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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE ANA CAROLINA MONTE PROCÓPIO DE ARAÚJO A DIALÉTICA ESTADO-DIREITOS HUMANOS: LIMITES E POSSIBILIDADES São Paulo 2008

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

ANA CAROLINA MONTE PROCÓPIO DE ARAÚJO

A DIALÉTICA ESTADO-DIREITOS HUMANOS: LIMITES E POSSIBILIDADES

São Paulo 2008

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ANA CAROLINA MONTE PROCÓPIO DE ARAÚJO

A DIALÉTICA ESTADO-DIREITOS HUMANOS: LIMITES E POSSIBILIDADES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Ari Marcelo Solon

São Paulo 2008

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ANA CAROLINA MONTE PROCÓPIO DE ARAÚJO

A DIALÉTICA ESTADO-DIREITOS HUMANOS: LIMITES E POSSIBILIDADES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação “Stricto Sensu” em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre.

Aprovada em

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Ari Marcelo Solon – Orientador Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Márcio Bilharinho Naves Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

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Ao meu amado filho Hermano.

Ao meu companheiro-cúmplice Damião.

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Agradeço a todos – e foram tantos – que, com

carinho e paciência, me deram apoio e incentivo

para que eu pudesse levar a cabo este trabalho.

Acima de tudo, agradeço a todos e a cada um

que, pela crítica oportuna, ora até dura, mas

apropriada – como deve ser a amorosa crítica –

me ajudaram a manter direcionado à frente o

lume que eu quis acender.

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Caminante, no hay camino.

se hace camino al andar.

Al andar se hace camino,

y al volver la vista atrás,

se ve la senda que nunca

se ha de volver a pisar.

Antonio Machado

Fica proibido o uso da palavra liberdade,

a qual será suprimida dos dicionários

e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante a liberdade

será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio,

e a sua morada será sempre

o coração do homem.

Thiago de Mello

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RESUMO

O estado e os direitos humanos guardam entre si íntima conexão. As várias formas

estatais contemporâneas concordam com o discurso de proteção desses direitos,

mas o próprio Estado é hoje seu principal violador. A era contemporânea é herdeira

do pensamento jurídico e político da modernidade iluminista, em especial de sua

vertente positivista. A desigualdade social do capitalismo, disfarçada pela igualdade

meramente formal, reproduz um processo de reificação do ser humano, equiparado

a mera mercadoria. Nesse contexto, os direitos humanos representam uma forma de

resistência ao sistema – mas a mera defesa de direitos já estabelecidos, ou a busca

de novos direitos, não deve levar a perder de vista o horizonte mais amplo e

estrutural de busca da igualdade efetiva. Hoje a luta é para impedir o retrocesso dos

direitos humanos, mas sempre dentro dos limites do poder do estado que, retirado o

véu mistificador da institucionalidade supostamente neutra, é o poder das classes

dominantes. Em um futuro contexto social não dividido em classes e caracterizado

por uma vivência social igualitária, a expressão direitos humanos soará como uma

excentricidade antiga e ultrapassada, sem sentido, pois seu desfrute será um dado

do cotidiano e verdadeiramente universal.

Palavras-chave: Estado, Direitos Humanos, Modernidade, Iluminismo, Razão,

Desigualdade Social, Classes Sociais, Neoliberalismo.

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ABSTRACT

State and human rights keep close connection between them. The many

contemporary state forms agree with the speech of protection of these rights, but the

State itself is today its main violator. The contemporary age is heiress of the legal

and policitical thought of enlightened modernity, in special of its positivist source.

Capitalistic social inequality, disguised by only formal equality, reproduces a process

of reification of the human being, equalized to mere merchandise. In this context,

human rights represent a form of resistance to the system – but the mere defense of

rights already established, or the search of new rights, shall not lead to lose of sight

the amplest and estructural horizon of search of efective equality. Today the fight is

to hinder the human rights retrocession, but always inside the limits of State power

that, removed the mystifying veil of the supposedly neutral institucionality, it is the

power of the ruling classes. In a future social context, not divided in classes and

characterized for an equalitarian social experience, the expression “human rights” will

sound as an old and exceeded eccentricity, meaningless, therefore its enjoyment will

be daily and truly universal.

Keywords: State, Human Rights, Modernity, Enlightment, Reason, Social Inequality,

Social Classes, Neoliberalism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................11

CAPÍTULO I – Das sociedades comunais primitivas às sociedades de classes.......15

1. Sociedades comunais primitivas. Sedentarização e advento da propriedade

privada. Surgimento do Estado e das classes sociais. .....................................15

2. Estados antigos. Escravismo. ...........................................................................20

3. Nostalgia do Paraíso perdido............................................................................26

CAPÍTULO II – Estado – Origens e Fator de Poder ..................................................29

1. Considerações sobre as origens e concepções do Estado...............................29

II.1.a – Metafísica Kantiana ..............................................................................31

II.1.b – Idealismo hegeliano ..............................................................................32

II.1.c – Materialismo de Marx............................................................................34

CAPÍTULO III – Herdeiros da Modernidade ..............................................................39

1. O movimento iluminista.....................................................................................39

2. Do jusnaturalismo ao positivismo jurídico .........................................................44

3. Contratualismo..................................................................................................48

4. Legalidade – Universalidade e individualidade .................................................54

5. Direito, Estado e Ideologia ................................................................................60

6. Saldo da Modernidade ......................................................................................64

CAPÍTULO IV – Evolução dos Direitos Humanos e Cartas de Direitos.....................67

1. Gênese dos Direitos Humanos: Advento das Declarações de Direitos e

Constitucionalização .........................................................................................67

2. Cartas e Constituições – Documentos de Formalização de Direitos.................71

IV.2.a – Declaração de Direitos do Bom Povo de Virginia – EUA, 1776 .......71

IV.2.b – Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – França, 1789 .72

IV.2.c – Revolução Mexicana – México, 1917 ..............................................74

IV.2.d – Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado – Rússia,

1918. ................................................................................................74

IV.2.e – Constituição de Weimar – Alemanha, 1919 .....................................77

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IV.2.f – Declaração Universal dos Direitos Humanos – ONU, 1948.............78

IV.2.g – Declaração de Viena – ONU, 1993 .....................................................82

CAPÍTULO V – Do Estado Liberal ao Estado Neoliberal – Relação com os Direitos Humanos...................................................................................................................84

1. Liberalismo Econômico .....................................................................................84

2. Do Estado Liberal ao Estado Neoliberal ...........................................................88

3. Perspectivas para os Direitos Humanos – Limites e Possibilidades .................99

CONCLUSÃO..........................................................................................................103

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................108

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INTRODUÇÃO

A idéia de lutar por direitos é tão antiga quanto o surgimento da

História e contemporânea do seu segundo modo social de produção1, o escravismo.

A expressão e o conceito de direitos humanos, porém, são muito mais recentes.

Surgem a partir das revoluções burguesas que tiveram lugar no mundo ocidental nos

séculos XVII, XVIII e XIX. Tais revoluções mudaram a face do mundo, posto que

assentaram o ponto final do processo de extinção do feudalismo e ensejaram a

implantação definitiva do capitalismo então nascente.

Não é por acaso que os direitos humanos encontraram seu

nascedouro precisamente a partir do movimento revolucionário burguês e no seio da

sociedade capitalista. A conexão, longe de ser contraditória, é evidente e

necessária.

As revoluções burguesas do séc. XVIII deixaram como legado,

entre tantas outras coisas, o Estado Moderno. A postulação pelos direitos humanos,

tal como os concebemos hoje, é decorrência lógica desse modelo de estado. Não se

pode entender o conjunto das garantias de direito sem adentrar no contexto histórico

concernente ao período revolucionário, ao surgimento do modelo econômico

capitalista e à conseqüente necessidade de instituição de uma legalidade

homogênea e garantidora de direitos2.

O presente estudo centra-se na trajetória e na íntima conexão

entre a prática dos direitos humanos e os diferentes modelos de estados que, não

obstante suas divergências radicais, convergem quanto ao discurso de proteção

àqueles, o que não se estende, na maior parte das vezes, à sua defesa. Ao

contrário, examinar-se-á como o papel do estado tem sido efetivo no que diz

respeito ao enfraquecimento da prática dos direitos humanos em todo o mundo,

inclusive aqueles ditos de primeira geração – direitos civis e políticos –

1 O primeiro modo social de produção foi o comunismo primitivo. 2 Não obstante o fato de o Estado e os direitos humanos terem suas características atuais firmadas na Modernidade, a análise do Estado será feita a partir de seu surgimento histórico, com a superação do comunismo primitivo. Isto para permitir uma visão histórica do ente estatal e do seu papel na sociedade, uma vez que, malgrado as diferentes aparências que com que se apresentou ao longo do tempo, mantém o traço essencial de representar e servir aos interesses da classe social dominante, embora se apresente como instituição universal e neutra.

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tradicionalmente o baluarte dos países mais desenvolvidos economicamente,

situados no centro do mundo capitalista.

A Filosofia do Direito, por sua vez, tem um claro papel na

trajetória da implantação dos direitos humanos, ora alavancando sua prática, ora

justificando o conservadorismo inibidor da efetivação desses direitos, em prol das

classes dominantes. A concepção de direito natural que prevaleceu no Iluminismo e

que esteve no cerne do movimento revolucionário francês de 1789 cumpriu a função

de legitimar o movimento revolucionário e instaurar a igualdade legal, fruto da

“razão”. Papel muito diverso desempenha a filosofia da práxis, que prega

entendimento e ação. Essa interação filosófica e suas implicações com o estado e

as lutas por conquistas de direitos estão também presentes neste estudo.

A idade contemporânea, pelo menos quanto ao direito, é herdeira

do pensamento da modernidade. Várias categorias e institutos que permanecem

ordenando a sociedade hoje têm suas raízes na modernidade iluminista.

A universalização da legalidade, por exemplo, não teve o condão

de tornar os seres efetivamente iguais, mas apenas de garantir que a lei os trataria

assim (o que também não se revelou verdadeiro, basta ver o problema do voto

censitário, da negação de voto à mulher por longo tempo, isso para falar apenas em

exemplos de direitos políticos).

Como as garantias políticas não implicam de fato em libertação

humana, conforme o confirma o histórico da sociedade nos últimos trezentos anos, a

luta pela implementação dos direitos humanos é tão atual quanto o foi a luta pela

positivação desses direitos a partir da era das revoluções burguesas.

O ente estatal é o palco onde se desenrolam os conflitos entre a

supremacia de classes e tentativa de libertação, daí sua importância para a

compreensão do tema. A opção pela visão de conjunto deveu-se ao entendimento

de que as realidades sócio-cultural, econômica e filosófica estavam de tal modo

imbricadas que a exposição dos problemas atinentes à efetivação deficiente dos

direitos humanos e à atuação do estado na sociedade, ontem e hoje, seria mais

clara se mais abrangente, dada a indivisibilidade dos fenômenos sociais.

O olhar para a instituição estatal alongado no tempo revela sua

indissociável ligação com o desenrolar histórico. Daí suas modificações – do Estado

teocrático ao Estado liberal, do Estado social ao Estado autoritário; a História

justifica o porquê de cada um deles. Do comunismo primitivo das sociedades sem

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classe e sem estado, pautadas pela solidariedade e pelo igualitarismo social ao

modelo contemporâneo de Estado Neoliberal, passando pelo Estado Moderno

individualista e liberal, as transformações coincidem com as formas de predomínio

social presentes nos diferentes modos de produção e com as circunstâncias

históricas.

Por outro lado, embora de forma majoritária a luta por mudanças

sociais diga respeito aos problemas derivados das desigualdades sócio-econômicas,

há outras lutas em andamento que não se relacionam, ao menos de forma imediata,

com essa realidade. É o caso das lutas de gênero, raciais e das homoafetivas, por

exemplo.3

Nesse contexto, importa perquirir qual é o real papel dos direitos

humanos. Por um lado, configuram resistência à dominação e não se pode

desconsiderar suas conquistas desejadas e necessárias, fruto de lutas contra o

sistema. Por outro lado, se se entender que as lutas sociais devem se restringir à

conquista de novos direitos positivados, perde-se de vista o horizonte mais amplo,

de busca da igualdade efetiva.

É possível entender que a luta pela implementação dos direitos

humanos – cujo rol não é estanque, mas sofre modificações determinadas pelas

necessidades históricas – alavancam a mobilização popular e sustentam a

resistência à exacerbação capitalista. Mas não é menos verdadeira a consideração

de que essa luta por pequenos espaços pode levar ao conformismo e à acomodação

que perpetua a situação atual ao deixar de enfrentar o problema maior,

determinante, que reside na desigualdade social e no predomínio de uma classe que

se serve do estado como instrumento para realização de seus interesses.

Daí a atualidade do problema do estado em confronto com os

direitos humanos, que são reconhecidos e – deveriam ser – garantidos por esse

mesmo ente. Há um papel dúplice do estado que só pode ser compreendido tendo

em vista a correlação das forças sociais em conflito em cada momento, a qual

permite ou veda a conquista e a efetivação de novos direitos. Não se pode ter,

contudo, a ilusão de que a realização dos direitos humanos hoje reconhecidos e dos

que ainda estão em busca do reconhecimento legal – ainda que houvesse essa

3 Embora não se possa afastar, mesmo nessas questões, vestígios ou evidências mais fortes de diferenças classistas em sua base.

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efetivação plena em algum lugar, resolveria em definitivo a questão da convivência

social.

O tema se presta aos mais acalorados debates, a depender da

visão de mundo por que se lhe olhe. Para debatê-lo com a abrangência que lhe é

própria, optou-se por uma análise transdisciplinar a fim de procurar inserir vários dos

aspectos que compõem o problema, bem como realçar aspectos que facilitem sua

investigação.

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CAPÍTULO I – Das sociedades comunais primitivas às sociedades

de classes

1. Sociedades comunais primitivas. Sedentarização e advento

da propriedade privada. Surgimento do Estado e das classes

sociais4.

O estado não é, ao contrário do que pode parecer nos tempos

atuais, uma instituição eterna, que sempre tenha existido5. Houve um tempo em que

os grupamentos sociais regiam-se de acordo com regras próprias que não eram

ditadas e impostas por um ente externo àqueles. Nesses tempos mais recuados da

história, as relações de troca, no sentido econômico, inexistiam ou eram tão-

somente esporádicas, pois a produtividade do trabalho humano era tão precária que

cada pessoa mal conseguia produzir o indispensável para a sua sobrevivência e a

de seu núcleo familiar. Essa precariedade fez com que as inúmeras tarefas

imprescindíveis para assegurar os meios de sobrevivência só se tomassem viáveis

mediante a cooperação e a solidariedade grupal. Conseqüentemente, clãs, tribos e

grupos nômades eram organizados de modo igualitário a partir da apropriação

coletiva dos recursos da natureza – em especial, das fontes de água e das áreas de

coleta e caça; o trabalho e o seu fruto eram divididos de acordo com a tradição e as

necessidades de cada um, o e eventual excedente do fruto do labor constituía um

fundo de reserva que não era ainda propriedade de uma classe dominante6. De tudo

isso resultava a harmonia social no interior de cada grupo.

A alvorada da História do homem sobre a Terra aponta o caráter

coletivo da sociedade e das relações humanas então vigentes. Essa foi a fase do

4 Este item 1 referencia-se majoritariamente na obra de Engels “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”. Conquanto várias das assertivas de Morgan, nas quais se baseia o livro de Engels, sabem-se revistas pela moderna antropologia marxista, procurou-se o essencial do que descrito pela obra acima: a existência de uma sociedade comunal primitiva em que inexistiam classes sociais e Estado e a passagem desse modelo ao regime patriarcal, masculino, de divisão da sociedade em classes e do governo de todos por uma autoridade superior, na realidade, um instrumento para a consolidação e mantença da dominação de classes. 5 MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2ª edição – Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 128. 6 BLOCH, Ernest. Natural Law and Human Dignity. Cambridge: MIT Press, 1988, p. 268.

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comunismo primitivo7, do matrimônio por grupos8 e do direito materno9.10 Em tal

momento histórico, das antigas sociedades tribais gentílicas, desconhecia-se a

propriedade privada e a divisão das pessoas em segmentos sociais distintos11. Da

mesma forma, eram desconhecidos o Estado e o direito. O poder era exercido

diretamente pela própria comunidade, que contava com um chefe por ela escolhido,

cuja autoridade assentava-se principalmente em sua respeitabilidade moral.

Essa época foi o matriarcado, momento histórico caracterizado

pela igualdade entre os seres humanos em convívio, especificamente uma igualdade

axiológica (que é a de que importa tratar), já que as funções na tribo eram divididas

de forma diferenciada entre seus integrantes. Em tal ambiente, imperavam a paz e a

segurança, posto que fundado no princípio da solidariedade social e no qual inexistia

uma autoridade superior e destacada dos integrantes da comunidade. Bloch refere-

se a essa época como “primordial era humana anterior à divisão do trabalho, em que

‘meu’ e ‘seu’ ainda não haviam aparecido.”.12

Tal fase, que passou a habitar o imaginário humano como

símbolo de uma era de paz e justiça, é associada às figuras da mãe e da mulher. O

matriarcado coincide com a época dos cultos às deusas primordiais – Gaia, Ísis,

Ceres –, da reverência à Mãe Terra13. O feminino é nascimento, alimento, vida, e por

isso a figura da mulher é cultuada e respeitada.

Esse poder feminino, contudo, não constituía uma ginecocracia no

sentido político, mas apenas no religioso. Todo o respeito era devido à mulher, mas

as tribos eram dirigidas pelos homens e as associações entre eles existiram durante

o matriarcado14, o que confirma que este não foi uma organização política, mas um

modo de organização social baseado na convivência entre iguais, no acolhimento,

na fartura e na eqüidade.

Da mesma forma que os mitos refletiram esse sistema de

produção e organização da sociedade, há também um correspondente mitológico

7 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 2ª edição – São Paulo: Centauro Editora, 2004, pp. 51/52. 8 idem,p. 36. 9 ibidem ,p. 45. 10 Concordamos com a restrição que Engels faz à expressão direito materno, visto que naquele momento não havia ainda propriamente um sistema jurídico tal como o entendemos hoje. 11 ENGELS, F. op. cit., pp. 170/172. 12 BLOCH, E., op. cit., p. 4. 13 idem, op. cit., p. 101. 14 ibidem, pp. 99/100.

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para a transição do matriarcado para o patriarcado, marcando o fim da forma

comunal primitiva da existência. Bloch retoma o mito de Orestes15, relacionando-o

com o ocaso da predominância feminina e a consolidação do poder masculino.

Orestes representa a lei nova, o poder do homem que se afirma

sobre a vida da própria mãe. As Eumênides e sua busca de vingança representam o

respeito à lei antiga, matriarcal, e a decisão dos deuses absolvendo o homicida da

própria mãe dizem respeito ao advento do poder patriarcal, a nova lei.

Esse mito reflete o momento em que a velha ordem matriarcal

deu lugar a um novo regime e a um novo modo de produção social em que,

superada a eqüidade, instalou-se em seu lugar a desigualdade e a exploração.

Tão logo os meios de sobrevivência experimentaram

aperfeiçoamentos – submissão de animais para tração ou carga, controle da

produção do fogo, invenção do arco e flecha, desenvolvimento de técnicas agrícolas

não tão rudimentares, entre outros – a produtividade individual expandiu-se. Surgiu

a figura do excedente econômico possível de ser acumulado para consumo

posterior. Com ele, as relações de trocas deixaram de ser eventuais, surgindo,

inclusive, a especialização do trabalho humano16. A primitiva divisão do trabalho foi

se expandindo e esse foi um dos fatores fundamentais da divisão da sociedade em

classes - processo agudizado pela consolidação estatal como instrumento de

predomínio de um grupo social.

Com a sedentarização propiciada pelo desenvolvimento da

agricultura, o excedente produzido17 foi o germe da noção de propriedade privada.

Fez-se sentir nesse momento a conveniência da escravização humana porque

15 Orestes era filho de Agamenon e Clitemnestra. Ao ir para a Guerra de Tróia a fim de resgatar

Helena, Agamenon matou uma corça da deusa Ártemis e esta exigiu-lhe o sacrifício de sua filha Ifigênia para reparar a ofensa. Agamenon concordou em matar sua filha Ifigênia, mas a deusa Artêmis resgatou-a na hora do sacrifício e salvou-a da morte, levando-a para seu templo. O pai e todos os demais, contudo, acharam que Ifigênia havia sido morta no sacrifício. Sua mãe, ao saber da desgraçada notícia, juntou-se a Egisto, de quem se fez amante, e tramou a morte de Agamenon, tendo sucesso na empresa. Electra, outra de suas filhas, enviou seu irmão Orestes para ser criado na corte do rei Estrófio, seu tio, a fim de que este fosse poupado por Egisto, que temia-se viesse matar aquele que poderia vingar a morte do pai. Orestes cresceu em segurança e efetivamente vingou-se do padrasto e da mãe, matando-os, por orientação do deus Apolo e com o apoio de sua irmã Electra. Ao fazê-lo, passou a ser perseguido pelas Erínias ou Eumênides, as deusas da vingança que exigiam punição para o matricida, pois a lei de então determinava que os crimes de sangue entre familiares fossem punidos com a morte. Orestes é, então, submetido a julgamento pelos deuses do Olimpo e por fim absolvido, a partir do voto da de desempate da deusa Atena, irmã de Apolo. Cfr. SCHWAB, Gustav. As mais belas Histórias da Antiguidade Clássica – Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2002, pp. 28/38 e 255/278. 16 ENGELS, F., op. cit., pp. 166/170 e 176. 17 idem, p. 57.

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propiciava maior produção e apropriação privada de excedentes à custa de trabalho

alheio. Em decorrência, aos poucos aquele modo comunal-primitivo de organização

social foi sendo substituído pelo escravismo. Isto porque, no modelo anterior, dada a

baixa produtividade do trabalho humano, não faria qualquer sentido a captura e

submissão de pessoas à condição de escravos. “A grandeza do regime da gens – e

também a sua limitação – é que nele não cabiam a dominação e a servidão.”18.

Surgiam, portanto, pela primeira vez na história da humanidade, sociedades

baseadas na divisão em classes sociais (escravos e senhores de escravos),

conectadas inevitavelmente à neófita noção de propriedade privada dos meios de

produção: propriedade de escravos, propriedade da terra para os escravos

trabalharem.

À pergunta sobre o motivo da ruína das sociedades tribais

primitivas e do seu modo comunal de produção social pode ser respondida, segundo

Bloch, com uma expressão: desigualdade na propriedade dos meios de produção19.

Nesse momento, as relações sociais já tinham seu curso

definitivamente modificado. Impossível voltar ao regime da gens diante da produção

individual e da exploração do homem por seu semelhante20. O curso das

modificações tornou-se incessante: desapareceu o matrimônio por grupos e o

matrimônio sindiásmico21 e foi instituída a monogamia (na prática somente para as

mulheres) a fim de que os homens pudessem ter certeza da paternidade e, assim,

transmitissem seu patrimônio apenas aos seus filhos sangüíneos22. O casamento e

as relações amorosas deixaram de ser de âmbito exclusivamente privado para

assumirem uma feição pública, sujeitos à intervenção legal23. Por fim, instaurou-se o

Estado.

A coincidência entre a forma de família monogâmica submetida

ao poder masculino e a formação da instituição estatal não se deveu ao acaso; foi,

18 ENGELS, F., op. cit., p. 165. 19 BLOCH, E., op. cit., p. 270. 20 Importa notar também que nesse momento da história humana não se poderia sequer imaginar a idéia de “direitos humanos”. Tal noção soaria absurda no seio das sociedades comunais primitivas, uma vez que ali praticava-se a igualdade substancial, sem divisão entre classes, entre ricos e pobres, entre intelectuais e trabalhadores manuais, sem opressão de gênero. Todos tinham os mesmos direitos e deveres. Como poderiam entender a luta por direitos humanos? Essa só vai surgir e fazer sentido a partir do momento em que se inicia a opressão humana e os que sofrem com esse estado de coisas rebelam-se e lutam para serem tratados como ... humanos. 21 ENGELS, F. op. cit., pp. 56 e 83, 49/50. 22 idem, pp. 59/61. 23 BLOCH, E., op. cit., p. 267.

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antes, conseqüência do mesmo fator – o surgimento da propriedade privada – e,

conseqüentemente, da apropriação individual de riquezas. O homem

(especificamente os seres do sexo masculino) passou, a partir desse momento, a

assumir o poder privado e a dominar também o espaço público24. Entrou em cena o

patriarcalismo. Suas características e conseqüências fogem ao escopo deste

trabalho, justificando-se sua citação apenas para localizar as circunstâncias que

propiciaram o surgimento do ente estatal, ainda que em sua forma embrionária, que

somente atingiu seu estágio mais acabado a partir das revoluções burguesas

iniciadas no século XVII.

A partir da primeira forma de dominação, que foi a do homem

sobre a mulher nos tempos imemoriais do início da era civilizada25, com o fim do

direito materno e sua substituição pelo direito paterno26, a história social do ser

humano tem se mantido como uma história de opressão. A cisão em classes e a

dominação de umas sobre outras é uma constante da História.

Resumindo: a riqueza passa a ser valorizada e respeitada como bem supremo e as antigas instituições da gens são pervertidas para justificar-se a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência; faltava apenas uma coisa: uma instituição que não só assegurasse as novas riquezas individuais contra as tradições comunistas da constituição gentílica, que não só consagrasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e fizesse dessa consagração santificadora o objetivo mais elevado da comunidade humana, mas também imprimisse o selo geral do reconhecimento da sociedade às novas formas de aquisição da propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras – a acumulação, portanto, cada vez mais acelerada, das riquezas –; uma instituição que, em uma palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o direito da classe possuidora explorar a não-possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda. E essa instituição nasceu. Inventou-se o Estado.

27

O surgimento da instituição estatal, desde os seus primórdios até

o modelo complexo da modernidade – que permanece até hoje –, observou o

antagonismo entre classes sociais28. Sobre tal base foi fundada e se mantém, posto

24 ENGELS, F. op. cit., pp. 58/60. 25 idem, p. 70. 26 Para Bloch, “até hoje o casamento burguês contém resíduos do poder patriarcal, patronal sobre a mulher e, ainda mais, sobre as crianças” (tradução livre), op. cit., p. 267. 27 ENGELS, F. op. cit., pp. 111/112. 28 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996, p. 43.

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que a diferença entre os integrantes dos diversos segmentos na sociedade29 é

pressuposto da idéia de Estado como instrumento de atuação do poder político do

grupo social predominante30. Portanto, ao invés de representar a força superior ao

homem individual que permite e regula a ordem social, como os estudos jurídicos

costumam pregar, o Estado é a resultante de vetores antagônicos em luta na

sociedade, sendo a expressão de poder do grupo mais forte.

2. Estados antigos. Escravismo.

Ainda no tempo das gens, cujos vestígios encontram-se em todo

o mundo antigo, tanto no Oriente, como no Ocidente (assim como, atualmente, em

pequenos grupos humanos ainda isolados encontrados na Amazônia, Sibéria, África

Central etc.), a formação social era fundamentada no grupo familiar (considerado de

maneira extensa). Naquela fase, não existia ainda uma autoridade pública geral e

superior aos grupos humanos reunidos em torno da origem familiar. Portanto, eram

as regras estabelecidas pelas famílias que conduziam as relações sociais. Em tal

momento histórico, direito e religião estavam fundidos e sua vivência era

administrada pelo chefe da família em cada lar. Pela própria organização

comunitária, explicava-se esse regime social. Familiares eram os deuses, o culto e a

religião, bem como a moral e a justiça, de índole restrita a esse pequeno grupo. A

família englobava todas as necessidades da vida humana, materiais e espirituais. As

normas sociais seguidas advinham desse modo de vida, tais como a propriedade

coletiva e familiar da terra 31.

