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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ Mariana Hilda Batista QUESTÕES DO CORPO: DIÁLOGO ENTRE A DANÇA CONTEMPORÂNEA E AS ARTES VISUAIS CURITIBA 2009

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

Mariana Hilda Batista

QUESTÕES DO CORPO: DIÁLOGO ENTRE A DANÇA

CONTEMPORÂNEA E AS ARTES VISUAIS

CURITIBA 2009

Mariana Hilda Batista

QUESTÕES DO CORPO: DIÁLOGO ENTRE A DANÇA

CONTEMPORÂNEA E AS ARTES VISUAIS

Monografia apresentada ao curso de Arte Contemporânea – Prática, Teoria e História da Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista. Orientador: Prof. Ms. Evandro F. Gauna

CURITIBA 2009

AGRADECIMENTOS

Agradeço a professora Carla Vendrami (in memoriam) pela disponibilidade e por me

guiar no inicio da pesquisa. Agradeço também ao professor Evandro Gauna que

gentilmente se dispôs a continuar me orientando e me ajudando a solucionar problemas. Á

Rosemeri Rocha pelo apoio e sugestões. Á Olinda Rodrigues pelas correções. Á Fernando

Deddos pela compreensão sempre. Á minha mãe e irmã pelo constante apoio. E a todos

amigos que direta ou indiretamente colaboraram para a realização deste trabalho.

O corpo é o lugar onde o mundo é questionado

David Le Breton

RESUMO Esta pesquisa é um estudo de uma possível relação entre as Artes Visuais e a Dança Contemporânea, utilizando como fio condutor o corpo. O objetivo deste trabalho é identificar como o corpo pode aparecer em obras de Artes Visuais sem ser figurativo ou presencial, mas quando questões referentes ao corpo aparecem nessas obras. Para isso utilizou-se obras da artista Iole de Freitas, relacionando-as com elementos da Dança Contemporânea. Palavras-chave: corpo, dança contemporânea e artes visuais.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------------06

1 O Corpo na contemporaneidade -------------------------------------------------------------08

1.1 Questões sobre o corpo ------------------------------------------------------------------------08

1.2 Corpo – pensamento -------------------------------------------------------------------------- 10

1.3 Quando o corpo é o problema --------------------------------------------------------------- 14

2 O Corpo e as Artes ----------------------------------------------------------------------------19

2.1 O corpo nas Artes Visuais -------------------------------------------------------------------19

2.2 Breve histórico da performance --------------------------------------------------------------21

2.2.1 Happening ------------------------------------------------------------------------------------23

2.2.2 Body Art --------------------------------------------------------------------------------------25

2.2.3 Outros meios… ------------------------------------------------------------------------------29

2.3 Falando sobre dança ---------------------------------------------------------------------------31

2.3.1 Um olhar sobre a dança contemporânea --------------------------------------------------34

2.4 Pontos de análise -------------------------------------------------------------------------------37

3 Diálogo entre a obra de Iole de Freitas e a Dança Contemporânea -----------------44

3.1 Sobre a artista ----------------------------------------------------------------------------------44

3.2 Relações com a dança contemporânea -----------------------------------------------------48

COSIDERAÇÕES FINAIS --------------------------------------------------------------------58

REFERÊNCIAS ------------------------------------------------------------------------------------------60

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INTRODUÇÃO

A arte contemporânea tem como uma de suas características o questionamento. Os

trabalhos contemporâneos apresentam uma questão a ser discutida e compartilhada com o

observador. Uma das questões mais recorrentes nos últimos anos é sobre o corpo, este é

um assunto envolvido em todas as áreas artísticas. Geralmente pensa-se que o corpo é um

assunto privilegiado da dança ou do teatro, por trabalharem diretamente com ele, mas

percebe-se que nas artes visuais o corpo é um assunto frequentemente abordado.

Esta pesquisa se faz necessária para compreender o corpo nas artes visuais, além

do olhar do corpo como instrumento de uma obra, mas quando ele é o assunto principal

de um trabalho. A intenção é identificar como o corpo pode ser abordado nas artes

visuais, sem ser de forma figurativa. Mas observar quando o corpo aparece num trabalho

através de questões pertinentes ao corpo.

Para isso a pesquisa esta dividida em três capítulos. No primeiro capítulo surgiu a

necessidade de falar sobre o corpo contemporâneo, através dos autores Breton e Santaella,

que falam desse corpo como o problema da contemporaneidade, a causa de diversas

dúvidas, e manifestações. E tudo devido ao grande avanço da tecnologia que abala nosso

entendimento de corpo, e consequentemente das relações.

No segundo capítulo será apresentada abordagem geral sobre o corpo nas artes

visuais, falando principalmente sobre o corpo que antes nas artes era considerado somente

como um tema e na arte contemporânea torna-se também uma questão. O corpo é

problematizado na arte contemporânea, passa a ser fonte de indagações. Instigados por

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essas dúvidas, os artistas passaram a realizar as performances, passando por movimentos

como a body art e happening. Tendo a performance como uma linguagem que envolve

diretamente o corpo, o capítulo segue falando sobre a dança. Num primeiro momento

passando pelo histórico da dança, mostrando que antes ela era realizada somente como

forma de entretenimento, e que ao longo do tempo surge como uma linguagem

problematizadora de questões, da relação do cotidiano, e principalmente das questões do

corpo. No segundo momento são escolhidos três elementos fundamentais para dança que

são: o corpo, o movimento e o espaço-tempo.

No terceiro e último capítulo, falaremos sobre a artista Iole de Freitas, escolhida

para fazer a relação do corpo com as artes visuais. A escolha dessa artista ocorreu

primeiramente por sua relação com a dança (Iole de Freitas teve uma experiência em

dança), tendo seu trabalho relação direta com questões como o corpo e o espaço. O

capítulo discorre sobre a trajetória de seu trabalho, que parte de um estudo da relação do

seu próprio corpo no espaço. Ao longo de seu processo a corporeidade em seu trabalho

ficou mais subjetiva, subdividindo-se em elementos como tempo, espaço, fluxo, entre

outros. E logo em seguida são identificados os três elementos da dança, citados acima, em

suas obras.

Com isso a escolha da artista Iole de Freitas dentre os outros temas descritos

conectam–se perfeitamente com a proposta deste trabalho, analisando quais questões do

corpo podem estar presentes em trabalhos de artes visuais dialogando com as questões da

dança contemporânea.

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1 O CORPO NA CONTEMPORANEIDADE

1.1 QUESTÕES SOBRE O CORPO

O corpo é uma presença abrangente em todos os aspectos da vida. Ele pode ser

nomeado enquanto objeto de estudo, como sistema aberto e complexo, ou ainda como

capacidade de expressão. O fato é que todas as nossas atitudes, independentes de quais

sejam, estarão sempre ligadas ao corpo.

O corpo já foi considerado, como lugar de inquietude, classificando-o como uma

coisa ruim. Breton (2003) explicita esse conceito do corpo ao apresentar sua visão que

percorre o mundo ocidental desde os pré-socráticos, no discurso sobre o corpo como algo

ruim, um aprisionador da alma. O corpo assim é separado da alma, e visto apenas como

matéria, carne, que envelhece e apodrece ao longo do tempo.

Breton diz que a doutrina gnóstica manifestava um dualismo onde de um lado

encontrava-se a esfera negativa: o corpo, o tempo, a morte, a ignorância, o mal. E do

outro: a plenitude, o conhecimento, a alma, o bem, etc. Segundo Breton, “os gnósticos

levam a seu termo o ódio do corpo, tornam o corpo uma indignidade sem remédio.”

(2003, p.14). Dessa forma, o corpo aparece como uma doença incurável, “o extremo

contemporâneo”, diz Breton. É compreendido por extremo contemporâneo as práticas que

se referem ao cotidiano ou as tecnociências, as que induzem rupturas antropológicas que

provocam a perturbação de nossas sociedades. O corpo surge como reflexão e perturbação

da sociedade contemporânea.

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Santaella (2004) apresenta em seu primeiro capítulo as reflexões acerca do

sujeito e do corpo. Ela discute sobre quem é o sujeito, quais condições para sua existência

e como o corpo entra nessas reflexões.

Em primeiro lugar, ela apresenta a concepção de sujeito que foi constituída no

cartesianismo. A idéia de sujeito baseado em Descartes, segundo a autora, dominou o

pensamento ocidental por alguns séculos. Descartes denominava o sujeito como a mente,

o pensamento e diferenciado do que esta fora, sendo o externo considerado como objeto.

Segundo Doel (2001 citado por Santaella, 2004, p.14), supõe-se que o sujeito é

idêntico a si mesmo, ele precede toda identificação, apresentação e diferenciação. Eu sou,

antes que eu seja alguma coisa. Ele diz que o sujeito é Um: universal, indivisível e eterno.

Doel afirma ainda que, o sujeito cumpre duas funções distintas: a universalização e

individuação. A universalização, segundo o autor, por o sujeito ser considerado o grau-

zero da humanidade, entendendo-se por universalização a existência do sujeito. A

individuação seria o re-conhecimento do sujeito, que ocorre através de corpos e faces

individuais, mas que o movimento do individual ao universal não depende da variação

real entre corpos e faces individuais. “De fato, o universal é indiferente a toda

quantificação. É por isso que a proliferação, a des-diferenciação ou a fragmentação dos

rostos e corpos nunca servirão para problematizar o sujeito universal: sujeito há. O sujeito

é o sujeito. Sozinho ele está.” (DOEL, 2001, p.86 citado por SANTAELLA, 2004, p. 14).

Nesse momento Santaella diz que o corpo aparece como um problema

fundamental, pois Descartes definiu o humano como a mistura de duas substâncias

distintas: o corpo, considerado como um objeto da natureza, como outro qualquer, e a

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mente, a substância imaterial. Segundo Santaella, “Para ele, apenas a mente, sinônimo de

consciência, de alma e definidora do eu, dá expressão à essência humana, da qual o corpo

está excluído.” (2004, p. 15).

A autora nos coloca diante de um paradoxo: se na existência do sujeito o corpo

está excluído, como ele pode exercer sua função universalizante se não há o seu suporte

de sustentação? Pois para o re-conhecimento do sujeito universal é preciso a individuação

através do corpo. Existindo o risco desse re-conhecimento do sujeito ficar preso no limite

do corpo, em seu tecido material e impedindo a passagem para o lugar do sujeito

universal e abstrato.

Sendo assim, o corpo neste pensamento é tratado apenas como objeto que

individualiza o sujeito. A autora define este sujeito como o fantasma do corpo. “De fato,

trata-se de um fantasma assoberbante para o qual a carne e os corpos só servem como

meios de individuação, envelopados pela pele e carimbados pelo rosto.” (SANTAELLA,

2004, p.15).

1.2 CORPO - PENSAMENTO

Os discursos começam a mudar em meados do século XX, com os pensadores

perturbados acerca da subjetividade do sujeito e de sua classificação como unitário.

