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História dos índios no Nordeste.

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  • NDIOS, NAUFRGOS, MORADORES, MISSIONRIOS E COLONOS EM

    KIRIMURE NO SCULO XVI: EMBATES E NEGOCIAES

    Profa. Dra. Maria Hilda Baqueiro Paraso1

    Ao pensarmos as relaes estabelecidas entre Portugal e os povos que habitavam sua colnia

    na Amrica temos que considerar o conjunto e a diversidade de estratgias e conflitos

    estabelecidos entre os vrios segmentos sociais. Nesse sentido, conquistar, dominar, colonizar e

    ressocializar so etapas estabelecidas pelo projeto metropolitano para impor a subordinao ao

    grupo nativo. Porm, convm ressaltar que essas estratgias no ocorrem necessariamente nessa

    ordem e que nem todas foram implantadas ao longo do processo colonial.

    Da mesma forma, foram mltiplas as posturas adotadas pelos indgenas ante a nova realidade

    e os conflitos dela decorrente. O que no podemos ignorar que a postura adotada nunca foi

    passiva, desvinculada das tradies de cada grupo e da avaliao da situao enfrentada. Assim,

    podemos elencar as vrias formas de posicionamento adotadas pelos grupos indgenas que

    variavam da resistncia, s fugas, enfrentamentos, busca de alianas com portugueses ou

    franceses e s tentativas de, atravs da aceitao do aldeamento compulsrio, construir um

    espao no mundo colonial que se lhes apresentava.

    Logo, o processo colonial no se estabeleceu, apenas, a partir da conquista militar, mas

    tambm atravs de uma gama variada de relaes econmicas, sociais e polticas resultantes das

    tenses, conflitos e solues encontradas por cada um dos grupos sociais envolvidos. O fato

    inegvel que a efetivao da conquista exigia ntima associao entre o Estado e particulares,

    portugueses ou no, e pressupunha solues rpidas e criativas ante o desconhecido, alm de

    uma grande capacidade de manipular o oponente da forma mais adequada aos interesses do

    empreendimento.

    No caso dos indgenas sob domnio lusitano, a superioridade do armamento blico foi um

    fator relevante, porm h, ainda, que atentar para a perplexidade e o terror que provocava por

    ser desconhecido. Os combates, por sua vez, assumiam outras formas que no as

    tradicionalmente praticadas pelas sociedades indgenas como a prtica do cerco, queima das

    aldeias e destruio de roas e a destinao dada aos vencidos. Essa destinao, no caso das

    sociedades Tupi do litoral no sculo XVI, deixava de ser orientada para os rituais

    antropofgicos, razo de glria e valorizao social do vencedor e de dignidade para o vencido,

    e passava a ser a de compor os lotes de escravos usados como trabalhadores nos

    empreendimentos e propriedades dos conquistadores. 2

    Elementos de fundamental importncia no processo de solidificao da conquista foram,

    tambm, os traumas psicolgicos sofridos por esses povos decorrentes das prticas de

    dominao exercidas pelos agentes colonizadores. Entre os grupos atingidos, passavam a

    predominar sentimentos de perplexidade e de despossesso dada a destruio do seu universo

  • tradicional e da sua auto-imagem positiva a partir do momento em que se estabeleciam relaes

    hierarquizadas. Era preciso encontrar novas formas de relacionamento que reorientassem suas

    vidas.

    A desestruturao econmica, social e poltica, imposta a partir do ordenamento das novas

    relaes que levavam em considerao os interesses dos conquistadores e seu modo de

    produo em detrimento das dominantes nas sociedades indgenas, tambm teve seu papel no

    processo de conquista/dominao. A ruptura do modo de produo dominante naquelas

    sociedades, baseado em relaes de reciprocidade, com trocas simtricas voltadas para a

    consolidao da solidariedade, foi desastrosa no mbito da produo e da circulao de bens,

    tendo graves reflexos no ordenamento social. As relaes sociais e as expectativas

    comportamentais tiveram de ser repensadas e ajustadas a uma nova realidade. Os objetivos

    econmicos passaram a se centrar na competio nas esferas da produo e do consumo, agora

    regidas por leis de um mercado que os nativos ainda no conheciam e do qual no dominavam

    as regras de funcionamento.

    Esse tipo de desarranjo econmico-social tanto pode ser identificado nas formas de

    explorao do ecossistema como tambm no conjunto de relaes estabelecidas nos nveis

    interno e externo. Com relao ao ecossistema, a competio pela caa, com o aumento da

    populao, a derrubada das matas, a introduo de atividades voltadas para o mercado e o fato

    de as terras de melhor qualidade deixaram de ser parte do patrimnio desses povos exigiram

    ajustamentos nas formas de explorar os recursos naturais.

    Em termos das relaes internas, ao se instalar a competio em detrimento da solidariedade,

    os vnculos sociais ordenadores da estrutura social se esgararam. Assim, desarticularam-se as

    interaes provocando a ruptura de alianas e a acentuao do estado de guerra em muitas reas,

    particularmente naquelas em que eram comuns os saltos e razias realizados pelos colonos para

    obteno de mo-de-obra escrava.

    O desrespeito lgica interna da sociedade indgena - como nos casos da diviso de

    trabalho; do preterimento de atividades produtivas que lhes garantiam a subsistncia pelas

    voltadas para a produo de mercadorias destinadas troca e ao comrcio; do desvio dos

    prisioneiros para a formao de grupos negociados ou entregues como escravos; das regras de

    solidariedade e a exigncia, cada vez maior, da entrega de excedentes para a troca - gerou tal

    desorientao social, e em nveis to profundos, que inviabilizou a reproduo da sociedade

    indgena a partir do modelo estabelecido naquele momento.

    Era preciso repensar, adaptar, encontrar brechas, formular estratgias de insero e

    preservao, fazendo surgir uma nova sociedade indgena mais operante ante a nova realidade.

    E esta realidade tornou-se crescentemente dinmica a partir do momento em que a conquista se

    transformou em colonizao e esta se expandiu e passou a consumir novos segmentos

    populacionais indgenas. Os descimentos forados ou estimulados promoviam a destribalizao

  • e o desenraizamento scio-cultural desses povos e os fazia conviver com grande diversidade de

    componentes da sociedade colonial: outros povos indgenas, colonos e, mais tarde, escravos de

    vrias etnias trazidos da frica.

    Em termos de ordenamento scio-poltico, h que destacar os efeitos negativos provocados

    pela mudana do eixo de poder, acentuando a dependncia e a incapacidade de uma reao de

    maiores propores e mais efetiva dos indgenas ante as imposies que lhes eram feitas. Nesse

    sentido, a morte e a destituio das lideranas indgenas ou sua cooptao acentuavam-lhes o

    sentimento de abandono. No entanto, algumas dessas sociedades encontraram formas de se

    ajustarem a essa nova realidade e, at mesmo, de criarem regras hereditrias de sucesso para os

    cargos de chefia. Criaram, moda europia, uma casta de governantes indgenas ativa no seu

    dilogo, capaz de apresentar suas exigncias e reivindicar seus direitos atravs do uso de

    mecanismos polticos prprios do mundo colonial.3

    Ante a plasticidade dos grupos indgenas e a necessidade de consolidar a conquista, o Estado

    portugus passou a implantar estruturas poltico-administrativas capazes de promover a

    passagem do estgio de pilhagem para o de explorao das riquezas naturais e da mo-de-obra

    ali existentes. Esta deveria se conformar s exigncias do novo modo de produo,

    implantao de relaes de trabalho de cunho escravagista e imposio de deslocamentos

    compulsrios para reas consideradas importantes na estratgia de ocupao, explorao, defesa

    e expanso dos territrios.

    Independentemente das relaes de poder serem expressas atravs de mecanismos de

    violncia explcita ou da criao de alianas, suas bases estavam fincadas no projeto estatal de

    implementar a conquista, a colonizao e a incorporao forada das populaes a um modelo

    estabelecido pelo Estado conquistador de acordo com seus interesses e os dos segmentos sociais

    tornados parceiros e executores daqueles projetos. E isso implicava a negao do direito

    autonomia das populaes indgenas, gerando vrias instncias de antagonismo, oposio,

    resistncia e negociaes, fortalecendo a adoo de medidas e os argumentos voltados para

    garantir a dominao e o controle sobre os aldeados. Essa realidade nos permite afirmar que, a

    longo prazo, o domnio imposto por uma minoria, em nome de uma superioridade racial e

    cultural, promoveu relaes pautadas pela hierarquizao e dominao, apesar dos discursos de

    carter humanitrio e religioso alardeados para justificar essas aes.

    Para compreendermos essas relaes de poder preciso considerar o objetivo maior dos

    colonos: a de concretizarem empreendimentos econmicos rentveis atravs do livre acesso

    terra e mo-de-obra indgena. Com isso, pretendiam garantir o rpido retorno do capital

    investido e promover seu enriquecimento e ascenso social. Mas, tambm, considerar que os

    povos indgenas eram agentes histricos ativos que estabeleceram suas relaes a partir de suas

    vivncias e experincias, expectativas e possibilidades de soluo permitidas e pensadas pelo

    seu referencial e sua organizao sociocultural. Porm, fundamental destacar que as relaes

  • coloniais eram constantemente atualizadas a partir das interaes estabelecidas entre os dois

    segmentos sociais, o que atribui peculiaridades aos vrios momentos e conjunturas

    historicamente constitudos, pois, em nenhum momento, o aparente equilbrio social

    identificado no conjunto das relaes teve um carter esttico. Essa dimenso dinmica resultou

    em vrios modelos de interao entre colonizadores e colonizados e nos constantes

    reordenamentos da organizao social dos indgenas atravs da incorporao seletiva de novos

    elementos culturais impostos pela convivncia com os colonizadores.

    Vivendo novas experincias em Kirimure.

    Quando da chegada dos portugueses Kirimure, a qual batizaram com o nome de Baa de

    Todos os Santos, os conflitos j eram antigos. Os Tupinambs haviam se apossado da regio,

    aps terem expulsado os Tupina para o interior das matas do Rio Paraguau. Porm, antes

    destes, ali teriam vivido grupos G, provavelmente Kiriri. Segundo a documentao produzida

    por missionrios jesutas, por administradores coloniais e cronistas, possvel inferir que os

    falantes da lngua tupi compunham uma populao numericamente expressiva e que as vrias

    tribos se subdividiam ao longo do litoral em territrios definidos pela conquista e ocupao. Os

    dados relativos organizao social dos Tupi no indicam a existncia de qualquer forma de

    articulao social e poltica mais ampla do que as unidades locais ou aldeias existentes, a no

    ser por uma rede de alianas entre as vrias tribos que se apresentava com grande fluidez em sua

    composio.

    A fluidez e a precariedade dessas alianas, exploradas pelos colonos em proveito de seu

    projeto de conquista, inviabilizaram formas de resistncia mais eficazes aos mecanismos de

    conquista e colonizao, apesar da superioridade numrica dos indgenas se comparada

    quantidade de europeus estabelecidos na colnia. Tambm souberam usar com competncia as

    regras de cunhadismo de forma a construrem alianas temporrias com os Tupi e delas se

    beneficiarem.

