

processo determinante e que perdura há cinco mil anos como o é a urbanização.

2) Recentíssimo, o conhecimento relacionado à produção social das cidades no contexto da

crise ambiental contemporânea ainda se vê cativo de modelos tradicionais de formulação

urbanística, impedindo a inovação tecnológica de processos e de projetos e o ensaio de

possibilidades de novos arranjos de aglomerações humanas que, a princípio, surgem adjetos à

artificialização da natureza.

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1 Segundo o Comitê das Bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, no estado de São Paulo, apenas 30% dos cursos de água da

região mantêm a classificação original. Em 1970 o governo paulista enquadrou os rios em classes de 1 a 4, quando, então, a maior

parte dos cursos d’água da Unidade de Gerenciamento de Recursos Hídricos Piracicaba-Capivari-Jundiaí foi enquadrada na classe 2,

ou seja, água para abastecimento público com tratamento normal. Em 2008, o quadro reverteu-se. Muitos trechos se enquadram na

classe 4: imprópria para o abastecimento público e mesmo para a reprodução da vida aquática. Para se ter uma noção do vulto dos

recursos necessários, o Plano de Bacias 2008-2011 estimou que para reverter a degradação das águas da região serão necessários

R$ 3,08 bilhões em investimentos até 2020 (COMITÊ PCJ).

2 Fonte dos dados primários: IBGE, Contagem da População 2007 e Estimativas da População 2007.

3 Fonte dos dados primários: IBGE, SIDRA, Tabela 1288 – População nos Censos Demográficos por situação do domicílio – 2000.

4 Fonte dos dados primários: IBGE, SIDRA, Tabela 908 - Área total dos biomas – 2008.

5 Fonte dos dados primários: IBGE, SIDRA, Tabela 1288 - População nos Censos Demográficos por situação do domicílio – 2000

6 Fonte: IBGE, SIDRA, Tabela 1121 - População residente total e em área costeira e Proporção da população residente em área

costeira - 2007.

7 “O maior problema ambiental é a desertificação, agravada pelo uso intensivo da irrigação com tecnologia imprópria, pela

contaminação de fontes de água disponíveis e pelo desmatamento para obter-se lenha e carvão” (Hogan, 2005, p.10).

8 Fonte dos dados primários: IBGE, Contagem da População 2007 e Estimativas da População 2007.

9 Fonte dos dados primários: IBGE, Mapa do Brasil de densidade demográfica – 2000. Disponível em:

<http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/mapas/brasil_demografia.htm>. Acesso em Acesso em: 6 jun. 2009.

10 Fonte dos dados primários: IBGE, Censo Demográfico – 2000.

11 As fontes de informação primária das estatísticas apresentadas a seguir correspondem, respectivamente aos anos, às mencionadas

anteriormente.

12 A Companhia City é o nome pelo qual é conhecida a empresa fundada em 1912 com o nome de City of São Paulo Improvements

and Freehold Land Company Limited. Essa companhia participou ativamente no processo urbanístico dos bairros burgueses da cidade

de São Paulo.

13 “Taboão da Serra, cidade de 230.000 habitantes, situada na Região Metropolitana de São Paulo, responde pelo desconfortável título

de “a sexta cidade mais compacta” do Brasil. Na extensão de sua paisagem conurbada, apresenta uma fisionomia árida, com pouca

cobertura vegetal e solo largamente impermeabilizado a despeito de sua base biofísica amplamente irrigada. A paisagem urbana

espelha ainda a desigualdade social do Brasil. A cidade encontra-se em sua maior extensão territorial, acomodada na Bacia

Hidrográfica do Rio Pirajuçara, um dos mais importantes tributários do Rio Pinheiros, em São Paulo” (Gonzatto e Boucinhas, 2007, p.

305).

14 “De um lado, estaria Hobbes, fundador da ciência política e das ciências sociais e, de outro lado, encontraríamos Boyle, o grande

autor das ciências naturais e exatas. Essa separação entre ‘um poder científico representativo das coisas e um poder político,

representativo dos sujeitos’ é um dos pontos de partida do paradoxo moderno, ‘com a separação total entre natureza e cultura’ (B.

Latour, 1991, p. 46-47)” (Santos, 2000, p.81).