Jayme Paviani (2007), fala que os filósofos e cientistas contemporâneos escrevem mais

sobre o corpo do que sobre a mente, e que a partir de Hegel, Marx, Husserl e das teorias

psicológicas contemporâneas, o corpo humano passou a merecer uma atenção especial.

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Inicia-se um processo que Santaella chamou de morte do sujeito, quando a idéia do “eu”

entrou em crise.

O sujeito virou assunto discutível em diferentes vertentes. Sua desconstrução passa

pelos discursos feministas, nos estudos culturais sobre raça e etnia, nas análises pós-

colonialistas. Segundo Tadeu da Silva (2000, citado por SANTAELLA, 2004, p. 30)

todos esses discursos evidenciam que não existe sujeito ou subjetividade fora da história e

da linguagem, fora da cultura e das relações de poder.

Os questionamentos não ficam limitados sobre o sujeito unitário, universal e

centrado, mas como o sujeito poderá ser situado, corporificado, descentrado, des-

construído ou construído. Havia o problema sobre qual a maneira que o ser humano

poderia conhecer os corpos físicos “exteriores” à mente.

Substituindo as antigas concepções de sujeitos e “eu”, proliferam agora novas

imagens da subjetividade, como subjetividade distribuída, socialmente construída,

dialógica, descentrada, múltipla, nômade, inscrita da superfície de corpo. Agora a

subjetividade humana aparece diretamente ligada ao corpo, e nas suas relações com o

meio.

Santaella diz que o corpo esta sob interrogação, deixando de ser pacífico para se

transformar em um problema com implicações legais, éticas e antropológicas. Helena

Katz (2002), fala do processo de coevolução do corpo, do reconhecimento desse corpo

estar no mundo. Para tanto, ela utiliza como base de suas questões as ciências cognitivas,

sendo elas a união da biologia, filosofia, antropologia, matemática, sociologia, psicologia,

neurofisiologia, filosofia da mente, teoria da evolução darwiniana, cosmologia, geologia,

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arqueologia, paleontologia, etologia, etc. Segundo Katz, estão unidas pela mesma

preocupação: contribuir para explicar como nosso corpo aprende a conhecer o mundo ao

seu redor. Ela propõe um corpo coevolutivo, resultante da sua relação com o ambiente,

pensa-se em coevolução ao invés de evolução, por se tratar de uma troca.

A chave desta proposta se encontra no conceito de co-evolução, indispensável para se compreender como as informações do mundo encarnam em nós. Sim, porque a hipótese a co-evoluçâo regula nossa permanência nesse mundo abre caminho para essa segunda condição prévia: a de concordar que nosso corpo não passa de uma forma circunstancial que as muitas informações espalhadas pela vida tomam ao longo do tempo. Circunstancial e em transformação, uma vez que esse processo de contaminação entre corpo e ambiente não estanca. (KATZ, 2002)

Quando se fala da relação do corpo com o mundo e vice-versa, significa dizer que,

não é apenas o ambiente que constrói o corpo, e nem só o corpo que constrói o ambiente,

ocorre uma simultaneidade nessa construção. Segundo Christine Greiner (2005), “A

informação internalizada no corpo não chega imune. É imediatamente transformada...”

(GREINER, 2005, p.43).

Partindo desse raciocínio fala-se de metáforas do pensamento, considerando

metáfora como a parte de cognição do corpo. Segundo Lenira Rengel, “A metáfora esta

na carne, no osso... no sangue... nos neurônios.” (2007, p. 36).

Este conceito fundamenta-se nas pesquisas dos teóricos George Lakoff e Mark

Johnsom, linguista e filósofo cognitivos, afirma Lenira Rengel. Ela diz que estes autores

tratam da metáfora como um modo de pensar e conceituar e que o procedimento

metafórico é o mecanismo cognitivo que acontece em qualquer corpo. Pensamos e

percebemos através da pele, cérebro, sangue, sentidos e a existência de um

corpopensamento. Helena Katz (2002) fala que Lakoff e Johnsom propuseram que os

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conceitos são encarnados e não coisas imateriais, que o processo de raciocínio esta ligado

diretamente com o corpo.

Lenira Rengel (2007) afirma que o procedimento metafórico faz um transporte

entre os domínios: os sensórios-motores (perceber, sentir, transpirar, mover, tocar, pegar,

etc.) e os domínios das experiências subjetivas (julgamentos morais, juízos de valor,

relações de afetos, etc), e que esses procedimentos ocorrem simultaneamente no físico e

no mental. Ela exemplifica falando que “Um bebê ao sentir o calor de um colo, junto está

criando a noção de amor, afeto, calor humano.” (RENGEL, 2007, p.37).

Estes conceitos apresentados acerca do corpo e mente, permeiam na concepção de

um corpo que se relaciona e comunica. “Nossos conceitos não são apenas matéria do

intelecto. Eles também governam nossas funções cotidianas e até os mais mundanos

detalhes. Nossos conceitos estruturam o que percebemos, como nos relacionamos com o

mundo e com outras pessoas.” (GREINER, 2005, p. 44).

A comunicação dos sujeitos depende de seus contextos, cultural-social, caindo a

ideia do sujeito universal, totalizante, fixo, fala-se de um sujeito instável, mutável em

consequência da cultura. Essa instabilidade é uma das características do corpo

contemporâneo, como mesmo falam as autoras Elisa Maria Barbosa Esper e Mathilde

Neder (2004). Elas afirmam que o sujeito é exposto à temporalidade do mundo

contemporâneo que é rápida, móvel exposta a constantes mudanças, o sujeito fica numa

situação de insegurança devido às informações que recebe e que se renovam a todo

momento. Situação esta que impede o aprofundamento em emoções, experiências e

sensações. Esper e Neder afirmam que habitamos em um mundo onde há um bombardeio

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de informações, maciças e aleatórias, que não se constituem como um todo. São

informações feitas de partes, transformando a realidade em fragmentos compostos por

vivências parciais. Com isso vem à tona a crise do sujeito, devido a instabilidade gerada

pelas influências com o meio.

1.3 QUANDO O CORPO É O PROBLEMA

O corpo agora não é visto como lugar que abriga um sujeito, ele é o sujeito e como

citado anteriormente é um sujeito que coevolui de acordo com sua troca com o ambiente.

Por causa dessa relação ocorre a existência de um corpo instável, imprevisível colocando-

o presente como assunto discutido em todas as ciências.

Segundo Santaella (2004) o corpo é visto como um problema contemporâneo,

sendo onipresente em todos os aspectos da cultura. Ela afirma que o corpo como

problema aparece por causa do avanço da tecnologia, da exagerada proliferação de

imagens corporais, sendo reais ou virtuais colocando em conflito as dicotomias entre vida

e morte, natureza e cultura, natural e artificial, presença e ausência, atualidade e

virtualidade. Essas dicotomias começam a ser confundidas e questionadas.

Breton (2003) fala do corpo considerado como problema a partir do momento em

que nós abandonamos esse corpo. Ele fala que nossa relação com o mundo era uma

relação pelo corpo, e que hoje o estamos esquecendo. Este abandono acontece quando

simples atividades do cotidiano como correr, andar (mesmo em distâncias curtas), são

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substituídas por veículos, escadas rolantes etc. Dessa forma o corpo esquecido pela sua

relação com o mundo se torna um sintoma.

Segundo Santaella, diferentes dos sintomas do século XIX que se davam no corpo,

o sintoma contemporâneo se tornou o próprio corpo. Ela fala sobre sintoma como um

distúrbio que causa sofrimento, um mal-estar. Considera-o um sinal do inconsciente,

sendo através deste que o sintoma se faz ouvir. Sem deixar de ser uma revelação, uma

ação, contraditoriamente o sintoma é também uma forma de ocultamento.

Para argumentar sobre o sintoma agora da cultura, Santaella fala sobre o mal-estar

na visão de Freud e Lacan como uma frustração, culpa e ressentimento contra a

civilização consistindo em se obter uma satisfação da própria renuncia pulsional. A

condição humana leva o sujeito a obter o gozo pela renúncia do próprio gozo.

O sintoma então é considerado como o resultado das renúncias do gozo perante as

exigências civilizatórias. Santaella diz que Freud universalizou o sintoma propondo todas

as produções do espírito como sintoma. Entretanto, quando se fala de sintoma da cultura,

não está por trás disso nenhuma afirmação de um inconsciente coletivo. Os sintomas

variam de acordo com a cultura de cada época. Conforme muda a cultura, mudam-se os

tipos de gozo, e consequentemente os sintomas. Portanto Santaella lança a pergunta:

Quais seriam os modos de gozo do mundo contemporâneo, das sociedades pós-modernas

do capitalismo tardio?

Se pensarmos na transitoriedade, na constante mudança de informação, o gozo

contemporâneo é também uma busca insaciável pelo prazer. Essa transitoriedade é

marcada pela velocidade com que o avanço tecnológico implica no mundo e nas relações.

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O ambiente pós-moderno é povoado pela cibernética, robótica industrial, biologia

molecular, onde a principal característica é ser regido pela informação. “A velocidade

com que o avanço da tecnociência se estabeleceu desenhou uma nova cartografia

contemporânea comandada pela transitoriedade e efemeridade.” (ESPER; NEDER, 2004),

causando insegurança e incertezas.

Diante desses aspectos no contexto contemporâneo ocorre à cultura do descartável,

do momentâneo. Não há um valor na durabilidade, tudo é para agora, hoje, na relação do

homem com objetos e pessoas, remetendo a ligações temporárias, frágeis e passageiras.

Isso ocorre devido a um ritmo acelerado de informações novas geradoras de mudanças,

tudo é substituído por essas informações. Assim, há um crescente individualismo do

sujeito, fragilizando o lado social.

Na presença do individualismo ocorre outra das características do corpo

contemporâneo, o narcisismo. O sujeito pós-moderno cultiva uma procura pelo “eu”, pelo

prazer, ocorrendo uma valorização do corpo, sendo venerado e guiados pela busca, do

ideal, da saúde e do bem estar. Segundo as autoras Esper e Neder:

Observa-se uma ressacralização do corpo que é venerado por verdadeiros cultos, com mandamentos a serem seguidos, não havendo mais a contradição entre o sagrado e o profano. Essas questões permeiam um universo comandado por imagens e signos, ideologicamente veiculados pela mídia e que, segundo o filósofo francês Debord (1980), comanda a “Sociedade do Espetáculo”. Nesse sentido, o sujeito desejante é capturado imageticamente pela ideologia vigente de corpos perfeitos, jovens e saudáveis. (ESPER;NEDER 2004)

Segundo Santaella (2004), vivemos numa cultura liderada pelo consumo, pelo

mercado e pelo lucro. Um mercado que promete a realização de qualquer tipo de desejo.

