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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO
ANA BEATRIZ NUNES PAIVA DO AMARAL
A APLICAÇÃO DA COISA JULGADA SECUNDUM EVENTUM PROBATIONIS NAS LIDES PREVIDENCIÁRIAS
NATAL/RN 2017
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ANA BEATRIZ NUNES PAIVA DO AMARAL
A APLICAÇÃO DA COISA JULGADA SECUNDUM EVENTUM PROBATIONIS NAS LIDES PREVIDENCIÁRIAS
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como pré-requisito parcial de Conclusão do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientador: Professor Mestre Carlos Wagner Dias Ferreira. NATAL/RN 2017
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Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Amaral, Ana Beatriz Nunes Paiva do. A aplicação da coisa julgada secundum eventum probationis nas lides
previdenciárias/ Ana Beatriz Nunes Paiva do Amaral. - Natal, RN, 2017. 89f. Orientador: Prof. Me. Carlos Wagner Dias Ferreira.
Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Departamento de Direito.
1. Direitos Fundamentais Sociais – Monografia. 2. Direito Processual Previdenciário - Monografia. 3. Dignidade da Pessoa Humana - Monografia. 4. Proteção Previdenciária - Monografia. 5. Coisa julgada - Secundum Eventum Probationis.- Monografia. I. Ferreira, Carlos Wagner Dias. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 342.7
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AGRADECIMENTOS A conclusão deste trabalho me proporciona uma sensação de felicidade, por
estar finalizando mais um ciclo da minha vida;; de orgulho, por ter vivido o sonho de
cursar Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte;; e de gratidão, pelo
apoio de tantas pessoas que viveram cada conquista, no decorrer desses últimos
cinco anos, ao meu lado.
Gostaria de agradecer, inicial e principalmente, aos meus pais, Airene e Sufia,
que além de grandes incentivadores, sempre transbordaram amor, educação e bons
exemplos para mim e meus irmãos. Agradeço a dedicação, a torcida e o apoio que
me deram em cada objetivo que almejei, bem como o amparo nos momentos de
maiores dificuldades. O alicerce que vocês construíram na minha educação, ao longo
desses meus vinte e dois anos, talvez, hoje, tenha o maior reflexo e retribuição que
eu possa lhes dar, a minha graduação. Obrigada!
Estendo os meus agradecimentos aos meus irmãos, Felipe e Arthur, que me
mostram diariamente o significado de companheirismo, de doação ao próximo, de
amor e de união.
Sou extremamente grata também aos meus primos, em particular, Diana e João
Pedro, e aos meus tios, principalmente, Raimundo e Betânia, por terem sonhado e
vivido essa graduação ao meu lado, por terem sido refúgio nas dificuldades, e fortaleza
diante das fragilidades. Obrigada pelo amor que exala em nossa família e que nos
sustenta para quaisquer sonhos que queiramos alcançar.
Não poderia deixar de agradecer aos meus amigos por dividirem comigo todos
os desafios enfrentados ao longo da graduação. Especialmente direciono minha
gratidão a Bruna e Isabela, presentes em cada etapa deste trabalho, acompanhando-
me nos momentos de pesquisa e produção.
Agradeço, ainda, a Victor, que esteve comigo nesses quase cinco anos, sendo
companheiro, compreensivo e grande incentivador dos meus objetivos.
Reservo um agradecimento especial a Deus, que me concedeu o dom da vida
e que rege, guarda e guia todos os meus caminhos.
Por fim, serei eternamente grata e levarei sempre comigo as grandes amizades
que construí neste curso e os bons exemplos de mestres que tive durante a
graduação, dentre os quais destaco aqueles que compõem a banca de avaliação do
meu trabalho, os professores Zéu Palmeira Sobrinho, Francisco Barros Dias e Carlos
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Wagner Dias Ferreira. Agradeço a este último não apenas pelo excelente exemplo
que passou enquanto docente, mas pela dedicação e orientação incansável na
elaboração da minha pesquisa.
A todos que estiveram ao meu lado e participaram ativamente deste processo,
o meu muito obrigada.
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“Negar ao povo trabalhador, na sua grande maioria
pobre e sofrido, a oportunidade de valer-se de um
mecanismo processual que lhe propicie rever, por
meio de uma nova ação judicial, o direito
previdenciário indevidamente negado em um
processo precedente, essencialmente ficto, é
atribuir-lhe, sem compaixão à dignidade da pessoa
humana, mais pobreza e sofrimento”.
(João Carlos Barros Roberti Júnior)
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RESUMO A proteção previdenciária consiste em um direito fundamental social de relevância ímpar, posto que proporciona aos indivíduos os meios necessários para uma sobrevivência digna. Diante disso, o Estado Democrático de Direito tem o dever de buscar, sempre, facilitar a concretização deste direito, levando em consideração os valores humanísticos e o caráter social consagrados pela Constituição Federal de 1988. Nessa perspectiva, o direito processual previdenciário detém singularidades que clamam por técnicas processuais específicas as quais, de fato, concretizem o acesso à justiça, o devido processo legal e o referido direito social. O regime geral pro et conta da coisa julgada, estabelecido pelo processo civil tradicional, não se apresenta compatível com a verdade real e a realidade social em que se insere o processo previdenciário. Por vezes, a imutabilidade da decisão sacrifica direitos legalmente garantidos a segurados que, por falta de diligência e informação, não obtiveram êxito em provar na ação judicial. A eternização de decisões nesse sentido não é condizente com uma ordem jurídica que protege os mais necessitados, prega a justiça social e a existência digna a todos. Diante disso, a aplicação da coisa julgada secundum eventum probationis, a qual impede a constituição de coisa julgada material em decisões judiciais improcedentes por insuficiência de provas, é a técnica processual mais legítima para as demandas previdenciárias. E, apesar de não haver previsão legal específica para tanto, os métodos hermenêuticos contemporâneos, que guiam os operados do direito a uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico de acordo com os fins constitucionais, legitimam uma atuação ativa do Judiciário em prol da concretização dos direitos e princípios fundamentais, tendo como sentido prevalecente a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil. Palavras-chave: Direito Processual Previdenciário. Direitos Fundamentais Sociais. Dignidade da Pessoa Humana. Proteção Previdenciária. Coisa Julgada Secundum Eventum Probationis.