    Os ncolas que optaram por estabelecer alianas com os europeus viam-nas como uma

    possibilidade de obterem aliados poderosos contra seus inimigos tradicionais e de se

    preservarem dos saltos realizados pelos colonos em busca de mo-de-obra, desviando seus

    ataques para as aldeias dos seus opositores. Entretanto, esse quadro de alianas tambm era

    altamente fluido, compondo-se, rompendo-se e recompondo-se de acordo com a dinmica das

    relaes estabelecidas entre os vrios segmentos sociais, perspectivas e projetos distintos.

    O entendimento das relaes de casamento estabelecidas entre colonos e indgenas tambm

    deve ser pensado como uma das manifestaes dessas intenes opostas, mas complementares.

    Para os silvcolas, era a consagrao da aliana tradicional expressa nas regras do cunhadismo.

  • Para os colonos, era o uso de uma instituio social daquele povo para obter mo-de-obra,

    alimentos e permisso para viver nas aldeias como um dos seus membros.

    Porm, aos poucos, os Tupi passaram a perceber os antagonismos presente nas relaes que

    estabeleciam e viviam cotidianamente, fazendo-os reavaliar as alianas estabelecidas com os

    colonos. Para os ndios, as alianas baseavam-se em suas formas tradicionais de organizao

    social, ou seja, deveriam estar calcadas no princpio da reciprocidade e no, como passaram a

    ocorrer aps os primeiros anos de contacto: instrumentos que garantiam os direitos aos colonos

    e os deveres a eles. A constatao dessa realidade acentuou-se quando a dependncia dos

    indgenas para com os colonizadores se ampliou e a autonomia destes com relao aos produtos

    de subsistncia fornecidos pelos Tupi tornou-se uma crescente realidade.

    A insatisfao dos indgenas acentuou-se a partir de 1536, quando da efetiva implantao do

    sistema de Capitanias Hereditrias e a instalao da Capitania da Bahia, resultando em novas

    exigncias que lhes eram impostas: o trabalho compulsrio, a produo voltada para o mercado

    externo e a imposio de novos padres culturais voltados para sua transformao em

    trabalhadores adequados s novas atividades produtivas. Esses se tornaram os grandes vetores

    das constantes revoltas indgenas nas vrias capitanias.4

    Considerando-se os casamentos intertnicos como resultado de uma estratgia poltica,

    econmica e social estabelecida entre os indgenas e os colonos ao longo dos anos de

    convivncia, podemos analisar o caso de Caramuru e Catarina lvares, conhecida como

    Paraguau, a partir do Sculo XVIII, graas ao poema homnimo do Frei Santa Rita Duro,

    como o exemplo de um modelo e no uma exceo no conjunto de relaes sociais.

    As unies matrimoniais entre um homem e uma mulher fazem parte dos contextos sociais e

    definem a qualidade de um membro numa comunidade, a quem ele deve obedecer e por quem

    deve ser obedecido, quem so seus amigos e seus inimigos, com quem pode e no pode se casar,

    de quem pode herdar e a quem deixa sua herana. So, portanto, as unies matrimoniais que

    definem as teias de relaes sociais, isto , as relaes de autoridade, as econmicas, as de

    cooperao e as de ritual. Os Tupi no eram exceo quanto importncia dos matrimnios

    como ordenadores da sua sociedade.

    Inicialmente, deve-se ressaltar que o nmero de unies intertnicas era to significativo que,

    ao consultarmos as Cartas Jesutas, observam-se constantes acusaes aos colonos por terem

    adotado prticas gentlicas, particularmente no que se referia poligamia. Poder-se-ia dizer

    simplesmente que, nesse campo social, os lusitanos teriam se tupinizado se no considerarmos

    tal opo tambm pelo ngulo das estratgias de conquista e dominao implantadas na nova

    colnia.

    Na concepo dos Tupi, as regras de solidariedade, indicativas do estabelecimento de

    aliana, calcavam-se na consanginidade e incluam os filhos e genros. A relao entre sogros e

    genros era geradora de poder porque quanto mais elevado fosse o nmero de homens (filhos e

  • genros) vinculados a um chefe de famlia, maior seria o prestgio do seu principal. Da porque

    sempre eram desenvolvidos esforos familiares para atrair novos elementos do sexo masculino,

    transformando, neste caso, as temeric, as ndias que viviam com os portugueses, em smbolo

    do estabelecimento dessa aliana, sendo as unies reconhecidas independentemente do colono

    ser ou no casado de acordo com as regras da sociedade portuguesa.

    As unies, ao pressuporem o cumprimento das regras de solidariedade que dela decorriam,

    representavam, no contexto colonial, a possibilidade para os indgenas de obterem aliados para

    suas guerras e a garantia liberdade, terra e aos bens manufaturados, admitindo, em

    contrapartida, que os interesses e os inimigos dos novos genros e cunhados passassem a ser os

    interesses e os inimigos dos parentes. Para os colonos esta aliana significava mo-de-obra

    garantida para empreendimentos guerreiros de defesa da colnia, conquista e preservao de

    seus patrimnios pessoais e para a incorporao de escravos conquistados em aldeias inimigas.

    Usando a mesma estratgia, obtinham trabalhadores livres e no remunerados para suas

    atividades agrcolas, fossem de subsistncia ou voltadas para o mercado, e para corte e

    transporte de madeiras, alm de parceiros com os quais estabeleciam trocas preferncias de

    mercadorias. No devemos esquecer, ainda, que o respeito s regras decorrentes das relaes

    familiares foi fundamental para a formao de tropas que permitiram o movimento bandeirante.

    Por que o destaque para Caramuru e Paraguau ?

    Vrias razes podem ser arroladas. Inicialmente o fato de ambos serem personagens

    histricos, cuja existncia e trajetria de vidas podem ser comprovadas. A relevncia de

    Caramuru como agente intermediador entre colonos e ndios no perodo da instalao da

    Capitania da Bahia e do Governo Geral em Salvador outro ponto a ser considerado. H ainda

    que se observar a aceitao dos novos padres comportamentais, inclusive do batismo, ainda

    que na Frana, por Catarina.

    Mas, acima de tudo, deve-se considerar a relevncia dada ao casal pela historiografia oficial

    quando lhe atribuiu caractersticas comportamentais e aes justificadoras da fbula das trs

    raas formadoras da nova nacionalidade. Da mesma forma, a narrativa romantizada reforaria o

    mito da cordialidade das relaes sociais iniciais, elemento fundamental da ideologia

    implantada pelos scios do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro para a construo da

    imagem do pas nascente.

    Caramuru e Catarina tornaram-se, assim, um casal paradigmtico cuja imagem foi divulgada

    pela intelectualidade brasileira usando como modelo e referncia a imagem formada a partir do

    poema Caramuru - do frei Agostinho Jos de Santa Rita Duro, elevado pelos romnticos

    condio de ancestral do movimento indianista.

    Na viso assim construda, Diogo lvares no definido como um heri conquistador, mas

    como heri civilizador, um fundador, o responsvel pela primeira ao colonizadora na Bahia.

    visto como um misto de missionrio e colono que no se desvinculou de suas razes ptrias e

  • atuou como um facilitador da conquista e da colonizao, um smbolo de civilidade e de

    pacificador capaz de usar expedientes mgicos o tiro de espingarda, apesar da plvora

    molhada para implantar formas duradouras de dominao.

    J Paraguau, nome, alis criado pelo frade-poeta5 e do qual no h registro documental at a

    publicao do referido poema, uma ndia que aceita a superioridade da cultura ocidental e a

    ela se submete, transformando-se, tambm, num agente de dominao. E, apesar deste papel, a

    ela no atribuda a pecha de traidora de seu povo, como ocorreu companheira de Corts

    Malintzin, la Malinche, conhecida, posteriormente, por Marina.

    No entanto, cabe a pergunta: qual a trajetria histrica conhecida desses personagens ?

    Do primeiro, sabe-se que sempre disse ser um naufrago. Sempre apontado como portugus,

    h, no entanto, suspeita de que fosse um galego6 descendente de judeus, o que no impossvel

    devido dado ao constante circular de portugueses e espanhis entre os dois pases

    particularmente na regio de Viana do Castelo, onde teria nascido. Outro elemento que torna a

    hiptese aceitvel a participao de estrangeiros nos navios portugueses durante o perodo de

    conquista e colonizao da Amrica. Para Teodoro Sampaio, entretanto, Caramuru era um

    tripulante contratado de algum navio francs que permanecera na baa de Todos os Santos

    para organizar e viabilizar o comrcio de pau-brasil com os Tupinamb.7 Segundo as pesquisas

    de Moniz Bandeira8, as relaes da famlia lvares com comerciantes bretes eram antigas,

    pois, vrios dos seus parentes atuavam como maerantes na pesca de bacalhau, o que explicaria

    essa possvel contratao do Caramuru.9

    O naufrgio teria ocorrido entre 1509 e 151110

    e, segundo consta em vrias narrativas acerca

    de sua aceitao pelos Tupinamb, Diogo lvares, que provavelmente teria sido destinado ao

    ritual antropofgico, os teria convencido que o poder das armas de fogo poderia ser usado pelos

    indgenas contra seus inimigos tradicionais. Para comprovar sua promessa, teria usado essas

    armas num ataque a uma aldeia em Pass.11

    Este armamento e a plvora, segundo alegava, seria

    proveniente de barris que conseguira salvar do navio naufragado.

    A perplexidade ante a nova arma com semelhante poder destrutivo que lhe teria angariado

    prestgio, aceitao pelo grupo indgena e o transformado em genro e cunhado desejvel pelos

    lderes de ocas segundo os critrios tradicionais para estabelecimento de alianas atravs de

    casamento. Considerando-se esse interesse pela aliana com o naufrago e as regras de

    cunhadismo, podemos inferir que Caramuru dificilmente foi um mongamo, como a construo

    posterior de sua imagem sugere. Assim afirmam Jaboato12

    e Simo de Vasconcelos 13

    que

    atestam ter a fundao da Vila Velha decorrido do fato de Diogo lvares ser o chefe de muitas

    famlias indgenas e que vrios maioriais estabeleceram alianas com o Caramuru, oferecendo-

    lhes suas filhas e irms em casamento.

    Tambm se pode intuir que a construo da Vila Velha decorreu do exerccio das formas

    tradicionais de atuao dos conquistadores: a substituio das antigas choupanas indgenas por

  • novas casas, supostamente de modelo lusitano, e o uso do trabalho indgena na fundao de uma

    povoao colonial e no corte e transporte de pau-brasil no entorno da baa de Todos os Santos.

    Segundo Oviedo14

    , a povoao compunha-se de mais de trezentas casas espalhadas entre o atual

    Largo da Graa e o Porto da Barra, onde alm de Caramuru, mulher, filhos, noras e genros,

    viviam mais de mil ndios e nufragos europeus, inclusive franceses.

    A aliana de Caramuru com os franceses, descritos sempre como invasores da colnia

    lusitana na historiografia tradicional, insinuada por Accioli e Amaral15

    e, segundo esses

    autores, resultara do interesse pessoal do colono em rever a Europa. No entanto, como

    interpretar o fato de ter sido conduzido por um navegante francs a Saint Malo e o que estaria

    fazendo aqui este navegante seno contrabando de pau-brasil? Seria este contacto comercial

    ocasional ou permanente?

