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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Maria José da Silva
O DIREITO É TORCIDO À PORTA PORQUE
A JUSTIÇA SE ENCONTRA DEITADA POR TERRA:
Um estudo sobre o direito e a justiça na profecia de Amós, a partir de Am 5,10-13
São Bernardo do Campo, 2014
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Maria José da Silva
O DIREITO É TORCIDO À PORTA PORQUE
A JUSTIÇA SE ENCONTRA DEITADA POR TERRA:
Um estudo sobre o direito e a justiça na profecia de Amós, a partir de Am 5,10-13
Dissertação apresentada em cumprimento às
exigências do Programa de Pós-Graduação em
Ciência de Religião da Universidade Metodista
de São Paulo, para obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr.: José Ademar Kaefer
SÃO BERNARDO DO CAMPO – SP
2014
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A dissertação de mestrado sob o título: “O Direito é torcido à Porta porque a Justiça se
encontra deitada por terra: Um estudo sobre o direito e a justiça na profecia de Amós, a partir
de Am 5,10-13”, elaborada por Maria José da Silva foi defendida e aprovada em 19 de Agosto
de 2014, perante banca examinadora formada por Prof. Dr. José Ademar Kaefer
(Presidente/UMESP), Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira (Titular/UMESP), Profa. Dra.
Tereza Maria Pompéia Cavalcanti (Titular/PUC RJ).
_____________________________________________
Prof. Dr. José Ademar Kaefer
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
_____________________________________________
Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião
Área de Concentração: Linguagens da Religião
Linha de Pesquisa: Literatura e Religião no Mundo Bíblico
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DEDICATÓRIA
Às Comunidades que se reúnem ao redor da Bíblia para iluminar e animar suas vidas e lutas,
aqui representadas pela Comunidade S. Francisco, situada no bairro Vila Velha, na periferia
de Fortaleza-CE. Pela sua paixão pela Palavra.
Ao eterno profeta da Palavra, Milton Schwantes (in memorian).
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AGRADECIMENTOS
Aos Funcionários da Metodista: Equipes da limpeza, Portaria, Biblioteca, Secretaria e
Coordenação, aqui representados na pessoa da Camila, Graça e Regiane, que se dedicam para
que tenhamos um ambiente e serviços necessários para a formação e estudos aqui realizados.
Aos nossos Professores, Ademar Kaefer, Paulo Nogueira, Rui Josgrilberg, Paulo Barrera,
Tércio Machado, Joshua Vis, pela missão de partilhar conosco um conhecimento com
profundidade e compromisso, abrindo-nos novas possibilidades, especialmente de exegese e
hermenêutica bíblicas.
A todos os colegas, com quem compartilhamos e aprendemos durante esse tempo de estudo.
Ao Professor Ademar por sua orientação cuidadosa e competente, durante toda a pesquisa.
Aos Professores Tereza Cavalcanti e Tércio Machado pelas contribuições na Banca
Examinadora da apresentação da dissertação.
A agência de fomento - CNPq, pelo suporte financeiro, sem o qual eu não teria condições para
a realização desse curso.
Ao CEBI, por ter sido a minha escola de Bíblia junto do povo.
Às Irmãs da Congregação do Cenáculo que me permitiram esse tempo de dedicação aos
estudos em vista da missão.
Aos meus familiares e amigos que são para mim sempre um incentivo e apoio no que faço.
A Deus que com sua Bondade caminhou ao meu lado através das pessoas que acima citei, e
através de todos que colaboraram para que eu chegasse até aqui.
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“Alegria nesta que é a tarefa mais linda da religião, reinventar seus ditos. Seus ritos e seus
símbolos estão amasiados ao poder (ao sacerdócio), mas a palavra é amiga do Espírito!”
(Milton Schwantes)
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SILVA, Maria José. O Direito é torcido à Porta porque a Justiça se encontra deitada por
terra: Um estudo sobre o direito e a justiça na profecia de Amós, a partir de Am 5,10-13. São
Bernardo do Campo: Umesp, 2014. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) –
Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).
RESUMO
O trabalho que tem por título: “O Direito é torcido à Porta porque a Justiça se encontra
deitada por terra”, é um exercício exegético que tem por objeto a perícope Am 5,10-13. Na
análise semântica dos seus principais vocábulos evidenciou-se uma realidade social, política e
econômica paradoxal em Israel, sob o comando de Jeroboão II (787-747 a.C.), como resultado
de uma expansão territorial e comercial, de vitórias militares e da organização de um Estado
tributarista. Esse modelo de sociedade gerou um antagonismo social entre uma elite abastada
que esbanjava luxo e ostentação, à custa do suor e da fome de uma população empobrecida,
especialmente a classe camponesa, que trabalhava para sustentar as benesses do mundo
urbano. É de dentro dessa realidade que ecoa o grito de Amós como denúncia a esse estado de
coisas, como palavra de desgraça e condenação a toda sorte de desmandos praticados em
Israel. Entre esses a falência do sistema judiciário, pela prática da exploração e corrupção por
parte dos magistrados, de ricos comerciantes e latifundiários, desviando o pobre do seu direito
de recorrer em sua defesa perante o tribunal. Em razão disso, Amós anuncia a ruína de Israel,
com o “Dia de Javé”, que será um anti-Êxodo, e aponta uma exigência ético-religiosa como
forma de reverter esse “não futuro” para Israel, que se traduz no compromisso de estabelecer
à Porta o Direito e a Justiça.
Palavras-chave: Porta; Direito; Justiça; Pobres desviam do caminho; Suborno.
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SILVA, Maria José. The Rigth/Law is twisted at the Gate because the Justice is found lying
ont He ground: A study of Law and justice in the prophecy of Amos, from Am 5:10-13. São
Bernardo do Campo: Umesp, 2014. Thesis (Master’s in Sciencen of Religion) – Facylty of
Humanities and Law, Methodist University of São Paulo (UMESP).
ABSTRACT
The work that is entitled: "The Right/Law is distorted at the Gate because the Justice is
found lying on the ground", it is an exegetical exercise that aims the pericope of Am 5,10-13.
In the semantic analysis of its main words, a social, political and economical paradoxical
reality was evidenced in Israel, under the command of Jeroboam II (787-747 B.C.), as a result
of a territorial and commercial expansion, of military victories and of the organization of a
tributary State. That society model generated a social antagonism between a wealthy elite that
wasted luxury and ostentation, at the expense of the perspiration and hunger of an
impoverished population, especially the farmers' class, that worked to sustain the benefits of
the urban world. It is from within that reality that echoes Amos' shout, as accusation to that
state of things, as misfortune and condemnation word to every sort of abuse of power
practiced in Israel. Among those, the bankruptcy of the law system, by the practice of the
exploration and corruption on the part of the magistrates, of rich merchants and landowners,
diverting the poor of his/her right of appealing in his/her defense before the court. For that
reason, Amos announces the ruin of Israel, with the "Day of Yahweh", that will be an anti-
Exodus, and it points to an ethical religious demand as a form of reverting that "no future" for
Israel, that is translated in the commitment of establishing at the Gate the Right/Law and the
Justice.
Keywords: Gate; The right/ Law; Justice; Poor deviate from the path; Bribery
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10
CAPÍTULO I ............................................................................................................................ 13
Análise literária......................................................................................................................... 13
1. Composição e estrutura do Livro de Amós ......................................................................... 13
1.1. Processo redacional ................................................................................................ 14
1.2. Estrutura do livro de Amós ..................................................................................... 20
2. Tradução – Am 5,10-13 ........................................................................................................ 25
2.1. O texto hebraico com a tradução interlinear ........................................................... 25
2.2. A tradução literal (nossa tradução) ......................................................................... 26
2.3. Delimitação da perícope ......................................................................................... 27
2.4. Estrutura e subdivisão das unidades literárias ........................................................ 29
2.4.1. Unidade literária maior: Am 5,1-17 ..................................................................... 29
2.4.2. Subunidade: Am 5,10-13 ..................................................................................... 32
2.5. Coesão da perícope ................................................................................................. 35
2.6. Gênero literário ...................................................................................................... 40
2.7. Análise semântica .................................................................................................. 43
2.7.1. r[;V; / Porta / Portão ........................................................................................... 43
2.7.2. qyDIc; / Justo ...................................................................................................... 45
2.7.3. ~ynIAyb.a, / Pobres ................................................................................................. 46
2.7.4. lD" / Fraco .......................................................................................................... 47
2.7.5. tyzIg" yTeB' / Casas de cantaria ................................................................................ 49
2.7.6. dm,x,-ymer>K; / Vinhas de desejos ........................................................................... 51
2.7.7. Wxq.Ti rB;-ta;f.m;W / A carga de grãos tomais ..................................................... 52
2.7.8 yxeqO.l / Tomadores de suborno (rp,ko) .................................................................. 53
2.7.9. yTi[.d:y / Conheço ................................................................................................. 53
2.7.10. WJhi / Desviam ................................................................................................... 54
2.7.11. ~k,s.v;AB / Pisoteiam ......................................................................................... 54
CAPÍTULO II ........................................................................................................................... 56
1. O cenário político do período de Jeroboão II ....................................................................... 56
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1.1. Um desenvolvimento paradoxal e miserável que merece protestos ....................... 63
2. Quem foi Amós e qual a sua análise de conjuntura “nos dias de Jeroboão”. ....................... 67
2.1 Da periferia ao centro da denúncia: Na administração da jurisprudência, o
suborno e o “desviar” o caminho do pobre. ......................................................................... 73
CAPÍTULO III ......................................................................................................................... 76
O direito é torcido à Porta......................................................................................................... 76
1. A Porta: o lugar do exercício do direito e da justiça ............................................................ 77
1.1. A Porta no Antigo Testamento ............................................................................... 77
1.2. O Portão em Amós como espaço público da defesa do direito e da justiça ........... 81
1.2.1. Justiça ................................................................................................................... 82
1.2.2. Direito .................................................................................................................. 84
2. Compreendendo a denúncia à Porta: a prática do suborno e o desviar o caminho............... 90
3. Justiça e defesa do pobre no Antigo Oriente Médio ........................................................... 102
3.1 Códigos legais e medidas sociais que visam proteger o pobre .............................. 103
3.1.1 A sensibilidade social na Mesopotâmia .............................................................. 104
3.1.2 Preocupação com a justiça social no Egito ......................................................... 109
3.1.3. Ugarit, Fenícia e Canaã ...................................................................................... 115
4. Elementos aproximativos entre escritos do Antigo Oriente e a profecia de Amós. ........... 117
4.1. O que existe na profecia de Amós que se distingue dos
escritos do Oriente Médio? ................................................................................................ 124
4.2 Implicações ético - religiosas ................................................................................. 129
Conclusão ............................................................................................................................... 136
Bibliografia ............................................................................................................................. 141
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10
INTRODUÇÃO
O que nos propomos com a presente dissertação é fazer uma análise exegética de Am
5,10-13, que diz respeito ao exercício do Direito e da Justiça junto ao Portão. Partindo do
estudo da referida perícope, pretendemos construir uma discussão em torno da crítica social
feita por Amós diante da situação de injustiça e opressão em Israel, durante o governo de
Jeroboão II (787-747 a.C.). Temos como recorte a denúncia do suborno nos tribunais, do
“desviar” o pobre do caminho, e da perseguição contra aqueles que denunciam tal estado de
coisas.
Como parte introdutória, fazemos no primeiro capítulo um levantamento em torno do
debate sobre a composição e estrutura do livro de Amós, para uma compreensão do mesmo no
seu conjunto. Analisando especificamente dentro do livro a unidade literária maior, que é Am
5,1-17, atentamos para a estrutura e eixo central, em torno do qual se desenvolve a discussão
diretamente ligada à questão do direito à Porta. Para isso, dedicamos uma parte à análise
literária, procedendo a uma tradução interlinear e literal. Em seguida, abordamos a
delimitação, estrutura e coesão da perícope, além do gênero e estilo literário, bem como uma
análise semântica dos seus principais vocábulos, tendo como referência o texto massorético.
No segundo capítulo, trabalhamos o contexto histórico de Israel sob o comando de
Jeroboão II, período em que se situa a atuação do profeta Amós. Apresentamos todo um
conjunto de mecanismos e ações decorrentes dos desmandos por parte das autoridades locais,
bem como as categorias sociais vitimadas pelo Estado tributário opressor instalado em Israel.
Isso será feito a partir da análise semântica dos principais vocábulos implicados na perícope,
no seu sentido literário e sociológico. Além disso, utilizamos uma série de artigos, livros,
ensaios e comentários que nos fornecerão elementos que norteiam na direção de uma análise
sociológica. Todo o processo da pesquisa segue uma análise desse material bibliográfico com
os dados por eles fornecidos, estabelecendo uma relação entre os mesmos, evidenciando para
nós, os principais aspectos referentes ao nosso objeto de pesquisa.
No terceiro capítulo, tratamos de rastrear a perícope, estabelecendo relação com outros
textos dentro do próprio livro de Amós, nos seus elementos literários e sociológicos, com seus
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11
pormenores, a fim de analisarmos o significado e particularidades do binômio “direito” e
“justiça”. Procuramos dar atenção a esses elementos, dentro de uma denúncia contextualizada
proferida por Amós em sua mensagem, no âmbito da jurisprudência em Israel. Trabalhamos,
sobretudo, no sentido de evidenciar quem estaria como responsável direto pela violação do
direito no âmbito da jurisdição. Tudo indica que o Estado, com seu sistema de tributação
através de seus agentes e mecanismos de exploração, tem sua parte de responsabilidade.
Também outros sujeitos estão na base dessa situação de injustiça e exploração, que penaliza
de modo especial a população campesina.
Decorrente do processo de estudo acima descrito, identificamos com maior precisão as
categorias sociais e grupos vitimados pelo sistema social que vigora nesse período em Israel.
Para isso, partimos da denúncia de Amós a toda sorte de desmandos por parte das autoridades
locais, que compreende os governantes, os magistrados, grandes comerciantes e a classe rica
da sociedade. Procuramos, ainda, perceber em que direção Amós aponta nas entrelinhas das
“suas palavras”, como projeto de uma nova sociedade, conforme a “Palavra de Deus”,
“palavras” essas que coincidiam: a de Deus e a do profeta.
Afora os pontos acima apresentados, também no nosso terceiro capítulo, verificamos
ainda se a profecia de Amós teria aproximação dos anseios por uma justiça social presente
entre povos e países vizinhos ao antigo Israel, como o Egito e a Mesopotâmia. Sobretudo em
relação à defesa do direito dos que eram vítimas da miséria e opressão em meio à sociedade,
durante o período da atuação profética de Amós. Isto a partir de documentos, editos e códigos
de leis do Antigo Oriente Médio. Nosso interesse é saber em que se aproximam e em que se
diferenciam essas duas manifestações, a da profecia de Amós, e a dos escritos do Antigo
Oriente Médio, tendo como referência a justiça social e a defesa da causa do pobre e do fraco
na sociedade.
Os procedimentos metodológicos que pautam o nosso trabalho de pesquisa e a
realização da dissertação seguem os passos requeridos para um trabalho de análise exegética.
Constando como primeiro passo desse processo o registro bibliográfico de obras e autores que
tratam da questão aqui abordada, situando o estado atual das pesquisas em torno da temática,
para uma fundamentação teórico-discursiva que possibilite uma maior compreensão e exegese
da nossa perícope. Em seguida, fazemos uma discussão sobre os elementos apontados no
material bibliográfico e documentação acessada sobre o assunto em questão, com suas
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12
convergências, divergências e aprofundamento. Com base na análise exegética feita,
procuramos ter atenção aos elementos convergentes, estabelecendo um diálogo entre os
autores citados, e, ao mesmo tempo, tecendo nossos comentários.
À medida que nos referirmos a essas fontes bibliográficas, levamos em conta os
principais aspectos dentro dessas obras que vem dar suporte a nossa pesquisa, quer
corroborando com questões que buscamos responder, quer abrindo caminho para novos
aspectos que provocarão novas buscas.
Pretendemos, pois, que a discussão aqui realizada, sobre o Direito e a Justiça junto ao
Portão, a partir de Am 5,10-13, bem como outros aspectos que giram em torno dessa
temática central, atinja os objetivos por nós propostos. E que, através das evidências que nos
forem dadas pela pesquisa bibliográfica, colocadas no corpo da dissertação, cheguemos a uma
conclusão do que foi discutido em torno do nosso objeto de pesquisa.
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13
CAPÍTULO I
Análise literária
1. Composição e estrutura do Livro de Amós
Esse primeiro capítulo do nosso trabalho, que será dedicado à análise literária, estará
organizado em dois blocos. No primeiro bloco, teremos um panorama sobre a discussão em
torno da composição e estrutura do livro de Amós, e, no segundo, será feita a exegese da
perícope Am 5,10-13, que é objeto da nossa pesquisa. Sobre os pontos de discussão desse
processo redacional de Amós e da estrutura do livro faremos, num primeiro momento, um
apanhado do pensamento de vários autores a respeito do assunto, com suas teorias ou
hipóteses, algumas convergentes e outras dispondo de elementos ou propostas originais. Tudo
indica que o livro de Amós tenha passado por um longo processo de desenvolvimento
redacional até chegar à sua composição final. Em razão disso, um estudo desse livro profético
requer uma análise atenta que leve em conta a história da sua composição, enquanto uma obra
considerada criação coletiva, escrita por várias mãos e em diferentes momentos da história.
Os autores, aqui trabalhados, revelam estar de acordo de que houve vários estágios na
construção literária do livro de Amós, incluindo palavras ou ditos que poderiam ser do
próprio Amós, além de camadas com coleções de ditos atribuídas a discípulos de Amós, numa
maneira de somar outras vozes que lhe deram continuidade com acréscimos ou novas
formulações a partir da pregação oral e do que era originário ao profeta, segundo a
necessidade de releituras. E, por fim, há acréscimos tardios de um período bem posterior ao
vivido por Amós e por seus discípulos, constituindo releituras supostamente diferenciadas,
por inserirem elementos característicos desses períodos e segundo seus editores, conforme
veremos.
Tratando sobre a estrutura do livro do profeta Amós, várias são as contribuições
encontradas em diferentes obras que tratam a esse respeito. Todas reconhecendo certa
organização do livro, e a importância de que isso seja levado em conta num estudo sobre o
livro Amós. Essas contribuições possibilitam diferentes ângulos da visão de conjunto do texto
no seu todo, apontando elementos que evidenciam tanto o caráter unitário da obra, com suas
subdivisões e coleções de ditos, como também determinados traços estruturais que permitem
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14
confirmar a ideia de diferentes momentos e estilos redacionais. De modo que chegamos a
entender que, de fato, a estrutura é um fator ou critério que nos permite uma visão do livro e a
articulação de suas partes ou seções.
1.1. Processo redacional
Os livros proféticos, como os demais livros da Bíblia Hebraica, são o resultado de um
longo processo redacional, que pressupõe o profeta com seus ditos e palavras, mas que supõe
também o “eco” dos seus ouvintes e simpatizantes.1 Isto faz com que os textos proféticos se
destaquem dos demais livros da Bíblia, por possuírem algumas características que fazem com
que todo esse processo, que podemos dizer, hermenêutico, seja um fenômeno mais visível e
compreensível.
Tal fenômeno dá-se porque não sendo estes na sua maior parte textos narrativos,
presta-se a um contínuo acréscimo de fragmentos, devido à necessidade de atualizar sempre
de novo a voz de figuras que irrompem num determinado momento histórico, como
intérpretes de Javé.2 Isto se dá porque uma vez iniciada uma voz profética, esta continuará
levando o seu nome, embora seja acrescentada uma voz diferente ao longo de décadas ou
séculos até, à medida que o caminho aberto por este fosse assumido, seguido e alargado por
outras vozes diferentes. Na verdade, o que acontece com o escrito de um profeta é que,
Na tradição fica com o seu nome, mas na realidade a “memória” (...) se fez texto e,
como tal, é a produção de outras mãos que foram relendo. As releituras dentro dos
livros proféticos costumam transformar profundamente o sentido e orientação da
voz inicial do profeta cujo nome leva (...) esta palavra que já não é a de antes (...)
continua sendo chamada palavra deste ou daquele profeta.3
Nessa história da composição dos livros proféticos, vão sucedendo redações e releituras,
desde composições mais antigas independentes, que sofreriam mais tarde uma fusão,
passando por releituras de viés específico, introduzindo outros elementos pertencentes a tais
círculos de releituras, até chegar ao texto final como o temos hoje.
1 REIMER, Haroldo. Amós – Profeta de juízo e justiça. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana
(RIBLA) n. 35/36 – 2000. Os livros proféticos: A voz dos profetas e suas releituras. Petrópolis: Vozes / São
Leopoldo: Sinodal, 2000. p.175. 2 CROATTO, Severino J. A Estrutura dos Livros Proféticos. As releituras dentro do corpus profético. In: Revista
de Interpretação Bíblica Latino-Americana. 35 / 36 – 200 / 1 / 2. Os Livros Proféticos: A voz dos profetas e suas
releituras. Petrópolis: Vozes / São Leopoldo: Sinodal, 2000. p. 7. 3 Ibid., p. 9.
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15
Com o livro de Amós não foi diferente. Alguns critérios permitem que se notem
elementos ajuntados à mensagem inicial de Amós, no decorrer do tempo, como a quebra de
ritmo de uma estrofe, ou uma afirmação que entra em contradição com outras palavras, ou
mesmo o emprego de vocábulo estranho àquele conjunto de unidade, sem ter explicitamente
nexo com o contexto.4 Tomado no seu conjunto, algumas unidades seriam provenientes do
tempo de Amós, como a coleção inicial, que continha elementos principais das intervenções
de Amós, que foi conservada, copiada e relida por uma sucessão de discípulos,
proporcionando acréscimos posteriores.5
A este respeito, Schwantes aponta que esse processo possui aspectos mnemônicos, isto
é, que fazem parte da memória da comunidade que guardou e, mais tarde, transmitiram a
memória dos ditos do profeta.6 A partir da ideia de Milton Schwantes Carlos Mario Vázquez
Gutiérrez7 vai nos mostrar de forma clara dentro do livro de Amós, uma coleção de ditos,
panfletos e memórias. Segundo Vásquez Gutiérrez, o livro de Amós, como muitos
pesquisadores defendem, seria construído, portanto, em diversas etapas redacionais a partir de
panfletos, dentre os quais, as palavras que provavelmente teriam vindo do próprio Amós.
Estas, enquanto discurso proferido teriam sido guardadas na memória da comunidade, e por
fim colocadas por escrito. Sendo depois lido e relido, e por fim, acrescido por uma escola de
discípulos de Amós.
Nessa mesma direção, em seu artigo “Amós – Profeta de Juízo e Justiça”, Haroldo
Reimer8 sugere uma metodologia de leitura do livro de Amós a partir de unidades literárias
maiores, ou “panfletos”. O autor posiciona-se, dessa forma, por considerar seguramente serem
escritos mais próximos a Amós, ou a círculos de redatores a ele ligados. Reimer também
chama a atenção para unidades “formais” menores, percebidas em vários textos de Amós,
como frases sapienciais, frases cúlticas, terminologia jurídica e fragmentos hínicos que, em si,
derivariam de diferentes lugares sociais. Para ele, o melhor método de trabalhar o livro de
4 AMSLER, S. et. al. Os Profetas e os Livros Proféticos. São Paulo: Paulinas, 1992. p.48. 5 Ibid., p.48. 6 SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras: Reflexão e estudo sobre Amós. São Paulo:
Paulus, 2004, p. 143. 7 VÁSQUEZ GUTIÉRREZ, Carlos Mario. Dito, panfleto e memória: uma abordagem a partir de Amós 3-6. 231
f. Tese de Doutorado, Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, São Bernardo do Campo, 2002. 8 REIMER, 2000.
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Amós é fazer uma leitura a partir desses panfletos.9 Para Reimer, em cada um dos complexos
maiores dentro de Amós há também marcas da interferência de mãos posteriores, isto é,
acréscimos provindos de releituras do material original, enquanto composição coletiva.
Em termos modernos, poderíamos dizer que a composição de um “panfleto
profético” pressupõe a existência de um movimento popular (...) uma espécie de
“grupo de suporte” dos conteúdos da fala profética. Na análise de Amós, tomar
uma composição maior ou “panfleto” como ponto de partida da análise significa
supor um processo coletivo na composição do texto.10
Em traços gerais, H. Reimer dispõe o livro de Amós em três etapas, considerando na
primeira, composições independentes mais antigas, ou “panfletos”; depois, a fusão das
composições mais antigas, além de outras releituras. Essas composições mais antigas,
segundo Reimer, teriam surgido antes da presença maciça dos assírios no âmbito siro-
palestinense, em torno de 750-745 a.C, durante o governo de Jeroboão II, como literatura de
protesto e resistência contra a opressão e exploração de homens, mulheres e crianças
camponesas empobrecidas dentro do processo de expansão militarista neste período.11
A fusão destes panfletos originais teria recebido uma primeira releitura ou “revisão”,
quando foram fundidos para formar uma espécie de edição como “livro original de Amós”,
ainda durante a existência do Reino do Norte, portanto, antes de 722 a.C. Tendo aí a
composição de uma introdução, o acréscimo de palavras e fragmentos de Amós que já
existiam antes e paralelamente às composições, podendo ter surgido inclusive conexões
intratextuais e uma conclusão.
Embora sejam levantadas questões referentes à autenticidade de algumas passagens
dentro do livro de Amós, diversas são as tentativas de aproximação do que de fato possa
constar dentro do processo redacional de Amós, enquanto material original. As diferentes
posições são pautadas sobre argumentos que darão suporte para tal, quer de ordem linguística,
ideológica, estilística, histórica ou política.12 Inicialmente queremos citar o estudo feito por Alzir
Sales Coimbra13, na sua tese de doutorado, com a pesquisa em torno da composição e estrutura do
9 REIMER, 2000, p. 173. 10 Ibid., p. 175. 11 Ibid., p. 186. 12 COIMBRA, Alzir Sales. Debate em torno da redação e composição do livro de Amós: Propostas
fundamentais para a teoria da criação coletiva a partir de Amós 6,1-14. São Bernardo do Campo, 2007. (Tese)
p. 23. 13 COIMBRA, 2007.
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livro de Amós. Na mesma é tratado especialmente o bloco central do livro, onde se encontram os ditos
e palavras atribuídos diretamente ao profeta Amós, que compreende os capítulos 3-6. Alzir Sales
defende a ideia da autoria coletiva para o livro de Amós, sendo construída em diversas etapas
redacionais, a partir de panfletos.
Há uma contribuição de uma série de autores que de modo geral apontam para a ideia
de uma composição coletiva do livro de Amós, com suas relevâncias e destaques,
discrepâncias, contestações e oposições, ou mesmo o consenso entre alguns. A ideia desse
processo de construção coletiva do livro de Amós é possível porque, em sua maior parte, os
textos proféticos, não sendo textos narrativos, prestam-se a essa contínua construção
redacional, até chegar ao texto final. Isto vai, de certa forma, influenciar no seu estilo e gênero
literário, à medida que composições mais recentes foram sendo ajuntadas e fundidas com os
textos mais antigos. O acréscimo de tais fragmentos, desde oráculos, frases sapienciais,
terminologia jurídica, até fragmentos hínicos, imprimiu um caráter de estilo variado à obra.
A respeito da discussão da complexidade do processo redacional do livro de Amós
temos entre outros, Severino Croatto14, bem como M. Achard15. Estes estão de acordo com
que o processo redacional do livro de Amós não se deu de uma só vez, mas que contém
composições independentes internamente, escritas em diferentes datas. Sobre a origem da
coleção amosiana, datada em geral do século VIII, e sobre o seu desenvolvimento no decurso
de algumas gerações que se situam de 760 a 587 a.C, Achard mostra-nos impasses,
destacando a opinião de Hans W. Wolff que se contrasta com a de W. Rudolf.16 Para Wolff,
esse processo redacional de Amós dispõe de seis etapas, cujo ponto de partida, ou primeira
etapa seria uma coleção de “palavras de Amós de Técua”, cuja base encontramos em Am 3 –
6. Em seguida, como uma segunda etapa, temos outras coleções no ciclo das cinco visões e
nos cinco oráculos contra as nações (1,3-2,16), que Wolff considera terem sido formados
durante a vida do profeta.17 A terceira etapa, corresponde ao que é colocado como próprio dos
discípulos de Amós, numa espécie de livrinho inicial que reuniu essas coleções, ajuntando-
lhes a narrativa do conflito entre Amasias e Amós em Betel (7,10-17).
14 CROATTO, 2000. 15 AMSLER, 1992. 16 Ibid., p. 48. 17 Ibid., p. 55.
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Na quarta etapa, Wolff propõe que na época de Josias foram acrescentados fragmentos
hínicos e a recordação homilética das “ocasiões perdidas” por Israel de voltar a seu Deus (4,6-
12). A seguir, temos o que ele considera quinta etapa, que tem referência com a escola
deuteronomista que acrescentou, mais tarde, diversos complementos (1,9-12), bem como
outras anotações (2,10s e 3,7). E, por fim, já no período pós-exílico, um redator teria
terminado o trabalho de composição do livro de Amós com uma nota tipo escatológica (9,11-
15) como sexta e última etapa redacional.18 Ainda, dentro do pensamento de Wolff, a seção
central do livro (3-6) teria passado por etapas redacionais. Podemos considerar, entre outras
etapas de composição, a contribuição da escola de Amós, que teria realizado sua tarefa
provavelmente entre 760-730 a.C., tendo como ápice de sua atividade literária o momento de
crise pela qual passava a Assíria diante do Reino do Norte, em torno de 735 a.C.19
Contrapondo-se a H. W. Wolff, temos o pensamento de W. Rudolph, ao considerar que
a quase totalidade do documento profético remonta ao próprio Amós. Para este, não devem
ser consideradas nem uma suposta escola de Amós, nem uma intervenção redacional na época
de Josias, tampouco glosas deuteronomistas.20 Desde o título da coleção, passando aos
oráculos sobre Tiro, Edom e Judá, estes são autênticos para Rudolph, com exceção de alguns
acréscimos de pouca importância, como 1,11b, todo o livro é obra de Amós.21 Temos aí, pois,
oposição entre autores, em que um reconstitui a história da composição do livro como sendo
composto aos poucos, e outro que até admite elementos díspares, mas que sem sombra de
dúvida atribui a autoria da obra ao próprio Amós, que a teria concluído já no século VIII,
antes da queda da Samaria.
Citando H. W. Wolff, conforme o pensamento acima descrito, Simon Butticaz22 diz
também que o livro de Amós teria sofrido diversas releituras e adições, e algumas refundições
empreendidas por uma “antiga escola de Amós”. Coloca ainda que, durante a época josiânica,
traduções populares relativas a Amós circularam e foram recolhidas, fazendo uma espécie de
propaganda em favor da reforma josiânica, conforme nos fragmentos hínicos, legitimando a
destruição dos altares de Betel. Finalmente, o autor está também de acordo com o pensamento
de muitos pesquisadores de que, ulteriormente, o livro teria sido retrabalhado por mãos
18 AMSLER,1992, p,55. 19 COIMBRA, 2007, p. 97. 20 AMSLER, 1992, p. 55. 21 Idem. 22 RÖMER, T., MACCHI, J.D., NIHAN, C., (Org.). Antigo Testamento - História, escritura e teologia. São
Paulo: Loyola, p.491-503, 2010, p. 494. BUTTICAZ, Simon.
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deuteronomistas, com a inserção do oráculo contra Judá e a sincronização da vida do profeta
com a cronologia dos reis de Israel e Judá (Am 1,1). Finalizando o livro, é colocada a
dimensão de salvação escatológica, modificando a fisionomia ameaçadora deste livro
profético.
Mostrando as dificuldades da atual pesquisa, sobre autores diversos se colocarem de
acordo a respeito de uma teologia consensual, Butticaz exemplifica com D. U. Rottzoll as
aproximações contrastantes sobre a formação do livro de Amós. No referido autor, a primeira
edição do corpus profético não está nos capítulos 3-6, mas antes nos dois ciclos: o ciclo dos
oráculos contra as nações e o ciclo das visões.23 Quanto aos temas e questões, S. Butticaz
destaca polêmicas sobre duas leituras da profecia de Amós, uma que acentua uma profecia de
desgraça, salientando a radicalidade dos oráculos amosianos abalando as certezas de Israel,
com as referidas resistências ante tais oráculos, e a outra que diz ser uma pregação de
arrependimento. A respeito do direito e do culto em Amós, as catástrofes dão ensejo a um
culto autêntico e verdadeiro, por uma conversão ao Deus do Êxodo. As cerimônias de Israel
são reduzidas a nada por Javé, que faz o apelo a uma eclosão superabundante do direito e da
justiça, pois de outra forma, seu julgamento seria irrevogável. Nesse sentido, segundo o autor,
a influência barthiana que contaminou a exegese amosiana, diante do “não de Deus”, dá lugar
a um tímido “sim”, com um possível futuro para Israel, sob a condição de que este praticasse
o direito e a justiça.24
Conforme vimos no debate em torno do processo redacional de Amós, entre as muitas
opiniões a este respeito e aqui apresentadas numa pequena amostra, tudo indica que há um
consenso de que o livro de Amós, assim como os demais livros da Bíblia hebraica é resultado
de um longo processo redacional. Isso se deu por contínuos acréscimos de fragmentos a
escritos antigos, formando composições independentes que foram sendo ajuntadas até chegar
a sua redação final conforme temos o livro de Amós hoje. Essas composições ou camadas
literárias são atribuídas, em parte ao próprio Amós, seguida de uma camada de coleções de
ditos que foram formados a partir da leitura e releitura de uma chamada “antiga escola de
Amós”, formada por sujeitos sociais que era o “eco” da voz de Amós enquanto protestos e
resistência. E, por fim, foram ajuntados outros fragmentos de períodos bem posteriores a
23 RÖMER, 2010, p. 495. 24 Ibid., p. 502.
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20
Amós e a círculos literários a ele ligados, sendo identificado como uma camada literária
deuteronomista.
Segundo pudemos constatar a partir desta discussão sobre a complexidade do processo
redacional do livro de Amós, é que um conhecimento dessa obra, de apenas nove capítulos,
não é tarefa fácil. As dificuldades em meio às questões que emergem partem das camadas
literárias e oráculos, da época e intenções que estão por trás das palavras aí transmitidas. À
medida que nos aproximamos desses comentários e discussões a respeito da redação do texto
de Amós, fomos identificando-nos e concordando com a ideia de que, de fato, há dentro do
livro composições diferentes. Por sua vez também de tempos diferentes, e escritos por mãos
diversas, sendo percebidas pela diversidade de estilos e linguagens presentes dentro do
próprio texto, fazendo cortes e passagens bruscas entre um assunto e outro, sem que
percebamos uma lógica nessas variações, a menos que procedamos a uma leitura nos moldes
nos quais a discussão feita aqui nos aponta.
Após esse apanhado do processo histórico da composição do livro de Amós, serão
apresentadas algumas propostas de estrutura do mesmo, segundo a visão de alguns autores,
alguns já citados. Teremos, então, uma percepção de como este se encontra organizado, numa
visão da obra no seu conjunto. Veremos através das propostas de estrutura que além dessa
unidade, transparecem também fraturas e emendas sobre as quais foram feitas referências ao
tratarmos de seu processo redacional.
1.2. Estrutura do livro de Amós
A respeito da estrutura do livro de Amós, vários autores participam da discussão,
abrindo caminho para diferentes possibilidades, a partir de certa organização literária que
estes reconhecem no livro. Embora tais estruturas não sejam decisivas em si mesmas, apesar
de se apresentarem numa lógica que parece viável, elas possibilitam uma visão de conjunto da
obra e apontam elementos que podem evidenciar tanto o caráter de unidade, quanto revelar
determinados traços redacionais. Citando Jean Louis Ska, com relação à questão da estrutura,
Alzir Sales comenta que o autor coloca que o critério de estruturação é um fator que permite
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21
entender o livro inteiro e a articulação de suas partes.25 Isso nos interessa, pois nos ajudará a
situar o pequeno trecho do livro de Amós que será o objeto da nossa pesquisa (Am 5,10-13),
dentro de uma das unidades do conjunto do escrito como um todo.
Considerando as diversas possibilidades e critérios que pautam a opinião de autores a
respeito do assunto, apresentaremos, a seguir, algumas dessas propostas. À medida que tais
propostas de estruturas se apresentam, chamam-nos a atenção pelo modo que cada
comentarista da obra de Amós enxerga a mesma no seu desenvolvimento. Sobressai entre a
maior parte destas um grupo menor que se apresenta de uma forma diferenciada. Contudo, de
modo geral, há bastante convergência entre os autores, sobre como se encontra estruturado o
livro de Amós. Vejamos.
Na proposta de Amsler26, o livro de Amós encontra-se estruturado em três partes,
precedidas por uma introdução, e fechando com um epílogo, sendo disposto da seguinte
maneira:
1,1-2 – Introdução: Informação histórica e tema;
1,3-2,16 –1ª Parte: Poema de oito estrofes contra as nações estrangeiras e contra Israel,
culminando com sua condenação;
3,1-6,16 –2ª Parte: Conjunto de palavras do profeta contra Israel e suas autoridades
7,1-9,10 –3ª Parte: As cinco visões
9,11-15 – Conclusão: O profeta anuncia a restauração do reino e sua felicidade futura.
Não muito diferente do que vimos ser colocado por Amsler é a estrutura proposta por
David Hubbard27, que se apresenta do seguinte modo:
Introdução 1.1,2
Discursos de juízo contra as nações 1.3-2.16
Discurso de juízo contra Israel 3.1- 6.14
Relatos de visões 7.1 – 9.10
Promessas de salvação 9.1 – 15
25 COIMBRA, 2007, p. 165. 26 AMSLER, 1992, p. 46. 27 HUBBARD, David Allan. Joel e Amós: Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1996. (Cultura
bíblica; v. 22), p. 134.