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ABSTRACT
The social security protection is a fundamental social right of unique relevance, since it provides individuals with the necessary means for a dignified survival. In view of this, the Democratic State of Law has the duty to always seek to facilitate the realization of this right, assuming that the humanistic values and social character enshrined in the Federal Constitution of 1988. From this perspective, the procedural law on social security holds singularities that claim by specific procedural techniques which, in fact, give access to justice, due process of law and fundamental social rights. The general scheme of the res judicata, established by the traditional civil process, is not compatible with the real truth and the social reality in which the social security process is inserted. Sometimes the immutability of the decision sacrifices legally guaranteed rights to policyholders who, due to lack of diligence and information, have not been successful in proving in the lawsuit. The eternalization of decisions in this sense is not consistent with a legal order that protects the needy, preaches social justice and dignified existence to everyone. Therefore, the application of the res judicata secundum eventum probationis, which prevents the constitution of res judicata material in judicial decisions that are unfounded due because of insufficient evidence, is the most legitimate procedural technique for social security claims. And, although there is no specific legal provision for this, contemporary hermeneutical methods that guide jurists to a systematic interpretation of law in accordance with constitutional purposes, legitimize an active action of the Judiciary in the realization of fundamental rights and principles, as prevailing sense the dignity of the human person, the foundation of the Federative Republic of Brazil. Keywords: The Social Security Law. Fundamental Social Rights. Dignity of human person. Social Security Protection. Res Judicata Secundum Eventum Probationis.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................ 11
2 DIREITOS FUNDAMENTAIS: EVOLUÇÃO E CONSTITUCIONALIZAÇÃO..........14
2.1 CONTORNOS E ORIGEM DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS............................14
2.2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988........19
2.3 O DIREITO FUNDAMENTAL À PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA.........................22
2.4 O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
SOCIAIS.....................................................................................................................27
2.5 O DIREITO CONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA..................................33
3 O INSTITUTO DA COISA JULGADA......................................................................37
3.1 FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA COISA JULGADA...........................................37
3.2 A COISA JULGADA E SUA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL.............................40
3.3 DECISÃO JUDICIAL E FORMAÇÃO DA COISA JULGADA.................................44
3.4 A FLEXIBILIZAÇÃO DA COISA JULGADA SOB O ASPECTO DOUTRINÁRIO E
JURISPRUDENCIAL..................................................................................................47
3.5 A MITIGAÇÃO DA COISA JULGADA E SUA DISCIPLINA LEGAL.......................51
4 A COISA JULGADA NO PROCESSO PREVIDENCIÁRIO.....................................54
4.1 A SINGULARIDADE DA LIDE PREVIDENCIÁRIA................................................54
4.2 A APLICAÇÃO DA COISA JULGADA SECUNDUM EVENTUM PROBATIONIS NO
DIREITO PROCESSUAL PREVIDENCIÁRIO E O ENTENDIMENTO DO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA............................................................................................62
4.3 O AJUIZAMENTO DA AÇÃO E A “PROVA NOVA” NO PROCESSO
PREVIDENCIÁRIO.....................................................................................................77
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 81
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................83
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1 INTRODUÇÃO O presente estudo versa sobre a aplicação da coisa julgada previdenciária na ordem jurídica brasileira. Aqui, parte-se da indagação se a técnica adotada pelo
processo civil clássico (Código de Processo Civil – Lei nº 13.105/15) está consonante
com as peculiaridades inerentes ao processo previdenciário.
Inicialmente, é sabido que, quem aciona o Poder Judiciário busca, de modo
geral, uma solução conclusiva para o seu litígio. Em decorrência disso, o Direito
ostenta o instituto da coisa julgada, o qual exsurge quando a decisão judicial não é
mais susceptível de modificação através de insurgência recursal, tornando-se
imutável dentro e fora do processo. Sendo assim, a coisa julgada configura-se óbice
para o regular andamento de novel processo, de modo que não pode o Estado-Juiz
voltar a julgar a causa e as partes ficam impedidas de reingressar com idêntica
demanda.
A formação da res judicata busca, portanto, assegurar segurança jurídica à
sociedade. Todavia, é evidente que o referido instituto pode consolidar situações
incompatíveis com o ordenamento jurídico. Diante disso, a jurisprudência vem
permitindo a sua relativização no próprio caso concreto, em casos de flagrante
injustiça, a partir de uma ponderação de princípios constitucionais. Ademais,
buscando não sacrificar direitos de relevância incontestável, a legislação ordinária
prevê, também, a mitigação do regime geral da coisa julgada em alguns ramos do
direito, tal como ocorre nos processos penal e coletivo.
No âmbito do processo previdenciário, contudo, não obstante tratar de direitos
eminentemente fundamentais e humanos, de índole alimentar e de elevada
magnitude, o legislativo mostrou-se omisso em proporcionar, na processualística,
meios diferenciados adequados com a realidade material dos valores humanos
discutidos.
Em relação à coisa julgada, especialmente, será desenvolvida, ao logo deste
trabalho, a incoerência do regime geral pro et contra – adotado pelo Código de
Processo Civil – com o processo previdenciário, levando em consideração o princípio
constitucional do acesso a uma ordem jurídica justa, corolário do devido processo
legal, bem como o direito social fundamental à seguridade social que se persegue
numa ação previdenciária.
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Sobre o assunto, a doutrina brasileira apresenta posicionamentos diversificados,
não estando a temática pacificada. Nessa toada, o estudo revela-se bastante
pertinente, sobretudo no direito previdenciário, guiado por princípios que favorecem a
solução da causa de modo a beneficiar o hipossuficiente e a chancelar situações que
melhor representem a verdade real.
Além disso, a temática é relevante para os operadores do direito, ao passo em
que pode servir como catálogo das hipóteses de mitigação da coisa julgada as quais
vêm sendo adotadas pelos tribunais brasileiros, bem como base para novas
interpretações da aplicação do mencionado instituto.
Para atingir o escopo do trabalho, foi procedida a revisão bibliográfica e
documental, com o escopo de realizar uma investigação jurídico-interpretativa.
Destacaram-se como referenciais teóricos as lições de José Antônio Savaris e a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Esclareça-se que, primeiramente, fora
realizada uma leitura exploratória, mediante exame das introduções, prefácios e
conclusões dos materiais encontrados. Depois, uma leitura seletiva definindo qual
material mostrou-se importante para o trabalho, seguida de uma leitura analítica com
base nos textos já selecionados. Por fim, uma leitura interpretativa com finalidade de
relacionar as afirmações dos autores com a proposta de estudo. Com este aparato,
utilizando-se do método hipotético-dedutivo, buscou-se concluir quais seriam as
melhores soluções para a aplicação da coisa julgada na processualística
previdenciária.