    Neiva16

    analisando essa questo, chama a ateno para a presena francesa na baa de Todos

    os Santos, Porto Seguro e Fernando de Noronha antes de 1503, conforme os registros

    apresentados por Paulmier de Gonneville na Frana. Segundo este comerciante de pau-brasil,

    navios da Normandia e Saint Malo mantinham comrcio regular com os indgenas da baa de

    Todos os Santos, que aceitavam de bom grado a presena de estranhos devido familiaridade

    do contacto e s relaes de escambo estabelecidas que no interferiam nas formas de

    organizao social predominantes. Alm do mais, os franceses no se instalavam nas terras

    americanas, o que os resguardava de constantes conflitos com os Tupinamb. Era, portanto, uma

    relao com caractersticas bem distintas das impostas pelos portugueses aps sua deciso de

    conquistar e colonizar sua parte da Amrica.

    Tambm os registros de Pero Lopes de Souza, em 1531, dos jesutas e de Gabriel Soares de

    Souza17

    apontam para a constncia da presena francesa nessa regio, afirmando que esta

    somente se reduzira aps a instalao do governador Tom de Souza e a fundao de Salvador.

    A presena francesa seria confirmada, ainda, pela toponmia na rea da Grande Salvador incluir

    localidades como ilha dos Franceses, Aldeia dos Franceses (termo que aparece na sesmaria de

    Itapu concedida por Tom de Souza), Porto dos Franceses (Praia do Forte), onde, ainda em

    1561, o padre Rui Pereira18

    encontrou navios franceses na proximidade de onde vivia Caramuru,

    e a sempre controvertida Mariquita, nos baixios do Rio Vermelho.

    Artur Neiva concorda com Francisco Vicente Viana19

    que, em 1893, proclamara estar

    Caramuru a servio dos franceses e ser o seu intermedirio no comrcio de pau-brasil com os

    Tupinamb. Para esses autores, o espanto dos portugueses ao encontr-lo em 1531 e dos

    espanhis em 1535 indicava o desinteresse de Diogo lvares em manter relaes com os

    portugueses e em retornar a seu pas de origem. A Neiva no passa despercebido o apedido de

    francs atribudo a Caramuru, o que sugere que, ao invs de simples naufrago, o nosso

    personagem, na verdade, teria sido deixado aqui para administrar os interesses dos comerciantes

    franceses de pau-brasil no Novo Mundo.

  • Autores como Frei Vicente de Salvador20

    e Simo de Vasconcelos21

    tambm admitiam a

    vinculao contratual de Caramuru com os franceses, particularmente, como afirmara Jos de

    Anchieta, no corte de pau-brasil nas matas da embocadura do rio Paraguau e em Tatuapara. A

    mesma atividade tambm seria exercida por nossa personagem em Tinhar e Boipeba, conforme

    a narrativa de Navarrete acerca do ataque sofrido pela frota de Acua, em 1526, naquele local.

    Foi Diogo lvares que negociou com os indgenas daquela localidade a liberao dos

    sobreviventes da esquadra espanhola22

    .

    Mais uma demonstrao do forte vnculo entre Diogo lvares e os franceses , sem dvida, a

    j referida viagem a Saint Malo. Alm da viagem, o casal foi recepcionado com o carinho

    dispensado aos aliados, recebido pelo rei Francisco I e a ndia que acompanhava Caramuru foi

    batizada solenemente, sendo-lhe atribudo o mesmo nome da esposa do comerciante Jacques

    Cartier, Catarina de Granches23

    . Tambm chama a ateno o fato de lvares ter estabelecido um

    acordo com os franceses de devolver carregados de pau-brasil e outros gneros da terra os dois

    navios que os transportariam de volta a Vila Velha.24

    Outras perguntas que surgem na anlise dos dados referem-se suposta oposio entre

    Francisco Pereira Coutinho e Caramuru. A rivalidade entre os dois decorria da disputa de mo-

    de-obra indgena ou o comrcio com os franceses era outra razo de discrdia? Para alguns

    autores, esta poderia ser a razo do conflito. Para Accioli e Amaral25

    , vrios outros europeus,

    alm de Diogo lvares, se instalaram na rea que viria a se constituir na Capitania da Bahia no

    perodo que antecedeu sua criao. Seriam, na sua concepo, marinheiros fugidos dos navios

    que navegavam para as ndias ou faziam o trajeto Bahia- Lisboa e os aqui deixados para se

    dedicarem ao trfico de pau-brasil. Esses moradores que teriam sido os principais responsveis

    pelo incitamento dos ndios contra o donatrio, pois no estariam satisfeitos com as novas

    ordens que restringiam o comrcio de madeira com os franceses. Essa opinio tambm era a de

    Varnhagen.26

    Para que no se perca a perspectiva de compreender as relaes de forma mais complexa, h

    que se recuperar as informaes relativas aos transtornos impostos aos ndios pelas novas

    relaes impostas pelos colonos: a disputa pelos alimentos, a destruio do ecossistema, a

    imposio de uma convivncia regida pela hierarquia social e poltica, de novos padres

    comportamentais e de formas de produo, contgio por doenas infecto contagiosas e a

    apropriao das terras, mulheres e riquezas naturais. Uma nova forma de viver que contrariava

    frontalmente as sociedades indgenas e sua liberdade de ser e viver.

    As terras que antes ocupavam e exploravam transformaram-se em reas proibidas por terem

    sido entregues sob a forma de sesmarias a novos senhores. Ali se implantaram canaviais e

    construram engenhos que consumiam terras e homens. Na tentativa de atrair Caramuru para

    suas hostes, o donatrio tambm lhe concedeu uma pequena sesmaria, o que, na verdade,

    significava, na prtica, uma reduo da rea que poderia explorar economicamente.

  • Os conflitos com os Tupinamb se ampliaram e, segundo afirmativa de Thevet, vrias roas

    foram queimadas e muitos colonos que aqui aportaram com Coutinho foram mortos pelos ndios

    insatisfeitos. Porm, acredito que aos ndios estavam associados os antigos moradores de Vila

    Velha e o prprio Caramuru, todos insatisfeitos com a convivncia, a escravido e as novas

    regras que dificultavam ou impossibilitavam a continuidade do comrcio de pau-brasil. Para

    Jaboato, conforme transcrio feita por Accioli e Amaral27

    , a morte do filho de um dos

    principais de uma aldeia Tupinamb teria sido o estopim da revolta. O donatrio, em 1545,

    estava sitiado e com dificuldades de ter acesso a gua potvel e alimentos. 28

    Ante a

    inviabilidade de fazer frente s contestaes, o donatrio buscou refgio em Porto Seguro de

    onde retornou em 1546.

    Accioli e Amaral, no entanto, atribuem um papel essencial a Catarina lvares. Chegam

    mesmo a afirmar que Catarina lvares teria sido a grande articuladora da aliana entre vrias

    aldeias Tupinamb contra o donatrio quando da priso de Caramuru por Coutinho num navio

    ancorado no porto. De acordo com esta verso, a ndia comandara a insurreio, o que resultou

    na fuga do capito para Ilhus e sua morte em Itaparica, quando ali naufragou. Segundo esses

    autores, 29

    a cabea do sacrificado teria sido levada em triunfo em canoas para Vila Velha e

    entregue aos vitoriosos Diogo e Catarina lvares.

    J Neiva30

    considera que Caramuru e Coutinho eram associados no contrabando de pau-

    brasil e teria sido o prprio lvares que fora a Porto Seguro interceder junto ao donatrio

    daquela capitania para acolher Coutinho e recolhera seus despojos em Itaparica. , porm,

    significativo que Caramuru no tenha acompanhado o donatrio em seu exlio em Porto Seguro

    e que, s aps a morte de Coutinho, tenha comunicado a Pero de Campo Tourinho a presena de

    franceses na baa de Todos os Santos e o ataque Vila do Pereira, de onde retiraram os canhes

    e demais armas de defesa ali existentes. 31

    A deciso de retornar a Vila do Pereira teria ocorrido

    aps Caramuru ter negociado a paz com os Tupinamb. Outra verso aponta para a

    possibilidade do donatrio da Bahia tambm estar envolvido na venda de escravos indgenas, o

    que, alis, era legalmente permitido desde que respeitados determinados limites numricos. Na

    verdade, consideramos que as diversas verses acerca da revolta no devem ser vistas como

    excludentes, porm como complementares.

    A importncia de Caramuru como intermedirio entre os Tupinamb e os administradores

    portugueses parecer ter sido reconhecida pelo rei D. Joo III quando, atravs de missiva, lhe

    solicitou o apoio para a instalao do governo geral e a construo da Cidade do Salvador.

    Segundo os relatos de Manuel da Nbrega, 32

    Caramuru foi essencial na intermediao entre o

    governador, os missionrios e os ndios. Alm do mais, tornou-se um fornecedor constante de

    alimentos, principalmente de farinha de mandioca, alm de frutas, verduras, porcos e galinhas

    para os habitantes da nascente capital. Esses produtos vinham de sua sesmaria em Tatuapara

    para onde se retirara. 33

  • No entanto, estabeleceu-se um certo mal estar entre Tom de Souza e Diogo lvares. As

    razes a serem apontadas podem ser vrias. Uma delas so as constantes e severas punies

    impostas pelo governador aos ndios que se rebelavam ou resistiam a suas ordens. Essas

    medidas no s fragilizavam a posio de Caramuru perante seus aliados como tambm

    representavam a desconsiderao da autoridade para com sugestes por ele apresentadas. Outra

    razo a ser avaliada foi a deciso dos ndios e de lvares de manterem o comrcio regular de

    pau-brasil com os franceses. Este fato est referido pelo inaciano Rui Pereira, quando de sua

    visita s propriedades que Caramuru mantinha em Tatuapara. Para Thales de Azevedo34

    , Diogo

    lvares, na sua velhice e, aps tantos anos de convivncia e aliana com os Tupinamb, era um

    caso tpico de hbrido cultural dividido entre dois mundos e tendo que atender a dois senhores

    por se sentir devedor de lealdade a ambos.

    H, finalmente, que destacar o fato de Catarina lvares, uma eficaz agente cultural no

    processo de transformao do seu povo e facilitadora da implantao dos mecanismos de

    dominao, ter cumprido o seu papel de fundadora de uma nova sociedade mestia e crist. Essa

    perspectiva compe o imaginrio baiano sobre essa mulher. Alega-se que, aps vrias vises de

    Nossa Senhora, Catarina deliberou por construir uma capela na Vila Velha, atual Bairro da

    Graa, em Salvador, onde est um quadro que imortaliza suas vises e seu tmulo e de alguns

    dos filhos. Segundo Moniz Bandeira, 35

    a imagem entronizada na capela foi encontrada pelos

    ndios Tupinamb, aliados de Caramuru, entre os despojos da nau Madre de Dis que naufragou

    em Boipeba.