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22
Temos, nessas duas primeiras propostas, uma introdução, depois três seções e uma
conclusão em Amsler. Já, Hubbard coloca como conclusão uma “Promessa de salvação”, que
corresponde à conclusão que aparece em Amsler. Passando adiante, vejamos o que nos
apresenta José Luís Sicre:28 Ele considera uma divisão do livro de Amós a partir de cinco
blocos distribuídos nos seguintes itens:
1. Oráculos contra as nações (1,3-2,16)
2. O encontro com Deus (3,1-4,13)
3. A grande alternativa (5,1-17)
4. A seção dos “ais” (5,18-6,14)
5. As visões (7,1-9,6)
Na estrutura composta pelos blocos ou seções por Sicre apresentadas não estão
incluídas a introdução nem a conclusão. Já outra é a disposição feita por Erich Zenger29
enquanto estrutura para o livro de Amós. Na sua compreensão, o livro encontra-se organizado
em quatro partes. Ele chama-nos a atenção para uma fórmula final que conclui cada uma
dessas partes. Zenger30 propõe, pois, a seguinte estrutura:
1. (1,2-2,16) - Ciclos de oráculos sobre as nações
- Fórmula final 2,16 “Oráculo de Javé”
2. (3,1-6,14)- Palavras de desgraça contra o Reino do Norte – Israel
- Fórmula final 6,14 “Oráculo de Javé Deus de todo poder”
3. (7,1-9,6) - Ciclo de visões
- Fórmula final 9,6 “Javé é seu Nome”
4. (9,7-15) - Palavras de salvação para todo o Israel
- Fórmula final 9,15 “Disse Javé teu Deus”.
A proposta de estrutura do livro de Amós que encontramos em Simon Butticaz31
compreende três seções principais, que são: a) O cântico contra as nações (1,3-2,16); b) os
oráculos contra Israel (3-6); c) As cinco visões de Amós (7-9). Quanto à sua origem e
formação, a indicação que ele nos dá é que alguns comentaristas são da opinião de que apenas
uma coleção de oráculos contidos nos capítulos 3-6 proviria do próprio Amós. Segundo S.
28 SICRE, J. Luís. Com os pobres da terra:A justiça social nos profetas de Israel. São Paulo: Paulus / Editora
Academia Cristã Ltda, 2011, p.114. 29 ZENGER, Erich. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 481. 30 Idem. 31RÖMER, 2010, p.491.
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23
Butticaz, essa hipótese encontra fundamento no próprio endereçamento do livro (Am 1,1), que
reflete de modo verossímil diferentes etapas de um mesmo processo de composição.
Já, Haroldo Reimer32 coloca que na pesquisa se afirma, em geral, que o livro de Amós
seria composto por pelo menos três blocos de textos maiores que estariam, assim,
distribuídos: O “ciclo dos povos (1,2-2,16) que teria sua correspondência no “ciclo das
visões”, e cinco estrofes de ditos contra os povos, que remontariam ao profeta Amós, século
VIII a.C. Em seguida, a parte central do livro, composta pelo bloco maior (3 - 6), com uma
junção de vários ditos isolados provenientes da atividade profética de Amós; e outras
composições.
Podemos constatar, nas propostas acima descritas, que há, de um modo geral, certa
convergência com pouca variação na distribuição dos blocos de assuntos, transparecendo uma
concordância entre as discussões feitas acerca dos componentes e estrutura do livro de Amós.
Além das propostas acima expressas, queremos destacar, a seguir, algumas maneiras de
apresentar o conjunto do livro a partir de um diferencial de leitura do conjunto, não
considerando em primeiro plano a sequência dos assuntos distribuídos dentro do livro de
Amós, como se deu nos modelos propostos pelos autores acima mencionados, mas com uma
peculiaridade não menos pertinentes dos autores que foram acima mencionados.
Segundo a análise de Luiz Alonso Schökel e Luiz Sicre Díaz,33 na organização
estrutural da obra, os redatores utilizaram critérios de conteúdo e de palavras de ligação, para
organizar o material heterogêneo do livro de Amós, da seguinte forma:
1,3 – 26: Se repete “assim diz o Senhor” 8 vezes
3,1 – 5,1: Se repete “ouvi esta palavra” 3 vezes
5,7 – 6,1: Se repete “ai” 3 vezes
7,1 – 8,1: Se repete “isto me mostrou o Senhor” 4 vezes.
Temos, acima, portanto, uma compreensão de estrutura fundada na forma estilística,
muito mais do que numa arrumação sequencial de blocos de conteúdos afins. Seguindo um
pouco essa lógica, encontramos outra proposta, a de James Limburg, citado por Alzir Sales,
que destaca o número 7 ou seus múltiplos por parecer que este desempenha papel
32 REIMER, 2000, p.174. 33 Ibid., p. 177.
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24
significativo não apenas na estrutura do livro, mas também na composição de determinados
ditos, que para o mesmo parece mais intencional por parte do editor do livro do que
coincidência. Talvez até como recurso estilístico, em que cada uma destas seções deveria ser
vista como uma mensagem completa proveniente de Javé, sendo fiel à simbologia do número
sete na Bíblia.34
Desse modo, Limburg encontrou os seguintes grupos de 7 na coleção de Amós na
seguinte forma:
7 transgressões (2,6-8)
7 consequências do anúncio de punição (2,14-16)
7 verbos para descrever a atividade de Javé no fragmento hínico (5,8-9)
7 acusações contra os comerciantes (8,4-8)
7 coisas detestáveis a Javé na seção de apelo à justiça: Festas, assembleias solenes,
ofertas queimadas, oferendas agrícolas, sacrifícios pacíficos, barulho de canções, melodia na
harpa.35Além disso, no relato das visões, o autor fala de uma série de 7 atos punitivos de
Javé.
No registro acima, temos um grupo de autores que representam uma amostra das
diversas possibilidades de propostas de estrutura para o livro de Amós. Vimos que muitos
elementos apontam convergências, mas se vê também um esforço para compreender o livro
de Amós a partir de diferentes enfoques de organização. De modo geral, temos três a quatro
blocos centrais, reconhecidos pelas proposições apresentadas, mesmo que haja um enfoque ou
outro do ponto de vista estilístico apontado como diferencial. Nossa tendência é estar de
acordo de que de fato encontramos no livro de Amós um conjunto dedicado às nações
vizinhas, incluindo Judá e por fim Israel, compondo uma primeira parte (1,3-2,16). Depois,
um discurso de juízo e condenação contra Israel, com uma coleção de ditos ou discursos de
juízo compondo a segunda parte (3,1-6,14); e, por fim, encontramos os relatos de visões como
terceira parte da composição (7,1-9,10). Temos, também, uma pequena introdução (1,1-2) e
uma parte conclusiva (9,11-15).
Segundo o que foi acima apresentado, disposto no bloco central da estrutura do livro de
Amós (3-6), nos chamados discursos de juízo ou conjunto de ditos, encontra-se a seção 5,1-17
34 COIMBRA, 2007, p. 175. 35 Idem.
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25
na qual se encontra inserida a perícope aqui em estudo: Am 5,10-13. Fundamentados nessa
visão de conjunto do livro de Amós, é que na sequência enfocaremos a nossa perícope,
traçando uma análise exegética que parte do texto hebraico com uma tradução interlinear.
Transcorreremos os passos da análise exegética desde a delimitação da perícope, sua
estrutura, coesão e gênero literário, até a análise semântica dos principais vocábulos contidos
na mesma. Com isso, pretendemos contemplar o que nos dispomos a trabalhar enquanto
primeiro capítulo da presente dissertação.
2. Tradução – Am 5,10-13
Inicialmente, será feita uma tradução literal da perícope, dispondo na forma interlinear, o que
ajudará na percepção de detalhes peculiares do texto que nos proporcionarão uma apreensão do
significado e da força que estão por trás das palavras. Desse modo, perceberemos ainda a maneira que
o texto está arrumado no seu conjunto, a relação e repetição de termos, sua estrutura interna, bem
como outras características próprias à perícope. Teremos como referência o texto massorético,
conforme a versão da Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS).
De forma pormenorizada, analisaremos o texto do ponto de vista literário, de modo que
possamos nos familiarizar com o mesmo, em vista de uma discussão posterior sobre o contexto ao
qual nos remete o texto, e a sua mensagem principal. Em primeiro lugar, disporemos o texto hebraico
com a tradução interlinear, seguida da tradução literal por nós proposta. Depois, faremos a análise
literária da perícope, segundo o método histórico crítico, com a delimitação, estrutura, subdivisão e
coesão da mesma. Procuraremos situá-la dentro da unidade maior Am 5,1-17, a fim de percebermos o
lugar que a presente perícope, Am 5,10-13, ocupa dentro desse conjunto. Por fim, trabalharemos o
gênero literário e a análise semântica dos principais vocábulos do texto.
2.1. O texto hebraico com tradução interlinear
Amós 5:10-13
`Wb[e(t'y> ~ymiÞT' rbEïdow> x:yki_Am r[;V;Þb; Waïn>f' 10
detestam integridade e o que fala o que julga no portão Odeiam
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26
yTeîB ' WNM,êmi Wxåq.Ti ‘rB;-ta;f.m;W lD"ª-l[; ~k,ús.v;AB ![;y:å !kel'û 11
casas de dele tomais a carga de grãos sobre o fraco pisoteiam porque: Por isso
WTßv.ti al{ïw> ~T,ê[.j;n> dm,x,ä-ymer>K; ~b' _ Wbv.teä-al{w> ~t,ÞynIB. tyzI±g tomareis e não plantareis vinhas de desejos nelas e nãohabitareis construireis cantaria
`~n")yyE-ta,
seus vinhos
yrEÛr>co ~k,_yteaJo)x; ~ymiÞcu[]w: ~k,êy[ev.Pi ~yBiär: ‘yTi[.d:’y" yKiÛ 12
opressores de pecados vossos numerosos transgressões vossas grandes conheço Porque
`WJ)hi r[;V;îB; ~ynIßAyb .a,w> rp,koê yxeq.l{å ‘qyDIc;
desviam no portão e pobres suborno tomadores de justo
`ayhi( h['Þr" t[ei yKi² ~Do+yI ayhiÞh; t[eîB' lyKi²f.M;h; !keªl' 13
este de desgraça tempo pois guarda silêncio a este no tempo o prudente Por isso
2.2. A tradução literal (nossa tradução)
Apresentaremos, agora, a tradução literal do texto e a organização do mesmo, versículo
por versículo. Com isso, poderemos perceber no próprio texto, as expressões que se repetem
ou são sinônimas, o paralelismo existente entre as orações, lembrando que a literatura
profética apresenta-se também com características da poesia hebraica. Vejamos no conjunto,
de que modo isto aparece nesta composição, como se revela certa semelhança entre as frases,
de modo a se corresponder entre si, tal qual o texto se apresenta.
Am 5,10-13
v. 10 - Odeiam no portão o que julga, e o que fala integridades detestam.
v. 11 - Por isso: porque pisoteiam sobre o fraco, a carga de grão tomais dele
Casas de cantaria construireis e não habitareis nelas,
Vinhas de desejos plantareis e não tomareis seus vinhos.
v. 12 - Porque conheço grandes transgressões vossas numerosos pecados vossos,
Opressores de justo, tomadores de suborno e pobres no portão desviam.
v. 13 - Por isso, o prudente no tempo este guarda silêncio, pois tempo de desgraça
este.
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De posse do texto, consideraremos a seguir como este se apoia enquanto unidade
literária ou perícope, estabelecendo suas fronteiras antecedentes e subsequentes, com os
referidos argumentos para que isso seja fundamentado e demonstrado. É o que veremos na
delimitação que faremos da perícope.
2.3. Delimitação da perícope
No decorrer do nosso trabalho, nos deparamos com as dificuldades e desafios que
comportam a tarefa de uma análise literária de um tipo de escrito como é o livro de Amós, por
tratar-se de uma composição, conforme anteriormente descrita, caracterizada por diversas
camadas. Os acréscimos redacionais de composições como esta, fazem com que a mesma não
seja um todo homogêneo, mas uma junção de material heterogêneo. Isto aparecerá também
nas unidades menores dentro do livro. É o caso que veremos agora.
Passando à delimitação da perícope aqui analisada, Am 5,10-13, situaremos o contexto
literário antecedente e subsequente imediatamente mais próximos, a fim de verificarmos a
possibilidade de ser o nosso texto uma unidade literária e termos estabelecida a sua
delimitação.
Os versos 8-9, que antecedem o nosso texto, se distinguem dos vers. 10-13 pela sua
linguagem hínica, embora eles contenham ideias presentes no v.11b, que diz que Javé não
será favorável aos representantes da sociedade, que usam da força (v.9-Ele faz cair devastação
sobre aquele que é forte, e a devastação virá sobre a cidadela).
Com o v. 8 podemos fazer um paralelo entre “que escurece o dia em noite” com a
situação expressa no v.11b, em que a “escuridão” se abaterá sobre aqueles que constroem suas
ricas mansões à custa da exploração dos pobres, pois “nelas não habitarão”. Em todo caso,
estabeleceremos um marco de ruptura entre o bloco feito pelos vers. 8-9 e os vers. 10-13, pelo
fato dos primeiros serem uma peça hínica.
Notamos, ainda, a passagem entre estes dois pequenos blocos de versos pela mudança
da pessoa. Enquanto nos versos 8-9 se destaca o sujeito na 3ª pessoa do singular, referindo-se
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a Javé com seus feitos e seu poder, mostrando o que ele poderá realizar por meio de
fenômenos encontrados no âmbito da natureza, nos versos 10-13 a pessoa que fica em
evidência está na 2ª e 3ª pessoa do plural, referindo-se as relações e práticas entre as classes
sociais, denunciando toda sorte de desmandos por partes dos representantes das estruturas
jurídicas e da classe alta da sociedade contra as classes desfavorecidas.
Queremos, porém, conforme será mencionado adiante a respeito da estrutura de Am
5,10-13, apontar para possíveis dificuldades que este texto apresenta na sua delimitação, em
relação aos versos 7 e 13, que, segundo proposto por alguns autores, traz uma ideia de ampliar
ou abreviá-lo, anexando o v. 7 no seu início, e fechando no v. 12, uma vez que o v.13 aparece
com entonação diferente do assunto vinculado em 10-12. Em relação ao v. 7, de fato, o que se
apresenta no v.10 parece se referir aos mesmos personagens sugeridos no v. 7. Quanto ao v.
13, pareceu-nos ter esse um tom mais sapiencial do que o tom profético que vinha sendo dado
no oráculo (cf. v.10-12).
Quanto ao contexto literário subsequente a Am 5,10-13, queremos destacar uma visível
passagem, uma vez que nos vers. 14-15 o tom é de admoestação; também pela forma mais
“branda”, com um “talvez” de compaixão que não entrevemos em 10-13 que parece
determinado quanto à decisão de Javé, sobre Ele não ser favorável aos que usam de força para
oprimir e subjugar os pobres e os fracos, que encontram-se injustiçados e negados nos seus
direitos.
Finalmente, enquanto os versos 10-13 tratam de questões referentes às relações entre
categorias sociais, nos versos 14-15 temos indicações de atitudes e comportamentos ideais
para com Javé. Embora devamos considerar que as questões levantadas pelo profeta referentes
ao “direito à porta”, perpassando todo o aparato sócio-jurídico, estão intrinsecamente ligadas
à questão religiosa.
Portanto, conforme foi acima constatado pela delimitação da unidade literária que
compreende Am 5,10-13, podemos concluir que a mesma pode ser tratada como uma
perícope.
Após ter tratado sobre a delimitação da perícope Am 5,10-13, passaremos agora a
analisar a sua estrutura e subdivisão. Mas, antes, veremos como está disposta a unidade maior
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29
que corresponde o conjunto Am 5,1-17, no qual encontra-se a perícope que é objeto do
nosso estudo.
2.4. Estrutura e subdivisão das unidades literárias
Entre os recursos literários, é comum nos livros proféticos que sua estrutura total dê-se,
muitas vezes, em forma de estrutura concêntrica. Portanto, no livro Amós, como outros,
encontramos perícopes ou pequenas unidades arrumadas em forma de estrutura quiástica.36
Todo o capítulo 5 de Amós, bem como a subunidade 5,10-13 é exemplo disso.
Antes de considerarmos a estrutura de Am 5,10-13, refletiremos sobre o estudo feito
por Waard,37 sobre a disposição de Am 5,1-17 enquanto unidade maior, na sua estrutura e
organização. Procuraremos perceber, nesta, os elementos que darão suporte para a análise que
faremos da perícope.
2.4.1. Unidade literária maior: Am 5,1-17
O conjunto literário composto por Am 5,1-17, a partir de J. De Waard, apresenta-se em
forma quiástica, sendo que cada elemento dentro deste tipo de arranjo especial, segundo o
autor, “cai perfeitamente no lugar”.38 Segundo a proposta de Waard, essa unidade está
organizada tendo como centro a expressão “Javé é seu nome” (v.8b). Todos os outros
elementos estariam girando em torno deste eixo de articulação.
A partir do artigo The Chiastic Structure of Amós V 1-17, tomaremos agora a proposta
colocada por De Waard,39 referente ao conjunto Am 5,1-17. Tal proposta permite-nos ter uma
visão do que compreende essa unidade em relação ao todo da profecia. Esta modalidade nos
oferece, a partir de uma ordenação concêntrica, a possibilidade de vermos de onde parte a
palavra profética, que vai se formando da periferia para o centro.
36 CROATTO, 2000, p. 11. 37 De WAARD, J. The Chiastic Structure of Amos V 1-17. Vetus Testamentum. Leiden: E. J. Brill, v.27, n.2,
1977. p. 176. 38 Ibid., p.174. 39 Idem.
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30
Partindo dos v. 1-3 e seus correspondentes 16-17, temos um lamento fúnebre como
prenúncio da ruína total de Israel. No eixo central de tal ameaça está a ideia de eliminação do
Estado, por ser a Instituição geradora da situação social vivida no Reino do Norte,
sustentando e consentindo as injustiças cometidas por segmentos e setores ameaçados por
Javé por meio do profeta. Serão desbaratados, sua capital, o exército e o templo. Seguindo os
v. 4-6 e seus correspondentes 14-15, num tom de admoestação temos um apelo a buscar o
Senhor, e o bem, que se traduz na prática do direito e da justiça. Temos, aí, elementos que
apontam para a mensagem central, referindo-se à ausência da justiça e do direito na
sociedade.
Na camada que antecede ao núcleo desta unidade, o v. 7 com seus correspondentes 10-
13, chega-se propriamente à denúncia que motiva toda essa ruína anunciada na moldura do
texto, a saber: a opressão, a distorção do direito do pobre que é negado no Portão da cidade.
E, finalmente, atingimos no v. 8b o núcleo desta unidade de discurso, em forma quiástica,
com a mensagem: “Senhor é seu nome”. Aí se mostra o agir de Deus que quer garantir a
defesa de quem sofre necessidade no processo social.
A proposta de Waard é, em primeiro lugar, ver como se dá o discurso-unidade que
compõe Am 5,1-17, baseando-se na sua composição final tal qual o texto se apresenta. O seu
início (5,1) é marcado pelo verbo “ouvir”, típico de seções introdutórias e no final (5,17)
temos a expressão “dito de Javé”, indicando o fechamento desta unidade de sentido. Já, no
versículo18, a interjeição introdutória (“Ai”) marca, pela sua forma gramatical diferente, o
começo de uma nova unidade.
Segundo tal proposta, o bloco 5,1-17 pode ser dividido em duas subunidades (1-6 e 7-
15), que por sua vez distribuem-se em parágrafos ou subunidades menores. Na subunidade 1-
6, no versículo 1 temos o verbo “ouvir”, no qual, o imperativo, plural, indica o início de tal
unidade. Este cumpre a função de chamar a atenção para algo que vai ser anunciado, sendo
uma espécie de convocação. Tal expressão é recorrente em todo o conjunto literário do Antigo
Testamento, aparecendo 653 vezes, enquanto recurso literário próprio dos oráculos proféticos.
No v. 6 apresenta-se uma fórmula conclusiva desta primeira subunidade, embora este verso
pareça autônomo em relação aos anteriores.
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31
Tal estrofe (1-6) versa sobre dois principais assuntos, a começar pelos v. 1-3, com uma
linguagem bélica. Além dessa forma de expressão, encontramos elementos referentes a um
lamento fúnebre, em razão de uma destruição iminente com relação à Casa de Israel. Quanto
aos v. 4-5, que podem ser isolados como uma segunda estrofe, a temática que aparece diz
respeito aos santuários e cultos, principalmente do Reino do Norte, Guilgal, Berseba e Betel.
Estes lugares são referidos de forma negativa. Já na menção à Casa de Israel, a mensagem não
é de destruição como na estrofe anterior (5,3), mas há nesta uma possibilidade de vida. A
subunidade 5,1-6 fecha-se com o v.6, embora este funcione como um importante versículo de
transição, que introduz a parte hínica desta seção (8-9).
Embora percebamos não haver uma continuidade lógica entre estas pequenas estrofes,
inclusive pelos cenários diferenciados, o que confere unidade de sentido a esses seis versos
(1-6) são alguns elementos como “casa de Israel” (1.3.4). Também o verbo “buscar”. Temos
ainda a partícula “ki” (por isso / porque) (4 - 5), utilizada duplamente, o que nos leva a
concluir que os v. 1-6 constitui uma unidade coesa.
Iniciando uma nova subunidade, temos no versículo 7, uma mudança no verbo, bem
como no campo semântico, que tratará sobre os termos “direito” e “justiça”. Conforme
Waard, a respeito do v.7, esse por um lado parece “perturbar” essa sequência, e de outro tem
sido reconhecido como pertencente à mesma temática do v.10. Quanto à dificuldade que aí
aparece, o autor diz:
O verso 7 é, por conseguinte, transposto depois dos vers. 8-9. Este foi por vezes
feito sem referência ao arranjo do discurso, sobre a base da assim chamada ligação
lógica. Mas geralmente se pensa em termos de uma interpolação, mais tarde
consciente do hino ou em termos de um simples erro feito por um copista (...) a
única coisa a ser observada no momento é que o v. 7 é uma organização
independente não relacionado no discurso.40
Passando aos versículos 8 e 9, considerado por muitos como uma parte difícil
enquanto unidade de discurso, há pois um certo entrelaçamento, formando, portanto, uma
estrofe hínica. Quanto à estrofe composta pelos versículos 10-13, convém voltar ao que nos
referimos sobre o v. 7, reconhecido como pertencente à mesma temática do versículo 10,
embora devamos considerar que há certa independência, conforme dito acima. Sobre a
referida subunidade, que corresponde ao foco do nosso trabalho, Waard aponta não haver
40 DE WAARD, 1977, p.174.
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32
rupturas semânticas entre os versículos 10 e 11, apesar das diferenças formais como o uso da
3ª pessoa no v. 10 e da 2ª pessoa no v. 11.41
Já o versículo 12, parece existir uma relação múltipla dentro da unidade de discurso que
ora tratamos, principalmente com os versos anteriores, considerados como uma composição
de estrutura quiástica, conforme veremos adiante. O versículo 12 serve de fundamentação
para o anúncio de castigo que se encontra em 16-17. Na sua primeira parte (12a), temos
sintetizada a acusação, e na segunda parte (12b) a explicitação dessa acusação. Um elemento
unificador de tais versos enquanto estrofe, segundo Waard, é que todas essas palavras são
consideradas como ditas por Amós.42
A respeito do versículo 13, embora este possa ser considerado não fazendo parte dessa
estrutura (10-12), há uma relação de implicação entre os versículos 12 e 13, visto que o
versículo 12 fornece terreno para certa atitude humana que é descrita no versículo 13. Os
versículos 14-15 formam outro elemento que parece “perturbador” no conjunto, apesar de
terem estes uma relação com a estrofe composta por 4-6, quando fala sobre o “bem”, que é
“procurar a Javé”. Esse “bem” não é senão “estabelecer o direito à porta” (15b). Por fim, os
versículos 16-17 formam uma última estrofe, acentuando o caráter geral do luto, descrevendo
ritos fúnebres, enquanto consequência de uma série de questões debatidas no livro, enquanto
denúncia profética.
Cremos que essa tomada minuciosa do conjunto acima tratado, nos situará melhor
dentro do que agora trataremos. Nossa direção agora é o foco literário em questão, que é a
perícope 5,10-13, sobre a qual trabalharemos no passo seguinte.
2.4.2. Subunidade: Am 5,10-13
Enquanto uma subunidade de Am 5,1-17, apresentaremos agora Am 5,10-13 em sua
estrutura e subdivisão interna. Será colocada uma primeira possibilidade a partir de uma
proposição feita por De Waard, seguida de outra possibilidade que aqui apresentamos,
segundo elementos dados pela própria perícope.
41 De WAARD, 1977, p. 176. 42 Ibid., p.176.
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33
Uma primeira proposta que apresentamos a respeito da estrutura da perícope Am 5,10-
13, refere-se à proposição de Waard43, que identifica na sua estrutura uma forma quiástica,
disposta da seguinte maneira:
Am 5, 10-1244
v.10 Não há justiça nos tribunais
v. 11 Opressão dos pobres
v. 12 a Opressão dos pobres
v. 12 b Não há justiça nos tribunais
A partir da ideia acima colocada, enquanto estrutura em forma quiástica proposta por
De Waard, podemos verificar uma disposição de dois conjuntos de frases, em que um
primeiro conjunto se apresenta como moldura: v.10 “Não há justiça nos tribunais”, e v. 12 b
“Não há justiça nos tribunais”. O segundo conjunto se refere ao núcleo da unidade estrutural:
v. 11 “Opressão dos pobres”, e v. 12 a “Opressão dos pobres”.
Outro modo de vermos a arrumação do texto será dado a seguir. Verificando a relação
entre os vocábulos que se dá internamente ao texto, ousamos propor outra estrutura na forma
seguinte:
Am 5,10-13
A (10) Odeiam no portão o que julga e o que fala integridade detestam
B (11a) Por isso: porque pisoteiam sobre o fraco, a carga de grãos tomais dele
C (11b) casas de cantaria construireis e não habitareis nelas,
vinhas de desejos plantareis e não tomareis seus vinhos.
43 De WAARD, 1977. 44 Idem. O autor não inclui o verso 13 na estrutura, conforme já foi colocado no item anterior, da unidade maior
Am 5,1-17. A respeito do versículo 13, foi dito que é possível que este não faça parte dessa estrutura (10-12),
muito embora haja uma relação de implicação entre os versículos 12 e 13, visto que o versículo 12 fornece
terreno para certa atitude que é descrita no versículo 13. O que faz com que o v. 13 seja considerado como parte
da perícope.
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34
B’ (12) Porque conheço grandes transgressões vossas, numerosos pecados vossos!
Opressores de justo, tomadores de suborno e pobres no portão desviam.
A’(13) Por isso, o prudente no tempo este guarda silencio, pois tempo de desgraça este.
Na estrutura de Am 5,10-13 que propusemos, identificamos cinco partes ou estrofes.
Temos na primeira estrofe (v.10), as duas primeiras frases do texto, que tratam da despeita
que há por parte daqueles que odeiam e detestam o que julga e fala integridades.
Na segunda estrofe (11a), formada por duas frases, temos uma acusação sobre ações
referentes a pisotear o fraco e retirar dele a carga de grãos. Nas duas frases que se seguem,
que compõem a terceira estrofe (11b), parece mostrar as consequências de tais ações na vida
daqueles que as praticam, como uma espécie de sentença própria de um oráculo profético,
conforme veremos no item que tratará do gênero literário.
Já no v. 12, que compreende uma quarta estrofe, também com quatro frases, há nas duas
primeiras uma justificação da sentença descrita na estrofe anterior, em razão de grandes
transgressões e numerosos pecados por parte, ao que tudo indica, dos que são citados na
primeira estrofe, ou seja, dos que odeiam e detestam o que julga e fala integridades. E nas
duas frases finais dessa estrofe, apresenta de que forma dão-se essas transgressões e pecados
e a quem estes afetam.
Finalmente, na quinta e última estrofe (v.13), formada por duas frases, encontramos
indícios de ser prudente guardar silêncio, pois é um tempo de desgraça. Para facilitar na
visualização dessa proposta de estrutura, segue um quadro abaixo.
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35
Amós 5,10-13
Estrofe 1 Despeita contra pessoas que denunciam a injustiça e o descumprimento
do direito no tribunal (v.10)
Estrofe 2 Acusações sobre ações de extorsão sobre o fraco, através de pesados e
indevidos tributos (v.11a)
Estrofe 3 Sentença como consequência de práticas injustas: os que oprimem serão
privados de usufruir o lucro do seu roubo (v.11b)
Estrofe 4 Justificação da sentença descrita na estrofe anterior: Javé conhece seus
crimes (v.12)
Estrofe 5 Prudência diante de tempos de censura e perseguição (v.13)
Após esta revista da perícope na sua arrumação interna, segundo a proposta de enxerga-
la composta em estrofes, passaremos adiante. No item seguinte, que tratará da coesão da
perícope, comentaremos a estrutura por nós aqui apresentada, mostrando a correspondência
existente entre as expressões que se repetem internamente ao texto, ao mesmo tempo dando-
lhe coesão e movimento, a este trecho do livro de Amós que se constrói sobre forma poética.
Vista a perícope na sua subdivisão e propostas de estruturação da mesma, passaremos agora a
verificação de alguns elementos do texto com a finalidade de demonstrar haver no mesmo
uma unidade coesa.
2.5. Coesão da perícope
Procurando o que é centralidade, em torno da qual o texto gira, temos dois importantes
elementos indicadores, que lhe dão coesão. O primeiro, que embora não apareça enquanto
expressão, mas encontra-se nas entrelinhas da perícope, refere-se ao binômio “justiça”
(ṣedaqa) e “direito” (mišpat), havendo claramente duas atitudes a respeito: os que odeiam, e
os que as praticam (v. 10): “Odeiam no Portão o que julga e o que fala integridades detestam”.
O segundo, podendo ser considerado o aporte principal enquanto expressão que costura
o texto é a palavra “Porta/Portão” (šaʽar), que aparece no primeiro e no penúltimo verso, da
seguinte forma: (v.10): “Odeiam no Portão o que julga”, e (v.12): “Pobres no Portão
desviam”. Tal expressão refere-se à denúncia do desmantelo da função judicial dos anciãos no
Portão da cidade, onde funciona o tribunal, fazendo que a justiça e o direito sejam distorcidos.
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36
Além desta referência ao portão, na organização do texto, convém notarmos também
algumas palavras, que podem parecer sinônimas, repetirem-se. Temos nisso indícios que nos
fazem perceber certo entrelaçamento e amarração no texto. Trata-se, na verdade, de categorias
sociais, tais como: “fraco” (dal) no v.11, “justo” (ṣadiq) no v.12, “pobre” (ʼeḇyon) no v. 12.
Embora haja significado próprio a cada um desses termos, são colocados num mesmo nível,
dentro da particularidade do que o texto trata, ou seja, no que se refere ao tratamento dado a
esse tipo de pessoas a respeito do exercício judicial no Portão.
Quanto às formas verbais, com exceção de “conheço” e “guarda”, estão na terceira
pessoa do plural, perpassando todo o texto, fazendo referência aos sujeitos que praticam as
ações (“odeiam”, “detestam”, “pisoteiam”, “tomais”, “desviam”). Também fazendo referência
às consequências de tais ações (“construístes” e “não habitareis”, “plantastes” e “não
tomareis”). Isto denota uma linha de amarração da perícope, pelo entrecruzamento desses
verbos no movimento interno do texto.
O plano e desenvolvimento do texto que mostram uma linha condutora do mesmo,
apresentam- se nas duas formas explicativas “porque” e “por isso”. Ligada à primeira, temos
uma denúncia sobre “o que está ocorrendo”, “quem faz o quê”, e “a quem afeta”, referentes às
práticas injustas, consideradas “crime / pecados”. Na segunda, temos uma condenação, com
as consequências decorrentes desta, que terá como desfecho uma situação incômoda sobre
aqueles que praticam a injustiça (“casas de cantaria construireis e não habitareis nelas”,
“vinhas de desejos plantareis e não tomareis seus vinhos”).
Retomaremos, aqui, o item referente à subunidade Am 5,10-13 em sua estrutura e
subdivisão, onde passaremos, agora, a comentar sob o aspecto da coesão, os elementos acima
mencionados e que ora passaremos a vista. Isto será feito na exposição frasal dos versos,
dentro de cada parte, à medida que conferimos em que sentido a relação paralela existente
entre eles dá sustentação à ideia de ser uma unidade literária coesa.
Neste sentido, no intuito de verificar elementos que dão coesão à nossa perícope,
apresentaremos agora no próprio texto, a partir das estrofes da estrutura por nós proposta no
item anterior, expressões que se mostram sinônimas ou paralelas dentro da sua organização
literária. Comentaremos primeiro as frases que compõem cada versículo, bem como as
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expressões aí implicadas com suas ligações. A seguir, faremos o mesmo a partir e dentro das
partes ou estrofes, sinalizando o que é paralelo dentro da estrutura como um todo na sua
arrumação textual.
Am 5,10-13
A (10) Odeiam no portão o que julga e o que fala integridade detestam
B (11a) Por isso: porque pisoteiam sobre o fraco, a carga de grãos tomais dele
C (11b) Casas de cantaria construireis e não habitareis nelas,
vinhas de desejos plantareis e não tomareis seus vinhos.
B’ (12) Porque conheço grandes transgressões vossas e numerosos pecados vossos!
Opressores de justo, tomadores de suborno e pobres no portão desviam.
A’(13) Por isso, o prudente no tempo este guarda silêncio, pois tempo de desgraça este.
Em primeiro lugar, chamamos a atenção para um elemento que amarra o texto. Na
primeira e na penúltima oração temos a expressão “Portão”, aqui entendida como expressão
que dá o sentido central à perícope. Com este vocábulo dá-se uma relação estreita entre as
duas frases: “pobres no portão desviam” (v.10) e “Odeiam no portão o que julga” (v.12).
Na relação A x A’, considerando a organização das frases de cada um dos versos temos
o v.10, assim disposto:
v. 10 – “Odeiam no portão o que julga e o que fala integridades detestam”
Neste verso, temos organizadas em forma de paralelo duas frases: “odeiam o que julga”
e “o que fala integridades detestam”, cujas expressões “julga” e “fala integridades” são
dispostas com o mesmo significado, referentes à reclamação pela justiça e o direito no
tribunal. Quanto ao v. 13 temos,
v. 13 - “Por isso, o prudente no tempo este guarda silêncio, porque tempo de
desgraça este”.
O v.13 não aparece nos moldes de paralelos que vinham ocorrendo nos versículos
anteriores, marcando um ritmo poético no texto, a não ser na expressão “tempo”. Parece
marcado mais por um estilo sapiencial, indicado pela palavra “prudente”, enquanto atitude
requerida naquele contexto, que seria “silenciar”. Enquanto conteúdo, há também, a indicação
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referente ao tempo que se está vivendo, que é um tempo de “desgraça”. Apesar disso, o
conjunto do que é dito no versículo 13, principalmente em relação a esse “tempo de desgraça”
que exige uma atitude de “silenciar”, mostra certa relação com os versículos anteriores, pois,
de certo modo, amplia e completa o sentido da denúncia aí feita.
A respeito da relação A e A’, apontamos para uma proposta de relação antonímica nas
expressões “fala” X “guarda silêncio”. Na primeira (“fala”) há uma voz expressa
profeticamente, malgrado as oposições, enquanto no segundo caso (“guarda silêncio”) a
situação não parece de total censura, que “amansa” a palavra? Embora ainda nos detenhamos
apenas na análise do texto do ponto de vista da coesão, suspeitamos diante disso: haveria
ambientes literários diferentes: um de resistência, em oposição a outro, mantenedor da “ordem
social”? Pelo menos, o texto dá margem para isso.
Na relação B x B’, vamos encontrar o verso 11a e o v. 12. No v. 11a vemos o seguinte:
v. 11 - “Por isso: porque pisoteiam sobre o fraco, a carga de grãos tomais
dele”
O v.11a, que se apresenta com dupla introdução: “por isso” e “porque”, ao mesmo
tempo em que costura os ditos, fazendo articulação com o versículo anterior, prepara o
conteúdo que se segue, ampliando o sentido das denúncias. As duas primeiras frases são
constituídas em forma paralela (“pisoteiam” x “a carga de grão tomais”). Quanto ao verso
doze, vejamos como este se apresenta:
v.12 -“Porque conheço grandes transgressões vossas, numerosos pecados vossos,
opressores de justo, tomadores de suborno e pobres no portão desviam”.
O v.12 também se inicia por uma nova partícula “porque”, indicando algo importante
sobre o qual é chamada atenção. Nos vocábulos que expressam dimensões, como “grandes” e
“numerosos”, revela-se a intensidade do que é descrito enquanto “transgressões” e “pecados”.
Quanto aos sujeitos, estes aparecem no plural, ao tratar ao mesmo tempo dos que são objeto e
vítimas: o pobre, o fraco e o justo, e dos que cometem crimes e pecados sobre as vítimas, que
parece não ser um só sujeito, mas grupos ou categorias. As expressões também se encontram
de forma paralela e no plural (“opressores de” e “desviam”).