Os resultados da pesquisa foram, então, estruturados em três capítulos. O
primeiro tratará dos direitos fundamentais e sua evolução histórico-constitucional, com
o fito de ratificar o direito à previdência social como um legítimo direito social
fundamental e humano. Ademais, serão demonstradas as principais características
dos direitos e princípios fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, o
caráter social adotado pela mesma e a primazia do princípio da dignidade da pessoa
humana por ela enraizado. Será abordado, ainda, o princípio processual fundamental
do acesso à justiça, explicando seu real conceito e seus reflexos no direito processual.
Ao final, o conteúdo versará sobre a importância e legitimação da atuação ativa do
Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais, contemporaneamente,
após a superação do positivismo jurídico.
O segundo capítulo voltar-se-á para a coisa julgada. Nessa perspectiva, explorar-
se-á a sua natureza e seus fundamentos jurídicos, evidenciando o instituto como
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opção político-legislativa, bem como será explanado como se dá a sua formação, de
acordo com as previsões legais. O desfecho do capítulo ficará a cargo da
demonstração da existência da mitigação da coisa julgada tanto nas leis, como na
jurisprudência brasileira, destacando a cognição secundum eventum probationis
adotada nas ações coletivas.
À guisa de conclusão, será analisado, no terceiro capítulo, o direito processual
previdenciário e suas características peculiares, a fim de demonstrar a necessidade
de técnicas processuais específicas para este ramo. Após, o foco deste trabalho será
abordado através da defesa da aplicação da coisa julgada secundum eventum
probationis nas lides previdenciárias. Será apresentado, também, como a
jurisprudência brasileira vem entendendo sobre o tema, alvitrando a análise do
importante precedente do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial Nº
1.352.721/SP). Por fim, o tema será concluído com o esclarecimento de como se dará
o ajuizamento de nova ação e do que se trata a “nova prova” hábil a legitimar a
rediscussão de um mérito já transitado julgado, porém, improcedente por escassez
probatória.
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2 DIREITOS FUNDAMENTAIS: EVOLUÇÃO E CONSTITUCIONALIZAÇÃO
2.1 CONTORNOS E ORIGEM DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais constituem-se base e fundamento de existência dos
ordenamentos jurídicos fundados no Estado Democrático de Direito. O direito à
Previdência Social nasce no âmbito desta singular classe de direitos e, portanto,
incabível seria iniciar a abordagem deste trabalho sem trazer a lume um aparato
reflexivo sobre a dogmática desses direitos.
A vinculação essencial dos direitos fundamentais aos valores histórico-
filosóficos da liberdade e dignidade dos indivíduos os faz terem como característica
basilar a universalidade, pois a busca por esses dois fundamentos é indissociável e
ininterrupta na vida das pessoas, principalmente, nas sociedades ocidentais calcadas
no Estado de direito. Afinal, é sabido que os seres humanos possuem na sua trajetória
histórica um cenário de lutas por melhores condições de vida e instrumentos de
proteção contra o Poder Estatal, sendo esse o papel precípuo dos direitos
fundamentais.
Aécio Pereira Júnior alerta que não se pode olvidar que os direitos e garantias
fundamentais, por conta do neoconstitucionalismo, têm adquirido força normativa
suprema de mais alto grau, como o caso de ordenamento jurídico constitucional que
qualifica os direitos e garantias fundamentais como cláusulas imutáveis, dentre os
quais, sem dúvida, incluem-se os direitos sociais, consoante previsto no art. 60, §4º,
IV, da Constituição Federal12.
1 PEREIRA JÚNIOR, Aécio. Evolução histórica da Previdência Social e os direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 707, 12 jun. 2005. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2017. 2 “Para defender os direitos sociais como cláusulas pétreas, é necessária uma interpretação sistemática da Constituição, situação que nos faz perceber que existem princípios e garantias distribuídos em diferentes passagens do corpo constitucional, portanto, fora do rol disposto no artigo 5º, que tratam das garantias individuais, mas que nem por isso deixam de ser disposições constitucionais protegidas contra a interferência tendente a aboli-las. A abrangência das cláusulas pétreas na esfera dos direitos fundamentais vai além da proteção exclusiva daqueles individuais elencados no artigo 5º, sob pena de, interpretando-se literalmente as disposições do artigo 60, §4º, não apenas os direitos sociais estariam desabrigados de reformas profundas, mas também os direitos de nacionalidade e os direitos políticos também estariam excluídos da proteção outorgada pelo Constituinte. Ainda, levando-se ao extremo essa forma de interpretação, haveria a possibilidade de se sustentar que, mesmo dentre os direitos e garantias catalogados no artigo 5º, somente aqueles de cunho individual estariam protegidos, donde poderia se concluir que o mandado de segurança coletivo não encontraria abrigo contra reformas tendentes a aboli-lo, enquanto que o mandado de segurança individual estaria protegido. Interpretando-se restritivamente o artigo 60, §4º, IV, da CFRB/88, poder-se-ia dizer que a expressão “direitos e garantias individuais” deve ser encarada de tal forma, que apenas os direitos fundamentais
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Ademais, a influência da Constituição no direito público e privado resulta em
uma grande evolução, que trata de compreender os direitos fundamentais como
prioridade do sistema jurídico, constituindo-a na Lei Fundamental mais eficaz, em
todos os segmentos jurídicos3.
Não obstante a sua importância globalmente afirmada, dada a proteção que
guardam aos valores mais caros à sociedade, faz-se imprescindível esclarecer que os
direitos fundamentais não foram sempre os mesmos e nem continuarão a ser com a
evolução social. Tratam-se de direitos eminentemente ligados ao tipo de sociedade à
época, os quais evoluem e se transmitem junto a ela, conforme vem acontecendo
desde o seu surgimento.
Nesse sentido, Paulo Bonavides contribui afirmando que, do ponto de vista
material, os direitos fundamentais variam conforme a ideologia, a modalidade de
Estado, a espécie de valores e princípios que a Constituição consagra. Em suma,
cada Estado tem seus direitos fundamentais específicos4. De mais a mais, é substancial diferenciar os direitos fundamentais, dos direitos
do homem e dos direitos humanos.
Os direitos do homem são garantias não positivadas, decorrentes de valores
ético-políticos considerados hierarquicamente superiores ao próprio direito positivo,
por corresponderem a verdadeiros direitos naturais. Decorrem, portanto, de um ideal
jusnaturalista, baseado na crença de existência de direitos inatos a todos os seres
humanos.