Todo esse regime ruiu com o advento do Estado e a necessidade

de reordenação da vida social32. O enfraquecimento das gens e de seu modelo

familiar cedeu espaço ao crescimento de uma autoridade pública e unitária, a fim de

disciplinar as relações sociais que já se mostravam antagônicas a partir do

29 Bloch afirma que “a instituição do Estado como tal é mantida graças à divisão econômica dos homens, a qual foi estabelecida logo após o comunismo primitivo.” (tradução livre), op. cit., p. 274). 30 ENGELS, F. op.cit, p. 176. 31 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1981, pp. 115/116. 32 É claro que tal processo deu-se paulatinamente, à medida que foram se alterando as bases sociais.

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escravismo. O patriarcado já havia superado o matriarcado33. Considerando, porém,

que as transformações históricas ocorrem, primeiro, como processos cumulativos

(havendo, certamente, “saltos de qualidade”, mas apenas nos momentos de ruptura

revolucionária entre modos de produção), remanesceram, mesmo no patriarcado

escravista regido pelo Estado, condutas religiosas oriundas do antigo sistema

familiar. Assim, por exemplo, os escravos passavam a fazer parte da família do seu

senhor e, nessa condição, tinham que render culto aos deuses domésticos destes.

Eram integrados, portanto, na religião familiar, ao preço de não terem sua liberdade

e identidade anteriores. Sua vida passava a ser, inclusive espiritualmente, ligada à

do seu senhor34.

Essa “miscigenação” de regimes refletia-se na sociedade: o

regime familiar ia progressivamente se abrindo ao espaço social, mas velhas

práticas continuavam e continuariam por muito tempo em vigor. Assim é que a

religião, antes praticada no seio doméstico e prestada aos deuses familiares, ganha

uma dimensão geral, abrangendo toda a sociedade com a concentração de poder no

Estado.

Toda a estrutura social foi modificada, mas a base da orientação

das pessoas seguiu sendo a religiosa. “A idéia religiosa foi, entre os antigos, o sopro

inspirador e organizador da sociedade.”35 Daí porque as primeiras formações

estatais caracterizaram-se pelo escravismo e pela teocracia. Os Estados antigos

exerciam seu poder e sua autoridade sobre os habitantes do seu território36

aplicando-lhes a lei temporal e atuando também como instância religiosa.

Todas as grandes civilizações da Antigüidade basearam-se, em

graus maiores ou menores, no trabalho escravo ou semi-escravo. Roma

universalizou em seus vastos domínios esse modo de organização da sociedade e

da economia e até a Grécia, conhecida como berço da democracia, também foi uma

33 Veja-se o que disse o historiador Fustel de Coulanges, op. cit.,p. 92: “Graças à religião doméstica, a família era um pequeno corpo organizado, uma pequena sociedade com o seu chefe e o seu governo. Coisa alguma, na nossa sociedade moderna, nos dá uma idéia deste poder paternal. Nesta antigüidade, o pai não é somente o homem forte protegendo os seus e tendo também a autoridade de fazer-se obedecer: o pai é, além disso, o sacerdote, o herdeiro do lar, o continuador dos avós, o tronco dos descendentes, o depositário dos ritos misteriosos do culto e das fórmulas secretas da oração. Toda a religião reside no pai.” E todo o sistema social residia na religião. O senhor, o pai e marido era, portanto, o centro da autoridade das sociedades patriarcais primitivas. 34 COULANGES, F., op. cit., pp. 117/118. 35 idem, p. 137. 36 Deixamos de usar o termo ‘cidadão’ porque tem conotação restrita, que não se aplicava a todos os habitantes das Cidades ou Estados antigos.

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sociedade escravista.

Havia uma verdadeira fusão entre as dimensões civil e

transcendental. A vida cotidiana era marcada pelos ritos e obrigações religiosas e

isso determinava o convívio social. Segundo Fustel de Coulanges:

O Estado antigo não obedecia a um sacerdócio, mas à sua própria religião, que era quem o sujeitava. Este Estado e esta religião achavam-se tão inteiramente confundidos um no outro que se torna impossível não só fazer uma idéia de conflito entre ambos, como até diferençá-los entre si.

37

Esse modelo civilizatório em que o Estado e a religião estão

interligados teve o condão de penetrar em todas as esferas da vida humana, do que

adveio um modelo de Estado forte, ao qual tudo e todos se subordinavam e que

representava a totalidade, a autoridade, a onipotência. O cidadão (e também

aqueles que não eram cidadãos) estava em tudo sujeito às ordens estatais, de

natureza a um só tempo laica e mística.

A autoridade estatal antiga afigurar-se-nos-ia hoje insuportável,

tamanha a sua ingerência na esfera individual. Por isso mesmo, não se concebia a

idéia de direitos ou liberdades individuais na Antigüidade. O imperioso era obedecer

ao Estado, que detinha um poder absoluto acima dos seus integrantes; poder sobre

suas vidas, inclusive.

Dois exemplos ilustram esse poder ilimitado:

- Quando Herodes recebeu a notícia de que havia nascido um rei

entre os judeus e tendo ficado receoso de perder o poder, estimou

aproximadamente a data em que tal fato deveria ter ocorrido e determinou a morte

de todas as crianças de até dois anos em seu reino, a fim de eliminar o possível

futuro rei dos judeus38. Sua ordem foi cumprida, com a morte de milhares de

crianças em nome do poder e da autoridade do chefe de Estado.

- Outra passagem histórica notável é a do julgamento de

Sócrates. Acusado de corromper a mocidade, foi condenado à morte e, mesmo

sabendo-se inocente, acatou a decisão que o ordenou suicidar-se mediante a

ingestão voluntária de cicuta. Sócrates tinha consciência da injustiça da sua

condenação, mas aceitou-a e recusou-se a fugir, como lhe haviam aconselhado

37 COULANGES, F., op. cit., p. 175. 38 Mt, 2: 1-18.

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alguns amigos, em respeito à autoridade do Estado, em observância justamente às

normas que ele havia sido acusado de desprezar.

A noção de liberdade dos povos antigos difere, pois, radicalmente

da atual, pautada pela Modernidade39. Tal liberdade antiga seria vista, hoje, como

submissão ao despotismo. Seu caráter coletivo contrapõe-se frontalmente à noção

individualista da liberdade moderna e não comporta a idéia de garantia ou de direitos

fundamentais individuais40. Não havia um núcleo básico de direitos ínsitos ao ser

humano. Ao contrário, lícito era tudo o que emanado do Estado, autoridade

suprema. A moral era o que ditado pela autoridade pública.

Também os conceitos de felicidade e de justiça só encontravam

significado se considerados na coletividade. A felicidade individual e a medida do

justo eram aferidas pela medida do bem-estar geral. Somente no meio social o

indivíduo se tornava pleno. A liberdade antiga, portanto, era um atributo de natureza

política41, não individual.

Esta liberdade grega, medida pela polis e que atrela os homens à própria polis, faz entender, como preceito fundamental da liberdade antiga, a igualdade. A liberdade antiga se exerce na polis, pela política, mas políticos são homens iguais entre si. A igualdade, no fundo, é a balança da liberdade antiga, é seu alicerce. Os diferentes – escravos, mulheres, estrangeiros – não são livres e, pode-se dizer, não o são porque são diferentes. (...) O virtus in medium que os medievais extraem como bordão aristotélico quer também dizer respeito à impossibilidade de justiça, de virtudes e de liberdade nos extremos, nos desiguais. A liberdade é para os que não destoam, os que não estão nos extremos, mas estão no mesmo meio.

42

Entre os antigos, a noção de direito era vinculada à prática da

eqüidade, amparada no senso de justiça (segundo o entender das classes

dominantes) a ser aplicado a cada caso. A Régua de Lesbos significava o uso de

medidas diversas a depender das circunstâncias 43. Privilegiava-se a justiça (do

mesmo ponto de vista acima) in casu em desfavor da aplicação técnica das normas,

pois a compreensão de direito ligava-se ao justo, não ao legal.

39 Examinar-se-á com mais vagar, adiante, essa diferença entre a liberdade dos antigos e a dos modernos. 40 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7ª edição, 2ª tiragem – São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 147. 41 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito e Filosofia Política – a Justiça é possível. São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 43. 42 idem, p. 44. 43 MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 37.

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Os Estados antigos que formam a base da civilização ocidental,

Grécia e Roma especialmente, legaram à contemporaneidade instrumentos que até

hoje se mantêm em vigor, com a contradição interna a eles inerente.

É lugar-comum a afirmação de que a democracia nasceu na

Magna Grécia, que concebeu e praticou o governo do povo pelo povo. É preciso,

porém, observar os limites e as circunstâncias de tal prática.

À época da democracia ateniense, só uma parte, minoritária, dos

seus habitantes eram considerados cidadãos44; portanto somente estes tinham

direito a voz e voto no que diz respeito à condução dos negócios públicos. O berço

da democracia praticava-a de forma restrita, pois as mulheres, os escravos e os

estrangeiros estavam excluídos das deliberações sobre os negócios públicos, o que

limitava as discussões da Ágora apenas aos atenienses que fossem livres (logo,

proprietários) e do sexo masculino.

Para poderem dedicar-se ao exercício da condução da Cidade, os

gregos relegavam aos escravos a realização dos trabalhos manuais, pesados,

considerados ocupação inferior. Ao homem educado, proprietário, ao senhor, enfim,

estava reservado o trabalho intelectual, especialmente a organização da polis.

Essa radical separação entre os cidadãos e os não-cidadãos,

sendo apenas àqueles permitido o exercício e a deliberação sobre a vida na polis

permite a conclusão de que a concepção grega de democracia era a de um governo

feito pelo povo, (leia-se: pelo conjunto dos membros masculinos das classes

dominantes), mas não para o povo em geral (idéia, aliás, que somente irá aparecer

séculos mais tarde no pensamento ocidental45), mas sim segundo os interesses

daquela pequena parcela dominante.

Com os gregos inaugurou-se o pensamento racional e uma teoria

também racional do Estado46. Não obstante o afirmado acerca da imbricação entre

Estado e religião, é certo que os gregos puseram-se a pensar sobre o Estado e sua

relação com o indivíduo, o que não quer dizer que todas essas teorias racionais

44 ARISTÓTELES, A Política. 2ª edição, 3ª tiragem – São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002, pp. 41/47. 45 MERQUIOR, José Guilherme. Da Democracia entre os antigos e modernos. O Estado de São Paulo, São Paulo, 25 jan.1981. Disponível em: http://jgmerquior.motime.com/. Acesso em 26 mai.2008. 46 CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. São Paulo: Códex, 2003, p. 75.

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tivessem encontrado lugar na prática, ou que o pensamento mítico e mágico tivesse

sido deixado de lado47.

Os romanos, também escravistas, tinham uma sociedade que

guardava muitas semelhanças com a grega no que diz respeito à organização

social, inclusive quanto à divisão social de trabalho. Curioso, contudo, observar que

os romanos, à exceção do direito, poucas contribuições deixaram na esfera

intelectual48. Voltada para o exercício da dominação de outros povos e conquista de

territórios, Roma produziu, por esse motivo, instituições jurídicas refinadas e grandes

obras de engenharia civil. Tal fato não deve ser visto como mera coincidência; ao

contrário, a relação é clara e auto-explicativa. O Estado romano era escravista e

imperialista, empenhado na conquista de mais territórios para o saque, o comércio e

o recolhimento de tributos, numa sociedade marcada por profundas diferenças

sociais (escravos e senhores; patrícios e plebeus; cidadãos e estrangeiros) e de

gênero, refletidas no exercício (limitado) da cidadania. Por caracterizar-se como um

Estado em que o comércio já estava razoavelmente desenvolvido, fazia-se

necessário construir estradas, pontes e realizar obras de infra-estrutura, além de

regular as relações comerciais, tudo a fim de assegurar as complexas relações de

troca que desenvolveram em escala global (a seu tempo). Ou seja: como sói

acontecer, a superestrutura intelectual produzida por uma sociedade corresponde,

em última instância, às necessidades suscitadas pela infraestrutura das relações

sócio-econômicas nela predominantes.

A relação Estado-indivíduo na Antigüidade, em síntese, foi

marcada pela forte presença do ente estatal e pelo sentido coletivo da vivência

social. Não obstante a exclusão da maior parte da população e, portanto, da limitada

concepção de democracia e algo restrita noção mesmo da liberdade entre os

antigos, é de se realçar o aspecto mais significativo nesse momento histórico: era a

coletividade (das classes dominantes), e não a individualidade, que se afirmava

como medida axiológica.

47 CASSIRER, E., O Mito..., op. cit., p. 78. 48 BEER, Max. História do Socialismo e das Lutas Sociais. 1ª edição, 2ª reimpressão – São Paulo: Editora Expressão Popular, 2007, p. 17.

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3. Nostalgia do Paraíso perdido

As classes subalternas das primeiras sociedades organizadas sob

o poder de mando do Estado lembravam com nostalgia os velhos tempos, ainda

preservados pela cultura oral, em que se vivia de forma coletiva e tribal, a

propriedade não era privada e os negócios comuns, coletivos, eram decididos

diretamente pelo povo. Falava-se numa perdida Idade de Ouro49, marcada pela

liberdade e pela igualdade entre os homens.

A concepção primeira de direito natural remete a essa fase da

convivência humana igualitária, concepção criada pela razão humana de acordo

com um estado da natureza ditado por inspiração divina, em que reina o bom e o

justo. Quando já existente a instituição estatal, tal doutrina voltava ao passado,

buscando reaver a ordem natural das coisas, livre de órgãos superiores a ditar

normas.50 Em que pese o fato da concepção metafísica e meramente cerebrina

dessa teoria de direito natural, o que é preciso destacar é a consciência da

desigualdade social reinante, bem como do desejo da volta a uma sociedade

comunal.

Esse desejo nostálgico de retorno a uma espécie de paraíso

perdido, encontrado nos judeus antigos51, bem como nos gregos52 e romanos53,

fazia-se acompanhar por uma condenação moral do seu tempo, ao lado de uma

exaltação dos tempos idos.

No relato bíblico, a expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden

acompanhada da condenação divina: “ganharás o teu pão com o suor do teu

rosto!”54 parece estar em paralelo à idéia do comunismo-paraíso perdido e ao

momento em que o trabalho passa a ser visto como maldito, indigno e opressivo.

Não por acaso, a escravização do homem pelo homem remete ao fim das

sociedades comunais gentílicas e introduz a idéia do trabalho como maldição,

castigo. Não é mais a faina que satisfaz as necessidades e com isso liberta e

desenvolve o homem, mas o fardo que escraviza.

49 BEER, M., op. cit., p. 15. 50 idem, p. 20. 51 ibidem, p. 27. 52 ibidem, p. 45. 53 ibidem, pp. 105/107. 54 Gn, 3: 1-24.

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A cisão entre a força pública e o indivíduo, bem como a

hierarquização do meio social com suas assimetrias daí decorrentes, produziram

um inconformismo constante e não foram poucas as tentativas, na Antigüidade e

mesmo na Idade Média, de recriação de sociedades comunais e de revolta contra o

Estado.

Destaca-se, entre as experiências de volta a um meio social

eqüitativo, a dos primeiros cristãos. Muitos deles viveram em comunidades

igualitárias, nas quais não existia propriedade privada ou autoridade central superior.

Seguindo várias das exortações de Cristo55, eles procuraram colocar em prática a

vida comunal em que tudo era de todos e não havia diferenças entre os indivíduos,

cabendo a todos trabalhar e receber o fruto do trabalho coletivo segundo sua

necessidade. A experiência, contudo, não resistiu por muito tempo. O

enriquecimento de alguns dentre eles e a assunção do cristianismo à condição de

religião oficial do Império Romano, entre outros fatores, minaram a experiência

coletivista e comunal dos primeiros cristãos.

Segundo aponta Rosa de Luxemburgo, ao tempo do Império

Romano os proletários não viviam da força do seu trabalho (já que não se tratava de

um regime capitalista, mas escravista), e sim da caridade pública. Entre tanta

miséria, foi natural aos despossuídos aderirem à proposta da nova religião cristã,

que acenava com a posse de tudo para todos, com a partilha dos bens, com a

igualdade entre as pessoas – em suma, um verdadeiro comunismo56.

E assim foi feito e praticado por um tempo (séculos I e II)57. As

riquezas eram distribuídas entre todos, a propriedade era comum ao grupo e, a

exemplo do comunismo primitivo, a noção familiar era alargada: eles faziam as

refeições juntos e “sua vida familiar era portanto abolida: todas as famílias cristãs,

numa sociedade, viviam juntas, como uma única grande família.”58 Até quanto à

família, pois, voltou-se ao regime humano original, sem a preocupação patrimonial a

55 De acordo com os Evangelhos, Cristo ensinou e exortou várias vezes aos que o ouviam a não valorizar a posse das coisas terrenas e fez a condenação moral da riqueza: “Então, disse Jesus a seus discípulos: Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus. E ainda vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.” (Mt, 19; 23-24). Em outra passagem, quando um jovem rico pergunta a Jesus o que deve fazer para segui-Lo, Ele responde: “Vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; então, vem e segue-me.” (Mc, 10; 17, 21). 56 LUXEMBURGO, Rosa de. Socialismo e as Igrejas. Disponível em: www.mra.org.br, pp. 2/3. Acesso em 2 dez.2007. 57 idem, p. 4. 58 idem, p. 4.

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forjar e limitar os seus laços apenas ao núcleo diminuto que engloba pais, mães e

filhos.

Tais comunidades, entretanto, não conseguiram prolongar a

experiência comunal. É que, na sociedade escravagista, os trabalhadores que não

fossem escravos viviam da esmola pública, nada possuindo de seu, e a

coletivização dos bens no seio das comunidades cristãs não abrangia os meios de

produção, mas apenas os bens de consumo, de maneira que a verdadeira fonte da

riqueza continuava em mãos dos proprietários. Assim, aos poucos, e com o

crescimento e dispersão territorial dos cristãos, a vivência comunal com partilha de

bens não conseguiu mais se manter. As refeições comuns deixaram de ser feitas

entre todos, permanecendo o hábito apenas entre os mais pobres; os que haviam

enriquecido deixaram de dividir os seus bens de consumo (porque os meios de

produção não haviam sido divididos) e passaram a dispensar apenas o supérfluo ao

grupo. A desigualdade social impôs-se; a fratura foi inevitável.

Enfim, a experiência falhou por não ter atentado para a

necessidade da coletivização dos meios de produção de riquezas, ao invés da

divisão apenas dos seus frutos. Da maneira como praticado o comunismo entre os

cristãos, os escravos continuaram a sustentar a sociedade por meio de seu trabalho,

inclusive a comunidade cristã, e esse modelo foi, por óbvio, incapaz de reformar a

sociedade, pois não atacou as bases do seu modelo produtivo. Assim é que

no coração do comunismo cristão, apareceu a diferença análoga à que reinava no Império Romano e contra a qual os primeiros cristãos tinham combatido. (...) Os pobres viviam das esmolas atiradas pelos ricos e a sociedade tornou-se outra vez naquilo que tinha sido. Os cristãos não tinham mudado a vontade dos ricos.

59

Todas as tentativas teóricas ou práticas de resgate de um

passado áureo, contudo, não conseguiram extinguir ou alterar a natureza da

instituição estatal, que manteve suas características fundantes, pois a estrutura

social baseada na divisão em classes sociais, malgrado as diferenças históricas com

que se apresente, permaneceu e permanece ainda vigente.

59 LUXEMBURGO, R., op. cit., p. 4.

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CAPÍTULO II – Estado – Origens e Fator de Poder

1. Considerações sobre as origens e concepções do Estado

A gênese do estado deveu-se à necessidade, por parte do grupo

social dominante, da criação de um ente superior às classes em antagonismo,

pretensamente neutro, a fim de “pacificar” o meio social, mas na realidade atuando

em prol daquele60.

Com ser assim, o estado tem também a característica de ser uma

força destacada da maioria da população, pois supostamente encontra-se distante

das paixões sociais, pairando acima delas. É um poder superior à população e, no

mais das vezes, contrário à maioria subalterna. A passagem do modelo gentílico

para o patriarcal marcou o fim do exercício direto do poder e, também, do uso das

armas pela comunidade – admissível apenas em um meio social homogêneo –, que

foi substituído pela força armada: exército, polícia, militares, etc., encarregados de

proceder à segurança pública interna e externa. Outrora, esta era exercida

diretamente pela população, mas o modelo não mais se revelou possível em uma

sociedade cindida internamente, sob pena de guerra civil entre os diferentes setores

sociais.

Essa conformação estatal como poder autônomo e destacado do

povo tem relação com a gênese dos direitos humanos, na medida em que os direitos

humanos ditos de primeira geração61 dirigiam-se contra o estado, na forma das

chamadas liberdades negativas que requeriam apenas a abstenção deste a fim de

permitir o exercício das liberdades individuais dos cidadãos.

O que importa aqui fixar é que o estado, como expressão da não-

conciliação entre classes sociais antagônicas, reflete e expressa os interesses do 60 Afirma Lênin: “Para Marx,o Estado não poderia surgir nem subsistir se a conciliação das classes fosse possível. (...) Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra; é a criação de uma ‘ordem’ que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes.” . V. LÊNIN, Vladimir. O Estado e a Revolução. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2007, p. 25. 61 O uso da classificação dos direitos humanos em gerações é aqui utilizado apenas por ser facilmente identificável, por já consagrado. Não concordamos, porém, que haja distintas gerações de direitos humanos, em face de sua indivisibilidade, universalidade e interdependência, o que será visto com mais vagar adiante.

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grupo dominante e se enfeixa numa força que se volta, com o aparato das armas e

da autoridade pública, contra as outras parcelas sociais submetidas àquele62. Daí

porque as primeiras lutas por direitos humanos, encetada sob o comando da

burguesia ascendente, voltaram-se não diretamente contra as classes dominantes,

mas contra o ente institucional que as representava e agia por elas.

O estudo contemporâneo do estado, especialmente nos bancos

das faculdades de direito, repete geralmente o mesmo mantra: estado é povo, poder

e território soberanos. As críticas a esse discurso não são o objetivo imediato aqui,

mas sim a observação do liame entre esse conceito ainda transmitido no século XXI

e as origens da forma estatal.

Vejam-se os três elementos: o poder estatal é o braço que atua

como instrumento nas mãos das classes dominantes para legitimar e manter tais

relações (de dominação63 – escravidão antiga, servidão feudal ou trabalho

assalariado, que se sucederam ao longo do tempo); é a longa manus dos detentores

de riqueza e dos meios de produção.

O povo (leia-se: os que não possuem meios de produção) é a

parcela da população que sofre os efeitos da ação do estado, a que tem que ser

contida, mas serve aos anseios e necessidades da classe superiormente colocada,

especialmente quanto à produção.

Por fim, o território é o elemento estatal que explica seu

surgimento no contexto do advento da propriedade privada. Ora, os primeiros

proprietários, ao se apropriarem da terra, cercando-a e delimitando-a, verificaram

que, para produzirem os excedentes a fim de trocá-los, necessitavam de mão-de-

obra para nela trabalharem. Diante disso, passaram à escravização dos seus

semelhantes, fosse mediante o uso direto da força (escravização de prisioneiros de

guerras ou de membros seqüestrados de tribos rivais), fosse mediante a instituição,

muito conhecida na Antigüidade, da perda da liberdade pessoal por dívidas.

Com a fixação do homem à terra, fez-se necessária a

regulamentação da atividade produtiva. O estado encarregou-se de tal tarefa e, para

62 “Poderes visíveis são menos temidos que os invisíveis. O Estado está entre os últimos, especialmente depois que os fantasmas desapareceram. Ele se mostra na suprema claridade na polícia, nas prisões e soldados, mas nenhum desses é o Estado; eles apenas o representam. Eles emprestam peso ao Estado; atrás deles um comitê da classe dominante está em ação, que o enquadra como o representante universal.” (tradução livre) Cfr. Ernst Bloch, op. cit., pp.267/268. 63 JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado.1ª edição. Buenos Aires: B de F Editor, 2005, pp. 251 e 254.

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ser efetivo o seu poder de mando, imperioso era que sua autoridade abrangesse as

unidades territoriais dos proprietários, submetidas às regras impostas. Assim, em

conseqüência da privatização da propriedade (que até aquele momento fora

comunal), é que o território passou a (e precisou) ser elemento constitutivo do

estado.

Determinado de uma manera más concreta el Estado, diríamos que consiste em relaciones de voluntad de uma variedad de hombres. Forman el substrato de este Estado hombres que mandan y hombres que obedecen, pero el Estado posee además um territorio; mas si se considera el fondo de las cosas, se vendrá a reconocer que este territorio es um elemento que va adherido al hombre. La propriedad de ser sedentario es algo que va unido ao hecho de vivir los hombres en un Estado, y todos los efectos jurídicos del territorio (...) tienen su raiz em la vida interna de los hombres: por conseguiente, prescindiendo del sujeto humano, no hay territorio, sino sólo una parte de superfície de tierra.

64

A idéia de estado foi construída a partir de necessidades muito

concretas e finalidades também específicas, já vistas. Longe de ser um dado natural,

inevitável, atemporal ou ideal, o estado é uma realidade histórica e concreta que só

encontrou e encontra o fundamento de sua existência porque as razões que lhe

justificaram o surgimento se mantêm. Alteradas essas circunstâncias, naturalmente

alterar-se-á também a forma de organização do poder político que lhes corresponde

– ou o próprio poder “político” classista – perderá a razão de ser. Contudo, esta

forma de compreender o Estado só afloraria no embate com as concepções

idealistas prevalentes até o século XIX, como ver-se-á adiante.

II.1.a – Metafísica Kantiana

Kant formulou uma teoria em que procurou mesclar a metafísica

com a racionalidade iluminista, e o fez dando um passo à frente do jusnaturalismo

difundido em sua época, pois substituiu a idéia transcendental calcada na Revelação

pela noção de uma verdade universal e eterna, a ser conhecida pelos homens65. A

partir dos imperativos categóricos, considerou que cada indivíduo, fazendo uso de

64 JELLINEK, G., op. cit., p. 250. 65 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução à Filosofia do Direito. 2ª edição – São Paulo: Editora Atlas, 2005, p. 63.

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sua própria razão (em um processo subjetivo e pessoal) atingisse um critério

universal, válido para todos. Diante da difícil questão de uniformizar o que seria

apreendido por todas as pessoas, isoladamente, em nome de razões individuais,

Kant aduziu que o resultado dependia da boa vontade. Esta, em última análise, seria

a responsável pela construção, por todos ao mesmo tempo, mas de forma pessoal,

de uma moral universal e de uma legislação a todos aplicável66.

O pensamento kantiano está impregnado da idéia de

universalidade. Se a Razão superior irá ditar a todos os homens as mesmas leis –

se todos tiverem boa vontade – então as leis serão iguais para todos e pode-se

pensar em uma sociedade universal. Seguindo esse raciocínio, Kant via no estado o

espaço determinado pelo acordo entre os componentes da sociedade civil67. Nesse

ponto, foi influenciado por Rousseau, e acreditava no contratualismo como

fundamento do estado. Assim, pode-se compreender as seguintes considerações de

Kant:

Um ensaio filosófico que procure elaborar toda a história mundial segundo um plano da Natureza, em vista da perfeita associação civil no gênero humano, deve considerar-se não só como possível, mas também como fomentando esse propósito da Natureza.68

II.1.b – Idealismo hegeliano

Essa concepção idealista atinge seu apogeu em Hegel, que

concebeu o estado como realidade última e autônoma, como síntese final do

movimento histórico, capaz de se sobrepor aos indivíduos, mas a serviço deles.

O idealismo hegeliano que prega o estado como o modelo final e

perfeito da razão humana, a realidade da Idéia moral, não subsiste diante do teste

da prática. Se a sociedade se organizar de outra maneira, o estado não terá essa

conformação que tem, posto que fundado em bases relacionadas a essa

organização. Desaparecida a divisão das pessoas em grupos sociais de interesses

conflitantes e extinta a propriedade privada – se e quando isso ocorrer –, não haverá

66 MASCARO, A., Introdução..., op. cit., pp. 59/63. 67 idem, p. 69.

68 ibidem, p. 67.

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condições de sobrevivência do estado, pelo menos não da forma e com a natureza

com que hoje é conhecido.