    Sua prole identificada como totalmente integrada, em termos sociais, ao novo mundo

    colonial. Segundo Jorge Couto 36

    , suas filhas casaram-se com os chamados europeus de

    posio - Paulo Dias Adorno, Antnio Rodrigues, Custdio Rodrigues Correia, Joo de

    Figueiredo, Anto Vaz, Joo Luiz, juiz de ofcio e seus trs filhos tambm se destacaram

    socialmente Gaspar casou-se com a irm do escrivo da alada em Portugal; Marcos, morreu

    em combate aos ndios do Esprito Santo juntamente com o Ferno de S, filho de Mem de S,

    Manuel e Diogo lvares, que participaram de vrias expedies punitivas a ndios no Jequiri

    e no Esprito Santo foram sagrados cavaleiros por Tom de Souza.37 Constituam-se, desta

    forma, novas alianas entre colonos, governantes e uma nova categoria de nativos da colnia: os

    mestios com livre trnsito nos dois mundos.

    A expanso da conquista e a nova poltica indigenista aps 1549

    As razes para a criao de um Governo Geral na Amrica portuguesa so muitas, todas

    diretamente vinculadas necessidade de efetivar-se a conquista e a colonizao e inserir a

  • colnia no sistema produtivo do Imprio lusitano. Vrias tentativas administrativas haviam sido

    feitas antes de 1548 sem que as principais metas fossem atingidas. A instituio das capitanias

    hereditrias demonstrara a viabilidade de a colnia deixar de ser um mero produtor de pau-brasil

    e um ponto de abastecimento para as naus a caminho das ndias. Entretanto, as novas

    possibilidades econmicas, como a produo de acar, estavam ameaadas pelas constantes

    revoltas dos indgenas e pela possibilidade de uma ao mais efetiva de conquista da colnia

    americana por parte de outras naes europias.38

    Os donatrios viam seus investimentos constantemente ameaados pelas aes dos ndios. O

    fracasso dos empreendimentos tornara-se comum e ficava cada vez mais clara a incapacidade

    financeira, administrativa e militar desses capites manterem a ocupao do territrio

    conquistado, fazer frente s revoltas, ao assdio dos chamados piratas, contrabandistas e

    invasores europeus e de expandir e solidificar o projeto colonial. Alguns desses privilegiados

    senhores, ante os constates prejuzos, terminaram por desistir do empreendimento, expondo a

    fragilidade do modelo adotado pela Coroa. Talvez o exemplo mais dramtico de insucesso tenha

    sido, exatamente, o do donatrio da Capitania da Bahia Francisco Pereira Coutinho.

    A revolta indgena da capitania da Bahia, em 1545, no foi a nica na dcada de 40. H

    referncias a convulses em So Tom, no Esprito Santo e em Porto Seguro em 1546 -, o que

    deixou o governo portugus preocupado com a vulnerabilidade dos estabelecimentos litorneos.

    As revoltas tambm representavam graves prejuzos aos investimentos feitos e ameaa vida de

    moradores que para ali haviam sido convencidos com grande dificuldade a se deslocar para a

    Amrica portuguesa. 39

    Tambm preocupava a metrpole a situao de anarquia e conflito na colnia resultante dos

    constantes saltos dos donatrios e colonos s aldeias indgenas das capitanias vizinhas,

    colocando em risco o empreendimento colonial e os projetos da Coroa. A superao desse

    quadro exigia a implantao de estruturas poltico-administrativas mais eficientes e capazes de

    promover, em carter definitivo, a passagem do estgio de pilhagem para o de explorao das

    riquezas naturais e da mo-de-obra. Isso implicava, alm da conformao da populao nativa

    s exigncias do novo modo de produo, na ampliao de relaes de trabalho de cunho

    escravagista e na imposio de deslocamentos compulsrios para reas consideradas

    estratgicas para a ocupao, explorao, defesa e expanso dos territrios conquistados.

    Ante a ameaa do fracasso, a coroa portuguesa deliberou pela criao de um governo-geral

    na Amrica para, assim, solidificar sua conquista e incrementar os ganhos obtidos na colnia. O

    delegado rgio deveria implantar uma estrutura poltico-administrativa, judicial, fiscal e militar

    diretamente ligada a Lisboa, ordenar o caos que parecia rondar os projetos de

    conquista/povoamento e colonizao e garantir os investimentos realizados e a vida dos

    colonos, 40

    preocupaes expressas no Regimento do primeiro Governador Tom de Souza.

  • A concretizao dessas metas, no entanto, pressupunha a superao dos conflitos com os

    indgenas e, para tanto, dever-se-ia instaurar a paz, o que s era possvel atravs da constituio

    de aliana com alguns grupos indgenas, embora tambm fosse necessrio garantir trabalhadores

    aos colonos. Por tanto, era essencial criar mecanismos de controle dos saltos e dos preamentos,

    transformando-os em objeto de deciso governamental.

    A escolha da Capitania da Bahia para sediar o governo-geral pode ser explicada por vrios

    fatores: sua localizao, o regime de ventos e mars, mas, tambm, a morte do donatrio foi um

    elemento considerado. Alm de sua morte e a de seu filho ter facilitado a compra da capitania

    pela Coroa, a localizao da sede governamental nesse local tambm deve ser vista pelo seu

    lado simblico: demonstrar aos povos indgenas o carter irreversvel da conquista, apesar da

    morte de uma autoridade portuguesa.

    O Regimento de 1548 deixava clara a preocupao da metrpole com as revoltas indgena e

    os possveis ataques de outros europeus. Era preciso, portanto, preservar o ncleo administrativo

    a ser implantado e, para tanto, recomendava-se a fortificao da nascente cidade e a criao das

    condies necessrias para que se transformasse num ncleo capaz de efetivar a expanso da

    conquista e solidific-la.

    Uma das primeiras medidas a serem adotadas por Tom de Souza, alm de coordenar a

    construo da cidade do Salvador e implantar uma estrutura administrativa capaz no s de dar

    suporte aos donatrios, mas tambm de fiscalizar suas aes e cobrar as devidas taxas reais, era

    a de apaziguar os ndios. Para tanto, o Regimento de 1548 apontava os caminhos - represso e

    aliana 41

    devendo para tanto, contar para a represso com os grupos armados pelos moradores

    e a pequena tropa que trouxera da metrpole e, para estabelecer alianas, com os jesutas e o

    apoio e a intermediao de colonos europeus que viviam na regio e que haviam estabelecido

    alianas com os Tupinamb atravs do casamento com vrias ndias e da adoo das regras do

    cunhadismo como forma de relacionamento intertnico.

    Entretanto, no podemos afirmar que a adeso desses colonos, inclusive a de Caramuru,

    proposta de estabelecerem essa intermediao tenha decorrido de uma adeso ao novo modelo

    administrativo. As relaes com o donatrio haviam sido de franca disputa pelo controle do

    trabalho indgena e pelo comrcio do pau-brasil. Esta tendncia teria persistido caso esses

    moradores no tivessem adquirido a certeza da impossibilidade de fazer frente ao novo aparato

    militar e administrativo implantado pela Coroa. 42

    Pode-se constatar essa afirmativa com a atitude inicialmente adotada por Caramuru de apoiar

    o governador e sua opo posterior por retirar-se para sua sesmaria em Tatuapara43

    , onde

    continuou a manter o comrcio de pau-brasil com os franceses. Tticas de resistncia, opo por

    permanncia do comrcio ilegal, estratgia de sobrevivncia econmica. 44

    Portanto, apaziguar os indgenas era uma tarefa difcil considerando-se sua insatisfao ante

    os projetos de apropriao da sua fora de trabalho, o que significava transformaes profundas

  • no seu modo de vida e desrespeito a suas normas tradicionais de organizao econmica, social

    e poltica. Havia dois aspectos das relaes, em particular, que provocavam profundas reaes

    negativas entre os ndios: a alterao radical do regime produtivo e a transformao dos

    guerreiros capturados, e destinados ao sacrifcio no ptio da aldeia, em escravos a serem

    entregues aos colonos e cunhados.

    Ampliavam-se, com a crescente violao dos seus territrios e a escravido, os

    questionamentos s supostas alianas com os cunhados. Percebiam que, ao invs de obterem

    aliados para suas guerras, estavam transformando-se em trabalhadores, em aprisionadores de

    inimigos e violadores das regras de aprisionamento e de destinao dos prisioneiros.

    Constatavam que a interdio de ataques aos aliados s era vlida no tocante a no lhes ser

    permitido guerrear os portugueses, no evitando o ataque dos colonos a suas aldeias. Da mesma

    forma compreenderam que as novas formas de trabalho compulsrio, por implicarem no

    abandono do sistema produtivo tradicional, inviabilizavam sua sobrevivncia scio-econmica

    como um todo ordenado e acentuava a dependncia para com o colono, o que era visto como

    mais um descumprimento das alianas que pressupunham uma relao igualitria.45

    Para os

    ndios, a nica forma de romper esse ciclo era a rebelio e a volta antiga condio de

    autonomia.

    Na tentativa de amenizar os conflitos, os jesutas iniciaram de imediato seu missionamento

    entre os ndios que viviam nas proximidades do ncleo construdo pelo governador. Sua atuao

    inicial restringia-se a visitas regulares s aldeias46,

    indo s lentamente construindo casas de

    orao nas localidades. Por fim, quando se sentiam mais seguros e capazes de realizar as

    reformulaes que consideravam essenciais na estrutura social das sociedades indgenas, sendo

    uma de suas primeiras tentativas a de torn-los sedentrios, instalavam-se construindo

    residncias e casa de orao. Essa atuao era compatvel com as orientaes expressas pelo

    monarca nos forais dos vrios governadores, as quais associavam colonizao e missionamento

    e ressaltavam a necessidade de serem garantidas terras e proteo aos ndios aliados dos ataques

    que viessem a sofrer dos inimigos e dos assaltos dos colonos a suas aldeias. 47

    Os aldeamentos eram vistos como soluo para as constantes fugas das aldeias e para as

    dificuldades de disciplinar os catecmenos, alm de localiz-los em pontos de interesse

    estratgico em termos militares e econmicos. Era nesses espaos que tambm se efetivava o

    deslocamento do eixo do poder poltico, passando das mos de caciques e pajs para a dos

    jesutas e administradores coloniais. Em termos econmicos, a administrao dos jesutas

    buscava estabelecer unidades produtivas relativamente autnomas graas imposio do

    sedentarismo, de uma nova forma de produzir, uma nova diviso social do trabalho, atitudes

    consideradas essenciais substituio das atividades de coleta pela agricultura e da caa pelo

    criatrio. Assim, os aldeamentos eram o grande projeto pedaggico-institucional de educao

  • completa, ncleos de defesa dos povoados coloniais, alm de garantirem o fcil acesso aos

    trabalhadores indgenas pelo Estado e por particulares.48

    A outra vertente de atuao da Coroa destinava-se aos resistentes - a guerra continuada - foi

    estabelecida, inicialmente, por Tom de Souza, seguida por Duarte da Costa e mantida por Mem

    de S e seus sucessores. Este ampliou a represso a todas as aldeias litorneas em revolta,

    solidificando a conquista da colnia lusitana na Amrica.

    As tentativas de controle repressivo e de conciliao estabelecidas pelo Governo Geral no

    solucionaram os conflitos entre ndios e colonos. A insatisfao se ampliava devido crescente

    imposio de formas de trabalho compulsrio e de mecanismos de adequao dos trabalhadores

    indgenas s exigncias dos colonizadores. Nbrega, em carta datada de 5/7/1559 49

    , acusava os

    portugueses de odiarem os ndios, de incentivarem a guerra intertribal entre os Tupi do litoral e

    entre estes e os que viviam nos sertes, a venda de prisioneiros e a prtica da antropofagia.