Os direitos fundamentais consistem na positivação dos direitos do homem nos
textos das Constituições nacionais de cada Estado. E, finalmente, os direitos humanos
são valores enraizados no âmbito do direito internacional, mediante seus tratados e
equiparáveis aos direitos individuais do artigo 5º poderiam ser considerados cláusulas pétreas. Contudo, mostra-se de complexa dificuldade diferenciar direitos individuais e os não-individuais. Aliás, aqui, se faz necessária uma indagação: qual o direito social que antes, lá na origem, não é individual? Outra relevante colocação é que o princípio da proibição do retrocesso social impede a supressão ou restrição de direito social reconhecido no sistema jurídico e definido como direito fundamental. José Joaquim Gomes Canotilho, nesse sentido, diz que o princípio da proibição do retrocesso social é aquele segundo o qual o legislador, uma vez reconhecido um direito social, não pode eliminá-lo posteriormente nem retornar sobre seus passos”. GARCIA, Nei Comes. Cláusulas Pétreas – Direitos Sociais. Páginas de Direito: Porto Alegre, 2002. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2017. 3 BLANK, Dionis Mauro Penning. A constitucionalização do direito e sua evolução na matéria ambiental. Cad. De Pós-Graduação em Direito/UFRGS, vol. VIII, n. 1, 2013. 4 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 579.
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convenções internacionais, jus cogens e costumes construídos na arena
transfronteiriça.
Nessa acepção, expõe Ingo Wolfgang Sarlet:
“Direitos fundamentais” se aplicam para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão "direitos humanos" guardaria relação com os documentos de direito internacional, para referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determina ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal5.
No dizer de José Joaquim Gomes Canotilho, os direitos fundamentais cumprem
a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva.
Primeiramente, constituem, no plano jurídico-objetivo, normas de competência
negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente a sua ingerência na
esfera jurídica individual. E, em segundo plano, no âmbito jurídico-subjetivo, implicam
o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir
omissões dos poderes públicos, de modo a evitar agressões lesivas por parte dos
mesmos (liberdade negativa)6.
Mais recentemente, a doutrina passou a classificar os direitos fundamentais em
primeira, segunda e terceira gerações, baseando-se no critério histórico-cronológico
que acabaram por ser constitucionalmente reconhecidos. De acordo com Celso
Antônio Bandeira de Mello, os direitos de primeira geração realçam o princípio da
liberdade e constituem os direitos civis e políticos, compreendendo as liberdades
clássicas, negativas ou formais. Já os direitos de segunda geração, tidos como direito
econômicos, sociais e culturais, identificam-se com a liberdade real, positiva e
concreta, acentuando o princípio da igualdade. E, por fim, os direitos de terceira
geração materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a
todas as formações sociais, consagrando o princípio da solidariedade7.
5 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais – uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 21. 6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 541. 7 Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 22164/SP. Relator: Ministro Celso de Mello, Pleno, Diário da Justiça, Seção I, 17. Nov. 1995. p. 39206. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2017.
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Imperativo ressaltar que, por meio de uma construção doutrinária, firmou-se
que os direitos fundamentais, sob o aspecto formal, são aqueles que possuem como
fonte primária a Constituição de uma nação, pois devem dispor de valor e proteção
especiais. Senão, pode-se observar as palavras de Alexy: “Segundo as definições que
acabam de ser formuladas, de caráter ainda provisório, são normas de direito
fundamental somente aquelas normas que são expressas diretamente por enunciados
da Constituição alemã (disposições de direitos fundamentais)”8.
Em compasso com a tese de Leonardo Martins, o surgimento dos direitos
fundamentais propriamente ditos somente se faz possível com a presença de três
elementos: Estado, indivíduo e texto regulamentador da relação entre Estado e
indivíduos9.
Em princípio, põe-se que aqui se refere a um Estado como "um aparelho de
poder que possa efetivamente controlar determinado território e impor suas decisões
por meio da Administração Pública, dos tribunais, da polícia e das forças armadas"10.
Esse requisito justifica-se na medida em que, sem este Estado, os direitos
fundamentais careceriam de aplicabilidade prática, pois perderiam sua primordial
função de limitar o poder Estatal em face do indivíduo.
Outrossim, deve-se haver indivíduos, na concepção de “seres morais,
independentes e autônomos”, diferentemente das sociedades do passado, em que as
pessoas eram consideradas meramente membros de pequenas e grandes
coletividades, não detendo direitos e vontades próprios11.
Por fim, quanto ao texto regulamentador, este é representado pelas
Constituições, as quais possuem o papel substancial de garantir ao indivíduo seus
direitos, permitindo-o conhecer os limites de sua esfera de atuação, bem como
delinear até que ponto o Estado possui legitimidade para interferir na sua vida sem
ultrapassar garantias da liberdade individual.
Evidencie-se que esta obrigação negativa do Estado em abster-se de intervir
na autodeterminação das pessoas representa o “status negativo” dos direitos
fundamentais. Por outro lado, a possibilidade de o indivíduo cobrar dos governantes
8 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 69. 9 DIMOULIS, Dimitri;; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 22-24. 10 Ibidem, p. 22. 11 Ibidem, p. 23.
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meios de melhoria de condição de vida através de políticas públicas, com vistas a
assegurar-lhes uma vivência digna, representa o “status positivo” – também
denominado de “status social”. Tais esclarecimentos são reflexões decorrentes da
teoria do status, idealizada pelo filósofo do direito Georg Jellinek12.
O desenvolvimento histórico dos direitos fundamentais é indispensável para
percepção de que a sua evolução é diretamente ligada ao surgimento do moderno
Estado Constitucional, o qual, justamente, possui como essência e razão de ser o
reconhecimento e o esforço pela concretização desses direitos13.
Distintamente da maioria dos autores, os quais defendem a onipresença dos
direitos fundamentais desde os primórdios, com manifestações no direito babilônico,
na Grécia Antiga e na Roma Republicana, conforme assevera Leonardo Martins,
reitere-se a defesa do surgimento desta classe direitos somente com a existência dos
três requisitos anteriormente apresentados: Estado, indivíduo e texto regulamentador.
Portanto, o que existia, nas primeiras civilizações humanas, tratavam-se de direitos
dos homens, em sua concepção jusnaturalista14.
Sendo assim, as condições mencionadas somente se reuniram de modo a
fulminarem a aparição dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos na
segunda metade do século XVIII, com a imposição do regime capitalista1516.
Nessa época, houve a proclamação de importantes compilações responsáveis
por brotarem, definitivamente, os direitos fundamentais no mundo jurídico. Entre
essas, inclui-se a Declaração de Direitos da Virgínia, em 1776 – no ano da
independência das 13 ex-colônias da Inglaterra na América do Norte – a qual
salvaguardou direitos como a liberdade, a autonomia, a igualdade e a proteção da
vida do indivíduo.