A concepção a-histórica do estado, da qual decorre idêntico

entendimento quanto ao direito, não é neutra. Ao fim e ao cabo, afirmar que o estado

e o direito representam a organização social em nome do bem comum, ou do

interesse público, significa prender-se a uma concepção idealista de ambas as

instituições, entendendo-as como manifestações de uma idéia superior voltada para

a realização de um mundo justo e equilibrado.

Se essa Idéia é a base e a direção, o princípio e o fim, então nada

mais resta aos cidadãos que esperar que se cumpra o que está predestinado a

ocorrer a seu tempo: o advento do bem comum encarnado na Idéia. Nessa

concepção, estado e direito parecem fundar um conjunto atemporal. O estado

existiria para ordenar o meio social comunitário e o direito seria o seu instrumento

para tanto, o que aconteceria de forma inevitável, de maneira a implementar a razão

– uma “razão” igualmente universal e impermeável a interesses e contradições de

classes. Em ambos estaria presente o intuito de efetivação do interesse público,

pairando acima dos interesses individuais considerados isoladamente.

O pensamento hegeliano guarda profundas afinidades com o de

Aristóteles, de quem sofreu influências. A descrição aristotélica da cidade grega, em

que a dimensão coletiva da vida determinava o ser individual69, o zoon politikon, é

retomada por Hegel de maneira que, para ambos, o todo precede as partes, ou seja,

a totalidade representada pelo estado antecede a concepção do indivíduo, e a idéia

de felicidade tem lugar na relação com os demais sob a autoridade do estado70.

A idéia de um estado forte, ordenador da sociedade e promotor do

bem comum acabou sendo deturpada historicamente por correntes políticas que

fizeram da teoria hegeliana a expressão do horror que seu criador certamente

rejeitaria. O estado forte, fim último da História, foi utilizado por fascistas e nazistas

para o autoritarismo centralizado e a supressão do indivíduo, interpretação

certamente não prevista e não almejada por Hegel.

Por mais que pretendesse manter-se vinculado à prática – o real é

racional, e o racional é real –, o pensamento de Hegel era, ainda, profundamente

idealista, pois o estado final, o ponto alto da racionalidade, correspondia à

69 VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, pp. 166/169. 70 ARISTÓTELES, op. cit., p. 1.

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plenificação da Idéia, ainda que, para atingir tal ponto, a síntese última, tivesse que

ser percorrido o caminho dialético71.

Essa concepção hegeliana de estado ajustou-se perfeitamente ao

modelo social e político do capitalismo triunfante. A idéia do estado como ente

eqüidistante dos conflitos sociais, teoricamente neutro e superior à realidade terrena

não só mantém a cisão entre a ordenação política e a sociedade real, de todo

conveniente ao modelo de legalidade universalista burguês, como também coloca o

estado burguês no lugar desse ente superior e justo, dotado de toda eticidade72.

Hegel percebeu com mais profundidade do que suas contrapartes francesas e inglesas as tarefas políticas e ideológicas fundamentais que o Estado deveria desempenhar na nova sociedade, tarefas que não podiam ser cumpridas nem pelos mercados nem pela sociedade civil. A lógica destrutiva do capitalismo, baseada na potenciação dos apetites individuais e do egoísmo maximizador de lucros, requer um Estado forte, não por acaso presente em todos os capitalismos desenvolvidos, para evitar que tal lógica termine sacrificando a sociedade toda em função do lucro do capital. Hegel é, precisamente, quem teoriza sobre essa necessidade absolutamente passada por alto pelos clássicos do liberalismo político. Por isso Hegel é, tal como coloca Hans-Jürgen Krahl, “o pensador metafísico do capital [...] o disfarce idealista e metafísico do regime capitalista de produção” (Krahl, 1974: 27).73

É verdade que Hegel enxergou com clareza a existência de

classes sociais antagônicas na sociedade capitalista, e denunciou sua

irreconciliabilidade nesse modelo econômico-social74, mas apontou como forma de

solucionar o conflito a atuação do estado da forma como descrita; solução

completamente inadequada para resolver o problema, pois que é parte indissolúvel

do próprio problema.

II.1.c – Materialismo Histórico de Marx

71 MASCARO, A., Introdução..., op. cit., pp. 79/80. 72 BORON, Atilio A. Filosofia Política e Crítica da Sociedade Burguesa: O legado teórico de Karl Marx. In: BORON, Atilio (org.). Filosofia Política Moderna – de Hobbes a Marx. Buenos Aires/São Paulo: Editora CLACSO, 2006, pp. 295/296. 73 idem, p. 296. 74 ibidem, p. 304.

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Em Marx, o idealismo cede lugar à prática. Apropriando-se da

dialética hegeliana, mas tirando-a do curso determinado pela Idéia, Marx concebeu o

materialismo histórico, que é a dialética materialista posta a serviço da compreensão

da História, do mundo real e de seus antagonismos. Ou seja, não mais tendente a

fazer cumprir um destino traçado superiormente que representa o bom e o justo,

mas calcada sobre os percalços, conflitos e limites históricos.

Marx fez a crítica da filosofia do direito de Hegel, combatendo o

conceito de estado como ponto alto da ética e da racionalidade bem como a

representação do altruísmo universal, para onde convergiriam os interesses gerais

da sociedade. Denunciou, ainda, o caráter irremediavelmente classista daquele75. A

inversão que Marx efetuou no pensamento hegeliano afastou a idéia do estado

como resultante da vontade comum e depositário da ética e da moral e o apresentou

como instrumento alienante em favor da manutenção da exploração de uma classe

social pela classe dominante. Marx retirou todos os atributos nobres e sublimes,

quase religiosos, conferidos ao estado, e desnudou sua verdadeira atuação e

finalidade76.

A filosofia assumiu o caráter temporal, livrando-se das categorias

e das idéias que se pretendiam eternas e universais. O materialismo histórico põe

também a filosofia nos vagões que correm nos trilhos da História e, portanto, da

impermanência. A compreensão histórico-filosófica marxiana revela apenas uma

perenidade: a do movimento, do eterno devir. O materialismo dialético encarrega-se

de demonstrar o caráter precário e datado dos fenômenos históricos e das

instituições e categorias sociais: por mais duradouros que sejam ou que possam ter

sido, o certo é que não serão eternos.

Para Marx, a História é – antes de tudo, embora não

exclusivamente – a história da luta de classes, e o estado é o espaço onde se

enfrentam os antagonismos sociais e a expressão desses antagonismos.

Eis, expressa com toda a clareza, a idéia fundamental do marxismo no que concerne ao papel histórico e à significação do Estado. O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis.

77 75 BORON, A., op. cit., p. 298/300. 76 idem, p. 310. 77 LÊNIN, V. op. cit., p. 25.

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De acordo com a concepção marxista, o estado se tornará inútil e

desnecessário, uma vez atingido o estágio superior de uma sociedade sem classes,

o que daria início à história humana, que se seguiria à pré-história que compreende

todo o período em que a humanidade se dividiu em classes distintas. Segundo

Lênin, “um Estado, seja qual for, não poderá ser livre nem popular”, afirmação

repetida diversas vezes por Marx e Engels78.

Desaparecidas as divisões internas do grupo social, e não

havendo mais, no terreno econômico, graves conflitos de interesses entre

segmentos distintos, então o estado, enquanto aparato de domínio sobre a

sociedade, iria, aos poucos, tornando-se dispensável, passando mesmo a cumprir

função de entrave ao livre desenvolvimento dessa sociedade igualitária. Assim, a

concepção de História e de sociedade predominantes no pensamento marxista

conduz, à força da lógica, para a futura eliminação do estado79, não para sua

adaptação a uma sociedade comunista. Como fazê-lo permanece sendo o grande

desafio em aberto.

O jurista soviético Eugeni Pachukanis debruçou-se sobre o estudo

da questão do direito80 e do estado, tais como existentes hoje, e concluiu tratarem-

se de instrumental típico de um modo de produção econômica, o capitalismo. Ao

lado de uma legalidade universalizante – o direito –, o Estado atua como terceiro

supostamente imparcial e neutro, de forma fetichizada.

Pachukanis insistiu no ponto da formulação do estado como

expressão da classe dominante e lançou uma questão desafiadora81: se assim é,

por que a dominação não se mostra abertamente, por meio da sujeição privada,

pessoal e direta, como nos anteriores modos de produção conhecidos no Ocidente

(escravismo e feudalismo), mas utiliza-se de um aparelho de poder público

impessoal?

A resposta não está, no entender de Pachukanis, na questão

ideológica, o que não significa que ele não reconheça a utilização também

ideológica do poder do estado. A resposta, para ele, tem um sentido mais

78 LÊNIN, V. op. cit., p. 37. 79 idem, pp. 56/58. 80 O problema da legalidade será objeto de análise em capítulo posterior. 81 PACHUKANIS, Evgeni Bronislanovich. A teoria geral do direito e marxismo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1989, p. 115.

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profundo.

Em uma sociedade mercantil, onde tudo – pessoas e coisas –

são mercadorias, a “vontade autônoma” dos negociantes é indispensável. Dessa

forma, a coação privada seria completamente incompatível com a “lei do mercado”.

A igualdade jurídico-formal entre todos é, pois, condição sine qua non para o

funcionamento desse mecanismo de trocas a partir da relação de equivalência. Por

isso a coação tem que ser mascarada e provir de uma pessoa coletiva e abstrata,

não personificada82.

Além de permitir a reprodução do sistema capitalista sob a forma

de mediação impessoal, o estado não se afigura, externamente, como expressão

de classe, mas como o espaço da construção do coletivo, do bem comum. Se o

estado é formalmente “neutro”,

o acesso à esfera do Estado só pode ser franqueado pelos indivíduos despojados de sua condição classista - posto que a condição de pertencer a uma classe social não pode ser reconhecida pelo Estado -, e qualificados por uma determinação jurídica: o acesso ao Estado só é permitido aos indivíduos na condição de cidadãos.

83.

A partir desse “despojamento” do ser humano de sua condição

de integrante de uma classe social, seus interesses e suas lutas desvanecem-se

no espaço indistinto do cenário estatal e da disputa política. Com isso, o estado

firma-se como espaço de expressão da classe dominante e cumpre esse papel, ao

argumento de defesa dos interesses gerais. “Tudo se passa, portanto, como se o

Estado, anulando as classes, anulasse com isso a própria contradição, se erigindo

em lugar da não-contradição, onde se realiza o ’bem comum’.”84

Daí a esperança-exortação de Marx para que o modelo estatal

fosse abolido, e não simplesmente apropriado por uma futura sociedade comunal,

posto que somente adequado às formações sociais cindidas em classes

economicamente antagônicas.

A contemporaneidade mantém o elemento estatal e seus

instrumentos legais, materiais e ideológicos. É nesse contexto histórico que os

conflitos de interesses são diuturnamente travados. E se é verdade que não há

82 PACHUKANIS, E., op. cit., pp. 118/119. 83 NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito - um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000, p. 82. 84 idem, pp. 83/84.

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infinitude em nenhuma instituição humana, entre as quais o estado, por outro lado

não se pode negar o aparato de poder nele concentrado. E é com vistas nessa

realidade do estado como fator de poder85 que suas relações com o direito, e mais

especificamente, com os direitos humanos, têm que ser examinadas.

Assim, se é falha e estéril a idéia de que é impossível mudar a

estrutura vigente ao argumento de que “sempre foi assim e assim sempre será”,

também é certo que o estado é dotado de coerção e exerce um papel na sociedade.

Por isso, por ser a mais forte estrutura de poder vigente, é no seu âmbito de poder,

porém contra ele, que têm que se concentrar, em princípio, as ações de resistência.

85 “Naturalmente, somente os tolos alheios ao mundo poderiam pôr em dúvida a realidade do Estado burguês enquanto fator de poder.” V. LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe – estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 471.

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CAPÍTULO III – Herdeiros da Modernidade

Nosso tempo deve muitas de suas instituições à Modernidade. O

modelo de estado e de sociedade hierarquizada ali firmado, e o nascedouro dos

direitos humanos também naquele tempo histórico, fazem imprescindível o

conhecimento, ainda que em linhas gerais, das características da modernidade,

especialmente no quadro jusfilosófico e político.

1. O movimento iluminista86

A ênfase no conhecimento do mundo material esboçada a partir

do Renascimento encontrou seu ponto alto no Iluminismo, e significou o abandono

da teologia como porta-voz de verdades absolutas em favor da razão, ou melhor,

daquilo que ela fosse capaz de apreender. O homem racional, portador da

consciência esclarecida a respeito de si mesmo e da sociedade, seria o artífice do

primado da ordem e do desenvolvimento humanos, livre das amarras do

obscurantismo, da ignorância e do preconceito. O pensamento iluminista depositou

na razão todas as esperanças no futuro de uma humanidade auto-reconciliada87.

A ruptura com o momento anterior deu-se também pelo abandono

da transcendência em favor da prática88. No Iluminismo vicejou a exortação ao agir;

era necessário fazer, transformar o mundo e as instituições humanas. Se

imperfeitas, é porque nelas ainda não haviam soprado os ventos da razão. Com

esta, o mundo caminharia diretamente para uma ordem justa e adequada a todos.

A crença iluminista na racionalidade era tanta que enxergava em

toda a marcha histórica um caminho rumo ao desenvolvimento do ser humano a 86 A menção ao Iluminismo não tem a pretensão de esgotar o tema, por óbvio, nem apresentar o movimento em todas as suas nuances, até porque fugiria ao escopo deste trabalho. A inclusão do tema deve-se à conexão que tem com o ente estatal e com a concepção de direitos humanos, cuja origem lhe é contemporânea. Assim é que o movimento será tratado de maneira geral, exatamente naquilo que tem de fundamental, portanto comum a todas as correntes internas, muitas vezes contraditórias entre si. É na generalidade do Iluminismo, pois, que iremos nos ater. 87 FALCON, Francisco José Calazans. Iluminismo. 4ª edição – São Paulo: Editora Ática - série Princípios, 2004, pp. 42/43, 45. 88 idem, p. 67.

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partir da sua tomada de consciência. Importa fixar o caráter uno e imutável, a-

histórico e não condicionado socialmente com que era concebida a razão89, de

forma a representar uma continuidade, e não uma ruptura ou superação, do sentido

metafísico, embora já racionalista, do seiscentismo europeu, apenas com o vetor

modificado. O primado da razão, pois, fundamentou a sociedade no

antropocentrismo e atribuiu ao próprio homem a missão de conduzir-se em direção à

civilização e ao progresso90. Para tanto, fazia-se necessário abrir as mentes, educar

as pessoas, incutir-lhe os sentidos e valores imanentes, que não admitem acima de

sua própria racionalidade nenhuma autoridade superior.

À razão foram confiadas ilimitadas esperanças. Para o homem

racional não haveria obstáculos à possibilidade de transformação social. O simples

fato de agirem os seres humanos de acordo com seus intelectos e conhecimentos

seria capaz, por si só, de alcançar o progresso e de transformar o mundo,

eliminando dele o sofrimento e o mal. “Tudo seria possível, pois tudo estava ao

alcance da razão humana.”91

A afirmação de que, no Iluminismo, Deus foi substituído pelos

recursos do raciocínio, do conhecimento e da ciência que florescia não é uma

hipérbole. De fato, o Iluminismo criou uma espécie de fé racional e científica, uma

“religião secular, cujo deus é a razão e onde a razão é Deus.“92

Essa simples substituição de “divindades” – do absoluto abstrato

ao científico demonstrável – pode ter significado uma simples troca de altares, não

de postura. Há que se perquirir até que ponto o homem simples (não os luminares

do Iluminismo, os filósofos esclarecidos e aqueles poucos que tinham acesso ao

conhecimento, à universidade etc.) enxergou com tanto otimismo a nova era de

“iluminação” quanto os seus mentores intelectuais. O fato é que, mesmo algo

distante e mal compreendido pela maior parte da população iletrada93, o movimento

iluminista está no nascedouro das revoluções burguesas, especialmente da

Revolução Francesa e, por esse motivo, teve o poder de influenciar diretamente um

movimento que acarretou profunda alteração na ordem social, política e humana do

Ocidente e, a longo prazo, de todo o mundo.

89 CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. 3ª edição – Campinas: Editora da Unicamp, 1997, p. 23. 90 FALCON, F. op. cit., pp. 59/61. 91 idem, p. 76. 92 ibidem, p. 40. 93 ibidem, p. 26.

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O novo no Iluminismo não foi, propriamente, a criação de uma

corrente filosófica que primasse pela originalidade, mas uma nova maneira de

pensar e analisar o mundo94, um método a partir do qual se podia chegar mais longe

do que até então fora possível no conhecimento do mundo material. Esse método foi

o utilizado para o conhecimento das ciências da natureza. O método analítico

newtoniano percorria caminho inverso ao dos sistemas filosóficos do século XVII: em

vez de partir dos princípios gerais a priori formulados para, por meio da dedução,

enquadrar o fenômeno, iniciava-se pela análise do fato para descobrir os princípios

fundamentais desse fato95.

Esse espírito de análise, de observação, de perquirição em busca

da verdade foi eleito o sistema por excelência do Iluminismo, e transposto para as

ciências sociais96. A naturalização da sociedade, vista sob uma espécie de

microscópio social, sujeita à observação e análise daquilo que é, como são os fatos

e elementos da natureza, não é isenta de conseqüências sobre essa mesma

sociedade, nem sobre o conhecimento que, com semelhante método, sobre ela vier

a ser adquirido.

O exame dos fenômenos naturais deve-se fazer sem paixão ou

embate de valores, uma vez que se presta a revelar efetivamente as coisas como

são, sempre foram e sempre serão. Assim é que se dá com as leis da natureza.

Transposto o método para a análise da vida social, surge de imediato a idéia da

imutabilidade da ordem posta. Se a sociedade é analisada sem qualquer conotação

axiológica, finalística ou moral, isso significa que seu exame limitar-se-á ao

conhecimento do que é, de forma estática, como se, também aí, se estivesse na

presença de leis imutáveis concernentes a uma realidade atemporal. A diferença

entre natureza e sociedade não foi levada em conta quando da mera transposição

do método analítico para as ciências sociais. Ao reduzir o mundo do humano ao

puro fisicalismo com que se olhava para o mundo natural – método que Augusto

Comte sistematizou e chamou de positivismo – limitou aquele a uma única

dimensão, empobrecendo-o por retirar-lhe “a riqueza da subjetividade humana, que

se efetiva historicamente na práxis objetiva da humanidade.”97.

94 CASSIRER, E. A Filosofia..., op. cit., p. 32. 95 idem, pp. 24/25. 96 ibidem, p. 270. 97 KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. 2ª edição – Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1976, pp. 24/25.

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O positivismo, portanto, extravasou os limites da investigação

científica do mundo natural e passou também a ser o modelo epistemológico

utilizado para o desvendar do mundo social.

Que o diga o próprio Auguste Comte:

Entendo por Física Social a ciência que tem por objeto próprio o estudo dos fenômenos sociais, considerados com o mesmo espírito que os fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto é, como submetidos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é o objetivo especial de suas pesquisas. (...) Considerando sempre os fatos sociais, não como objetos de admiração ou de crítica, mas como objetos de observação, ocupa-se ela unicamente em estabelecer suas relações mútuas e apreender a influência que cada um exerce sobre o conjunto do desenvolvimento humano. Em suas relações com a prática, afastando das diversas instituições qualquer idéia absoluta de bem ou de mal, encaradas como constantemente relativas ao estado determinado da sociedade, e com ele variáveis, ao mesmo tempo que as concebe como podendo se estabelecer espontaneamente pela única força dos antecedentes, independente de qualquer intervenção política direta. Reduzem-se, pois, suas pesquisas de aplicação, a colocar em evidência, segundo as leis naturais da civilização, combinadas com a observação imediata, as diversas tendências próprias de cada época.

98

A efervescência filosófico-cultural do século XVIII encontrou eco

na agitação da sociedade. O capitalismo ascendente convivia com as velhas leis do

feudalismo, garantidoras de privilégios à nobreza e ao clero, e era com elas

incompatível. O povo era chamado a assumir seu papel na transformação da ordem

das coisas. Nesse quadro de desigualdade jurídica, a “neutralidade” iluminista

quanto ao estudo da sociedade já portava uma tendência transformadora, na medida

em que a neutralidade do exame buscaria contrapor-se ao regime de privilégios99.

Os conflitos sociais decorrentes do declínio feudal e da

consolidação do capitalismo foram recrudescendo. A nova classe social que surgia

como expoente social, a burguesia, reivindicava o fim dos regimes jurídicos

diferenciados que beneficiavam nobreza e clero que, por sua vez, resistiam à perda

do status. O povo, excluído das classes privilegiadas, compunha o chamado

Terceiro Estado, integrado também pela burguesia. Como a diferença social era

então, em primeiro lugar, determinada pelo status de nascimento e não pela renda

ou condição econômica, os donos da nova riqueza (advinda das novas atividades

98 COMTE, Auguste. Opúsculos sobre a filosofia social. Apêndice ao 4º volume da obra de sua autoria Sistema de Política Positiva. In: Comte. Seleção de textos e tradução de Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1983, p. 53. v. 4. 99 TRINDADE, José Damião de Lima. História Social dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora Peirópolis, 2002, p. 111.

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econômicas em substituição à antiga propriedade fundiária, especialmente: bancos,

manufatura em expansão, comércio interno e internacional e tráfico negreiro)

estavam, juridicamente, na mesma condição dos artesãos urbanos, aprendizes

assalariados, trabalhadores livres, artesãos e camponeses.

No desejo de extinguir os privilégios feudais e o Antigo Regime, a

classe burguesa ascendente utilizou-se das bases da revolução científica e filosófica

iluminista, tanto como visão de mundo legitimadora da necessidade da mudança da

ordem, quanto como discurso mobilizador das forças sociais capazes de impulsioná-

la. O pensar racional, o combate ao obscurantismo, à tradição e à autoridade, o uso

da razão como instrumento condutor do homem individual e da sociedade rumo ao

progresso, o uso da análise como método objetivo de aquisição do conhecimento

foram esgrimidos como armas revolucionárias e de incitação ao povo para que

lutasse contra tais instrumentos anacrônicos de organização social, posto que a

razão não se coadunava com a existência de privilégios100.

Essa rejeição à discriminação entre indivíduos pelo só fato do seu

nascimento constituía um dos caracteres do direito natural. Além da eleição da razão

como fonte e fundamento da vida em sociedade – e do direito, por conseguinte –, a

escola jusnaturalista (como o próprio nome indica) buscava na natureza exemplos

de um perfeito funcionamento social. A natureza, considerada perfeita e imaculada,

tornou-se objeto de verdadeiro culto, à moda de uma espécie de religião natural.

Para a classe social em ascensão, tal pensamento era de todo conveniente e

conforme aos seus interesses, pois na natureza não há desigualdades intrínsecas

entre os seres da mesma espécie, de forma que o mundo social deveria seguir-lhe o

modelo, expurgando as diferenças artificiais decorrentes do nascimento existentes

no regime feudal101.

A crença iluminista nas possibilidades da razão conferia ao direito

papel de grande relevo. Acreditava-se que a mente racional produziria as melhores

leis102, capazes de garantir a melhor vida possível ao homem em sociedade. A

ordem nascente, porém, ainda teria que se bater contra dois “inimigos” para que

pudesse, enfim, produzir as leis ditadas pela razão. O primeiro era a teologia e o

assédio religioso, ainda muito fortes no período; o segundo era o absolutismo

100 TRINDADE, J., História..., op. cit., p. 38. 101 BLOCH, E., op. cit., pp. 56,58/59. 102 FALCON, J., op. cit., pp. 68/69.

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estatal. Contra tais obstáculos impunha-se ao direito natural afirmar-se como

expressão de base racional das leis emanadas diretamente da Razão103, ou “a

necessária transcrição de uma Idéia do Direito”, significando que, acima do direito

posto e do homem racional, pairaria um direito ideal104.

Se o direito (nessa concepção) é o correspondente do ideal a ele

transcendente, reveste-se então de características universais e eternas. Novamente

a metafísica aqui se revela. Disso decorre a convicção de que alguns direitos são

“naturais, inalienáveis e sagrados, ‘porque todo o homem os possui pelo próprio

facto de existir, e que ele os pode, pois, reivindicar contra uma ordem social e

política que os menosprezasse’” 105. Não-historicidade, nenhum condicionamento ou

determinismo social – eis o triunfo da metafísica. Mas a realidade social precisava

de mais do que idéias, precisava implementá-las:

O século XVII tinha sido um século metafísico e criara uma metafísica da natureza e uma metafísica da moral. O período do Iluminismo tinha perdido o interesse nessas especulações metafísicas. Toda a sua energia se concentrava em outro ponto, e era não tanto uma energia de pensamento quanto uma energia de ação. As ‘idéias’ já não eram consideradas como ‘idéias abstratas’. Transformavam-se em armas para a grande batalha política. O problema nunca foi descobrir se essas armas eram novas, mas se eram eficazes. E na maioria dos casos provou-se que as mais velhas armas eram as mais poderosas. 106

2. Do jusnaturalismo ao positivismo jurídico

Apesar de seu viés predominantemente metafísico, o direito

natural experimentou significações diversas e não coincidentes ao longo da história.

É preciso um olhar mais cuidadoso sobre esse fenômeno jusfilosófico e político.

Inicialmente, o que os pensadores da Antiguidade chamaram de

direito natural era o direito equivalente ao justo, baseado na ética e realizado na

prática social e na dimensão coletiva do homem, o que se realizava na efetiva

prestação do direito. Direito era agir, fazer, promover a justiça, termo do qual era

103 CASSIRER, E., A Filosofia..., op. cit., pp. 321/323. 104 MIAILLE, M., op. cit., p. 247/248. 105 idem, p. 248. 106 CASSIRER, E., A Filosofia... op. cit., p. 211.

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sinônimo (dikaion)107. Para os antigos, o direito natural era o direito extraído da

natureza de forma a realizar o justo. O termo realizar é aqui empregado no seu

sentido literal: os gregos não concebiam um direito que simplesmente enunciasse

discursos; era preciso a prática para realizar o direito, o que se fazia de modo

eqüitativo (entre os “iguais”, ressalte-se). A observação da natureza, de que

derivaria o direito natural era voltada não somente ao mundo natural stricto sensu,

mas ao conjunto do mundo exterior, físico e social108.

Na Idade Média a teologia cristã concebeu o direito natural como

emanado também da natureza, entendida esta como símbolo da criação divina. Não

houve, portanto, ruptura entre o pensamento jusnaturalista medieval e o

antecedente, mas apenas sua “sacralização”.

A escola do direito natural moderna alterou a fonte da ordem

jurídica. A natureza a fundamentar o direito não era mais o mundo exterior, mas a

natureza do próprio homem. A partir desse desvendar, o direito natural seria tornado

em positivo a partir do consentimento dos homens em sociedade. Houve uma

subjetivação do jurídico.

A duplicidade de sentidos encontrou os primeiros tempos do

Iluminismo e verificou-se que havia duas posições a respeito do que era o direito

natural. A primeira, de inspiração aristotélica, buscava captar na natureza a essência

das coisas, de forma a revelar as relações necessárias entre elas. A segunda

corrente considerava natural o que advinha da razão humana e esta é que

constituiria a fonte do direito que se materializa após acordo de vontades.

Essa segunda concepção acabou por mostrar-se predominante e

esteve no seio do movimento revolucionário francês de 1789109. Será, portanto, o

objeto das considerações a seguir.

O jusnaturalismo trouxe noções jurídicas novas, tais como: o

direito subjetivo e a transformação do direito em “garantia”, e não mais a realização

do bom e do justo na coletividade. Ao contrário da expressão do direito como

medida ética da inserção do homem em sociedade (pois somente assim se concebia

o atributo da cidadania entre os antigos), o antropocentrismo iluminista influenciou a

concepção jurídica na medida em que também “individualizou” a noção de direito.

107 CASSIRER, E., A Filosofia... op. cit., p. 255. 108 idem, p. 256 e 260. 109 Os três parágrafos anteriores e este referenciam-se em MIAILLE, M., op. cit., pp. 257/259.