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Há um consumo exagerado de bens inúteis, e da tecnologia apontando a emergência de

novas formas de o sujeito fugir do mal-estar.

O corpo dentro desse contexto do consumo e desejo ocupa o lugar de objeto do ser,

uma matéria que pode ser manipulada e moldada de acordo com o design da moda.

Segundo Breton (2003), o corpo não é mais a encarnação irredutível do sujeito, o destino,

mas uma construção, um objeto transitório e manipulável suscetível de muitos

emparelhamentos, sendo estes possíveis por dispositivos como cirurgias plásticas,

hormônios, dietas, piercings, tatuagens etc. E ao mudar o corpo, o indivíduo não pretende

apenas mudar sua aparência, mas sua vida, a forma como ele se olha e o olhar dos outros

sobre ele, modificando seu sentimento de identidade. Dessa forma a cirurgia estética não

opera somente no plano da aparência física, ela opera em primeiro lugar no imaginário e

exerce uma importância na relação do individuo com o mundo.

O corpo tornou-se a prótese de um eu eternamente em busca de uma encarnação provisória para garantir um vestígio significativo de si. Inúmeras declinações de si pelo folhear diferencial do corpo, multiplicação de encenações para sobre-significar sua presença no mundo, tarefa impossível que exige tornar a trabalhar o corpo o tempo todo em um percurso sem fim para aderir a si, uma identidade efêmera, mas essencial para si e para um momento do ambiente social. (BRETON, 2003, p.29)

A sociedade de consumo de hoje é acumuladora de sensações, das quais as coisas

consumidas são meros pretextos. As coisas consumidas visam a excitação de uma

sensação nova, ainda não experimentada, tratando a sensação como efêmera tendo que ser

intensificadas, por isso que o mercado arrasta as economias para a produção do efêmero.

A sensação necessariamente depende do corpo, trata-se aí de um novo modo de gozo que

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encontra no seu alvo o corpo e não na mercadoria externa a ele. Até o ponto de o próprio

corpo ter se tornado a mercadoria favorita das mídias.

O corpo foi, e ainda é motivo de reflexões, primeiro acerca de uma visão dualista

de corpo e alma, matéria e indivíduo, e logo se tornou um problema, um sintoma da

cultura motivo pelo qual se torna um assunto frequente em diferentes áreas. O corpo

aparece como a perturbação da sociedade, um obstáculo a ser ultrapassado pela ciência,

um lugar a ser modificado, ou na Arte, um lugar de questionamento e discussão.

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2 O CORPO E AS ARTES

2.1 O CORPO NAS ARTES VISUAIS

As artes, como diz Santaella (2004), é o lugar que da vida as interrogações do

homem com seu meio, e o corpo é o centro dessas questões. É através dele que

percebemos o mundo e trocamos informações, seja qual for a mudança que ocorra no

ambiente, é no corpo que vamos sentir, ele está em constante transformação, logo nossos

modos de nos relacionarmos mudam e então mudam-se os conceitos de corpo.

Na arte desde a pré-história o corpo vem sendo representado com as mais

diferentes significações, segundo Silvana Boone em seu artigo (2007), até o século XV a

representação do corpo destinava-se às funções religiosas.

Boone diz que o “Corpo e arte sempre estiveram ligados, desde a representação

mais simples da figura humana em tempos remotos, até as mais recentes transformações

em torno das tecnologias da imagem, entre elas a realidade virtual e a robótica.” (2007,

p.36). A autora faz um breve panorama sobre a representação do corpo. Citando que no

Egito antigo, o que predominava era a ideia da imortalidade. Na Grécia, o homem era a

imagem e semelhança dos deuses, e assim, representados como corpos idealizados. E em

Roma houve a naturalidade aos corpos aproximando a arte do contexto histórico-real e

representando o homem nas suas imperfeições. Somente no Renascimento que o homem

passa a representar além das idealizações religiosas.

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Santaella (2004) diz que a problematização do corpo, acompanhou as crescentes

metamorfoses do corpo sob o efeito da simbiose com a tecnologia, como a autora mesmo

diz “Quer os artistas trabalhem ou não com dispositivos tecnológicos, o corpo veio se

tornando objeto nuclear das artes porque as mutações pelas quais ele vem passando

produzem inquietações que se incorporam ao imaginário cultural.” (SANTAELLA, 2004

p.67).

Segundo Santaella, a crescente centralidade do corpo nas artes a partir das

vanguardas estéticas no início do século passado, resultou em sua constante aparição.

Alem de onipresente, no decorrer do século XX até hoje, o corpo foi deixando de ser uma representação, um mero conteúdo das artes, para ir se tornando cada vez mais uma questão, um problema que a arte vem explorando sob uma multiplicidade de aspectos e dimensões que colocam em evidência a impressionante plasticidade e polimorfismo do corpo humano. (SANTAELLA, 2004, p.65).

Alguns assuntos foram culminantes para que o corpo se tornasse uma questão,

como a instabilidade nas margens entre o ego e o mundo, entre o real e o imaginário,

entre o existente e o projetado, temas que fizeram do corpo um sistema de interações e

conexões. E esses estados de coisas resultaram na aceleração das descobertas científicas e

tecnológicas que, segundo Santaella vêm afetando profundamente nossas habilidades para

observar, transformar e manipular as funções corporais e nossos conceitos de corpo.

O corpo se tornou fonte de indagações para o qual se direciona grande parte dos

discursos culturais, principalmente quando se fala em saúde e estética. As pesquisas nas

áreas da farmacologia, fisiologia cerebral, tecnologia reprodutiva, doenças, próteses,

levantam questões psíquicas e culturais, como as distinções entre masculino/feminino,

vivo/morto, natural/artificial, corpo/descorporificação, eu/outro, orgânico/inorgânico,

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questões essas que colocam em jogo as fronteiras do corpo humano, com aparatos

artificiais como próteses, por exemplo. E como cita Santaella “Longe de estar à margem

desses discursos, a arte, ao contrário, é a esfera da cultura que toma a dianteira fazendo

emergir complexidades até então insuspeitadas que as teorias e críticas das artes buscam

deslindar.” (2004, p.67).

O corpo visto como assunto e não como representação na arte, pode-se dizer que

vem de uma valorização do gesto, do sentimento que rege cada movimento do artista

durante a execução de sua obra. Essa questão atraiu, entre outros, o artista plástico norte-

americano Jackson Pollock (1912–1956) um dos precursores do expressionismo abstrato

ou Action Painting, caracterizado pela importância dada ao manuseio da tinta e pela

gestualidade com que a pintura é feita, a partir daí o artista passa a ser o sujeito e o objeto

de sua arte. Decorrente disso o corpo na arte não é limitado a ser representado numa tela

ou escultura ele passa a ser parte da obra ou a própria obra, a ação é também arte. O corpo

agora é problematizado na arte através das performances envolvendo diferentes

linguagens artísticas e passando por diferentes vertentes como a Body Art e Happening.

2.2 BREVE HISTÓRICO DA PERFORMANCE

A performance teve início no século XX, segundo Cohen (1989), desenvolvendo-

se de diversas formas desde o movimento futurista italiano, na década de 1910 marcando

o início de atividades e idéias organizadas. No movimento futurista agrupam-se pintores,

poetas, músicos e artistas de áreas diversas.

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Cohen (1989) afirma que o ano de 1916 marca a abertura do Cabaret Voltaire em

Zurique, atraindo artistas da Europa inteira fugidos da guerra para a Suíça, onde ocorre a

germinação do movimento Dada. Artistas das mais diversas artes se confrontam no

Cabaret sendo eles: Kandinsky, Tristan Tzara, Richard Huelsenbeck, Rudolf Von Laban,

Jean Arp, Blaise Cendrars entre outros. O Dadaísmo se espalha pela Europa tornando

Paris o principal eixo de atividade.

Com o lançamento da revista Littérature por André Breton, Paul Elouard, Philippe

Soupault e Louis Aragon começam a criar bases para o movimento Surrealista. O

Surrealismo segue como ideologia, segundo Cohen (1989) como a “estética do

escândalo”, lançando provocações contra a plateia.

Paralelamente ao Surrealismo, a Bauhaus alemã desenvolve importantes

experiências cênicas, que se propõem integrar arte e tecnologia. A Bauhaus é a primeira

instituição de arte a organizar workshops de performance. O eixo principal do movimento

se desloca agora para a América, com a fundação, em 1936, na Carolina do Norte da

Black Moutain College.

Nos EUA a performance começou a surgir no final dos anos 30 com a chegada dos

exilados de guerra europeus a Nova York. Em 1933 estudantes e professores da Bauhaus

mudaram-se para perto da Carolina do Norte para Black Moutain College, constituindo

uma pequena comunidade de artista de diversas áreas como: escritores, dramaturgos,

bailarinos, artistas visuais e músicos, que estudaram baseados num currículo diversificado

de Josef e Anni Albers.

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Albers que havia lecionado na Bauhaus antes de seu fechamento pelos nazistas, rapidamente providenciou a necessária combinação de disciplina e inventividade que tinha caracterizado seus anos na Bauhaus: “a arte diz respeito ao COMO e não ao QUÊ; não ao conteúdo literal, mas à representação do conteúdo factual. É na representação -no modo como isso se faz- que se encontra o conteúdo da arte”, explicou aos alunos durante uma palestra.(GOLDBERG, 2006, p.111)

Esta comunidade adquiriu reputação de um refúgio educacional interdisciplinar.

Logo a comunidade se converteu às performances breves e improvisadas. Em 1936

Albers convida seu ex-colega da Bauhaus, Xanti Schawinski, a ampliar a escola de arte

com a liberdade de fazer um novo currículo. A performance na Black Moutain College é

visto como o lugar que cria a interação dos diversos cursos de arte, este diálogo entre as

artes foi visto em trabalhos como Spectrodrama e Dança macabra, de Shawinski. Albers

deixou a escola em 1938 para juntar-se a nova Bauhaus em Chicago, mas logo houve a

visita de outros artistas a Carolina do Norte e dois anos depois a escola mudou-se para

Lake Éden, próximo a Asheville, na Carolina do Norte, onde por volta de 1944 foi criado

um novo curso de verão atraindo grande número de artistas.

2.2.1 Happening

Happening caracteriza eventos, e eventos estes realizados ao vivo onde o

importante é apenas o momento presente. Não se repete um happening, ele é feito uma

única vez envolvendo a participação do público. Associado com a arte ao vivo ou live art,

o happening vem depois das assemblages e instalações ambientais.

24

A arte ao vivo, era referência em dar vida às questões antes abordadas na tela,

principalmente em relação ao espaço. Segundo Godenberg (2006), “Kaprow fala que as

interações eram representações espaciais de uma atitude polivalente da pintura, bem como

um meio de dar expressão dramática a soldadinhos de chumbo, histórias e estruturas

musicais que um dia tentei incorporar apenas na pintura” (GOLDBERG, 2006, p.118).