Não menos importante, em 1789, tem-se a edição da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão na França, inspirada pelos ideais iluministas, trazendo a
proteção de direitos semelhantes aos da Virgínia e introduzindo outros novos, como
12 DINIZ, Bráulio Gomes Mendes. Pedido e sentença na efetivação judicial dos direitos fundamentais: a importância de entender a classificação geracional e conhecer a teoria dos status. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3914, 20 mar. 2014. Disponível em: . Acesso em: 21 ago. 2017. 13 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais – uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 36. 14 DIMOULIS, Dimitri;; MARTINS, Leonardo. Op. Cit., p. 22. 15 DIMOULIS, Dimitri;; MARTINS, Leonardo. Op. Cit., p. 24. 16 Não se pode esquecer, outrossim, a Revolução Gloriosa, ocorrida na Inglaterra ainda no século XVII (entre 1688 e 1699), que culminou com a instituição do Bill Of Rights.
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garantias contra a repressão penal. A principal distinção entre elas, na verdade,
consistiu no afastamento da percepção individualista americana e uma maior
atribuição de responsabilidade e confiança na intervenção do legislador como
representante do interesse geral das pessoas, uma vez que a maioria dos direitos
cominados ficaram subordinados a limites que o legislador deveria estipular17.
Diante do desenvolvimento do capitalismo e com a revolução industrial, o
cenário de desigualdade social assentou-se na Europa e, posteriormente, nos demais
continentes ocidentais. À vista disso, os direitos fundamentais, antes possuidores do
papel precípuo de limitar a interferência estatal na autonomia dos indivíduos,
passaram a abarcar, em muitas normas jurídicas, uma preocupação social,
requerendo do Estado ações positivas a fim de garantir condições de vida digna a
todos, através do oferecimento de saúde, educação, alimentação, trabalho, moradia,
dentre outras atuações necessárias para assegurar aos indivíduos, no mínimo, o
substancial para se ter uma vivência com dignidade.
Nesse passo e, após as inúmeras situações de guerra vivenciadas pela
humanidade nos últimos séculos, os direitos fundamentais se consolidaram, dia após
dia, nos ordenamentos jurídicos nacionais. No direito brasileiro, a maior expressão
dos direitos fundamentais, os quais, no aspecto material, são detentores de forte
conteúdo ético-valorativo, veio a se enraizar por meio da Constituição da República
Federativa do Brasil, em 1988.
2.2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A Carta Constitucional de 1988 legitimou inúmeros direitos e garantias
fundamentais, outorgando-lhes aplicabilidade imediata (CRFB/88, art. 5º, §1º) e
inalterabilidade (CRFB/88, art. 60, §4º, IV). De acordo com Sarlet, é possível afirmar
que, pela primeira vez na história do constitucionalismo pátrio, a matéria foi tratada
com a merecida relevância e com o status jurídico que lhe é devida18.
A respeito do tema, o autor cita o artigo 5º, §1º, como inovação mais expressiva
da Lei Magna, mediante os quais as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais possuem aplicabilidade imediata, excluindo o cunho meramente
17 DIMOULIS, Dimitri;; MARTINS, Leonardo. Op. Cit., p. 25. 18 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais – uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 63.
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programático destes preceitos, conquanto não exista consenso a respeito do alcance
deste dispositivo. De qualquer modo, afirma que ficou consagrado o status jurídico
diferenciado e reforçado dos direitos fundamentais na Constituição vigente19.
Ademais, a Constituição Cidadã foi a primeira na história do constitucionalismo
pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais, localizado na
parte inicial do texto, após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais. Com isso,
o Constituinte deixou transparecer de forma inequívoca a sua intenção de outorgar
aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de
toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais20.
Igualmente sem precedentes em nossa evolução constitucional, houve o
reconhecimento, na seara do direito positivo, do princípio fundamental da dignidade
da pessoa humana (art. 1º, inciso III). Inclusive, mesmo fora da topografia dos
princípios fundamentais, o valor da dignidade da pessoa humana recebeu guarida do
Poder Constituinte, quando, por exemplo, estabeleceu-se que a ordem econômica
tem por fim assegurar a todos uma existência digna (art. 170, caput), bem como no
âmbito da ordem social, quando fundou o planejamento familiar nos princípios da
dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, parágrafo 6º) e,
também, ao assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (art. 227,
caput)21.
Com esse reconhecimento expresso, a Constituição Federal identificou o
sentido, a finalidade e a justificação do exercício do poder estatal, de modo que o
Estado existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem
constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal. Em outras palavras,
segundo os ensinamentos de Jorge Reis Novais, no momento em que a dignidade é
guindada à condição de princípio constitucional estruturante e fundamento do Estado
Democrático de Direito, é o Estado que passa a servir como instrumento para a
garantia e promoção da dignidade das pessoas individual e coletivamente
consideradas22.
19 Ibidem, p. 66. 20 Ibidem, p. 96. 21 Ibidem, p. 96. 22 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais – Trunfos Contra a Maioria. Coimbra: Coimbra, 2006 Apud SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais – uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 98.
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A respeito do conceito e alcance do princípio da dignidade da pessoa humana,
Sarlet conclui23:
Num primeiro momento, a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o art. 1º, inc. III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas uma declaração de conteúdo ético e moral (que ela, em última análise, não deixa de ter), mas que constitui norma jurídico-positiva com status constitucional e, como tal, dotada de eficácia, transformando-se de tal sorte, para além da dimensão ética já apontada, em valor jurídico fundamental da comunidade. Importa considerar, neste contexto, que, na condição de princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razão pela qual se justifica plenamente sua caracterização como princípio de maior hierarquia axiológico-valorativa. (grifos nossos)
Acerca dos direitos fundamentais expressamente previstos na Constituição, o
Poder Constituinte estabeleceu, no Título II, os direitos e garantias fundamentais,
subdividindo-os em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos;; direitos sociais;;
nacionalidade;; direitos políticos e partidos políticos. Assim, pela classificação adotada,
segundo Alexandre de Moraes24, o legislador constituinte identificou cinco espécies
do gênero direitos e garantias fundamentais: direitos e garantias individuais e
coletivas;; direitos sociais;; direitos de nacionalidade;; direitos políticos;; e direitos
relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos.