    Essas tticas eram usadas em nome da segurana dos colonos na nova colnia.

    A poltica de aldeamento, como conseqncia, ampliava-se de governo a governo. No de

    Duarte da Costa, considerando-se a rea do em torno da baa de Todos os Santos e, incluindo-se

    as notcias acerca de aldeias autnomas, aldeamentos particulares, os administrados por

    missionrios e por agentes governamentais, os levantamentos apontam para o reconhecimento

    de dezoito aldeias. J no de Mem de S, este nmero se ampliou para vinte e cinco, incluindo os

    aldeamentos fundados pelo governador.

    Essas medidas implicaram no aceleramento dos deslocamentos populacionais impostos

    atravs de descimentos forados ou estimulados. O resultado dessas aes foi o de promover a

    destribalizao e o desenraizamento desses povos, inviabilizando a reproduo das sociedades

    indgenas a partir de seu modelo socialmente estabelecido antes do contato. Associaremos a

    esses fatores outro conjunto de elementos como a perda do controle sobre as terras; drstica

    reduo populacional provocada por doenas infecto-contagiosas; guerras de conquista; excesso

    de trabalho; fome; suicdios; maus tratos; infanticdio e a represso desencadeada sempre que

    qualquer grupo opunha resistncia aos planos metropolitanos de efetivar a ocupao do

    territrio e s novas relaes de trabalho.

    O quadro de tenses e insatisfaes acentuou-se profundamente a partir de 1560, quando

    epidemias de sarampo e varola reduziram de forma drstica a populao aldeada, contribuindo

    para o desarranjo do sistema produtivo, a desarticulao social e a crise religiosa. O quadro

    apresentou-se de forma to dramtica nesse perodo que muitas aldeias e aldeamentos foram

    abandonadas por seus moradores Segundo Anchieta50

    , dos quarenta mil ndios aldeados, entre o

    fim da dcada de 40 e 1563, aps as epidemias, restavam trs mil e quinhentos. Os demais ou

    haviam morrido ou buscado refgio nas matas, levando consigo os virus que contaminaram um

    nmero incalculvel de indgenas ainda sem contato com os europeus.

  • A soluo adotada pelos administradores coloniais e por particulares foi a reduo do

    nmero de aldeias e de aldeamentos, concentrando os sobreviventes em algumas poucas, e

    promoo de descimentos de ndios dos sertes. Tambm passaram a incrementar a importao

    de escravos africanos, o que atendia aos interesses das elites da metrpole envolvidas com o

    trfico negreiro. O comrcio desses seres era considerado um investimento seguro, pois o

    africano era descrito como mais adaptado s exigncias da produo aucareira e mais resistente

    s doenas infecto-contagiosas, alm de no serem protegidos por qualquer legislao, como

    ocorria com os indgenas.

    Essas medidas no significaram a interrupo dos descimentos forados, dos resgates e da

    escravizao aps decretao de guerra justa. Exemplos so a chegada baa de Todos os

    Santos de vinte mil ndios trazidos da Serra do Orob, o que resultou na queda de preo dos

    escravos indgenas nos mercados do Recncavo e quatro mil ndios descidos de Sergipe por

    Francisco Dias dvila e Luis de Brito entre 1775- 1577.51

    Fundando aldeamentos na Baa se Todos os Santos

    A fundao de aldeamentos52

    se iniciou no governo de Mem de S, aps ter reprimido

    violentamente todas as revoltas indgenas entre os atuais estados da Paraba e Rio de Janeiro,

    atendendo aos argumentos dos jesutas de ser essencial efetivar espaos destinados aos

    catecmenos de forma a melhor poderem exercer sua misso.

    Fudamentava-se nos Forais dos Governadores e expressava a trilogia ordenadora das

    relaes intertnicas implantadas na Amrica Portuguesa: aldear, ou seja sedentarizar, civilizar,

    ou transforma-los em consumidores e produtores, e cristianizar, ou seja, introjetar os

    mecanismos de autocontrole, prprios de um sdito obediente e de um crente temeroso dos

    castigos divinos.

    Os primeiros aldeamentos administradas pelos jesutas foram instaladas nos prprios locais

    das aldeias autnomas, o que, supostamente, garantiria o direito natural de propriedade da terra

    aos seus ocupantes primitivos. Faziam-se investimentos para garantir a ordem, a defesa,

    oferecer vantagens materiais e espirituais de tal forma que se estabelecesse a vontade dos

    ndios viverem nelas. 53

    Porm, nem sempre este era o nico modelo. Muitas vezes as aldeias eram transferidas para

    locais mais interessantes para o projeto colonial, podendo essa deciso ser tomada por razes

    econmicas ou estratgicas. A primeira medida administrativa adotada era a concesso de um

    lote de terras que deveria ser capaz de garantir a prtica da agricultura, libertando-os da

    dependncia da caa e da pesca, atividades consideradas como pouco produtivas e nada

    civilizadas.

    O respeito s terras indgenas j no era uma prtica usual nesse perodo. Tanto assim que o

  • padre Manuel da Nbrega, buscando uma forma de proteger os direitos dos grupos aldeados,

    solicitou, j em 1561, que a Coroa emitisse ttulos dominiais aos ndios. No ano seguinte, numa

    resposta ao apelo do inaciano, o governador Mem de S, autorizado pela rainha Dona Catarina,

    doou algumas sesmarias a ndios aldeados e definidos como aliados. Tal deciso foi confirmada

    em 1571, quando foram definidas as penalidades para aqueles que a desrespeitassem: perda de

    benfeitorias e pagamento de multa de cinqenta cruzados divididos entre o denunciante e o

    Tesouro, que usaria a sua parte na fortificao da cidade.

    O Alvar de 21/08/1587 recomendava s autoridades que, alm de sofrerem as punies j

    referidas, os invasores fossem tambm obrigados a restituir as reas pertencentes a antigas ou

    novos aldeamentos e que haviam sido ocupadas indevidamente. De forma complementar, a Lei

    de 26/07/1596 determinou que fossem doadas terras aos aldeamentos jesuticos erigidos ou por

    erigir para que os ndios pudessem exercer a agricultura.

    Na Baa de Todos os Santos foi implantado o maior nmero de aldeamentos no Sculo XVI.

    Alguns puderam ser localizados com relativa preciso, particularmente os administrados por

    jesuitas sobre os quais h abundantes referncias. Sobre os particulares e as aldeias autnomas,

    os dados so bem mais escassos e a localizao e sua trajetria bem mais dificieis de serem

    traadas. Porm, sua existncia documentada, por exemplo, em testamentos e inventrios,

    como o do Engenho de Sergipe do Conde em 1574. Os ndios eram obtidos atravs de

    apresamento, descimentos e resgates e usados em vrias atividades nas casas grandes, nos

    engenhos, em atividades definidas como secundrias por no dominarem a tcnica de preparo

    do acar, nas roas e como tropas defensivas das propriedades dos colonos e at mesmo das

    capitanias, inclusive a da Bahia, conforme previa o Regimento de 1548. Segundo os

    levantamentos de Schwartz54

    , as etnias dominantes entre esses trabalhadores eram os

    Tupinamb, Kaet,Carijos, Tamoios e Amoipirs (nicos no falantes de tupi) trazidos da

    Capitania da Bahia Itaparica, rios Itapicuru, de Contas, Paraguau, So Francisco -,

    Pernambuco, Sergipe e Ilhus.

    1 - ALDEIAS AUTNOMAS

    Mariani55

    afirma que a documentao do governo Tom de Souza no nos permite,

    identificar com preciso, a rea ocupada fora da cidadela por ndios e por europeus. As

    referncias permitem apenas perceber com clareza os limites da cidadela construda sob a

    orientao do Governador.

    J no governo de Duarte da Costa, possvel afirmar que o povoamento de terras por

    colonos, considerando-se a direo norte, ia um pouco alm de Itapu. Acompanhando a orla da

    Baa de Todos os Santos, encontrava-se a fazenda de Joo Avelosa (um pouco alm de Lobato),

  • onde, no governo de Mem de S, foi construdo um engenho. Para o interior, os pontos

    limtrofes da penetrao eram o engenho do provedor-mor Antnio Cardoso de Barros (rea

    hoje conhecida por Gasmetro, no bairro da Calada) e terras atualmente identificadas como

    pertencentes ao bairro da Liberdade.

    Nesse espao, segundo o mesmo autor, misturavam-se aldeias e roas de ndios com as dos

    colonos. Mariani56

    faz o seguinte clculo de aldeias autnomas localizadas nesse perodo:

    Nmero de Aldeias Localizao

    Uma Rio Vermelho

    Cinco entre Brotas e Cabula

    Uma Itapu

    Sete entre a cidadela e a Rtula do Abacaxi

    Uma Calada

    Trs entre So Loureno e Santo Antnio

    Incalculvel entre Itapu e So Caetano

    Uma ltapagipe

    As relaes no eram pacficas sob a nova administrao e h referncias a punies

    institudas por Tom de Souza e grave conflito no governo de seu sucessor. Para impor o

    controle portugus aos grupos Tupinamb que se opunham construo de Salvador e aos

    revoltosos da aldeia do Calvrio57

    , o primeiro governador adotou formas bastante radicais e

    violentas de represso. As lideranas indgenas revoltadas ou insatisfeitas eram amarradas nas

    bocas de canhes apontados na direo do atual forte de So Marcelo. Os canhes eram

    disparados e os pedaos dos corpos das vtimas se espalhavam pelas encostas como um alerta

    aos futuros revoltosos, visando intimid-los e evitar oposies ao modelo administrativo que se

    implantava nas terras soteropolitanas.

    Porm, o primeiro grande conflito entre colonos e ndios ocorreu no governo de Duarte da

    Costa em 1556. O desencadeamento dos atritos ocorreu aps um ataque dos indgenas ao

    Engenho do Cardoso (atual Gasmetro na Calada), onde provavelmente havia um aldeamento

    particular, feito em represlia morte de um principal (lder da aldeia). Os revoltosos

    aprisionaram o gado, os vaqueiros, vrios escravos e trs moradores. Aps o ataque, os vrios

    grupos locais dirigiram-se aldeia de ltapu em busca de aliana, pois seus moradores no

    haviam se associado aos revoltosos.

  • No dia seguinte, uma tropa de seis cavaleiros e vrios infantes portugueses responderam ao

    ataque invadindo a aldeia da Porta Grande (Calada) e, em seguida, dirigiu-se a outras duas

    prximas, incendiando-as, matando vrios ndios, aprisionando os principais e libertando

    alguns dos prisioneiros. Dali a tropa repressora deslocou-se para ltapu, onde retomaram mais

    gado e soltaram os outros prisioneiros.

    Os ndios se reuniram em outra localidade e novamente atacaram o Engenho de Antnio

    Cardoso, dando ao governador o motivo para a decretao de represlia. Duzentos infantes,

    vrios cavaleiros e escravos voltaram a carga, levantaram o cerco ao engenho, queimaram cinco

    aldeias, mataram as lideranas e muitos outros guerreiros. Crianas e mulheres foram trazidas

    como prisioneiras para a cidadela.