Kaprow apresenta em 1959 “18 happenings em 6 partes” na Reuben Gallery em

Nova York. É curioso saber que o termo happening entendia-se como algo que por acaso

acontecesse, espontâneo, entretanto a peça “18 happenings em 6 partes” foi toda ensaiada

cuidadosamente antes da estreia, e os performances já haviam memorizado desenhos e

marcações de tempo indicados por Kaprow.

A partir do trabalho de Kaprow muitos outros happenings foram feitos como A lua

americana (1960) de Robert Whitman, Instantâneos da cidade (1960) de Oldenburg,

Pátio (1962) do próprio Kaprow entre outros. Em 1960 houve uma noite de eventos

variados na Judson Memorial Church, abrindo suas portas às performances dos artistas.

Algumas das performances foram: Ray Gun Spex organizada por Claes Oldenbur com

participação de Whitman, Kaprow, Hansen, Higgins, Dine e Grooms, Instantâneos da

Cidade de Oldenburg, Réquiem para W.C.Fields, que morreu de alcoolismo agudo de

Hansen e Operário Sorridente de Jim Dine. Todas essas obras foram agrupadas pela

imprensa como happenings, porém os artistas não se classificavam assim, mas como não

houve nenhum manifesto publicado ou revista, o termo ficou por isso mesmo.

Dick Higgins, Bob Watts, Al Hasen, George Macunias, Jackosn MacLow, Richard

Maxifield, Yoko Ono, La Monte Young e Alison Knowles apresentaram performances,

25

agrupadas no grupo Fluxus, criado na década de 1960 compostos por artistas de diversas

áreas e inspirados por movimentos como o dadaísmo, surrealismo e o construtivismo. O

grupo Fluxus conseguiu espaços para suas obras: o Fluxhall e o Fluxshop.

No geral o Happening vem de uma evolução das artes onde o corpo todo é usado

para produzir arte, os artistas usam substâncias que estimulam os sentidos, traçando linhas

entre a arte e a vida, dando margem a improvisação. Para Renato Cohen (1989) no

happening interessa mais o processo, o rito, a interação e menos o resultado estético final.

O contexto do happening entra na contracultura, na sociedade alternativa.

Há diferenças entre o happening e performance. No happening ocorre uma

aproximação do espectador, fazendo-o participar da cena proposta pelo artista. Os eventos

possuem estrutura flexível, sem começo, meio e fim. Já a performance tem mais

preparação para a apresentação, e tem direcionamento, é mais elaborada por ter uma

proposta.

2.2.2 Body Art

Segundo Cohen (1989), a body art surge no final dos anos 1960, conquistando seu

apogeu nos anos 1970 ao propor a recusa do objeto de arte como um bem mercantil em

favor de uma arte imaterial, da ideia, teoricamente invendável. Modelada pelo artista a

partir do seu próprio corpo, era importante acentuar o desprendimento da carne, ou seja, o

entendimento do corpo como objeto suscetível a transformações, e cuja performance

26

traduzida em arte, não é passível de ser adquirida, reproduzida, tornar-se propriedade de

outros.

De acordo com Goldberg (2006), na Arte Corporal o objeto de arte se traduz no

próprio corpo do artista, os performances tornam seu corpo como material artístico e

como instrumentos deles, como fez Klein e Manzoni antes dos anos 70, década esta que

marca a revolta de estudantes com questões políticas que se refletiam na arte, como por

exemplo: os estudantes criticavam as galerias de artes, que colocavam as obras apenas

como objeto de comercialização, em relação a essa crítica a obra de arte passou a ser

considerada o próprio corpo, pois só era visível não era possível comprar e levar para

casa. Considerando o objeto de arte como algo supérfluo, formulou-se a ideia de “arte

conceitual” uma arte que tem nos seus conceitos o material, nesse tipo de arte objeto

artístico não poderia ter finalidade econômica. Na arte conceitual implicava a experiência

do tempo, do espaço. A performance na década de 60 e nos primórdios dos anos 70 se

voltaram contra a arte conceitual, pois para exprimir experiências do corpo e do espaço

não era possível para eles ficar presos a materiais tradicionais como pincel e tela, era

necessário trazer o corpo como o mais direto meio de expressão, se tornando o próprio

objeto de arte. A performance era um meio para materializar os conceitos de arte,

trazendo esses conceitos em obras ao vivo, e com isso o ideal era que o espectador

pudesse por associação, ter uma intuição sobre a experiência específica diante da qual o

performer colocava.

O corpo entra em cena em sua materialidade. A incorporação da arte como ato inscrito no efêmero do momento, inserido em um ritualismo cominado ou improvisado segundo as interações dos participantes, contesta os funcionamentos sociais, culturais ou políticos por um engajamento pessoal

27

imediato. A body art é uma crítica pelo corpo das condições de existência. (BRETON, 2003, p. 44)

Por volta de 1972, já se passava algum tempo de arte conceitual e isso refletiu na

formação de novos artistas conceituais. A instituição de galeria que antes era rejeitada

pelos artistas, agora era reafirmada como um conveniente mercado das artes.

A Body Art se transforma de acordo com os artistas e as performances, transitando

entre a radicalidade de uma ação do artista contra seu próprio corpo ou um ato simbólico

deste no sentido de provocar o público. E segundo Breton (2003), essas ações ocorriam

através de questões como a identidade sexual, os limites corporais, a resistência física, as

relações homem-mulher, a sexualidade, o pudor, a morte a relação com os objetos etc.

Breton (2003) fala que para a body art o corpo é matéria prima destinado às

provocações e intervenções concretas, e também reivindicado como fonte de criação. Na

body art contemporânea há exemplos dos artistas Orlan e Stelarc que em seus trabalhos

ilustram a condição de um corpo transformados em objetos.

Segundo Breton o corpo é o centro do trabalho de Orlan, seus trabalhos acontecem

diretamente em seu corpo, ela o usa como matéria prima através de intervenções

cirúrgicas onde o trabalho é a ação da própria cirurgia, divulgada através de vídeos e

fotografias. Além do próprio ato cirúrgico em seus trabalhos está implicado o conceito de

modificação do corpo, utilizando a intervenção cirúrgica sem uma necessidade médica

nem estética, mas com o objetivo de transformação de sua aparência em prol de

experimentos artísticos. “A cirurgia funciona aqui fora da legitimidade médica, torna-se

um meio de transformação de si e de criação de uma obra de arte que se identifica à forma

28

física do próprio sujeito.” (BRETON, 2003, p.47). Priscilla Ramos da Silva (2007)

descreve o projeto em que Orlan fica internacionalmente famosa. A Reincarnação de

Santa Orlan (1990 – 1995), obra-processo em que a artista busca a metamorfose de seu

rosto. Este trabalho ocorre em varias etapas, primeiro a artista seleciona traços de rostos

femininos com citações corporais ligadas a história da arte (o queixo da Vênus de

Boticelli; a testa de Mona Lisa de Leonardo Da Vinci; a boca da Europa de Gustave

Moreau; o nariz de uma escultura de Diana da escola de Fontainebleu e os olhos da

Psique de François Pascal Simon Gerard) e compõe com eles um modelo virtual 3D. Para

o próximo passo Orlan passa a incorporação, através de intervenções cirúrgicas, dos

traços do modelo resultante em seu próprio rosto, “objetivo que, após uma série de oito

cirurgias plásticas a artista julga ter alcançado” (SILVA, 2007, p. 43).

Outro artista dito da Body Art contemporânea é o australiano Sterlac. Segundo

Breton (2003) para Sterlac o corpo é uma espécie de carapaça anacrônica da qual é

urgente se livrar, ele trata do corpo como algo obsoleto diante da tecnologia, uma matéria

insignificante prestes a desaparecer. Em 1971 começa a série Suspensões, que no início

ele se pendurava com cordas e arreios e a partir de 1976 utilizava alfinetes fixados na

carne. Um assistente pinça e levanta a pele enquanto um outro enfia o gancho, a

distribuição do peso implica entre 14 e 18 pontos de inserção de acordo com a

performance. Stelarc possui trabalhos envolvendo artefatos robóticos. “A tecnologia vem

substituir as funções fisiológicas e transforma o artista em ciborgue, em precursor do que

chama de “pós-evolucionismo”, progresso radical rumo à humanidade modificada que ele

deseja estigmatizando o corpo.” (BRETON, 2003, p.51). Em The third hand, com uma

29

prótese de mão fabricada no Japão, o artista controla uma extensão física pelos sinais

elétricos dos músculos abdominais e da perna, essa terceira mão agarra, pega objetos e

gira sobre si mesma. Stelarc transforma movimentos reflexos ou provocados do corpo em

sons por meio de uma mediação eletrônica científica. Breton diz, Stelarc virtualiza seu

corpo.

Esses dois artistas citados mostram na prática uma das formas em que o corpo

aparece na arte contemporânea. O ato vira obra, o corpo vira matéria prima ultrapassando

limites do físico, transformando o que se entende por corpo e colocando-o no ponto

central de questões.

2.2.3 Outros meios...

Como afirma Santaella (2004), os meios para essas manifestações artísticas

envolvendo o corpo, passaram pela fotografia, como um intermédio para a documentação

da efemeridade, que é própria das instalações. E o vídeo, que ainda nos anos 70, emergiu

como forma de arte seguida pelas videoinstalções que atingiram seu ápice nos anos 80.

A relação do vídeo com o corpo é percebida através do conteúdo do vídeo, do

assunto que ele visa a explorar. Se esse assunto se refere ao corpo, é reconhecida uma

relação de corporeidade. Sob esse aspecto não só o vídeo, mas também a fotografia

passaram a explorar desde os anos 70 temas inspirados por perspectivas culturais a cerca

do corpo, como novas visões sobre gênero e identidade. Contudo a relação corpo -vídeo

30

vai além, não acontece somente por seu conteúdo, mas o corpo pode ser usado como

instrumento central, podendo também se tratar do corpo do próprio artista.

Segundo Santaella (2004), nos anos 80 os ambientes artísticos, acadêmicos, em

geral foram invadidos pelos debates sobre o pós-moderno e pós-modernidade. Ela diz que

no discurso visual da arte o pós-moderno está relacionado com a ruptura das fronteiras

entre as artes e as camadas da cultura: superior-erudita, inferior-popular e de massa.

Santaella (2004) afirma que o pós-moderno amplia-se no conceito de pós-

modernidade, entendido no sentido de uma nova era cultural. Nessa época ocorreu o

retorno à pintura e ao objeto, deslocando a resistência do comércio das artes,

predominante dos anos 70, para a proposta de um retorno as pinturas de larga escala

comercializáveis. Santaella diz que esse retorno tratava-se de pinturas de grandes

dimensões, “Tais pinturas, no seu retorno grandiloquente ao expressionismo abstrato,

incluíam sem sombra de dúvida, a questão do corpo, as marcas do corpo do artista e da

energia ou desprendimento do seu gesto deixados na tela...” (SANTAELLA, 2004, p.72).