Na parte B e B’, temos a possibilidade de uma relação sinonímica referente à
exploração, extorsão e acumulação econômica à base dos impostos que pesam sobre o pobre
e do suborno nos tribunais; questão principal apontada pela denúncia e condenação do
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profeta. Isto ocorre nos verbos e nas expressões que se correspondem dentro da oração:
“pisoteiam sobre o fraco” = “opressores de justo” e: “a carga de grãos tomais” =
“tomadores de suborno”. Embora as expressões “carga de grãos” e “suborno” necessitem de
outro tratamento que veremos mais adiante, quando fizermos referência ao seu sentido na
análise semântica.
Quanto à parte C, que se encontra no núcleo45 do texto, temos o verso 11b disposto do
seguinte modo:
v. 11b - Casas de cantaria construireis e não habitareis nelas,
vinhas de desejos plantareis e não tomareis seus vinhos”
As duas frases tratam do resultado e do destino daquilo que é fruto da acumulação, por
parte dos que exploram economicamente, também estas estão construídas em paralelo, em
correspondência (“casas de cantaria” x “vinhas de desejos”, “construireis” x “plantareis”,
“não habitareis” x “não tomareis”).
Na parte C, há expressões que se repetem, correspondendo-se entre si, revelando uma
relação, seja no tempo do verbo, seja no sentido do que é expresso. Aqui está em destaque a
sentença, como consequência dos atos criminosos descritos nas partes B e B’, possivelmente
querendo chamar a atenção para o que resultará desse plano e práticas opressivas e
exploradoras, ou seja, resultará na perda de tudo o que foi conseguido pela prática da injustiça
e da exploração. Provavelmente, referindo-se ao exílio.
Conforme o que foi acima exposto, retomando o item referente à subunidade Am 5,10-
13 em sua estrutura e subdivisão sob o aspecto da coesão, vimos nos elementos acima
mencionados, a confirmação da relação existente entre as orações e vocábulos que dão
sustentação à ideia de ser uma unidade literária coesa. Depois de confirmada esta coesão
interna à perícope Am 5,10-13, embora tenhamos acenado para uma possível emenda de
textos diferentes no seu estilo ou gênero, quando tratamos do verso 13 em relação aos demais,
faremos, a seguir, uma análise da mesma, do ponto de vista do seu gênero literário com as
possibilidades que este se apresenta, para que tenhamos claro de que gênero se trata a nossa
perícope.
45ANDERSEN, Francis I.; FREEDMAN, David Noel. Amós: A new translation with Introduction and
commentary. New York: Doubleday, 1989, p.496. “Voltando agora para a seção interior, nós notamos que ela
também é composta em camadas e sugere que vv. 11aA e 12 a formam uma moldura em torno do âmago ou
núcleo fundamental do texto: a dupla ameaça no v. 11aB-b”.
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2.6. Gênero literário
Ao tratarmos sobre gêneros literários, de uma maneira bem simples, podemos citar,
conforme diz Cássio Murilo, que estes surgem oralmente na vida cotidiana de grupos e
sociedades, não como um texto, mas como discurso com a função de atender às necessidades
desses grupos. Os mesmos surgem não com pretensões estéticas, mas acabam sendo
padronizados, seguindo um modelo básico. Tais textos são abordados pelo trabalho exegético
segundo os elementos de sua estrutura formal. E, é esse modelo formal que é designado de
Gênero Literário.46
Em relação à literatura bíblica, temos diversos gêneros literários como novelas,
narrativas históricas, sagas, lendas, códigos legais, provérbios, relatos de visões, narrativas
biográficas e vocacionais, discursos de juízo, alegorias, parábolas, epístolas, apocalípticos,
entre outros. Tratando desta literatura, dos livros proféticos, se nos perguntarmos a respeito de
gênero literário dentro dessa tradição, vamos encontrar discursos de juízo ou palavra de
desgraça, relatos de visões, narrativas biográficas e vocacionais, oráculos ou ditos proféticos,
palavras de salvação, entre os principais gêneros literários destes.
Segundo M. Achard, referindo-se ao gênero literário dos escritos proféticos, como os
oráculos ou ditos proféticos, geralmente nesse tipo de escrito há uma frase introdutória pela
fórmula “Assim falou Javé” acompanhada de um oráculo, ou melhor, de uma declaração que
contém uma ameaça, uma repreensão, uma exortação, ou uma promessa de salvação. Convém
dizer que repreensão e ameaça constitui em uma palavra de julgamento, formada por dois
elementos: a incriminação contra o culpado e a sua condenação, introduzida muitas vezes por
um “porquê”.47
Confirmando e somando ao que foi já colocado, Achard acrescenta a isto toda uma
gama de fórmulas empregadas pelos profetas: lamentação, parábola, processo, oráculo de
46 DIAS DA SILVA, Cássio Murilo. Metodologia da Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 3ª edição, 2009, p.
187. 47 AMSLER, 1992, p. 32.
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41
salvação, elementos hínicos, sermão de cunho deuterenômico, midraxe, liturgias fúnebres,
muitas destas encontradas em Amós.48
No caso do livro de Amós, enquanto caráter profético e gênero literário, temos desde
ditos do próprio profeta, até frases, expressões, sentenças, queixas e denúncias de gêneros
literários diferentes. Em razão de ter materiais literários de épocas diferentes, conforme
apreciamos no seu processo redacional enquanto construção coletiva. Vamos encontrar
discursos de juízo, relatos de visões, doxologias, conclusões escatológicas, além dos “ais”. De
acordo com Haroldo Reimer, em vários textos de Amós percebemos haver unidades “formais”
menores, como frases sapienciais, fraseologia cúltica, terminologia jurídica e fragmentos
hínicos, derivados de diferentes lugares sociais. E a mensagem destas precisa ser captada a
partir de complexos literários maiores ou dos chamados “panfletos”.49
Em razão da sua forma e estilo, há até quem identifica em Amós o desempenho de uma
função litúrgica importante, como é o caso de H. Graf Reventlow, baseando-se nos vários
oráculos de felicidade e desgraça, que fariam parte da celebração do Deus da Aliança e
proclamariam sua graça e seu julgamento.50 É levantada a hipótese, inclusive, de que Amós
teria sido funcionário do culto ligado a algum santuário, e encarregado de predizer o futuro.
Porém, isto não é confirmado por outros, sendo até mesmo rejeitado por H. W. Wolff, que
tem outro ponto de vista, apontando para elementos de Amós que se referiam mais ao estilo
ou tradição sapienciais.51
Analisando a perícope Am 5,10-13, enquanto gênero literário, temos um escrito de
cunho sapiencial, caracterizado por um discurso de juízo ou palavra de desgraça contra Israel.
Trata-se de um oráculo que anuncia um juízo e um castigo da parte de Javé. Lembrando o que
já foi colocado a esse respeito, os discursos de juízo, embora possa ocorrer alguma variação,
são de um modo geral, introduzidos por uma “fórmula de mensagem”, incluindo uma
acusação ou pronunciamento judicial a partir da transgressão cometida pelo acusado, e o
anúncio ou ameaça de punição. Geralmente entre a acusação e o anúncio de punição é
empregada a partícula ki (por isso, porque, atenção, eis) como elemento de transição. Tendo
48AMSLER, 1992. 49 REIMER, 2000, p. 173. 50 COIMBRA, op. cit, p. 46. 51 Idem.
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42
algumas vezes o fechamento do oráculo como uma fórmula conclusiva do mensageiro a
assinatura: “dito de Javé”.
A fim de uma melhor apreensão de tal estrutura oracular, colocaremos abaixo de que
maneira o esquema geral de um discurso de juízo pode ser formulado:52
. Encargo confiado ao mensageiro
. Convite para escutar
. Acusação (fundamentação)
. Desenvolvimento da acusação
. Fórmula da mensagem ou ki (por isso)
. Anúncio do juízo (a) – intervenção de Deus
. Anúncio do juízo (b) – consequências
. Assinatura: (oráculo do Senhor)
A partir dessa estrutura, reconhecemos na perícope Am 5,10-13 os seguintes elementos:
1) Acusação (fundamentação):
“Odeiam no Portão o que julga e o que fala integridades detestam” (v. 10);
2) Desenvolvimento da acusação:
a. “Por isso: porque pisoteiam sobre o fraco a carga de grãos tomais dele” (v. 11a);
b. “Porque conheço grandes transgressões vossas, numerosos pecados vossos.
Opressores/oprimis de justo, tomadores de/ tomais suborno e pobres no portão
desviam” (v.12b);
3) Anúncio do juízo – consequências:
“Casa de pedras lavradas construireis e não habitareis nelas,
vinhas de desejos plantareis e não tomareis seus vinhos” (v. 11b).
Portanto, a característica principal que encontramos em Amós, enquanto profecia
diferenciada inaugurada por ele é a denúncia a partir da crítica social. Conforme a análise da
perícope, aqui tratada, do ponto de vista de gênero literário, Am 5,10-13, trata-se de um
52 DIAS DA SILVA, 2009, p. 196.
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43
oráculo ou dito profético, em que encontramos elementos literários que têm, entre outras
características, um discurso de juízo e condenação. No mesmo, encontramos dois elementos: a
incriminação contra o culpado e a sua condenação, introduzida por um ki (porque). Embora
no versículo 13, conforme já citado, à exceção do tom dado a todo o texto, transparece um
estilo próprio da literatura sapiencial, em forma de conselho típico da sabedoria.
Podemos concluir que, de maneira clara, encontramos em Am 5,10-13 indícios
convincentes de que a perícope atende aos principais requisitos do estilo da literatura
profética, no seu gênero literário de oráculos proféticos, mais especificamente de discurso de
juízo. Vemos presentes acusações contra os que praticam uma série de delitos e o anúncio ou
ameaça de punição, com as referidas justificações e consequências.
Após situar os elementos que nos favoreceram uma identificação do livro de Amós e,
dentro dele, a perícope analisada – Am 5,10-13, enquanto composição e gênero literário,
prosseguiremos a nossa análise, voltando-nos, agora, para o sentido semântico dos principais
vocábulos implicados na nossa perícope, no intuito de apropriarmo-nos melhor da mesma.
2.7. Análise semântica
Inicialmente, queremos colocar que as expressões destacadas na perícope, do ponto de
vista da análise exegética que comporta o nosso trabalho, trarão uma conotação do que
pretendemos acentuar e tratar em nossa discussão. Para isso, vamos citar o texto frase por
frase, a fim de que se destaque o vocábulo analisado, ao mesmo tempo, situando-o no
conjunto de cada sentença.
2.7.1. r[;V; / Porta / Portão
Em primeiro lugar destacamos o vocábulo em torno do qual se articula a nossa perícope:
“Porta” / “Portão” (šaʽar). Encontramos nesta expressão, o tribunal, instância que administra
a jurisprudência, com sua forma de organização tal qual se encontra em Israel no período de
Amós. Conforme Hubbard, “O espaço no lado interno da porta e as salas ou recâmaras na área
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da própria porta eram utilizados como tribunais”.53 No Antigo Israel, a justiça era
administrada pelos anciãos, que eram chefes das famílias, no portão.54 Era aí que as causas e
decisões da comunidade eram tomadas em audiência que reuniam as testemunhas, a fim de
que fossem ouvidas e resolvidas as controvérsias de uma questão levada a ser administrada
pela justiça. É a respeito de tal instância, que é expresso duas vezes no texto Am 5,10-13,
referindo-se ao Portão/Porta:
“Odeiam no Portão o que julga e o que fala integridades detestam” (5,10)
“Pobres no Portão desviam” (5,12b)
Em sua semântica, Portão tem a conotação de Porta /entrada de casa, edifício, palácio,
edifício público, templo ou cidade, da mesma maneira. Pode, ainda, aparecer no muro que
circunda os fundamentos de um templo, um palácio, ou um assentamento urbano. Ou seja, o
Portão seria uma espécie de complexo estrutural que marcava a entrada nas proteções
urbanas, vilas, cidades, podendo denotar a totalidade de uma proteção destas. Também pode
significar um bairro onde seus moradores são identificados pelo nome do bairro.55
O Portão da cidade era o local das assembleias públicas. As áreas internas da porta eram
as únicas praças públicas das cidades antigas. Era o lugar onde os mais velhos e os juízes
sentavam-se, provavelmente os que tinham voto na Assembleia da cidade, quer como tribunal,
quer para testemunhar transações que precisavam de autenticação legal.56 É junto ao portão
que se concentra a vida da cidade: encontros, afazeres e transações comerciais, em que
acontece a entrega ou a negociação e definição de preços das mercadorias, segundo um preço
de mercado. Também, neste local, são recolhidas taxas e tributos. Além disso, é onde são
feitas manobras políticas e partidas para a guerra. Também, as diversas disputas de terra eram
53 HUBBARD, 1996, p. 193. 54 GERSTENBERGER, Erhard. Teologias do Antigo Testamento: Pluralidade e Sincretismo da fé em Deus no
Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal: CEBI, 2007, p. 17. 55 KANASHIRO, Helder Blessa . “Uma comunidade dos pobres, que pensa esperança no pré-exílio, a partir de
Deuteronônio 26,12-19” . S. Bernardo do Campo: UMESP, 2011. (Dissertação de Mestrado / UMESP, 2011, p.
73). Ao fazer uma genealogia do Portão, Blessa diz que, no mundo semítico, esse vocábulo está ligado a: fenda,
abertura, quebrar, destruir. Podendo também ter ligações com calcular e medir. Ou ainda, pode referir-se ao
guardião do Portão. Tudo indica também que é no Portão onde a divindade habita, ao mesmo tempo onde se dão
as transações comerciais e judiciais das famílias. Desse modo, segundo ele, não seria difícil deduzir que palavras
assim mostram as questões de comércio e do sagrado estarem conjuntamente envolvidas. 56 Idem.
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observadas na presença de pessoas no Portão, sobretudo, no Portão julgamento. Assim, justiça
caracteriza a porta.57
Era no Portão das vilas ou cidades que se assentava essa assembleia de anciãos, a fim de
resolver todo tipo de processo transcorrido entre pessoas do lugar, seja em razão de algum
crime, seja para negociar alguma dívida ou outras questões. Na verdade, o Portão era o lugar
também das negociações e transações comerciais que exigissem testemunhas para autorizar ou
autenticar legalmente contratos entre as partes negociantes. Também ocorria a cobrança das
taxas e tributos. Portanto, de modo geral, a Porta/Portão representava a administração da
justiça. Assim, justiça caracteriza a Porta/Portão.58 Nas palavras de Hubbard “as decisões
judiciais de cada comunidade eram tomadas à porta da cidade, onde os chefes das famílias e
outros anciãos reuniam-se para ouvir testemunhas, arbitrar disputas, resolver controvérsias e
ministrar a justiça de modo geral”59.
A respeito da função civil encontrada no Portão, nas antigas cidades do Antigo Oriente
o Portão poderia servir ao mesmo tempo como banco, mercado, tribunal e centro
administrativo, uma vez que em tais cidades não havia centros planejados designados para
estas funções públicas. Embora o palácio e o templo servissem para esse fim, sem ser seu
objetivo principal. Também, foi associado a praças, denotando um local dentro de um distrito
da cidade, onde entre outras coisas, os anciãos reuniam-se para discutir assuntos referentes à
cidade, bem como para de ouvir proclamações e discursos.60 Nesse sentido, há documentos e
citações bíblicas em que os anciãos estão reunidos no Portão, já que ali era ou o próprio nome
designava tribunal. Acontecia, no Portão, julgamentos e execuções de crimes, além de
regulamentação de conflitos. Este seria em especial o guardião, o lugar que se sabia, onde era
feita a justiça, onde o fraco era defendido do mais forte.
2.7.2. qyDIc; / Justo
Enquanto tratávamos sobre direito e justiça, fez-se referência a categorias sociais que
se apresentam na perícope como “justo”, “fraco” e “pobre”. Colocaremos a seguir, como se
encontram tais palavras no texto, tal qual este se apresenta.
57 DUFOUR, Xavier Léon (Org.). Vocabulário de Teologia Bíblica (tradução Simão Voigt). Petrópolis: Vozes,
1972. p.793. 58 DUFOUR, op. cit. , p.793. 59 HUBBARD,1996, p.192. 60 Ibid., p. 104.
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46
“Por isso: porque pisoteiam o fraco” (v.11)
“Oprimis o justo” (v.12 a)
“Pobres no Portão desviam” (v.12b)
Nos livros proféticos, apenas em Amós justo e pobre constituem paralelismo. No
vocábulo ṣadiq “justo” que é mencionado paralelo ao ʼeḇyon “pobre”, é enfocada não só a
situação socioeconômica, mas em especial, a solidariedade social. Para Amós, os pobres são
apresentados, ao mesmo tempo como vitimados e como justos. O pobre é o justo, enquanto
atuante em justiça comunitária. É gente destruída, mas também gente que constrói. Pois são
justos (2,6; 5,12).61 Ou seja, o ṣadiq é aquela pessoa que contribui e constrói a comunidade,
que não tem o que temer nos tribunais, que é solidário e vive pelo direito e pela justiça.62
Ou seja, o ṣadiq é aquele que age dentro do espírito comunitário, mais
especificamente, designa o inocentado em um processo, respectivamente, o que nele havia
sido envolvido injustamente.63
2.7.3. ~ynIßAyb.a, / Pobres
A respeito da categoria “pobre” encontrada em Amós, veremos de modo mais
abrangente o seu significado, apesar de que à medida que os textos mencionam os atingidos
pela penúria social, estes são designados de pobres. Na apresentação do livro “O direito dos
pobres”, de Milton Schwantes, Tércio Machado referindo-se a Schwantes diz: “Foi ele quem
afirmou, com a autoridade de um estudioso da língua hebraica, que esses diferentes termos
que retratam a pobreza, não podem ser lidos e interpretados como palavras sinônimas que
generalizam a pobreza”.64
Schwantes, tratando da temática em torno do direito dos pobres no conjunto de textos
legais, proféticos e sapienciais, que precisam de uma definição mais precisa do conceito, a ser
analisado a partir das diferentes palavras hebraicas empregadas no texto bíblico, diz que a
palavra pobre é bastante genérica, que pode designar entre outros, alguém sem posses, uma
pessoa abandonada ou ainda alguém digno de piedade. Predominando, sobretudo, quatro
termos: raš = pobre / dal = fraco / ʼeḇyôn = pobre / ʽani = oprimido, que muitas vezes são
mencionados lado a lado em alguns textos.65
61 SCHWANTES, 2004, p. 105. 62 Ibid., p. 88. 63 SCHWANTES, Milton. O direito dos pobres. São Leopoldo: Oikos; São Brenardo do Campo: Editeo, 2013.
(Série Teses), p.100. 64 Ibid., p. 5. 65 SCHWANTES, 2013, p. 16. Sua abordagem sobre o conceito de “pobre” nas suas sutis diferenças, nos traz a
possibilidade de identificar uma categoria geral dos vitimados pela opressão e violência que se manifesta em
meio à sociedade. Mostra também cada particularidade do tipo de exploração que se dá em Israel, por conta do
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Conforme vemos, são usados diversos verbetes para identificar as pessoas que sofrem
como vítimas da situação de exploração instalada em Israel, especialmente aqui, no período
da profecia de Amós, ressaltando-se as palavras acima, entre outras, e em cada uma dessas
uma faceta específica, diferenciadora.66
Com mais frequência é usado o termo ʼeḇyôn; o mais provável é que se deva traduzir
por “pobre”. Esta palavra ocorre 61 vezes no Antigo testamento, com maior incidência nos
Salmos (23 vezes). Já na literatura profética ocorre 17 vezes; enquanto nos textos legais
aparece nove vezes. Também no livro de Jó, esta aparece seis vezes, nos Provérbios quatro
vezes, e uma vez no livro de Ester. Segundo Milton Schwantes, na maioria das vezes a
palavra “pobre” é colocada em paralelo com os termos: ʽani, 67 dal e também ṣadiq, bem
como yatom, significando ser pobre / necessitado. Havendo certo consenso sobre seu
significado, sendo compreendido em grande escala como o socialmente frágil.68
2.7.4. lD" / Fraco
Temos ainda o vocábulo dal, que significa ser pobre / pobre, totalmente no sentido
sócio-econômico; sem dúvida é o “fraco”, o “magro”, o “desfalecido”, o “pequeno”. Sua
aparência física já denota sua condição social. Encontra-se 48 vezes no Antigo Testamento,
ocorrendo com mais frequência nos Provérbios, 15 vezes.
Quanto ao significado de dal / fraco em Lv 19,15; Ex 23,3, e de ʽeḇyôn / necessitado,
em Ex 23,6, Schwantes diz ser os economicamente menos fortes, com acesso à jurisprudência
no portão da cidade. Segundo ele, supostamente, poderiam ser pequenos agricultores
empobrecidos, que pertenciam à porção livre da população, representando os
economicamente mais fracos.69 Considerando o sentido do termo fraco, em paralelo com
pobreza, envolve-se o aspecto da jurisprudência, segundo o que colocam Ivoni Richter e
Haroldo Reimer, ao dizer que essa relação “contém em si a dimensão de que ser pobre ou
interesse da classe dos dirigentes e dos poderosos, em manter uma vida de luxo e ostentação à custa das classes
desfavorecidas. 66 SCHWANTES, 2004. p. 88. 67 Outro termo para significar o “pobre” é a palavra ʼani, que no Antigo Testamento, na forma hebraica ocorre
92 vezes. Seu significado está ligado àquele que se encontra “encurvado”, que é “oprimido” violentamente, ou
pessoa das classes populares sujeita à opressão, sem meios para se defender. Ocorre a maior parte desse termo,
praticamente a metade, nos Salmos. Também é encontrado nos Profetas, 26 vezes; além de 9 vezes nos livros
sapienciais e 7 vezes nos textos legais. Com frequência palavra ʼani ocorre em combinação com outras próximas
a esta, sobretudo ʼeḇyôn (17 vezes), além da combinação com dal, ras e ger. 68 SCHWANTE, 2013, p. 34. 69 SCHWANTES, 2013, p. 67.
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tornar-se pobre é decorrência de um processo no qual uma das causas pode ser a gradativa
exclusão no acesso aos direitos”.70 Portanto, o fraco é a pessoa sem defesa, sem voz, e em
razão disso, está à mercê dos fortes, dos que detêm o poder na sociedade. Nos livros
proféticos a palavra dal é encontrada 11 vezes, dentre estas, quatro aparecem em Amós (2,7;
4,1; 5,11; 8,6). No livro dos Salmos e no livro de Jó a expressão dal aparece seis vezes, e nos
textos legais aparece quatro vezes.
Quanto ao termo raš, este na maioria das vezes, é usado em contraposição ao
economicamente forte, ou “rico”; ou seja, essa palavra é empregada para designar a situação
social de empobrecimento econômico do ser humano.
Esses termos são, em Amós, os mais importantes para designar as pessoas em defesa
das quais vai sua profecia, ocorrendo com frequência ʼeḇyon / necessitado (5x) e dal / fraco
(4x). Todos esses termos abrangem, em grande parte do AT, primeiramente, a mesma
grandeza socioeconômica, permitindo identificarmos aí, segundo Milton Schwantes, pequenos
agricultores empobrecidos, dependentes de alguém economicamente mais forte. Essa dedução
vem corroborada pelo fato de ainda possuírem casa, gado e terra cultivável; é o que parece
transparecer Am 5, em que o produto da colheita é tomado desses camponeses por meio das
taxas tributárias, tendo o pobre suas posses usurpadas por parte do economicamente mais
forte.71
Ainda, o que parece reforçar essa identidade dos pobres como pequenos agricultores
empobrecidos, segmento este que pode ser claramente distinto de outros economicamente
fracos, é o fato desses ainda terem acesso à jurisprudência junto ao portão como cidadãos
livres.72
Sobre essa situação de delitos e pecado, denunciada por Amós como “total terror” que
significava uma situação de exploração econômica, de grande agressão, brutalidade e
violência sobre as classes desfavorecidas da sociedade, especialmente gente do campo, são
usados diversos verbos. Estes revelam algumas atitudes e práticas que, embora se apresentem
por diferentes expressões, são sinônimas, representam uma mesma realidade denunciada pelo
70 REIMER, Ivoni Richter; REIMER, Haroldo. Cuidado com as pessoas empobrecidas na tradição bíblica. In:
Revista Estudos de Religião, Vol.25. n.40. São Bernardo do Campo: UMESP, 2001, p.181. 71 Ibid., p. 330. 72 Idem.
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profeta, como “aborrecer”, “oprimir”, “pisotear”, “pisar”, “esmagar”, “extorquir”, “subornar”.
Todos dizem respeito à prática da opressão, exploração e extorsão.
2.7.5. tyzIg" yTeîB' / Casas de cantaria73
Alguns termos ressaltados na perícope, que denotam tais delitos através das relações e
estruturas socioeconômicas na sociedade, por meio da exploração em vista da acumulação,
temos expressões como: “Casas de cantaria” (battey gazit). A palavra “casa”, nos seus
diferentes sentidos aparece mais de 1068 vezes no Antigo Testamento, e na perícope aqui
tratada, que fala de “casas de cantarias”, se refere provavelmente às “casas de inverno” e as
“casas de verão” ou ainda “casas de marfim”, (cf. Am 3,10.15). Vejamos como tal expressão
aparece na perícope.
“Casa de cantaria construístes e não habitareis nela” (v.11b)
Trata-se de edificações esplêndidas e luxuosas, grandes mansões construídas com
material especial que demandava altos custos. Há registros, já no período de Omri (882 a. C.),
sobre o uso desse tipo de material na edificação de palácios. Segundo Finkelstein, nas
pesquisas arqueológicas há indicação de que o palácio de Omri em Samaria, ocupando cerca
de dois mil metros quadrados, tinha suas paredes externas construídas em pedras de cantaria
finamente talhadas, sendo considerado o maior e mais belo prédio da idade do ferro já
desenterrado em Israel.74 Falando de edificações de época posterior, mas que provavelmente
tenha herdado um estilo requintado das edificações da classe rica de Israel podemos traduzir
“casas de cantaria” como imponentes mansões ou palácios, expressão do luxo e suntuosidade
vivida pelas classes abastadas da sociedade do tempo de Jeroboão II, à custa da exploração e
da miséria do povo.
Neste sentido, a expressão aparece 22 vezes nos livros proféticos, e 11 vezes em Amós.
Também em Jeremias 22,13-19, encontramos a mesma atitude de crítica e condenação a
73Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira - [s.d], pp. 272 e 583. Encontramos como explicação para o termo “cantaria”, o seguinte: “Pedra
para construção, esquadrejada segundo as normas estereotomia”. Entendendo aqui estereotomia, segundo o
mesmo dicionário: “Arte de dividir e cortar com rigor os materiais de construção”. 74 FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa Editora,
2003, p. 250.
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respeito de tais construções luxuosas e de largos aposentos, com janelas de cedro e pintura
especial, no período de Jeoaquim, rei de Judá, à custa de trabalho explorado. É referência
simbólica do poder, riqueza, luxo, ostentação, denunciado por Amós sobre os que aí
acumulam violência e opressão, à custa da exploração e da miséria dos pobres. Hubbard
referindo-se a essa questão diz que: “A impiedade dos ricos gananciosos fica ainda mais clara
no anúncio do juízo (v.11b), que descreve como empregavam seus bens adquiridos
desonestamente: (1) para viverem com ostentação não em casas de tijolos de barro, o material
usual de construção (Is 9.8-10), mas de pedras lavradas, com todo o custo da extração, do
transporte, do corte e da aplicação de argamassa – um requinte introduzido por Salomão (1 Rs
5.13-18; 7.1-12) e utilizado com abuso pela elite de Samaria, conforme assinala Amós (3.15;
6.4)”.75
Tais edificações eram, para Amós, um insulto para as classes desfavorecidas. Isso se
dava pelo contraste social e econômico entre os segmentos sociais, decorrentes de uma
economia próspera, que aumentava e concentrava os bens e as riquezas nas mãos de alguns
poucos que se mantinham na direção do poder econômico e político. Está na base dessas
edificações magníficas e esplêndidas o aumento dos recursos econômicos.76
Apesar da expressão “casas de cantaria” citada em Am 5,11, ao que parece, não ser
claramente as casas de inverno e de verão que encontramos em Am 3,15, vemos porém que o
destino destas, na fala de Amós, será o mesmo. Ou seja, seus proprietários não usufruirão da
regalia de tais construções. Referindo-se às casas de verão e às de inverno, bem como à
dúvida acerca das mesmas se seriam edificações distintas ou tratava-se de um mesmo edifício,
apesar das discussões sobre a questão permanecem tais dúvidas.77 De qualquer modo, há uma
indicação clara de que a classe rica de Samaria vivia em mansões luxuosas seguindo o
exemplo de imperadores de outras regiões, como um verdadeiro insulto às camadas populares,
que habitavam em moradias simples e pobres, ou até mesmo vivendo sem casa.
75HUBBARD, 1996, p. 194. 76 ALONSO SHÖKEL, Luiz; SICRE DÍAZ, José Luis. Profetas I e II. São Paulo: Paulus, 1991, p. 290. 77 WRIGHT, T. J. Amos and the ‘sycomore Fig’. Vetus Testamentum, Leiden: E. J. Brill, v. 26 p. 362-368, 1976.
Uma nota sobre escavações na Babilônia entre 1899 e 1917 feitas por R. Koldewey, fala que este cunhou a
expressão palácio de verão para descrever o palácio de Nabucodonosor, no nordeste de Babel. Também, sobre a
existência de capitais e palácios do rei persa Ciro é relatado por Xenofontes do seguinte modo: “O próprio Ciro
fez sua casa no centro de seu domínio, e na temporada de invernos, ele passou sete meses na Babilônia, lá o
clima era quente; na primavera ele passou três meses em Susa e no calor do verão, dois meses em Ecbatana. Ao
fazê-lo, eles dizem, ele gostou do calor e da frieza do perpétuo tempo de primavera.”
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2.7.6. dm,x,-ymer>K; / Vinhas de desejos
“Vinhas de desejos plantastes e não tomareis os vinhos” (v.11b)
Metaforicamente, em algumas passagens do AT a vinha representa Israel como objeto
particular da atenção, e do cuidado de Javé. Também o vinho, simbolicamente representa um
dom e uma benção de Javé (Dt 7,13; Pr 3,10ss; Os 2,10; Jl 2,24). Regiões não só de Israel,
mas de outros pontos do Oriente Médio, como o Líbano, entre outros, ocupavam-se do cultivo
de vinhas e da produção de vinho, como uma bebida comum nas refeições e frequentemente
mencionada na bíblia. Israel, portanto, era considerado um país, particularmente, vinícola,
com produção de bons vinhos. Sua força econômica no período de Amós demonstrava, entre
outras dimensões, o desenvolvimento agrícola. As terras ao redor de Samaria, na região
montanhosa de Israel, prestavam-se ao cultivo de oliveiras e vinhas, tendo, inclusive,
levantamentos arqueológicos dessa área, registrando evidências de instalações para
manufatura de azeite, com extraordinária expansão desse produto e do processamento de
vinho aí produzido, para exportação. Tanto a Assíria como o Egito eram consumidores dessa
produção, porque não dispunham de terras apropriadas para o cultivo e produção desses dois
gêneros agriculturáveis. Conforme registra Finkelstein, “os famosos óstracos de Samaria –
coleção de 65 cacos de cerâmica inscritos com tinta em hebraico e datados, admite-se, da
época de Jeroboão II – registram o carregamento e o embarque de azeite e de vinho pelas
aldeias ao redor da cidade de Samaria, a capital”.78
Também, no AT, temos passagens bíblicas em que o vinho está relacionado às festas,
onde era servido com abundância o melhor vinho (I Sm 25,36; 2 Sm 13,28; Sb 2,7; Is 5,12),
sendo a alegria dos deuses e homens, e da vida fazendo exultar o coração e elevar o espírito
dos deprimidos (Jz 9,13; sl 104,15; Ex 10, 19; Zc 10,7 Pr 31,6).79 Portanto, sem sombra de
dúvidas, a expressão “vinhos de desejos” pode referir-se ao que temos nessas citações do AT,
mas principalmente ao tão apreciado produto de exportação, sinônimo também de divisas para
Israel. Neste sentido, fazemos referência à “Vinha de Nabot” (1 Rs 21,1-16), tão cobiçada por
Acab e Jezabel, que revela além do tomar a terra do pobre, que era herança dentro da tradição
do povo de Israel como algo inalienável, a ambição de aumentar as riquezas com o lucro
78 FINKELSTEIN, 2003, p. 284. 79 MACKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 965.
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vindo pela produção e exportação dos melhores vinhos resultado da plantação e cultivo das
vinhas em Israel.
Em Amós, temos ainda passagens referentes ao vinho, como: “Bebem o vinho dos que
foram multados” (2,8), tratando da exploração feita sobre os plantadores, revelando que são
tirados dos pobres bens sob a aparência de legalidade, através da multa ou confisco das suas
posses, em decorrência de pagamentos atrasados ou não saldados por não terem condições de
efetuar tais pagamentos.80 Ainda em Am 4,1;6,6, seguramente representando a vida de bem
estar e requinte regada com os melhores vinhos, que faziam parte das classes abastadas de
Israel. Além de alimentar bebedeiras e devassidão, por sua vez denunciadas fortemente por
Amós.
2.7.7. Wxq.Ti rB;-ta;f.m;W / A carga de grãos tomais
Diz respeito à coleta tributária, entendida na expressão presente como cobrar tributo em
cereal, referindo-se provavelmente ao trigo já trilhado e limpo. No caso, aqui, pode se referir a
produtos da colheita com a qual se sustentam famílias de agricultores ou pequenos
proprietários. Essa expressão nos remete ao modo de organização de um Estado tributário,
segundo o qual se estrutura o modelo monárquico. Conforme vemos no panfleto sobre o
direito do rei (1 Sm 8), encontramos de modo incisivo o verbo “tomar” para expressar toda a
força exploradora e tirânica da monarquia, que Samuel procura fazer com que o povo tenha
consciência das implicações, do que representa esse modelo vivido por outros povos, que
estava sendo considerado um “avanço” diante do sistema tribal. Na monarquia, direitos são
conferidos ao rei, como: “tomar” os filhos do povo para compor o exército. Também,
“tomará” e fará das filhas perfumistas, cozinheiras e padeiras. Mais, ainda, “tomará” o melhor
da lavoura, dos olivais e das vinhas, e “tomará” os servos/as, os melhores jovens e jumentos
para empregá-los no trabalho. Temos, também, citações como 1 Rs 12,3ss que narram o peso
colocado sobre a população pela arrecadação de impostos, como uma medida impopular,
causando no povo insatisfação e resistência. Vemos, ainda, em Esd 4,13-20 a cobrança de
circulação das mercadorias, além do imposto da terra e do imposto pessoal, dos quais só eram
isentos os que serviam no templo (Esd 7,24). No período dos selêucidas, (1 Mac 10,29;11,34)
80 Cf. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012 (8ª impressão). p.1615, em nota sobre a passagem Am 2,8.
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havia a cobrança sobre o sal, contribuições para a coroa e taxas de importações.81 Em Am 7,1
fala-se na primeira ceifa do campo, que é destinada ao rei, confirmando direitos que o sistema
monárquico conferia conforme vimos em 1 Sm 8. Segundo Sicre, essa opressão sobre os
pobres através do tributo se dá através da arrecadação de impostos em espécie, que eram
recolhidos na porta, e que a administração real ou arrecadadores especiais tenham imposto
uma contribuição alta para os pequenos camponeses. Estes, não tendo condições para arcar
com esse montante exigido pelo Estado, obrigavam- se a pedir emprestado, endividando-se
até perder suas propriedades e liberdade.82
2.7.8 yxeqO.l / Tomadores de suborno (rp,ko)
Em se tratando de “tomadores de subornos”, temos, aí, envolvidos dois crimes igualmente
puníveis, segundo Andersen, o de dar e o de receber, por meio de um acordo desonesto ou
transação onde os recebedores de suborno são magistrados e os doadores dos subornos que
são exploradores abastados e que estão debaixo de acusação.83 O suborno era, portanto, um
dentre os vários meios utilizados, pelos quais as pessoas inocentes eram molestadas e os
pobres defraudados de seus direitos. Vemos, então, a riqueza e o poder, de mãos dadas,
conspirando para a rejeição e o descumprimento dos padrões da aliança, que insistia e zelava
para que fosse garantido a todo o membro da sociedade o direito de ser ouvido com justiça em
litígio.84
2.7.9. yTi[.d:y / Conheço
No Hebraico a palavra “conhecer” equivale a experimentar.85 Em algumas passagens do
Antigo Testamento em contextos de experiência como de batalha (1 Sm 14,12), de privação
(Is 47,8), de sofrimento (Is 53,3), como também da força da mão de Javé (Ez 25,14), a
dimensão do “conhecer” corresponde a “sentir”. Referindo-se a esse sentido de experiência,
alguns textos revelam que a partir do conhecimento se estabelece uma relação estreita,
conforme temos em Ex 1,8; Dt 9,2.24; 1 Sm 10,11. Na relação de Javé com o seu povo há
81 BORN, A. Van Den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 1528. 82 Sicre, 2011, p. 164. 83 ANDERSEN, 1989, p. 502. 84 HUBBARD, 1996, p. 194. 85 MCKENZIE, 1983, p. 179.