    No caminho de volta para Salvador, a tropa queimou mais trs aldeias. Usando-as como

    base, partiram para as do interior, tendo como ponto de apoio a aldeia do Rio Vermelho, que j

    havia sido abandonada pelos indgenas. As aldeias de Itapu e Paripe, ante a violncia da

    represso, pediram a paz. 58

    Durante o governo de Mem de S, a ocupao portuguesa atingira a rea de Paripe. Salvador

    se expandia fisica, demografica e economicamente 59

    , fortalecendo sua posio de polo

    dinmico na baa de de Todos os Santos e capitanias adjacentes. Ao se transformar no principal

    porto do Atlntico Sul, adquiriu um perfil de centro administrativo e comercial, e, em

    contrapartida, passou condio de dependente do fornecimento de alimentos, madeiras e

    utensllios de origem colonial, alm das mercadorias europias. Assim, a necessidade de

    incorporao crescente de terras produtivas e de trabalhadores ampliava os conflitos com os

    indgenas e ante a poltica de dominao adotada, os ndios que, antes do conflito, residiam em

    localidades mais prximas cidadela, migraram para alm do Rio Joanes em busca de um

    refgio de difcil acesso aos colonos caadores de escravos, mo-de-obra essencial para a

    implantao ou expanso de seus engenhos, pastos e roas de subsistncia.60

    Mem de S, decretou guerra justa a vrias aldeias: a de Curupeba, Taquapara ou Tatuapara

    (hoje Praia do Forte) e Aldeia de Boca Torta (provavelmente So Sebastio ou Santo Antnio

    do Jacupe). Outros ataques de maiores propores foram comandados pelo governador no rio

    Paraguau e nas capitanias de Ilhus e Porto Seguro.61

    A Guerra do Paraguau, movida contra os Tupina, ocorreu em 1559, tambm decretada por

    Mem de S e comandada por ele e Vasco Rodrigues Caldas. Segundo Anchieta, 62

    cento e

    sessenta aldeias foram queimadas, roas destrudas e os ndios perseguidos com firmeza. Os

    revoltosos derrotados foram obrigados a pedir a paz e aceitaram a administrao das famlas

    Adorno e Rodrigues em aldeamentos particulares, a indenizar com trabalho os escravos que

    haviam matado, alm deverem a assistir s misses. 63

    preciso, no entanto, lembrar que a ocupao das margens da baa no se fazia de forma

    uniforme. As terras de massap foram sendo desmatadas e ali implantados engenhos, prximos

  • ao litoral, em reas inundveis pelo mar ou rios, o que facilitava o escoamento do produto, e

    grandes plantaes de cana-de-acar, propriedades de agricultores que entregavam sua

    produo aos engenhos. J nas margens do Paraguau, desde ento e em terras inadequadas por

    serem arenosas para o plantio de cana, expandia-se o cultivo de fumo, ampliando os

    deslocamentos sobre as terras indgenas, a escravizao de seus habitantes e, consequentemente,

    os conflitos. As regies de Jaguaripe e Maragogipe especializaram-se na produo de alimentos,

    principalmente farinha de mandioca e hortalias, alm de madeiras. Depois foram introduzidos

    os plantios de arroz, gengibre, pimenta do reino e canela a partir de mudas e sementes trazidas

    de vrios pontos do Imprio lusitano.

    Schwartz64

    afirma que, no fim do XVII, da vigorosa Mata Atlntica, encontrada em 1501

    por Amrico Vespucci, restava uma pequena faixa ao sul do Jaguaripe. As demais j haviam

    sido derrubadas para dar espao agricultura e para fornecer madeira para construo de casas e

    embarcaes ou ainda para alimentar os engenhos. Essa expanso, cujo perodo aureo ocorreu

    entre os anos de 1570-1612, para ser explicada necessita que associemos o sucesso financeiro

    da economia aucareira com a poltica metropolitana de distribuir sesmarias a pessoas

    capitalizadas e a nobres com grande influncia na corte, como os Condes de Castanheira e o de

    Linhares, lvaro da Costa, filho do governador Duarte da Costa, e Mem de S.

    Porm, o combate mais sistemtico e destruidor dos ndios do Recncavo ocorreu no

    governo de Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendona (1671- 1675), quando da chamada

    Guerra dos Brbaros, sendo que o primeiro captulo ocorre exatamente nessa rea do Recncavo

    com a contratao de bandeirantes paulistas aps os sucessos pouco relevantes conquistados

    pelos bandeirantes baianos.65

    No devemos, entretanto, ignorar que este um momento de

    expanso da produo aucareira, o que permitia a Bahia manter-se como o maior produtor de

    acar da Amrica portuguesa por ter superado Pernambuco aps a invaso holandesa daquela

    capitania e recuperado-se dos prejuzos provocados pelos mesmos holandeses Bahia em 1624.

    ALDEAMENTOS JESUTICOS

    Devido riqueza dos dados, centramos nossa anlise nos aldeamentos administrados pelos

    jesutas por haver farta documentao e facilmente acessvel.

    1 - Vila Velha ou povoao do Pereira. Localizava-se no Porto da Barra, onde havia sido

    erguida a Vila do Pereira pelo capito donatrio em busca de apoio de Caramuru e

    desembarcara Tom de Souza em 1549. Ali viviam os ndios, aliados e parentes de Caramuru,

    cuja aldeai se esparramava entre o atual bairro da Graa, o morro de Santo Antnio e a praia do

    Porto da Barra.

    Os primeiros trabalhos catequticos teriam se iniciado em 1550, com o apoio de Caramuru 66

    e foi incorporado ao sistema defensivo interno da Baa de Todos os Santos, sendo o ltimo

  • ponto de comunicao, atravs de fogueiras, da presena de navios inimigos dirigindo-se para o

    interior da baa e Salvador. Embora no haja maiores informaes acerca dessa aldeia durante o

    sculo XVI, sabe-se que ainda existia em 1624, pois os seus ndios foram mobilizados por D.

    Marcos Teixeira para combater os holandeses.

    preciso ressaltar que a extino de um aldeamento no significa que tenha sido

    abandonado pelos indgenas no significa que ali no mais viviam ndios. Eles apenas passavam

    condio de trabalhadores forros da Companhia de Jesus.

    2 Cacique Curupeba - ilha de Madre de Deus.

    Aps uma revolta contra o senhor daquelas terras - o Governador Mem de S que as

    adquiriria do esplio do donatrio Coutinho -, a Ilha de Madre de Deus passou ao domnio dos

    jesutas. Era ponto de apoio no transporte de acar dos engenhos do Recncavo para o porto de

    Salvador. Muitos ndios pereceram nas epidemias de 1560-1563 e as terras continuaram sob

    domnio dos inacianos, que ali mantinham intensa atividade comercial.

    3 Calvrio Carmo - Salvador

    Foi a primeira aldeia em que os jesutas atuaram, devido a sua proximidade do porto norte

    da cidade. A misso dos padres era considerada to relevante que Tom de Souza lhes permitiu

    pregar fora dos limites da cidadela. A insatisfao dos ndios com as crticas dos inacianos s

    prticas de poligamia e antropofagia manifestou-se em revolta no primeiro ano, quando

    atacaram o rancho dos missionrios e a cidadela. Assustados, os missionrios se recolheram

    rea protegida de Salvador, s retornando aldeia do Calvrio depois da represso

    desencadeada por Tom de Souza aos seus moradores. 67

    Constitui-se num dos principais pontos

    de observao e combate aos holandeses em 1624.

    4 - So Loureno Chapada do Rio Vermelho e foz do rio Camarugipe

    . Esse pequeno, chefiado pelo cacique Tamandar, situava-se nas proximidades do

    aldeamento de Nossa Senhora do Rio Vermelho. Era administrada pelo mesmo missionrio e

    seus habitantes participaram da revolta dos moradores do aldeamento maior ao reagirem

    pregao dos inacianos atacando a prtica da poligamia. Supe-se que parte de seus

    moradorestenham sido transferidos para a aldeia de So Paulo 68,

    juntamente com os do

    aldeamento do Rio Vermelho.

    5 - So Paulo Baixa de Quintas

    Este foi o primeiro aldeamento criado por Mem de S, ainda no ano de 1558, seguindo a

    orientao da metrpole. Aps ser escolhido o local para sua instalao, o governador e os

    missionrios ali reuniram a populao deslocada de quatro aldeamentos extintos ou

    abandonados por seus habitantes.

    Os aldeados participaram de vrias guerras movidas pelo governador, como a do Paraguau,

    aos Tamois e na expulso dos franceses do Rio de Janeiro.

  • A satisfao dos jesutas com os massivos batismos realizados no aldeamento de So Paulo

    tornava as festas religiosas ali realizadas as mais cheias de pompa, se comparadas com as de

    outros aldeamentos, sendo constante a presena do governador. A alegria dos jesutas,

    notificada por Nbrega a seus superiores na Europa, assumiu maiores propores quando,

    durante as festividades das Endoenas, ocorrera o martrio de uma ndia, seguindo o exemplo

    das Santas Virgens.

    A ntima relao dos aldeados com os projetos governamentais no evitou que, j no ano da

    fundao, suas terras fossem invadidas por colonos. No entanto, a nova legislao que

    transformara os aldeamentos administrados por jesutas em sesmarias permitiu a retomada da

    posse dos ndios.

    Mem de S sempre demonstrou seu interesse na manuteno desse aldeamento. Podemos

    identificar esse sentimento, por exemplo, na sua determinao de que o primeiro meirinho fosse

    um ndio e de que, durante a epidemia de 1563, os indgenas fossem afastados do local para no

    serem contaminados. O aldeamento transformou-se em refgio dos moradores de Salvador

    quando da invaso holandesa. No Sculo XVII muitos ndios abandonaram o local, porm os ali

    permaneceram69

    e o local ficou conhecido por Quinta do Tanque, Quinta dos Jesutas sediando,

    hoje, o Arquivo Pblico do Estado da Bahia.

    6 - So Joo Plataforma Baa de Piraj

    Um dos primeiros aldeamentos instalados, foi temporariamente despovoada em 1560, aps a

    fuga de sua populao durante a procisso do Domingo de Ramos. A fuga foi comandada pelo

    cacique Mirangoaba, insatisfeito com as constantes intervenes dos missionrios na vida da

    comunidade.

    Devido s dificuldades e s perseguies sofridas, alguns ndios retornaram a So Joo,

    porm, no o cacique. Os jesutas pressionaram Mem de S para que o mesmo decretasse a

    priso do principal, por considerarem sua atitude um pssimo exemplo para os demais

    aldeados. Mirangoaba foi preso e ele e sua comunidade engajada, compulsoriamente, na Guerra

    do Paraguau, no combate Confederao dos Tamoios e aos franceses no Rio de Janeiro.