Podendo ser retomado o exemplo do Jackson Pollock.

Além das pinturas, as tendências dos anos 80 foram manifestadas também, na

autoperformance fotográfica e no vídeo performativo, que segundo Santaella (2004),

intensificavam a tendência do eu-como-imagem. Uma parte da arte performática em geral

se desvinculou das artes visuais se relacionando com a música, o teatro e a dança.

31

2.3 FALANDO SOBRE DANÇA

O corpo na dança, assim como nas artes visuais, nem sempre foi problematizado

nas obras como a questão do trabalho. A trajetória percorrida pela dança vem desde a

dança primitiva, onde fazia parte dos rituais de celebração, fertilidade, caça ou invocação

à natureza, passando por um cunho religioso através de danças para os deuses, ou como

parte na formação dos cidadãos.

De acordo com Silva (2005) na idade média as danças continuavam com um papel

ritualístico junto com as danças comemorativas dos camponeses em ocasiões de

casamentos, colheitas ou nascimentos. As danças camponesas se desenvolviam em danças

de pares, em quadrilhas, com padrões circulares e lineares, sempre praticadas em ocasiões

comemorativas. E aos poucos essas danças foram transferidas para os castelos feudais na

França e na Itália onde foram se transformando ao longo dos séculos XV e XVI, nas

chamadas danças de corte como é o caso da base danse, que eram danças calmas, lentas,

solenes, nobres. Diferente da hauste danse que eram saltitantes, alegres e rápidas.

Na Renascença à semelhança da Grécia, a dança passou a fazer parte da educação.

Logo se tornou necessário introduzir nas cortes a figura do mestre de dança. A ele

competia alem de ensinar os passos, fazer a marcação coreográfica em torno de um tema

escolhido pelo senhor que o empregava.

A partir do momento em que as danças populares foram trazidas para corte no

século XV na França e na Itália, passando a ser entretenimento de nobres, a dança começa

32

a tomar feições de espetáculo, deixando seu caráter mais livre e dando importância a

virtuosismo, técnica e enredos. O termo ballet começava a ser usado.

Segundo Silva (2005), os modelos dos balés narrativos tiveram seu ápice na era

romântica do século XIX. Com estórias fantásticas povoadas de fadas, bonecas, ninfas,

princesas e bruxas. O contexto histórico do balé romântico teve na poesia, na literatura, na

música e na pintura uma moldura perfeita para o seu desenvolvimento. Algumas

características dos balés românticos eram: a preferência pelo sobrenatural, apresentação

em dois atos como um ato do mundo real e outro do mundo irreal, inspiração em cenários

góticos, medievais e movimentos suaves.

O Balé seguiu seu desenvolvimento com diversos bailarinos e coreógrafos. Foram

codificados passos disseminando a técnica do balé em diferentes países.

Os coreógrafos desenvolveram seus estilos dentro das escolas russa (Vaganova), francesa (Petipa – Ivanov), Italiana (Chechetti), dinamarquesa (Bournoville), inglesa (Royal) e mais recentemente americana (Balanchine). O vocabulário de passos, posições, direções e expressões continuam sempre semelhantes com pouquíssimas variações entre as escolas. (SILVA, 2005, p.94)

Por volta do início do século XX, inicia uma nova fase para a dança, surgindo a

dança moderna. Marcando um período que foi de encontro ao academicismo do balé,

sendo uma de suas pioneiras Isadora Duncan, como nos afirma Silva (2005).

A dança moderna caracteriza um período de instabilidades e rupturas da arte em

geral. Na dança o que ocorreu foi a necessidade de romper com as regras do balé, visando

a liberdade dos movimentos, e principalmente poder dançar as aflições da época. “O

mundo enfrentava a 1ª Grande Guerra e já não era mais possível dançar sobre um mundo

33

de irrealidades ou fantasias, mas sim sobre a verdadeira condição humana, suas vitórias e

fracassos.” (SILVA, 2005, p.96).

O ato de criação artística torna-se um símbolo e o modelo do ato de viver, dançar a

vida! Essa busca pela liberdade era o reflexo de um mundo governado por máquinas, no

qual o ser humano se debate em busca de novas relações consigo e com a sociedade.

Nesse momento a dança não se sustenta mais como apenas entretenimento, ou como um

instrumento para expressar alegria ou tristeza, mas como uma linguagem artística disposta

a discutir os problemas da época, ou pelo menos as sensações de um corpo inserido nesses

problemas. O que é interessante é que apesar dessa busca da liberdade, ou da oposição das

regras e academicismo do balé, a dança moderna acabou por criar outras características

próprias que se resultaram como uma outra técnica. Algumas dessas características são:

O uso do centro do corpo como propiciador do movimento, os pés descalços, o uso do chão não apenas como suporte mas onde os dançarinos podiam sentar ou deitar, o uso diferenciado da musica de maneira não literal e principalmente a utilização de uma dramaticidade mais direta oriunda do movimento, da temática e dos personagens, em oposição ao lirismo considerado superficial do balé clássico, foram alguns traços que definiram a filosofia criativa e a linguagem da dança moderna. (SILVA, 2005, p.97)

Depois da dança moderna, a dança continuou com um processo de muitas

mudanças, em relação à narrativa das coreografias, a dramaticidade, a música, a técnica.

Enfim houve várias experimentações e entendimentos da dança, e ainda há.

O corpo no decorrer da história teve diferentes conceitos e abordagens. Silva

(2005) fala que nos anos sessenta a filosofia era relaxar e deixar que o corpo improvisasse

ao sabor dos seus impulsos, enfatizando o corpo como ele é, sem virtuosismos. Nos anos

34

setenta houve um retorno ao controle, a forma num certo retrocesso aos valores da dança

moderna.

Nos anos oitenta é combinado essas duas formas anteriores e vai mais além

experimentando outras técnicas advindas de outras linguagens. E no final desta década

propiciou-se o início da aceitação de múltiplos corpos.

Os anos noventa apresentaram uma característica de multiplicidade em relação ao

uso do corpo na dança, permitindo novo jogo de imagens e temáticas. “Cada performance

tinha uma lógica própria e não há como unificar qualquer conceito ou técnica do corpo.

Seria como se cada coreógrafo, a cada montagem, estabelecesse a feitura do corpo do seu

elenco de acordo com a sua proposta e principalmente de acordo com as singularidades de

cada intérprete.” (SILVA, 2005, p.137).

2.3.1 Um olhar sobre a dança contemporânea

Compartilhando com o pensamento de Mundim (2008) sobre a difícil tarefa de

definir a dança contemporânea, talvez por esta ser um terreno mutável. O objetivo desse

texto não é apontar o que é a dança contemporânea como uma única verdade, mas trazer

um olhar da dança feita hoje, através de pesquisas acadêmicas sobre o assunto e de

autores da própria dança, que abordam conceitos e características dessa linguagem.

A dança contemporânea ainda não possui uma técnica específica, um código aonde

o bailarino possa aprender através de uma aula. Isso porque não se trata apenas de um tipo

de movimentação específica, mas de reconhecer a dança como área de conhecimento.

35

Segundo Ana Carolina Mundim (2008), entende-se a dança contemporânea como

aquela capaz de dialogar com a atualidade, de modo a reconstruir poeticamente a cena

cotidiana. Sendo assim a dança contemporânea é realizada e construída a partir de suas

influências e relações com o ambiente, organizando em cena questões do cotidiano e do

mundo. Implicado nessas questões variados assuntos.

[...] entendemos que o artista no contexto da contemporaneidade é alguém que dialoga com a atualidade e correlaciona corpo e ambiente (por meio dessa pesquisa de campo, memória afetiva, entre outros), reelaborando esta conexão para a cena, de modo poético. (MUNDIM, 2008, p.113)

Considerando que é através dessa relação, corpo-ambiente, que se constroem

trabalhos de dança contemporânea, entende-se que o importante não é o resultado do

trabalho, mas o processo. Pois o ambiente se altera a todo o instante, e assim as questões

do trabalho podem também se transformar. O bailarino contemporâneo é influenciado por

diferentes técnicas e linguagens artísticas que vão se construindo através do processo de

um trabalho em específico, tendo a opção de construir uma linguagem através de outros

caminhos, e não somente a partir de um vocabulário de passos pré-determinados como no

repertório do ballet clássico ou da dança moderna. “O bailarino contemporâneo é hibrido:

alimenta-se de diferentes instrumentais corpóreos e áreas de conhecimento que colaborem

com seu fazer artístico.” (MUNDIM, 2008, p.114).

Através dessa possibilidade de hibridismo o bailarino ganha autonomia em suas

escolhas, escolhendo quais as melhores formas de preparar seu corpo, até porque em

grande parte dos trabalhos contemporâneos de dança, o bailarino não ocupa um lugar

somente de intérprete, passando a ter também a função de um cocriador Segundo

36

Mundim, quando ocorre esse lugar de intérprete-criador, há participação ativa da

composição coreográfica como propositor, e não apenas como executor.

Isso determina a atuação do bailarino como pesquisador do corpo e do movimento, consciente de sua estrutura psicofísica (não há modelo pré-estabelecido a seguir; o interprete trabalha com a idéia de corpo de apropriação e reelaboração do movimento e não da cópia; o próprio corpo do interprete é fonte de criação).(MUNDIM, 2008, p.114)

A dança contemporânea é um trabalho de pesquisa, onde o bailarino através da

mistura de linguagens investiga e discute suas questões através do movimento. Sendo um

corpo sempre em busca de respostas, formulando questões, hipóteses, e organizando-as

em cena. Fátima Wachowicz (2008), afirma que a obra de arte não tem por função ser

objeto de entendimento do espectador. Ela parte do princípio que se relacionar com uma

obra de arte é perceber como ela se organiza, e não o que ela diz, no sentido de decifrar

uma mensagem. Para Wachowicz a obra existe para ser observada, para se fazer conexões

com o mundo, com ideias e com maneiras de pensar o mundo, relacionar estéticas

diferentes.

A dança contemporânea vista por esses autores, retrata uma linguagem construída

através das relações com o mundo, tecendo uma grande rede de informações. O processo

do trabalho já é o trabalho, que pode se modificar a cada apresentação. O bailarino é

também o intérprete-criador, participando ativamente da criação, assim como o

observador que no ato de observar um trabalho também participa deste, fazendo parte do

trabalho direta e indiretamente.

Assim percebe-se que a dança contemporânea possui algumas características, que

não são obrigatórias, o importante é compreender que a dança contemporânea é uma

37

linguagem construída através de relações, de pesquisa, e investigação do bailarino perante

suas questões com o mundo.