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também o sentido de conhecimento baseado em atitudes, enquanto compromisso que por sua
vez requer um reconhecimento e uma resposta que se transforma em ação. No caso do que
encontramos exposto em Am 5,12, temos uma recusa a viver em conformidade com o projeto
de Javé, uma vez que as atitudes aí não condizem com este projeto, sendo portanto uma
atitude de “desconhecimento” ou negação. Neste sentido o que vemos nas palavras de Amós
com o “Dia de Javé” é que Deus se fará conhecer de um modo terrível pelos horrores da ruína
e do Exílio. Temos aí, como em Ex 3,7 a força do profeta na ameaça, que é a sua arma. Ele
intimida o opressor pela ameaça, pela maldição, pois Javé conhece, sabe (Ex 3,7). Mesmo que
queiram esconder, Javé conhece os muitos crimes e irá castigar. Pois Javé conhece o caminho
dos justos e dos ímpios. Há também o sentido do conhecimento a partir da iniciativa de Javé
que conhece seu povo e sua situação, e se dar a conhecer (Ex 3,14) por meio da sua escolha e
cuidado para com este povo, dando a conhecer também o caminho da felicidade (Dt 30,16).86
2.7.10. WJhi / Desviam
Completando esse verbo com a expressão “da porta” ou “do caminho”, este deve ser
tomado no sentido de “desviar do caminho da justiça o pobre” (Am 5,12; Pr 17,23; Jó 24,4).
O que significa negar-lhe o direito à justiça junto aos tribunais.87 A ideia aqui é de “rejeitar”
ou “atropelar” considerando que os juízes impediam aos pobres o acesso aos tribunais, para
que sua causa não seja tratada ou até permitindo-lhes esse acesso, contudo, seu caso é tratado
sem o menor sentido de justiça. No tribunal, os juízes colocam de lado os requerentes,
recusando o seu caso a força.88 Assim, conforme Sicre acontecia as duas coisas: “Pessoas que
não eram atendidas nos tribunais por serem pobres e pessoas que perdiam sua causa por
idêntico motivo”.89
2.7.11. ~k,s.v;AB / Pisoteiam
Conforme Andersen, em comentário sobre a expressão “pisam/oprimem” relacionado
com o que aqui tratamos, falando sobre a raiz usual (bws) para pisar sobre alguma coisa, ele
86 Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes, 1972 (tradução Simão Voigt), p. 166. 87 HUBBARD, 1996, p. 160. 88 ANDERSEN, 1989, p. 499. 89 Sicre, 2011, p. 164.
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coloca a imagem de um guerreiro que fica em pé ou anda em passos largos sobre uma vítima
prostrada.90 De fato, isto expressa bem o que ocorre, segundo a denúncia de Amós com o
tratamento dispensado aos pobres e na porta. A partir disso, podemos considerar, aqui, tratar-
se de esmagar o pobre, colocando-o numa situação de miséria e sem saída. Segundo
comentário de Hubbard sobre o significado dessa expressão, temos o seguinte: “Para esse
verbo deve ser aplicada uma palavra técnica que tem o sentido aproximado de ‘recebeis
aluguel de’”. Neste sentido, podemos supor que aqui se encontra também uma relação entre
proprietários locatários e locadores e aqueles que se sobrepõem sobre os últimos de forma
opressora.91
A partir dessa análise semântica, aos poucos foram aparecendo um conjunto de
elementos que nos rementem ao contexto histórico, social, econômico e político que está na
base de Am 5,10-13. É sobre esse quadro conjuntural que traçaremos a nossa discussão no
capítulo seguinte, procurando descobrir de que forma estava o Reino do Norte, sob o
comando de Jeroboão II, e a intervenção profética de Amós dentro deste contexto. Em Israel
o profetismo ocupou lugar central, marcando profundamente as instituições religiosas e
políticas, bem como as estruturas sociais, como uma espécie de porta-voz do
descontentamento popular.92
Será, portanto, este assunto que nos ocupará no segundo capítulo do nosso trabalho, que
nos levará a encontrar caminhos de resposta sobre as motivações que estão na base do grito
profético de Amós em defesa do direito do fraco e do pobre.
90 ANDERSEN, 1989, p. 499. 91 HUBBARD, 1996, p.193. 92 SICRE, 2011, p. 112.
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CAPÍTULO II
Contexto histórico
1. O cenário político do período de Jeroboão II
O segundo capítulo do nosso trabalho tratará de situar o contexto histórico, social e
político no qual se encontra inserido o profeta de Amós (760 a.C.), bem como verificar a
realidade que está por trás do seu grito profético. Isso será feito em dois momentos: Em
primeiro lugar, faremos uma contextualização dos fatos ocorridos desde Jeroboão I (931-910
a.C.) até o governo de Jeroboão II (787 – 747 a.C.). Em seguida, apresentaremos alguns
traços da figura de Amós e sua inserção no cenário acima referido, a partir da visão e
compreensão que o profeta tem da realidade onde pisa.
Isto nos trará elementos para uma compreensão da força da profecia de Amós, uma vez
que suas palavras são contextuais, porque ditas numa situação específica política e
econômica, dialogando com o ambiente do qual são parte.93 Só assim, é possível entendermos
as “Palavras de Amós” que, segundo Milton Schwantes, acontecem “quando se está com os
pés fincados ‘nos dias de Jeroboão’”.94
O período acima mencionado, conforme os livros 1 e 2 dos Reis (1 Rs 13,1-22,54; 2 Rs
2,1-14,29), revela-nos um contexto marcado por um estado de crise política em Israel,
envolvendo forças partidárias, conspirações e golpes palacianos, de modo geral, assinalado
por reinados curtos, salvo exceções como é o caso de Jeroboão II que governou Israel por
quarenta e um anos. Além disso, encontramos, aí, duas dinastias que darão o tom desta época,
colocando Israel numa posição de ascensão e desenvolvimento econômico dentro dos critérios
de um estado organizado.95
Situando historicamente o período da atuação de Amós, faremos uma breve memória do
que aconteceu em Israel a partir da sucessão de Salomão com Roboão, por volta de 931 a.C.
93 SCHWANTES, 2004, p. 13. 94 Ibid., p. 14. 95 FINKELSTEIN, 2003, p. 291.
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(1 Rs 12). Embora, o texto bíblico relate um levante liderado por Jeroboão I, causando uma
ruptura que dá a entender haver um reino dividido em Israel a partir de então, as coisas não
são tão claras nesta direção. Tudo indica que nunca houve um Estado unido em Israel como
alguns autores defendem. Os camponeses israelitas do norte, ou pelo menos parte significativa
das tribos, parece nunca se ter resignado à sujeição monárquica que contradizia os ideais do
Israel tribal. Portanto, o norte nunca foi submetido ao sul. Com Jeroboão I é que vai se definir
a ideia de um Estado, o Reino do Norte, a partir de medidas que este tratou de tomar para
consolidar uma identidade política e religiosa para o novo reino, Israel. Apenas no sul haverá
um segmento, que tentará se impor sobre os demais, que conservará uma tradição de linhagem
davídica.
O reinado de Jeroboão I durou cerca de 20 anos (927-906 a.C.). Sua sucessão foi
marcada por conflitos e assassinatos que fizeram sete, dos reis de Israel, vítimas de
conspiração, de modo que não se consolidava uma dinastia no norte nos moldes que havia no
sul. Com exceção de dois reis Omri e Jeú, que conseguiram impor importantes dinastias.
Essa forma de organização descentralizada trouxe para Israel uma instabilidade política,
com sucessivos golpes de estado. Como exemplo dessa forma de governo, temos Baasa, rei de
Israel que assumira o poder após assassinar o filho e sucessor de Jeroboão I, Nadab. O
reinado de Baasa passava sérios problemas de defesa, o que fez com que este estabelecesse
aliança com Damasco, a fim de enfrentar as constantes investidas de ataques de Asa, rei de
Judá, fortificando inclusive aldeias fronteiriças. É dentro desse contexto de embates e conflito
que Judá alia-se aos arameus, atacando as tribos do norte. Com isso, Israel perdeu o controle
de grandes extensões do seu território. A maior parte da Galiléia, assim como a Transjordânia
passaram para o domínio dos arameus.96
Após Jeroboão I e os reis que lhe sucederam num primeiro momento de forma isolada,
temos duas dinastias que se formaram em Israel: a dos omridas e a dos Jeuídas, uma após a
outra, que juntas governarão Israel por cerca de 130 anos, entre 878 e 747 a.C.97 A primeira e
grande dinastia dos omridas, foi fundada por Omri, um antigo general israelita, que se
96 PIXLEY, Jorge. A história de Israel a partir dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1990(2ª Ed), p.44. 97 DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. Volume 2: Da época da divisão do reino até
Alexandre Magno. São Leopoldo: Sinodal / Petrópolis: Vozes, 1997, p.302.
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manteve no poder entre os anos de 882/878-871 a.C., cujos reis são considerados como os
principais vilões da história de Israel.98 Omri era chefe do exército quando Zambri se matou
(I RS 16,16). Após o suicídio de Zambri, com o apoio das tropas que queriam fazê-lo rei,
numa acirrada disputa de poder o partido de Omri prevaleceu, e, tomando o poder, Omri é
proclamado rei, consolidando em Israel um governo marcado por uma política de alianças,
ambição e opressão (I Rs 16,25),99 estabelecendo uma dinastia no Reino do Norte durante
quarenta anos.100Os reis da dinastia de Omri foram: Omri, que governou Israel por onze anos.
Depois, seu filho Acab juntamente com Jezabel chegou a vinte e um anos no poder. Seguidos
por Ocosias que reinou por dois anos, e Jorão, que foi assassinado por Jeú após onze anos no
poder.
Se durante o período que antecedeu o reinado de Omri havia constantes confrontos entre
Israel e Judá, durante o seu governo haverá mudança nessas relações. Não apenas
internamente, mas também externamente. Omri tomou uma série de medidas políticas que
tiveram grande êxito no fortalecimento do estado. Enfrentou a crise interna com a
implantação de uma política que reforçava o estado através de alianças políticas, apoiando-se
principalmente no reconhecimento de Aram-Damasco. Além de fazer acordos comerciais com
Tiro e Sidônia, cidades ricas, consolidando relações diplomáticas com esses países, por meio
do casamento de seu filho Acab com Jezabel, princesa da Sidônia, que veio dar suporte à
política interna de fortalecimento do estado.
Embora, na prática, não houvesse um monoteísmo em Israel, uma vez que as práticas
religiosas populares eram permeadas por deidades diferentes, o tempo de Omri será marcado
por um culto oficial a Baal, que o próprio Omri firmou na capital Samaria, permitindo, ao
mesmo tempo, que em Betel e Dã continuassem funcionando os santuários de Javé. Isso
renderá críticas e uma visão condenatória por parte dos setores oficiais, em relação a tais
medidas religiosas.
98 FINKELSTEIN, 2003, p.243. Algumas fontes externas de informação histórica permitem uma visão dos
Omridas numa perspectiva diferenciada, na qual estes são considerados como governantes militares poderosos,
de um dos estados mais fortes do Oriente Próximo. Essa visão é resultado, ao que tudo indica, da influência
assíria com sua burocracia desenvolvida e sua tradição de registro dos atos de seus governantes em declarações
públicas, influenciando a cultura de povos como Israel, Aram e Moab. 99 PIXLEY, op. cit.p, 44. 100 FINKELSTEIN, 2003, p. 237.
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Segundo Finkelstein, durante o domínio dos Omridas Israel tinha características de
desenvolvimento que implicava um território governado por uma complexa estrutura
burocrática, com capacidade de organizar projetos de construções e obras públicas de
manutenção de um exército permanente, além de estabelecer conexões regulares de comércio
externo. Também foi estabelecida em Samaria uma capital com todo o aparato requerido pela
estrutura complexa dessa organização de estado desenvolvido. Dessa forma, a verdadeira
reputação omrida envolveu extraordinária história de poder militar, de realização
arquitetônica e de sofisticação administrativa, até onde pode ser determinada com exatidão.101
Dando continuidade à política de seu pai, Acab assume o poder. Como resultado da
Aliança feita por Omri entre Israel e Judá, terminando meio século de guerras fronteiriças,
Acab casa sua filha Atalia com Jorão, filho de Josafá que era rei de Judá. Josafá une-se a
Acab para combater contra Damasco em Ramot de Galaad, a fim de recuperar a
Transjordânia. Esta aliança teria continuidade com Ocozias e Jorão. Acab fez também aliança
com cidades costeiras da fenícia com o objetivo de se fortalecer ante as ameaças de Damasco
que se tornara um poder forte na região, chegando até a obrigar Israel a pagar-lhe tributo por
um determinado tempo (I Rs 20). Entretanto, no período em que a Assíria passou a
representar uma ameaça para os pequenos estados, tanto os arameus como Emat se unem a
Israel para enfrentar os Assírios.
Para que tenhamos uma ideia do poder do Reino de Israel no período do governo dos
Omridas, citamos aqui registros como o que se encontra na estela de Mesha, rei moabita,
encontrada em Dibam, sul do Jordão, em 1868. Nesta, há inscrições que revelam a extensão
do poderio e das conquistas de Omri, tornando vassalos povos de territórios vizinhos, como
Moab. Também na inscrição descoberta na cidade de Dã, em 1993, que registra a força do
Reino do Norte e o domínio da família de Omrida que se espalhou através das regiões
montanhosas e dos vales ao seu redor, até chegar às fronteiras de Damasco, “governando
sobre uma população considerável de não-israelitas”.102
101 FINKELSTEIN, 2003, p. 243. Tal estado de desenvolvimento reunia, inclusive, condições necessárias para
registros de suas ações em arquivos e inscrições monumentais que possibilitam acesso a esses acontecimentos,
como os famosos fragmentos da estela de Mesha, uma fonte extrabíblica que tem relação com o Reino do Norte
e com Omri, sendo mencionado em 2 Rs 3. 102 Ibid., p. 245.
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Há indícios ainda de que o governo Omrida possuía grande poder militar e arsenal
bélico. Em inscrição deixada por Salmanasar III, que governou a Assíria entre 858-824 a.C.,
foram encontradas informações sobre o Reino de Israel, por ocasião de uma invasão liderada
por Salmanasar contra os Estados da Síria, Fenícia e Israel, que formaram uma coalizão anti-
assíria. Nesta coalisão, segundo a inscrição Acab era o membro que tinha maior poder militar
e armas pesadas (bigas), demonstrando que Omri e seus sucessores provavelmente tenham
sido um dos maiores exércitos permanentes da região.103
Após o período sob o comando de Acab, Ocosias, seu filho, assume por dois anos o
poder no Reino do Norte, sendo substituído por seu irmão Jorão (II Rs 3,1-3), o quarto e
último rei da dinastia Omrida. Jorão enfrentou também conflitos com os arameus (II Rs 6,8-
7,20), além de perder o controle sobre o território de Moab (II Rs 3,4-5), fracassando na
tentativa de recuperar os territórios perdidos. Em confronto com Mesha, rei de Moab, que era
vassalo de Israel, Jorão marchou juntamente com Josafá, rei de Judá, tendo também o apoio
de Edom, vencendo os moabitas após destruir suas cidades.104
Segundo Pixley e Donner, a dinastia de Omri teve seu declínio no ano 841 a.C.,
provocado por um golpe de estado liderado por Jeú, oficial do exército popular que combatia
contra Aram na Transjordânia. Pixley comenta que neste levante estiveram à frente setores do
exército representados por Jeú, sensíveis à realidade de opressão sofrida pela população.105
Esta tomada de poder ou revolta de Jeú, segundo Donner, foi um verdadeiro banho de sangue,
causando um abalo da estrutura do Estado levando o Reino do Norte à beira do abismo.106
Contudo, segundo informações recentes obtidas pela arqueologia, essa visão não corresponde
às inscrições que aparecem na Estela de Dã, encontrada recentemente.
103 FINKELSTEIN, 2003, pp.235-241. Em inscrição monolítica em que Salmanasar se vangloria de ter sido
vitorioso, encontrada pelo explorador inglês Austen Henry Layard, em 1840, no antigo sítio assírio de Nimrub,
escrita numa pedra escura do monumento em caracteres cuneiformes, encontram-se registros dessa força de
colisão contra Salmanasar, constando os seguintes dados: “1.200 bigas, 1.200 cavaleiros, 20.000 soldados de
Hadadezer, de Damasco, a pé; 700 bigas, 700 cavaleiros, 10.000 soldados de Irhuleni, de Hamath, a pé; 2.000
bigas, 10.000 soldados a pé, de Acab, o israelita, 500 soldados de Que, 1.000 soldados de Murs, 10 bigas, 10.000
soldados de Irqanata”. Ou seja, tudo indica que Salmanasar III menciona grande força das bigas de Acab, na
batalha de qarqar, em 853 a.C., demonstrando que Acab, da dinastia Omrida era o membro mais poderoso dessa
colisão antiassíria. 104 Ibid., p. 241. 105 PIXLEY, 1990, p.48. 106 DONNER, 1997, p. 324.
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Sobre a Estela de Dã, temos informação de que em 1993/94, na localidade de Tel Dan,
norte de Israel, em escavações feitas por uma equipe coordenada pelo arqueólogo israelense
Avraham Biran, do Hebrew Union College, foram encontrados três fragmentos de pedras de
basalto contendo inscrições em aramaico, em bom estado de conservação. Estes foram
ajuntados formando a estela, embora incompleta. A partir dessa montagem dos fragmentos,
foi feita a tradução dos caracteres que se encontravam nítidos nestes, após discussões acerca
da interpretação do conteúdo da inscrição. Segundo José Ademar Kaefer, a partir dessa
montagem da estela e da compreensão das informações dadas pelos fragmentos e dos nomes
aí citados, “possibilitou definir, com grande probabilidade, que o autor da estela foi o rei
Hazael, que reinou em Damasco de 845 a 800, apesar do seu nome não aparecer na estela.” A
Estela de Dã deixa transparecer que foi Hazael quem matou os reis Jorão de Israel e Ocosias
de Judá, e não Jeú; e que depois de matar os dois reis, Hazael instalou Jeú no poder.107
Os reis da dinastia de Jeú foram, além do próprio Jeú, que reinou por vinte e oito anos,
Joacáz que chegou a governar durante dezesseis anos, seguido de Joás que ficou no trono
quinze anos. Depois veio Jeroboão II seguido de Zacarias (753 a.C.), o último desta dinastia,
que reinou apenas seis meses.
Entre as medidas tomadas por Jeú, enquanto esteve no poder, temos a eliminação do
culto oficial de Baal na Samaria, embora o culto privado parecesse não ter sido erradicado.
Houve o fim da aliança entre Israel e Judá com mortes causadas pelo golpe de estado aplicado
por Jeú. Durante o governo de Jeú e do seu filho Joacaz, Israel sempre foi assediado por
Damasco, até que Hazael, líder sírio que desempenhou papel fundamental no grave declínio
de Israel, com grande ofensiva derrotou Israel na Transjordânia. Joás, porém, retomou mais
tarde as cidades que Israel havia perdido nessa batalha.108 Quando o monarca assírio Adad-
Nirari III (811a.C.) subiu ao poder, o quadro de relações entre Aram e Israel mudou, pois a
Assíria renovando sua pressão militar e a força de seu imperialismo, cerca Damasco,
provocando o fim da sua hegemonia, enfraquecendo, desse modo, sua força de poder na
região. Ben- Adad III, filho de Hazael, teve que pagar pesado tributo a Assíria. Também Israel
ficou nessa mesma condição de se por aos pés dos Assírios, prestando-lhes tributo.
107 KAEFER, J. Ademar. A Estela de Dã. In: Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja
Metodista. São Bernardo do Campo: Editeo/UMESP, 2012, pp. 36-44. 108 FINKELSTEIN, 2003, p.271.
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Quando Jeroboão II (787-747 a.C.) assumiu o governo de Israel, deu continuidade à
retomada dos territórios perdidos e a uma política de expansão, chegando às fronteiras dos
territórios de Aram. Houve, então, um período de incomparável prosperidade em Israel,
equivalente ou até mesmo maior ao dos tempos dos omridas.109 Sua força econômica
demonstrava-se pelos progressos na agricultura, com produtos de exportação pelo cultivo e
fabricação do azeite dos olivais e dos famosos vinhos e pelo impressionante crescimento
populacional, em razão dessa expansão agrícola ligada a uma economia externa pelas
exportações, havendo, inclusive, um crescimento com projetos de construção de obras
públicas, com um sistema de reserva de água e conjunto de estábulos ligados ao aparato
militar.110 Também por não haver naquele momento ameaça militar.111Comentando a esse
respeito, Donner diz que esse sossego que permitiu tal florescimento deu-se porque o Estado
Arameu de Damasco saiu de cena. Nesse período, é a Assíria que mantém o controle sobre
essas regiões e estados. Portanto, O Reino do Norte que era governado por Jeroboão II, passa
a ser um subalterno privilegiado pela Assíria, o que lhe permite recuperar e ampliar
territórios, investir no comércio, na produção agrícola de suas ricas terras, como o Vale de
Jezreel que era o grande celeiro, tornando-se um período de grande florescimento.
A respeito da grandeza do florescimento do Reino do Norte, segundo evidências
arqueológicas, reúne uma série de construções e estruturas de grande porte, para responder à
complexidade e exigência comercial e militar do reino. Exemplo disso são projetos de
construção dos grandes estábulos, com grandes pátios ao seu redor, possivelmente para
treinamentos e exercícios, encontrados em escavações nas regiões pertencentes ao Reino do
Norte, como em Meguido, do período de Jeroboão II.112 Essas estruturas indicariam apenas as
condições para criação de cavalos, por ser um produto valorizado em Israel que comporia o
aparato militar de Jeroboão II, ou ofereceria indícios de uma provável criação de cavalos em
grande escala para ser comercializado com outros países para fins militares?
109 DREHER, Carlos Arthur. Os exércitos do Reino do Norte. Sua constituição, suas funções e seus papéis
políticos no conflito social no sistema tributário, segundo distintas avaliações na literatura veterotestamentária.
São Leopoldo, 1999 (Tese de doutorado – Escola Superior de Teologia), p. 261. 110 DREHER, 1999, p.287 111 FINKELSTEIN, 2003, p.265. Segundo Finkelstein, “levantamentos realizados em larga escala na região
indicam que por volta do século VIII a.C. – um século depois dos Amrides a população do reino do Norte pode
ter alcançado 350 mil habitantes”. 112 Ibid., p. 288. Segundo Finkelstein, “Graças ao processo de estabelecer outras datas para o estrato de Meguido
– e a reavaliação da história arqueológica do reino do norte – agora podemos rejeitar as teorias anteriores e
afirmar com segurança que as estruturas que as estruturas que parecem estábulos em Meguido pertencem à época
de Jeroboão II”.
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Segundo a pesquisadora Stephanie Dalley, tratando de registros assírios, há sinais de
que alguns estados vassalos do Império assírio, como pode ter sido o caso de Israel, que teria
se especializado na criação e na exportação de cavalos usados em bigas e na cavalaria militar.
Talvez em Israel a criação de cavalos, como atestam os achados desses estábulos nas
escavações, não fossem apenas para responder as suas necessidades militares, mas tivesse
essa negociação com o império assírio. As descobertas sobre Urartu, outro reino vassalo da
Assíria que era reconhecido como proprietário e criador da melhor cavalaria do mundo,
inclusive para exportação, tinham edificações nas quais seu planejamento arquitetônico é
muito similar aos “estábulos” de Meguido.113 Outro elemento que merece atenção são
registros da época de Sargão II, rei Assírio, datados depois da conquista do Reino do Norte
pela Assíria. Comentando sobre essas informações, Finkelstein fala que “a pesquisa de
Stephanie Dalley sobre as tabuletas assírias, chamadas ‘lista de cavalos’, concluiu que
oferecem informações sobre funcionários, oficiais militares e unidades do exército assírio na
época de Sargão. Esses registros indicam que, enquanto membros de outras tropas
especializadas de regiões conquistadas foram incorporados ao exército assírio, a brigada
israelita de bigas foi a única unidade estrangeira que pôde manter sua identidade nacional”.
Portanto, vemos claro nestes registros que as tropas de Israel tinham um potencial
reconhecido ao serem incorporadas ao exército assírio.114
Contudo, esse desenvolvimento, riqueza e fama no Estado de Israel não cresciam de
modo uniforme que favorecesse condição de vida para toda a população, mas se
concentravam nas cidades, sobretudo na capital, Samaria. Na verdade, o que esse
desenvolvimento fez, foi promover o avanço de desigualdade social, já em curso há mais
tempo, dividindo o país em ricos e pobres, senhores e escravos, grandes latifundiários e
agricultores sem-terra ou com um pedacinho de terra, porém endividados. Conforme Donner,
“O brilho do reinado de Jeroboão II encobriu só imperfeitamente os males sociais, a
corrupção na administração e no exercício da justiça”.115
1.1. Um desenvolvimento paradoxal e miserável que merece protestos
113 FINKELSTEIN, 2003, p.289. 114 Ibid., p.290. 115 DONNER, 1997, p.326.
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É no auge dessa prosperidade do Reino do Norte, sob o comando de Jeroboão II que
surgem as primeiras vozes de protestos, como a voz de Amós, com denúncias e condenação
fortes a respeito da aristocracia corrupta, da sua opulência e luxo. Com ásperas críticas, Amós
condena o Estado imoral que impera em Israel e a iniquidade dos que acumulam riquezas na
cidade, à custa do empobrecimento e miséria da população do campo.
Conforme dito por Schwantes e Mesters, a atuação dos profetas, como aqui o profeta
Amós, tem hora e local, é concreta. A hora certa aqui era o auge da exploração, em que todo
um povo se encontra “fraco”, já sem força para se defender dos seus opressores, sendo
necessário que uma voz se levante em sua defesa. Essa atuação profética está relacionada a
certo momento, a certas pessoas, a certas estruturas. Não sendo, pois, o discurso genérico o
que os caracteriza. “Eles não são defensores de doutrinarismos, mas intérpretes da história são
leitores da vida do povo. Através dos gestos e palavras do profeta, a história se torna
transparente”.116 Desse modo, situamos a hora dos profetas no tempo dos reis. Segundo
Milton Schwantes a profecia é simultânea à monarquia. Profetas e reis são contemporâneos.117
A profecia de Amós surge como crítica aos desmandos do sistema monárquico instalado
por Jeroboão II, sendo uma força de resistência em que se acentua o conflito entre profecia e
monarquia onde irrompe o grito: “Disse Javé”.118 Esse conflito ocorre pelo modelo de
sociedade existente em Israel. A política dos reis defendia a cidade, o comércio, a
especulação, a venda de terras, favorecimento dos negócios, a escravidão e exércitos fortes.
Também defendia o culto suntuoso e centralizado. O movimento profético defendia o povo, as
aldeias, o campo, a propriedade familiar da terra, o trabalho livre, os pequenos santuários que
se caracterizavam pelo culto familiar.119
A crítica social presente em Amós mostra um grande êxito de Jeroboão II, por uma série
de vitórias militares120 e ampliação do território do Reino do Norte, além de uma ascensão
comercial pelo domínio das rotas comerciais dentro dos territórios sob o domínio de Jeroboão.
116 SCHWANTES, Milton; MESTERS, Carlos. Profeta: Saudade e Esperança. Belo Horizonte: CEBI, 1989
(Série “A Palavra na Vida” – N. 17/18), p. 6. 117 Idem. 118 Das tribos à monarquia – Profetas anteriores. Roteiros para Reflexão III. São Leopoldo: Publicações CEBI,
1993, p. 62. 119 Ibid., p. 69. 120 DREHER, 1999, p. 49 – Comentando a respeito de Israel ter um aparato militar profissional Carlos Dreher
coloca: “Como se pode depreender de Am 2,14-16, em torno de 760 a.C., portanto, no início da segunda metade
do reinado de Jeroboão II (787/86-747/46 a.C.), Israel já possuía novamente um poderoso exército, contando
com carros de combate e arqueiros, o que deve indicar o retorno da supremacia dos soldados profissionais.
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Em 2 Rs 14,25 transparecem as grandes conquistas de Jeroboão, reestabelecendo os limites de
Israel, tendo inclusive incluído sob seu domínio territórios pertencentes a Judá (v.28), como
resultado dos empreendimentos e triunfos de guerras. Com isso, houve grande prosperidade
no país, conforme relata Schwantes, embora à custa de muitos massacres:
Jeroboão II é da dinastia de Jeú, um general que – com algumas boas intenções e
por meio de muitos massacres (cf. Os 1.4; 3 Rs 9-10) – galgou o poder em 842.
Jeroboão II mostrou serviço. Atesta-o seu longo governo de quarenta e um anos,
desde 787 até 746. Os anais, citados em 2 Rs 14.23-29, nos dão uma ideia de seus
grandes “sucessos”. Ampliou as fronteiras de Israel. Impôs o interesse do Estado
israelita em Damasco e em Emat, vizinhos ao norte. No sul, alargou as fronteiras
até o Mar Morto. Não é possível que os Estados de Damasco e Emat tenham sido
mantidos sob ocupação, durante todo o governo de Jeroboão II. Afinal, de acordo
com Am 1.3-13;6.13 houve lutas fronteiriças em Galaade (na Transjordânia).
Nesses combates muitos civis foram massacrados, “trilhados com trilhos de ferro”
(Am 1.3).121
Tendo sob seu controle o monopólio das principais vias pelas quais se davam as rotas
comerciais, Jeroboão II garantia boa entrada de divisas, uma vez que comerciantes egípcios e
mesopotâmicos necessariamente passavam pela planície de Jezreel, um verdadeiro
entroncamento comercial, a fim estabelecerem seus negócios.122 Assim, o domínio territorial
retomado por Jeroboão II trazia como fonte de renda, além da tributação123, a cobrança
obrigatória de pedágios em razão do tráfego comercial entre o Norte ou países do Oriente e o
Egito.
Além disto, havia um desenvolvimento na área agrícola, considerando que a região
montanhosa nas cercanias da Samaria prestava-se ao cultivo de olivais para a produção de
azeite, com fins de comercialização. A esse respeito, podemos citar o comentário de
Finkelstein sobre os óstracos de Samaria. Segundo ele, “os famosos óstracos de Samaria -
uma coleção de 63 cacos de cerâmicas inscritos com tinta em hebraico e datados, admite-se,
da época de Jeroboão II – registram o carregamento e o embarque de azeite e de vinho pelas
aldeias ao redor da cidade de Samaria, a capital”.124
Embora haja esse crescimento do comércio exterior com a exportação de produtos
agrícolas por parte de Israel, a exemplo da comercialização da produção do azeite, temos em
121 SCHWANTES, 2004, p. 15. 122 Ibid., p. 21. 123 Cf. DREHER, 1999, p. 132. Na arrecadação desses tributos, as forças das armas garantia a autoridade dos
“tomadores” de tributos. 124 FINKELSTEIN, 2003, p. 284.
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contrapartida a importação de outros produtos, inclusive artigos de luxo, realidade que pode
ser constatada nas denúncias de Amós. Não era pouca a pressão exercida sobre a população
responsável pela produção agrícola, para responder a uma demanda de importação de artigos
de luxo requerida pelo nível social dos que viviam na capital ou, de modo geral, à classe
abastada espalhada no país, nos seus palácios e casas de luxo ou nas suas casas de veraneio.
A esse respeito Milton Schwantes descreve:
A realidade das pessoas era exatamente o inverso do esplendor das elites e dos que
usufruíam as benesses dos centros urbanos de então. A gente do campo era
convocada a gerar, com seu suor e sua fome, os produtos e as riquezas necessários
para o expansionismo comercial e militar. A realidade do povo era, pois, marcada
por dura exploração.125
O reino de Israel tem, a partir daí, suas riquezas aumentadas consideravelmente, graças
a esse comércio quer com a Arábia, a Fenícia, como, também, com o Mar Vermelho. Sem
falar nas minas de ferro de Arabah, além das atividades têxteis florescentes.126 Esse período
de desenvolvimento colocando o reino do norte em condições prósperas, desfrutando de certo
progresso manifesto por um modelo de Estado organizado, é bem expresso por Finkelstein, ao
dizer que, “é no auge da prosperidade do reino do norte, sob o governo de Jeroboão II, que
nós podemos identificar, afinal, a totalidade dos critérios do Estado organizado: alfabetização,
administração burocrática, produção econômica especializada e um exército profissional.” 127
Tudo isso tem um preço. A partir desse desenvolvimento econômico surgem profundas
tensões sociais. Isso acontece à medida que na cidade se desenvolve uma espécie de
capitalismo urbano, baseado na obtenção e retenção do lucro por parte de uma minoria. É esta
parcela da população que detém grande parte das riquezas e dos bens, em benefício do seu
bem-estar material à custa do suor e da miséria da maioria, especialmente da população do
campo, paulatinamente empobrecida.128
Desse modo, podemos verificar em tais circunstâncias testemunhadas por Amós,
elementos apontados em Am 5,10-13, bem como em outras citações do livro de Amós, cuja
análise semântica dos seus principais vocábulos feita no final do capítulo anterior, nos
remetem a tal quadro social. Conforme verificamos, a profecia de Amós surge em razão da
125 SCHWANTES, 2004, p.22. 126 SILVA, Aldina. Amós: um profeta politicamente incorreto. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 15. 127 FINKELSTEIN, 2003, p.291. 128 SILVA, Aldina. op cit. p. 11.
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necessidade de denunciar, de imprimir um caráter de contestação diante desse modelo de
sociedade que cada vez mais foi se firmando sob o comando de Jeroboão. Amós não poupou
condenação às instituições religiosas, políticas e jurídicas que sustentavam o modelo social e
político vigente, pautado numa economia exploradora e opressora. Isto se dava em razão da
exigência de mudanças radicais nas estruturas da sociedade em Israel, contida no grito
profético de Amós.
Neste quadro conjuntural, o profeta é porta voz das dores do povo, decorrentes do
senhorio de Samaria e do conflito entre cidade e campo. Toda a situação vivida pelo povo e aí
expressa, encontra-se apoiada num regime fundado em uma economia tributarista e comercial
fortemente exploradora. Esses elementos são encontrados nas entrelinhas das “palavras de
Amós”, conforme veremos de forma expressa a seguir, no conteúdo que contém a profecia de
Amós.
2. Quem foi Amós e qual a sua análise de conjuntura “nos dias de Jeroboão”.
Segundo Hans Walter Wolff129, se trabalharmos o perfil de Amós, vamos encontrar
esboçadas nas próprias palavras do profeta Amós senão uma autobiografia, traços marcantes
do que resume sua compreensão da realidade, bem como suas denúncias e compromisso com
a justiça. De maneira dialética e incisiva, o contexto fez com que Amós falasse e, igualmente,
o profeta fez com que o contexto falasse, fazendo surgir um grito de denúncia das práticas
injustas instaladas em Israel, durante o governo de Jeroboão II e o anúncio da sua ruína.
Embora sua atuação profética tenha se realizado no Reino do Norte, Amós era
originário do sul, de Técua, vilarejo da Judéia (1,1), situada a uns nove quilômetros de Belém
e a 18 quilômetros de Jerusalém. Estava situada em uma região de colinas, cuja economia era
baseada na criação de animais, em razão de ser pouco propícia à agricultura. Técua não era
um lugar qualquer perdido por aí, mas um vilarejo de certa importância (Js 15,59; 2 Sm 14,2;
Jr 6,1; 2 Cr 11,5-6).130 Talvez se deva essa importância, entre outras coisas, ao fato de ter
sido utilizada como ponto de apoio militar pelo rei Roboão (cf. 2 Cr 11,6; 2 Sm 14,1-24).
129 WOLFF, H. Walter. La hora de Amós. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1984. 130 SANTANA, Aparecido Neris. A questão social em Amós à luz dos povos – Um estudo a partir de Amós 3,9-
11. Dissertação de mestrado, São Paulo: Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, 2004, p. 40.
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Segundo Aldina da Silva, ainda hoje a cidade existe, embora como cidade Árabe,
conservando praticamente o mesmo nome: Tuqu.131
Sua classe social é uma questão difícil de ser colocada, uma vez que na interpretação de
alguns, Amós seria um grande fazendeiro, dono de grandes rebanhos e, para outros, um
pequeno proprietário e cuidador de gado dos outros. Toda a sua crítica e desprezo pelas
regalias e o luxo típico do ambiente urbano vão nos fazer levantar a suspeita de que Amós
teria sido um homem de um meio social simples, tipicamente rural, pelo seu estilo
escriturístico com imagens tiradas da vida pastoril que nos indicam isto (3,4. 5.12).
Enquanto profecia de condenação, as palavras de Amós passam a ser um contradito aos
abusos palacianos e à forma de organização social, política e econômica de um reino
próspero, revelando, no entanto, um paradoxo, uma vez que esta situação de acúmulo de
riqueza contrastava com a violência, opressão e miséria vividas pela população empobrecida
do campo.132 Conforme temos em Am 7,14, Amós se recusa a ser considerado profeta,
segundo a ótica de um sacerdote vassalo do poder político.133 A profecia de Amós vem da
margem, da periferia da vida, do meio dos marginalizados e excluídos e não das classes
abastadas da sociedade às quais ele profere duras críticas, listando uma série de denúncias que
acarretarão num julgamento da parte de Javé sobre tais categorias da sociedade. São profetas
como Amós, que por excelência são não só intérpretes de Deus, mas precisamente sujeito da
ação, por ser o depositário que recebe a Palavra e a transmite.134
Dentro desse contexto histórico – político do Reino do Norte, Amós presenciava um
desenvolvimento econômico. Percebia, porém, a situação precária trazida por esse progresso.
No comentário feito por Lacy a esse respeito, citando Am 3,9-12, “Os olhos normais veem
tráfico comercial, abundância de bens, riqueza, movimento, desenvolvimento, o orgulho dos
habitantes de Samaria. Os olhos proféticos descobrem caos, violência e opressão”.135
131 SILVA, Aldina, 2001, p. 17. 132 SCHWANTES, 2004, p. 17. 133 MOREIRA, Gilvander Luís. A Bíblia respira profecia: “Se calarem a voz dos profetas...”. In: Horizonte
teológico – Buscando ser cristão no contexto atual. Ano11 / n. 21 (jan – jul ), Instituto Sto. Tomás de Aquino –
Belo Horizonte, 2012, p. 54. 134 LACY, J.M. Abriego. Os Livros proféticos. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 70.