    Aps a ltima convocao e, antes que esta se efetivasse na prtica, os aldeados e seu

    cacique optaram por abandonar a rea de Plataforma e se refugiaram s margens do rio So

    Francisco. O local abandonado ficou conhecido por muito tempo como Tapera de Mirangoaba,

    pois at os missionrios o abandonaram para fundar outro aldeamento com o mesmo nome de

    So Joo. 70

    7 - Nova de So Joo

    Ficava margem do Rio Piraj, a seis lguas da baa do mesmo nome. Provavelmente

    corresponde a alguma rea do atual municpio de Mata de So Joo ou de algum outro

    desmembrado do referido municpio. A populao que serviu de base para atrair e catequizar os

    que habitavam essa regio foi retirada pelo padre Gaspar Loureno e pelo Irmo Simo

  • Gonalves, em 1561, do aldeamento de Santiago.

    A ocupao do novo espao se iniciou com a construo de uma igreja e o batismo coletivo

    dos Tupinambs forros. Depois foi instalado um curral para o gado dos padres e sofreu sua

    primeira invaso em 1571, comandada por Ferno Cabral, que capturou seis dos seus ndios.

    Mem de S, no exerccio do seu papel de protetor dos aldeamentos jesuticos, fez com que o

    invasor restitusse os prisioneiros, e, em despacho de 02/05/1571, doou terras a essa sesmaria e

    para fortalec-la, determinou que os indgenas residentes nas vizinhanas fossem sujeitados pela

    fora e passassem a viver sob a administrao dos padres em So Joo. J no sculo XVII, os

    que ainda ali viviam foram transferidos para o aldeamento do Esprito Santo, atualmente,

    Abrantes.71

    8 Santiago Rio Piraj

    Foi fundada em 1559 por Mem de S. Localizava-se nas proximidades do de So Joo.

    Porm, a pobreza do solo, considerado como inadequado para a agricultura, fez com o stio

    fosse avaliado como imprprio para atender aos quatro mil ndios que ali estavam aldeados em

    1561. A crise parece ter se agravado com o recrudescimento da epidemia de varola e, j em

    1564, o aldeamento havia sido desativada, apesar da intensa atividade apostlica no local.

    Parte da populao sobrevivente, liderada pelo cacique Parajuba, originria de outra aldeia,

    foi mais uma vez transferida. Desta vez para o aldeamento Novo de So Joo. Outros moradores

    optaram por buscar refgio nas matas interioranas.72

    9 - Simo Forte de So Pedro Passeio Pblico - Gamboa

    O nome do aldeamento adveio do nome cristo do seu cacique convertido. Como a quase

    totalidade dos demais, este tambm no sobreviveu epidemia de varola de 1564. Ao que tudo

    indica, muitos dos seus habitantes morreram, outros fugiram e apenas alguns teriam

    permanecido no local sob a liderana de Simo. Deve ter sido desativada poucos anos depois e

    os remanescentes deslocados para outros aldeamentos ainda em funcionamento.73

    10 - So Sebastio nas proximidades do aldeamento do Simo

    Quando aldeia, era conhecida por Tubaro ou lpiru, nome do seu cacique. Sua populao

    tambm foi violentamente reduzida pela epidemia de varola. Em 1564, os sobreviventes foram

    transferidos para o de Santiago, em Piraj. A rea foi transformada em fazenda dos jesutas,

    onde instalaram um engenho de acar.74

    11 - Santa Cruz de ltaparica.

    Fundado em 1561, com cerimnia de batismo e casamento coletivos, foi destinada a

    congregar os Tupinamb que viviam na ilha de Itaparica e remanescentes de alguns pequenos

    grupos de Tupina transferidos do rio Paraguau. Em 1562 occoreu grave incndio que destruiu

    a igreja e a casa dos padres.

    Em 1564, o local foi despovoada devido epidemia de varola. A tentativa dos jesutas de

    repovoarem-na com os Aimors deslocados de Ilhus tambm no surtiu os efeitos desejados. A

  • taxa de mortalidade foi altssima e os sobreviventes se recusaram a permanecer na ilha, sendo

    transferidos para o aldeamento de Santo Antnio de Jaguaripe.

    No entanto, os jesutas continuaram atuando na regio at 1751, tendo como base a Capela

    de Nossa Senhora da Penha da Frana e as fazendas que herdaram de Francisco Gil de Arajo e

    de Luiz Carneiro da Rocha, em 1689. 75

    12 Sergipe do Conde - So Francisco do Conde.

    Localizado em terras de Mem de S, sua administrao foi entregue aos jesutas que

    terminaram por se tornar proprietrios da sesmaria do ex-governador aps sua morte. Muito

    pouco se sabe acerca da vida desse aldeamento, talvez por ser um empreendimento particular,

    excetuando-se o fato de os ndios trabalharem no engenho de acar da Companhia de Jesus.

    H referncia constantes a descimentos dos ndios dos sertes para as terras do engenho, para as

    de outro engenho tambm pertencente Companhia de Jesus e para as do agricultor Antnio da

    Costa, vizinho aos engenhos dos padres . Os aldeados conviveram maritalmente com colonos

    brancos, escravos de origem africana e ndios das vrias etnias para ali deslocados, como se

    pode observar na documentao trabalhada por Shwartz. 76

    13 Aldeamento de Santo Antnio de Jaguaripe atual municpio de Santo Antnio de

    Jesus

    Foi formado com ndios do aldeamento de Santa Cruz de Itaparica e tupinambs que viviam

    na regio do Rio Jaguaripe. H poucos dados sobre este aldeamento, porm, ainda encontramos

    referncias a sua existncia no Sculo XIX, quando foi extinto.

    14 Nossa Senhora da Encarnao do Pass

    H tambm referncias a aldeamentos administradas por particulares e que teriam sido

    extintas devido ao desaparecimento dos seus moradores em decorrncia dos maus-tratos que

    lhes eram impostos, da excessiva explorao de seu trabalho, das doenas infecto-contagiosas e

    das fugas dos indgenas. As citadas por Leite 77

    so as localizadas nas propriedades de Sebastio

    da Ponte, Antnio Ferraz, Joo Batista e Cristvo de Barros.

    A TRAGDIA EM CINCO ATOS

    Pelos dados referidos, embora precrios, podemos constatar as dificuldades enfrentadas

    pelos ndios que viviam na Baa de Todos os Santos. Este drama foi dividido, para efeito de

    anlise, em quatro atos.

    O primeiro, definimos como aquele perodo de escambo e relaes relativamente pacficas.

  • Nesse ato, observamos que as populaes indgenas j eram obrigadas a reestrutturar suas

    sociedades devido introduo do consumo das novas mercadorias trazidas pelos europeus.

    Iniciavam-se, portanto, a vinculao e a dependncia econmica, ainda aqui de forma

    relativamente equilibrada, devido ao interesse dos colonos em produtos oferecidos pelos

    indgenas. Este equilbrio vai se romper quando se inicia um novo padro de relaes

    econmicas no mais calcadas na simples troca.

    O segundo ato se inicia com a implantao do projeto colonial de transformar a nova colnia

    num ncleo de produo de mercadorias, preferencialmente o acar. A partir desse momento,

    intensificam-se as relaes de conquista e dominao, expressas na imposio da

    sedentarizao, da escravido e de novas formas de produo. Transformados em escravos ou

    trabalhadores mal remunerados ou nem isso, os indgenas reagiram e estouraram as rebelies

    que resultaram na destruio das aldeias, nas fugas e em violenta represso.

    O terceiro o da chegada dos jesutas e a instalao do Governo Geral. Neste ato, ainda que

    parcialmente protegidos dos ataques dos colonos, os ndios passaram a sofrer presses

    cotidianas para ajustarem seus padres sociais s novas exigncias coloniais. A ao jesutica,

    voltada principalmente para a cristianizao, a reduo e converso buscava eliminar a

    poligamia, a antropofagia, as casas coletivas, a nudez, o paganismo e o nomadismo,

    funcionando como um arete demolindo as instituies fundamentais desses grupos.

    Tambm nesse momento houve revoltas, sempre esmagadas com o auxlio do governador

    geral. Porm, tambm havia vrias formas de resistncia como a negao ao contacto, as fugas,

    o abandono das aldeias e dos aldeamentos e as longas negociaes nos aldeamentos jesuticos e

    particulares que lhes permitiram encontrar as brechas necessrias para criar espaos scio-

    polticos nos quais atuavam para obter concesses e garantir os direitos que lhes eram

    garantidos por lei. Cabe ainda ressaltar os movimentos de carter messinico, conhecidos por

    Santidades, sendo a mais conhecido a do Jaguaripe, razo principal da visitao do Santo Ofcio

    Bahia. 78

    Nesse contexto, aldear-se passou a ser tambm uma deciso poltica dos povos indgenas

    ante a ampliao das entradas em busca de escravos e do avano dos colonos para os sertes

    interiores. Aldear-se, em determinadas situaes, passou a ser um mal menor.

    O quarto, talvez o mais dramtico, o das epidemias entre 1560 e 1563. O medo doena e

    morte, a perplexidade por no saberem tratar dos enfermos e o fato de atriburem aos jesutas a

    responsabilidade pela epidemia, foram motivaes para novas fugas. Os poucos que

    permaneceram em suas aldeias ou nos aldeamentos foram transferidos para outros, visando

    economizar recursos e esforos do Governo Geral e dos jesutas. Porm, nenhum dos

    contemporneos que escreveram sobre essa tragdia se preocupou em registrar as graves

    desarticulaes sociais e psicolgicas, resultantes da depopulao, das transferncias e da

    convivncia forada com grupos antes vistos como inimigos intratveis.

  • O quinto ato refere-se reconstruo da vida nesses aldeamentos e nas aldeias ante as

    dificuldades de sobrevivncia dessas populaes e de se adapatarem s novas condies.

    nesses momentos e espaos que toda a capacidade de criar e recriar uma nova sociedade revela

    o ndio como um sujeito histrico presente na construo do que hoje conhecemos como Bia

    de Todos os Santos.