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Não mais sopesado em sua dimensão social, o jusnaturalismo, como concepção

jurídica, voltou-se ao ser humano considerado como invididualidade110, fora das

relações com os demais, e na universalidade, vendo-os todos de forma homogênea,

indistinta. Calcada na metafísica e na racionalidade, a filosofia da consciência funda-

se na Revelação dada aos homens e na salvação a ser alcançada por cada um.

O individualismo conferido ao cidadão burguês é marca jurídica

típica do liberalismo, e a filosofia refletiu esse aspecto. A luta contra os privilégios da

aristocracia e do clero feudais redundou no estandarte da liberdade individual

portado pela classe burguesa ascendente. A liberdade jurídica necessária para a

assunção de contratos, a consideração do homem per si, o império da razão como

expressão de iluminação individual despiram o homem do caráter coletivo. Esse é o

tom da filosofia moderna individualista kantiana.

O caminho revolucionário da burguesia foi traçado a partir do

desenvolvimento econômico do capitalismo e do terreno propício da racionalidade

humana no contexto sócio-cultural do Iluminismo. O regime de privilégios justificava-

se por uma suposta outorga divina e amparava-se nos dogmas teológicos, que

dispensavam explicações. Nada mais eficaz contra isso que suscitar a questão da

igualdade de todos, como informava a razão iluminada – e como exigia o mercado.

Sem privilégios, todos deveriam ser igualmente tratados e considerados. Esse era o

principal lema esgrimido pela classe burguesa a fim de derrubar os obstáculos à livre

expansão do comércio e do capital. Daí a eficácia insurreicional da tríplice bandeira:

“liberdade, igualdade, fraternidade”.

Dessa forma, a aposição do indivíduo como centro da filosofia

está intrinsecamente ligada à realidade social, econômica e cultural da modernidade.

Por tal motivo é que a burguesia, ao promover revoluções nos séculos XVII e XVIII,

defendeu amplamente as idéias da liberdade e da igualdade. Contra o modelo social

estratificado, garantidor de privilégios à minoria da população – nobreza e clero – e

excludente da maioria, a burguesia lançou mão do direito natural haurido da razão

individual para justificar o combate a essa estratificação “irracional” e propôs a

elaboração de uma nova constituição.

110 Para Bloch, “a lei natural clássica é a ideologia de uma economia individualista e de relações capitalistas entre comerciantes, que requerem que tudo deveria ser calculável e que, então, põem no lugar dos diversos direitos de privilégios encontrados na Idade Média a igualdade formal e a universalidade legal.” (tradução livre, op. cit., p. 54). A idéia de que tudo deveria ser calculável, bem exposta por Bloch, traduz-se na decantada apelação à segurança jurídica como base para a assunção e o cumprimento dos contratos, ícone jurídico do individualismo capitalista.

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A conseqüência desse direito natural de inspiração racional é a

sua imutabilidade. Se os homens extraem das próprias razões individuais a essência

das leis, pode-se enxergar o caráter estático dessa ordenação, ao menos quanto ao

seu núcleo estruturante:

O direito, que era o equilíbrio e portanto o justo, passa a ser ‘o conjunto das normas ou das regras tiradas da natureza do homem’. Válida intemporalmente, esta ordem da razão está subtraída aos movimentos da história. Daí a Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 que na sua conclusão se declara simultaneamente universal e eterna: imagem perfeita de uma Razão a-histórica.

111

Uma vez feita a Revolução e derrubados os privilégios do

Primeiro e do Segundo Estados, interessava aos promotores da nova ordem social

conservar o que estava feito. Assim, tendo o modo social de produção capitalista

conseguido se libertar das anteriores amarras jurídicas e políticas, estava

conquistado o ambiente propício à sua expansão e, portanto, tratava-se de defender

a permanência da nova ordem, sem mais mudanças. A burguesia despe-se de seu

caráter revolucionário e, quanto ao direito, passa-se ao positivismo112.

Essa nova ‘escola’ do direito concebe-se em si mesma, apartada

do mundo real e das contingências históricas. O positivismo jurídico encerra-se em

um hermetismo surdo às vozes vindas da sociedade e restringe-se ao poder legal e

ao seu conteúdo. “De fato, o discurso positivista pode (e deve) fazer economia de

todo posicionamento ético ou político sobre o estado de coisas existente: ‘sem

admirá-lo’, ele se limita a constatar que este estado é natural, necessário, inevitável,

e é produto de ‘leis invariáveis’.”113. (grifo do autor).

Apartado da mais remota idéia de justiça, o direito deve apenas

ser cumprido – tal é a meta positivista que, além de desconsiderar a realidade,

fortalece a autoridade do poder central, operação que, no caso do capitalismo, nada

tem de ingênua ou neutra. A necessidade, após as revoluções e o fim do feudalismo,

de manter o status e as regras da sociedade da forma como conquistadas levaram à

adoção plena do positivismo.

111 MIAILLE, M., op. cit., p. 261. 112 As características dessa nova maneira de conceber o mundo social, inspirado no modelo das ciências da natureza, já foram objeto de estudo anterior. Aqui se coloca o problema apenas quanto ao direito, examinando-se as faces e implicações do positivismo jurídico. 113 LÖWY, Michael. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. 9ª edição – São Paulo, Cortez Editora, 2007, p. 25.

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Os motivos dessa troca residem na convicção de que o direito

natural cedo ou tarde apontaria os desvios no novo regime e a fragilidade da mera

proclamação legal da igualdade entre as pessoas, pois se a consciência insurgiu-se

contra um estado de coisas injusto, poderia fazê-lo de novo. Assim é que o

positivismo foi adotado valorizando o cumprimento da lei só por ser lei, não por

corresponder aos ditames da razão sobre as consciências individuais. “Iniciava-se, a

partir daí, um duradouro divórcio entre Direito e Moral.”114 115. Restou ao direito

apenas o atributo da força. Com isso, fechou-se o caminho para novas ações

revolucionárias e passou-se ao império da lei.

3. Contratualismo

Os iluministas subverteram o conhecimento vigente à sua época e

procuraram-lhe um novo fundamento: a razão humana, em lugar do transcendental.

Com a consolidação do sistema capitalista, o direito natural calcado em uma idéia de

moral subjacente foi substituído pelo positivismo e a investigação racional desprezou

a exegese histórica, limitando-se à busca da essência das coisas, da sua razão de

ser116.

Tal forma de pensar aplicada ao estado tem um sentido preciso:

deixando-se de lado sua origem histórica como instrumento de dominação de

classe, sua análise e justificação são procedidas livremente, analisadas em sua

objetividade, como se se tratasse de uma construção natural e não jungida a

circunstâncias específicas que lhe deram nascedouro.

Concebido como uma criação estática e atemporal, o estado

passou a representar o papel de autoridade consentida e necessária, presente em

toda e qualquer sociedade humana. Essa visão meramente analítico-descritiva do

estado priva-o de toda dialética. A pretensão de conferir um caráter puramente

racional ao estado, considerando-o em si, pela sua face visível, não poderia

desaguar senão em uma operação racional de “esvaziamento” de sua função de

114 Terá o Direito do Trabalho chegado a seu esgotamento histórico?. In: Direitos Humanos: Essência do Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 2007, p. 55. 115 Ainda que consideradas apenas no contexto limitado do universo burguês. 116 CASSIRER, E., O mito..., op. cit., pp. 206/207.

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dominação; no entendimento de que se trata de uma invenção da razão humana e,

para fechar o raciocínio, na atribuição de uma origem consensual para ele, ou mais

exatamente, contratual – mediante o contrato social.

Assim metamorfoseou-se a opressão em consenso. Essa foi uma

das mais bem-sucedidas operações ideológicas do individualismo racionalista,

somente possível a partir da consideração da igualdade formal entre os homens e

de sua liberdade. O sistema tem uma lógica interna: se todos são livres e iguais,

nada impede que pactuem a melhor forma de se auto-governarem. Seria perfeito se

fosse verdadeiro, mas a História, naquele momento (e, por isso, desprezada),

apontava em um outro sentido.

Ademais, a própria idéia da associação de cidadãos para a

formação da entidade maior que os congregue – o Estado –, não é oriunda do

Iluminismo, porém. Os clássicos já a tinham. Aristóteles, ao iniciar sua obra A

Política, onde discorre sobre a origem do estado, assim se pronuncia:

Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a esperança de um bem, seu princípio, assim como de toda associação, pois todas as ações dos homens têm por fim aquilo que consideram um bem. Todas as sociedades, portanto, têm como meta alguma vantagem, e aquela que é a principal e contém em si todas as outras se propõe à maior vantagem possível. Chamamo-la Estado ou sociedade política.

117

A idéia aristotélica de que os homens se juntam para formar um

estado na forma de uma associação em que todos procuram o Bem (como um dado

eterno, imutável, que só precisa ser apreendido) ignora completamente o fato de que

havia escravos entre eles. Como inseri-los nesse contexto? O bem para eles

também estava incluído nesse ‘bem maior’? Ou, mais logicamente, eles não

compunham essa associação? À luz da História, essa é a hipótese verdadeira, pois

os escravos (e não somente eles) não integravam o conjunto dos homens (e aqui

usa-se o termo “homens” em sentido próprio, literal, masculino, não como conjunto

dos seres viventes), dos cidadãos que se juntaram em busca do bem comum. Esse

bem era bastante restrito, como se pode ver, e pressupunha a exclusão da maior

parte da população, dos que não tinham o atributo da cidadania.

Além da concepção de associação humana que vemos já

presente no pensamento grego clássico, outra característica daquele estado que é

117 ARISTÓTELES. op. cit., p. 1.

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revisitada na modernidade é a da sua existência para a realização de um fim maior.

Os gregos buscavam, apesar da cidadania restrita, a realização da felicidade de

todos (de todos os iguais, ou seja, os cidadãos deliberantes), sendo a felicidade de

cada um parte da vida perfeita da polis. Para tanto, acreditavam que a sociedade

deveria ser regida por leis derivadas de desígnios eternos que estabeleciam o justo

e o diferenciavam do injusto (ao que parece, os deuses do Olimpo compactuavam

com o escravismo!!), o que constituía o seu direito natural. Importa frisar que esse

sistema de normas acreditava-se fundado em princípios atemporais, encarnados na

idéia de Deus, justiça ou natureza, mas não na vontade humana, pois assim não

seriam imitação do mundo superior e perfeito118.

O iluminismo racionalista reavivou a idéia do contratualismo, de

todo abandonada na Idade Média, porque não fazia sentido para o sistema

econômico, social e jurídico medieval. De fato, o feudalismo, centrado na produção

para o consumo local, produzia apenas um reduzido excedente econômico que era

absorvido por um mercado pequeno e estável. Conseqüentemente, não eram as

relações mercantis (ou melhor, contratuais) que imperavam na sociedade.

A partir do advento da concepção burguesa capitalista da

mercantilização – das coisas e das pessoas – a idéia contratual renasceu como

adequada aos novos tempos de igualdade de todos perante a lei.

Entre os contratualistas, abordaremos sinteticamente Hobbes e

Rousseau que, de formas muito diferentes, entenderam a gênese da sociedade a

partir de um acordo de vontades.

Segundo Hobbes, o homem é um ser egoísta movido por um

desejo inesgotável de poder, mas que não se encontra sozinho no mundo. A soma

dos diversos ‘egoísmos’ individuais causa um estado de guerra permanente – efetiva

ou potencial – de todos contra todos, em um meio social em que “o homem é o lobo

do homem”. Para compatibilizar vontades semelhantes de poder – mas conflitantes

em busca desse espaço de poder – incompatíveis com a convivência humana, seria

necessário um pacto em que cada um renunciasse à vivência de suas possibilidades

e direitos absolutos em prol da harmonia grupal. Tendo em vista a natureza humana

por ele considerada, Hobbes, contudo, enxergou a fragilidade de tal acordo se

deixado na dependência apenas da vontade individual.

118 SOLON, Ari Marcelo. Teoria da Soberania como problema da Norma Jurídica e da Decisão. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, pp. 20/21.

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Diante de tal risco, afirmou a necessidade de um poder superior a

todos, forte, coercitivo que constrangesse a totalidade dos integrantes do grupo

social à observância do pacto coletivo119. Partindo de um homem naturalmente mau

e egoísta, Hobbes considera a renúncia ao poder individual e sua entrega a um ente

superior, a única forma de viabilizar a vivência social. O Leviatã, o todo-poderoso,

surge, pois, como uma verdadeira condição de sobrevivência de cada um no meio

hostil da convivência humana.

Em decorrência de tal raciocínio, esse ente superior, o estado,

teria poder absoluto sobre os súditos, pois igualmente absoluta havia sido a entrega

do poder individual. Assim, ao entregar todos os direitos e o poder de se auto-

conduzir, ao indivíduo cabe somente acatar as ordens e decisões emanadas do

Homem-Artificial, o estado, que detém presumivelmente toda a legitimidade, e por

isso Hobbes afirmou a impossibilidade de uma lei ser injusta, sustentando a

observância da lei apenas por ser emanada da autoridade central superior,

supostamente procuradora de todos os integrantes da sociedade120. Com ser assim,

Hobbes conferiu armas simultaneamente ao absolutismo e ao positivismo121.

Entender que a lei não pode ser injusta significa acatá-la e

cumpri-la pelo simples fato de possuir a forma legal, não importando seu conteúdo.

Por outro lado, entender que fora da lei não há injustiça é o reverso de uma mesma

moeda: a completa dissociação entre a norma e qualquer vestígio de eqüidade.

Rousseau, um dos mais representativos arautos do

contratualismo, acreditava, por sua vez, na possibilidade de que a convivência social

viesse a assentar-se no consenso, e de que este teria o condão de eliminar os

conflitos sociais. O pensador suíço percebia a desigualdade entre as classes e se

insurgia contra isso, mas acreditava poder equilibrar a sociedade por meio da

entrega do poder ao povo (rechaçava a democracia representativa e a

oligarquização do poder) e do acordo entre os segmentos sociais antagônicos. Além

de ter revivido a idéia associacionista de Estado, Rousseau também tinha uma

concepção do homem inserido em sociedade, mais próxima dos antigos e em

convivência freqüentemente difícil com o individualismo que vicejou no florescer do

Estado Moderno.

119 CHEVALIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. 4ª edição – Rio de Janeiro: Editora Agir, 1989, pp. 68/71. 120 idem, p. 73. 121 ibidem, p. 74.

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Considerado no contexto dos seus contemporâneos, Rousseau foi

o mais “igualitarista” de todos os pensadores iluministas, na medida em que

compreendeu e criticou a desigualdade social assentada na igualdade jurídica e

propôs a efetiva participação popular, ou melhor, a distribuição homogênea de poder

entre os membros da sociedade, como meio de garanti-la justa e igualitária. Alguns

aspectos de sua teoria, porém, revelam fragilidades.

No início d’O Contrato Social, Rousseau aduziu ser a família a

primeira e mais antiga instituição natural 122. Entretanto, já na segunda metade do

século XIX 123, o estudo das sociedades primitivas demonstraria que, no

matriarcado, não existia a noção da família fechada como se tem hoje. Ao contrário,

havia uma grande comunidade onde todos eram tomados como filhos de todos –

não biologicamente, claro, mas social e afetivamente imperava a noção de um grupo

familiar extenso. A família patriarcal monogâmica que Rousseau conheceu é um

dado histórico, uma construção social que, como o estado, não adveio da natureza.

Posteriormente, Rousseau imaginou diversos seres humanos

sozinhos, isolados, que, “cansando-se” das agruras da vivência no estado de

natureza, “decidiram” unir-se e abrir mão de uma parcela de sua liberdade, a fim de

compor uma associação civil que os congregasse e permitisse a todos viverem

juntos, na intenção do benefício comum. Para tanto, Rousseau considerou a

elaboração de um contrato social em que cada integrante “põe em comum sua

pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos,

coletivamente, cada membro como parte indivisível do todo.” 124.

Contudo, o sonho da livre associação de homens que se

encontrariam num hipotético estado de natureza marcado pelo isolamento ignorava

o fato de que a História mostra exatamente o contrário: até pela fragilidade individual

122 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1989, p. 10. 123 J. P. Morgan publicou, em 1877, a obra Ancient Society, or Research in the lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization, que analisou em profundidade a família e a forma de produção social das comunidades primitivas, pré-históricas. Essa obra serviu de base para o livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Engels, já citado. Antes disso, em 1861, Bachofen havia publicado o livro Direito Materno, considerado por Engels o trabalho precursor no estudo da história da família. Posteriormente, o sr. Mac Lennan também deu sua contribuição aos estudos da família pré-histórica, publicando seu trabalho Studies in Ancient History, Comprising a Reprint of Primitive Marriage em 1886 (tais dados encontram-se em ENGELS, F., As Origens, op. cit., pp. 9/10, 14/15, 17/20). Estes são alguns dos estudos que se fizeram naquele momento histórico (2ª metade do século XIX) e que demonstraram a verdadeira natureza da família primitiva, diversa da que considerada por Rousseau. Este, no entanto, havia falecido em 12 de julho de 1801, e não pôde, portanto, acompanhar tais descobertas e estudos que desautorizaram a concepção de família por ele considerada. 124 ROUSSEAU, J., op. cit., p. 20.

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dos homens e por sua infância muito prolongada em comparação com a dos demais

mamíferos, as comunidades humanas, mesmo reduzidas e nômades, existiram

desde sempre, e com regras mutáveis de região para região, de época para época,

de cultura para cultura. Salvo em situações muito excepcionais, como a do

náufrago125, por exemplo, não se tem notícia de pessoas vivendo em completo

isolamento e em liberdade, “dispostas” a se associarem, assim como nunca

existiram regras sociais “naturais e imutáveis”, que seriam, no dizer de Rousseau,

(...) de tal modo determinadas pela natureza do ato que a menor modificação as tornaria inúteis e sem efeito, de sorte que, embora talvez jamais tenham sido formalmente enunciadas, são em toda parte as mesmas, em toda parte tacitamente admitidas e reconhecidas; até que, violado o pacto social, cada qual retorna aos seus primeiros direitos e retoma a liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciara àquela.

126

Portanto, Rousseau, tanto no seu individualismo filosófico

(anterioridade axiológica do homem em relação à sociedade), quanto no seu

“igualitarismo” político, também não escapou da matriz metafísica de seu tempo, ao

admitir, como fundantes do estado, regras atemporais e perenes. A idéia da

imposição da ordem natural das coisas, tal como admitida, não comporta a abertura

de espaço para a concepção histórica e mutável daquele ente.

O problema prático de maior envergadura da proposta

rousseauniana consiste em saber como teria se dado esse acordo, que envolveria a

concessão de todos os integrantes do espaço social. Além da boa-vontade (que não

pode ser imposta), como se poderia imaginar a realização do pacto social?

Por mais bem-intencionado que fosse, por mais que acreditasse

na realização do homem a partir de sua inserção social e por mais sincero na

intenção de contribuir para a criação de uma sociedade politicamente igualitária, o

fato é que Rousseau, ao afastar-se da historicidade e ancorar-se na metafísica,

supôs o indemonstrável ou propôs o irrealizável, formulando uma hipótese que, sem

embargo do seu mérito anti-absolutista e politicamente nivelador, não poderia

efetivamente embasar uma mudança social substantiva.

125 Aliás, não foi à toa que Robinson Crusoé tornou-se um ícone, a representação maior das fábulas individualistas. 126 ROUSSEAU, J., op. cit., p. 20.

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O contratualismo desconsiderou as diferenças existentes entre os

homens inseridos em suas realidades, optando pela visão idealizada de um grande

pacto firmado entre todos os iguais para o bem comum ou, ao menos, para que

fosse possível a convivência social. Como se poderia entender, contudo, a assunção

de um pacto por grupos socialmente distintos e rivais? Como o escravo poderia

pactuar com o senhor, e o trabalhador com o patrão, de forma mutuamente

satisfatória?

Na verdade, pode-se extrair dos contratualistas uma tentativa de

explicação do mundo que, na verdade, não o queria modificar e que partia, em

última instância, da vontade de satisfação de interesses próprios. Pois a hipotética

assunção de um pacto não se destinava a permitir a vivência em sociedade? Então,

no fundo, essa visão permite o entendimento de que, se algum pacto houvesse

ocorrido (o que se admite apenas para efeito de argumentação), teria sido

primordialmente apenas para a salvação e/ou para o bem-estar individual, em

primeiro lugar.

Essa tentativa de explicação do mundo esconde, em seu

‘nivelamento cidadão’, o que efetivamente pode explicá-lo: o movimento das classes

sociais antagônicas, que é o contrário da idéia da pactuação sobre um querer

homogêneo.

4. Legalidade – Universalidade e individualidade

O escravismo antigo e o feudalismo vigeram em civilizações

marcadas pela imobilidade social, especialmente no segundo caso127. No regime

feudal, a regra era de que a origem marcava o indivíduo definitivamente,

determinando a classe/estamento à qual pertenceria e dentro de cujas normas

deveria pautar-se; salvo, pois, exceções muito pontuais, não era possível “mudar” de

127 A condição de escravo na Antigüidade podia ser transitória, a depender, por exemplo, das favores da sorte na guerra, da alforria concedida pelo próprio senhor ou do vencimento do prazo de trabalho escravo correspondente ao pagamento de dívida. Os escravos de hoje podiam ser os senhores de amanhã. A determinação da classe dava-se por mérito, conquistas, confronto de forças e podia-se alterar. Não se tratava o escravismo antigo, pois, de um regime de imobilidade social absoluta.

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classe/estamento social128. Entre as raras exceções, tem-se notícia, por exemplo, da

extinção do vínculo da servidão por decurso de prazo: “Os servos da gleba, que

logravam residir mais de ano e dia num burgo novo, desvinculavam-se de pleno

direito das peias feudais: era uma espécie de usucapião da liberdade, calcado no

regime possessório dos bens materiais”129.

Dessa forma, o nascimento imprimia a cada pessoa um certo

status que regia toda a sua vida. Nota-se que, nesse regime, as diferenças de classe

e de condição social eram óbvias, claras. Servo era servo e senhor era senhor, sem

que, em geral, houvesse possibilidade de mudança.

A passagem do feudalismo para o capitalismo alterou essa

situação. Ao invés da “marca” de nascimento, foi instaurada a universalidade legal,

segundo a qual todos são iguais – perante a lei. São inúmeras as implicações dessa

mudança. O que parecia ser equalização foi, na verdade, consagração da diferença

real.

Entre o conceito antigo de liberdade – pautado pela dimensão

política do ser humano – e o entendimento moderno – de cunho individual, cumpre

observar a concepção da liberdade como opção pessoal, haurida do mundo

teológico da Idade Média.

Para os antigos, querer significava poder. Não se concebia uma

vontade sem sua realização, pois entendia-se que esta somente surgiria quando

adequada à natureza do ser que desejou.

Na Idade Média, por influência da concepção religiosa de mundo,

distinguiu-se entre querer e poder, admitindo-se a existência de uma faculdade sem

o concurso concomitante da outra, ou seja, podia-se querer sem poder e poder sem

ter a vontade. Essa separação entre a vontade e o ato tornou o fazer uma questão

voluntária. A essa possibilidade de opção chamou-se liberdade, uma liberdade de

natureza interna, pessoal130.

Essa distinção aparentemente irrelevante concentra reflexos

importantes, inclusive sobre a concepção individualista moderna, senão vejamos:

transferida para o âmbito interno e referida apenas à vontade, a liberdade torna-se

128 TRINDADE, J., História..., op. cit., p. 18. 129 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 35. 130 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. In: Estudos de Filosofia do Direito. 2ª edição – São Paulo: Editora Atlas, 2003, pp. 87/88.

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um atributo indissociável do indivíduo. Mas ele é livre apenas para querer, o que não

significa que efetivamente possa fazer ou ter o que quer. Ainda assim, segundo a

concepção teológica medieval, não importa o status exterior desse indivíduo, como,

por exemplo, sua condição de escravo ou servo – essas distinções residem na

esfera política, estranha ao locus da liberdade –, o que importa é o seu querer, seu

móvel interior, e esse é sempre livre131.

O deslocamento da liberdade da esfera pública para a interior tem

o efeito prático de conservação da ordem e de conformismo quanto a ela, ao

proclamar livres os que têm vontade – ou seja, todos, posto que ontologicamente

iguais –, mesmo os que não a possam realizar. “Daí, mais tarde, a idéia de que

ninguém, nem o soberano, nem o Estado, pode constranger a liberdade, só o seu

exercício.”132 Essa noção reduz a liberdade a um diálogo do homem consigo próprio,

não com o outro, o semelhante, retirando-lhe o caráter dialógico, interpessoal. Por

outro lado, esse discurso sobre a liberdade, descolando-a de sua efetividade, já

conduz ao seu esvaziamento.

Sob a modernidade, a concepção de liberdade de matriz

individualista prestou-se para manter as amarras de fato sob o pálio do contrato

supostamente firmado entre iguais, mas a desigualdade efetiva impedia que a parte

contratante não-possuidora de bens, exceto sua força de trabalho, firmasse um

pacto baseado em um acordo de vontades. O resultado dessa assimetria

institucionalizada é conhecido: a História demonstra que a condição humana e social

dos trabalhadores assalariados e de suas famílias no regime capitalista nascente

manteve, por vezes, identidade com a servidão133 e, em muitos casos, chegou

mesmo a degradar-se em relação à situação dos servos no feudalismo134, não

obstante todas as pesadas e humilhantes obrigações devidas por esses ao senhor

feudal e à nobreza.

Não se pode esquecer que a escravidão também esteve (e ainda

está) presente no modelo liberal capitalista135 e não apesar deste, mas por sua

131 FERRAZ JR., T., Estudos..., op. cit., p. 88. 132 idem, p. 91. 133 LOSURDO, Domenico. Contra-História do Liberalismo. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2006, pp. 79/80. 134 TRINDADE, J., História..., op. cit., pp 85/88. 135 “No interior da fábrica, os trabalhadores são submetidos ao despotismo do capitalista e de seus prepostos, como se estivessem em um quartel industrial. Nessa verdadeira organização militar, os operários são como ‘soldados da indústria [...] sob a vigilância completa de oficiais e suboficiais’. O proletariado converte-se, assim, em ‘escravo’ da burguesia, do Estado burguês, da máquina, do

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causa. Na expressão de Domenico Losurdo, “A escravidão não é algo que

permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais: ao contrário, ela

conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desse sucesso” 136. A

“liberdade” concedida aos antigos servos da gleba no continente europeu não

encontra paralelo nas colônias de que são matrizes os mesmos países da Europa

Ocidental.

A França, por exemplo, que em 1794, na fase de maior influência

popular no processo revolucionário, havia abolido a escravidão nas suas colônias,

restabeleceu-a menos de uma década depois, em 1802, quando aquela influência já

havia sido afastada. Os Estados Unidos da América ainda demorariam cem anos

após a guerra civil de 1860, que aboliu a escravatura, para começar a reconhecer

direitos civis aos negros. Sem falar nas eleições com voto censitário, socialmente

excludente e alicerce das “democracias” oligárquicas, que foram o modelo político

predominante no mundo até o final do século XIX.

O direito concebido pela modernidade, pois, alterou

substancialmente a noção que lhe davam os antigos: de ato e de medida do justo.

Em seu lugar, foi colocada a força da lei, que “garante”, mas não concede. Assim, a

idéia de direito deixou de ser algo realizável, exigível, concreto, para passar a um

plano abstrato, ideal e “assecuratório”. O direito moderno não confere aos

legislados, necessariamente, uma prestação substantiva, mas simplesmente

empresta sua proteção a esta, quando já existir, nada se importando com a

efetivação do que descrito como um direito.

A legalidade universalizante cumpre duas funções muito

importantes na manutenção do status quo: despersonaliza o oponente (sem “rosto”,

sem nome, o inimigo é o Estado, o governo, a lei – entes despersonalizados,

portanto, difíceis de enxergar e combater) e o distancia. A lei é oponente por demais

vago e inacessível para que se possa enfrentá-la. O sistema se mantém e se

esconde atrás do manto da legalidade. Em tal contexto, a consagração formal de

direitos não significa sua efetivação.