135 Ibid., p. 62.
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As relações que se dão no reino de Israel, configuradas pelo modelo tributário, são
analisadas por Amós a partir de uma ótica do campo, de quem é tomado o tributo. Ao mesmo
tempo é uma posição de quem percebe e articula uma resistência contra tal exploração de
âmbito citadino.136 Considerando essas contradições entre campo e cidade, que podemos
dizer, se davam à vista de Amós, Milton Schwantes propõe que,
A realidade das pessoas era exatamente o inverso do esplendor das elites e dos que
usufruíam as benesses dos centros urbanos de então. A gente do campo era
convocada a gerar, com o seu suor e sua fome, os produtos e as riquezas
necessários para o expansionismo comercial e militar. A realidade do povo era,
pois, marcada por dura exploração.137
Em meio a todo um período de florescimento considerado um verdadeiro “milagre
econômico” que Israel atravessava, com a estabilidade e os sucessos políticos de Jeroboão II
em Israel (787- 747 a.C.) e de Azarias de Judá, era assegurado um período de prosperidade
especialmente para as elites da sociedade. Período esse só perturbado pela voz de um profeta
importuno, o profeta Amós,138 como contestação ante o estado alarmante de opressão e
acentuação das diferenças e desigualdades sociais. Sua voz ressoa em defesa da maioria da
população cada vez mais explorada por uma minoria, uma vez que a situação era, na verdade,
um tempo de muita aflição para o povo, em que havia riqueza e miséria, fartura e carência em
plena coexistência.139 É por isso que a consequência da pregação de Amós será a expulsão do
país. O nome de Amós parecia soar como se fosse conhecido há tempo na corte, levando a
indagar se Amós não estava a um tempo provocando desassossego, uma vez que anunciava
que Jeroboão morreria à espada e que Israel iria para o cativeiro. Sua fama, segundo o
sacerdote Amasias, que o levou à expulsão era de conspirador e agitador que preconizava uma
revolução violenta.140
A realidade mostrava que alguns se enriquecem, vivendo bem nutridos, com abundância
de bens, ostentando luxo e riqueza, enquanto a maioria da população vai sendo cada vez mais
empobrecida, tomando a expressão do fraco, nos seus corpos desnutridos. Esta diferença
136 SCHWANTES & MESTERS. 1989, p. 17. 137 SCHWANTES, 2004, p.22. 138 AMSLER, 1992, p. 23. 139 SCHWANTES, 2013, p. 99. 140 Idem.
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notada é evocada em forma de denúncia e condenação no livro de Amós.141 O que ocorre em
meio à sociedade, em Israel, segundo o que se ouve no grito profético de Amós em defesa do
direito do pobre (5,10-13), é a prática de agressão, brutalidade e violência, fazendo grande
parte da população viver pisoteada, trilhada e esmagada, num verdadeiro massacre, no qual
pessoas são enxotadas, afligidas e eliminadas.
A respeito das críticas sociais feitas por Amós ao reino de Israel, numa situação de
opressão generalizada, temos uma crítica mais geral dirigida ao Estado, formado por um
modelo de sociedade monárquico que se sustenta pela prática de extorsão por uma tributação
elevada sobre a população que se encontra encurvada. E para que tal situação se mantivesse,
havia um esquema de forças armadas com sua força de coerção, através de um exército a
serviço do Estado, especialmente para garantir a arrecadação para os cofres do tesouro.
Aliado a isso, encontra-se a prática de um comércio explorador e fraudulento,
alimentado pela ganância de uma categoria opulenta de comerciantes com o interesse de
amontoar e entesourar as riquezas e os bens. A economia assentava-se sobre a produção
agrícola. A maior parte da população vivia no campo, conservando uma vida clânica;
enquanto na cidade viviam os segmentos que detinham o controle sócio, político, econômico e
religioso. E no entorno da cidade eram encontrados os pobres, gerados pelos contínuos
embates.142 É sem pena nem dó que as vítimas de tal engrenagem, especialmente o pequeno
agricultor, sofrem o abuso de penhora e do superfaturamento por juros de empréstimos,
tornando-se a cada vez, mais e mais empobrecido.
Nas palavras de Aldina da Silva, ao colocar o reflexo concreto de tal realidade
transparecida nas denúncias de Amós, vemos que:
Os camponeses, pouco a pouco, perdem suas terras e em geral se vão endividando
por causa das colheitas fracas, epidemias ou desastres ecológicos, na esteira de
guerras e de catástrofes naturais. Para sobreviver tornam-se, então, simples
trabalhadores rurais em terras que não mais lhes pertencem. Os impostos (pagos
em gêneros), além dos empréstimos com juros e fraudes de todos os tipos, agravam
mais ainda a situação, e eles se veem obrigados a empregar-se como mão de obra
141 Cf. SILVA, Aldina, 2001, p. 15. As escavações arqueológicas realizadas na região da Samaria dão
testemunho da existência de moradias miseráveis perto de um bairro residencial rico, revelando o surgimento de
um proletariado urbano. 142 Das tribos à monarquia. op. cit. p. 18.
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assalariada ou a vender-se como escravos para sobreviver. Perdem, pois, seus
direitos e sua liberdade.143
Nesse processo de exploração que penalizava a população, um agravante se dá pelo
endividamento por parte de quem se encontra num contínuo estado de empobrecimento. Num
grau crescente, o pequeno agricultor transforma-se de devedor a sem-terra e sem bens, de
sem-terra a escravo, de escravo a condição de perda total dos seus direitos. Tudo isso para
alimentar uma parcela da população, a classe abastada, que tem interesse de manter tal estado
de coisas a fim garantir a ostentação, o luxo e uma “doce vida”. Em razão disso, é que as
“palavras de Amós” indicam na seguinte direção: morte ao rei e exílio para o povo (7,11),
porque há uma responsabilidade coletiva de todo o Israel nessa opressão dos pobres, uma vez
que ninguém se oferece para defendê-los. Há conivência por parte das autoridades e de muitos
grupos e segmentos da sociedade de Israel.144 Restando, portanto, um discurso de julgamento
coletivo por meio de oráculos de desgraças, com palavras fúnebres e de luto.
A dimensão da justiça e do direito em Amós não é uma coisa abstrata. A denúncia dos
crimes – pecados de Israel mostram isso. Amós denuncia o profundo desprezo com que os
poderosos tratavam os pobres e os fracos, “pisoteando seus direitos” (5,11), chegando a
“vender o justo por dinheiro, e o pobre por um par de sandálias” (5,6). Neste sentido, “vender
o justo por dinheiro”, alguns autores interpretam tal acusação / pecado num aspecto judicial,
em que Amós acusa os juízes de estarem corrompidos, aceitando “suborno” (5,12), sendo
capazes de condenar uma pessoa que não cometeu nenhum delito.145
Temos no período de Amós a situação por ele descrita de acontecer um credor “vender
o pobre por um par de sandálias”, com o agravante que a pessoa devedora é vendida como
escrava, por causa de uma ninharia que deve. Nesse caso, sobressai na denúncia de Amós
primeiro o desprezo pela pessoa, como no caso de uma pessoa devedora, ao torná-la escrava.
Depois, a desproporção entre a dívida e a escravidão, para o que não há justificativa. Para
Amós a escravidão não tem justificativa, nem por motivo de guerra ou dívidas, apesar de ser
uma prática que fazia parte da cultura do povo (Ex 21,2ss; Dt 15,12ss). O que vemos em
Amós é uma atitude de ruptura com tais barreiras culturais e éticas de seu tempo, a respeito da
escravidão.
143 SILVA, Aldina, 2001, p. 11. 144 BONORA, Antonio. Amós, o profeta da justiça. São Paulo: Paulinas, 1983, p.26. 145 SICRE, 2011, p. 133.
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Amós contesta a cobiça desmedida dos poderosos, de que era vítima o pobre, o fraco e
justo, diante das classes abastadas e dos dirigentes, que só pensavam em gozar a vida e
aumentar seus privilégios, pela voracidade dos comerciantes que conseguem grandes lucros
prejudicando os pequenos, à medida que vendem o refugo, mercadorias ruins e caras, depois
de os terem vergonhosamente roubado (5,11-12), no dizer de Pixley, traficando assim com a
necessidade do povo.146
Levando em conta os aspectos da denúncia de Amós, diante desses abusos do luxo das
classes abastadas que faz o povo sofrer, há por parte do profeta um senso de responsabilidade
coletiva que se expressava num viver em permanente estado de alerta moral e compromisso
ético na defesa do direito e da justiça. É fundado nessa consciência ética que Amós condena
toda imoralidade das classes dirigentes por não querer caminhar na retidão (3,10),
identificando, dessa forma, uma situação de despreocupação com a miséria da maioria do
povo (6,1-7; 3,13; 4,1-3). Condena, também, os setores e segmentos sociais que prejudicam a
vida, esmagando os fracos, pelos seus direitos negados e sua causa não sendo levada em conta
nos tribunais (5,7), em função de uma justiça fraudulenta que “desviava” o pobre dos seus
direitos.
Em Am 7,10-17, revela-se a interpretação que setores das classes dirigentes ligadas ao
estado e à religião tinham do conteúdo da profecia de Amós. Aos olhos da elite, Amós era um
conspirador, interessado em um golpe de estado. Quando, na verdade, suas palavras eram
críticas e questionamentos, de modo muito forte, feitos às pessoas corruptas, mas
principalmente ao sistema gerador de tais pessoas.147
Pudemos perceber, durante essa análise do contexto histórico, uma série de problemas
que as “palavras de Amós” procuram evidenciar, dos escândalos praticados por Israel, com
uma lista de crimes que afligem e aterrorizam a população empobrecida da sociedade. Amós
foi desdobrando as denúncias e as várias instâncias ligadas ao Estado culpadas por essa série
de injustiças que penalizava principalmente a população do campo. Os fatos sociais e
políticos servem para ilustrar, fundamentar e anunciar a intervenção de Deus na história,
146 PIXLEY, 1990, p. 52. 147 MOREIRA, 2012, p.57.
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segundo a catástrofe predita por Amós, de que a desgraça e o fim de Israel já estão de alguma
forma implícitos nos fatos de uma vida injusta e corrupta.148
2.1 Da periferia ao centro da denúncia: Na administração da jurisprudência, o
suborno e o “desviar” o caminho do pobre.
O livro de Amós nos seus primeiros capítulos apresenta uma palavra de julgamento
dirigida contra crimes cometidos por nações vizinhas a Israel, na qual Amós denuncia o maior
crime de cada uma dessas nações, sobretudo nas suas ações bélicas. Acompanhando o que vai
desenrolando-se, especialmente, na passagem que temos em Am 1,3-2,5, segundo comenta
Balancin, para Israel até aí tudo bem, os ouvintes do profeta talvez estivessem tranquilos,
pensando que Amós está aí só para falar mal dos outros, dos que lhe são inimigos. Porém,
pouco a pouco, se vai apertando o cerco. A coisa começa a incomodar, quando Amós se dirige
a Israel, dizendo: “E vocês pensam que escaparão do julgamento?”. A partir de então, são
enumerados os crimes cometidos por Israel, que era considerado povo escolhido por Deus.
Por isso mesmo seus crimes são mais graves.149
Desse modo, os ditos contra as nações equiparam Israel até em maior grau aos povos
vizinhos em termos de culpa e condenação. Em face de todos esses crimes de Israel e todo
esse clima de opressão e terror sobre os pobres, com uma simbologia negativa (3,9-10), Amós
convida Asdode e Egito para serem juízes contra Israel, porque este foi mais perverso para
com o seu povo do que os outros povos o foram. Convoca uma reunião de testemunhas para
constatar dos montes da Samaria a autossuficiência dos desvios e avidez de Israel, para ver
mais de perto, para ter uma visão e compreensão dos desvios desse povo. Amós condena toda
imoralidade das classes dirigentes por não saberem caminhar na retidão, uma vez que
exploraram mais seus próprios irmãos do que os outros povos.150
Enquanto profeta da justiça social, Amós tem como núcleo da sua denúncia a injustiça
no que se refere às relações sociais manifestas na opressão e marginalização dos pobres e
fracos da sociedade. Isto porque estes são ultrajados na sua condição de dignidade humana.
148 BONORA, 1983, p. 66. 149 BALANCIN, Euclides; STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro de Amós – A denúncia da injustiça social. 2. Ed.
São Paulo: Paulinas, 1991.p. 18. 150 SANTANA, 2004, p. 11.
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Ao lado disso, também é causa da denúncia de Amós a opressão que pesa sobre os pobres, o
abuso sexual contra meninas jovens, além da exploração de negociantes que são “devoradores
de pobres” (8,4-6) e credores que reduzem seus devedores a escravos (2,6), quando não, lhes
tomando penhores (2,8). Não fosse pouco tudo isso, há ainda um silêncio prudente diante de
tal estado de coisas, pois ninguém se atreve a acusar os delitos que conhece.151 ·.
Com relação à denúncia que é feita nas visões que encontramos nos capítulo 7-9 do
livro de Amós, Amós nos permite identificar de imediato quem e o que está sendo ameaçado.
O que está em risco é o sustento, a produção do pequeno agricultor, pelo confisco ou a
tributação feita pelo rei por ocasião da primeira colheita. Além do agravante que é o período
de estiagem e seca que assola o país, ameaçando o que restava para a sobrevivência das
famílias do campo que era a segunda colheita. Aqui, como em todo o livro de Amós, Javé e o
profeta se aliam em defesa dos lavradores e camponeses empobrecidos e espoliados.152
Nessa mensagem de Amós, cuja critica social enfatiza uma defesa dos pobres,
encontramos duas questões centrais que são entrelaçadas: a contestação do templo e do
Estado. Aqui nem ocorre intervenção por parte do profeta, na possibilidade de suspensão do
aniquilamento anunciado. Sendo as ameaças irrevogáveis, recaindo sobre “meu povo Israel”.
Buscando identificar a partir do texto quem é este “meu povo Israel”, de forma
contextualizada, Milton Schwantes apresenta a possibilidade de encontrar aí um ambiente
citadino, isto porque no cenário apresentado há alusões referentes ao palácio, à corte, ou seja,
ao mundo palaciano com todo seu aparato. Depois, são colocados também em xeque os
lugares altos, os santuários de Israel, que estavam profundamente atrelados aos interesses
palacianos e citadinos. Temos, portanto, uma insistência da ruína total, que se refere ao
templo com seus sacerdotes, por este desempenhar um papel fundamental no tributarismo,
numa forma de repúdio ao templo, que é um dos refrões de Amós.153
Desde o início do livro de Amós (2,6s) temos, de forma ampla e detalhada, as
denúncias feitas por Amós contra Israel pelos abusos cometidos pelas classes privilegiadas,
151 LACY, 1998, p.25. 152 SCHWANTES, Milton. Jacó é pequeno – Visões em Am 7-9. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino –
Americana (RIBLA). n.1. Por uma hermenêutica da libertação na América Latina, 1988 / 1. A partir deste ensaio
feito por Milton Schwantes o que transparece no conjunto das visões que temos no livro de Amós se refere ao
conflito entre campo e cidade. 153 Idem.
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que faz coexistir festas e luxo, ao mesmo tempo, com maus tratos sobre os fracos e os pobres.
Amós vai especificando e vai mais a fundo, particularmente, a respeito de que modos se dão
esses abusos, a começar pelo mal que parte dos tribunais que, ao invés de garantir o direito,
faz é desprezá-lo pela prática do suborno, que faz com que haja a condenação de inocentes
pelo suborno dos juízes no seu exercício junto ao Portão, não fazendo o que é reto (2,6-8:
5,10-12). Em função dessa justiça fraudulenta, os camponeses perdiam seus recursos, sendo
paulatinamente empobrecidos. Amós aponta delitos concretos decorrentes dos antagonismos
sociais existentes no Reino do Norte, a partir das condições políticas e econômicas internas,
como das injustiças sociais. Denuncia em primeiro plano a distorção do direito (5,10. 12) e o
descaso com a justiça.
De forma central, constatamos, a partir do nosso objeto de pesquisa, que é Am 5,10-13,
que a denúncia de Amós recai sobre a prática da injustiça instalada oficialmente na instância
que deveria ser o principal canal de mediação e garantia de defesa do direito dos que na
sociedade são os mais fracos e indefesos: a jurisprudência que em Israel encontra-se
corrompida. A partir de então, levantamos as seguintes questões: Qual, afinal, o eixo das
denúncias apontadas em Amós, especialmente na perícope Am 5,10-13? Concretamente,
quais pessoas ou grupos que estariam por trás desses crimes cometidos no lugar onde deveria
ser garantido o direito e a justiça? A quem Amós nomeia como agentes opressores, situando
especificamente o seu grito profético no portão? De que modo e quais as mediações por estes
utilizadas? Todas essas questões serão desdobradas no terceiro capítulo, a partir de uma
análise que terá como foco Am 5,10-13.
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CAPÍTULO III
O direito é torcido à Porta
A exegese feita no primeiro capítulo do nosso trabalho, bem como a análise semântica
das principais expressões contidas na perícope Am 5,10-13 possibilitou-nos uma apreensão
da realidade que se encontra por trás dessas expressões. Uma vez definidos tais conceitos,
retomaremos no presente capítulo o que aí foi trabalhado, a fim de percebermos sua
importância e força dentro de uma crítica social, como é a profecia de Amós. Trabalharemos,
num primeiro momento, o significado de justiça e de direito ligados à expressão Porta /
Portão, a partir da perícope em questão.
Em seguida, faremos uma abordagem referente ao exercício do direito e da justiça em
Israel, no período compreendido ao contexto que ora nos detemos, nos ocupando, sobretudo,
do que diz respeito ao Portão no Antigo Israel, lugar em que a justiça e o direito eram
administrados.154 Isto será feito, segundo o que pudemos perceber na contextualização
histórica trabalhada no capítulo anterior, e, especialmente, por uma análise do conteúdo da
perícope Am 5,10-13, aprofundando tais dimensões conforme transparece no texto. Desse
modo, vamos direcionando nossa discussão para o eixo central da nossa temática, que é o
direito e a justiça na profecia de Amós, a partir de Am 5,10-13.
De posse da perícope, trabalharemos a justiça social presente entre os países e povos do
Antigo Oriente Médio, a fim de buscarmos uma aproximação entre elementos de defesa do
direito do pobre, nele presente, e o texto de Am 5,10-13. Verificaremos possíveis
aproximações e, ao mesmo tempo, o que há de distinção entre Amós e escritos do Antigo
Oriente Médio, principalmente no que se refere às implicações e exigências éticas e religiosas
da profecia de Amós.
154 GERSTENBERGER, 2007, p. 17.
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1. A Porta: o lugar do exercício do direito e da justiça
Em primeiro lugar, queremos destacar aqui o vocábulo em torno do qual se articula a
nossa perícope: “Porta” / “Portão” (šaʽar). Na análise semântica desenvolvida no primeiro
capítulo dessa dissertação, discorremos de maneira detalhada sobre o significado do Portão
dentro das tradições antigas. Abordaremos, aqui, o sentido da Porta/Portão, ligado à literatura
bíblica do Antigo Testamento com suas diferentes aplicações. Vendo em seguida, mais
demoradamente, a relação do direito e da justiça à porta.
1.1. A Porta no Antigo Testamento
Encontramos no Antigo Testamento um grande número de citações que contém
indicações sobre a Porta/Portão, com seus diferentes significados. Ou melhor, com suas
diversas funções, lembrando que nas antigas cidades das regiões do Antigo Oriente Médio e
de Israel o Portão tinha como funções: mercado, centro administrativo, tribunal, entre outras.
Apresentaremos, a seguir, essas funções com seus referidos textos bíblicos, para que
tenhamos uma visão do que se trata.
Porta da casa e Portão da cidade - Podemos identificar em Dt 22,21 a ideia de entrada de
uma casa comum. Já a ideia em Jr 18,16-17, a palavra tem ligação com o lugar de entrada de
uma área habitada como vilas, por um conjunto de múltiplas famílias, que vivem juntos como
família nuclear (2 Cr 33,14; Ne 2,13.15;12,39). Também, aparece a ideia de que pessoas
viviam fora dos portões e dos muros da cidade, isoladas desse convívio. São pessoas que
vivem em extremo estado de pobreza ou portadoras de doenças contagiosas, tendo que ficar
separadas da população. Estas ficavam próximas às portas das vilas, provavelmente pedindo
esmolas (2 Rs 7,13). Temos, ainda, referências de ser o portão o lugar da venda e troca de
mercadorias, bem como da negociação de preços de produtos. À tardinha se fechavam os
portões para proteger o lugar de pessoas que poderiam fazer algum mal (Js 2,5). Portanto,
podemos dizer que o portão era o ponto mais vulnerável na defesa da cidade, e por isso pedia
atenção.
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Defesa – Quanto ao sentido de defesa da cidade algumas passagens do Antigo Testamento
nos dão ideia de ataques inimigos concentrados no portão (2 Sm 10,8; 11,23; Is 28,6 Ez
21,20), por vezes invadindo e ocupando a cidade (Ez 26,10; Ob 11,13; Mq 2,13). E, após
capturar a cidade, o inimigo iria destruir suas portas e queimá-las (Jr 51,58; Na 3,13; Lm 1,4;
2,17). Em razão disso, havia os defensores que montavam guarda contra os ataques inimigos
(Js 8,5; 2 Sm 11,23), pois às portas da cidade havia confrontos, emboscadas, levantes e eram
deflagradas as batalhas ( 2 Sm 10,8; 11,23;18,4). Também as tomadas de posse da cidade
vencida, e onde se expunha a força dos que derrotaram um chefe do lugar, colocando sua
cabeça cortada, à porta, talvez para intimidar quem ousasse enfrentar o vencedor (2 Rs 10,8).
Também a respeito disso, temos Js 8,29;20,4.6; Jz 9,34-35.40.44; 18,16; 1 Sm 17,52; 2 Sm
10,8;11,23; 23,15-16; 1Cr 11,5.
Durante a idade média do bronze, começaram a surgir portões com 4 a 6 câmaras,
alguns com edificação de várias torres, como o que foi encontrado em Hazor, Meguido e
Siquém. Essas câmaras garantiam uma defesa mais prolongada contra um assalto, porque
serviam para armazenar não só as armas das tropas de soldados, mas também provisões de
alimentos destas. Havia, inclusive, câmaras superiores, que dificultavam o ataque inimigo, em
que os defensores podiam se proteger com maior eficácia por estarem ocultos da visão dos
inimigos.155
A prática de colocar o portão entre duas torres trazia, portanto, uma formidável
eficácia de ataque e defesa contra os inimigos. É o que parece transparecer em 2 Sm 24,33. O
texto diz que Davi subiu à sala que estava por cima da porta. Nisso, um sentinela subiu ao
terraço da porta sobre o muro e, levantando os olhos, viu que um homem chegava correndo,
trazendo boas notícias ao rei: a morte de Absalão. Tudo indica tratar-se de uma espécie de
guarita onde, do alto, guardas ficavam vigiando para ver se algum inimigo se aproximava,
sendo o rei avisado para que enviasse mensageiros, no intuito de fazer alguma negociação de
paz ou impor algumas condições.
Porta do rei – Temos algumas citações referentes à porta do palácio em 2 Sm 11,9; 1 Rs
14,27; 2 Rs 9,31. Em Ester, os seguintes textos que se referem à porta do rei: 2,19.21; 3,2-3;
5, 9.13; 6,10.12. Temos, também, Jr 22,2-4, referindo-se à porta do palácio do rei em
155 KANASHIRO, 2011, p. 102.
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Jerusalém. Em 1 Cr 9,18; 16,42, refere-se aos guardas ou porteiros a serviço do rei, que
vigiavam com turno de vinte e quatro horas por dia. Outro sentido colocado a respeito da
porta em referência ao rei, temos 1 Sm 9,18 e 1 Rs 22,10, enquanto lugar de encontro com o
rei ou audiências reais inclusive entre reinos, para estabelecer acordos. Neste sentido, 2 Sm
15,2-4 fala que todo homem que tinha alguma demanda, vinha ao rei a juízo para que fosse
escutada sua causa. Aqui, dá a entender que o rei parece fazer o papel de juiz, diante do qual
todos os que tivessem questões se apresentavam diante dele para que lhe fosse feita justiça.
Porta do templo e de Jerusalém - Sobre o sentido das portas do templo, encontramos os
seguintes textos: Ez 40, 3.28.48, que se refere ao próprio edifício do Templo; além de 1 Cr
9,19; 26,13, referindo-se aos porteiros, e Jr 7,2; 17,19. Sobre Jerusalém, há inclusive uma
visão em Ez 40,3, sobre uma Jerusalém idealizada e com um anjo à porta (Gn 1,19,1;Ex
32,26; Jz 16,2.23,15.16; 2 RS 23,8;2 Cr 23,5.33,14; Ne 2,15). Tais referências falam ainda, de
uma invasão inimiga, sendo a Porta incendiada.
Nome de divindades nos portões – Paredes e portões de alguns lugares continham o nome
de divindades. Talvez esses nomes eram aí colocados a fim de agradar a essas divindades, de
modo que as paredes e o portão daquela cidade estariam sob sua proteção (Jr 31,28; 26, 10.14;
Ne 3,1;12,39; 2 Rs 23,8).
A Porta é o Tribunal, lugar do exercício do direito e da justiça156 – De modo especial,
relacionado com a nossa pesquisa, temos em Israel na expressão Porta/Portão o âmbito da
jurisprudência, onde deve ser exercido o direito e a justiça tal qual situa Amós (Am 5,10-13).
Há espalhado por todo o Antigo Testamento textos relacionando a porta à questão do direito,
como em Dt 12-26, com questões ligadas ao direito da família. Há, também, uma série de
casos a serem aí resolvidos, chegando, inclusive, a linchamentos ou mortes, de pessoas
comuns ou até de um rei (Dt, 21,19; 2 Rs 17,18-20) e infrações em que os infratores são
levados a um tribunal no Portão da cidade e julgados pelos anciãos, que beneficiam os que
têm menor poder social e jurídico.
156 KANASHIRO, 2011, p. 109. Conforme constata Kanashiro, considerando na tradição antiga que não só em
Israel a Porta se refere ao tribunal, este diz: “Está bem atestado na tradição jurídica que a porta era o tribunal da
cidade, que não é uma invenção puramente israelita, mas remonta aos cananeus”.
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Nesse sentido, temos no capítulo 4 do livro de Rute uma prática sobre o exercício do
direito, onde a lei garantia a permanência do direito da terra. O portão, pois, é o lugar de
defesa do direito e proteção da viúva e dos pobres, conforme vemos no caso de Rute e Noemi,
bem como do justo e do fraco em seu julgamento (Jó 5,4. 31,21; Pr 22,22; Is 29,21). Quanto a
outros textos que denotam os portões como o lugar onde funcionam os tribunais, temos Gn
34,20 em que o conselho de anciãos firma acordo entre duas famílias sobre a posse comum de
bens e da terra, firmado entre o pessoas de Israel e de Canaã. Em Ex 32,26 Moisés aparece
num sentido de autoridade. Em Jó 5,4; 31,21, encontramos referências ao exercício da justiça
nos tribunais, por ocasião da provocação de Elifaz feita a Jó para que clame a Deus, pois seus
filhos são espezinhados às portas e não há quem os livre. Também, na fala de Jó, com respeito
a sua retidão, ele diz: “Se eu levantei a mão contra o órfão, por me ver apoiado pelos juízes da
porta, então caia a minha omoplata”. Temos ainda a esse respeito outras passagens, como: Jz
5,10; 2 Cr 26,12-16; 2 Rs 15,35; Sl 127,5; Pr 22,22; 24,6-7; Is 29,21; Jr 7,20,2; 37,13; 38,7;
39,3-4; Ob 1,11.13. Também em Jr 7,2;26,10.36,10 Ez 8,3-24.9,2.10,19.11,1.40,20-37.44,1-3.
No tempo de Amós, o Portão era o lugar em que eram tomadas decisões judiciais de
cada comunidade. Segundo Hubbard “O espaço no lado interno da porta e as salas ou
recâmaras na área da própria porta eram utilizados como tribunais”.157 Era o lugar também
para os profetas proclamarem suas mensagens. Talvez, com Amós tenha sido assim. Segundo
o encontramos na perícope Am 5,10-13, fazendo referência ao Portão, nos vers. 10 e 12, ao
que parece, para os pobres, a jurisprudência junto ao portão não vigora mais ou sequer podem
fazer chegar suas causas até lá (2,7).158 E, mesmo quando instauram um processo judicial a
partir dos direitos que lhes assistem, são derrotados de antemão, através de subornos (5,12b),
de modo que a justiça, bem como a prática do direito de forma imparcial é impedida de ser
praticada, por causa do poder e do dinheiro, por parte daqueles que detêm o poder econômico.
Após essa visão panorâmica das funções do Portão no Antigo Testamento, pudemos
constatar e citar alguns dos textos que de modo claro nos informam a esse respeito. Vimos
desde o simples significado de porta de entrada ou de uma vila, até chegar ao que representa o
157 Hubbard, 1996, p.193. 158 KANASHIRO, 2011, p. 107. Blessa faz uma extensa e rica pesquisa a respeito do Portão, sob o ponto de
vista semântico. Ele analisa o vocábulo perpassando o período pré-exílico, pós-exílico, a idade do ferro I e II,
estendendo-se até o período pré-helênico, detendo-se especialmente na redação deuteronomista e todo o
significado que carrega o termo “Portão” dentro desta. Segundo Blessa, o status do homem livre significava que
ele poderia ir e vir ao Portão para aí participar das Assembleias civis. Mas havia uma inspeção sobre quem
entrava e saía do Portão, a ponto de algumas pessoas, como os escravos serem aí barrados se estivessem
desacompanhados de seus donos.
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Portão junto ao direito. Verificamos a importância que é a Porta no seu papel de garantir o
exercício legal do direito junto àqueles que precisavam de quem assumisse sua causa. É isso
que de modo especial vimos discutimos, a partir da perícope por nós analisada no decorrer
desse trabalho, que agora dispomos de maneira mais específica.
1.2. O Portão em Amós como espaço público da defesa do direito e da justiça
Em Am 5,10-13, encontramos duas referências à Porta/Portão, numa espécie de
moldura, para determinar o cenário para esse discurso de juízo direto e específico que
encontramos em Amós, que combina acusação (5,10.11a.12) e anúncio (5,11b). Por trás desta
expressão temos a jurisprudência, tal qual esta se encontra em Israel no período da atuação de
Amós. A expressão “Portão” aparece como a segunda palavra do primeiro verso: “Odeiam no
Portão o que julga e o que fala integridade detestam” (5,10), e a penúltima palavra do
penúltimo verso: “Pobres no Portão desviam” (5,12b). Temos aí, pois, uma denúncia do que
vem ocorrendo no reino de Israel sob o governo de Jeroboão II, de que não há justiça nos
tribunais.
Nesta perícope, vemos que Amós vai a juízo com a jurisprudência local controlada
pelos economicamente fortes, junto ao Portão da cidade, em defesa do justo e do pobre. Esse
torcer o direito e a justiça no portão da cidade, por parte dos magistrados e autoridades, vai
vitimando os pobres, os socialmente fracos e o justo.
Embora em Am 5,10-13, não encontremos expressamente os vocábulos “justiça” e
“direito”, compreendemos que a expressão “Portão” remete a estes, por isso decidimos por
analisá-los no seu sentido semântico, mas principalmente sobre as implicações que deles
decorrem dentro da perícope. Segundo Hubbard, fazendo referência ao Antigo Testamento a
respeito da justiça e do juízo (ou retidão),
As duas expressões dizem respeito a responsabilidades decorrentes da aliança e são
quase sinônimas, especialmente quando aparecem emparelhadas (cf. Gn 18.19; Pr
1.3; 2.9). Se for para identificar algumas diferenças de nuança, juízo (“direito”, BJ)
põe uma ligeira ênfase no estabelecimento e na preservação da ordem na
sociedade, corrigindo os erros e punindo os infratores, ao passo que justiça enfatiza
os relacionamentos vinculados à sociedade gerada pela aliança e insiste em que
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cada participante da aliança faça tudo o que é necessário para mantê-la em correto
funcionamento.159
A respeito do binômio justiça (ṣedaqa) e direito (mišpat), enquanto temática central na
nossa perícope, Hubbard comenta que há o emparelhamento de juízo (mišpat) e justiça
(ṣedaqa), sendo repetido por Amós (5,24; 6,12) como o melhor resumo disponível para
definir as responsabilidades do povo de Deus em relação à aliança.160 Aliás, de maneira
particular era responsabilidade e dever do rei, segundo o Antigo Testamento, possuir e
praticar o direito e a justiça, protegendo os fracos, os órfãos e as viúvas (cf. 1 Rs 10,9; 2 Sm
8,15; Sl 72,1ss; Is 9,6).
Ainda a esse respeito, a partir do que nos apresenta Aldina Silva, há uma associação
entre esses dois termos, direito e justiça, que aparece amiúde nos profetas intrinsecamente
ligados, como é o caso no livro de Amós, em que encontramos: “Vós que converteis o juízo
em alosna e deitais por terra a justiça” (5,7), e “Corra o juízo como as águas, e a justiça, como
ribeiro perene” (5,24). Embora algumas vezes a palavra “direito” apareça sozinha, como:
“Aborrecei o mal, e amai o bem, e estabelecei na porta o juízo” (5,15).161 Segundo Aldina, na
perspectiva bíblica, o “direito” e a “justiça” são bem mais do que meros conceitos jurídicos.
Eles têm a ver com as relações vitais enquanto principal critério que,
Deve orientar as relações entre a pessoa e Deus, mas também as relações das
pessoas entre si (...) esses conceitos designam assim um comportamento
comunitário, e abrangem um caráter de solidariedade (...) Não causa, pois,
estranheza que o profeta Amós interpele os israelitas, em nome do Senhor,
acentuando a prioridade que deve ser conferida ao direito e à justiça. E isso adquire
ainda maior realce quando se sabe que a prosperidade do reino do Norte sob
Jeroboão II vinha provocando a instabilidade no seio da sociedade israelita. Ao
invés de um regime fundado na equidade, instaura-se um regime de desigualdades
e abusos. 162
1.2.1. Justiça
Voltando-nos para o termo “justiça”, não há um único termo hebraico para dar a ideia
de justiça como o empregamos. Segundo Harris, uma análise de todos os usos na Bíblia traz à
tona pelo menos treze aspectos correlatos, mas ao mesmo tempo distintos da ideia central.
159 HUBBARD, 1996, p. 189. 160 Ibid., p. 188. 161 SILVA, Aldina, 2001, p. 70. 162 Ibid., p. 72.
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Caso se queira traduzir essa ideia central por uma única palavra em português com campo
semântico semelhante, obrigatoriamente se fará pela palavra “justiça”.163 O significado de
justiça está contido nos conceitos de juízos e retidão. Na linguagem comum, o conjunto de
palavras ligadas à justiça é usado nos processos judiciários e aplicação a outras situações
como, por exemplo, um peso justo, um caminho que leva na direção certa, e assim por
diante.164
Observa-se que na raiz da palavra justiça há basicamente a conotação de conformidade
a um padrão ético ou moral. Segundo afirma Snaith, o significado da raiz original de ṣedeq
(ṣdq), que talvez não seja tão clara, é o de “ser retílico”. Embora acrescente, também, que a
palavra implique uma norma. E uma vez que originariamente indicava retilineidade, pode
facilmente resultar num termo moral. O masculino ṣedeq ocorre 118 vezes no Antigo
Testamento, e o feminino ṣedaqa 156 vezes, e as duas formas não divergem no seu sentido.
Com exceção de Gn 15,6; 18,19; 30,33, os usos mais antigos das duas formas dizem respeito
à função de juízes, em que todos os seus pronunciamentos ou decisões devem ocorrer de
acordo com a verdade e sem nenhuma parcialidade.165 A palavra também é aplicada a pesos e
medidas, como temos em Lv 19,36. Também no que se refere à fraude e engano nas relações
comerciais, segundo essa dimensão, não são permitidos.
Sobre o termo justiça, muitos aspectos em relação ao seu significado precisam ser
discutidos para que nos aproximemos do seu sentido. Milton Schwantes, na sua análise a
respeito da administração da justiça, nos esclarece a esse respeito, ao expor que esta, segundo
aparece em alguns textos bíblicos, deve se tornar independente do poder econômico dos que
estão envolvidos num processo judicial, de modo que se lute contra o favoritismo dos
poderosos, por causa do seu poder econômico e influência na sociedade. Da mesma maneira
em relação aos fracos, que devido a sua impotência não devem ser privilegiados. Desse modo,
segundo entende Schwantes, tal postura quer zelar pela igualdade diante do tribunal, apesar
das diferenças sociais. A título de ilustração, temos a seguinte passagem do livro do Levítico:
“Não favorecerás o pequeno; e ao grande não darás preferência” (Lv 19,15).166
163 HARRIS, R. Laird et al. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
1978.p.1604. 164 MACKENZIE, 1983, p. 525. 165 SNAIT apud HARRIS, 1978, p. 1604. 166 SCHWANTES, 2013, p. 60.