Esclareça-se que essa listagem é exemplificativa, não exaurindo o catálogo de
direito e garantias fundamentais, conforme a própria Carta Magna estabelece, pois os
direitos e garantias expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil for parte (art. 5º, inciso II, Constituição Federal de 1988).
Por fim, cumpre esclarecer que esses direitos são, em regra, relativos, e não
absolutos. Esse é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, o qual, embasado
no princípio da convivência entre liberdades, concluiu que nenhuma prerrogativa pode
ser exercida de modo danoso à ordem pública e aos direitos e garantias fundamentais,
as quais sofrem limitações de ordem ético-jurídicas. Essas limitações visam, de um
23 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais – uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 105. 24 MOARES, Alexandre de. Direito Constitucional. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 91.
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lado, tutelar a integridade do interesse social e, de outro, a convivência harmônica das
liberdades, para que não haja colisões ou atritos entre elas25.
Dentre direitos e garantias fundamentais expressos na Lei Fundamental, para
o presente estudo, destaca-se os direitos fundamentais sociais, posto que neles se
insere o direito à proteção previdenciária.
2.3 O DIREITO FUNDAMENTAL À PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA
O Brasil firmou-se como um Estado Democrático de Direito, estabelecendo
diversos direitos fundamentais de ordem social, dentre eles, a Previdência, que
solidificaram ainda mais a soberania popular e prestigiaram a dignidade da pessoa
humana, elevando-a a princípio vetor da nossa República (CRFB/88, art. 1º, III).
Os direitos sociais, ditos de segunda dimensão, cujo papel principal é de
prestação social, configuram-se, primordialmente, como prestações positivas estatais,
que têm por premissas a justiça e o bem-estar social, visando-se à isonomia material
e aos objetivos fundamentais da República brasileira, insculpidos no art. 3º da
Constituição Federal, dentre os quais são citados a erradicação da pobreza e da
marginalização, e a promoção do bem de todos.
Nelson Nery Júnior afirma que, na passagem do Estado Liberal para o Estado
de Bem-Estar Social, nasceu esta classe de direitos, tida como prestacional, em
defesa de uma igualdade em sentido material, ou seja, na busca de tratar “igualmente
os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”26.
Nessa época, tem-se mais presente uma preocupação com a coletividade, em
detrimento dos direitos individuais inicialmente caucionados pelas primeiras
manifestações das garantias fundamentais. Vê-se, de fato, um olhar mais atento do
Estado para aqueles que mais precisavam de sua proteção. Diante disso, assentados
no ideário da isonomia substancial, os direitos fundamentais passaram a exigir de
forma mais efetiva ao poder público, no sentido de que este atue em favor do cidadão.
25 Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 23.452/RJ. Relator: Ministro Celso de Mello. Data de Publicação: DJ 12/05/2000. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2017. 26 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 25.
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A proteção do Estado passou a se preocupar, sobretudo, com os problemas
individuais de natureza social, assim entendidos aqueles que, não solucionados, têm
reflexos diretos sobre os demais indivíduos e, em última análise, sobre a sociedade.
A sociedade então, por intermédio de seu agente natural, o Estado, antecipa-se a
esses problemas, adotando para resolvê-los principalmente medidas de proteção
social.
Conforme os ensinamentos de Alexandre de Moraes, os direitos sociais são
direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades
positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por
finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à
concretização da igualdade social, os quais, no Brasil, são consagrados como
fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Carta Política de 198827.
De acordo com Uadi Lâmmego Bulos, tratam-se de direitos de prestações
positivas, porque revelam um fazer por parte do Estado, que devem realizar serviços
para concretizar os direitos sociais. São, portanto, direitos de crédito, haja vista que
envolvem poderes de exigir atuações do governo28.
Para Andreas Joachim Krell, os direitos fundamentais sociais não são direitos
contra o Estado, mas sim direitos através do Estado, exigindo do poder público certas
prestações materiais. São, portanto, os direitos fundamentais do homem social dentro
de um modelo de Estado que tende cada vez mais a ser social, dando prevalência
aos interesses coletivos antes que aos individuais29.
No âmbito internacional, os direitos sociais são assegurados em documentos
como a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, elevando-os, portanto, ao alto
grau de direitos humanos, os quais devem ser reconhecidos universalmente,
independentemente da disposição constitucional do país.
Na Constituição Federal brasileira, os direitos sociais encontram-se descritos
no artigo 6º, o qual está localizado no título reservado aos direitos e garantias
fundamentais:
27 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 202. 28 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 803. 29 KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha – os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Fabris, 2002. p. 19.
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Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifos nossos)
Dentre as garantias citadas, destaca-se, para o presente estudo, o direito à
previdência social.
No tocante à sua origem, Gustavo Amaral refere que a previdência social
nasceu das lutas por melhores condições de trabalho, que resultaram em diferentes
sistemas protetivos, de acordo com as situações de cada país envolvido, onde alguns
limitaram a proteção ao necessário à sobrevivência, enquanto outros buscaram
implementar até a substituição plena da remuneração. Tais variações colocam em
destaque as diferentes estruturas dos sistemas de proteção. Basicamente, todos
buscavam uma previdência social como garantia, ao menos, do mínimo vital, de modo
viável financeiramente30.
A previdência social originou-se junto aos direitos fundamentais de segunda
dimensão, tendo suas maiores expressões ao longo do fim do século XIX e durante
todo o século XX, com o crescimento da sociedade industrial, que culminou num
avanço considerável em matéria de proteção social, diante do reconhecimento de que
a sociedade, no seu todo, deveria ser solidária com seus integrantes31.
Nesse período, houve o aumento da marginalização social, estimulando
conflitos sociais, principalmente dos proletários com o aparato policial do Estado. Tais
convulsões foram grandes responsáveis para o despertar do Estado para a
intervenção e regulamentação na vida econômica e social de seu território32.
Assim, desenvolveu-se aos poucos uma ideia de proteção estatal às pessoas
vítimas de infortúnios, engrenando um sistema jurídico assegurador de normas de
proteção dos trabalhadores em suas relações contratuais. Inaugurou-se, dessa forma,
uma nova política social, plantando-se as bases da Previdência Social.
Nesse ínterim, pertinente expor que, de acordo com Paulo Cruz, há quatro
fases de evolução histórica da proteção social ao trabalhador: a) experimental;; b) de
consolidação;; c) de expansão;; e d) de redefinição, a qual ainda vigora33.
30 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 52. 31 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de;; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 7. 32 Ibidem, p. 8. 33 CRUZ, Paulo Márcio. Poder, Política, Ideologia, e Estado Contemporâneo. Florianópolis: Diploma Legal, 2001. p. 219 et seq.