A dança funciona como um sistema, ou melhor, é um sistema em evolução, que só

evolui na relação de um conjunto de coisas. Nela os elementos imprescindíveis para que

esse sistema ocorra são o corpo, o movimento e o espaço-tempo. Como diz Jorge

Albuquerque (2006), “[...] a dança é exploração e vivenciação do espaço-tempo,

consistindo em um sistema de enorme complexidade e, finalmente, consistindo em uma

maneira sofisticada de conhecimento.” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 113).

2.4 PONTOS DE ANÁLISE

Neste momento serão abordados os três elementos fundamentais da dança (corpo,

movimento e espaço-tempo), com a finalidade de posteriormente identificá-los nas obras

da artista visual Iole de Freitas, e assim investigar possíveis dialogo da dança

contemporânea com as artes visuais.

O primeiro elemento é o corpo, que nesta pesquisa vem de um estudo sobre o

corpo na contemporaneidade, e que ao falar do corpo na dança utilizaremos o conceito de

corpomídia fundamentado nas autoras Cristine Greiner e Helena Katz.

Katz e Greiner (1999) consideram o corpo como o resultado entre o cruzamento da

informação que chega do ambiente em negociação com a informação que já está no

corpo. Para elas o corpo não é o meio por onde a informação simplesmente passa, um

38

lugar onde são abrigadas. O entendimento do corpomídia é de um corpo que é mídia de si

mesmo, oposto a ideia de mídia pensada como veiculo de transmissão. “A mídia á qual o

corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão

constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação.”

(GREINER, 2005, p.131).

Percebe-se então que o corpo na dança contemporânea é uma via de mão dupla, ou

seja, um diálogo entre o dentro o fora, o corpo e o mundo, constituindo-se através da

contaminação com o meio e do ato de contaminar. O corpomídia é um corpo em trânsito,

onde a cultura não é uma oposição entre o interno e o externo, mas uma possibilidade de

passagem de um âmbito a outro.

As informações do meio se instalam no corpo; o corpo, alterado por elas, continua a se relacionar com o meio, mas agora de outra maneira, o que leva a propor novas formas de troca. Meio e corpo se ajustam permanentemente num fluxo inestancável de transformações e mudanças. (KATZ; GREINER.1999, p.90)

Considerando que corpo é trânsito de informações, diálogo entre o dentro e o fora,

passamos a falar agora de outro elemento importante para a dança que é o movimento. A

arte da dança está diretamente ligada ao movimento, sendo este o próximo tópico para a

análise no terceiro capítulo.

Para falar sobre movimento serão abordados conceitos de Rudolf Laban, que foi

um grande pesquisador do movimento humano. Suas teorias do movimento foram

desenvolvidas na primeira metade do século XX, e não são exclusividades das artes

cênicas, elas vêm sendo aplicadas em todos os domínios em que a experiência e a análise

39

do movimento se fazem necessárias, como a saúde, educação, esportes, estudos culturais

entre outros.

Segundo Ciane Fernandes (2002), o Sistema Laban, decompõe o movimento

humano em quatro categorias, sendo elas: Corpo, Espaço, Esforço (Expressividade) e

Forma. E cada uma delas possui suas respectivas subcategorias. Abordaremos as

categorias que forem interessantes para o processo de análise da dança com as artes

visuais.

A categoria Expressividade, refere-se ao como nos movemos. Esta categoria cita

as qualidades dinâmicas e o impulso do movimento, podendo ser leve, forte, direto,

indireto etc. Ela refere-se à teoria e prática desenvolvida por Laban, onde as qualidades

dinâmicas expressam a atitude interna do indivíduo com relação a quatro fatores: fluxo,

espaço, peso e tempo. Esses fatores possuem variações como fluxo contido e livre; espaço

direto e indireto; peso forte e leve; e tempo acelerado e desacelerado.

O fator fluxo é a quantidade de tensão muscular do movimento. O fator espaço é a

atenção do indivíduo a seu ambiente ao mover-se, podendo ser foco direto, indireto ou

multifoco. E refere-se ao onde do movimento. Pensando em espaço ele está associado à

Dimensão Horizontal – direita e esquerda. A visão é a principal responsável pela atenção

ao espaço, e no Sistema Laban o foco refere-se a todo o corpo ou a partes dele. O fator

peso está relacionado a mudanças usadas na força do corpo ao mover-se, sendo o que do

movimento, referindo-se a sensação e intenção ao realizá-lo, pensando em espaço é a

dimensão vertical – alto e baixo. E por último o fator tempo, que é a variação na

velocidade do movimento, sendo gradualmente mais rápido ou mais devagar, relaciona-se

40

com o quando do movimento, sendo a intuição e a decisão ao realizá-lo, em relação ao

espaço é a dimensão sagital – frente e atrás.

A segunda categoria é Forma, refere-se com quem nos movemos. É a mudança ao

volume do corpo em movimento com relação a si mesmo ou a outros corpos. Os modos

de mudança de forma são: Fluida, Direcional ou Arcada e Tridimensional. A forma Fluida

implica no relacionamento do corpo consigo mesmo, entre suas partes, movendo-se a

partir da respiração, voz, órgãos e líquidos corporais. O volume do corpo é criado pela

inter-relação de seus componentes, nessa forma o corpo não tem nenhuma intenção

espacial, nem externa a si mesmo, porem pode crescer ou diminuir preferencialmente em

uma das três dimensões ou eixos (altura, largura e profundidade). A forma Direcional –

linear ou arcada, é quando o corpo passa a se interessar por seu meio, começando a

relacionar-se com o ambiente, buscando ou puxando em movimento linear reto ou

curvilíneo. Esta forma refere-se ao desenho do percurso descrito pelo corpo em

movimento que será uma reta ou um arco. A última forma é a Tridimensional, ela interage

com o ambiente como uma sinuosa espiral, escultural em movimento, como quando duas

formas constantemente acomodam-se uma à outra. A rotação é a principal ação corporal

responsável pela tridimensionalidade do corpo no espaço. Um corpo sozinho movendo-se

pode apresentar essa forma moldando e preenchendo o espaço ao seu redor.

A terceira e última categoria que será utilizada em nível de análise com as artes

visuais, é o Espaço, referindo-se ao onde nos movemos, este Espaço é diferente do fator

espaço apresentado dentro da categoria Expressividade, pois é o Espaço externo. Esta

última categoria pode ser chamada também de Harmonia Espacial, refere-se à arquitetura

41

espacial criado por Laban a partir de seus estudos da arquitetura do corpo, é a relação do

corpo em movimento com o espaço.

Para Ciane Fernandes (2002) existem três concepções básicas fundamentais para a

Harmonia Espacial. Como a convicção de Laban na existência de uma ordem cósmica

natural, que se reflete também no movimento. O espaço e movimento determina-se

mutuamente, estabelecendo que o espaço vazio não existe. E a crença de Laban na

presença do movimento em todos os aspectos da vida, colocando que a estabilidade ou

imobilidade completa não existe, portanto o equilíbrio é o resultado de duas qualidades

contrastantes de ação.

Onde quer que alguém comece explicando Harmonia Espacial e sua lógica harmônica, acabará com a mesma lista de palavras-chave. Ainda assim, o ponto de partida fundamental parece ser a percepção do ser humano como um corpo arquitetônico movendo-se no espaço, assim definindo movimento como uma arquitetura viva, vendo as leis das proporções no espaço, no corpo e na sua interação assim como relevando a importância da comunicação no e com o espaço. (FERNANDES, 2002, p.162)

A Harmonia Espacial é uma ferramenta para praticar ou acessar toda a amplitude

do nosso potencial físico para o movimento e da expressão dinâmica. Essa categoria

possui alguns subitens do qual o que é interessante para essa pesquisa é a Formas

Cristalina, que são formas que o corpo pode sofrer nele mesmo ou percorrê-las ao se

mover desenhando linhas e formas no espaço como se ligasse pontos invisíveis.

Fernandes (2002) afirma que até mesmo em movimentos simples e mínimos, como

caminhar ou fazer um pequeno gesto, o corpo cria formas no espaço ao seu redor. E que

entre as Formas Cristalinas, Laban escolheu especialmente cinco figuras geométricas para

42

estruturar princípios de movimento do corpo no espaço. São elas: o tetraedro, octaedro,

cubo, icosaedro e dodecaedro.

Laban organizou sequências de pontos em cada Forma Cristalina, sendo percursos

ligando diversos pontos dessas Cinesferas1 geométricas, no que chamou de Escalas

Espaciais. “Interagindo com o espaço tridimensional, o corpo constrói essas figuras

geométricas ao mover-se ao longo dos pontos escolhidos. Nessas escalas, o espaço é um

instrumento estimulador das potencialidades do corpo, trabalhando todo o seu volume em

movimento tridimensional.” (FERNANDES, 2002, p.173). Assim para cada figura há um

percurso de pontos definidos por Laban, onde para cada uma delas há um foco diferente

em relação às direções do espaço. Por exemplo, na figura do octaedro o foco são as

dimensões vertical, horizontal e sagital; na figura do cubo o foco são as diagonais; e no

icosaedro o plano vertical (porta), horizontal (mesa) e sagital (roda). Uma pessoa realiza

os movimentos nos pontos estipulados formando a Figura Cristalina, podendo também

explorar os mesmo pontos em sequências variadas.

Até agora no tópico do movimento, falou-se sobre o movimento do corpo humano

baseado nas teorias de Rudolf Laban, um outro contexto de movimento também é

relevante para a dança contemporânea, que é o movimento do processo de criação em

dança. A própria relação do corpo com o ambiente é movimento. Movimento sempre há,

mesmo o corpo em aparente repouso, ocorre o movimento interno, o pensamento é

movimento, o ato de organizar a dança, investigar e discutir questões no corpo é

movimento. 1 O termo Cinesfera refere-se ao espaço físico tridimensional ao redor do corpo, alcançável ao estender-se sem que seja necessário transferir seu peso. (FERNANDES, 2002, p. 164)

43

A dança é resultado da ação do corpo que testa hipóteses, problematiza e formula soluções provisórias e isso é uma ocorrência que se apresenta como um processo cognitivo e criativo do corpo. A dança aparece como construção de discursos argumentativos. (TRIDAPALLI, 2008, p.51).

Quando se fala em movimento e em corpo necessariamente estamos falando sobre

o espaço e o tempo, ou melhor, espaço-tempo. O espaço depende do tempo e vice-versa,

pois os processos físicos ocorrem em alguma região do espaço e durante certo intervalo

de tempo. O tempo esta sempre passando, permanecendo no agora. Sua passagem causa

transformações nos sistemas, tanto inanimados como animados. Essas mudanças são de

caráter macro e micro, indo de átomos a massas, realizando pequenos e grandes

movimentos.