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84
Esta mesma preocupação em relação a uma sentença igual e justa, proibindo um
tratamento diferenciado que vemos em Lv 19,15, aparece também em Ex 23,3-6, mesmo que
com novos acentos, como o que é colocado a respeito do tratamento a ser dado de maneira
justa ao se dizer: “E o pequeno (dal) não privilegiarás no seu processo judicial”. O que não
significa omissão diante da defesa do fraco que precisa ter sua causa assumida numa
sociedade que se pretenda justa. Dessa forma, o Antigo Testamento apresenta com muita
frequência uma preocupação com a sentença justa para o socialmente debilitado. Em Ex 23,6
temos a proibição “Não perverterás o julgamento do teu pobre na tua causa”, que não quer
senão impedir que a causa do fraco na sociedade seja derrubada por suas condições sociais,
que o seu direito não seja afastado de lado ou “desviado”, conforme vemos denunciar Amós.
1.2.2. Direito
Quanto ao termo “direito” (mišpat), embora muitas vezes traduzido por justiça
(ṣedeqa) na Bíblia Hebraica, tem a conotação além de justiça, também de ordenança, costume,
maneira. Esse vocábulo representa aquilo que é a ideia mais importante para uma correta
compreensão de governo.167 Sabemos que mišpat deriva do verbo šapat, que por sua vez tem
o sentido de executar o processo de governo. No entanto, visto que os antigos nem sempre
dividiam as funções governamentais como a maioria dos governos atuais fazem, entre o
legislativo, o executivo e o judiciário, a tradução usual “julgar”, cria confusão. Isso ocorre
porque o verbo “julgar”, que é como geralmente se traduz šapat, na atualidade significa antes
de tudo, exercer funções judiciais no governo.168
Desse modo, o substantivo mišpat pode ser usado para designar praticamente qualquer
aspecto de governo, seja civil ou religioso. Na esfera judicial, a expressão também pode ser
aplicada, entre outros, nos seguintes exemplos: o ato de decidir uma ação litigiosa levada a
167 HARRIS, 1978, p. 1604. Temos aí a seguinte informação a esse respeito: “Embora muitas vezes traduzida por
‘ justiça’ nas mais de 400 ocorrências de mišpat na Bíblia Hebraica, essa tradução frequentemente é deficiente
pelo fato de atualmente se fazer uma clara distinção entre os poderes legislativo, executivo e judiciário no que
diz respeito a cargos e funcionários. Por conseguinte, šapat, o verbo bastante comum (do qual deriva o
substantivo mišpat) que significa ‘dominar’, ‘governar’, e que se refere a todas as funções de governo, fica
erroneamente limitado apenas a questões judiciais, ao passo que tanto o verbo quanto o substantivo abarcam
todas as funções”. 168 Ibid., p. 1612.
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85
um magistrado civil; uma sentença ou decisão dada por um magistrado (emprega-se, também,
a palavra “juízo”); o processo litigioso é também denominado mišpat.169
Nos textos legais encontram-se as referências mais antigas sobre a questão do direito, e
este em relação ao pobre, em contextos claramente diferenciados como: o direito no portão
(Ex 23,3.6; Lv 19,15), o direito em caso de empréstimos (Ex 22,24; Dt 15,1ss; 24,10-13; Lv
25,35-38).170, além do direito em relação à sobrevivência ligada ao direito da terra (Ex 23,10s;
Lv 19,9s; 23,22) e ao descanso sabático.
Considerando alguns textos legais, tomando como ponto de partida o Código da Aliança
em relação ao direito do pobre, sobre a questão referente aos empréstimos, temos em Ex
22,25b o seguinte: “Se tu emprestares dinheiro ao meu povo, o oprimido contigo, não lhe
serás um credor severo.” Na base de tal proposição legal, é apontado para a solidariedade que
deve haver por parte do credor em relação a seu compatriota, para que não lhe imponha juros,
enfatizando dessa forma que deve haver uma proximidade entre o credor e o que lhe toma
empréstimo, pertencente ao mesmo povo, sendo, portanto, irmão; e esta solidariedade em
relação ao compatriota deve levar a um convívio justo.171 A motivação, para isto, encontrava-
se na experiência de terem sido libertos do Egito pela mão de Javé e por temor a ele esses
credores agiriam em conformidade com as prescrições legais do Código da Aliança.172
Ainda, a esse respeito, vemos em Lv 25,36-38, medidas de proteção do direito que
querem garantir ao pobre e ao fraco um empréstimo que não ponha em risco maior sua
existência, pela exigência legal de um empréstimo, sem retorno de juros e sem dar em
custódia sua própria pessoa. Visando, dessa forma, garantir o sustento do devedor, criando um
espaço de liberdade e garantia de vida, baseado no temor e obediência a Deus. Assim, haveria
169 HARRIS, 1978, p. 1604. 170 SCHWANTES, 2013. Em sua obra acerca do direito dos pobres, Schwantes nos mostra que na literatura
veterotestamentária há uma série de elementos em ligação com ao direito no portão. Especifica isto falando sobre
as dívidas, e sobre um cuidado humanitário que deve existir em relação aos que tem menos ou nenhum recurso
para sobreviver. É uma obra inteiramente voltada para a questão do direito, tomando a temática como esta
aparece no Antigo testamento, especialmente nos textos legais e na profecia. Abre-se aí um leque de implicações
decorrentes das relações socioeconômicas, jurídicas e religiosas que perpassam os textos referentes. Na sua
reflexão, Schwantes aponta para o significado da denúncia que pesa sobre os responsáveis pelas condições de
vida que o povo passa, no contexto em que se situa o grito profético de Amós.
171 Ibid., p. 64. 172 Ibid., p. 71.
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proteção aos pequenos, diante dos detentores do poder financeiro. Conforme Milton
Schwantes, o que se queria com isso era:
Proteger pessoa e propriedade do credor disposto a apoderar-se de ambos em caso
de descumprimento do contrato de empréstimo; quer resguardar o pobre da
escravidão por dívidas (...) o que está em jogo é a preservação da autonomia; pode-
se supor que o pequeno agricultor endividado esteja em foco.173
As questões em torno do direito ao descanso sabático se caracterizam de forma especial
não como dádiva caritativa do rico, mas passam pela garantia de direito proveniente da
benção de Javé e do seu compromisso para com seu povo. A esse respeito, a assistência ao
pobre no descanso da terra, no ano sabático, é, na verdade, assistência de Javé, que se põe a
servir as pessoas naquela que é propriedade sua.174
Já sobre o direito no Portão, conforme interpretamos a partir da denúncia que temos em
Am 5,10.12b, Amós mostra claramente que a jurisprudência junto ao Portão não é cumprida
em relação aos pobres, que sequer podem fazer chegar suas causas até lá (2,7). E mesmo
quando instauram um processo judicial a partir dos direitos que lhes assistem, são derrotados
de antemão através de subornos (5,12b). Portanto, a justiça, bem como a prática do direito de
forma imparcial é impedida de ser praticada, por causa do poder e do dinheiro, por parte
daqueles que estão à frente da administração da justiça, e que muito provavelmente são
detentores além do poder judiciário, também das riquezas. Eles representam famílias ou
grupos sociais que detêm a força econômica.
Em razão disso, não é difícil compreender a luta de Amós para que se estabeleça de fato
a justiça e o direito à Porta, diante da causa do pobre e do fraco que comparece ao tribunal
reivindicando seus direitos, diante daqueles que seriam seus representantes legais para
garantir o cumprimento de tais direitos, mas não o fazem. O que vemos por trás de Am 5,10-
13, em confronto com essa luta encampada pelo profeta, é a defesa de interesses por parte dos
juízes em tais processos, prejudicando o pobre e o fraco, tornando-os indefesos e presa fácil
nas mãos dos que subornavam as leis, como tão bem nos aponta Milton Schwantes:
O direito do pobre é desprezado na prática da jurisprudência. Este pobre, destituído
dos seus direitos, é sempre o pobre, justo e fiel à comunidade, cuja lealdade deveria
ser evidenciada na disputa judicial, desde que acontecesse sem manipulação. Amós
173 SCHWANTES, 2013, p. 70. 174 Ibid., p. 91.
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o demonstra da forma mais clara na sua acusação de que o pobre, que tem seu
direito subtraído, não é o culpado, mas o fraco inocente(...) O pobre justo é
excluído da prática judicial, junto ao portão, controlada pelos economicamente
poderosos.175
Podemos compreender a partir daí, o que acontecia num processo judicial a um pobre,
como por exemplo, um pequeno agricultor endividado em razão seja dos períodos de
estiagem, com todo tipo de carência econômica que isso acarretava, seja para cumprir suas
obrigações tributárias, não perdoáveis pelo Estado. Sem falar da sua dificuldade para
responder aos acordos firmados com seus credores, em razão de empréstimos contraídos a fim
de sobreviver a tais períodos críticos. É, assim, que esses magistrados, encarregados de
administrar com justiça o direito desses pobres camponeses, tomavam decisões que
massacravam e até os reduziam à condição de escravos.
A partir desses elementos, podemos melhor compreender em que consiste toda essa
briga de Amós, a denúncia que este faz em relação à defesa do pobre no âmbito da
jurisprudência, com tanta veemência. Vemos no grito profético de Amós o que este nos quer
indicar em relação à justiça e o direito do pobre e do fraco nos tribunais. Ao que tudo indica a
causa justa do pobre e não sua condição de pobreza é seu mišpat. Conforme temos em Ex
23,6, o direito do pobre pode ser caracterizado da seguinte forma: é direito no processo
judicial. Ou seja, é reivindicação para aquele que é justo, isto é, para o pobre que age em
conformidade com a comunidade, bem como proteção para a pessoa impotente diante do
poderio dos juízes, uma vez que se reclama por justiça mediante um direito adquirido que não
está sendo garantido. O necessitado acusador, no caso delatado por Amós, deverá ter seu
mišpat, ou seja, aquilo que lhe compete, reconhecido no processo judicial.176
Atentando, portanto, sobre o sentido do direito aqui mencionado, vemos
necessariamente ligado ao pobre, uma vez que o direito do pobre é uma preocupação central e
quase constante de todos os textos proféticos que mencionam o pobre, como vemos em Amós.
Desse modo, verificando o que é sociologicamente o pobre e em que sentido ele tem direito, e
o que vem a ser direito na cultura semita temos, pois, segundo Milton Schwantes que, “direito
aí significa o que corresponde a alguém que tem necessidade de obter coisas da sociedade.
Este seria o significado político do termo hebraico que costumamos traduzir por direito. O
176 SCHWANTES, 2013, p. 65.
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pobre tem, pois, o direito de também receber comida e terra da sociedade. O direito é o de
obter da sociedade apoio na necessidade e na crise, em meio aos parentes e à comunidade”.177
Na verdade, o pobre, segundo a profecia de Amós, tem seu direito ameaçado não
apenas na prática da justiça, mas também na sua situação econômica, tendo o seu direito
roubado na prática pela colheita que lhe é suprimida, conforme Amós denuncia (5,11), por ter
sua propriedade roubada (3,14) e ser fraudado no comércio (8,4). Referindo-se a tal situação
Schwantes coloca que,
A exploração econômica, a cujo serviço também está o roubo do direito ao fraco,
outra coisa não é senão impedir que o pobre tenha acesso ao que lhe pertence.
Também a fraude na prática jurídica alia-se à exploração; ambos os procedimentos
desembocam no aniquilamento do pobre, devorando-o como num ritual
antropofágico ou como uma fera lançando-se sobre a presa.178
Segundo é apresentado na sua profecia, Amós sai em defesa dos fracos que são
abatidos em seus direitos em razão da corrupção do direito, pela prática do suborno
seguramente alimentada pelos economicamente poderosos na sociedade. Em Amós, o direito
do pobre é, sobretudo, o direito de ter confirmada a reivindicação articulada diante da
jurisprudência. Este direito do pobre é seu (!) mišpat / direito e seu (!) din / reivindicação
legal. Este é exigido e, por causa de sua não realização, torna-se objeto de denúncia.179
Finalmente, ligado ao direito e à justiça no Portão, em Am 5,10-13 queremos chamar a
atenção para uma categoria de gente em Israel profundamente implicada com a causa
associada à profecia de Amós, que é o ṣadiq, (5,12). Na análise semântica registrada no
capítulo primeiro do nosso trabalho, e enquanto tratávamos sobre direito e justiça, fizemos
referência a categorias sociais que se apresentam na perícope como o fraco, o justo e o pobre,
onde temos textualmente “Por isso: porque pisoteiam o fraco” (v.11), “Opressores de/ oprimis
o justo” (v.12 a) e “Pobres no Portão desviam” (v.12b).
O vocábulo ṣadiq aparece em muitas partes do Antigo Testamento. Tem referência com
“retidão”, que consiste na obediência à lei de Deus e na conformidade à natureza divina. O
justo ou a pessoa reta é aquele que serve a Deus, conforme vemos em Ml 3,8. A fonte de toda
essa conduta, que pode ser dita, correta, é a ação divina de conceder seus juízos (ou leis) e sua
177 Na contracapa do livro “O direito dos pobres”, temos uma palavra de Milton Schwantes falando o que sua
tese de doutorado aborda em relação à temática do direito dos pobres. 178 SCHWANTES, 2013., p. 332. 179 Idem.
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retidão ao seu povo (Sl 72,1-2). Quando as pessoas seguem a Deus, diz-se que a retidão habita
na cidade (Is 1,21). Especificamente, à semelhança de Jó, é aquele que livra o pobre e o órfão,
ajuda o cego em seu caminho, sustenta o fraco e é um pai (provedor) para os necessitados (Jó
29,12-16). Ou seja, o ṣadiq / justo é aquele que tem misericórdia dos necessitados e
desamparados, aquele que se preocupa com a pessoa que passa uma situação de carência de
apoio e proteção, conforme temos em Dt 24,13, no cuidado em devolver, antes do pôr do sol,
a capa que o pobre empenhou para que lhe sirva de abrigo à noite. A existência desse tipo de
pessoas exalta a nação (Pr 14,34), e a memória do justo é uma benção.
Em Amós, este clamou por justiça nas portas (5,15-24), ou seja, cobrou que as
instituições legítimas fossem corretamente administradas, que todos os que trabalham na
esfera pública devem ser justos em tudo o que fazem. E como isso não acontecia, houve quem
procedesse dessa maneira, provocando inclusive ódio e perseguição nos que deveriam garantir
a retidão. 180
Nos livros proféticos, apenas em Amós justo e pobre constituem paralelismo. No
vocábulo ṣadiq / justo que é mencionado paralelo ao ʼeḇyon / pobre, é enfocando não só a
situação socioeconômica, mas em especial, a solidariedade social. Para Amós os pobres são
apresentados, ao mesmo tempo como vitimados e como justos. O pobre é o justo, enquanto
atuante em justiça comunitária. No dizer de Schwantes, “É gente destruída, mas também
gente que constrói”. Pois são justos (2,6; 5,12).181 O ṣadiq é aquela pessoa que contribui e
constrói a comunidade, que não tem o que temer nos tribunais. É aquele que é solidário e vive
pelo direito e a justiça.182 Segundo Aldina da Silva, a esse respeito “é provável que sejam
objeto de injustiça em situações específicas, por causa de seu amor pela verdade”.183
Portanto, o ṣadiq é aquele que age dentro do espírito comunitário, mais especificamente
designa o inocentado em um processo, respectivamente, o que nele havia sido envolvido
injustamente.184 Compreendemos encontrar-se aí a vocação, o chamado a ser do nosso profeta
que coincide com o que é odiado porque “fala integridades”. É nesta perspectiva que nos
interrogamos sobre o que move a buscar a defesa de integridade em todos os significados que
180 HARRIS, 1978, p. 1262. 181 SCHWANTES, 2004, p. 105. 182 Idem, p. 88. 183 SIVA, Aldina, 2001, p. 50. 184 SCHWANTE, 2013, p. 100.
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isto implica, relacionado à defesa do direito do que é social e politicamente despojado e
desprotegido de tal direito, ante uma sociedade que coloca a justiça morta.
É neste sentido que buscaremos nas páginas seguintes esse movimento em direção à
defesa do direito do fraco e do pobre, conforme temos em Am 5,10-13, que parece não ter
sido invenção da cultura e do povo de Israel, embora possa apresentar alguma variante face a
outros registros correspondentes a uma sensibilidade social referente à justiça e ao direito
daqueles que são indefesos na sociedade.
2. Compreendendo a denúncia à Porta: a prática do suborno e o desviar o caminho
Em primeiro lugar vamos nos ater às denúncias de Amós nessa perícope, buscando
apreender o que vinha ocorrendo em Israel no período da atuação de Amós. Ao que tudo
indica, estamos aqui num momento de terror pelo qual os pobres passam, sendo pisoteados e
como que devorados, tendo negados os seus direitos diante dos tribunais, a partir do que
podemos entrever em Am 5,10-13.
A apreensão de tal realidade só é possível sob o ponto de vista analítico das condições
sociais, econômicas, políticas, judiciais e religiosas que reinam em Israel no período da
atuação de Amós. Isto se dá na medida em que nos debruçamos sobre o que transparece do
texto, nas suas críticas que revelam sinais de um Estado opressor e explorador, sustentado por
seus agentes. Estes por sua vez são representados pelos governantes com seu aparato político
e militar, pelas as classes abastadas e outros grupos de sustentação, seja judicial, religioso, ou
outro setor vinculado ao Estado. O que faremos agora analisando Am 5,10-13, nos permitirá
uma apropriação mais próxima do que é aí colocado.
Analisemos, pois Am 5,10-13, apreendendo o seu significado, a começar pelo versículo
10, onde temos assim expresso:
v. 10 - Odeiam no portão o que julga, e o que fala integridades detestam.
No v.10 vemos a despeita que há por parte de quem explora e oprime, contra aqueles
que não têm medo de falar a verdade e lutar por justiça na sociedade. A quem Amós estaria se
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referindo ao falar “odeiam” e “detestam”? Quem são esses que odeiam o que julga, e detestam
o que fala integridades? Os verbos no v.10 estão sem sujeito especificado.185 Em primeiro
lugar observamos nesse verso que esse “Odeiam no portão” sugere que Amós está falando
sobre os réus da Casa de Israel, não a eles. Mas afinal, quem são esses réus dos quais fala
Amós nessa perícope? Tudo dá a entender que Amós está falando dos principais responsáveis
por essa situação de perversão do direito em Israel, que é denunciada pelo “que julga” e “fala
integridades”. É provável que se trate dos juízes, que eram os primeiros responsáveis pela
instância legal. Mas também se refere a outros sujeitos, possivelmente ricos comerciantes e
grandes proprietários que tinham como meeiros o sem-terra, que alugava desses grandes
proprietários algum hectare de terra para plantar. Comentando a respeito desses réus,
Andersen coloca o peso maior nos magistrados:
Naquele caso nós temos um processo judicial: os recebedores dos subornos são
magistrados, os doadores dos subornos são exploradores abastados que estão
debaixo de acusação. Em qualquer situação “os pobres” são as vítimas, e eles estão
duplamente desamparados. Eles sofrem opressão econômica em primeiro lugar; a
eles é negado um processo justo; que é direito deles, em segundo lugar. Que os
magistrados ao invés dos comerciantes são o alvo principal nesse momento é
provavelmente pelo fato de que eles, mais do que qualquer outro grupo na
comunidade, eram responsáveis pela justiça. A injustiça no mercado pode ser
refreada se os errados puderem contar com a justiça nos tribunais; mas que recurso
haverá se os juízes forem corrompidos pelo suborno. Além disso, quando os
criminosos controlam os vereditos, eles podem fazer conforme eles querem.186
Segundo Andersen, entre os grupos achados no portão temos os oprimidos (ʽanawim) e
os pobres (ʼeḇyon), que se confrontam com os cruéis (ʽariṣ), os escarnecedores (leṣ) e todos
aqueles que estão a espera de uma oportunidade de fazer o mal (ṣoqede awen). São os
mesmos grupos visados (v.10.12) devido a seus maus tratos e abusos em relação aos pobres/
justos e devido ao seu comportamento antiético e opressor.187 É possível que se encontre em
meio a esses grupos, credores, também camponeses, que provavelmente vieram de classe
simples, porém agora com situação financeira melhor, exploram lavradores pobres por meio
de arrendamento de terras ou de cereal armazenado que dispõem a oferecê-lo como
empréstimo a quem necessitar. A partir dessa transação comercial, esses grandes produtores
ou latifundiários fazem um esquema fraudulento que dificulta a devolução do empréstimo
185 ANDERSEN, 1989, p. 498, tratando sobre esse ponto diz: “devemos observar em outros trechos e encontrar o
sujeito deles no v 7”. Mas ao mesmo tempo ele diz: “Nós não queremos dizer que os perversos identificados no v
7 são exatamente aqueles mesmos no v 12b; a situação é bem complexa, e vários grupos estão em conluio. As
contribuições conspirativas deles para o crime público podem ser distinguidas, mas não separadas”. 186 Ibid., p.502. 187 Ibid., ,498.
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contraído pelo pobre, pela forma de fraudar mercadorias através da adulteração de pesos na
hora da entrega do cereal. Assim a dívida seria sempre acrescida, de tal modo que o camponês
devedor fosse acumulando dívida sobre dívida, até se ver sem condição de saldá-la, acabando
entregando um pedaço de terra a seu credor.188 Portanto, vemos aí camponeses hostilizando
outros camponeses.
Comentando a respeito de dívidas contraídas, como na maneira acima citada, Croatto
faz menção a documentos da antiga Mesopotâmia que revelam uma série de modalidades de
empréstimos e suas referidas formas de contratos entre devedor e credor. Enuncia, sobretudo,
intervenções por parte de autoridades ou governantes, com possíveis decretos de proteção ao
devedor, tendo em vista evitar um enriquecimento da parte do que concede o empréstimo,
pelo perdão das dívidas, mesmo que este procure driblar as diretivas legais. Se assim
acontecesse, ao credor cumpriria, como pena, fazer a devolução de tudo o que retirou do seu
devedor, que na maioria eram pobres.189 Conforme vemos nesse comentário de Croatto, há
uma relação com o que vemos em Am 5,10-12, na luta por justiça e na defesa do pobre, diante
da ambição dos que têm interesses em contratos de empréstimos para superfaturar e com isso
acumular e aumentar seu patrimônio.
Na acusação de Amós, conforme vemos em 5,10, temos em forma quiástica os verbos
“odeiam” e “detestam” para falar sobre o que os mandamentos divinos estimavam (Ex 20,16;
Dt 5,20) e os sábios honravam (Pr 6,19) e que aqui os líderes de Israel desprezavam. Estes
odiavam correção e reprimenda, agindo com absoluto desprezo para com as próprias pessoas
incumbidas da tarefa de garantir e sair em defesa do bem-estar da vida social e legal de
Israel.190
Ora, sabemos que um dos fundamentos essenciais numa sociedade como Israel em tais
condições, reside na imparcialidade dos juízes. Porém, em Israel tal base encontra-se minada.
A porta da cidade que era o lugar das assembleias públicas, da realização das negociações
comerciais, bem como dos debates e administração dos assuntos judiciários, como temos em
188 REIMER, Haroldo. Agentes e mecanismos de opressão e exploração em Amós. Revista de Interpretação
Bíblica Latino-Americana, (RIBLA), Petrópolis: Vozes, v. 12, p. 51-60, 1992. (8). 189 CROATTO, Severino J. Dívida e justiça social em textos do Antigo Oriente. In: Revista de Interpretação
Bíblica Latino – Americana (RIBLA), n. 5/6 – 1990 1 e 2. Perdoai-nos nossas dívidas. Petrópolis: Vozes / São
Leopoldo: Sinodal, 1990, p. 38. 190 HUBBARD, 1996, p. 193.
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Am 5,10-13, tornara-se cenário de graves irregularidades. Em razão disso, o direito
transformou-se em veneno amargo (5,7), e a justiça é lançada por terra e pisoteada.
Além dos juízes, que estão implicados nessa denúncia feita por Amós, encontramos
outros personagens que como aqueles se sentem incomodados e nem um pouco interessados
que venham à luz os desmantelos e escândalos sociais delatados pelo que “julga” e pelo que
“fala integridades”. Provavelmente, esteja entre esses incomodados, a classe abastada da
sociedade formada por grandes comerciantes e proprietários de terras, que pretendem que se
perpetue sua condição de luxo e riqueza pautada na exploração da população camponesa que
tem que pagar a conta de uma sociedade injusta.
Quanto ao que é odiado (o que julga) e o que é desprezado (o que fala integridades), que
se apresenta no versículo 10 como sujeito da justiça e do direito perante o tribunal, tudo indica
se tratar do pobre que reclama para que lhe seja feito justiça, mediante um direito adquirido
que lhe está sendo negado. Trata-se do necessitado acusador que está brigando para que o
direito que lhe compete seja reconhecido no processo judicial? Ao que tudo indica, parece que
aqui há alguém que intervém no caso. Segundo Sicre, o texto parece transparecer dois tipos de
pessoas. Em primeiro lugar, seriam testemunhas honestas (mokih). Talvez, se tratasse de um
cargo judiciário, embora não permanente, uma espécie de juiz último, que decide o que é
justo, e que dele dependia a decisão última, corrigindo, repreendendo, enfim, demonstrando
seu desacordo com uma decisão injusta. Depois, temos homens corajosos (dober tamim),
pessoas que depõem com exatidão e sem se deixarem subornar, mas dizem a verdade. Essas
pessoas tinham um papel importantíssimo, pois muitas vezes a vida de uma pessoa dependia
delas, pois salvaguardavam a justiça na comunidade.191 São pessoas que os indivíduos
acusados por Amós odeiam e detestam, porque na comunidade são incumbidas de zelar pelo
bem-estar da vida social e legal de Israel, mas que eram tratadas com absoluto desprezo por
lutar para que fosse garantido o direito das pessoas, especialmente quando este estava sendo
desrespeitado.192 Isso se dava pela coragem de tais pessoas, ao dar testemunho fidedigno e
exato em qualquer audiência judicial, sem se intimidar perante os que tinham algum poder de
influência política ou econômica, ou mesmo perante algum tipo de ameaça.
191 SICRE, 2011, p.162 192 HUBBARD, 1996, p. 192.
![Page 95: UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULOtede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/308/1/MariaJose.pdf · debate sobre a composição e estrutura do livro de Amós, para uma compreensão](https://reader031.fdocumentos.tips/reader031/viewer/2022011905/5f29d1f35dd2e41aaf708a72/html5/thumbnails/95.jpg)
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Assim, podemos entender por trás desse primeiro verso quem seriam os agentes da
opressão e exploração em Israel, que não estão achando nada bom as denúncias feitas
abertamente à porta da cidade. É provável que estes lancem mão de mecanismos para tentar
abafar a voz do delator. Em 5,10, podemos identificar, portanto, como os principais agentes
dessa opressão pessoas ou grupos que são representantes do poder estatal constituído, bem
como as classes abastadas.193 Estes com o seu poder, afetam as relações econômicas e
jurídicas194, que tem como instrumento de coação maior o exército estatal e todo o aparato
militar garantindo total cobertura aos atos de opressão e exploração sobre a população
camponesa, a partir da execução da arrecadação tributária. É o que vemos no versículo 11,
conforme apresenta tal realidade na sua primeira parte:
v. 11 - Por isso: porque pisoteiam sobre o fraco, a carga de grão tomais dele
Casas de cantaria construireis e não habitareis nelas,
Vinhas de desejos plantareis e não tomareis seus vinhos.
Temos no verso 11, uma acusação sobre opressão do pobre através da extorsão da
produção do camponês que se torna empobrecido, denotando uma cobrança de taxas ou
mesmo algum pagamento de dívida. Ainda, as consequências desse estado de coisas que
repercutirá como uma espécie de sentença para os exploradores, que não terão vantagem
alguma com o que fazem. Há uma ameaça de julgamento em que a palavra é dirigida
diretamente aos réus, e a acusação feita contra eles é ampliada de modo a incluir práticas
cruéis de opressão sobre as pessoas economicamente e socialmente debilitadas, e , segundo
Hubbard, pela extorsão de tributo sobre camponeses meeiros. É descrito aí o crime ambicioso
de cobrar demasiadamente dos arrendatários pelo uso da terra.195
Em 5,11, diante da expressão “a carga de trigo tomais dele”, encontramos críticas ao
Estado tributário, suas instituições e agentes, bem como à perversão do direito nas relações
econômicas. No que se refere ao Estado são enfocados além da corte e seu exército, a religião
193 REIMER, 1992. Haroldo Reimer, no seu texto: “Agentes e mecanismos de opressão e exploração em Amós”,
procurando elucidar quem são os agentes da opressão em Israel no período de Amós, bem como os mecanismos
de exploração por eles utilizados, nos oferece de forma clara elementos de análise do texto Am 5,10-13. 194 Idem. Analisando os fatores, agentes e mecanismos que provocam tal situação, Reimer diz que há algumas
tendências nos meios exegéticos. Há uma leitura de que as injustiças denunciadas por Amós se dão nas relações
particulares de pessoas comuns, sem se referir a esferas públicas ou instituições do Estado, e outra que se baseia
no modelo teórico do modo de produção tributário, que vai relacionar as denúncias de Amós com os agentes e
instituições estatais. Diante das duas posições, Reimer defende a ideia de que as críticas de Amós se referem aos
dois âmbitos, o das relações sociais e econômicas entre particulares, e o das relações públicas do Estado. 195 HUBBARD, 1996, p. 193.
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oficial, nos seus desmandos, atrocidades e força ideológica que serviam de mecanismos que
auxiliavam na exploração. Haja vista o conflito entre Amasias e Amós mostrando tal
realidade. Tais instâncias contribuíam com o empobrecimento da população do campo, ao
mesmo tempo garantindo os interesses do Estado. Tais mecanismos garantiam um
enriquecimento, requinte e uma vida boa para a corte da Samaria e, ao mesmo tempo, a
eternização da exploração e opressão dos camponeses, pela tributação, o trabalho forçado, a
coação religiosa e a coerção pelas armas, tendo como agravante, conforme vemos no verso
aqui analisado, o suporte judicial.
Na segunda parte do verso 11, o fato de que iriam construir casas de pedras lavradas e
nelas não habitariam, plantariam vinhas de desejos e não chegariam a provar dos seus vinhos,
considerado como anúncio de juízo ou sentença pela lista interminável de atividades
criminosas por parte da elite e governantes de Israel, quer dizer, na verdade, que estes não
usufruirão dos frutos da ganância e dos roubos porque serão deportados. Assim, ficarão sem
suas mansões e vinhas, que faziam seus deleites, que sustentavam bebedeiras e devassidão
que Amós denuncia com tanta veemência (4,1; 6,6). Seu luxo, ostentação e vida boa cairão
por terra, pois o juízo determinado é o exílio, que resultará na perda total da terra. Ou seja,
aqueles que haviam loteado as terras dos pobres para saciar a sua própria ganância, iriam
experimentar uma penúria total, sem casa nem vinho.196
Ainda com relação à suntuosidade das habitações da classe alta em Israel, ou “casas de
cantaria” e das “vinhas de desejos”, Amós apresenta-nos um quadro social e econômico de
desigualdades gritantes. Por um lado a classe dirigente vive tranquila no seu conforto e bem-
estar material exagerado, com seus leitos de marfim, fartando-se e regalando-se com os
melhores vinhos, ungindo-se dos óleos mais finos e habitando em palácios luxuosos.
Enquanto a grande população, especialmente a classe camponesa composta por pequenos
proprietários sofre desgraças, levando uma vida miserável decorrente quer do clima com
contínuos períodos de seca, quer com a exploração do Estado pelo sistema tributário, quer dos
pesados juros dos credores.
196 HUBBARD 1996, p. 194.
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Ao tratar de tal situação, na tentativa de comprovar esse desnível social expresso pelo
luxo e suntuosidade dos ricos em contraste com a simplicidade e pobreza das classes
desfavorecidas, Bonora citando R. de Vaux coloca:
Um grande arqueólogo, R. de Vaux, observa: “As escavações das cidades israelitas
testemunham essa desigualdade de condições de vida. Em Tirsa, a atual Tell El-
Far’ah, perto de Nablus, as casas do século X a.C. tem todas as mesmas dimensões
e distribuição interna; cada uma representa o habitat de uma família, a qual tinha o
mesmo padrão de vida das casas vizinhas. Existe forte contraste quando se passa
ao estrato do século VIII no mesmo lugar: o quarteirão das casas ricas, maiores e
mais bem construídas, é separado daquele em que se amontoam as casas pobres.”197
Somando-se ao conjunto de forças estatais e judiciais por parte de magistrados que
atuam de forma corrupta nos tribunais a partir da prática de suborno, para além de todo
aparato já citado a serviço da injustiça e exploração, há ainda a religião com seus santuários e
sacerdotes a serviço de tal Estado tributário opressor. Os responsáveis pelo exercício da
jurisprudência, é que vão dar o suporte legal a esse modelo social condenado por Amós,
através do cancelamento de processos por ordens superiores, levando testemunhas a serem
molestadas e perseguidas por denunciarem as injustiças que estão sendo praticadas e o abuso
de poder. Mas, afinal, de onde vem essas ordens superiores que fazem os juízes se tornarem
responsáveis pela perversão do direito? O verso 12 aponta-nos para a raiz dessa questão, nos
motivos pelos quais Israel sofre um juízo da parte de Deus:
v. 12 - Porque conheço grandes transgressões vossas numerosos pecados
vossos,
Opressores de justo, tomadores de suborno e pobres no portão desviam.
Quanto às expressões “transgressões” e “pecados”, Hubbard chama a atenção sobre o
que é colocado por Amós, que não se trata de erros ocasionais, sendo tão numerosos. Aliás, a
melhor tradução seria “incontáveis” do que “graves” ou “enormes” como propõe algumas
traduções bíblicas, pelas ações ilícitas de perseguir pessoas inocentes e rejeitar as
reivindicações válidas dos pobres quando são apresentadas à porta, mostrando, desse modo, o
fracasso do sistema legal. Neste sentido, parece que a questão fundamental aqui é o suborno
que se encontra por trás dos vários males pelos quais os inocentes eram molestados e os
pobres defraudados de seus direitos. Desse modo, a riqueza e o poder conspiravam para uma
197 BONORA, 1983, p. 30, referindo-se a R. de Vaux, Le istituzioni di Israele, Turim, 1964, p. 80.
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rejeição dos padrões da aliança que insistia que fosse garantido que todo membro da
sociedade deveria ser ouvido com justiça num litígio.198
Qualificando essas “transgressões” e “pecados” dos juízes Sicre especifica três desses,
que se referem à atuação dos juízes como inimigos do homem honrado, tratando-o com ódio e
asco. Estes se deixam corromper pelo suborno, rejeitando e impedindo aos pobres o acesso
aos tribunais, rejeitando-os, para que sua causa não seja tratada; ou então, permitindo o acesso
dos pobres ao tribunal, mas sendo o seu caso tratado sem o menor sentido de justiça.199
Há, claramente, no verso 12, uma denúncia do pecado social e do estado tirano existente
em Israel, pela opressão, a prática do suborno e a negação do direito do pobre no tribunal. Na
expressão “e pobres no portão desviam” encontramos, pois, a força e o poder de pessoas
influentes na sociedade, que mediante recursos a atos judiciários intentam contra o pobre, de
modo a desviar o caminho da justiça, a fim de defender seus próprios interesses e, com isso,
se beneficiar. Segundo Aldina da Silva, essa influência perniciosa dos poderosos com atos
judiciários intentados contra os pobres, são por sua vez bancados por subornos. 200 Conforme
a autora, “Nesse estado de desordem, a causa do fraco não é ouvida com equidade, porque o
rico compra os juízes”201, passando o processo judicial a ser instrumento de morte nesse
estado de desordem.
Temos, então, o pobre diante do portão da cidade, a fim de recorrer junto a quem
confere o poder de defesa de todo e qualquer cidadão, portanto também dele, que é pobre,
quando o seu direito se encontra ameaçado.202 Segundo nos coloca Haroldo Reimer, de modo
especial, encontramos, como vítima, em tal estado, o camponês livre, que embora detenha
ainda a posse de sua terra e tomando parte ativa na jurisprudência que acontecia no portão da
cidade, encontra-se num processo de empobrecimento, pela ameaça de perder a posse da terra,
em razão de endividamentos por empréstimos contraídos. Podendo, tal situação, chegar
inclusive à escravidão temporária e até à perda definitiva dos seus direitos, portanto, da sua
198 HUBBARD, 1996, p. 194. 199 SICRE, 2011, p. 164. 200 SILVA, Aldina, 2001, p.54. 201 Ibid., p. 57. 202 CROATTO, J. Severino. Dívida e justiça em textos do Antigo Oriente. In: Revista de Interpretação Bíblica
(RIBLA) n. 5 /6 - 1990. Neste ensaio de S. Croatto temos um recorte que é recorrente na nossa pesquisa,
referindo-se às questões que levam o pobre aos tribunais. Croatto nos mostra que o tema da dívida aparece em
numerosos documentos da Mesopotâmia, desde textos que registram contratos até códigos de leis.
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própria liberdade.203Enquanto críticas, presentes no versículo 12, no âmbito do direito nas
relações econômicas, Reimer esclarece que situação está por trás de tais críticas. Temos aí
relações sociais que levam as pessoas, no seu processo de empobrecimento, a uma escravidão
temporária na qual há também uma transferência temporária do seu direito de posse. Ou seja,
se alguém deve a um credor seu, não tendo como pagar, o credor assume como servo seu o
devedor, passando a ter direito sobre a pessoa e sobre a sua porção de terra.204
Além dessa situação, muito provável, são apontados em tal denúncia, ainda, meios
fraudulentos com que algumas pessoas agem diante de empréstimos contraídos por um
camponês necessitado diante de pessoas, também camponesas, porém com mais recursos.