    Notas

    1 Professora do Departamento de Histria e do Programa de Ps Graduao em Histria da Universidade Federal

    da Bahia. 2 FAUSTO, Carlos. Fragmentos de histria e cultura tupinamb: da etnologia como instrumento crtico de

    conhecimento etno-histrico In CUNHA, Maria Manuela C. da (org.). Histria dos ndios no Brasil. So

    Paulo: Companhia das Letras, Fapesp/SMC, 1992 . p. 381-396. 3 MONTEIRO, John. Negros da Terra. ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. S. Paulo: Cia. das

    Letras, 1995. 4 LINHARES, M Y. Introduo. In: LINHARES, M. Y. (Org.). Histria geral do Brasil. Rio de Janeiro:

    Campus, 1990. p. 2-3. 5 O nome Paraguau assim como o atribudo a seu pai, Itaparica, foram criados usando a toponmia de acidentes

    geogrficos da Bahia de Todos os Santos. 6 TOURINHO, Pero de Campo. Carta enviada ao Rei. Porto Seguro em 28/07/1546 In ACCIOLI, I. e

    AMARAL. B. Memrias histricas e polticas da Bahia. Salvador. IOF, 1919. V.1.p. 199. 7 SAMPAIO, Teodoro. Histria da Fundao da Cidade do Salvador, Salavador, Tipografia Beneditina, 1949,

    p. 119, 158-159. 8 MONIZ BANDEIRA, Lus Alberto, O feudo. A Casa da Torre de Garcia dvila: da conquista dos sertes

    independncia do Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2007, p. 59. 9 O nome atribudo ao naufrago popularmente traduzido como homem do fogo, filho do trovo. Esta verso

    rejeitada pelos tupinlogos. Segundo os estudiosos, h duas possibilidades de traduo. Caramuru o nome

    de um peixe conhecido como moria que se abriga nas pedras beira mar, situao em que os ndios

    encontraram Diogo lvares. Outra verso afirma ser o nome derivado de Cari-muru que significa homem

    naufragado. 10

    As primeiras notcias sobre Caramuru na rea da Baa de Todos os Santos se iniciam em 1514 quando um

    portugus aprisionado por espanhis, Estevo Froes, comunica por carta o encontro a D. Manuel. Outra

    notcia data de 1526 sendo da autoria de um membro sobrevivente da tripulao da nau So Gabriel,

    comandada por D. Rodrigo de Acuna, que havia aportado na Bahia. Em 1531, quem d informaes sobre

    Diogo lvares Pero Lopes de Souza. Quando do naufrgio da nau Madre de Dis nas imediaes de

    Boipeba, em 1535, quem salvou os sobreviventes de serem aprisionados pelos ndios, segundo Capito da

    nau Juan de Mori, foi um cristo que se apresentava como Diego Alvares. MONIZ BANDEIRA, Lus

    Alberto, op. cit. p. 55-56. 11

    ACCIOLI, I e AMARAL. B. Memrias histricas e polticas da Bahia. Salvador : IOF, 1919. V.1.p. 19. 12

    ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. IOF, 1919. V.1.p. 179. 13

    MONIZ BANDEIRA, Lus Alberto, op. cit. p. 65. 14

    MONIZ BANDEIRA, Lus Alberto, op. cit. p. 57 15

    ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. IOF, 1919. V.1.p. 156-157. 16

    NEIVA, Artur, op. cit. p. 196-201. 17

    SOUZA, Gabriel Soares de. Notcia do Brasil. So Paulo Martins Fontes, 1943. 18

    PEREIRA, Ruy. Carta que escreveu para os Padres e Irmos da Companhia em Portugal no ano de 1561, a 6

    de abril, que foi dia da Pscoa In Cartas Avulsas, Aspilcueta Navarro e outros, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia,

    So Paulo, Edusp, 1988. p 307-320. 19

    VIANA, Francisco Vicente. Memria sobre o Estado da Bahia, Bahia, Tipografia e Encadernao do Dirio

    da Bahia, 1893.

  • 20

    SALVADOR, Frei Vicente do. Histria do Brasil 1500 1627; Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, So Paulo, Edusp, 1982. p 112-4; 143-4.

    21 VASCONCELOS, S de. Crnica da Companhia de Jesus no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1977: 190-5.

    22 NEIVA, Artur, op.cit.p. 193-7; 204.

    23 Nos documentos encontrados nos arquivo de Saint Malo, Ille et Villaine e nos Arquivos Federais de Ottawa, o

    nome de batismo da acompanhante de Caramuru era Katherine Du Brzil. Cartier teria estado na Baa nos

    anos de 1523 e 1527, oportunidade em que teria levado o casal para a Frana. MONIZ BANDEIRA, Lus

    Alberto, op. cit. p. 71-72. 24

    NEIVA, Artur. op. cit, p. 193. 25

    ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit, 1919. V.1.p. 199-200. 26

    VARNHAGEN, F. A Histria geral do Brasil. Notas de Rodolfo Garcia. So Paulo,

    Melhoramentos/INL/MEC. 1975 27

    JABOATO, Frei Antnio de Novo Orbe Serfico Brasileiro In ACCIOLI, I. e AMARAL. B. op. cit., 1919.

    V.1.p. 188. 28

    MONIZ BANDEIRA, Lus Alberto, op. cit. p. 92 93. 29

    ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. 1919. V.1.p. 158-160. 30

    NEIVA, Artur. op. cit, p. 197. 31

    NEIVA, Artur. op. cit, p. 201. 32

    MONIZ BANDEIRA, Lus Alberto, op. cit. p. 101. 33

    NEIVA, Artur. Diogo lvares Caramuru e os franceses. Existncia do Pau-Brasil na capitania de Francisco

    Pereira Coutinho (um livro em preparao) In Revista Brasileira (publicada pela Academia Brasileira de

    Letras), Rio de Janeiro, nmero 03, ano 1.p.185-210. dezembro de 1941. 34

    AZEVEDO, Thales, Povoamento da Cidade de Salvador, Salvador, Editora Itapu, 1969, p 112. 35

    MONIZ BANDEIRA, Lus Alberto, op. cit. p. 67 36

    COUTO, Jorge. A construo do Brasil, amerndios, portugueses e africanos, do incio do povoamento a

    finais de quinhentos. Lisboa : Cosmos, 1995. 37

    AZEVEDO, Thales, op. Cit, p 101 38

    JOHNSON, H. B. The Portuguese settlement of Brazil, 1500 - 80. In: BETHELL, Leslie (Ed.). The

    Cambridge History of Latin America. v. 1 - Colonial Latin America. Cambridge: Crambridge University

    Press, 1984. v.1, p. 249-86. 39

    Paraiso, M. H. B. Aldeamentos de Salvador no Sculo XVI - um primeiro esboo in Revista da Bahia, v. 18,

    p. 39-48, 1990; ACCIOLI, I e AMARAL. B. op. cit. V.1.p. 158-60; 199-200; VARNHAGEN, F. op. cit.

    1975. 40

    CAPISTRANO DE ABREU DE ABREU, J. Captulos de histria colonial. Belo Horizonte: Itatiaia; So

    Paulo: Edusp, 1988. P. 89-90.

    41 PERRONE-MOISS, Beatriz. ndios livres e ndios escravos: os princpios da legislao indigenista no

    perodo colonial. In: CUNHA, Maria Mela C. da. (org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo:

    Companhia das Letras, Fapesp/ SMC, 1992. p.115-132.

    42 ACCIOLI, I. e AMARAL. B. op. cit. V.1.p. 199-200; VARNHAGEN, F. A op. cit.; NEIVA, Artur. Op. cit.

    43 Hoje conhecida como Praia do Forte, onde Garcia dvila instalou a sede de sua sesmaria

    44 PEREIRA, Ruy. Carta que escreveu para os Padres e Irmos da Companhia em Portugal no ano de 1561, a 6

    de abril, que foi dia da Pscoa In Cartas Avulsas, Aspilcueta Navarro e Outros, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia,

    So Paulo, Edusp, 1988. p 307-320. 45

    HEMMING, John. The indians of Brazil in 1500. In: BETHELL, Leslie (Ed.). The Cambridge history of

    Latin America. Cambridge : Cambridge University Press, 1984. v . 1, p. 119-43. 46

    Entenda-se como aldeias unidades de povoamento indgena que mantinham sua autonomia, no sendo

    administradas nem por particulares nem por missionrios ou mesmo por funcionrios rgios. 47

    KOSHIBA, L. A honra e a cobia. So Paulo : FFLCH, Universidade de So Paulo, 1989. v. 1, 213p. (Tese,

    Doutorado em Histria Social). BOM MEIHY, J. C. S. A presena do Brasil na Cia de Jesus (1549 -1649).

    So Paulo: FFLCH, Universidade de So Paulo, 1975. (Tese, Doutorado em. Histria Social).BAETA

    NEVES, L .F. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios - colonialismo e represso cultural.

    Rio de Janeiro: Forense - Universitria, 1978. 175p. 48

    BOM MEIHY, op. cit. p. 85-94; PERRONE - MOISS, op. cit. p. 115-32); FERREIRA, M. T. C. da R. Os

    aldeamentos indgenas no fim do perodo colonial. So Paulo : FFLCH da Universidade de So Paulo, 1990.

    p 1-6 (Dissertao, Mestrado em Histria Social). 49

    NBREGA, Manuel da. (Padre). Carta escrita na Bahia em 05/07/1559. In: ACCIOLI, J., AMARAL, B. op.

    cit. V. 5, p. 25-44. 50

    ANCHIETA, Jos. Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos e Sermes (1554-1594). Rio de Janeiro: Ed.

    Civilizao Brasileira, 1933.p. 303.de Cartas. Belo Horizonte, Itatiaia; So Paulo, Edusp, 1988, pg.311.

  • 51

    AZEVEDO, Talhes, op. Cit. , pg 81-3 52

    Entendemos por aldeamento espaos ocupados por indgenas e que eram administrados por particulares,

    missionrios ou administradores rgios 53

    LEITE, Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1965, p. 46. 54

    SCHWARTZ, S. B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. So Paulo:

    Cia. das Letras; CNPq, 1988, pg 93. 55

    MARIANI, Jos B. de A. Povoamento da Bahia: sculo XVI in Revista do Centro de Estudos Baianos, Salvador: s/ed., 1971. p.3.

    56 MARIANI, op cit. p.:4-5.

    57 Regio hoje conhecida como Portas do Carmo.

    58 MARIANI, op cit. p.:4-5.

    59 Segundo Gabriel Soares de Souza, no fim do sculo XVI, duas mil famlias portuguesas viviam no Recncavo

    e havia trinta e seis engenhos construdos, sendo a maior concentrao inicial nas zonas de Piraj, Matoim,

    Paripe e Cotegipe. Se considerarmos a questo da concentrao de proprietrios, entre os sculos XVI e XVII, a

    Companhia de Jesus desponta como detentora do maior nmero de engenhos no Recncavo (SOUZA, Gabriel

    Soares de. Notcia do Brasil. So Paulo, Martins Fontes, 1943; SCHWARTZ, S. B., op. cit. pg 93. 60

    SCHWARTZ, S. B. Op. Cit.; LAPA, J. R. do A. A Bahia e a Carreira das ndias, So Paulo, Hucitec;

    Campinas, Unicamp, 2000. 61

    PARASO, Maria H. B. Caminhos de ir e vir e Caminhos sem volta: ndios, estradas e rios no sul da Bahia.

    Salvador: Dissertao, Mestrado em Cincias Sociais, UFBA, 1982. 62

    ANCHIETA, Jos. Cartas, Informaes, Fragmentos Histricos e Sermes (1554-1594). Rio de Janeiro: Ed.

    Civilizao Brasileira, 1933.p. 303. 63

    LEITE, op. cit: 120-22. 64

    SCHWARTZ, S. B. Op. cit, pg. 173. 65

    SCHWARTZ, S. B. Op. cit, pg. 77-80. 66

    LEITE, op. cit.p. 19-21 e 43. 67

    LEITE, op cit. p.49. 68

    LEITE,op cit. p.:22-46. 69

    LEITE. op. cit: 49-50. 70

    LEITE, op cit. p. 51-52 71

    LEITE, op. cit. p. 67. 72

    LEITE, op cit: p. 67, 76. 73

    LEITE op. cit. p: 95-100. 74

    LEITE, ibidem 75

    LEITE, ibidem 76

    LEITE, op. cit: p. 56. 77

    LEITE op. cit. p. 58-9. 78

    LEITE, op. cit. P. 71. 79

    VAINFAS, Ronaldo. .A heresia dos ndios - catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. S. Paulo: Cia. das

    Letras, 1995. p. 275.