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O primeiro estágio refere-se ao modelo desenvolvido por Otto Von Bismark,
que possuía caráter securitário e era voltado para a atividade industrial, no qual os
trabalhadores e seus empregadores aportavam recursos para um fundo o qual, no
futuro, iria retorná-los na proporção do que cada um havia pago. Tratava-se, dessarte,
de um sistema próximo ao de capitalização, que não visava necessariamente a uma
solidariedade ampla34.
Na etapa da consolidação, evidencia-se a constitucionalização dos direitos
sociais, tendo como significativos marcos a Constituição Mexicana de 1917, a
Organização Internacional do Trabalho, no mesmo ano, e a Constituição de Weimar
de 1919. Quanto a esta, mister apresentar o seu art. 161:
O império promoverá um sistema geral de segurança social, para conservação da saúde e da capacidade para o trabalho, proteção da maternidade e prevenção de riscos de idade, da invalidez e das vicissitudes da vida35.
A partir daí, o Estado passa a abandonar o seu papel absenteísta para se tornar
um Estado positivo, que busca o equilíbrio das forças econômicas, a fim de mitigar
suas consequências individualistas, intervindo no mercado de mão de obra com novas
convicções de "Estado de direito e de bem estar".
Na fase de expansão, propagam-se, após a Segunda Guerra Mundial, as ideias
de John Mayard Keynes, o qual preconizava, dentre outras propostas, a intervenção
estatal na economia, a realização de ações políticas voltadas ao protecionismo
econômico e à tomada de medidas estatais que visassem à garantia do pleno
emprego, a ser alcançado com o equilíbrio entre demanda e capacidade de
produção36.
Filiando às teses de Keynes, Lorde William Henry Beveridge – responsável por
analisar o sistema previdenciário na Inglaterra, em meados de 1941 – introduziu ao
mundo jurídico o regime beveridgeano, influenciador das normas previdenciárias de
inúmeros países, inclusive, as do Brasil, inseridas por meio da Constituição Federal
de 198837.
34 SOBRINHO, Zéu Palmeiras. Aula ministrada na disciplina de Direito Previdenciário, do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no dia 04 ago. 2017. 35 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de;; LAZZARI, João Batista. Op. Cit., p. 12. 36 CRUZ, Paulo Márcio. Poder, Política, Ideologia, e Estado Contemporâneo. Florianópolis: Diploma Legal, 2001. p. 219 et seq. 37 Ibidem, p. 220.
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Cuida-se de um modelo redistributivista e universal. Baseado no solidarismo
social e visando a redução da pobreza, inclui-se até aqueles que não podem
contribuir, de modo que cada indivíduo recebe de acordo com sua necessidade,
diferentemente do sistema bismarkiano, o qual somente era composto por aqueles
que contribuíam e somente recebiam proporcionalmente ao que fundeavam38.
Perante as lastimosas consequências da Segunda Guerra Mundial, expandiu-
se vigorosamente o modo de segurança social, materializando a universalização dos
direitos sociais através do seu reconhecimento como direito fundamental em inúmeros
países. Logo, “depois das experiências totalitárias, nada menos que cinquenta
Estados elaboraram novas constituições, buscando adaptação às novas exigências
políticas e sociais, nas quais os direitos sociais ocupam um lugar de destaque”39.
Quanto ao cenário atual no Brasil, a Previdência Social, inspirada pelos ideais
beveridgeanos, é tratada como espécie do gênero Seguridade Social, garantida
constitucionalmente pelo nosso Estado Democrático de Direito mediante diversos
artigos da Carta Magna de 1988. Trata-se, neste sentido, de um seguro público de
índole jusfundamentalista destinado compulsoriamente a todo cidadão brasileiro,
como forma de proteção contra diversos riscos econômicos (por exemplo, a perda de
rendimentos devido a doença, velhice ou desemprego), buscando, assim, garantir à
sociedade a continuidade de sua condição de subsistência. Nesse sentido preceitua
a Lei Maior, em sua seção destinada à previdência social:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;; II - proteção à maternidade, especialmente à gestante;; III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;; IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda;; V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º.
O direito à previdência social, portanto, detém status especial de direito
fundamental, concedido expressamente pela Constituição Federal. Inclusive, nesse
mesmo seguimento, já afirmou o Superior Tribunal de Justiça:
38 SOBRINHO, Zéu Palmeiras. Aula ministrada na disciplina de Direito Previdenciário, do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no dia 04 ago. 2017. 39 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de;; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 15.
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Com efeito, a Constituição Federal de 1988, atenta à necessidade de proteção do trabalhador nas hipóteses de riscos sociais constitucional e legalmente eleitos, deu primazia à função social do RGPS, erigindo como direito fundamental de segunda geração o acesso à Previdência do Regime Geral40. (grifos nossos)
Por fim, assevere-se que o poder constituinte estabeleceu, como um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana (art.
1º, III da CFRB/88), a qual, como já dito, constitui fonte material dos direitos
fundamentais sociais, e, por conseguinte, da previdência social. À vista disso, verifica-
se que foi evidenciada a importância da proteção social aos indivíduos, legitimando a
Previdência Social como um direito fundamental dotado de força normativa vinculante
e de reprodução obrigatória por todos os entes federativos.
2.4 O PAPEL FUNDAMENTAL DO PODER JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DOS
DIREITOS SOCIAIS
Em retrospectiva à expansão dos direitos sociais, pós Segunda Guerra
Mundial, desenvolveu-se também, nesta época, um ideário neoconstitucionalista,
baseado na revalorização das Constituições nos sistemas jurídicos, o qual foi
fielmente abarcado pela maior parte da doutrina até os dias atuais.
Além disso, na mesma época, houve o declínio do positivismo jurídico
kelseniano, que cede espaço ao que se convencionou nominar “pós-positivismo
jurídico”, de forma que o aplicador por excelência da norma jurídica, órgão jurisdicional
estatal, deixou de funcionar como um mero aplicador do texto de lei41.
Assim, a acepção Montesquiana, em que o juiz era um verdadeiro ser
inanimado, somente sendo a boca que pronunciava as palavras da lei (la bouche da
la loi) sem interpretá-la nem valorá-la, é superada, passando o magistrado a ostentar
a condição de verdadeiro copartícipe na criação do Direito.
Isso porque se tornou perceptível em determinados momentos históricos que a
prevalência de tal lógica, no afã de equiparar o direito à lei, terminava por subtrair do
40 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.352.721/SP. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Data de Publicação: DJ 28/04/2016. Disponível em: Acesso em: 24 set. 2017. 41 LEAL, Pedro Henrique Peixoto. O Supremo Tribunal Federal e o ativismo judicial em matéria previdenciária: análise de casos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3938, 13 abr. 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2017.