Essas pessoas são também da parcela da população que vem de pequenos agricultores, mas
que foram melhorando de vida. Eles fazem um esquema que dificulta a devolução do
empréstimo por parte do pobre, com alguma forma de fraudar a mercadoria, seja pela
adulteração de medidas, diminuindo as proporções ou aumentando artificialmente os pesos,
falsificando balanças, seja estocando o trigo para depois vendê-lo mais caro, prejudicando os
necessitados, ou outra forma, a ponto de levar o pobre a se endividar e até perder a posse de
sua terra para saldar sua dívida. E quando este recorre, para que seja de alguma forma na sua
defesa, já que não possui senão o estado de direito conferido socialmente enquanto cidadão
livre, é o desvio desse direito que lhe compete, por quem tem o poder de fazê-lo. Em suma,
trata-se de um verdadeiro roubo organizado por conta de proprietários e comerciantes que
manipulam os processos jurídicos a seu bel prazer e em benefício seu. A contestação e
denúncias, presentes em 5,12, nos faz perceber de forma muito clara tais indícios.
Nesse sentido, a expressão “pobres no portão desviam” está relacionada ao desviar o
pobre do caminho da justiça, atrapalhando-lhe no ganho da causa pela qual ele luta. Tal
enunciado que se refere, de forma abreviada ao caminho, considerado, conforme já foi dito,
da justiça, é uma expressão similar que encontramos, entre outras passagens, em Pr 17,23, que
diz: “ O perverso aceita suborno secretamente, para perverter as veredas da justiça”. Ainda em
Pr 22,22 encontramos o conselho para que isso não venha ocorrer: “Não roubes ao pobre,
porque é pobre, nem oprimas em juízo ao aflito”. Também nesse sentido encontramos em Jó
24,4 uma expressão que nos leva a associar com Am 5,12 a respeito do “desviam no portão o
203 REIMER, 1992, p. 52. 204 Ibid., p. 56.
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pobre”, no sentido de negar-lhe o direito à justiça junto ao tribunal, da seguinte forma:
“Desviam do caminho os necessitados”.
A respeito do que defende o pobre e o fraco no tribunal, e do que adquire opressores
seus por ser justo e falar integridades, Aldina da Silva comenta que estes não representam
nenhum grupo social. É provável que seja objeto de injustiça em situações específicas, por
causa de seu amor pela verdade.205 Enquanto isso, Bonora vai identificar o justo na categoria
de pequenos agricultores pobres. Ele diz que quando Amós fala de pobres, ele pensa em uma
camada da sociedade de pequenos agricultores, que possui trigo (v.11). E que o pobre é um
“justo” como os demais cidadãos com plenos direitos e dignidade humana. Ou seja, aquele
que tem seu pedaço de terra para morar e de onde tira o seu sustento. Além disso, possui
direitos, entre outros, o de ter acesso à justiça.206 Ao que tudo indica, seria esse camponês
ameaçado nos seus direitos que está diante do tribunal reivindicando seu direito ameaçado e
que por isso é oprimido e perseguido. O que Amós condena aqui é a exploração da condição
de pequenos proprietários que vão perdendo, pouco a pouco seus direitos, e, portanto, sua
posição de cidadãos livres. Uma maneira em que isso se dá, indicando já o verso 13, onde
encontramos:
v. 13 - Por isso o prudente no tempo este guarda silencio, pois tempo de
desgraça este.
Olhando o v. 13 no conjunto da unidade literária (5,10-13), a partir do que Hubbard nos
chama a atenção, um primeiro elemento a ser considerado é o “Por isso” que abre o versículo,
que deveria, como de costume assinalar um anúncio de juízo, mas em vez disso encontramos
aí uma espécie de provérbio. No comentário que tece a respeito do que se encontra nesse
verso sobre “guarda silêncio”, Hubbard diz o seguinte:
O silêncio mencionado não pode ser de Amós. Tal forma de sabedoria ou prudência seria
uma contradição de tudo o que ele afirma quanto à inescapável omissão de profetizar e à
tolice de tentar se calar (...). Uma chave para compreender a função deste versículo é levar
em conta a questão cronológica. Então (i.e., “naquela época”) deve atingir o tempo futuro
do juízo, que se dará com o exílio anunciado no versículo 11. Esse tempo é chamado mau
(cf. 3.6) devido à sua calamidade extrema, sua catástrofe total: A vida como um todo é
cruelmente arrancada e rudemente transplantada num solo estranho. Nesse tempo futuro,
quem for prudente assentirá silenciosamente ao julgamento, já que a palavra profética
demonstra de modo tão completo que ele é inevitável e necessário. Aqueles que tiverem
silenciado os clamores dos inocentes no tribunal serão eles mesmos calados pela
inevitabilidade de sua própria punição.207
205 SILVA, Aldina. 2001, p. 50. 206 BONORA, 1983, p. 24. 207 HUBBARD, 1996, p. 195.
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Hubbard faz também referência à possibilidade de que esse conselho ao prudente, de se
manter calado, pode ser interpretado de outro modo, uma vez que é impossível saber os riscos
de protestar contra as injustiças vistas e ouvidas.208
Diante disso, levanta-se a seguinte questão: A partir de indícios encontrados no verso13,
será que o que aí está sendo dito se refere um tempo de ditadura, censura e perseguição contra
quem denuncia as injustiças? O texto no seu arranjo, conforme comentamos na primeira parte
do nosso trabalho, em relação à coesão da perícope Am 5,10-13, estabelece uma forma de
paralelo entre os versos 10 e 13, numa relação antonímica “fala” X “cala”, permitindo-nos
perfeitamente levantar essa suspeita, de que trata-se de alguma forma de uma situação em que
a voz das pessoas não tem espaço nesse tipo de sociedade.
Dentro do quadro oferecido por Am 5,10-13, quem testemunha integridade é forçado a
calar-se, o que resulta num processo judicial que passa a ser instrumento de morte, ao invés
de defesa da vida. Isso se dá não apenas no verso 13, mas também no v. 10. Admitimos que
haja, sim, o exercício da denúncia através da fala do que “julga” e “fala integridades”. Mas
há, também, uma força contrária daqueles que “odeiam” e “detestam” os seus denunciadores,
que podemos compreender não reduzir-se à esfera dos sentimentos. Pelo poder que têm nas
mãos, esses representantes legais da justiça, sustentados pela elite de Israel, lançam mão de
mecanismos que desencadeiam ações, revidando o incômodo do desmascaramento e denúncia
sobre o que vem ocorrendo como resultado das práticas de injustiça, exploração e suborno.
Possivelmente, por meio da intimidação, da censura e até de ameaça contra pobre e o fraco ao
denunciarem sobre o descumprimento do seu direito legal, que lhes compete num processo
judicial. A causa do fraco não é ouvida com equidade porque aqueles que têm poder de
influência na sociedade, pelo domínio econômico, compram os juízes (5,12) pela prática de
suborno e quem reivindica por integridade é forçado a calar (5,13).209
A esse respeito, sobre a arrogância e insolência das classes poderosas que fazem calar o
justo que denuncia e reivindica o direito que compete a todo cidadão dentro da sociedade,
Bonora expressa:
208 HUBBARD, 1996, p. 111. 209 SILVA, Aldina, 2001, p.57.
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No tempo de Amós, o estado impunha uma determinada quantia que devia ser
paga, como taxa, por aldeia. A assembleia local reunia-se depois e dividia as
contribuições que cada um deveria pagar. Ora, nestas assembleias de aldeias, os
ricos latifundiários ou comerciantes impunham o que bem entendiam. Estes ricos
são as pessoas que o profeta repreende com “eles transformam o direito em
veneno” (Am 5,7) ou com “vossos inúmeros delitos” (Am 5,12). Dos pequenos
agricultores exige-se um imposto in natura: uma parte do trigo. Assim, para o pão,
deverão depender dos comerciantes! Nas assembleias, a arrogância e a insolência
dos ricos é tão descarada que fecha a boca de quem fala abertamente. Eles aceitam
“comissões” para dar seu apoio.210
Todo esse olhar minucioso sobre a perícope aqui trabalhada, verso por verso, nos faz
entender que o acento principal da mensagem de Amós está na crítica social e no anúncio de
um juízo divino iminente sobre o Estado com todos os setores que o sustentam. No livro de
Amós há um composto de acusação e de anúncio do juízo contra diversos grupos de Israel,
pela perversão e falta de direito e justiça na casa de Israel. É em razão dos que política e
economicamente poderosos utilizam a ordem jurídica vigente, para que sirva exclusivamente
à expansão de seu poder, suas posses e seu lucro, que haverá esse juízo. Por isso, a casa de
Israel passará a ser uma casa mortuária, sobre a qual o profeta tem de entoar o lamento
fúnebre. Isto se dá devido à Porta, o templo e palácio real fracassarem como “casa do direito”,
sendo o contrário, casa da injustiça.
Assim, Israel é convocado a reconhecer a soberania divina do Deus de Israel e com ele
se encontrar. Ele que é o Deus do direito e da justiça e, como tal, quer mover Israel a produzir
justiça, pois Deus todo poderoso é o seu nome e, por isso, ele demanda direito e justiça onde
forem recusados, não por vingança, mas por justiça. Há, principalmente, o apelo básico de
reconstruir a justiça no portão, a partir da instância da jurisprudência popular, uma vez que ao
pobre e ao fraco é negado o direito de defesa e a justiça é colocada de lado.
Tendo presente os elementos, aqui colocados, decorrentes do exercício de análise
exegética por nós empreendido acerca do texto Am 5,10-13, pudemos verificar o que se
encontra por trás das palavras de cada versículo na referida perícope. Desde a expressão
“Porta”, que aparece como moldura do texto, quanto ao seu significado e lugar que ocupa na
sociedade de Israel no âmbito da jurisdição, até as implicações decorrentes do modo como
esta se revela na profecia de Amós, enquanto desmantelo do sistema judicial. Toda essa
análise nos possibilitou evidenciar os agentes da injustiça e opressão e toda uma rede de
mecanismos sociais sustentadores deste sistema, que distorcia o direito e deitava a justiça por
210 BONORA, 1983, p. 26.
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terra, fazendo e penalizando suas vítimas, identificadas principalmente entre as camadas
populares, em especial pequenos agricultores, conforme a denúncia de Amós.
No tópico seguinte, pretendemos fazer uma abordagem sobre as raízes desse
movimento em defesa do direito do pobre que encontramos em todo o livro de Amós,
particularmente, na perícope aqui analisada. Com isso, procuraremos estabelecer uma relação
entre essa preocupação presente na profecia de Amós em defender o direito do pobre que está
sendo negado nos tribunais, com a preocupação social presente no Oriente antigo, que
transparece em alguns dos seus documentos, códigos de leis e decretos, bem como possíveis
influencias destes sobre Israel, seja nos seus textos legais ou na literatura profética, portanto,
também sobre Amós.
3. Justiça e defesa do pobre no Antigo Oriente Médio
O percurso feito até aqui nos levou ao ponto central da nossa pesquisa, com a análise
exegética de Am 5,10-13, conforme o que acabamos de ver na primeira metade do capítulo
que ora trabalhamos. Nesta análise, ficou evidente a falência do sistema legal em Israel, bem
como toda sorte de desmandos por parte dos principais responsáveis pela administração da
jurisprudência. Segundo a denúncia feita por Amós, tal situação era financiada por uma
minoria, a classe abastada de Israel, que se beneficiava com um esquema de suborno,
desviando, dessa forma, a camada mais pobre da população do caminho da justiça, que se
traduzia na garantia do seu direito enquanto cidadão, perante o tribunal. Trataremos, agora, de
estabelecer um paralelo entre textos legais e documentos provenientes de povos e países
vizinhos ao antigo Israel, na perspectiva da justiça social e da defesa do pobre e do fraco e a
literatura bíblica.
Procuraremos, na medida do possível, perceber a aproximação existente entre essas
duas literaturas ou documentos e, quem sabe, a possibilidade de influência desses elementos
da justiça social, no Antigo Oriente, com a tradição bíblica de Israel. Tal possibilidade não
parece irreal, o que nos dá margem para pensarmos que também os escritos proféticos possam
apresentar traços desse pensamento presente entre povos vizinhos sobre justiça e defesa do
pobre.
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Há uma série de autores e obras que trabalham o desejo de justiça presente nos mais
diferentes povos e culturas, em distintos períodos históricos. Vamos nos ater aqui aos povos
do antigo Oriente Próximo. Trazendo essa discussão para o mundo bíblico, situando, de modo
especial, a atuação e o papel dos profetas em meio ao povo de Israel, vemos expresso em suas
profecias esse mesmo anseio por justiça. Entre outros, o profeta Amós que com seu grito
profético faz exigência em nome de Javé, para que seja estabelecido o direito e a justiça junto
à Porta. Veremos, a seguir, o que é encontrado a esse respeito.
3.1 Códigos legais e medidas sociais que visam proteger o pobre
Entre os documentos e textos legais encontrados seja no Egito, na Mesopotâmia, bem
como em outras regiões, tratando de questões referentes à justiça social, está presente uma
sensibilidade humana e social em relação aos necessitados como o órfão, a viúva, o pobre,
que, de um modo geral aparecem muitas vezes em escritos de diferentes períodos e lugares.
Temos como exemplo a deusa Nanshe, que na Mesopotâmia é nomeada como a mãe do órfão,
interessada pela sorte da viúva e pela busca da justiça para o pobre, servindo de amparo ao
fraco.211 Também nas reformas de Urukagina, nas prescrições de Gudea e no código
legislativo de Ur-Nammu212, nas Máximas de Ptahhotep213, nas Instruções de Amenemés214,
entre outros, a causa da viúva e do órfão estarão especialmente presentes.
Estão presentes nesses registros do Antigo Oriente medidas sociais de proteção às
pessoas pobres e indefesas em meio à sociedade. Essas medidas teriam por objetivo remediar
situações socioeconômicas da maioria de cidadãos trabalhadores que não ganhavam o
suficiente para sobreviver. Em razão das dificuldades enfrentadas, essas pessoas contraiam
dívidas que as tornavam dependentes de uma minoria que era detentora do poder, sobretudo
econômico. Numa tentativa de solucionar esses problemas, eram publicados editos que
decretavam anistia ou anulação de dívidas, pelo atraso de aluguéis e arrendamentos por parte
dos devedores. Muitos desses viviam um estado de empobrecimento insuperável, pois o
resultado do seu trabalho reduzia-se a pagamento de dívidas. Chegavam, inclusive, a cair na
211 EPSZTEIN, Léon. A justiça social no antigo Oriente Médio. São Paulo: Paulinas, 1990, p.11. 212 Ibid., p.14. 213 Ibid., p. 41. 214 Ibid., p. 42.
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escravidão, pelos sucessivos atrasos acumulados, tornando esses devedores presa fácil nas
mãos de credores cruéis.215
3.1.1 A sensibilidade social na Mesopotâmia
Na Mesopotâmia, no início do terceiro milênio, os pequenos povoados encontravam-se
espalhados no país entre zonas alagadiças ou desérticas. Nesse período, ainda não há um
regime centralizador e autocrático.216 A forma de governo tem por base o conselho de
anciãos, e a voz soberana repousava sobre a assembleia dos membros da comunidade, ou
melhor, de todos os homens adultos livres. Dentro desse modelo, há uma busca de igualdade e
equidade, enquanto embrião de moral social que se manifestava explicitamente no
pensamento religioso e no direito. Isto se encontra registrado em um grande número de textos
legislativos sumério-acadianos que remetem à questão da justiça e do direito pertencente ao
que é chamado “fundo comum mesopotâmico”, cujos subsídios representam o que há de mais
antigo, enquanto memoriais sobre o direito.217
Considerando o pensamento religioso, de acordo com Léon Epsztein,
As principais divindades que compunham o panteão mesopotâmico são exaltadas e
como que impregnadas de tudo quanto é bom e justo. Um dos importantes hinos da
literatura sumeriana é dedicado a Utu, deus-sol e deus da justiça (que rege a ordem
do universo). Outra divindade, a deusa Nanshe, de Lagash, é descrita em um dos
hinos como sensível à opressão do homem pelo homem, mãe dos órfãos,
interessada pela sorte da viúva; busca a justiça para os pobres e serve de amparo
para os fracos.218
Levando em consideração a complexidade de raça, língua, política e religião na
Mesopotâmia, Luiz Sicre agrupa esses textos referentes à questão que ora tratamos em três
grandes blocos: reais, sapienciais e religiosos, por meio dos quais se percebe alguma forma de
aproximação com a sensibilidade social dessas antigas culturas e povos. Em primeiro lugar,
tratando dos textos reais de gêneros diversos nos quais estão incluídos inscrições, hinos,
códigos legais e orações, temos os ligados à figura do rei de Lagash, cidade-estado situada no
sudoeste da suméria, que parece revelar uma consciência social.219
215 EPSZTEIN, 1990, p.22. 216 Ibid., p.11. 217 Ibid., p. 13. 218 Ibid., p. 12. 219 SICRE, 2011, p. 46.
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Um deles é a inscrição de Entemena (2400 – 2375 a.C.) que descreve o ato real por
excelência, por meio da remissão das dívidas públicas e privadas e a libertação dos escravos e
presos por dívidas. Um precedente que se tornara habitual, quando um rei subia ao trono era
estabelecer a justiça e restaurar a ordem social sem desigualdades gritantes, em vista da
segurança e do bem-estar social. Entre os sucessores de Entemena merece destaque
Urukagina, que era príncipe-pontífice de Lagash, (2378 – 2371 ou 2351 – 2342 a.C.) e as
reformas sociais por este realizadas, ganhando a confiança da população. Com tais reformas,
Urukagina não cria uma reforma nova, mas recupera a antiga querida pelos deuses, num
contexto de total injustiça por parte de governadores que afligem o povo com pesados
impostos, dos poderosos que obrigam os pobres a vender suas posses a preços baixos, e pela
classe de sacerdotes que no templo cobravam taxas excessivas por serviços cultuais e
funerais, entre outros. 220
Citando as “reformas” de Urukagina, Epsztein coloca que a primeira parte dessas trata
de inúmeros abusos que precederam o reinado de Urukagina, enquanto na segunda parte há
uma série de editos promulgados para remediá-los. Tais editos continham uma série de
medidas que visavam eliminar as injustiças cometidas por funcionários do palácio ou do
templo, conforme acima citado e pelos ricos em relação a diversas categorias sociais de baixa
renda como pastores, camponeses ou pessoas endividadas. Evitando inclusive a entrega das
viúvas e os órfãos ao rico. No final desses editos, diz-se que Urukagina baniu dos habitantes
de Lagash tudo o que era usura, monopólio, fome, roubos e assaltos e instaurou-lhes a
liberdade. Essas reformas, portanto, representaram papel importante na história política da
Suméria.221
Além de Entemena e Urukagina temos, também de Lagash, um governador por nome
Gudea, fundador de uma dessas dinastias sumerianas, que se empenhou em insistir para que
os ricos e poderosos não prejudicassem o órfão e a viúva, além de tomar medidas de proteção
para os escravos. Sua fama estendeu-se por toda a mesopotâmia, em razão de serem a ele
atribuídos os primeiros textos sumérios de grande extensão. Esses estão relacionados com a
construção do templo a Eninnu, obra inspirada pelos deuses que exige intensa preparação e
220 Idem. 221 EPSZTEIN, 1990, p.13
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colaboração humanas, para que seja construída a morada digna de Nanse e Ningirsu. São
encontradas nesses textos expressões como:
Ó estátua, dirás a meu rei: Quando [Gudea] construiu Eninnu, seu amado templo,
perdoou as dívidas, deixou em liberdade (...), a serva acompanhou sua senhora; o
senhor andava ao lado do escravo (...), [Gudea] se interessou pelos princípios da
justiça de Narse e de Ningirsu; não entregou o órfão ao rico, não abandonou a
viúva nas mãos do poderoso. Na família sem herdeiro varão, permitiu que herdasse
uma filha.222
A partir desse escrito, Sicre considera que Gudea tem conceito ético de religião, de
modo que o culto aos deuses deve vir acompanhado pela prática da justiça que, por sua vez,
transformará a sociedade. Ou seja, a construção do templo é incompatível com a humilhação
do escravo e a exploração do fraco, havendo, dessa forma, interesse pelos princípios da justiça
desses deuses aos quais se constroem templos.223
Proveniente de Ur, encontramos o código sumeriano Ur-Nammu (2112 -2095 a.C.) que
é considerado um elo importante entre as reformas acima citadas, de Urukagina e Gudea.
Também, neste, encontram-se medidas eficazes para proteger o órfão, as viúvas e os pobres. É
a partir daí, tendo em vista uma sociedade mais equitativa, que surgem o que poderia ser
considerado propriamente atos legislativos, ou códigos legais. Com traços muito próximos às
palavras de Gudea, de acordo com a palavra de Utu, o deus da justiça, há uma intenção de
implantar a justiça no país por meio de relações justas e, entre outras ações, estabelecer a
supressão de impostos fraudulentos e o respeito com os fracos. Quanto ao seu sucessor, Su-
ilisu (1984 – 1975 a.C.), houve uma continuidade de posições éticas e religiosas, a ponto de
comparar-se a si próprio com Utu, o deus da justiça. Sucedeu-lhe Isin (1974 – 1954 a.C.) que
se reconhece como “pastor” e servidor do povo, eleito pelos deuses para fazer com que reine o
bem estar de seus súditos. Depois, veio Isme-Dagan (1953 – 1935 a.C.) que vai afirmar:
“Estabeleci o direito de forma admirável”; “implantei a justiça em Sumer”. Enquanto Lipit-
istar (1934 – 1924 a. C.) diz: “De acordo com a palavra verdadeira de Utu, fiz com que sumer
e Acad observassem a verdadeira justiça (...) implantei a retidão e a verdade; trouxe o bem
estar a sumérios e acádios”.224
222 SICRE, 2011, p. 48 223 Idem. 224 SICRE, 2011, p. 50.
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Entre os documentos mais importantes da Mesopotâmia, temos o célebre Código de
Hamurábi, enquanto código mais importante do direito babilônico, tanto pelo número de
disposições que contém, como pela sua extensão, e, principalmente por constituir um
verdadeiro tratado de direito público. Ele é atribuído ao rei Hamurábi que, eliminando seus
rivais, faz da Babilônia a capital política, econômica, intelectual e religiosa de toda a região.
Esse código resume uma série de editos, sejam promulgados pelo próprio Hamurábi ou
extraídos de tradições ou leis antigas feitas por seus predecessores, que foram revisadas e
aplicadas no reino inteiro. 225
O Código de Hamurábi, um dos grandes clássicos da literatura babilônica, deixa
transparecer, segundo Léon Epsztein, que a vocação de Hamurábi consiste, entre outros, em
fazer brilhar o direito na Babilônia e nas regiões vassalas, impedir que o poderoso arruíne o
fraco, cuidar da sua gente em tempo de fome e colocar o direito e a equidade nos lábios do
povo. Mas, no seu epílogo, Hamurábi se diz “pastor”, “portador da salvação” e legislador para
fazer justiça ao órfão e à viúva. Para proteger a população contra as extorsões, algumas
disposições do código preveniam contra a corrupção dos juízes ou os abusos dos agentes.
Além das disposições já descritas, o código previa também que para amenizar a sorte das
categorias desfavorecidas, Hamurábi preconizava a distribuição de pequenas propriedades
agrícolas, não somente aos nômades, mas também àqueles habitantes de nível inferior, e
introduziu concessões em favor dos devedores para saldar suas dívidas.226
No Código de Hamurábi, alguns desses aspectos e propósitos do rei são expressos do
seguinte modo:
Anu e Enlil me chamaram para promover o bem estar do país (...), para que a
justiça resplandeça no país, para destruir o malvado e o mal, para que o poderoso
não oprima o fraco (linhas 25-38). Os grandes deuses chamaram-me e converti-me
em pastor benéfico, cujo cetro é justo (...). Sempre os governei em paz, protegi-os
com minha sabedoria. Para que o poderoso não oprima o fraco, para que se faça
justiça ao órfão e à viúva (...) inscrevi minhas preciosas palavras na minha esteia
(...). Para fazer justiça ao oprimido (XXIV 40-74).227
Na Babilônia além do famoso Código de Hamurábi (1792 – 1750 a.C.), são
encontrados outros fragmentos. Posterior a Hamurábi, merece especial atenção, entre os
textos legislativos o edito de Ammi-Tsadura, cujo objetivo era remediar uma situação
225 EPSZTEIN, 1990, p.18. 226 Ibid.,p.19. 227 SICRE, 2011, p. 51.
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econômica em que a maioria da população não ganhava o suficiente para viver. Tal fato,
levava os trabalhadores a contrair dívidas que os tornavam dependentes de uma minoria que
era detentora do poder econômico. O edito decretava, entre outros artigos, a anistia ou
anulação pelo atraso dos aluguéis e arrendamentos, com sucessivos atrasos que acumulados
tornava esses pobres endividados, reduzidos a trabalhar apenas para pagar as dívidas.228
Além do registro desses textos ligados à figura e disposições tomadas por um rei, há
outros tipos de fragmentos, segundo a classificação feita por Luiz Sicre, considerados
sapienciais. Esclarecendo sobre o sentido de sabedoria, aqui aplicado a textos babilônicos,
Sicre chama a atenção para a ideia de que para os babilônios sabedoria estaria relacionado a
habilidades no culto e a prática mágica e não enquanto conteúdo moral. No entanto, cabe a
aplicação do termo, pelo fato de uma série de textos provenientes dessa região ter conteúdo
semelhante à da literatura sapiencial dos hebreus.229
Entre esses tipos, encontra-se um “provérbio sumério” com expressões que denotam
uma reprovação do deus sol a todo aquele que age com maldade, especialmente nos tribunais,
da seguinte forma: “Quem ataca veredicto justo, quem ama veredicto injusto, é abandonado
por Utu”. Já na obra “conselho de sabedoria” (1600 – 1200 a.C.), há uma coleção de
exortações morais de um personagem importante para seu filho que lhe sucederá no governo,
com referências sobre a ajuda aos necessitados assim dispostas: “Mostra-te amável com o
fraco, não insultes o oprimido, não o desprezes com ar autoritário. Isso ofende seu deus, não
agrada a Samas”.230
Além desses escritos, há também o fragmento “Conselho a um príncipe”, da literatura
assírio babilônica situado aproximadamente entre 1000 e 700 a.C., provavelmente dirigido a
algum monarca babilônico. Esta obra, na sua primeira parte, é uma exortação à justiça, ao
mesmo tempo em que ameaça o rei, caso este não aja em conformidade com a justiça.
Enquanto, na segunda parte, há uma defesa dos interesses dos cidadãos de Sippar, Nippur e
Babilônia. É expresso, especialmente, o compromisso dos deuses com a justiça. A terceira
parte, é dirigida contra as pessoas que têm altos cargos, bem como aos representantes do
exército do rei, em caso de haver denúncia por parte destes contra os cidadãos no intuito de
228 EPSZTEIN, 1990, p. 22. 229 SICRE, p. 52. 230 Ibid., p. 53.
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receber recompensa, ou outro tipo de exploração sobre estes. Há, no texto, uma série de
elementos apontados como possíveis desmandos do rei, tais como: apoderar-se da prata dos
cidadãos para juntá-la a seus tesouros; impor tributos e trabalhos forçados; apoderar-se dos
bois e de ovelhas dos habitantes para presentear pessoas.231
Finalmente, há uma coleção de textos religiosos do panteão babilônico, com hinos
dedicados a deusas e deuses e orações que revelam a preocupação dos deuses pela justiça,
fazendo menção de características ligadas a uma moral social. Como Samas, venerado como
deus da justiça, que fixa seu olhar nas pessoas desconsideradas da sociedade: pobres,
caçadores, viajantes, e outros. Segundo Léon Epsztein, em antigos textos sumerianos acádios,
descobertos em 1889-1900 por J. P. Peters e J. H. Haynes, foi encontrado um hino que elogia
Dungi, o rei deificado de Ur, entre outros atributos, por instaurar a justiça, proteger o fraco e
favorecer o operário. De modo que em tal hino é proclamado que a extinção da justiça leva o
país à ruína.232 Temos, ainda, outro hino composto entre 1600 – 1200 a.C., que faz referência
a Marduk, assim expresso: “Robustecestes o fraco, animas o miserável, cuidas sem cessar do
impotente, apascentas o humilde. Marduk, concedes teu favor aos caídos; o pequeno se acolhe
à tua sombra e tu ordenas que viva”.233
3.1.2 Preocupação com a justiça social no Egito
Considerando o Império Egípcio, em relação ao direito e à busca de uma justiça social,
o que se tem é bem diferente dos códigos legais encontrados na Mesopotâmia. Talvez, isto se
deva, segundo algumas opiniões, à escassez de fontes, além da imprecisão dos vocábulos
empregados nos textos jurídicos do Egito. Na Mesopotâmia, as leis eram codificações que,
reunidas, regravam o estatuto da sociedade. Enquanto no Egito a diferença se dá,
provavelmente, devido ao fato de que a ordem do soberano reinante devesse ser considerada
direito real e que nenhuma lei escrita poderia existir fora dele.234 De todo modo, lançaremos
aqui um olhar sobre o que encontramos a esse respeito.
No antigo panteão egípcio, a deusa Maât, estreitamente ligada a Rê, o deus sol, e a
Osíres, o deus da morte, era considerada como a personificação de valores como ordem,
231 SICRE, 2011, p. 54. 232 EPSZTEIN, 1990, p.12. 233 SICRE, op. cit. p.57. 234 EPSZTEIN, 1990, p.28.
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justiça, verdade. Maât era a representação da ordem do mundo instituído por deus e a relação
harmoniosa entre os diferentes elementos do universo, determinando uma ética, que consistia
em agir de acordo com esta ordem universal. Maât simbolizava a justiça, que como tal teria
que ser o principal atributo ao rei, que por sua vez era responsável pela ordem social no seu
reino pela lei. É devido a isso que durante o Antigo Império, sob o reinado da monarquia
absoluta, o faraó considerava-se responsável pela ordem cósmica e também pela ordem social,
como único legislador.235
Além da ideia de justiça estar estreitamente ligada ao rei, o tema aparece também em
textos antigos da literatura egípcia. No período do Império Antigo (2654 – 2190 a.C.), o
surgimento de uma consciência social e de uma literatura com essa entonação se dá durante a
época das grandes construções faraônicas, devido aos elevados impostos e as condições de
trabalhos forçados sobre a população pobre. Desse período, há registros da existência de uma
sensibilidade com as pessoas necessitadas, com autobiografias, ensinamentos ou obras
sapienciais.236
Entre esses textos, encontra-se as “Máximas de Ptahotep”, que contém indicações de ser
esta uma obra da V ou VI dinastia (2450 a. C.), nos quais o autor parece voltar-se para a
retidão e para a equidade. Outros registros referentes a este período são as autobiografias e
inscrições encontradas em túmulos, mostrando atitudes de comiseração para com os
infortunados. Alguns proclamavam em sua autobiografia que “graças ao seu sentido de
equidade quando estava no poder, ninguém atacava seu próximo, ninguém privava o viajante
de seu pão ou de suas sandálias, ninguém roubava a cabra do vizinho”.237
A autobiografia de Herkhuf, que era um nobre do antigo Império Egípcio (2654-2190
a.C.) na 5ª dinastia, e o ensinamento de Ptahotep relatam feitos e obras de nobres colocados
como modelo de preocupação social, seja no gesto de dar pão ao faminto, vestir o nu ou
mesmo ao afirmar não ter tirado nada de ninguém e de ter pago os seus trabalhadores.
Também, a autobiografia de Khety que era governador de uma cidade egípcia entre a 7ª e 10ª
dinastia (2190 – 2040 a. C.), mostra uma atitude de um governante, diante de uma situação de
fome nas cidades e regiões circunvizinhas, enquanto ele garantiu alimentação à sua população
235 Idem. 236 SICRE. 2011, p. 27. 237 EPSZTEIN,op. cit. p.34.
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local, não se descuidando inclusive da viúva e do seu filho, além de ter suprimido impostos e
tributos prescritos por governos anteriores ao seu.238 Encontramos, ainda, uma exortação
política em forma de conselho a um rei, o ensinamento para Merikarê, enquanto obra
sapiencial destinada a um rei da 10ª dinastia no Egito, que diz para praticar a justiça,
consolando quem chora, não oprimindo a viúva, nem expulsando um homem da propriedade
de seu pai, nem fazendo diferença entre o nobre e o pobre.239
Embora haja todo um discurso de equidade, no decorrer da história, existem injustiças e
abusos vinculados à formação do aparato burocrático sobre pessoas das classes populares,
como trabalhadores forçados a trabalhos pesados, como nas construções das pirâmides
egípcias. Estes não foram poupados da imposição de submissão absoluta, tendo como
consequência aos que porventura desobedecessem, punições como tortura, mutilação ou
morte. O que provocaria nesses trabalhadores revolta e ódio contra quem estava à frente do
poder.
Enquanto isso, algumas categorias privilegiadas foram garantindo aos poucos uma
espécie de direito privado, através da concessão de benefícios e privilégios inalienáveis por
parte do rei, como grandes propriedades que eram entregues nas mãos da nobreza e do clero
real, que se tornavam uma verdadeira oligarquia. Esse sistema de benefícios e privilégios
favoreceu e foi agravando uma desigualdade social, sem que houvesse uma instância
judiciária que revertesse tal situação. Assim, aquele que detinha na sociedade um poder
maior, que era responsável por zelar pelas leis para que essas fossem respeitadas,
comportavam-se de maneira contraditória diante dos princípios elementares de justiça. Em
razão disso altos funcionários procediam como saqueadores do povo e o tribunal, por sua vez,
ao invés de ajudar, enganava o pobre, instaurando-se assim a injustiça. Nessa forma de
organização social, em especial algumas categorias, como o clero, tornava-se nobreza
hereditária e, por isso, eram eximidas de determinados encargos, tais como dívidas ou
tributos.240
A obra máxima desse período é o “Oasiano eloquente”, uma espécie de conto em que
um camponês, proveniente do Oasis do Sal, com sua família migram para terras egípcias a fim
238 SICRE, 2011, p. 31. 239 Ibid., p. 31. 240 EPSZTEIN, 1990, p. 38.
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de escapar da fome. Ocorre, porém, encontrar à frente administradores e encarregados do
lugar que agem sem escrúpulo, roubando e maltratando-lhe. O oasiano vai junto ao
administrador-chefe geral reclamar e suplicar para que este interceda por ele, dirigindo-lhe as
seguintes palavras que comovem o então administrador-chefe: “Grande administrador, meu
Senhor (...), tu és o pai dos órfãos, o marido da viúva, o irmão da mulher repudiada, o seio de
quem não tem mãe (...). Tu, que aniquilas a mentira, que fazes existir a justiça, acode à voz de
quem te chama”.241
Continuando, o conto diz que o oasiano apesar de ganhar a atenção por parte daquele
administrador, continua sedento de justiça, encorajando-se a cobrá-la, exigindo seus direitos.
Ele reivindica suas propriedades perdidas diante da situação de privação, denunciando a
injustiça do tribunal e a corrupção do poder, ao dizer:
Vê! A justiça, expulsa de sua sede, vagueia longe de ti. Os funcionários fazem o
mal, os juízes roubam (...). Quem deve afastar a necessidade, rechaçar o delito,
pratica a iniquidade (...). És forte e poderoso, teu braço é valente, mas teu coração é
rapace, a piedade afastou-se de ti (segunda intervenção). A lei está arruinada, a
regra violada. O pobre não pode viver, é despojado de seus bens. Não se honra a
justiça (Sétima intervenção). São salteadores, ladrões, bandidos, os funcionários
nomeados para se oporem ao mal; são lugar de refúgio para o violento os
funcionários nomeados para se oporem à mentira (Oitava Intervenção).242
Dessa forma, vemos exemplos, que parecem demonstrar, seja uma sensibilidade para
com a justiça por parte dos que tem um papel na sociedade, seja a consciência de estar sendo
injustiçado por parte de quem deveria ter uma função à frente da sociedade para zelar pela
justiça e não o faz. Assim, ao que tudo indica, o Antigo Império egípcio ruirá pelo
descontentamento e reação do povo, provocados pelos abusos e injustiças.
Léon Epsztein citando J. Spiegel243 diz que esse movimento revolucionário no Antigo
Império egípcio (2270 – 2240 a.C.) tem à frente um “reformador”, reconhecido não só pelo
Egito, mas na história da humanidade. O mesmo introduziu o princípio de direitos iguais para
todos, por meio de um programa de reformas sociais fundadas na fé em um deus benevolente
que criou o mundo e todas as criaturas. Esta fé dizia respeito à Rê, o deus sol que no cerne da
241 SICRE, 2011, p. 33. 242 Ibid., p. 34. 243 EPSZTEIN, 1990, p.39.
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sua concepção residia a justiça. É a partir de então que haverá uma nova interpretação de
Maât, que passa a significar o direito e tornar-se ideal de justiça e humanitarismo.
É dessa época outra coleção de documentos chamados “Instruções a Merirakê”, que
pronunciam entre alguns conselhos, como tratar bem desde o nobre ao pobre, e como praticar
a justiça, principalmente quem exerce o poder, para que tenha vida longa na terra. Em uma
dessas instruções, encontra-se o seguinte conselho de um monarca a seu filho e sucessor, a
fim de que este reinasse feliz: “Consola aquele que chora, não oprimas a viúva, não expulses
um homem da propriedade de seu pai (...)”.244 Com esse mesmo sentido, são encontradas as
“Declarações de Amenemés I” em favor da justiça e da benevolência, com a seguinte
expressão: “Favoreci o pobre, eduquei o órfão, concedi audiência ao miserável, como àquele
que tinha posses”.245
Da época seguinte (2040 – 1786 a.C.), Segundo Sicre246, pouco se tem na produção
literária egípcia que corresponde à preocupação social. Apenas um documento autobiográfico
acena para essa questão, “a esteia de Montuhotep” que mostra certa atenção aos fracos e
famintos. Também sobre deixar respirar cidadãos que se encontram arruinados, diante da lista
de impostos que pessoas pobres devem ao tesouro público. Já no período posterior (1786 –
1542 a. C.), em que houve o domínio dos hicsos provocando forte reação autoritária, os
conceitos de igualdade e justiça social parecem ter desaparecido. Talvez, em razão de uma
unidade disciplinada do estado acima dos direitos dos indivíduos.