As transformações ocorrem em algum lugar que é o espaço, então sem um espaço

não percebemos a passagem o tempo. O tempo é um aspecto da relação entre o

observador e o Universo. Este conceito foi introduzido pelo matemático Herman

Minkowski, ele argumentou que: “Ninguém jamais percebeu um lugar a não ser em um

tempo, ou um tempo a não ser em um lugar”. (WHITROW, 2005, p.124).

Conclui-se assim que em todos os sistemas há um espaço e um tempo, e um

depende do outro. O espaço-tempo num trabalho de dança esta implicado no corpo de

quem esta dançando, na relação dos corpos em cena, do bailarino com um observador, e

no conjunto desses sistemas (bailarinos e observadores), cada qual terá seu espaço-tempo

transformado de uma maneira diferente.

44

3 DIÁLOGO ENTRE A OBRA DE IOLE DE FREITAS E A DANÇ A

CONTEMPORÂNEA

3.1 SOBRE A ARTISTA

Depois de passar pelas questões do corpo na contemporaneidade, do corpo nas

artes visuais e de algumas questões da dança contemporânea, chega a hora de falar sobre

o foco dessa pesquisa que é a relação das artes visuais com a dança contemporânea. E

para fundamentar essa relação serão utilizadas como base as obras da artista Iole de

Freitas.

Iole de Freitas nasceu em Belo Horizonte em 1945. Em 1964 e 1965 estudou na

ESDI, escola de design no Rio de Janeiro. De 1970 a 1978 viveu em Milão, Itália, onde

trabalhou como designer no Corporate Image Studio da Olivetti. A partir de 1973 produz

e expõe seu próprio trabalho artístico. Participou de diversas exposições individuais e

coletivas em todo o mundo.

Lorenzo Mammí (2002) diz que as primeiras obras de Iole de Freitas utilizavam o

corpo da artista e a câmara cinematográfica ou fotográfica. Na maioria dos casos, o

resultado era um filme, do qual podiam ser extraídas séries de fotogramas que eram

apresentadas como trabalhos autônomos.

Sua trajetória como artista plástica iniciou com a produção dos filmes Elements e

Light Works, nos anos 70. A artista afirma que sempre teve interesse por estética e

45

linguagem visual, começou a construir uma linguagem própria através dos filmes

experimentais em super -8 e 16mm.

Estes filmes lidavam com questões como a luz, a luminosidade, a transparência e a

translucidez e também trabalhavam com elementos como água e mercúrio, sempre

banhados por uma luminosidade diferenciada. Segundo Freitas, em entrevista concedida a

DW-World (2007), o Light Work trabalhava exatamente com a observação de uma cortina

entre o espaço externo e espaço interno. O som do filme era o barulho da rua, enquanto a

câmera, posicionada no espaço interno, registrava o externo através da película sutil de

uma cortina de cor laranja.

Exit foi seu terceiro filme, tratava do deslocamento do corpo no espaço, com

determinados elementos que ainda existem hoje, como grandes planos (antes feitos de

tecidos, depois de tecidos plásticos, tecidos metálicos e finalmente a chapa de

policarbonato).

Esses trabalhos foram realizados até 76 e seus desdobramentos até 78. Iole de

Freitas declara que, esses filmes são a gênese de seu trabalho, onde as questões que

aparecem em trabalhos posteriores, como por exemplo, a investigação da presença de luz

em enormes planos retorcidos no espaço, estava presente nesses filmes, caracterizados

como.

Iole de Freitas, em entrevista a Fundação Iberê Camargo, declara que através de

experimentos no ateliê, sobre a situação do deslocamento do corpo, em relação aos

painéis, a mediação da foto e filme foram saindo do processo de construção do trabalho e

46

resultando nas situações plásticas, como esculturas e objetos. A partir dessa outra direção

surgiram trabalhos já relacionados com arquitetura e com o espaço.

Ocorre uma virada na década de 80 de seus trabalhos performáticos para o

escultórico. Mammí (2002) diz que as esculturas dessa década, como os “aramões”,

compostos por seus movimentos e linhas que atravessavam superfícies semi-

transparentes, possuem analogias evidentes com o movimento do olhar que perpassa o

plano do enquadramento, oscilando constantemente para dentro e para fora, nos trabalhos

fotográficos e cinematográficos da década de 70.

Nos anos 90 as releituras dos antigos fotogramas, ampliados sobre suportes de

vidro, acompanha uma mudança de foco além nas esculturas. Mammí (2002) afirma que

as peças perdem massa, reduzindo-a a uma rede metálica, mas em compensação, acentua-

se a relação entre o plano e o espaço em que o plano se encontra. Ele acredita que a

releitura dos trabalhos performáticos da década de 70, e a evolução progressiva das

esculturas da década de 80, sempre mais projetadas no espaço, foram as matrizes da fase

mais recente do trabalho de Iole de Freitas, a que se inaugura com Dora Maar na piscina,

no Museu do Açude do Rio (1999).

Nessa exposição, o espaço torna-se essencial com a presença das linhas e planos. O

trabalho foi composto para o Espaço de Instalações Permanentes do Museu do Açude,

com curadoria de Marcio Doctors, em 1999. A proposta era estabelecer um diálogo com a

natureza. A obra de Iole de Freitas foi feita numa piscina, segundo o curador, “Desde o

nosso primeiro encontro, seu olhar foi capturado pelas paredes da piscina. Imantada pelos

47

planos, começou a projetá-los no espaço, duplicando, fora, o dentro da piscina.”

(DOCTORS, 2002, p.46).

Segundo Mammí, em Dora Maar, existem alguns elementos que são fundamentais

para entender a obra posterior da artista. Como a relação mais articulada com o espaço.

Ele cita que em trabalhos anteriores ainda se tratava de uma relação entre linhas e planos,

por mais retorcidos que fossem. E no trabalho Dora Maar os canos de aço, com ou sem

auxílio das velas de policarbonato, desenham planos que recortam volumes. “A diferença

não é apenas de grau: a passagem da relação linha / plano à relação plano / volume

significa a transição do gesto à arquitetura, do privado ao público, da vontade à coisa.”

(MAMMÌ, 2002, p.7).

Dora Maar na piscina é uma instalação que quer entrar na estrutura íntima da matéria. Quer dar expressão visível ao conteúdo “vazio” da piscina: ar. Mantém pela presença da forma da piscina a lembrança do que ela deveria conter: água. E cria uma presença sólida no espaço, é um quase-desenho de um torso, a indicar que o corpo tem de estar onde a paisagem está. Dora Maar na piscina é um convite para que nos deixemos envolver pelo espaço; para que nos deixemos afetar pela matéria-imagem. Os planos da piscina passam a ter uma função emblemática, como um espaço a nos dizer que a paisagem não esta lá, no horizonte, mas está aqui, ao nosso lado, por todos os lados, assim como o ar. (DOCTORS, 2002, p.48).

Resumindo a trajetória evolutiva da obra de Iole de Freitas, baseada no texto de

Paulo Sergio Duarte (2002), tem-se um desenvolvimento que parte da exploração das

imagens nas fotografias e filmes dos anos 70, utilizando materiais de aparência precária,

e que posteriormente ganham dimensão, através das articulações dos fios de arame, tubos

de cobre e borracha, pequenos serrotes, pedaços de gaze e outros tecidos, formando

desenhos no espaço, isso no início da década de 80. Depois se encontra a presença das

primeiras superfícies planas, predominando grandes curvas. As superfícies ganham muito

48

espaço, elas se enroscam, se superpõe conectadas pelos longos arames de aço que

colaboram para unir fisicamente os diversos materiais. Em seus trabalhos mais recentes,

as placas de policarbonato se articulam num traçado contínuo dos tubos de aço

inoxidável. Invadindo o espaço de exposição sofrendo uma descontinuidade na

exploração do espaço arquitetônico. Sua ocupação de todos os espaços de exposição com

um único trabalho impunha uma outra releitura de conceitos de todo e de parte, de interior

e exterior, de contínuo de descontínuo.

Surge o desdobramento dessa experiência estes trabalhos que buscam uma descendência decididamente moderna, não discutem o lugar, e trazem o elogio do plano e o despojamento de estruturas elementares claramente construtivas. Estas esculturas nos despertam, também, para o falso guia que poderia se acompanhar uma linha “evolutiva” no trabalho. A obra se deixa contaminar por momentos diferentes do seu próprio tempo, e este teima em não se comportar segundo alguma lei de “evolução” da forma. O trabalho interage com seus diferentes momentos, e se transforma. (DUARTE, 2002, p.36).

3.2 RELAÇÕES COM A DANÇA CONTEMPORÂNEA

Após ter um panorama sobre as obras da Iole de Freitas e algumas de suas

questões, pretende-se agora estabelecer um diálogo dos tópicos analisados na dança, do

capítulo 2, com as obras e interesses da artista de maneira geral, sem escolher uma ou

duas obras específicas.

Iole de Freitas tem uma passagem pela dança, segundo entrevista a DW-World

(2007), ela afirma que a dança foi uma das áreas que possibilitou, nos períodos iniciais,

investigar e entender as questões do deslocamento do corpo no espaço.

49

Entretanto ela preferiu outra linguagem artística para investigar suas questões,

Freitas em entrevista a revista Arte & Ensaios (2007), declara que:

[...] O que sempre me interessou foi a percepção diferenciada do movimento do corpo no espaço e o que aprendemos com isso. De fato, mesmo tendo desenvolvido atividades de dança contemporânea por vários anos, nunca a considerei opção que viabilizasse a construção de uma linguagem estética própria. (ARTE & ENSAIOS, 2007).

Assim percebe-se que o corpo já é um elemento de interesse em sua obra. No início

ele aparece como sendo o corpo da própria artista, e ao longo dos trabalhos esse corpo

ganha outros conceitos e formas, passa a ser o corpo da escultura, e principalmente o

corpo do observador. Quando falamos do corpo na dança abordou-se o termo corpomídia,

citamos a sua relação com o ambiente e com o trânsito do dentro e fora. Essas questões se

encontram nas obras de Iole de Freitas. O importante para ela é a relação do corpo do

observador em relação com suas obras. Ela diz que a relação do corpo e espaço vem se

desenvolvendo de maneira mais clara desde o final dos anos 90. E que isso inclui a

participação do espectador, uma vez que ele não apenas contempla, mas tem experiências,

vive naquele lugar.

Em suas obras a corporeidade do indivíduo se da através da relação, não só da

escala, mas da presença do corpo perante a escultura, dentro de uma experiência sensorial,

através da visão e da percepção do corpo em deslocamento, que segundo a artista ocorre

de modo desafiador, pois o corpo no meio das imensas estruturas retorcidas subverte a

noção de profundidade e do lugar das superfícies.

Iole de Freitas coloca em jogo o equilíbrio do corpo no espaço, seja o equilíbrio de

uma escultura de duas chapas que se apoiam umas na outra de maneira improvável ao

50

senso comum, seja o equilíbrio das chapas de nove metros suspensas no espaço externo a

uma altura de 12m, ou ainda o equilíbrio do corpo do espectador se deslocando no espaço.