Sob outra ótica, ao declarar abstratamente que todos são iguais, o

direito atua na sociedade como se o fato concreto da desigualdade não lhe dissesse

contramestre e do dono da fábrica.” In NAVES, Márcio Bilharinho. Marx – Ciência e Revolução (Coleção Logos). São Paulo: Editora da Universidade de Campinas, 2000, p. 51. 136 LOSURDO, D., op. cit., p. 47.

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absolutamente respeito ou como se tal fato dependesse das vontades ou de

circunstâncias meramente individuais137; enfim, como se a instância jurídica não

pudesse fazer nada sobre o problema. O silêncio jurídico positivista é, na realidade,

uma opção pela conservação do status quo; é a aprovação do modelo social.

A noção de que o meu direito é pleno e, para sê-lo, é necessário

que o do meu semelhante também seja, contém uma essência igualitária, a qual não

se encontra no direito burguês, em que a igualdade é meramente formal, não

substancial. Em sendo assim, assume a forma de uma ilusão jurídica que se

manifesta em todas as áreas da vida social (direito ao voto, à liberdade, etc.).

A noção de liberdade moderna só encontra lugar em uma

concepção individualista de mundo, em que o homem isolado, e não o grupo

humano, é a referência valorativa. Dessa forma é que a modernidade erige um altar

para o sucesso individual – inevitavelmente conectado ao acúmulo de propriedade, à

capacidade de consumo publicamente exibida e ao “poder” social daí derivado.

Embora entre os antigos a noção de liberdade ligada à polis

tivesse que conviver com o instituto da escravidão, o fato é que, dentro dos limites

de classe em que era praticada, a liberdade tinha uma conotação coletiva,

basicamente política138.

De fato, os antigos exerciam sua liberdade quando exerciam sua

cidadania. Liberdade e vivência política, então, se equivaliam, e os que a praticavam

tinham-se como iguais. Assim é que essa liberdade pública só era praticada pelos

cidadãos, excluídos os escravos, estrangeiros e mulheres. Entre aqueles, porém,

imperava uma idéia de igualdade, uma consideração comum e o reconhecimento de

um mesmo status, o que formava a base da concepção antiga de liberdade139. Os

cidadãos se auto-regulavam a partir de sua participação na vida social, por eles

construída diretamente e de maneira isonômica. “Governo pelo povo significava, por

sua vez, deliberação na ecclesia ou assembléia, em condições de livre expressão

(parrhesia) como direito igualitariamente distribuído (isegoria).”140

A experiência de liberdade vivenciada pelos antigos,

especificamente pela (limitada) “democracia” grega, relaciona-se com a 137 ALVES, Alaor Caffé. A Função Ideológica do Direito. In: Fronteiras do Direito Contemporâneo. São Paulo: Diretório Acadêmico João Mendes Júnior – Faculdade de Direito – Universidade Mackenzie, 2002, p.27. 138 MASCARO, Alysson. Filosofia do Direito..., op. cit., p. 42. 139 idem, pp. 43/44. 140 MERQUIOR, José Guilherme, op. cit.

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possibilidade da construção do espaço público entre os que se tinham como iguais,

o que não se confundia com o locus privado, aí fortemente moldado pelos costumes,

pelas tradições e pela crença religiosa. De forma que essa liberdade não tem

nenhuma semelhança com a noção de prerrogativas individuais, com o

encerramento de cada ser em um casulo isolado.

Para os modernos, ao contrário, a liberdade nada tem de igual,

encerrando-se em uma perspectiva meramente individual. Perdeu a modernidade a

dimensão coletiva da liberdade, transformando-a em mera garantia para o ser

isoladamente considerado, fruto do liberalismo econômico. À prática política dos

antigos seguiram-se a inação e a não-participação modernas. A liberdade passou a

ter um caráter negativo ao invés do cunho ativo que teve entre os antigos; passou a

ter o significado de mera permissão para o exercício da vontade individual (não mais

da prática política) garantida pelo Estado, o qual passa a encarnar o papel de ente

de poder público, sendo tal poder exercido por meio de representação do povo.

A questão da liberdade envolve, pois, as noções de autonomia,

independência e, do outro lado, interdependência, convivência. Se o ser humano é

gregário, social, somente inserido na coletividade é que a sua complexidade pode

ser apreendida. A concepção individualista do homem e sua correspondente noção

de liberdade são, portanto, contrárias à natureza social do próprio homem.

A base igualitária (evidentemente desconsiderando os ‘diferentes’)

distingue a liberdade antiga da liberdade moderna de forma a praticamente

impossibilitar o reconhecimento de tão distintos institutos enfeixados em uma

mesma palavra.

Liberdade real pressupõe, pelo menos, uma forte e efetiva

tendência à igualdade. Sem igualdade, ou com igualdade meramente formal, a

liberdade será efetiva para uns e não o será para outros. Liberdade implica sempre

opção, qualquer que seja a definição que se lhe dê. Qualquer dicionário, ao definir

liberdade, traz implícita ou explicitamente a noção de escolha. Ser livre é poder

escolher. A carência parcial ou total de recursos materiais implica impossibilidade de

opção, ou seja, ausência de liberdade. Sem poder decidir por qual via deseja seguir,

o indivíduo vê-se condenado a um só caminho que não foi por si escolhido. Repete,

assim, o destino de Sísifo, condenado por Zeus a empurrar eternamente uma pedra

montanha acima e, lá chegando, deixá-la rolar montanha abaixo, num movimento

incessante e sem fim. O oprimido de hoje, sem poder escolher, é obrigado a rolar

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pedras não mais por imposição do Olimpo, mas em decorrência do jogo de forças

que rege a sociedade.

5. Direito, Estado e Ideologia

O conceito de liberdade na sociedade burguesa é apenas uma

parte do quadro representado pela instância jurídica nessa sociedade, mas é um

passo importante para sua análise crítica.

A burguesia, como classe social ascendente, precisava da

instituição da igualdade formal entre todas as pessoas e, com isso, rompia os laços

de servidão que ligavam pessoas à propriedade e ao senhor feudal. A razão dessa

necessidade foi amplamente desvelada por Marx, que demonstrou a equivalência

entre a mercadoria e a norma jurídica e entre pessoas e coisas no capitalismo.

Essa nova ordem jurídica atendia assim a dois imperativos da

burguesia e dos novos capitalistas: garantir o funcionamento da nova ordem

econômica e manter, sob palavras bonitas – liberdade, igualdade -, o controle da

sociedade, realizando a dominação ideológica em favor da burguesia ascendente ao

poder. “Mas essas idéias dominantes não aparecem como sendo a expressão de

interesses de classe determinados, e sim como ‘idéias puras’, provindas de

pensadores desvinculados daqueles interesses.”141.

A necessidade econômica da decretação da igualdade e da

liberdade estava em que o sistema produtivo capitalista nascente precisava de mão-

de-obra livre para trabalhar nas suas manufaturas, o que era incompatível com a

servidão feudal. A liberdade, além disso, fazia-se necessária para que os homens

“livres” pudessem efetuar contratos sem impedimentos legais.

Se os trabalhadores nada tinham de seu, se a propriedade estava

em mãos de poucos e os meios de produção eram do capitalista, os trabalhadores

nada tinham a vender senão sua força de trabalho. Como esta é indissociável de

suas personalidades, na prática eles se alienavam a si próprios sob o manto jurídico

do contrato entre iguais.

141 NAVES, Márcio Bilharinho. Marx – Ciência e Revolução ( Coleção Logos). São Paulo: Editora da Universidade de Campinas, 2000, p. 37.

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Ocorre que tal mecanismo não se mostrava abertamente como o

que de fato era: uma necessidade da ordem de produção capitalista. Ao contrário, o

direito apregoava-se como emanado da razão humana em nome do bem-estar

coletivo, encobrindo o fato de que apenas enunciava como jurídicas normas que já

estavam fixadas pelo imperativo da produção e da circulação econômicas; o direito

apenas as reproduzia e legalizava: “O direito designa e desloca ao mesmo tempo os

verdadeiros problemas. (...) Ao realizar-se, o direito não diz pois o que deve ser, diz

já ‘aquilo que é’ ”.142

Ao apresentar o direito como derivado da razão e dotado de

universalidade, brandindo a régua niveladora sobre os desiguais, a classe

dominante faz passar a defesa dos seus interesses como se fossem da totalidade

social143, como se não houvesse conflitos e desejos distintos e antagônicos. Não

bastasse, ainda exerce o controle social que pacifica tais embates e legitima a

desigualdade144 por meio da ideologia, que transmite uma falsa aparência da

realidade.

Na verdade, a igualdade efetiva nunca esteve e continua a não

estar na intenção dos possuidores. Ao contrário! A desigualdade real e o discurso da

igualdade formal são igualmente necessários ao funcionamento do sistema

produtivo, são as duas faces de uma mesma moeda que se combinam e se

necessitam, em relação dialógica.

Para o perfeito funcionamento do mecanismo, necessitava-se de

um ente que, servindo aos vencedores, se posicionasse acima da sociedade e de

seus conflitos e assumisse uma posição pretensamente neutra a fim de, no interesse

daqueles, “pacificar” os conflitos sociais145 e funcionar como uma instância

desvinculada e imparcial. Nesse cenário veio à tona o Estado Moderno.

Porque a troca de mercadorias à escala da sociedade e no seu pleno desabrochar, favorecida notadamente pela concessão de empréstimos e de créditos, engendrava complexas relações contratuais recíprocas e exigia, por isso, regras de validade geral que não podiam ser editadas senão pela coletividade – normas jurídicas fixadas pelo Estado –, imaginava-se que

142 MIAILLE, M., op. cit., p. 95. 143 NAVES, M., Marx ..., op. cit., p. 37. 144 ALVES, Alaor C., op. cit., p. 20. 145 A criminalização dos movimentos sociais, de grevistas, de índios, negros, mulheres e trabalhadores, ontem e hoje, bem demonstram os métodos e fins por trás dessa “pacificação social”.

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essas normas jurídicas não tinham por origem os fatos econômicos, mas que era a sua codificação formal pelo Estado que as fazia nascer.146

No entender de Bloch, o capitalismo, longe de ser alheio ao

estado, é na verdade seu ponto alto, e é apenas nele que o estado implementa sua

mais importante função ideológica: servir não apenas como instrumento dos mais

poderosos, mas também como seu disfarce (e nesse ponto o Estado Moderno

diferencia-se das experiências anteriores, nas quais as relações de dominação de

classe eram expressas e transparentes). Apresentando-se como um poder universal,

o qual aparentemente paira acima da sociedade e equaliza o que lá encontra, o

estado assegura os interesses da classe burguesa e age contra os espoliados147.

Dessa forma, a ideologia não é simples conseqüência do mecanismo da economia

na sociedade burguesa, mas também um pressuposto do seu funcionamento

pacífico148.

A igualdade formal entre os seres humanos os fez cidadãos (os

homens, apenas, e mesmo assim os que superavam a barreira da restrição

censitária) e, portanto, esses tinham, hipoteticamente, igual direito à participação na

vida pública. Com isso, o debate nessa seara não poderia portar um caráter

classista, posto que, perante a lei, todos eram iguais. A equalização retirou dos

trabalhadores o espaço público para a defesa de sua situação de inferioridade.

O Estado é compreendido, agora, como a forma de domínio pela qual a classe dominante faz prevalecer os seus interesses comuns de classe. O caráter comum desse poder cumpre dois papéis: em primeiro lugar, ele permite que o Estado possa defender os interesses do conjunto da classe dominante, mesmo que tenha, em determinadas circunstâncias, para alcançar esse objetivo, de sacrificar o interesse particular, seja de alguma fração, seja de algum membro da classe dominante; em segundo lugar, ele permite que os interesses da classe dominante sejam apresentados como sendo os interesses do conjunto da sociedade, como uma comunidade de interesses gerais e, portanto, que não adquiram um caráter privado, mas, ao contrário, um caráter público, isto é, o exercício do poder político pela classe dominante pode aparecer como o domínio impessoal de uma pessoa jurídica, ao qual a idéia mesma de dominação de classe é um impensado.149

Essa atuação do estado já mostra os seus traços básicos e o seu

posicionamento quanto à questão das classes sociais. O estado garantidor o é

146 ENGELS, Friedrich. Socialismo de Juristas. In Crítica do Direito, vol. 1. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980, p. 2. 147 BLOCH, E., op. cit., p.270. 148 LUKÁCS, G., op. cit., p. 473. 149 NAVES, M., Marx..., op. cit., p. 38.

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quanto à segurança do empreendimento capitalista, não quanto à promoção de

bem-estar para o conjunto da sociedade.

O papel do estado desdobra-se em duas frentes: uma direta, ou

“poder centralizado manifesto” e outra indireta, ou “poder centralizado latente”. Não

se pode ter dúvidas quanto ao fato de que o estado efetivamente atua nas duas,

mas de formas diversas. Na primeira forma, a intervenção na sociedade é direta, dá-

se por meio da organização do poder e de sua gestão; é a face do direito público.

Por outro lado, no seio da sociedade civil onde aparentemente o estado não está a

intervir e as relações se dão no plano privado, ainda aí sua “mão” está presente, ao

conferir, por meio do direito positivo, as regras de direito privado que regulam o

funcionamento das instituições e das negociações privadas de forma a atender aos

reclamos da ordem produtiva e assegurá-la. Dessa maneira, de uma ou de outra

forma, o estado está sempre presente na ordenação social e nas relações entre

indivíduos, seja quanto à sua presença ostensiva – nas relações de direito público -,

seja de forma latente quando se trata de relações privadas150.

A neutralidade aparente das instituições jurídicas e do estado

disfarça as relações sociais e pessoais realmente existentes na sociedade, de

maneira a disfarçar a vivência conflitiva sob várias máscaras: a do primado da ordem

racional, a da liberdade, a da igualdade perante a lei151, a do direito à livre

propriedade, entre outras. Estas “máscaras” não permitem ver o verdadeiro sentido

da exploração que se faz mediatizada pelo “livre” acordo de vontades, pela liberdade

contratual. Eis aí o caráter fetichista da ordem jurídica, segundo Marx. Sob tais

postulados ilusórios, a forma jurídica esconde “o fundamento violento comum a

todas as instituições das sociedades de classe”152 sobre o qual foi formada e ainda

se mantém.

Essa dominação, contudo, somente pode ser exercida enquanto

encontrar um

reflexo ideológico correspondente no pensamento e no sentimento dos homens envolvidos no campo dominado pela força. Isso significa que as organizações autoritárias harmonizavam-se de tal forma com as condições (econômicas) de vida dos homens ou lhe parecem ser tão insuperáveis e

150 ALVES, Alaor C., op. cit., pp. 28/29. 151 A esse respeito, reforça Engels: “E porque a concorrência, que é a forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias, é a maior niveladora que existe, a igualdade diante da lei tornou-se o grande grito de guerra da burguesia.” in Socialismo de Juristas, op. cit., p. 3. 152 LUKÁCS, G., op. cit., p. 442.

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superiores que estes as consideram como poderes naturais, como ambiente necessário para sua existência e, por conseguinte, subordinam-se a elas voluntariamente. (O que de modo algum significa que estão de acordo elas [sic]).153

O disfarce ideológico mantém a idéia de que a ordem das coisas

é a única possível; que os estatutos dessa ordem são inalteráveis, estendendo-se do

passado ao presente e ao futuro; que suas verdades são imutáveis e eternas. Com

isso, camufla a historicidade do estado – e do direito, bem como de todas as

instituições humanas – e seu papel como fator de poder. Na realidade, toda a

estrutura do capitalismo está calcada na desigualdade, na diferença praticamente

intransponível entre o patronato e subordinados, e as instituições do direito e do

estado, seu garantidor, utilizam-se dos já conhecidos instrumentos jurídico-formais

para dissimulá-la e, assim, legitimá-la154.

6. Saldo da Modernidade

Em que pese o fato de tantos institutos da modernidade ainda

fazerem escola na contemporaneidade, é preciso cultivar um olhar crítico sobre eles

para procurar o sentido real do movimento histórico, e não se perder entre

concepções de mundo que a ele não se ligam.

As idéias de estado como associação ou contrato social

assentam-se em bases muito frágeis, como visto, desconsiderando a realidade da

desigualdade entre pessoas que, no mundo real, certamente não firmariam um pacto

consentindo um modelo que contempla exploradores e explorados. Estes, ao

menos, a rejeitariam. Também a assertiva que tem o estado como fim último da

racionalidade humana não subsiste, dada a impossibilidade de definir qual é essa

razão, na medida em que inexiste uma única e absoluta Verdade supranatural,

existindo, em seu lugar, verdades históricas determinadas pelas relações entre os

seres humanos. Resta a concepção de Estado como fruto do exercício do poder

pela classe dominante e, portanto, como instrumento de dominação.

153 LUKÁCS, G., op. cit., pp. 466/467. 154 ALVES, Alaor C., op.cit., p. 34.

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A preponderância da classe burguesa sobre o conjunto da

sociedade não se dá, certamente, somente pelo uso da força armada do aparato

estatal: ela tornou-se muito mais complexa, sofisticou-se, e é exercida também por

meio da dominação ideológica geradora do consenso social. Os meios sociais de

produção e reprodução ideológica alcançaram um grau muito grande de eficiência,

havendo conseguido convencer multidões de que o capitalismo é o modo “natural” –

portanto, definitivo – de existência humana, assim como o egoísmo dos indivíduos

também é um dado da natureza – portanto, imutável. Assim, o exercício da violência

estatal fica reservado para os momentos ou situações em que esse consenso

ideológico induzido não conseguir mais dar conta de sua tarefa socialmente

conformista.

A ideologia é, pois, ferramenta indispensável à reprodução

capitalista. Daí o apelo ao mundo das verdades eternas e universais ou ao império

da norma, válida por si mesma, dissociada do mundo e das necessidades reais.

Com ser assim, a possibilidade e/ou a tentativa de transformação

da ordem posta deve, necessariamente, passar pelo desvelamento do oculto sob o

manto ideológico, o mundo dos sistemas ou das representações. Como fazê-lo não

será apontado pelos institutos da modernidade, justamente a criadora de tal

ocultação em favor do sistema econômico então e ainda vigente.

É necessário destruir esse olhar sobre meras aparências a fim de

possibilitar um contato direto com a essência das coisas, ou coisas-em-si, que revela

sua transitoriedade e, portanto, a possibilidade de sua superação. Por outro lado, o

conhecimento do mundo permite ao ser humano a constatação de que a realidade é

por ele criada155, e por isso pode ser modificada, descartando-se uma idéia de

perenidade ou de absoluto na ordem das coisas humanas.

Por outro lado, a crença em uma razão absoluta, universal, uma e

a-histórica mostrou-se uma aposta vazia, posto que o Iluminismo não conseguiu

transformar em ato sua potencialidade universal nela fundada. A crença de que o

homem racional poderia construir uma sociedade melhor para todos e conduzir a

humanidade ao reino da felicidade não se confirmou.

As promessas da razão não foram cumpridas, em verdade,

porque não poderiam mesmo sê-lo. É que a concepção de que a razão seria o motor

155 KOSIK, K., op. cit., p. 22.

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de uma nova civilização e de um novo estágio no desenvolvimento humano, tão

presente entre os iluministas, tem natureza idealista e prende-se à crença de que as

idéias podem mudar o mundo. A realidade demonstrou e continua a demonstrar o

contrário. A inteligência humana não é a origem do modo de ser da sociedade. Ao

invés, é o modo de produção social, é a apropriação e divisão das forças produtivas

e do seu resultado, com os conflitos de interesses a ele inerentes, que determina o

modus vivendi da sociedade e que, em última análise, acaba por moldar também as

idéias e consciências156.

Ou seja, não há uma razão iluminada, única e verdadeira. Em

uma sociedade cindida em classes sociais diferentes e reciprocamente conflitivas,

os interesses são igualmente diferentes e divergentes e, portanto, é impossível a

existência de uma única “razão” a unir todos os seus integrantes.

Dessa forma, é perfeitamente explicável pelo materialismo

histórico o fato de que as promessas da razão não se cumpriram na Europa

iluminista e também não se cumpriram depois; somente a resultante das forças

antagônicas em conflito pode determinar o resultado da forma e do modo de

funcionamento de qualquer sociedade.

156 MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª edição – São Paulo: Editora Martins Fontes, 1983, p. 24.

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CAPÍTULO IV – Evolução dos Direitos Humanos e Cartas de

Direitos

1. Gênese dos Direitos Humanos: Advento das Declarações

de Direitos e Constitucionalização

Os movimentos revolucionários burgueses levantaram a bandeira

dos direitos humanos a fim de granjear o necessário apoio popular para a derrubada

dos privilégios legais do clero e nobreza então dominantes. Não se pode esquecer,

contudo, que essa plataforma de direitos humanos somente tinha, de

verdadeiramente universalizantes, a igualdade jurídico-formal e a liberdade

individual abstratamente considerada. Os direitos humanos exigidos e conseguidos

naquele momento eram apenas os que interessavam à classe ascendente

revolucionária – e somente dentro deste limite.

Os direitos humanos civis e políticos têm sua gênese, portanto,

nas revoluções burguesas, são filhos diretos da modernidade iluminista. A

legalização de direitos é também contemporânea da edição das primeiras

constituições (consideradas como as contemplamos hoje).

É preciso atentar, porém, para o fato da mutabilidade do rol

desses direitos. As três primeiras Constituições posteriores à Revolução Francesa –

as cartas de 1791, 1793 e 1795 – bem o demonstram, na medida em que variaram

de intensidade revolucionária de acordo com o quadro histórico-social de cada um

desses momentos157.

Os primeiros direitos humanos a serem reconhecidos estavam

diretamente ligados ao movimento revolucionário burguês dos séculos XVII e XVIII,

e basicamente foram liberdade contratual individual, igualdade formal, segurança e

propriedade privada – este considerado um direito sagrado pela Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

157 Cfr. TRINDADE, José Damião, História..., op. cit., pp. 53/77, em que são analisadas detidamente as circunstâncias que deram origem a cada uma das três cartas constitucionais citadas, o que determinou os avanços e recuos nelas verificadas.

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A afirmação inicial dos direitos humanos deu-se a partir do

rompimento com a legalidade feudal-monárquica e com o firme posicionamento

contrário à ordem então em vigor. Ou não foi rompendo as amarras com os laços

feudais, no caso da Revolução Francesa, por exemplo, que as proclamações de

direitos foram efetuadas? Os direitos humanos têm, pois, em sua origem, um caráter

transgressor das regras postas. É de se ressaltar, no entanto, que somente no

nascedouro, e apenas quanto a direitos de caráter individual que visaram a

consolidação do capitalismo e a extinção dos privilégios feudais, é que os direitos

humanos foram fruto de processos revolucionários. Uma vez instalada a legalidade

jurídica do novo regime, a burguesia instalou-se no poder e não teve mais qualquer

necessidade de alterar a ordem posta, razão porque abandonou de vez qualquer

projeto revolucionário – ao contrário, tornou-se extremamente conservadora.

Já os direitos econômicos e sociais decorreram de longa luta

social oriunda do início do século XIX, no qual ocorreram já algumas conquistas.

Portanto, no caso desses direitos de prestação – e em todos os demais processos

subseqüentes de conquistas de direitos humanos – a obtenção de novas condições

não adveio de um processo revolucionário, mas simplesmente reformador, dentro da

própria ordem capitalista, não envolvendo qualquer ruptura no tecido institucional. As

revoluções russa, principalmente, e a mexicana só fortaleceram esse processo de

conquista dos direitos sociais.

Conquanto tenha-se tratado – a francesa e a russa – de duas

revoluções que derrubaram a antiga ordem, há, porém, diferenças fundamentais

entre elas. No primeiro caso, o movimento francês revolucionário foi feito por muitos

em nome de poucos, a minoria dos novos produtores capitalistas. Na revolução

russa, ao contrário, a maioria impôs-se sobre a minoria e elegeu os direitos que

correspondiam às suas necessidades.

Assim, pela primeira vez na história, a apropriação do poder não se dá no curso de um movimento dirigido por uma minoria e para o seu exclusivo benefício. A revolução do proletariado constitui-se no ‘movimento independente da imensa maioria em proveito da imensa maioria’.158

Nos dois casos, malgrado suas diferenças radicais, mormente

quanto aos fins opostos perseguidos, a ilegalidade transgressora impôs-se sobre a

158 NAVES, M., Marx..., op. cit., p. 53.

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velha legalidade, derrubando-a e colocando uma nova ordem em seu lugar. Pôs-se,

então, o problema do reconhecimento da legitimidade dos processos revolucionários

e de uma outra ordenação político-social que conquistou o poder159. Acerca do curso

do processo revolucionário russo, afirmou Lukács que

O proletariado russo conduziu sua revolução vitoriosamente não porque circunstâncias felizes colocaram o poder em suas mãos (...), mas porque ganhou força em longas lutas ilegais, compreendeu claramente a essência do Estado capitalista e ajustou suas ações à realidade efetiva, e não a ilusões ideológicas.160

As revoluções burguesas e a consolidação do capitalismo em

escala global sedimentaram os modelos do Estado moderno, da democracia

representativa burguesa, das garantias de direitos e sua positivação, da concepção

do direito como garantia e não como efetividade, da produção de cartas

constitucionais e da adoção do positivismo como parâmetro para a instância jurídica

– bem como para as demais ciências sociais. Essa (então) nova caracterização

política, econômica, jurídica e social firmou as bases do modelo político-estatal até

hoje exercido, ao menos no Ocidente.

A esse marco histórico seguiu-se a prática da

constitucionalização. A instituição de uma carta fundamental que congregasse a

organização fundamental do estado, seu delineamento e objetivos gerais e, ainda,

os direitos assegurados ao seu povo passou a ser prática corrente, ao menos no

mundo ocidental. O Estado de Direito pressupõe necessariamente uma carta de

direitos que deve garantir, e tais direitos precisam da intervenção estatal para sua

efetivação, daí porque se pode falar em um nexo entre constituição e direitos

fundamentais.161

Inicialmente, no que se refere aos direitos contemplados, as

Constituições abarcavam apenas os direitos fundantes do liberalismo: os direitos

civis e políticos, instituidores das garantias individuais. Posteriormente, a partir da 1ª

Guerra Mundial, passaram a ser abrangidos também os chamados direitos sociais,

ou direitos de prestação, dependentes do estado para sua efetivação e ligados a

159 A questão do poder e da sua legitimação social escapam aos limites deste trabalho, mas a menção foi feita apenas para firmar a origem dos direitos humanos e de seus processos criadores. 160 LUKÁCS, G., op. cit., p. 487. 161 LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los Derechos Fundamentales. Temas Clave de La Constituición Española. 8ª edição – Madrid: Editorial Tecnos, 2005, p. 19.

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reclamos de igualdade material162. Além do rol de direitos, as constituições

passaram a contar também com dispositivos sobre sua ordem econômica, nos quais

se estabelece a participação do estado quanto à forma de atendimento das

prestações constitucionais previstas163.

Com ser assim, alterou-se também a expectativa quanto à

atuação do poder público com relação aos chamados direitos fundamentais: de uma

prestação negativa, ou não-agir – quanto aos direitos civis e políticos –, os direitos

sociais, econômicos e culturais passaram a reclamar do estado uma prestação

positiva, uma ação. Atente-se, porém, para o fato de que nem todos os direitos civis

e políticos vigem apenas com a inação do estado e nem todos os direitos sociais

dependem de recursos para sua efetivação164 (veja-se o respeito ao direito de greve,

por exemplo, que reclama apenas uma inação do estado, um deixar fazer, à moda

dos direitos civis e políticos).

O Estado de Direito encontra seu fundamento jurídico na sua

Constituição, que prevê o rol de direitos vigentes em determinado país. Segundo

esse documento, a instituição estatal é chamada a efetivar os direitos contemplados

na carta constitucional que institui juridicamente cada estado. O problema é que a

mera positivação não se traduz em efetividade, pois as prestações estatais não se

prendem à previsão constitucional, mas à realidade do estágio da correlação das

forças sociais – daí a discrepância entre o extenso rol de direitos e o cotidiano brutal

e desumano da realidade social desigual em todos os tempos, a partir da cisão da

sociedade em classes sociais antagônicas.