15 “Com a expressão vida activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. Trata-se de

atividades fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao

homem na Terra. (...) O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano (...). A condição humana do labor

é a própria vida. (...) O trabalho é a atividade corresponde ao artificialismo da existência humana (...). O trabalho produz um mundo

‘artificial’ de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural (...). A condição humana do trabalho é a mundanidade. (...). A

ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição

humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. (...) A ação seria um luxo

desnecessário, uma caprichosa interferência com as leis gerais do comportamento, se os homens não passassem de repetições

interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza e essência, tão previsíveis quanto a natureza e

a essência de qualquer coisa. A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos,

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sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir” (p.15-16). A vida ativa

corresponde à capacidade humana da “ação”, ou seja, a capacidade de interferir no delineamento da vida e, consequentemente, do

futuro. Aristóteles, segundo a autora, propunha ainda três modos de vida em que os homens podiam escolher livremente, ou seja, três

níveis de ação que “(...) têm em comum o fato de se ocuparem do ‘belo’, isto é, de coisas que não eram necessárias nem meramente

úteis: a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da polis, na

qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza

perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada através do consumo humano” (ARENDT, 1991, p.

20-21).

16 “Tais novas condições tanto se dão no plano empírico quanto no plano teórico. Considerando o que atualmente se verifica no plano

empírico, podemos, em primeiro lugar, reconhecer um certo número de fatos novos indicativos da emergência de uma nova história. O

primeiro desses fenômenos é a enorme mistura de povos, raças, culturas, gostos, em todos os continentes. A isso se acrescente,

graças aos progressos da informação, a ‘mistura’ de filosofias, em detrimento do racionalismo europeu. (...) Um outro dado de nossa

era, indicativo da possibilidade de mudanças, é a produção de uma população aglomerada em áreas cada vez menores, o que permite

ainda maior dinamismo àquela mistura entre pessoas e filosofias. As massas de que falava Ortega y Gasset na primeira metade do

século (La rebelión de las masas, 1937), ganham uma nova qualidade em virtude da sua aglomeração exponencial e de sua

diversificação. Trata-se da existência de uma verdadeira sociodiversidade, historicamente muito mais significativa que a própria

biodiversidade. Junte-se a esses fatos a emergência de uma cultura popular que se serve dos meios técnicos antes exclusivos da

cultura de massas, permitindo-lhe exercer sobre esta última uma verdadeira revanche ou vingança. É sobre tais alicerces que se

edifica o discurso da escassez, afinal descoberta pelas massas. A população aglomerada em poucos pontos da superfície da Terra

constitui uma das bases de reconstrução e de sobrevivência das relações locais, abrindo a possibilidade de utilização, ao serviço dos

homens, do sistema técnico atual. No plano teórico, o que verificamos é a possibilidade de produção de um novo discurso, de uma

nova metanarrativa, um novo grande relato. Esse novo discurso ganha relevância pelo fato de que, pela primeira vez na história do

homem, se pode constatar a existência de uma universalidade empírica. A universalidade deixa de ser apenas uma elaboração

abstrata na mente dos filósofos para resultar da experiência ordinária de cada homem. De tal modo, em um mundo datado como o

nosso, a explicação do acontecer pode ser feita a partir de categorias de uma história concreta. É isso, também, que permite conhecer

as possibilidades existentes e escrever uma nova história” (SANTOS, 2000, p. 20-21).

17 “Um relatório recentemente publicado sob o título ‘Beyond Sprawl: Nem Patterns of Growth to Fit the New Califórnia’ (...) tem

recebido o apoio de uma coalização de associações composta pela Agência de Conservação de Recursos da Califórnia; o Banco da

América, o maior banco californiano; a Greenbelt Alliance, uma organização de conservação e planejamento que representa os

moradores da Bay Area, e o Fundo de Habitação de Baixa Renda, uma organização sem fins lucrativos dedicada a habitação para as

classes mais pobres. [O] relatório afirma o seguinte: (...) não há dúvida de que este padrão de crescimento ajudou a explosão do

crescimento econômico e populacional sem paralelo e que permitiu a milhões de californianos realizarem o sonho da casa própria.

Entretanto, ao aproximar-nos do século 21, fica claro que o modelo do ‘urban sprawl’ provocou enormes custos que a Califórnia não

pode e não tem mais condições de assumir. Ironicamente, a expansão desenfreada e baseada na baixa densidade – sprawl -, que um

dia foi a força motor do crescimento californiano, hoje transformou-se numa força inibidora do crescimento e que degrada a qualidade

de vida em nosso estado” (ACIOLY e DAVIDSON, 1998, p. 47).