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direito, em não poucos casos, o conteúdo justo que lhe deveria ser inerente. Há, pois,
uma reaproximação do conceito de direito com a “moral” e com a “ética”, voltando a
importar o chamado “conteúdo justo do direito”. Ressalte-se que não se despreza a
importância da lei escrita, mas se avulta, de outra banda, a normatividade dos
princípios constitucionais e o papel do intérprete como verdadeiro integrante na
construção da norma em si42.
Outro não é o entendimento que se extrai das palavras de Luís Roberto
Barroso:
Em busca de objetividade científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Sua decadência é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da 2ª Guerra, a ética e os valores começam a retornar ao Direito43. (grifos nossos)
Ainda segundo o Ministro, o neoconstitucionalismo e o pós-positivismo
possuem como marco teórico o conjunto de mudanças que incluíram o
reconhecimento da força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição
constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação
constitucional.44
Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de
constitucionalização do Direito, o qual logrou como frutos a irradiação dos valores
fundamentais abrigados nos princípios e regras da Constituição por todo o
ordenamento jurídico, o reconhecimento da inconstitucionalidade das normas
incompatíveis com a Carta Constitucional e, sobretudo, a interpretação das normas
infraconstitucionais conforme a Constituição, circunstância que irá conformar-lhes o
seu sentido e alcance. Nessa linha, corroboram J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira
42 LEAL, Pedro Henrique Peixoto. O Supremo Tribunal Federal e o ativismo judicial em matéria previdenciária: análise de casos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3938, 13 abr. 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2017. 43 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2017. 44 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2017.
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que: “A principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste
em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo”45.
Logo, este novo sistema reestruturou o ordenamento jurídico, colocando a
Constituição como o centro de atribuição de sua validade, a qual irradia para todos os
ramos as suas prescrições e seus critérios axiológicos, devendo influenciar
ininterruptamente a produção e aplicação normativa do Estado. E não só isso,
remodelou-se, consequentemente, o papel dos magistrados, os quais não mais
somente subsumiam as leis aos casos concretos sem uma maior análise, mas
passaram a interpretá-las e aplicá-las através de uma acepção constitucional – e tão
somente se harmonizáveis com a Constituição, concebendo-se, assim, fonte do
direito, por meio da jurisprudência.
Jorge Miranda, ao tratar do tema, deslinda que a Constituição passou a conferir
uma unidade de sentido e de valor de concordância prática ao sistema dos direitos
fundamentais. Ademais, elucida que a Lei Maior passa a ter como base a dignidade
da pessoa humana, de maneira que "faz a pessoa fundamento e fim da sociedade e
do Estado"46.
Nesse diapasão, os direitos fundamentais auferem relevância tal que seu
reconhecimento prescinde de normatização infraconstitucional. Desse modo,
observa-se a perda de espaço do Poder Legislativo para o Poder Judiciário, no tocante
à postura ativa na busca pela concretização dos direitos fundamentais albergados nas
constituições nacionais47.
Diante da consciência de seus direitos por parte da população, a luta por sua
garantia e efetividade torna-se prioridade nas ações dos movimentos populares –
principais propulsores das mudanças sociais – levando ao Judiciário, continuamente,
inúmeras demandas de natureza social, com destaque nos interesses difusos e
coletivos. Assim, conforme leciona Lênio Streck, no Estado Democrático de Direito, o
maior foco de tensão encontra-se no Judiciário, uma vez que as inércias do Executivo
45 CANOTILHO, José Joaquim Gomes;; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. p. 45. 46 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 9. ed. vol. IV. Coimbra: Coimbra, 2012. p. 180. 47 SOBRINHO, Emílio Gutierrez. Aspectos teóricos do movimento neoconstitucional. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3319, 2 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22345/ Acesso em: 21 ago. 2017.
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e do Legislativo passam a ser suprida por este, o qual deve atuar na busca da máxima
efetividades das normas constitucionais48.
Essas ações constantes do Poder Judiciário materializando aos indivíduos
direitos fundamentais, várias vezes, negados de forma comissiva ou omissiva pelos
outros Poderes, suscitam uma participação eficaz dos magistrados, principiando o
chamado ativismo judicial, o qual seu conceito é interligado a uma ingerência mais
ampla e acentuada do Judiciário no cumprimento dos valores e fins constitucionais,
com maior intervenção nas esferas dos outros Poderes.
Barroso observa que, dentre as condutas que manifestam esse fenômeno, está
a aplicação direta da Constituição a situações não explicitamente presentes em sua
redação, mesmo sem a manifestação do Legislativo;; a declaração de
inconstitucionalidade de atos normativos;; e a determinação de condutas ou
continências ao Estado, principalmente em matéria de políticas públicas, a fim de
cumprir os direitos e garantias constitucionais previstos aos cidadãos49.
No que concerne aos efeitos dos direitos fundamentais, a doutrina é pacífica
no sentido de que todas as normas constitucionais são dotadas de uma eficácia
mínima, a qual varia de acordo com a sua densidade normativa. Nesse aspecto,
Garcia de Enterría, partindo de uma concepção substancial da Constituição e
reconhecendo o caráter vinculante reforçado e geral das suas normas, explana que
na Lei Fundamental não existem declarações destituídas de conteúdo normativo,
ocorrendo que apenas o conteúdo concreto de cada norma poderá precisar, em cada
caso, qual o alcance específico de sua porção de eficácia50.
Todavia, alguns doutrinadores entendem que os direitos sociais,
primordialmente, não teriam aplicabilidade imediata, já que necessitariam de atuação
do legislador para sua concretização, pois, por consistirem em programas e diretrizes
para atuação futura, somente orientariam as ações dos Poderes Públicos.
48 STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 54-55. 49 BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. In: Revista Eletrônica da OAB. Edição Número 4 - Janeiro/fevereiro de 2009. Disponível em: . Acesso em: 16 ago. 2017. 50 Enterría, Garcia de. La Constituición como Norma y el Tribunal Constitucional. 3. ed. Madrid: Civitas, 1994 apud SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais – uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 255.
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No entanto, em que pese as normas programáticas necessitarem de
intervenção legislativa, a discricionariedade dos parlamentares e dos governantes não
é absoluta, pois, se assim o fosse, não haveria que se falar em força normativa e
vinculante da Constituição, ou ainda, do princípio