Assim é que os chamados direitos de liberdade – civis e políticos

– têm sido “respeitados”, de forma geral, ao menos no mundo ocidental165 (pelo

menos para os integrantes das camadas sociais superiores), embora até estes

estejam experimentando forte retrocesso. Já os direitos sociais e econômicos têm

um histórico muito mais tumultuado e carregado de inefetividade, salvo em alguns

162 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento – Uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 11. 163 idem, pp. 25/26. 164 Essa distinção é importante porque a alegação da necessidade de mobilizar recursos estatais para o atendimento dos direitos sociais, econômicos e culturais foi historicamente utilizada para não os implantar, e ainda em nossos dias há quem assim o defenda, de forma a negar sua implementação. 165 Não obstante várias vacilações em sua aplicação, entre as quais, por exemplo, a demora em conceder o direito de voto às mulheres o que, na “civilizada” Suíça somente se deu em 1971. Em outras vezes, ocorreu verdadeira negação dos direitos civis e políticos mesmo nos países centrais do liberalismo, com a efetiva discriminação quanto à concessão de tais direitos, presumivelmente, segundo o pensamento moderno e “racional”, universais.

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momentos históricos, o que se discutirá adiante. Por fim, os direitos de toda a

comunidade, como o direito ao meio-ambiente sustentável e equilibrado e ao

desenvolvimento, este reconhecido recentemente pela Convenção de Viena de

1993, estão a depender não mais apenas de um estado, mas de uma ação

concertada entre eles, visto que são temas da órbita internacional.

2. Cartas e Constituições – Documentos de Formalização de

Direitos

IV.2.a – Declaração de Direitos do Bom Povo de Virginia –

EUA, 1776

Sob inspiração das idéias iluministas foram produzidas todas as

cartas de direitos da época moderna, sendo considerada a primeira a Declaração de

Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 1776. Esse documento falava em igualdade

natural entre todos os homens e existência de direitos a ele inatos, os quais não lhe

poderiam ser negados, tais como: o gozo da vida e da liberdade; meios de adquirir e

possuir propriedade e obter felicidade e segurança; soberania popular; governo para

o bem comum sob pena de ser substituído se assim não fizesse; separação de

poderes, entre outros. Posteriormente, a Declaração de Independência dos Estados

Unidos da América, também de 1776, proclamava, em seu art. 2°., a igualdade entre

os homens e a existência de direitos que lhes são inalienáveis, entre os quais: a

vida, a liberdade e a busca de felicidade. Afirmava ainda que os governos são

estabelecidos entre os homens para assegurar esses direitos e atribuía ao povo o

direito de alterar ou abolir qualquer forma de governo que se tomasse ofensiva a

esses fins.

Foi a consagração, na antiga colônia inglesa, dos direitos civis e

políticos – porém de forma restrita, pois diferenças de gênero, raça, cor e classe

social ainda constituíam obstáculos para o exercício dos direitos consagrados – os

wasp (White, anglo-saxon, protestant) gozavam da totalidade dos direitos civis e

políticos, enquanto que aos negros escravos nenhum direito era reconhecido. Nada,

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contudo, foi escrito acerca de direitos sociais, como convinha ao credo liberal da

classe burguesa promotora do movimento independentista na América.166

IV.2.b – Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão –

França, 1789

Enquanto isso ocorria além-mar, na Europa também se

verificavam agitações sociais. Na França crescia o movimento anti-absolutista,

agravado pelas crises fiscal, econômica, financeira e social que enfraqueciam o

país. O movimento levado a cabo pelo Terceiro Estado – povo e burguesia – acabou

servindo para que essa classe atingisse seus objetivos com o fim dos privilégios da

aristocracia e do poder absoluto dos reis.

A igualdade e liberdade de todos os cidadãos serviam como pano

de fundo ideal para a exploração de trabalhadores que, conquanto legalmente livres,

eram na verdade completamente carentes economicamente – portanto, desiguais de

fato –, necessitando do trabalho como única ferramenta para permitir sua

sobrevivência e a manutenção de sua família. Diante da necessidade, não lhes

restava outra opção senão a de aceitar o que lhes era oferecido, sem qualquer

possibilidade de reivindicação – o que lhes custaria o emprego e o próprio sustento.

A intenção da burguesia vitoriosa quanto às condições a serem

aplicáveis à mão-de-obra após a Revolução era tão inequívoca que uma das

primeiras e mais célebres leis revolucionárias foi a Lei Le Chapelier, de 1791, que

extingüiu as corporações de ofício (que, bem ou mal, asseguravam uma paga

mínima aos aprendizes e propiciavam alguma proteção aos artesãos na doença e

na velhice), proibiu a criação de associações operárias em geral e criminalizou

quaisquer movimentos de trabalhadores que tivessem o propósito de reivindicar

melhores salários167.

Mal se iniciou o período revolucionário francês, foi produzida, em

agosto de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Merece análise

166 TRINDADE, J., História..., op cit., pp. 96/98. 167 O liberalismo é de tal modo hostil ao movimento organizado dos trabalhadores que essa lei Le Chapelier, que criminalizava o movimento operário, somente foi revogada em 1887.

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esse documento tão emblemático.

O artigo 1º. da Declaração assevera que todos são "livres e iguais

em direitos". A liberdade assegurada, note-se, foi a jurídica. O artigo 2°. consagrou

como direitos naturais e imprescindíveis do homem a liberdade, a propriedade, a

segurança e a resistência à opressão. Desses direitos, apenas a propriedade foi

considerada direito "inviolável e sagrado". Da igualdade não se falou entre os quatro

direitos enunciados como naturais e imprescritíveis muito menos, então, como

direito inviolável e sagrado, a exemplo da propriedade – e a resistência à opressão

não recebeu nenhuma outra referência. Outras ausências sentidas referiram-se ao

sufrágio universal, à igualdade entre os sexos168 e a crítica à escravidão, entre

outros temas relevantes169.

Segundo José Damião de Lima Trindade, "tão importantes quanto

as idéias que a Declaração contém são as idéias que ela não contém – e que, a

julgar pela acumulação filosófica já existente no final do século XVIII, a "Razão"

esperaria que fossem acolhidas nesse texto.”170

A revolução burguesa cuidou de garantir 'direitos' na medida em

que esses aproveitavam à sua classe e aos seus interesses econômicos. Não se

pode perder de vista essa realidade a ponto de considerar que a revolução francesa

e o seu documento de direitos humanos tenham tido verdadeiramente um caráter

libertário. Ao contrário, a revolução promovida pela burguesia visava legitimar uma

nova forma de dominação social, e sua principal arma para isso era a assegurada

igualdade formal171.

As condições difíceis de trabalho e de vida da população pobre,

surgidas principalmente a partir da Revolução Industrial na Inglaterra,

desencadearam a consciência de classe entre os explorados e o seu conseqüente

desejo de luta. Foram criados os primeiros sindicatos e entidades associacionistas e

desencadeados movimentos de resistência, como a greve. Tais movimentos

sofreram forte repressão estatal, mas consolidaram a união dos trabalhadores em

tomo de suas bandeiras de luta e de seus direitos. A partir dessa tomada de

consciência e do recrudescimento da luta dos trabalhadores urbanos e rurais, várias 168 Ver TRINDADE, J., História..., op cit,, p. 77, sobre o saldo da Revolução Francesa para as mulheres: nada lhes foi concedido. As que mais defenderam as causas feministas acabaram guilhotinadas. 169 TRINDADE, J., História..., op cit., pp. 54 e segs. 170 idem, p. 55. 171 ibidem, pp. 76 e 117.

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revoluções populares tiveram lugar ao longo dos séculos XIX e XX, em várias partes

do mundo.

IV.2.c – Revolução Mexicana – México, 1917

No México, a partir de 1910, foi vitoriosa a primeira revolução

popular do século XX, da qual resultou a Constituição Mexicana de 1917 – pioneira

quanto à instituição e ao alargamento de certos direitos humanos, por dispor pela

primeira vez, de modo consistente, sobre direitos sociais e econômicos e, via de

conseqüência, por restringir o direito à propriedade, atribuindo-lhe uma função

social172. Merece destaque a concepção de democracia ali exposta: "não somente

uma estrutura jurídica e um regime político, mas também um sistema de vida

fundado na constante promoção econômica, social e cultural do povo". Outros

avanços restaram consignados, como a proibição de monopólios econômicos, a

abolição de privilégios tributários, a autorização de funcionamento de sindicatos e

associações cooperativas, a concessão de direito de voto também às mulheres e,

por fim, a previsão de extenso rol de direitos sociais dos trabalhadores. Essa

Constituição foi, até o momento de sua edição, o mais avançado documento no que

tange ao rol de direitos previstos. No entanto, quase tudo com que acenou em

termos de avanços permaneceu apenas no papel, em decorrência do

enfraquecimento das forças populares que a produziram173.

IV.2.d – Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e

Explorado – Rússia, 1918.

Quando o regime liberal encontrava-se firmemente instalado no

mundo ocidental, uma nova ordem de idéias tomou corpo no leste europeu. Na

172 No Brasil, apenas em 1988, com a promulgação da Constituição de 05 de outubro, foi estabelecida a função social da propriedade, como se verifica em seu art. 5°., inciso XXIII. 173 TRINDADE, J., História..., op. cit., pp. 151/154.

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Rússia, a dinastia Romanov, que completava 300 anos no comando do país, foi

destronada pela revolução democrático-burguesa de fevereiro de 1917. O governo

provisório que ascendeu ao poder (liberais e social-democratas em aliança) tinha

como meta a formação de uma república parlamentar nos moldes ocidentais, que

preservasse a propriedade privada dos meios de produção e favorecesse o

desenvolvimento do capitalismo.

Contudo, o recrudescimento dos conflitos sociais na Rússia fez

eclodir, em seguida, uma revolução socialista, a primeira no mundo. Em outubro de

1917, o mundo assistiu à vitória de uma revolução operário-camponesa, que tomou

o poder a fim de fazer a transição do regime capitalista para o socialista. Operários

urbanos, camponeses e soldados, organizados em "soviets" (comitês populares de

natureza legislativo-executiva, eleitos exclusivamente por trabalhadores em vilas,

bairros, cidades etc.), ascendiam ao poder no mais extenso país do planeta, e um

dos mais atrasados da Europa. A instalação do primeiro regime socialista no

continente causava preocupação e temor compreensíveis nos países capitalistas

liberais.

O enredo e o desenlace dessa história já são bem conhecidos,

mas aqui nos ateremos ao documento produzido pelo corpo revolucionário, naquilo

que dizia respeito aos direitos humanos. Poucos meses após a vitória da

insurreição, em janeiro de 1918, os revolucionários, reunidos no Primeiro Congresso

Pan-russo de Soviets, produziram a "Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e

Explorado", uma tentativa de ser o "contraponto" socialista à Declaração burguesa

de 1789.

A Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado inaugurou uma ótica completamente nova da abordagem tradicional dos direitos humanos. Em vez da perspectiva individualista de um ser humano abstrato, contida na Declaração francesa de 1789, a Declaração russa de 1918 elegia como ponto de partida o ser humano concretamente (isto é, historicamente) existente, o ser humano que vive em sociedade, em relação contínua com outros homens, e que, portanto, poderá desenvolver (ou não desenvolver) suas potencialidades humanas conforme a posição que ocupar nessa sociedade, ou conforme o modo de organização dessa sociedade venha a favorecer ou a dificultar esse desenvolvimento. Em vez da sociedade hipoteticamente uniforme (isto é, juridicamente igualitária), dissolvida idealmente em cidadãos supostamente iguais, a Declaração russa partia do reconhecimento – cautelosamente evitado desde 1789 – de que a sociedade capitalista está mesmo cindida em classes sociais com interesses conflitantes, alguns deles irremediavelmente antagônicos. Portanto, em vez da ideação liberal de "neutralidade" social do Estado, a nova Declaração tomava partido, desde logo e abertamente, dos

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explorados e oprimidos, alijando explicitamente do poder econômico e político os exploradores.

174

A Rússia pós-revolucionária, na tentativa de implantar o

socialismo e caminhar para o comunismo, segundo a via traçado por Marx, optou

deliberadamente por um grupo social: os trabalhadores e os explorados. Importa

fazer essa ressalva para trazer à tona um entre tantos exemplos históricos que

demonstram a total ausência de neutralidade do Estado e do poder público. A

diferença deste marco histórico está em que, dessa vez, o Estado inclinou-se em

favor do proletariado e dos oprimidos em geral, expurgando a classe dominante dos

seus antigos privilégios e favorecimentos, enquanto buscava caminhar para uma

sociedade comunista, sem Estado. Assim é que, ao contrário do voto censitário –

baseado na renda e/ou no patrimônio – a Rússia instituiu, no capítulo IV do referido

documento, a vedação de participação política à classe burguesa. Foi a

discriminação a contrario, em que o pertencimento à camada social superior deixou

de ser causa de inclusão e passou a ser motivo de impedimento ao exercício da

vida pública175.

Se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,

caracterizou-se por consagrar os direitos ligados ao liberalismo econômico

individualista, notadamente a propriedade, a liberdade (contratual) e a igualdade

meramente formal, a Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Oprimido tentou

avançar na busca da igualdade material. Para tanto, determinou a socialização dos

meios de produção, a instituição do trabalho como um dever para todos, o

desarmamento das antigas classes proprietárias dos meios sociais de produção, a

outorga do poder aos grupos populares formados por aqueles que exercessem

“trabalho produtivo ou socialmente útil”, entre outras medidas efetivamente

niveladoras176.

174 TRINDADE, J., História..., op. cit., p. 156. 175 idem, p. 157. 176 ibidem, pp. 156/159.

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IV.2.e – Constituição de Weimar – Alemanha, 1919

Não se pode deixar de mencionar, entre os textos de declarações

e constituições marcantes de direitos humanos, a Constituição Alemã de 1919,

conhecida como Constituição de Weimar.

A derrota na Primeira Guerra Mundial trouxe à Alemanha grandes

danos e baixas: além de arrasada, foi excluída da mesa de negociação de

Versalhes em 1919 – pela primeira vez o país derrotado não participava das

negociações do pós-guerra – e foram-lhe impingidas obrigações que não tinha como

suportar177. Com o país destruído econômica e socialmente, as taxas de inflação e

desemprego em níveis muito altos e com o recrudescimento do movimento operário,

a burguesia alemã viu-se forçada a ceder em alguns pontos ao apelo popular, para

evitar que se configurasse uma nova situação revolucionária no país (uma situação

assim já fora derrotada pela social-democracia alemã em novembro de 1918).

O documento enfim produzido expressou uma correlação de

forças “sem maiorias claras, em um contexto político cujo equilíbrio era precário e

instável.”, constituindo um “compromisso politicamente aberto de renovação

democrática na Alemanha.”178. No aspecto político, estendeu o direito de voto

também às mulheres; do ponto de vista dos direitos civis, garantiu a já conhecida

igualdade perante a lei, e vários direitos relativos às relações familiares, à prática

religiosa e à educação.

A grande concessão, porém, encontrava-se na seção V, e

intitulava-se "Da vida econômica". Nessa parte restou assentado que a economia

deveria proporcionar a todos uma existência digna, sendo esse o limite para a

atividade econômica individual. A propriedade foi garantida, mas com observância

de sua função social, e o Estado foi incumbido de regulamentar o uso e

parcelamento do solo, bem como de intervir na economia. A liberdade assegurada o

foi como faculdade individual balizada pela primazia da coletividade, protegendo-se

os direitos pessoais enquanto cumprissem seu papel social179. Foi ainda previsto um

177 KEYNES, John Maynard. As conseqüências econômicas da paz. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002, p. 139 e segs. 178 BERCOVICI, G., Constituição e Estado de Exceção Permanente – Atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 26. 179 idem, p. 27.

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direito do trabalho uniforme e um sistema geral de saúde e previdência social,

garantida a liberdade de associação trabalhista, reconhecido o direito ao trabalho e,

em sua falta, à assistência social e, dizia ainda a Carta de 1919, que seria buscada

regulamentação internacional para assegurar aos trabalhadores de todo o mundo

um mínimo de direitos sociais180.

A Constituição de Weimar foi, ao mesmo tempo, esperança e

frustração, na medida em que não realizou suas aspirações, posto que, fruto de

conciliação entre forças sociais antagônicas, não conseguiu uma unidade

conceitual, permitindo que fosse apropriada por forças que estavam longe de aceitar

a efetivação do conteúdo dos direitos nela previstos181.

IV.2.f – Declaração Universal dos Direitos Humanos – ONU,

1948

O outro grande documento de caráter universal que dispôs sobre

os direitos humanos – e o mais importante de todos – foi a Declaração Universal dos

Direitos Humanos, de 1948, que foi a resposta dos vencedores da Segunda Guerra

Mundial ao horror perpetrado pelos vencidos (contudo nada se disse quando aos

horrores de responsabilidade dos próprios vencedores182). O morticínio deliberado e

massivo de seres humanos por atributos raciais e ideológicos estarreceu o mundo

inteiro. O sistema de extermínio humano criado por Hitler firmava-se como o não-

modelo, a contra-referência.

Com o fim da Segunda Guerra e a retomada da preocupação

acerca dos direitos humanos em nível mundial, passou o indivíduo, singularmente

considerado, a figurar na agenda internacional como objeto de preocupação – e de

proteção – dos Estados.

Urgia que se colocassem novamente e com mais veemência os

180 TRINDADE, J., op cit,, pp. 160/162. 181 BERCOVICI, G., Constituição e Estado..., op. cit., pp. 26/27. 182 O Tribunal de Nuremberg, instituído para punir os crimes de guerra nazistas não teve um equivalente para julgar, por exemplo, os morticínios de Dresden e de Hiroshima e Nagasaki, atos gratuitos como estratégia militar, mero exercício de guerra e, no caso do Japão, também estratégia de intimidação do bloco soviético.

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direitos humanos na ordem do dia, e desta vez em nível verdadeiramente universal.

O fato de o Holocausto ter ocorrido dentro das fronteiras nacionais evidenciou a

necessidade de se conferir proteção internacional e universal aos direitos humanos,

que não mais poderiam ficar apenas sob o âmbito da soberania estatal. Fazia-se

inadiável a garantia de direitos humanos em nível internacional.

Pode-se dizer que esse documento teve o condão de instaurar o

Direito Internacional dos Direitos Humanos, dada a atribuição aos homens e

mulheres da condição de sujeitos de direito internacional (status que até então era

prerrogativa apenas dos Estados)183 e a profundidade e abrangência conferidas ao

tema, pela primeira vez na História. O fenômeno da internacionalização dos direitos

humanos é, pois, historicamente muito recente, datando do pós-Segunda grande

Guerra, precisamente a partir da Declaração Universal de 1948.

Inicialmente, não se pode olvidar que a Declaração Universal dos

Direitos do Homem não era um tratado internacional a ser firmado pelos Estados

signatários que por ele se obrigariam. A Declaração foi aprovada sob a forma de

Resolução, que não apresenta força de lei, sendo tão-somente um protocolo de

intenções, um compromisso moral a ser observado globalmente. Ainda assim, não

se pode descartar sua importância como documento inaugural da concepção

contemporânea de direitos humanos, pelo seu alcance e, especialmente, por

constituir-se em referência axiológica sobre o assunto.

A Carta é precedida de sete “considerandos”. O primeiro deles

lança a premissa fundamental que embasa toda a doutrina e prática dos direitos

humanos em nível internacional: o reconhecimento da dignidade humana. Tal

reconhecimento é feito de maneira universalizante184 e igualitária, extensivo a todos

os seres humanos. O artigo primeiro da Carta reafirma a igualdade entre os seres

humanos e prega a interação entre as pessoas segundo um espírito de fraternidade.

É importante ressaltar esse pensamento que permeia toda a Carta, principalmente

se levarmos em conta as circunstâncias em que foi produzida.

183 ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. 2ª edição revista e ampliada – São Paulo: Editora Perspectiva, 2003, p. 37. 184 Essa universalidade, contudo, teve um alcance limitado, posto que ao tempo em que firmada a Declaração, a Assembléia Geral da ONU contava com 56 países apenas e, desses, 8 abstiveram-se de votar. Dessa forma, o sentido de universalidade foi muito mais proclamado do que verdadeiramente consentido em caráter universal. Cfr. ALVES, José Augusto Lindgren. Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005, p. 9.

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A Carta instituiu também o direito à auto-determinação dos povos,

isso em um momento histórico em que o colonialismo estava consolidado. Outro

marco significativo desse documento foi ter colocado a proteção aos direitos

humanos em patamar acima dos Estados, ou seja, acima da soberania estatal, isso

pelo menos no plano teórico.

O momento da realização da Declaração Universal dos Direitos

Humanos é o de um mundo que entrava na Guerra Fria, dividido entre distintas

concepções sociais e políticas de mundo, e a Carta de Direitos tinha também a

missão de buscar compatibilizar os temas mais diretamente ligados a cada um dos

blocos em “conflito”: os direitos civis, de caráter individualista, mais caros ao bloco

capitalista, e os direitos sociais e econômicos, fundamentais para o lado

socialista185. A Declaração de 1948 tentou refletir essas forças, mas não o fez

equilibradamente, senão vejamos: dos seus trinta artigos, vinte e um contemplam os

direitos civis e políticos – garantias individuais; sete são dedicados aos direitos

econômicos, sociais e culturais; um contempla as responsabilidades do indivíduo e a

forma de exercitar seus direitos e, por fim, o último dispositivo trata de rejeitar

qualquer interpretação aos dispositivos da Carta que signifiquem a não observância

dos direitos nela previstos.

Sob outra ótica, a Declaração Universal dos Direitos Humanos

fundou a concepção contemporânea de direitos humanos no que diz respeito à

fusão dos direitos de cunho individualista e os de natureza social. Esse

entendimento tem importância porque, a partir dele, surgiu a concepção de que os

direitos humanos são universais, além de indivisíveis, interrelacionados e

interdependentes186 e mais, iguais em valor, insuscetíveis de hierarquização. Essa é

a concepção atual sobre direitos humanos, não obstante o problema do

multiculturalismo, que tem representado dificuldades para a uniformização e

definição sobre os direitos humanos no mundo contemporâneo. Apesar disso,

permanece a compreensão da universalidade e indivisibilidade como características

desses.

185 Ao aduzir ao lado ou bloco socialista, não queremos expressar nossa concepção sobre os regimes estabelecidos no leste europeu: se foram ou não efetivamente socialistas ou se não passaram de um modelo de capitalismo de Estado. Seja como for, o uso da expressão “socialista” aqui se justifica por ser consagrada e facilmente identificável, e também porque os países aos quais se refere assim se nomeavam e consideravam. 186 ALVES, José A., Os direitos humanos como tema global, op. cit., p. XII.

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Voltando à Declaração Universal dos Direitos Humanos, por se

tratar de um documento não obrigatório, restou decidido pela ONU que deveria ser

produzido, desta vez com força obrigatória, um outro documento que representasse

um grande pacto sobre direitos humanos. Dadas as diferenças de pontos de vista

sobre a definição e a forma de proteção desses direitos, os países do bloco

capitalista conseguiram firmar o entendimento de que os direitos civis e políticos

seriam desde logo exigíveis – portanto, auto-aplicáveis –, enquanto que os direitos

sociais, políticos e econômicos teriam aplicação progressiva, como se dotados de

caráter meramente programático. Já se apresentava aí uma estratégia de divisão de

direitos, com a pretensão de atribuição de “valores” diferentes aos direitos

pertencentes a cada um dos grupos.

A divergência representada pelos blocos conflitantes determinou,

apenas após dezoito anos de discussões, a produção do documento. Só que, em

vez de ser um pacto, foram elaborados dois, aprovados pela Assembléia Geral da

ONU em dezembro de 1966: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o

Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A divisão deveu-se

a pressões dos países ocidentais que argumentavam que os direitos civis e políticos

eram de aplicação imediata, e com relação a eles poderia ser criado um Comitê

encarregado de examinar denúncias de suas violações, enquanto que os direitos

sociais somente poderiam ser aplicados progressivamente. Apesar de rebatidas tais

argumentações pelo bloco socialista – que apontava a possibilidade de

enfraquecimento dos direitos econômicos e sociais se feita a divisão proposta e que

propunha um documento único –, a proposta ocidental saiu-se majoritária na

Assembléia Geral da ONU.

Não obstante sua aprovação pela Assembléia em 1966, os dois

pactos somente entraram em vigor em 1976, quando conseguiram o número mínimo

necessário de ratificações, o que demonstra a dificuldade quanto ao

comprometimento com o tema. Por outro lado, o país hegemônico e declaradamente

vinculado às premissas do liberalismo, os EUA, não assinaram até hoje o Pacto dos

Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (em que acabou por prevalecer a idéia da

aplicação progressiva) e, mesmo o outro Pacto, o dos direitos civis e políticos,

somente ganhou sua adesão em 1992187.

187 ALVES, José A., Os Direitos Humanos como tema global, op. cit., p. 7.

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A diferença entre os pesos conferidos a cada um dos grupos de

direitos ecoa ainda hoje, no sistema hegemônico neoliberal. A exaltação da

liberdade e da defesa da propriedade individual encontra-se antes da

implementação dos direitos econômicos e sociais, difusos e coletivos na ordem de

prioridades estatais e mesmo aquelas, a julgar pelo exemplo e pela prática da

grande potência hegemônica, estão fadadas ao desprestígio.

IV.2.g – Declaração de Viena – ONU, 1993

Se o caráter universal dos direitos humanos, considerado quanto

ao aspecto do número de Estados que firmaram sua adesão aos documentos

internacionais, ainda era claudicante, a Declaração de Viena reafirmou esse

princípio fundamental e, desta vez, em nível verdadeiramente global. A conferência

de que resultou o documento reuniu o maior número de estados até então a tratar do

tema – 171188, contra 56 quando da elaboração da Declaração de 1948, texto

aprovado por apenas 48 participantes.

O cenário político mundial, no entanto, havia se transformado

completamente. No contexto que se seguiu após o fim da Guerra Fria e a queda do

Muro de Berlim, com suas decorrências, imperava um tom de vitória do modelo

capitalista liberal ocidental como modelo definitivo de Estado e de convivência

humana. A Conferência de Viena realizou-se nesse momento histórico de suposta

definitividade daquele modelo.

Novas demandas postas no cenário internacional, contudo, cedo

a desmentiram. Foram postas na mesa renovados problemas em termos de direitos

humanos, não mais limitados apenas à dicotomia direitos civis e políticos x direitos

sociais, econômicos e culturais (que, entretanto, continuaram atuais). Questões

envolvendo universalismo x regionalismo, multiculturalismo e relativismo cultural,

demandas quanto ao desenvolvimento, refugiados e movimentos migratórios, entre

outras, ampliaram o leque de discussão e de compreensão da natureza dos direitos

humanos na contemporaneidade.

188 ALVES, José A., Os Direitos Humanos como tema global, op. cit., pp. 23/24.

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É de se lembrar que, um ano antes da Conferência de Viena foi

realizada no Rio de Janeiro a Conferência Eco-92, que discutiu o tema ambiental,

cuja proteção constitui também um direito humano dos povos.

Essa diversificação refletiu-se no texto aprovado na conferência.

A Declaração de Viena reafirmou a universalidade dos direitos humanos (que

encontrou dificuldades para ser aprovada em face dos reclamos quanto ao

reconhecimento do relativismo cultural ou religioso); instituiu o direito ao

desenvolvimento por consenso universal, atendendo a reivindicações dos países de

Terceiro Mundo; enfatizou os direitos da mulher; condenou e exigiu punição aos

genocídios, aos quais equiparou as práticas de limpeza étnica e estupro em massa;

vinculou os conceitos de democracia, desenvolvimento e direitos humanos189, entre

muitos outros temas aprovado.

A ampliação do conceito dos valores protegidos juridicamente em

nível internacional na condição de direitos humanos é inegável. Ao menos

formalmente houve um comprometimento global dos Estados, acima de suas

diferenças culturais e históricas, no sentido de admitir os direitos humanos como

universais e de promover ações para efetivá-los. Veremos a seguir se o

conseguiram.