Ao se deslocar no espaço, a pessoa será levada a se questionar sobre as suas certezas, aptidões e habilidades. Não estamos falando de uma questão teórica, mas fenomenológica. O espectador pára antes de se aproximar da instalação, esbarra na obra, não sabe como continuar, interrompe o percurso no meio do caminho...alguns ficam meio tontos, outros perdem o equilíbrio e chegam a tropeçar. Era isso que eu queria, provocar um curto-circuito no sistema corpóreo-visual, oferece uma experiência não apenas do olhar, mas também de todo o corpo. (COSAC NAIFY, 2002)

O corpo na obra da Iole de Freitas não é do artista, mas do espectador a se deslocar

no espaço proposto a ele pelo artista. O ato de se deslocar entre as obras já propõe uma

ideia de movimento, o segundo elemento analisado na dança. Nas artes visuais em

trabalhos como escultura, é um pouco difícil pensar em movimento, tratando-se da obra,

mas no trabalho da Iole de Freitas é diferente. Em primeiro lugar pode-se que dizer que

o movimento é do corpo do espectador se movendo em relação à obra. Em segundo lugar

podemos analisar as diferentes categorias de movimento proposto por Laban, comentado

no capítulo 2, nas obras da Iole de Freitas, em específico, nas obras em que contém os

tubos de aço e as placas policarbonato. As análises foram feitas a partir das imagens e dos

textos do livro Sobrevôo (2002).

A primeira categoria é a Expressividade que se refere ao como nos movemos, está

composta por quatro fatores. O fator peso quando relacionado com a obra, caracteriza-se

mais pela relação dos materiais da escultura. Tendo por um lado a fisicalidade dos tubos e

das placas, que possuem um certo peso, mas que visualmente na estrutura proposta pela

artista aparenta uma leveza extrema. Pensando no peso proposto por Laban em relação ao

movimento do corpo no ato de ceder, ir para baixo, aparece na obra quando a trajetória

51

das linhas (tubos) cede indo para baixo, quase encostando no chão e retomando a altura

logo em seguida, exemplo na figura 1.

Fig. 1 Sem título, Iole de Freitas, policarbonato e aço inoxidável, 2002, 12 x 17 x 7m

O fator fluxo pode ser contínuo ou interrompido. Observando a figura 2, o fluxo

ocorre através do desenho e percurso das linhas. Nas formas mais arredondadas dando a

impressão de continuidade. E em certos trajetos das linhas e superfícies, ocorre uma

interrupção no fluxo, por uma linha em direção contrária, como se estivesse cortando a

trajetória. Também pode ocorrer a ideia de fluxo interrompido quando não há mais

contorno em volta da superfície, como mostra a figura 3.

52

Fig. 2 Sem título, Iole de Freitas, policarbonato e aço inoxidável, 2000, 14 x 23 x 22m

Fig. 3 Sem título, Iole de Freitas, policarbonato e aço inoxidável, 2000, 14 x 23 x 22m

53

O fator espaço, relaciona-se com o foco direto e indireto. O foco indireto pode-se

observar na obra Dora Maar, trazendo a ideia de expansão no espaço, há direções e foco

por todos os lados, mostrado na figura 4. Já o foco direto é possível perceber quando a

obra deixa claro a direção que ela vai, por exemplo quando uma linha (tubo) penetra a

parede continuando seu trajeto do outro lado, observemos a figura 5.

O fator tempo pode ficar por conta do espectador se ele percorre a obra de maneira

acelerada ou desacelerada, ou também através da impressão visual seja ao vivo, ou nesse

caso, pelas imagens. Olhando as imagens a impressão que dá é de um tempo acelerado em

relação às linhas (tubos), para dar conta de preencher o espaço e atravessar as paredes. Já

em relação às superfícies (placas), ocorre a impressão de um tempo em desaceleração,

como se as linhas chegassem antes e a superfície se formasse depois, preenchendo os

espaços.

O olhar quando bate sobre essas linhas ele percebe que elas estão “né” numa velocidade cada vez mais crescentes, e que essa velocidade é dada não pelo contínuo só das linhas, como da sala onde a superfície está projetada. (LUIZ FELIPE SÁ, 2000. Investigações: Iole de Freitas.Ar Ativado).

A segunda categoria do movimento é a Forma que se refere à mudança de volume.

Os volumes nas obras da Iole de Freitas envolvem as placas e os tubos, são muito claros e

perceptíveis logo no primeiro olhar. São tridimensionais e relacionam-se com o ambiente,

observemos a figura 6.

54

Fig. 4 Dora Maar na piscina, Iole de Freitas, policarbonato e aço inoxidável, 1999, 8 x 7 x 6m (aprox.)

Fig. 5 Sem título, Iole de Freitas, policarbonato e aço inoxidável, 2002, 12 x 17 x 7m

55

Fig. 6 Sem título, Iole de Freitas, policarbonato e aço inoxidável, 2000, 14 x 23 x 22m

E a última categoria visitada no movimento é o Espaço (Harmonia Espacial). Esta

envolve a relação de diferentes pontos no espaço, compostos por variadas direções que

preenchem os espaços. Como vimos no capítulo anterior, para Laban o espaço e o

movimento determinam-se mutuamente, estabelecendo que o espaço vazio não exista.

Assim é também nas obras da Iole de Freitas, as estruturas criadas por ela percorrem o

espaço de maneira a explorar suas mais variadas direções, e dialogam com outros

elementos do espaço, seja ele interno ou externo, as estruturas compõe com seus

elementos, como o ar, objetos ou o espectador.

Seja o que for, são evidentes, como se viu, as analogias entre a motricidade que anima essa estrutura e os movimentos do corpo; o trabalho se desenvolve como uma espécie de escansão dos movimentos corporais, um andar sem chão,

56

amplificado e tentacular, que potencializa a um patamar inusitado a plasticidade do corpo. (SALZSTEIN, 2002,p.40)

O último elemento considerado, nessa pesquisa, como fundamental para a dança é

o espaço-tempo. Dentre outras questões, a questão espaço-temporal é muito forte nos

trabalhos de Iole de Freitas, suas obras realizam uma construção do espaço, ocupando-o e

estabelecendo relações com o ambiente onde está inserido, sendo estes a paisagem, a

natureza, ou a arquitetura dos museus, galerias e residências. Segundo a artista “Uma das

intenções do trabalho é questionar as limitações espaciais que o projeto arquitetônico

tenta impor – dissolvendo paredes - e assim subvertendo a relação exterior/interior,

publico/privado.” (ARTE & ENSAIOS, 2007).

Suas obras se relacionam com a arquitetura do lugar, mas não se limitam as suas

condições físicas. Sônia Salzstein (2002), falando sobre a exposição de Iole de Freitas no

Centro de Arte Hélio Oiticica, cita que os tubos e superfícies que abraçam o prédio são

formados por uma relação que não se subordina às compartimentações funcionais ou aos

coeficientes habituais de peso e medida, escala e proporção a que esse espaço

automaticamente condiciona.

Vês-e agora que o trabalho não surge no processo de uma consulta ás particularidades do lugar, ao contrário, seu movimento depende da capacidade que demonstre de ir determinando no caso a caso seu próprio regime de funcionamento em face dessas particularidades, de ir impondo a elas, digamos, a elegância imperturbável de sua própria normatividade .(SALSZTEIN, 2002, p.40)

Percebe-se que o trabalho de Iole e Freitas constrói espaços, dialogando com o

ambiente já existente. O espectador por sua vez através da percepção pode construir um

outro espaço, sendo relativo a cada experiência, a cada observador. Salzstein declara que

57

“A sensação que se tem é de estar sendo arrastado a um redemoinho de túneis de ar, que

desmancham o chão e as paredes e amolecem a sustentação tectônica do espaço.”

(SALZSTEIN, 2002, p.42).

Sobre a relação em específico do tempo, Iole de Freitas declara, em entrevista a revista

Arte & Ensaios (2007), que esta talvez seja uma das questões mais complexas e que mais

a interessa atualmente. Ela diz que vem tentando compreendê-la melhor, e que vem

desenvolvendo desde seus trabalhos dos anos 70, que a estrutura dos filmes evidenciava a

questão do tempo, mas de um modo meio óbvio. E que nos últimos trabalhos, expostos da

Galeria Laura Marsiaj e no Gabinete de Arte, o tempo como duração, como registro das

percepções diferenciadas de vigília e sono, de acordo com a duração da luz do dia, tem

instigado a artista.

Evolui no espaço em extrema leveza e transparência, tornando-se visível e em percepção simultânea. Curvas e torções reagem em movimentos rápidos e precisos, em continuidade prolongada. Atravessam o espaço em fluxo continuo, deixando-se vir sem se impor. E, como a brisa marítima, invadem pela fenda do vidro os espaços internos, percorrendo os três níveis de solo diferenciados e vazados, e atravessam os obstáculos, avançando para fora, envolvendo o edifício todo como “uma cinta de tensão de energia”. (BURLAMAQUI, 2002, p.38)

58

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O corpo dentre seus conceitos é também gerador de questões e considerado o

problema contemporâneo, por esse motivo uma das causas centrais da Arte

Contemporânea.

A pesquisa passou pelo corpo na contemporaneidade, falou-se sobre suas

características, questões e qual o entendimento que se tem do corpo atualmente. Nas Artes

Visuais pode-se observar que o corpo tem uma trajetória passando pela representação

figurativa para ser a própria obra. Na dança, o corpo sempre foi o foco, sua evolução

passa de um entendimento de corpo físico, como instrumento para que a dança aconteça.

E na contemporaneidade o corpo compreende um conjunto de informações, um sistema

que é a própria dança.

Constatou-se que o corpo em trabalhos de arte visual contemporânea, aparece além

das performances, e de obras que fazem uma referência visual do corpo, como nas obras

da artista Iole de Freitas. Pode-se dizer que em suas obras o corpo pode ser a questão

central, como no início de seus trabalhos, quando Iole de Freitas pesquisava sobre a

relação do seu corpo no espaço e também o corpo aparece diluído em outros elementos

que tratam de questões da contemporaneidade, que são também pertinentes ao corpo.

Outra possibilidade de enxergar a corporeidade em seu trabalho pode ser

claramente vista na relação do corpo do espectador com a obra. É importante dizer que

na dança contemporânea há também essas diferentes relações com o corpo. Às vezes uma

59

pesquisa em dança pode tratar do próprio corpo do bailarino, de questões referentes ao

corpo, e da relação do corpo do espectador com o trabalho.

Assim, percebe-se uma relação entre as Artes Visuais e Dança, quando o assunto é

o corpo. A análise realizada no último capítulo demonstra isso, pois servem para tornar

claras as possibilidades de relações dos elementos trabalhados na dança contemporânea,

com elementos trabalhados nas artes visuais.

60

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