189 ALVES, José A., Os Direitos Humanos como tema global, op.cit.,pp. 27/30.

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CAPÍTULO V – Do Estado Liberal ao Estado Neoliberal – Relação

com os Direitos Humanos

1. Liberalismo Econômico

Do ponto de vista econômico, antes mesmo da Revolução

Francesa já se encontrava presente a idéia do liberalismo. A concepção do livre

mercado era defendida pelos fisiocratas, o assim chamado grupo de economistas

franceses que propugnavam a máxima laissez faire, laissez passer 190. O slogan

significava o afastamento do estado das relações econômicas vigentes no seio

social, conforme a aspiração burguesa, a fim de que o mercado pudesse atuar sem

amarras.

A partir da Revolução Francesa, triunfou a idéia já existente do

Estado Moderno, de cunho liberal, fundado na proposição da igualdade perante a lei

– meramente formal – e do livre funcionamento do mercado, cabendo-lhe

simplesmente garantir as regras para que a circulação de moeda e mercadoria

pudesse fluir desembaraçadamente. Era a idéia do estado mínimo que veio ao

encontro do pensamento da classe social ascendente.

Não obstante as garantias legais quanto às liberdades civis e a

igualdade, o sistema econômico capitalista surgiu e se fundamentou na

desigualdade real. “O capitalismo surgiu como ‘a civilização das desigualdades’.”191.

A Revolução Industrial serviu-se da mão-de-obra operária como

de uma mercadoria – a força de trabalho – sujeita aos termos de contrato firmado

entre as partes subjetivamente iguais. Durante todo o século XIX e até o início do

século XX o modelo não havia sido questionado no Ocidente. A Europa Ocidental e

os Estados Unidos adotavam o receituário liberal, cujo espírito Adam Smith tão bem

traduziu em sua obra "A Riqueza das Nações" e que foi, não por acaso, um recorde

de vendas nos fins do século XVIII e início do século XIX192.

190 TRINDADE, J., História..., op. cit., pp. 38/39. 191 NUNES, Antônio José Avelãs. Neoliberalismo &Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003, p. 29. 192 TRINDADE, J., História..., op. cit., p. 39.

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Importa conhecer melhor as idéias de Adam Smith, porque isso

permite entender o que o papel que o liberalismo dispunha ao Estado e aos seus

cidadãos. Smith expôs suas idéias com clareza e sem disfarces, de forma que hoje

chegam a causar espanto de tão explícitas, o que já justificaria revisitá-lo.

A respeito da fixação de salários, Smith afirmou que, antes do

advento da propriedade privada e da acumulação de capital, o trabalhador era dono

de todo o produto de seu trabalho – situação que, se mantida, teria causado o

aumento do valor do trabalho, ou salário, de par com o aumento da produtividade

originado da divisão do trabalho. Entretanto, com a apropriação da terra, os

proprietários passaram a exigir dos trabalhadores uma parcela de tudo o que

produziam. Essa renda constituiu a primeira apropriação do produto do trabalho. A

segunda dedução veio do lucro auferido pelo proprietário, em troca do fato de ter

investido capital no empreendimento, bem como pelo adiantamento, em favor do

trabalhador, de recursos necessários ao seu sustento enquanto o produto do

trabalho encontrava-se em elaboração. Quanto ao lucro, sua fonte é a apropriação

pelo empregador ou proprietário do valor acrescido à matéria-prima pelo trabalho

prestado.

Esclarecidas as partes em que se decompõe o valor do trabalho,

bem como suas destinações, Adam Smith profere sentença certamente incômoda

no regime liberal fundado na igualdade formal:

É pelo contrato celebrado habitualmente por essas duas pessoas (empregado e proprietário), cujos interesses de maneira nenhuma são os mesmos, que se determinam, em todos os lugares, os salários correntes do trabalho. Os operários desejam ganhar o mais possível, e os patrões, a pagar o menos que possam; os primeiros estão dispostos a se unir para elevar os salários do trabalho, e os últimos para rebaixá-los.

193

É admirável a franqueza com que se pronuncia o grande teórico

da economia liberal. Ainda com relação às duas partes em oposição na relação de

trabalho, asseverou o autor que era fácil prever qual das duas partes levaria

vantagem na disputa: os patrões. E isso porque o sistema legal não os proibia de se

unirem, ao passo que o fazia quanto aos empregados; porque não havia leis no

Parlamento contrárias à redução de salários, mas as havia contra o seu aumento;

porque o patronato poderia sobreviver por muito mais tempo sem o trabalho dos

193 SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003, vol. 1, p. 82.

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seus empregados do que o contrário, graças ao capital acumulado194.

Em seguida, Smith aduz que, quando os patrões decidem, em

coalizão, reduzir os salários para um nível abaixo da taxa natural, os trabalhadores

reagem com estardalhaço e violência, ao tempo em que os patrões, também com

barulho, apelam em altos brados para a magistratura pedindo a execução rigorosa

das leis promulgadas com severidade contra as coligações195 de criados, operários

e jornaleiros. Em decorrência, os trabalhadores normalmente nada recebem, seja

em função da intervenção do magistrado, seja pela maior capacidade de resistência

dos patrões, restando como saldo àqueles apenas as punições e a queda dos

líderes do movimento de insurgência196.

Smith foi o grande teórico do Estado liberal no que diz respeito ao

aspecto econômico. Ao emprestar cientificidade ao funcionamento da economia da

sociedade, Smith justificou e legitimou o (então) novo regime.

Outro economista liberal, David Ricardo, pôs-se também a estudar o

mecanismo econômico e chegou a duas conclusões desconhecidas por Smith.

Primeira, a de que somente o trabalho é o fundamento do valor de troca de todas as

coisas. Essa assertiva permitiu a conclusão de que o capitalista explora o

trabalhador – o verdadeiro produtor da riqueza que, no entanto, vive em regime de

escassez –, na medida em que se apropria, em forma de lucro, do valor excedente

conferido pelo trabalho à mercadoria. Segunda, a de que o capitalismo tenderia a

caminhar para a estagnação e a ocorrência de crises ser-lhe-ia inerente. A análise

efetuada por Ricardo revelou-se insuficiente para explicar os reais motivos das

crises cíclicas do capitalismo, mas serviu como alarme contra a concepção vigente

do modelo capitalista como conducente a um desenvolvimento harmônico e

ininterrupto197, em que o mercado sempre se auto-regularia por suas “leis” próprias.

Thomas Malthus, por sua vez, escreveu seu nome na história ao

debater o tema da alegada superpopulação mundial. Após afirmar que, em não

sendo controlada, a população cresceria em progressão geométrica enquanto que a

produção de alimentos seguiria uma progressão aritmética, o pastor inglês fez recair

194 SMITH, A., op. cit., pp. 80 a 83. 195 Não se pode deixar de realçar a posição – ativa – do Estado em relação ao sistema econômico e à exploração do trabalhador. Que não se pense, pois, na neutralidade do regime liberal, fundado, relembre-se, na igualdade de todos perante a lei. Já se pôde verificar que sequer a lei era igualitária, portanto, nem mesmo juridicamente a igualdade foi implantada. 196 SMITH, A. op cit., p. 84. 197 TRINDADE, J., História..., op. cit., pp. 107/110.

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sobre os mais pobres a responsabilidade por tal estado de coisas, ao aduzir que os

trabalhadores vivem na miséria porque se casam cedo e procriam demais. A análise

malthusiana partiu de premissas erradas, como comparar a taxa de natalidade –

elevada – nos Estados Unidos com a taxa de aumento da produtividade – lenta – na

Inglaterra e desconsiderar a existência de uma superpopulação relativa produzida

pelas próprias engrenagens do capitalismo que gera um excedente humano não

aproveitável na produção, principalmente em virtude da mecanização do processo

produtivo. Ao apresentar suas idéias, Malthus justificava e absolvia o modelo

excludente, transformando as vítimas em culpadas por sua situação de miséria.198

Muitos outros teóricos debruçaram-se sobre a sociedade liberal e

capitalista e reconheceram a diferença entre ricos e pobres, entre os donos dos

meios de produção e o proletariado, “dono” apenas de sua força de trabalho.

Entretanto, suas conclusões não eram de repúdio ao modelo, mas de confirmação

deste, na medida em que consideravam, por fim, natural a diferença entre os

homens, segundo diferentes argumentos. Há muito mais sobre os pensadores

liberais, mas não seria oportuno prosseguir no tema, sob pena de estender

indefinidamente uma digressão que visou apenas demonstrar, ainda que

minimamente, a ausência de ingenuidade do liberalismo199 assentado na igualdade

formal.

Os fundamentos do liberalismo foram amplamente estudados e

questionados de maneira abrangente e científica por Karl Marx200, que demonstrou

em minúcias a formação do capital e o funcionamento do capitalismo. Suas idéias

batiam de frente com a ordem das coisas e sua proposta incluía mudanças radicais

na sociedade e no estado.

A atualidade de Marx, para desgosto dos seus detratores e dos

198 TRINDADE, J., História..., op. cit., pp. 105/107. 199 Veja-se a seguinte declaração de Simon N. H. Linguet, jurista conservador do século XVIII, em sua obra Teoria das Leis Civis (1767): “A justiça é a vontade eterna e voluntária de dar a cada um o que, por direito, lhe cabe. Assim falam os juristas. Mas, na verdade, aquele que é pobre nada tem senão a pobreza. E as leis nada poderão lhe dar porque elas têm por finalidade única defender os que vivem na abundância contra os ataques dos que não têm sequer o necessário para viver. As leis são ditadas pelos ricos. São eles, evidentemente, que delas se aproveitam. Podem ser comparados a fortalezas, pelos ricos construídas em território inimigo. As guerras são causadas pelas leis, porque as guerras têm por causa o amor à propriedade. E em que se baseia a propriedade, a não ser nas leis? A finalidade da sociedade burguesa é libertar os ricos de todo e qualquer trabalho. A situação do operário livre é pior do que a do escravo. Porque o escravo sabe o que comerá, mesmo quando não tiver trabalho. E, que acontece com o operário livre, quando não encontra trabalho? Quem dele cuida, quando se vê condenado a morrer de fome e de miséria?” apud Max Beer, História do Socialismo e das Lutas Sociais, op. cit., p. 345. 200 BONAVIDES, P., op. cit., p. 166.

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grandes teóricos liberais e neoliberais, é inegável e sua superação não decorre,

agora ou no futuro, de melhores argumentos ou novos olhares sobre a sociedade

que a decifrem com mais acuidade. O marxismo será superado quando igualmente

superada for a civilização capitalista e a divisão da sociedade em classes sociais

antagônicas, na praxis, e não na teoria201. Até lá, cabe a Marx o mérito de haver

desvendado em minúcias o funcionamento do modo de produção capitalista,

retirando-lhe os véus convenientemente postos pela ideologia da classe dominante.

2. Do Estado Liberal ao Estado Neoliberal

A ordem capitalista que produziu o estado burguês, um estado de

classe calcado na violência e não na ética202, distinguia entre política e economia,

como se esta nada tivesse a ver com aquela, e com isso procurava afastar a

máquina estatal da realidade sócio-econômica, a partir da cisão entre as relações de

produção e a exploração de classe203. A “neutralidade” do estado burguês

corresponderia ao respeito à liberdade individual e à propriedade privada, sempre

visando a proteção e a tutela do indivíduo204, considerando-se intervenção indevida

em tais “direitos fundamentais” a do estado no domínio econômico.

Assim é que o Estado Liberal é, em essência, absenteísta, exceto

quando se trata de garantir a livre fluência das relações capitalistas, resguardando

os proprietários dos meios de produção e protegendo-os das oscilações e incertezas

do “mercado” quando assim se faz necessário. Ou seja, o chamado estado mínimo

é, na realidade, um estado forte, o qual se encerra em seu casulo onde lida com

conceitos tais como justiça, democracia, vontade do povo, representação dos

interesses gerais, respeito à lei, entre outros conceitos fetichizados, e despreza a

vivência no solo do mundo real sob o capitalismo205.

Por outro lado, não se pode esquecer que a própria formação da

sociedade sob o modelo capitalista não prescinde da atuação do estado para, além

201 BORON, A., op. cit., p. 292. 202 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica da Constituição de 1988. 12ª edição – São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 18. 203 BORON, A. op. cit.,p. 290. 204 BONAVIDES, P., op. cit., p. 268. 205 BORON, A., op. cit., p. 298.

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de garantir a fluência do mercado, realizar a infra-estrutura necessária para tanto. O

estado, no mundo capitalista, é a outra face do poder econômico da sociedade, e

existe para defender, em última análise, a propriedade privada206.

Cumpre enfatizar, de toda sorte, a circunstância de que, embora o capitalismo reclame a estatização da economia, o faz tendo em vista a sua própria integração e renovação (modernização). Essa estatização jamais configurou qualquer passo no sentido de socialização/coletivização; pelo contrário, o Estado, no exercício de função de acumulação, sempre se voltou à promoção da renovação do capitalismo.207

O estado e o mercado estão intrinsecamente relacionados, e

ambos participam da estrutura de poder da sociedade capitalista; ambos

representam construções humanas e históricas a serviço da burguesia, bem como o

direito. A “mão invisível” do mercado não é tão invisível assim, e a suposta

racionalidade deste depende não de seu regular funcionamento, mas da atuação do

estado que, como ente ordenador da sociedade, regula-o de modo a preservar a

reprodução do capitalismo.208

O Estado Liberal, pois, nunca faltou ao papel de ordenador

econômico da sociedade nos limites dos interesses da classe político-econômica

dominante. É nesse sentido que se pode afirmar a existência de Constituições

Econômicas desde os séculos XVIII e XIX, entendidas estas como as cartas

fundamentais que disciplinavam a ordem econômica (não obstante o discurso liberal

de defesa do estado mínimo), preservando os fundamentos econômicos do sistema

capitalista209.

Dizendo-o de outro modo: o mercado exige, para satisfação do seu interesse, o afastamento ou a redução de qualquer entrave social, político ou moral ao processo de acumulação de capital. Reclama atuação estatal para garantir a fluência de suas relações, porém, ao mesmo tempo, exige que essa atuação seja mínima.210

A Grande Depressão mundial dos anos 30 do século passado

forçou o Estado Liberal a ceder lugar a um novo modelo estatal, que pudesse atuar

de forma mais efetiva a fim de minorar os efeitos danosos da depressão sobre a 206 GRAU, E., A Ordem..., op. cit., p. 18. Cfr., por oportuno, transcrição de Pimenta Bueno sobre o direito de propriedade feita na p. 19. 207 idem, op. cit., p. 29. 208 ibidem, pp. 30/31. 209 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica..., op. cit., p. 32. 210 GRAU, E., A Ordem..., op. cit., p. 37.

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economia e a população e, com isso, garantir sua sobrevivência.

Em decorrência da crise econômica planetária surgiu, pois, o

Estado do Bem-Estar Social, o welfare state. Sem ingressar no aspecto histórico-

político, o estado do bem-estar social caracterizou-se pela forte intervenção do

estado na economia e pelas concessões feitas aos trabalhadores – majoração

salarial, redução da jornada de trabalho, adoção de leis trabalhistas e

previdenciárias, dentre outras medidas distributivas.

Quando a crise capitalista aguda demandou, o Estado teve que

sair de sua posição abstencionista (nos limites já apontados) e passou a interferir

ostensivamente no funcionamento da economia, concordando com a emergência

dos direitos sociais a fim de acomodar a luta de classes, evitando assim o perigo de

uma revolução operária. Dessa forma, “as imperfeições do liberalismo [...]

associadas à incapacidade de auto-regulação dos mercados, conduziram à

atribuição de novas funções ao Estado211.

Atente-se, contudo, para o fato de que as concessões feitas pela

burguesia pressionada pelas forças sociais, a maior atuação do estado no seio da

sociedade, a instituição de novos direitos e garantias para os trabalhadores, tudo

isso é feito não para caminhar em direção ao socialismo ou a uma efetiva

equalização social. Ao contrário, foi justamente para manter-se que os capitalistas

“entregaram os anéis para não perderem os dedos”.

Observe-se enfaticamente que, embora a estatização e o intervencionismo estatal no domínio econômico possam aqui ou ali contrariar os interesses de um ou outro capitalista, serão sempre adequados e coerentes com os interesses do capitalismo. [...] No desempenho do seu novo papel, o Estado, ao atuar como agente de implementação de políticas públicas, enriquece suas funções de integração, de modernização e de legitimação capitalista. Essa sua atuação, contudo, não conduz à substituição do sistema capitalista por outro. Pois é justamente a fim de impedir tal substituição – seja pela via da transição para o socialismo, seja mediante a superação do capitalismo e do socialismo – que o Estado é chamado a atuar sobre e no domínio econômico.212

Depois da experiência do Estado do Bem-Estar Social, e de forma

mais visível a partir dos anos 1980 com os governos Thatcher e Reagan (e até

antes, no Chile de Pinochet, mas não de forma tão expressiva no cenário mundial),

211 GRAU, E., A Ordem..., op. cit., pp. 21/22. 212 idem, pp. 44/45.

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operou-se um gradual retorno aos cânones liberais, uma reação teórica e política ao

welfare state. “O discurso neoliberal postula o rompimento da concepção do Estado

do bem-estar.”213. Mas algumas diferenças significativas marcam o neoliberalismo.

Apesar do discurso hegemônico apregoado pelo autodenominado

neoliberalismo e corrente desde as duas últimas décadas do século XX, quanto à

necessidade de “encolhimento” do Estado, a realidade mostra que, além de suas

tradicionais funções de garantir o funcionamento do sistema – produzir direito e

prover a segurança –, continua a somar-se a função de intervir na economia. Tal

afirmação pode ser comprovada, no ordenamento positivo brasileiro, pela simples

leitura do capítulo dedicado à ordem econômica na Constituição – Título VII – Da

Ordem Econômica e Financeira. Não se discute mais a função comissiva do Estado

sobre a economia. “Há evidente conexão entre a tendência à acumulação de capital

e a extensão das funções do Estado; a ação pública, desta sorte, é condição

necessária do desenvolvimento econômico.” 214

A função e a presença do Estado são necessárias para a

manutenção do sistema capitalista neoliberal, donde se pode concluir que existe

uma opção estatal quanto à sua forma de agir em privilégio do capital. Ou, segundo

Eros Grau, "o mercado é uma instituição jurídica."215 Dispiciendo ressaltar que a

produção do direito é função típica de estado.

Além de jurídica, o mercado também pode ser considerado uma

instituição social e política:

A nosso ver, a história das sociedades humanas mostra que o mercado não é um puro mecanismo natural de afectação eficiente e neutra de recursos escassos e de regulação automática da economia. O mercado deve antes considerar-se, como o estado, uma instituição social, um produto da história, uma criação histórica da humanidade, que surgiu em determinadas circunstâncias económicas, sociais, políticas e ideológicas. Uma instituição que veio servir (e serve) os interesses de uns (mas não os interesses de todos), uma instituição política destinada a regular e a manter determinadas estruturas de poder que asseguram a prevalência dos interesses de certos grupos sociais sobre os interesses de outros grupos sociais. "Longe de serem 'naturais', os mercados são políticos", sustenta David Miliband. Quer dizer: o mercado e o "estado são ambos instituições sociais, que não só coexistem como são interdependentes, construindo-se e reformando-se um ao outro no processo da sua interacção.

216

213 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª edição – São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 127. 214 GALGANO, Francesco, apud GRAU, E., in A Ordem..., op. cit., p. 28. 215 GRAU, E., O direito..., op. cit., p. 272. 216 NUNES, A., op cit, p. 64.

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Independente de se considerar o mercado uma instituição jurídica

ou político-social, importa reconhecer nele – e no estado – sua ausência de

neutralidade, bem como a identificação de seu modo de atuar como intencional e

voltado à consecução de determinados fins. Tal assertiva é importante para

fazermos a conexão, mais adiante, com os rumos que vêm tomando os direitos

humanos no quadro atual. Examinemos agora o que efetivamente caracteriza o

neoliberalismo.

Seus traços distintivos são as transformações decorrentes da 3ª.

Revolução Industrial que modificaram a face do mundo no que diz respeito aos

avanços tecnológicos, de informática e de comunicação, do que resultou possível a

globalização financeira217.

Esta diz com a remoção das barreiras comerciais e integração

das economias nacionais. Para Stiglitz, a globalização

é a integração mais estreita dos países e dos povos do mundo que tem sido ocasionada pela enorme redução de custos de transporte e de comunicações e a derrubada de barreiras artificiais aos fluxos de produtos, serviços, capital, conhecimento e (em menor escala) de pessoas através das fronteiras.

218

A lógica declarada do capitalismo neoliberal é a redução de

salários e da proteção ao trabalhador em troca de maior margem de lucro às

grandes empresas, o que, supostamente, permitiria a criação de novos postos de

trabalho diante da disponibilidade financeira para o investimento na produção. Esse

é o argumento propalado. Na realidade, o que se vê não é o reinvestimento dos

lucros na produção, e sim, a concentração cada vez maior de renda.

Voltemos um pouco às idéias de Keynes e de seus opositores

para aclarar as bases do pensamento econômico neoliberal.

John Maynard Keynes foi um opositor das idéias liberais clássicas

objetando, quanto ao presumido equilíbrio proporcionado pelo Mercado, que "as

situações de equilibro com desemprego involuntário (são) inerentes às economias

que funcionam segundo a lógica do lucro e não segundo a lógica da satisfação das

necessidades.” 219

217 GRAU, E., O direito..., op. cit., p. 271. 218 STIGLITZ, Joseph. A Globalização e seus malefícios - a promessa não cumprida de benefícios globais. São Paulo: Editora Futura, 2003, p. 36. 219 KEYNES, John Maynard, apud António José de Avelãs Nunes in Neoliberalismo..., op. cit., p. 4.

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Keynes entendia por "desemprego involuntário" as situações em

que pessoas sem emprego desejavam trabalhar, e aceitavam fazê-lo por salário

inferior ao praticado, e considerava que o nível de emprego estava ligado a um outro

conceito, o de "procura efetiva", que se traduz no valor que a sociedade deseja

gastar, tendo capacidade de arcar com o custo. Keynes concluiu, portanto, que não

era o jogo da oferta e da procura que determina o nível de emprego, mas a procura

efetiva, que significa o quanto a sociedade estava disposta a consumir e, ainda, que

o nível dos salários estava atrelado ao volume de emprego, e não o contrário, como

acreditavam os economistas liberais clássicos.220

Para combater as situações de insuficiência da procura efetiva e

de desemprego involuntário, Keynes propunha uma intervenção do Estado no

sentido de promover o crescimento econômico com geração de empregos e

distribuição de renda221.

Já em 1924, em conferência denominada The End of laissez-

faire, Keynes defendia a intervenção estatal na economia sob o argumento, entre

outros, de que "não se pode sem inconvenientes abandonar à iniciativa privada o

cuidado de regular o fluxo corrente do investimento". Ele propunha ainda a extensão

das funções do Estado com a coordenação econômica feita por órgãos centrais e a

"socialização do investimento"222.

Correntes de pensamento econômico keynesianas dedicaram-se

a provar a correlação entre inflação e taxa de emprego. Quanto mais alta a primeira,

maior a segunda. Ou seja, o crescimento da inflação também traria um índice maior

de empregos 223.

No início da década de 1970, porém, começaram a verificar-se situações caracterizadas por um ritmo acentuado de subida dos preços (inflação crescente), a par de (e apesar de) uma taxa de desemprego relativamente elevada e crescente e taxas decrescentes (por vezes nulas) de crescimento do PNB. Começava a era da estagflação.224

A partir desse momento, com uma aparente confusão dos que

seguiam as idéias de Keynes em explicar a concomitância das altas da inflação e da 220 KEYNES, John Maynard, apud António José de Avelãs Nunes in Neoliberalismo..., op. cit.,idem, pp. 4/5. 221 ibidem, p. 5. 222 ibidem, p. 6. 223 ibidem, pp. 6/8. 224 NUNES, A., op. cit., p. 9, grifo do original.

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taxa de desemprego, ganharam corpo novamente as idéias monetaristas, segundo

as quais a inflação era o principal problema a ser vencido; o desemprego seria

sempre voluntário (posto que as economias tenderiam sempre para uma situação de

emprego pleno a partir do funcionamento livre do mercado) e o fator determinante

para a inexistência do desemprego seria a taxa salarial, ou seja, quando a oferta de

mão-de-obra estivesse maior que a de empregos, isso se deveria ao fato de que os

salários seriam muito altos. Uma baixa no nível salarial 'animaria' os empregadores

a voltar a contratar, eliminando o desemprego quando encontrado o equilíbrio entre

os fatores acima; melhor explicando, equilíbrio quando os salários estivessem

suficientemente baixos225. Mas não é só.

Mesmo com todas as concessões feitas aos direitos dos

trabalhadores na vigência do Estado do Bem-Estar Social, ainda assim persistia

uma certa taxa de desemprego, desmentindo a afirmação de que o mercado

manteria em equilíbrio a oferta de trabalho e a demanda por mão-de-obra.

Todo esse arcabouço teórico keynesiano, todavia, atuava em

favor da manutenção do sistema capitalista, o qual não visava combater, apenas

arejar para permitir-lhe a sobrevivência sobre novas bases. Por mais bem-

intencionado que possa ter sido, Keynes foi um pensador e economista da ordem,

propondo meras reformas no sistema, nunca sua transformação ou substituição.

Foi nesse cenário de crise do capitalismo e da economia em

escala mundial que ganharam corpo as idéias gestadas desde o fim da Segunda

Guerra, tendo como ponto de partida a publicação da obra O Caminho da Servidão,

de Friedrich Von Hayek, em 1944. Essa obra expôs o ataque ao Estado do Bem-

Estar social e à intervenção do Estado na economia226, considerando-a um atentado

à liberdade individual, política e econômica – atingindo inclusive a concorrência.

Hayek entendia que tais fenômenos – liberdade absoluta e abstencionismo estatal

eram imprescindíveis à prosperidade social e conduziriam a uma nova servidão –

comparável à da Alemanha nazista. Em 1947, Hayek fundou a Sociedade de Mont

Péléerin, da qual fazia parte Milton Friedmann, Karl Popper, Michael Polanyi, entre

outros ideólogos liberais duros, destinada a combater as idéias de Keynes e a

solidariedade social ainda praticada, bem como divulgar idéias destinadas ao

225 NUNES, A., op. cit., pp. 10/12. 226 idem, pp. 50/51.

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estabelecimento de um novo modelo capitalista, livre de regras estatais227.

Esses pensadores entendiam que o problema da crise capitalista

estava no gasto excessivo feito pelos Estados para sustentar a estrutura social e no

poder que detinham os sindicatos que, a partir do atendimento de suas

reivindicações, contribuíam para corroer as bases de acumulação capitalista em

face desses custos sociais228. A solução proposta para resolver o problema da crise

seria simples: ausência do Estado da economia e sua presença apenas para romper

o poder sindical229, conter as despesas públicas e garantir a estabilidade

econômica230. Argumentavam que era preciso romper com a intervenção estatal e

com a regulação de mercado, bem como com a implantação de práticas

equalizadoras (de efeito bastante restrito, como se sabe), posto que tais medidas

atentavam contra a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência,

pressuposto da prosperidade geral. Defendiam, ainda, a desigualdade social como

valor positivo, posto que necessário às sociedades ocidentais. Para eles, o estado

deveria ser forte, sim, para romper o poder dos sindicatos e efetuar o controle da

moeda, com vistas à estabilidade monetária, meta suprema de todo governo.231

Com a crise econômica mundial ocorrida na década de 70, surgiu

o espaço para aplicação dessas idéias a partir da eleição de Thatcher, na Inglaterra,

em 1979, das quais seu governo era partidário, e, posteriormente, com Reagan, nos

EUA, em 1980. A partir de então, sucessivos governos na Europa assumiram o

poder e rapidamente disseminou-se o modelo neoliberal ortodoxo, caracterizado

pela total liberdade ao mercado, desmonte da estrutura social do Estado e

participação ativa deste apenas no que diz respeito à repressão e desmobilização

sindical – o que nem precisaria ser feito, tendo em vista os altos índices de

227 MOREIRA, Alexandre Mussoi, A Transformação do Estado – Neoliberalismo, Globalização e Conceitos Jurídicos. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2002, p. 88. 228 Os monetaristas entendem que a responsabilidade pelo desemprego é atribuível apenas aos sindicatos, na medida em que, enquanto houver desemprego, esses devem incentivar os trabalhadores a aceitar os salários mais baixos, e não lutar para aumentá-los – ou mantê-los. Afirma Hayek: “é necessário que a responsabilidade de estabelecer um nível de salários compatível com nível de emprego elevado e estável seja de novo firmemente colocada onde deve estar: nos sindicatos.” (in Neoliberalismo e Direitos Humanos, António José de Avelãs Nunes, p. 25). 229 O ataque aos sindicatos é nota essencial do pensamento monetarista. Hayek chega a entender que a atividade sindical é o principal fator de desencorajamento do investimento privado no setor produtivo. (in Neoliberalismo e Direitos Humanos, António José de Avelãs Nunes, p. 26). 230 MOREIRA, A., op. cit., pp. 88 e 89. 231 ANDERSON, Perry. O Balanço do Neoliberalismo. Disponível em: www.socialismo.org.br/portal/filosofia/155-artigo/302-balanco-do-neoliberalismo. Acesso em: 28 mai.2008.

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desemprego que se seguiram232, o que, por si só, já exauriu o poder de luta dos

sindicatos.

Para os monetaristas (expressão que designa os defensores das

idéias acima, os quais acreditavam que a estabilidade da moeda seria a forma de

manter o mercado estável e este bastaria para regular a economia), não houve

problema em explicar o porquê da existência da taxa de desemprego temporário.

Esta seria a representação do número de trabalhadores que deixaram seus

empregos e estariam em busca de outro melhor. Assim, o desemprego seria sempre

voluntário e temporário. Se não o fosse, tal dever-se-ia apenas à escolha do

trabalhador de não aceitar emprego com salários mais baixos que o desejado ou de

preferir o lazer ao trabalho.

Para sintetizar, os trabalhadores sempre encontrariam emprego

se estivessem dispostos a receber salários mais baixos, e o desemprego devia-se à

sua insurgência contra o baixo nível salarial ou à sua vontade de optar por períodos

de "férias" mais ou menos prolongadas. Por isso o ataque aos sindicatos, que

deveriam ser neutralizados a fim de que não representassem obstáculo à

deterioração do nível salarial e das condições de trabalho. Com isso, os

monetaristas resolviam teoricamente o problema do desemprego e centravam sua

preocupação no combate à inflação, que passava a ser o principal problema

econômico a ser enfrentado233.

Apesar de aplicadas tais receitas em nível praticamente global,

com o avanço do neoliberalismo ao redor do mundo, os resultados prometidos não

se concretizaram. Ao contrário, o desemprego, a dívida pública e os gastos sociais

aumentaram (considerando-se os países da OCDE durante os anos 80), estes

devido ao elevado montante dos gastos sociais com o desemprego e o aumento do

número de aposentados na população. Pode-se concluir que o neoliberalismo,

social e economicamente, fracassou, não tendo efetuado uma revitalização do

capitalismo. Por outro lado, e paradoxalmente, o ideário neoliberal firma-se cada vez

mais como via única, hegemônica, à qual não existiriam alternativas possíveis, não

obstante a multidão de inconformados com os seus efeitos e os resistentes ao

232 Nos anos 80 do século XX o desemprego quadriplicou nos países da OCDE – dado colhido em Alexandre Mussoi Moreira, ob cit, p. 92. 233 NUNES, A., op. cit, pp. 13/15.

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modelo teórico e prático neoliberal.234

Viviane Forrester, no livro O Horror Econômico235, desmistifica

toda essa construção teórica pela simples constatação de que não há uma crise na

civilização, mas uma mudança propriamente de civilização236. O fato é que o modelo

econômico atual não comporta e não prevê empregos em números suficientes para

a população que dele necessita para sobreviver. Trata-se de notar que há um

número imenso de seres humanos aos quais se atribui a qualificação de excluídos

porque estão, exatamente, fora de todo o quadro social. Simplesmente não há lugar

para todos no modelo econômico em vigor. A desigualdade social que se verificou

em toda a História está convivendo com exclusão social crescente. Disso, infere-se

a atualidade e necessidade (apesar de sua eficácia insuficiente) das medidas de

inclusão, que têm que ser patrocinadas pelo estado, e das lutas por direitos

humanos.

A observância da cartilha neoliberal somada à internacionalização

do capital possibilitada pela globalização não transformou o crescimento dos lucros

em aumento de investimentos produtivos em razão da volatilidade do capital e da

desregulamentação econômica, o que produziu um mecanismo de especulação

financeira, mais lucrativo e fácil, e não de reinvestimento na cadeia produtiva.

Ademais, a proposta – aceita pelos governos neoliberais – de

redução do Estado não atingiu os fins prometidos em razão, principalmente, dos

custos com o desemprego e com a previdência. Curioso é observar que o exigido

desmonte do poder dos “monopólios sindicais”, no dizer de Hayek, não é igualmente

defendido quanto aos monopólios empresariais. A desarticulação dos trabalhadores

é necessária para permitir, segundo os neoliberais, a livre fluência das forças

produtivas, mas igual providência não é imprescindível quando se trata de

desmontar os conglomerados transnacionais, o que permite concluir que há duas

regras para duas forças distintas em atuação na sociedade. Mas esse pensamento

não representa uma novidade: Adam Smith já admitia que os patrões teriam mais

força de pressão nos embates com seus empregados, entre outras razões, por não

234 ANDERSON, Perry. op. cit. 235 FORRESTER, Viviane. O Horror Econômico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. 236 Com isso, pretende a autora referir-se não ao fim do capitalismo como modelo civilizatório, ou ao fim da civilização sob o sistema capitalista, mas ao fim de um modelo que contemplava a figura do desempregado por outro que mostra a substitui pela figura dos excluídos do meio social porque, na verdade, não há empregos para todos. Muitos tornaram-se supérfluos...

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lhes ser vedado o direito de associação, ao passo que o era para aqueles.

Assim é que, alterados os contornos sociais do Estado no sentido

do desmonte de garantias mínimas do povo em favor da regulação pelo mercado, o

saldo é um sistema voltado para a capitalização dos lucros, sem que para tanto

constitua obstáculo a exclusão social ou o declínio do padrão de vida da maior parte

da população mundial. Na verdade, a proposta abstencionista do Estado não tem

nada de omissiva; ao contrário, representa um papel necessário a ser

desempenhado a fim de que esse modelo de capitalismo “de mãos livres” possa

cumprir seu papel e manter as estruturas produtivas destinada a preservar o status

quo.

O neoliberalismo só contempla uma postura “libertária”

nominalmente, porque, de fato, baseia-se deliberadamente na exclusão. Sob o

nome sedutor, esconde-se um regime fundado no totalitarismo econômico global,

em favor de uma minoria privilegiada e em detrimento da maioria absoluta da

população mundial. Para se ter uma idéia das distorções – nunca antes

experimentadas na História – a que chega o neoliberalismo, uma pesquisa da ONU

demonstrou que, em 1993, as 358 pessoas mais ricas do mundo possuíam renda

superior à soma da renda de muitos países, nos quais residiam 2,3 bilhões de

pessoas, 45% da população mundial237 então. Esse é um dado estarrecedor, que

bem demonstra o grau de despotismo do regime econômico que, ironicamente, diz

basear-se na liberdade absoluta.

Os neoliberais voltam, assim, as costas à cultura democrática e igualitária da época contemporânea, caracterizada não só pela afirmação da igualdade civil e política para todos, mas também pela busca da redução das desigualdades entre os indivíduos no plano econômico e social, no âmbito de um objectivo mais amplo de libertar a sociedade e os seus membros da necessidade e do risco, objectivo este que está na base da criação dos sistemas públicos de segurança social.

238

Sobre a questão do Estado no contexto do neoliberalismo e da

globalização, tem-se que sua atuação reduz-se cada vez mais, mostrando-se

incapaz de proceder à implantação de projetos conducentes à redução de

desigualdades e de garantia dos direitos e liberdades públicas, especialmente. A

237 MANCE, Euclides André. Globalização, Subjetividade e Totalitarismo. Disponível em: http://www.solidarius.com.br/mance/. Acesso em 5 jun.2008. 238 NUNES, A., op. cit, p. 42.

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instância estatal vê-se esvaziada ante o poder de fato que lhe é superior e

determina suas ações, tornando-se refém do capital financeiro transnacional que

não conhece limites humanos, políticos, sociais ou mesmo fronteiras para a

realização de seus intentos.

Nesta sociedade, se não interrompermos essa marcha em direção à insensatez e ao colapso, o antigo “exército industrial de reserva” terminará englobando, muito em breve, a maioria dos humanos e apontando, no limite, para esta situação paradoxal e estúpida: de um lado, toda a produção massiva sendo realizada por máquinas desenvolvidíssimas, quase auto-operadas, sob mera supervisão de decrescente grupo de controladores; mas, de outro lado, a maioria da humanidade desempregada, vegetando no limite mais abjeto de sobrevivência, sem qualquer poder aquisitivo para adquirir as mercadorias produzidas pelas máquinas maravilhosas. As máquinas de propriedade privada deter-se-iam ante o “esgotamento” planetário do mercado consumidor – e às multidões marginalizadas só restaria comportarem-se como na metáfora sombria de Marx: a natureza nos ensina o que acontece quando há um osso e dois cães.239

3. Perspectivas para os Direitos Humanos – Limites e

Possibilidades

O que se pode entender, hoje, pela expressão direitos humanos?

De tão repetida pelas mais diversas linhas e ações políticas com seu sentido ligado

a uma idéia universal de justiça, de cunho abstrato e generalizante, mas muito

freqüentemente mal utilizada240, a denominação ‘direitos humanos’ tem servido para

a defesa de qualquer argumento, prestando-se muitas vezes ao uso meramente

discursivo, e tem sido utilizada para as mais torpes manipulações. Seu conteúdo,

portanto, deve ser precisado para que não reste esvaziado de sentido, para que sua

invocação não acabe significando coisa nenhuma241.

O que há de concordância quanto ao conceito de direitos

humanos é a idéia (ainda eivada de jusnaturalismo) de que todos os seres humanos

239 TRINDADE, J., Terá o Direito do Trabalho..., op. cit., p. 62. 240 Lembre-se, por exemplo, que foi em nome da defesa dos direitos humanos do povo iraquiano que os Estados Unidos invadiram o Iraque e já exterminaram, até o momento, aproximadamente, 500.000 pessoas, além de terem destruído importantes sítios arqueológicos que continham memórias ancestrais da humanidade, entre outros tantos danos à comunidade iraquiana e à própria história humana. 241 ATIENZA, Manuel e MANERO, Juan Ruiz. Marxismo y Filosofia del Derecho. 1ª edição, 2ª reimpressão – Cidade do México: Fontamara, 2004, p. 22.

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têm direito a um rol de garantias e prestações, em nome da dignidade da pessoa

humana cuja proteção se almeja. Essa idéia genérica, presente na generalidade dos

documentos sobre direitos humanos a partir das primeiras declarações de direitos,

de inspiração iluminista, é ainda a forma geral referida nos discursos sobre os

direitos humanos atualmente. Sua efetivação e particularização, contudo, constituem

motivo para as mais veementes discordâncias. Garantidos de maneira universalista,

na prática os direitos humanos carecem de atenção, pois encontram-se em franco

retrocesso em todo o mundo242.

A luta pelos chamados direitos humanos das três últimas

chamadas “gerações” – a segunda, direitos econômicos, sociais e culturais; a

terceira, direitos coletivos e difusos e a quarta, direitos de solidariedade – encontra

uma barreira no capitalismo neoliberal. De fato, a defesa do meio ambiente, a

reivindicação ao desenvolvimento (reconhecido pela Declaração de Viena, à

unanimidade, como um dos direitos humanos), o direito à educação, à saúde e à

cultura envolvem a adoção de políticas públicas, de inclusão social e participação do

estado, enfim, envolvem o próprio modelo econômico em si. Na verdade, até mesmo

os direitos clássicos do modelo liberal – os chamados de primeira geração, de cunho

civil e político – estão regredindo a patamares impensáveis há apenas meio século.

O mundo pós 11 de setembro experimenta acelerado recuo

quanto às garantias individuais. Os direitos civis em países tidos como ‘civilizados’ e

‘democráticos’, como os Estados Unidos, Inglaterra e Espanha sofreram e sofrem

ainda tantas ingerências e excepcionalidades que dificilmente se reconheceriam nos

padrões clássicos. Tais países, e especialmente a potência hegemônica, têm

patrocinado drástico retrocesso no respeito e prática dos direitos humanos243.

No contexto da institucionalidade, os direitos humanos sociais,

econômicos, coletivos e de solidariedade dependem, em sua imensa maioria, da

vontade do estado para que sejam estabelecidos e implementados. Mesmo os

242 O informe da Anistia Internacional do ano de 2008, relativo ao período de janeiro a dezembro de 2007, denuncia o que chamou de “o fracasso de 60 anos em direitos humanos”. Segundo a secretária geral da Organização, Irene Khan, “a injustiça, a desigualdade e a impunidade são hoje as marcas distintivas do nosso mundo.”. De acordo com o documento, por exemplo, 81 países no mundo atualmente praticam a tortura e 54 têm juízos de exceção, sem falar nos índices relativos à saúde e à educação ao redor do planeta. http://www.elpais.com/articulo/internacional/Amnistia/denuncia/anos/fracaso/derechos/humanos/elpepiint/20080528elpepiint_5/Tes, pesquisado em 28 de maio de 2008. 243 Segundo Thomas Friedman, colunista do The New York Times, o mundo passa por um período de recessão democrática e, para tanto os Estados Unidos têm significativa parcela de responsabilidade. Cfr. em http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/nytimes/2008/05/08/ult574u8451.jhtm

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direitos civis e políticos estão a sofrer atentados por parte do estado em nome da

‘segurança’. Curioso que esse termo, tão caro ao liberalismo e ao neoliberalismo,

seu sucessor, encontre hodiernamente um significado tão diverso do que teve para

os próceres do sistema.

A segurança, inicialmente, estava ligada ao funcionamento do

‘mercado’ de forma calculável e às garantias de direitos individuais contra o estado.

Hoje o mesmo termo ganha novo sentido, quando sua invocação é utilizada para

deixar a descoberto o indivíduo frente ao poder desse, em nome, teoricamente, da

paz e da segurança coletiva. O estado usou o mesmo expediente nos dois casos,

apenas com sinais invertidos: em ambas as situações, está-se a proteger os

interesses economicamente preponderantes, ontem e hoje. Na verdade, segundo as

palavras de José Augusto Lindgren Alves, “segurança será sempre uma noção

ilusória nas condições desumanas da globalização sem valores.”244

A discussão sobre os direitos humanos deve ser elaborada em

um contexto generalizante – no sentido de abranger a totalidade da vida social, não

apenas recortes estanques –, posto que sua discussão fragmentária entre itens

diversos de uma “agenda” social e jurídica redunda em ocultação da verdadeira

razão da ausência/insuficiência dos chamados direitos humanos. Enquanto as

causas e bandeiras dispersam-se e grupos distintos no seio social lutam por

reconhecimentos ou garantias específicas que os amparem, a desigualdade social

entre os seres humanos em um mesmo estado, entre diferentes estados, entre

pessoas de procedências estatais diversas, entre humanos, enfim, vai ficando

obscurecida como elemento primordial e verdadeiro gerador dos conflitos sociais.

A implementação dos direitos humanos, pois, ganha impulso a

partir das lutas populares, mas só pode ser realmente efetivada a depender da ação

estatal. Paradoxalmente, apesar das origens antagônicas do poder do estado e da

força popular impulsionadora da luta pelos direitos humanos, o espaço institucional

representado e dominado por aquele é o cenário desse embate e da implementação

daqueles. Isso porque, em sendo esse ente o poder dominante, é a ele que se

devem dirigir as pressões sociais com vistas à preservação/promoção dos interesses

populares.

244 ALVES, José A., Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, op. cit.,p. 203.

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Cada vez mais, a idéia de direitos humanos funde-se à do estado,

sendo indissociáveis as duas existências, posto que somente em um modelo de

dominação de classe faz sentido lutar por direitos que, conquanto se proclamem

universais, estão desde sempre assegurados à classe dominante enquanto são

negados para os dominados. É em favor desses e por suas mãos, em verdade, que

se luta e se tem lutado por direitos humanos.

As conquistas de direitos humanos obtidas não podem ser

olvidadas nem desconsideradas, mas também não indicam que o caminho se

cumpriu, pois mesmo quando reconhecidos, os direitos humanos somente o são até

a medida em que não ameaçam a manutenção do status quo. Daí porque o discurso

sobre os direitos humanos, numa realidade de profunda desigualdade real, pode

exercer um papel meramente mistificador.

Os direitos humanos [...] são, efetivamente, um recurso magro, quase etéreo. Mas são ainda um recurso que existe dentro do sistema. Ainda que não possamos romper com este, dos direitos humanos podemos dispor como instrumento legítimo para, pelo menos, encaminhar o status quo em direção positiva. Até porque a denúncia de seu desprezo ainda tem eco nos media, essenciais para se produzir aquilo que se deseja real na massa de simulacros típicos de nossa era.245 (grifos do original)

À contemporaneidade, os modernos legaram suas instituições,

seu disfarce ideológico, suas relações sociais assimétricas e baseadas na

dominação e seus sistemas jusfilosóficos, todos necessários ao funcionamento do

modo de produção capitalista.

Com a exacerbação deste modelo, o tecido social está cada vez

mais esgarçado, mas não se enxerga no horizonte visível possibilidades claras de

transformação, o que não quer dizer que não seja válido percorrer um caminho

inverso ao do sistema dominante a fim de encontrar novas vias.

245 ALVES, José A., Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, op. cit., p. 246.

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CONCLUSÃO

O surgimento do Estado já ensejou, por si só, a luta por direitos e

melhores condições de vida. A história mostra desde os mais antigos estados

clássicos exemplos de revolta de escravos e tentativas de implementação de leis

mais justas (no sentido de distributivas) a fim de humanizar a vivência social. O

comunismo primitivo, exemplo histórico de vivência coletiva igualitária e livre da

opressão de classe e do estado foi um farol que iluminou durante muitos séculos

uma nostálgica vontade de retorno a um tempo que ganhou contornos míticos na

forma de um paraíso perdido.

O Renascimento, enquanto renovação artística, e o Iluminismo,

enquanto movimento filosófico, voltaram-se igualmente em direção à luz da razão

humana. O humanismo clássico, mormente o grego, foi redescoberto, após um

milênio de pensamento teológico. A razão substituiu Deus, buscou-se o

conhecimento racional e científico no mundo da natureza e formularam-se hipóteses

explicativas da sociedade fundadas no mundo dos homens.

Essa abertura do espírito não foi capaz, contudo, de modificar

efetivamente a maneira de entender o mundo. O pensamento idealista permaneceu

em vigor, com a diferença de que Deus foi substituído pela razão ou pela natureza.

Dessacralizou-se a Idéia, mas não se a eliminou. Dessa forma, o fundamento e fim

últimos dos atos humanos continuava a ser a realização de um ditame a-histórico

(caso da natureza) ou abstrato (caso da razão) e, portanto, ambos metafísicos.

Com olhos distanciados da realidade, a sociedade dos modernos,

supostamente ancorada na razão, deu uma nova roupagem à velha exploração,

instituindo a legalidade universalizante que a todos iguala apenas no plano jurídico

(e com reservas), enquanto a desigualdade de fato se mantém dissolvida sob o

discurso equitativo da lei válida e igual para todos. Essa concepção de igualdade é

tipicamente orwelliana: todos são iguais, mas uns são mais iguais que os outros.

Esses “mais iguais”, no caso do Estado Moderno, são os

burgueses, os donos da riqueza e dos meios de produção no sistema capitalista.

Para eles, como classe dominante, todos os favores e garantias da lei. Para os

demais, os despossuídos, os rigores da mesma lei.

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Marx sacudiu e modificou irreversivelmente a história da filosofia

ao vinculá-la à história e à realidade social, desnudando o mundo verdadeiro outrora

escondido sob os véus do idealismo, do misticismo, da teologia, do positivismo,

enfim, de artefatos ideológicos vários que dissimulavam o mundo real e as forças

sociais que o determinavam (Atílio Boron, 2006, p. 331).

Outro ponto fundamental da filosofia marxista foi retirá-la do

mundo meramente teórico e inscrevê-la na vivência prática – a filosofia da práxis.

Daí é que assume crescente importância, nos dias de irracionalismo pós-moderno, a

exortação constante da 11ª Tese sobre Feurbach: Os filósofos se limitaram a

interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo.

E é precisamente de transformação que se trata o desafio posto

na atual quadra histórica: ou conseguimos implementá-la ou ingressaremos na

barbárie prevista por Rosa Luxemburgo, cujos delineamentos já são visíveis aos

nossos olhos.

A dominação sob o capitalismo atingiu formas refinadas de

dissimulação, o que lhe permitiu obter uma espécie de consenso social que permite

até hoje sua manutenção e reprodução, mesmo com o elevadíssimo grau de

conflitos e assimetrias sociais verificados atualmente.

Nesse modelo, o estado aparece inevitavelmente como o mais

importante instrumento de dominação de classe, pautando-se como ente neutro e

universal que considera a todos como iguais, desconsiderando a desigualdade

efetivamente existente. Ao assim fazer, atua para manter e legitimar a cisão social

entre classes em conflito.

Hegel entendeu o problema da divisão da sociedade em grupos

sociais distintos a partir do que chamou de A Dialética do Senhor e do Escravo.

Segundo essa concepção, exposta e comentada por Alexandre Kojéve, o que

diferencia os humanos dos animais é a consciência-de-si. Os animais têm apenas o

sentimento-de-si, mas não a consciência, atributo exclusivamente humano. Tal

atributo, porém, somente se efetiva a partir do reconhecimento feito por um outro de

igual humanidade. Manifesta-se então o desejo de ser reconhecido. Em busca da

satisfação do desejo de reconhecimento, os adversários lutam entre si e os

vencedores dessa luta subjugam os vencidos que os reconhecem, enfim, como

humanos. O contrário, ou seja, o reconhecimento dos vencidos pelos vencedores,

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todavia, não ocorre. O senhor não reconhece o subjugado como igual, retira-lhe a

humanidade e desconsidera-o.

Sinteticamente, eis o que pondera Hegel acerca da dialética do

senhor e do escravo. A análise hegeliana continua atual. A supressão dialética do

outro não implica tirar-lhe a vida, mas o atributo da humanidade.

Em que pese o fato de Hegel não enfrentar, na dialética do senhor

e do escravo, o problema das diferenças de classes determinadas pelo modo social

de produção em cada sociedade, deixando de lado, pois, o fator principal que

determina os vencedores e os vencidos, nem levar em conta a historicidade de cada

situação, é certo que a desconsideração do outro permanece como um dado real até

os nossos dias.

O não-reconhecimento do vencido, do menor, teve e tem reflexos

na atuação do estado, configurando páginas de horror na História passada e

contemporânea. Esse aspecto ideológico de não enxergar o outro como igual, bem

descrito por Hegel (embora não explicado quanto às suas causas reais) tem o

significado da anulação daquele como ser humano na mente dos opressores,

coisificando-o e nulificando-o. Daí os extremos registrados pela História, como o

Holocausto, a prisão desfundamentada dos afegãos em Guantánamo, a bestialidade

imperante em Abu Graib, a passividade internacional quanto a genocídios como o

dos armênios e o de Ruanda, a invasão do Iraque pela potência maior, entre tantos

outros casos de negação do mínimo respeito ao ser humano.

A dialética do senhor e do escravo nada mais é que o retrato

psicológico da opressão – esta, evidentemente, fruto da realidade material. Em

outros termos, José Augusto Lindgren Alves refere-se à “Desumanização do

Humano” ao tratar da incapacidade de se enxergar o outro em sua inteireza e em

sua paridade axiológica com o observador. As lutas por direitos humanos, no

contexto estatal, mesmo sendo impotentes para superar o capitalismo, reproduzem

essa busca de reconhecimento do vencido.

A trajetória histórica da luta pelos direitos humanos demonstra

sua indissociável ligação com a balança das forças sociais em cada momento

histórico. Foi somente por meio de lutas que avanços sociais, por mínimos ou

grandes que fossem, foram conseguidos. Reduzi-los à mera dimensão jurídica

significa ignorar que o problema não reside na presença ou ausência de norma

assecuratória de direitos, mas em torná-los reais. Para que isso se dê, é preciso

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caminhar em direção a uma igualdade efetiva, não turvada pela existência de

classes sociais distintas. Somente então, pode-se imaginar uma comunidade de

homens fruindo dos bens da vida livres do jugo da dominação econômica.

Por isso é que a bandeira dos direitos humanos também é

transitória, pois em uma sociedade que não esteja fraturada internamente entre

possuidores e despossuídos, entre exploradores e explorados, não será preciso lutar

por direitos para a imensa maioria da população (já que a pequena minoria

dominante os têm em abundância).

No que diz respeito aos direitos humanos, não se pode deixar

iludir pela mera positivação ou constitucionalização de direitos: atualmente, quase

todos os estados do mundo possuem constituição e, nelas, previsão de direitos

fundamentais. No plano internacional, dezenas de documentos – tratados,

declarações, resoluções, tribunais – internacionais de direitos humanos já foram

firmados e instituídos, em especial no século passado e neste próprio.

Isto, no entanto, nada tem a ver com a realidade social, e o olhar

para o mundo contemporâneo bem o demonstra. O discurso do estado de direito

prende-se justamente a tentar convencer que conquistas foram efetuadas somente

porque constantes de um documento legal. Nada mais mistificador da realidade! É

patente a distância entre intenção e gesto, na expressão de Chico Buarque; entre

positivação e efetivação. Aos bilhões de excluídos mundo afora – sem-teto, sem-

terra, imigrantes forçados, desempregados, famintos, desassistidos de toda ordem –

é de pouca valia a inscrição em papel de que são portadores de direitos, de que são

todos iguais, de que merecem uma vida livre e o atendimento, no mínimo, de suas

necessidades vitais básicas. A estes, somente a efetividade conta, ainda mais

quando está em jogo a própria sobrevivência.

Nos tempos atuais, os pleitos e as eventuais obtenções de

reconhecimento de direitos humanos configuram resistência à dominação, à

opressão, à desigualdade, à desumanização do ser humano em escala global, mas

têm âmbito e alcance limitados, pois não têm o condão de mudar a estrutura social,

ou o modo de produção que a determina. Assim é que colocar-se ao lado dos

direitos humanos significa pôr-se contra o pior da condição humana no capitalismo,

significa buscar meios melhores de vida para todos, mas não pode e não deve

obscurecer a verdadeira luta contra os motivos de fundo que permitem e respaldam

a exploração do homem pelo homem.

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A luta por direitos humanos, por valiosa que seja em tempos que

se avizinham da barbárie, encontra-se presa ao modelo e ao momento histórico da

sociedade capitalista que tem como expressão do poder dominante a classe social

burguesa e seu aparato de poder, entre os quais – e principalmente, o estado.

Assim, essa luta é limitada a avanços pontuais destinados a

garantir (em alguns casos apenas o mínimo) de condições de vida dignas para a

humanidade – missão que não obteve sucesso até o momento. Na verdade, hoje se

luta para impedir o retrocesso em termos de direitos humanos, mas sempre dentro

dos limites do poder do estado que, retirado o véu mistificador da institucionalidade,

é o poder da classe dominante. Por isso a ligação indissociável entre Estado e

Direitos Humanos.

Em um contexto futuro e eventual que tenha superado a divisão

social em classes e, portanto, a exploração e/ou dominação de umas sobre outras;

em meio a uma vivência igualitária, a expressão “direitos humanos” soará como uma

excentricidade antiga e ultrapassada, sem sentido, pois que o desfrute do que

outrora assim se designava já se terá tornado verdadeiramente universal, cotidiano e

considerado como “natural” na consciência das pessoas.

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