Posteriormente (1542 – 1069 a.C.), surgem obras de grande valor do ponto de vista
social, como os Textos das Pirâmides, em que o morto deixara retratando atitudes em que este
tem a se gloriar, como não ter roubado ou assassinado, nem ter-se enriquecido à custa do
fraco e do indefeso. Neste contexto, situa-se o Livro dos Mortos, escrito quase sempre em
papiros, contendo o nome e títulos do morto, que acompanhava no túmulo, com a finalidade
de assegurar-lhe a felicidade eterna. Isso é perceptível nas tumbas dos faraós encontradas no
vale dos reis, onde as paredes estão repletas de escritos contendo os feitos do faraó que ali
está sepultado. Essas obras em favor dos pobres eram o salvo conduto para a ressurreição. O
Livro dos Mortos é uma complexa obra onde aparece a exigência da justiça, como expressão
244 Ibid., p. 41. 245 Ibid., p.42. 246 SICRE, 2011,p.36.
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de uma ética elevada. Isto porque o morto, no caso o faraó, devia demonstrar essa justiça
requerida como qualidade para ser admitido no reino do deus sol. Além da pureza física e o
poder mágico este também devia ser justo. Constava de fórmulas contendo declarações de
inocência por uma enumeração de faltas que o defunto alega não ter cometido. A título de
ilustração temos o seguinte trecho que faz parte da obra:
Não cometi iniquidade contra os homens.
Não maltratei as pessoas.
Não cometi pecados no lugar da verdade.
Não explorei o necessitado em seus bens.
Não prejudiquei nenhum escravo junto de seu senhor.
Não fraudei nas medidas de terrenos.
Nada acrescentei ao peso da balança.247
Desse período, ainda são as autobiografias de Rekh-mi-rê e de Intef, os hinos e orações
a Amon. Todos esses escritos destacam de algum modo uma forma de conduta de acordo com
a justiça, a retidão, a benevolência e o cuidado com o indefeso e o oprimido. Nesses hinos e
orações, que aparecem em contextos diversos e na boca de diferentes personagens, o tema
comum é o amor do deus Amon aos mais fracos, que com compaixão escuta quem o invoca.
Finalmente, ao lado de um grande número de escritos anônimos ou de personagens
importantes, alguns aqui colocados, que têm uma relação com o assunto aqui trabalhado
vislumbrando ideais de direito e justiça e de defesa e proteção do pobre e do fraco, temos
ainda duas Instruções: a sabedoria de Ani, e a sabedoria ou Ensinamentos de Amenemope. Na
primeira, Ani, escriba do palácio de Nefertite, mulher do rei Ahmés, recomenda a seu filho ser
generoso com os que residem em sua casa e fazer o bem. Nos Ensinamentos de Amenemope,
posterior aos escritos de Ani, situada no século XV ao VI a. C., temos uma obra que
representa o ápice da literatura sapiencial egípcia.248 Encontramos na sua composição o
prólogo e trinta capítulos contendo trinta preceitos. Nesta obra, o ideal humano proposto
aparece nos capítulos desse ensinamento, como as frases seguintes:
247 EPSZTEIN, 1990, p.55. 248 SICRE, 2011, p. 41.
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Evita roubar o pobre e oprimir o fraco (cap.II). Não desloques o mourão nos limites
do campo, não alteres a posição da corda de medir, não seja cobiçoso de um palmo
de terra nem ultrapasses os limites da viúva (cap.IV). Não cobices a terra do pobre
(cap.XI). Que não ocorra que te enriqueças às custas do indigente, não escrevas
mentira com tua pena. Se encontrares dívida grande contra um pobre, divide-a em
três partes: perdoa duas e conserva uma (cap.XII). Não inclines a balança nem
adulteres os pesos nem deteriores as frações das medidas (cap. XVI). Não aceites
suborno do poderoso nem oprimas o fraco em teu benefício, pois a justiça é a
grande recompensa de deus (cap. XX). Não deixes de ajudar o estrangeiro com tua
jarra de azeite (cap. XXVIII).249
Esses preceitos da sabedoria de Amenemope eram dirigidos por um administrador de
cereais e do cadastro a seu filho, a fim de que este se tornasse também, um dia, um
funcionário justo e complacente, para que fosse alcançado o bem estar e a prosperidade deste
mundo. Neste escrito, é também colocada em forma de contraste a oposição entre o homem
descomedido, violento e o homem pacífico, silencioso, que procura, acima de tudo, a
tranquilidade. Esses textos, embora apareçam com um acento de sentimento de humildade e
modéstia próprias de um espírito interior de piedade, tem um fundo de moralidade ética.250
A busca de vestígios de uma organização jurídica, noções de direito e um sentido de
equidade na sociedade egípcia faz com que percebamos que a justiça parece proceder segundo
as leis que vão em direção ao favorecimento de camadas sociais distintas e sobrepostas.
Aconteceram também manifestações, especialmente no final do Antigo Império, por meio de
levante popular, para que se efetivasse uma justiça social idealizada por uns, mas
violentamente reprovada por outros. Conforme nos coloca Sicre, após esse apanhado de textos
do Antigo Egito com traços de uma sensibilidade social e humana, a preocupação pelos mais
fracos não representava um consenso. Outros textos egípcios deixam transparecer a ausência
ou pouca relevância pela preocupação com a justiça ou até mesmo um pessimismo a esse
respeito e até protestos reacionários com relação aos pobres e à classe inferior na sociedade
que conseguiam já não mais ter que se obrigar a submeter-se às humilhações dos tempos
antigos. Quando muito, atitudes de ajuda e amor seriam dispensadas, mas somente aos
conterrâneos.251
3.1.3. Ugarit, Fenícia e Canaã
249 Idem. 250 EPSZTEIN, 1990, p.52. 251 SICRE, 2011, p. 42.
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Além do que temos em relação ao Egito, assim como o que foi visto sobre a
Mesopotâmia, temos os dados, embora poucos, referentes à Fenícia, Canaã e ao Império Hitita
sobre uma sensibilidade a uma justiça social e defesa dos pobres. Embora pouco comparado
aos encontrados no Egito e Mesopotâmia, consideramos importante mencionar o que existe
nos registros desses povos, sobre o assunto.
Em Ugarit, sinais de sensibilidade com relação à defesa dos pobres e à justiça se
mostram de modo especial na antiga lenda do rei Kirta . Nessa lenda, Yassib, o filho de Kirta
acusa seu pai por seu desinteresse pela justiça e descuido no julgar a causa da viúva, por não
alimentar o órfão, nem defender o pobre ante seus opressores. As palavras que se referem a tal
acusação encontram-se expressas assim:
Não julgaste a causa da viúva, nem decidiste o caso do oprimido,
Nem arrojaste os depredadores do pobre.
Em tua presença, não alimentaste o órfão, nem às tuas costas, a viúva. 252
Há, também, outra antiga lenda de Ugarit, a de Aqhatú , que pressupõe uma ação no
tribunal, em que o personagem enfocado manifesta-se comprometido com a viúva e o órfão.
Nesta está escrito: “Danilu sentou-se à entrada da porta, entre os nobres que se reúnem na
eira, para julgar a causa da viúva, para decidir o caso do órfão”.253
Quanto à Fenícia, apenas algumas frases são encontradas, registrando que muitos reis
gloriam-se de ter subido ao trono graças à justiça (século X-IV a.C.). Enquanto no Império
Hitita há um hino dedicado ao deus Telepino onde se encontra a seguinte afirmativa: “Do
oprimido e do humilde (...) és pai e mãe; a causa do humilde, tu, Telepino, levas a peito.” 254
Tudo isso nos faz considerar que nas informações que obtivemos, de fato, tanto na
Mesopotâmia como no Egito e regiões próximas a Israel transparecem elementos favoráveis a
uma sensibilidade e uma noção próxima ao miṣpat e ṣedaqa. Constatam-se a existência de
éditos e leis, atos de justiça, conselhos, hinos e orações que formam uma coleção de textos
voltados para uma justiça social, na defesa do pobre, do fraco, do órfão e da viúva. Estes
refletem uma preocupação moral, o bem estar dos cidadãos. Entrelaçado a estes se mostra
252 Ibid., p.59. 253 Idem. 254 SICRE, op. cit. p. 60.
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também o interesse por parte de deusas e deuses para que se faça cumprir a justiça, o bem, e a
reta ordem em meio à sociedade.
Mas, afinal, o que estaria por trás de tanto interesse em proteger e defender o direito
do pobre, do órfão e da viúva, por parte desses soberanos e seus deuses e das leis de direito
por eles criadas? Por que tantos editos colocando-se em defesa do papel verdadeiro do
tribunal em relação à garantia do direito, especialmente dos socialmente fracos? Haveria
algum interesse ou intenção que não fosse de fato o cuidado com aqueles mais necessitados
economicamente?
Buscaremos a seguir, nos direcionar no sentido de responder a essas questões, ao
tecermos um paralelo entre esses códigos e documentos provenientes do Antigo Oriente com
os textos legais, sapienciais e proféticos de Israel, especialmente com Amós.
4. Elementos aproximativos entre escritos do Antigo Oriente e a profecia de Amós.
Após um apanhado geral sobre a preocupação e sensibilidade com uma justiça social no
Antigo Oriente, faremos agora uma aproximação entre textos jurídicos e escritos do Antigo
Oriente Médio e Amós, tendo como enfoque principal justiça e direito, e a defesa do pobre,
desde o Egito, a Mesopotâmia, até chegar ao Império Hitita, a Fenícia e Canaã. Procuraremos
identificar, tanto quanto possível, as motivações que deram origem às prescrições legais e atos
de justiça, e qual a natureza destes em relação às denúncias proféticas de Amós, no Reino do
Norte, no século VIII a.C. Decerto que não chegaremos a articular uma investigação sobre
uma possível influência que esses documentos e códigos dos povos e países vizinhos a Israel
tenham exercido sobre o Antigo Testamento e a profecia em Israel. Isso supõe outro nível de
pesquisa que não é possível aqui, no momento. Segundo Léon Epsztein,
Graças às buscas e escavações arqueológicas, empreendidas principalmente a partir
do início deste século, sabemos que o povo e o Estado de Israel formaram-se
dentro de um mundo já evoluído; sabemos que o direito bíblico emergiu do quadro
de um vasto conjunto jurídico, englobando as diferentes regiões do Antigo Oriente
Médio e que os direitos cuneiformes representaram papel importante nas primeiras
etapas do direito israelita. Inúmeras declarações dos profetas, alguns mandamentos
de códigos israelitas, principalmente aqueles que ainda não são estritamente
jurídicos, apresentam grande semelhança com certas passagens dos prólogos e
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epílogos, nos códigos mesopotâmicos (...). De um lado como de outro, apiedam-se
da sorte dos pobres, vítimas da opressão dos poderosos (...).255
Dentro da literatura mesopotâmica tanto quanto egípcia aparecem particularmente
mencionados a viúva, o órfão, o pobre e o oprimido, todos necessitados de proteção, de
atenção na defesa dos seus direitos. Categorias contempladas também com muita frequência
no Antigo Testamento, como na literatura profética. O Conto do Oasiano256 que reflete
profunda consciência social e sensibilidade com a justiça, em que se vê denunciada a
corrupção e a maldade das autoridades sobre pessoas pobres e indefesas é exemplo desse
paralelo existente com textos bíblicos como Mq 3,1-4, onde encontramos uma realidade em
que os poderosos “esquartejam o povo”. Além de Ez 34, que trata de “pastores cruéis”, e Is
1,23 referindo-se aos que agem como exploradores, ao dizer sobre estes “amigos de suborno e
de ladrões”. Esse conto formula uma espécie de indignação ante o abandono e a tragédia dos
pobres, quando o seu direito é desrespeitado.
Em textos do Egito, como o Livro dos Mortos, que é uma espécie de Bíblia dos antigos
egípcios.257 No seu capítulo 125 há uma vinheta que contém uma declaração de inocência,
listando uma série de faltas que o morto alegava não ter cometido. Aí são encontradas
declarações que demonstram uma responsabilidade em matéria de justiça, sobre não aumentar
nem diminuir a medida de grãos, nem acrescentar nada ao peso da balança.258 Encontramos
nesse exemplo uma aproximação do que vemos no livro de Amós, sobre a alteração do peso
da balança nas práticas do comércio, e a ausência de uma prática da justiça nos tribunais (Am
5,12).
Há, também, aproximação com Amós as Máximas de Ptahhotep, antigo texto literário
egípcio, no qual é dito que a justiça deve caminhar lado a lado com a imparcialidade, e não
pender para um dos lados.259Também, vemos paralelo com Amós a autobiografia de Rekh-mi-
rê. Tratando da questão da justiça nos tribunais aparece aí o seguinte: “Quando julguei, não
fui parcial. Não me aborreci com quem vinha queixar-se nem lhe repliquei com maus modos
(...) salvei o indefeso das mãos do violento”. Nesse mesmo sentido, encontramos a
autobiografia de Intef, que diz: “Dirigi meu rosto a quem falava a verdade (...) fui atrás da
255 EPSZTEIN, 1990, p.128. 256 SICRE, 2011, p. 34. 257 EPSZTEIN, op. cit. p.54. 258 SICRE, op. cit. p.37. 259 EPSZTEIN, op. cit. p.33.
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justiça. Benévolo em escutar as petições (...) servidor do Oprimido”. Também, em um texto
de instruções ao faraó, encontramos: “Quando alguém se apresenta a ti com retidão (...), cuida
para que tudo se faça de acordo com a lei e tudo se faça corretamente, com justiça. Trata
quem conheces como quem não conheces, o próximo como distante”.260 Há, também, hinos e
orações como a Amon, onde encontramos o seguinte trecho: “Amon, inclina teu ouvido a
quem se encontra sozinho no tribunal e é pobre, não rico. Porque o tribunal o despoja (...)
Oxalá o pobre comprove sua inocência e vença o rico.261
Entre outros textos ou fragmentos da literatura, como documentos e escritos da
Mesopotâmia em que podemos estabelecer uma relação paralela com textos bíblicos, estão
contidos Inscrições, provérbios, ensinamentos, códigos legais, Instruções e hinos. Como
exemplo, temos Hamurábi, que reuniu no seu código uma série de editos por ele
promulgados, ou extraídos da tradição.262 Entre esses editos há medidas que visavam, entre
outras coisas, proteger o povo contra as extorsões dos poderosos, como disposições que
preveniam contra a corrupção dos juízes.263 Nas Inscrições de Lipt-Istar, existe um hino que
mostra o estabelecimento da justiça por ele, escrito assim: “Ao administrar o direito intuís nas
intenções ocultas o falso e o verdadeiro (...) o poderoso não pode roubar, o forte não faz
injustiça ao fraco; estabeleceste o direito e a justiça em Sumer e Acad”.264 Aqui mais uma vez
vemos relatadas preocupações e interesses relativos à justiça que deve ser cumprida sempre
em relação à proteção do socialmente fraco. Há, ainda, um provérbio sumeriano que ilustra a
antipatia do deus sol a todo aquele que age com maldade, especialmente nos tribunais: “Quem
ataca o veredicto justo, quem ama veredicto injusto, é abominado por Utu”.265 Outro
fragmento nessa mesma direção, é o hino a Samas, um deus babilônico, que tem em um dos
seus trechos o seguinte: “Ao juiz iníquo o fazes ver grilhões, a quem aceita presente e não é
justo envia-lhe o castigo. Quem não aceita dinheiro e protege o fraco, agrada a Samas,
prolonga sua vida”. 266 Sobre isto Léon Epsztein diz também que numa passagem do hino a
260 SICRE, 2011, p.38 261 Ibid., p.39. 262 MOURA, Ozeas Caldas. Leis mosaicas: plagiadas do Código de Hamurábi? In: Hermenêutica Vol. 6 – 2006
(Revista do Seminário Adventista Latino-americano de Teologia – SALT). P. 19-26. Traçando uma análise
comparativa entre o Código de Hamurábi e o código das leis Mosaicas, Ozeas Caldas Moura aponta alguns
aspectos análogos, mas também elementos que distingue um código do outro, como por exemplo, o fato de que
nos textos legais da Bíblia existem traços de um pensar ético marcadamente religioso, o que é ausente no Código
de Hamurábi. 263 EPSZTEIN, 1990, p.19. 264 SICRE, 2011, p. 51. 265 Ibid., p.52. 266 SICRE, 2011, p. 56.
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Shamash, é feita uma nítida distinção entre o mau juiz que aceita bilhas de vinho e o bom juiz
que não se deixa corromper, amparando o fraco.267 Temos também, de Ugarit, a lenda de
Aqhatu que diz: “Danilu sentou-se à entrada da porta, entre os nobres que se reúnem na eira,
para julgar a causa da viúva, para decidir o caso do órfão”.268 Neste encontramos referência,
como em Amós, à porta, lugar do exercício da justiça e do direito.
Finalmente, queremos destacar duas obras significativas nesta relação de paralelo entre
escritos do Antigo Oriente e textos do Antigo Testamento. Estamos nos referindo às
Máximas de Amenemope e ao Conto Oasiano. Sobre as Máximas ou Ensinamentos de
Amenemope, um escrito pertencente à literatura sapiencial egípcia, segundo Léon Epsztein
temos a seguinte informação:
Imagina-se, em geral, que esta obra foi composta por ocasião da XX ou XXI
dinastia (no século XI aproximadamente), quando as tribos israelitas tornavam-se
nação e onde grande parte do conhecimento que tinham do Egito e que aparece na
Bíblia provinha das relações que estes dois povos mantinham, precisamente nesta
época. A prova indiscutível destes contatos é prestada pelos surpreendentes e
indiscutíveis paralelos entre a sabedoria de Amenemope e os Provérbios do Antigo
Testamento, de modo especial nas partes dos capítulos 22,17 a 24,22, que contém,
como em resumo, umas três dezenas de versículos, essenciais da escrita egípcia.269
Colocando justapostas as passagens dos escritos de Amenemope e de Provérbios,
podemos perceber melhor o paralelo existente entre eles. Faremos também um paralelo com o
que encontramos aproximativo entre esses dois e o livro de Amós, especialmente a perícope
Am 5,10-13270:
“Inclina teu ouvido ao que é dito, aplica teu coração a conhecê-los; convém guardá-los em teu
coração...” (I,5).271
“Inclina o ouvido e ouve as palavras dos sábios, e aplica o coração ao meu conhecimento. Porque é
coisa agradável os guardares no teu coração e os aplicares todos aos teus lábios.” (Pr 22,17-18).
“Procura não despojar um miserável e ser forte contra um fraco...” (IV, 4-5)
267 EPSZTEIN, 1990, p. 12. 268 SICRE, op. cit. p. 59. 269 EPSZTEIN, op. cit. p. 52. 270 A Bíblia Sagrada. Revista e Atualizada no Brasil (Tradução João Ferreira de Almeida) Barueri/SP:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. A citação bíblica está conforme a Bíblia Sagrada, tradução João Ferreira de
Almeida, p. 862, 877, 878. 271 EPSZTEIN, op. cit. p. 53.
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“Não roubes ao pobre, porque é pobre, nem oprimas em juízo ao aflito.” (Pr 22,22).
“Aborreceis na porta ao que vos repreende e abominais o que fala sinceramente (...) Afligis o justo,
tomais suborno e rejeitais os necessitados na porta” (Am 5,10.12)
“Não afastes o limite do campo e não mudes a posição dos marcos” (VII, 12-13)
“Não removas os marcos antigos que puseram teus pais” (Pr 22,28).
“Não cobices um palmo de terra, nem desmarques os limites de uma viúva” (VII, 14-15).
“Não removas os marcos antigos, nem entres nos campos dos órfãos” (Pr 23,10).
“Não entristeças ninguém para ganhar mais (quando) possuir intato o que te é necessário.
Se tuas riquezas chegaram a ti através de pilhagens, elas em tua casa...” (XVII, 17-18).
“Não te fatigues para seres rico; não apliques nisso a tua inteligência. Porventura, fitarás os olhos
naquilo que é nada? Pois, certamente, a riqueza fará para si asas” (Pr 23,4).
“Não falseies a balança e não alteres os pesos” (XVII, 17,18)
“Balança enganosa é abominação para o Senhor, mas o peso justo é o seu prazer.” (Pr 11,1).
“Ouvi isto, vós que tendes gana contra o necessitado (...) diminuindo o efa, e aumentando o siclo, e
procedendo dolosamente com balanças enganadoras” (Am 8,4-5).
“Não te envergonhes de um homem no tribunal e não ofendas o honrado. Não dês atenção só a quem
está bem vestido [literalmente: vestido de branco], não desprezes a roupa gasta. Não aceites suborno
do poderoso nem oprimas o fraco em teu benefício, pois a justiça é a grande recompensa de deus
(cap.XX).272
“Aborreceis na porta ao que vos repreende e abominais o que fala sinceramente (...) afligis o justo,
tomais suborno e rejeitais os necessitados na porta” (Am 5,10.12)
Além dessa coincidência clara que vemos entre as “Máximas” ou “Sabedoria de
Amenemope” e alguns versículos do livro de Provérbios, especialmente nos capítulo 22-23,
bem como um pequeno trecho de Am 5,10-13, destacamos também o Conto do Oasiano,
procurando estabelecer uma aproximação com textos proféticos. Verificaremos especialmente
o que há em comum com Amós e dentro do possível com a perícope Am 5,10-13.
O “Conto do Oasiano” surge no Médio Império egípcio, referindo-se a acontecimentos
do final do terceiro milênio em que a formação de oligarquias se deixou acompanhar por uma
evolução do direito privado. Isto se deu em razão das riquezas e propriedades concentrarem-
se cada vez mais nas mãos da nobreza. A partir de então, um regime senhoril instituiu-se,
agravando as desigualdades sociais, fazendo com que as justiças feudais fossem destruindo a
272 SICRE, 2011, p. 41.
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antiga jurisprudência. Desse modo, aqueles que deviam zelar para que as leis fossem
respeitadas, comportavam-se de maneira contraditória diante dos princípios elementares de
justiça.
Este conto é citado entre as obras que inspiraram o pensamento bíblico, sendo inclusive
estabelecidos paralelos entre este conto e os grandes profetas israelitas encabeçados por
Amós.273 É, pois um relato de um testemunho de solidariedade em favor do pobre e do
oprimido, onde é narrada a história de um camponês que vai em direção ao Egito com sua
família em busca de sobrevivência, encontrando à sua frente o administrador local que se
apossa do pouco que possui aquele agricultor, além de agredi-lo. Diante da situação em que se
encontra o oasiano recorre ao administrador-chefe para pedir justiça, até ser atendido. No
entanto, ele continua sedento por justiça, denunciando e acusando, exigindo seus direitos, até,
após várias vezes recorrer, reivindicando inclusive suas propriedades, denunciando a injustiça
no tribunal, a corrupção do poder. Podemos ver isto nas próprias palavras do camponês, no
Conto, dirigidas ao faraó para que a justiça fosse feita:
Vê! A justiça, expulsa de sua sede, vagueia longe de ti. Os funcionários fazem o
mal, os juízes roubam (...) quem deve dar respiração à boca estreita, retira-a(...)
quem deve dar alívio, provoca angústia (...) A lei está arruinada, a regra violada. O
pobre não pode viver, é despojado de seus bens. Não se honra a justiça (...). São
salteadores, ladrões, bandidos, os funcionários nomeados para se oporem ao mal;
são lugar de refúgio para o violento os funcionários nomeados para se oporem à
mentira.274
Apontando algumas semelhanças entre o Conto do Oasiano e os profetas, Sicre elenca
alguns pontos: 1) O lugar de origem do Oasiano, que não é citadino. Isso nos remete à
profecia de Amós que denuncia o sistema da cidade que se sustenta pela exploração do
trabalho do camponês. 2) O motivo pelo qual fala o Oasiano, a causa que defende é a justiça,
denunciando as transgressões contra ela. Também aí vai de encontro com o que é central na
profecia de Amós, enquanto profeta apaixonado pela justiça. 3) No Conto, o discurso do
Oasiano se dá diante do templo, quando o administrador-chefe está saindo dele. Nisso,
coincide também com a intervenção de Amós em Betel (Am 7). 4) O camponês Oasiano
emprega a ameaça, a repreensão, o que se assemelha com a pregação profética de Amós bem
como de outros profetas. Apenas alguns pontos divergem, segundo Sicre, entre o Oasiano e
Amós. Em primeiro lugar o Oasiano defende seus próprios interesses, agindo em legítima
273 EPSZTEIN, 1990, p. 33. 274 SICRE, 2011, p. 34.
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defesa e não se arriscando em benefício de outras pessoas como o fez Amós. Outra coisa é
que o Oasiano baseia suas denúncias na consciência espontânea da justiça; enquanto os
profetas, assim como Amós, também possuem essa sensibilidade, mas intervém em nome de
Deus, manifestando que a violação do direito é ataque frontal à vontade divina. Finalmente,
bem diferente é o final de Amós em Betel, culminando sua atuação profética com uma
expulsão, em relação ao final feliz do conto do Oasiano.275
Conforme constatamos, a questão sobre a justiça social, que veio à tona na época dos
profetas, como Amós, é encontrada já nos países vizinhos ao antigo Israel. Pudemos perceber
no paralelo acima, traços de uma moral social, da busca pelo direito e a justiça nos dois lados
citados, ou seja, na cultura do Antigo Oriente, bem como nas tradições bíblicas.Todos esses
textos nos remetem a Amós, quer no aspecto geral referente à justiça e o direito, quer no mais
específico, o exercício desse direito junto à Porta, conforme a perícope Am 5,10-13.
Constatamos que o ideal mostrado nestes textos de Instruções e autobiografias estava
completamente inverso em Israel, segundo a denúncia feita por Amós, sobre o direito que
estava sendo torcido à Porta, uma vez que aquele que comparece ao tribunal para queixar-se
dos direitos do pobre é “odiado” e “detestado”. Também o pobre é “desviado” de ver a justiça
estabelecer-se a partir da garantia do seu direito.
Além de Léon Epsztein, Luís Sicre também é favorável a uma incidência dos textos do
Antigo Oriente médio sobre textos do Antigo Testamento. Para Sicre a preocupação pela
justiça não surge dentro do povo de Israel, pois segundo ele, antes de Moisés e dos profetas
houve pessoas profundamente interessadas pela problemática no Oriente Antigo.276
A situação que transparece nas entrelinhas dos escritos, acima destacados, não parece
distante da vivida por Amós, em Israel. Por trás do que encontramos em tais escritos há
situação de desigualdades sociais, opressão do mais forte e poderoso política e
economicamente, sobre as classes desfavorecidas. É possível perceber nos textos legislativos
súmero – acádios ou egípcios memoriais sobre o direito, medidas eficazes para proteger o
órfão, a viúva, o pobre e o necessitado. Mostra-se aí uma sensibilidade à opressão, uma busca
de justiça para os pobres e amparo para os fracos.277
275 SICRE, 2011, p. 34. 276 Ibid., p. 60. 277 Idem, p. 12.
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Sabemos que os profetas, principalmente os considerados escritores, como Amós,
especialmente a partir do séc. VIII a.C, anunciavam sua mensagem de julgamento ou
salvação, dirigida seja a nações ou indivíduos, usando fórmulas da vida (sitz im lebên). Essas
fórmulas diziam respeito ao ambiente cultural e sapiencial dentro das tradições não só
internas, mas também das regiões circunvizinhas a Israel, bem como à esfera do mundo
jurídico, que retratamos nesta parte da nossa discussão. Em razão disto, vemos nas profecias
serem empregadas expressões muitas vezes usadas no Antigo Testamento, bem como no
Oriente Próximo antigo referentes ao direito.278 Mas, afinal, para além da aproximação das
expressões que colocamos em paralelo, entre escritos do Antigo Oriente e Amós, há algo que
se diferencia na profecia de Amós? Haveria possibilidade de perceber algo nessa direção?
Voltemos sobre alguns aspectos, acima descritos, buscando ver se há porventura algo distinto,
mesmo considerando as aproximações apresentadas.
4.1. O que existe na profecia de Amós que se distingue dos escritos do Oriente
Médio?
Conforme vimos nos textos da literatura referente a povos do Antigo Oriente Médio, há
uma série de medidas que se aproximam de uma sensibilidade humana e social, visando
eliminar injustiças cometidas contra pessoas social e economicamente debilitadas. São,
segundo constatamos, documentos e declarações que parecem animadoras do ponto de vista
social. De modo geral, direcionam-se para uma busca de equidade e retidão, em vista de
garantir o direito e a proteção do órfão, da viúva, do pobre e oprimido dentro da sociedade.
Há, porém, reservas quanto a uma visão otimista dos procedimentos de soberanos e nobres,
descritos nos editos e textos acima listados, sejam do Egito, da Mesopotâmia e outras regiões.
Na realidade, tais escritos apregoam uma justiça útil, pendendo muito mais para um
individualismo do que mesmo para uma sensibilidade em relação a valores de caráter
social.279
Entre estas medidas, citaremos algumas que merecem críticas, por nos permitirem
constatar limites nas motivações e intenções que estão por trás dessas, na busca do
278 AMSLER, 1992, p. 31. 279 EPSZTEIN, 1990, p. 33.
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estabelecimento de uma justiça social. Com relação a alguns editos, como os que decretavam
anistia de dívidas, supressão de impostos ou taxas prescritas por algum governante, o que
vemos é que, entre outras ações que beneficiavam as camadas populares de renda baixa que
viviam em situação de miséria ou endividamento, tais medidas visavam apenas abolir
temporariamente os efeitos nocivos do sistema, sem interesse, ao que parece, de modificá-
lo.280 A esse respeito, questiona-se ainda que essa supressão de dívidas e extinção de encargos
por parte do rei, uma vez que essa prática era algo sempre esperado no início de um reinado.
O novo soberano interessado em dispor favoravelmente o povo, a partir de um exame das
contas de seu predecessor, mostrava nas falhas da administração anterior o caos existente, que
pretendia transformar em cosmos. Com isso ele se apresentava como aquele que pretendia
reestabelecer a equidade no decorrer do seu governo, buscando com isso uma receptividade
por parte dos beneficiados com tais medidas.281 Ou seja, o censo comum era de que o rei ou
governante tinha como dever maior zelar pela causa dos pobres, que era a imensa maioria da
população do seu reino. Portanto, falar dos benefícios realizados em favor dos pobres era
sempre um grande fator de grande propaganda da benevolência dos reis de turno. É dessa
situação que se pode entender melhor o constrangimento que causava um profeta quando ele
ia ao portão da cidade, diante de todos, a desmentir o rei.
Ainda sobre os motivos e intenções de editos em fazer prevalecer o direito público,
como o Código de Hamurábi, de Ur-Nammu, de Lipit-Istar, tudo indica que havia fórmulas
ou modelos de escrito feito por pessoas profissionais contratadas para isso. Segundo Léon
Epsztein citando J. Klima falando a esse respeito, temos o seguinte:
Este autor leva-nos a observar o fato de que a intenção de prevalecer o direito
público, que aparece em Hamurábi, já fora evocado de maneira assaz semelhante
pelo rei Ur-Nammu no século XXII e pelo rei Lipit-Ishtar no século XIX. Se a isto
acrescentarmos outras analogias, como, por exemplo, o princípio de proteção das
viúvas, dos órfãos, dos pobres... “esta semelhança muito flagrante sugere-nos a
conjectura de uma prática estabilizada nas escolas dos escribas, de onde provinham
os redatores das obras legislativas; prática que fora retomada de uns por outros,
muito formalmente, pelo fato de exprimir melhor a intenção do soberano, intenção
inalterável através dos séculos. Os esforços dos soberanos inclinavam-se para a
consolidação de seu império e do seu poder pessoal. Por esse motivo, apreciavam e
exploravam todos os meios que podiam servir para esta finalidade”.282
Fazendo referência especificamente ao Código de Hamurábi quanto a seus decretos que
beneficiavam a população, há a ideia de que tais decretos, na verdade, tinham por trás
280 EPSZTEIN, 1990, p. 22. 281 Ibid., p. 24. 282Idem.
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interesses de popularizar o reino a fim de torná-lo estável e não tanto motivos humanitários ou
de justiça. Ou seja, o que se queria com as ações de proteção da propriedade do povo simples
era resguardar interesses do rei. O que era feito tinha sentido à medida que o estado daí tirasse
vantagens.283 Nesse sentido é que se situam também críticas sobre leis e decretos das reformas
de Urukagina, que se identificavam favoráveis às camadas subalternas da sociedade, em
relação a favorecimentos destes setores dentre os quais se recrutava o exército em caso de
guerra, que tinha como interesse muito mais o fortalecimento militar do seu reino, do que
favorecer setores das classes populares.284 Como estratégia Urukagina, que era mal recebido
pelas classes superiores, ganhava a simpatia do povo, fazendo um governo populista a fim de
melhor opor-se a seus inimigos. Além disso, necessidades de ordem militar obrigou que
Urukagina procurasse o apoio da classe operária, como camponeses, pescadores e pastores,
compondo com eles o seu exército.285 Portanto, o motivo dessas reformas por parte de
Urukagina, com melhorias sociais em relação a favorecimentos de setores populares, era
muito mais o fortalecimento do seu poderio militar.286
Sobre as autobiografias e inscrições encontradas em túmulos, proclamando atos de
equidade e justiça, que são colocadas como modelo de preocupação social com os
necessitados e famintos, o que se mostra com essas, muito mais que uma atitude
desinteressada, é garantir a própria imortalidade do nome e da imagem do morto. Quanto às
autobiografias e inscrições encontradas, feitas por um determinado soberano, proclamando
um senso de equidade e justiça enquanto esteve no poder, estas tinham por objetivo garantir a
sua própria imortalidade, correspondendo, portanto, a sentimentos nem sempre
desinteressados.287 Uma prova de que os deuses ou tal divindade também eram a favor ou
exigiam do rei, seu ungido, às vezes filho, a prática da justiça em favor dos pobres. Portanto,
ao ser desmentida tal prática pelo profeta colocava em risco a própria vida eterna do rei. No
Livro dos Mortos, por exemplo, nas declarações de inocência do morto, havia a expressão de
uma ética elevada, pela enumeração de uma longa lista de faltas que este alegava não ter
cometido, não era senão uma fórmula mágica para os rituais, que permitiam ao morto evitar as
consequências do julgamento. O interessado sequer precisava ter tido conhecimento do texto.
283 EPSZTEIN, p.50. 284 SICRE, 2011, p. 47. 285 EPSZTEIN, op. cit. p. 23. 286 SICRE, op. cit. p. 46. 287 EPSZTEIN, op. cit. 34.
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Bastava que um rolo ou papiro no qual estivesse inscritas as palavras ficasse a seu lado no
túmulo.288 Também aqui havia uma visão utilitarista e particular.
Chamando a atenção para os limites ou esvaziamento dessas promulgações, editos ou
leis, como o Código de Hamurábi e a reforma de Urukagina, Léon Epsztein tece um
comentário mostrando que sequer estes conseguiram pôr em prática suas famosas decisões em
relação a justiça social, devido a complicações próprias do governo de cada um deles, cujos
empreendimentos, além de chegarem tarde demais, bem depressa eram levados ao vento.
Muitas vezes, tornavam-se dificilmente aplicáveis por serem na sua maior parte fórmulas
estereotipadas que serviam, antes de tudo, à propaganda política de um soberano que
procurava satisfazer a opinião pública.289
Outras vezes, o motivo pelo qual nobres cidadãos agiram com benevolência para com os
necessitados, em parte estava ligado ao reconhecimento de que seus bens e sua condição de
riqueza foram aumentados como dom de Deus. Ora, o que se vê aí refletido é uma convicção
de justiça como algo fundamental nas relações sociais, mas, a partir de um espírito de moral
utilitária e não uma compreensão de justiça presente nos profetas bíblicos.290
Levando em conta o caráter interesseiro que está por trás das ações de benevolência,
justiça social e equidade intencionadas nos documentos e escritos que até agora tratamos,
notamos que ao fazermos um paralelo entre esses e os textos proféticos, há uma grande
diferença. Em primeiro lugar, por serem escritos muito mais com um caráter de autolouvor
ou como estratégia política. Quando muito, numa dimensão religiosa com o que consideramos
teologia da retribuição.
Se formos ver como se comportavam lideranças em Israel, como os reis, comparado ao
que vimos acontecer no Antigo Oriente, encontramos, estampado no Antigo Testamento,
passagens mostrando ser responsabilidade e dever do rei possuir e praticar a justiça (2 Sm
8,15; 1 Rs 10,9; Sl 72,1ss; Is 9,6-7). Isto se revelaria na proteção aos mais fracos na
sociedade, como o pobre, o órfão, a viúva, o oprimido e o estrangeiro. Se tomarmos tais
288 EPSZTEIN, p. 54. 289 Ibid., p. 26. 290 Idem, p. 29.
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textos, podemos avaliá-los como ideologia vinda do Antigo Oriente e proximidades ao redor
de Israel? Em parte, é provável que sim.
A partir do profetismo literário como reação à crise social, enquanto “ética profética
para um mundo sustentável”, o que acontece em Israel é que na experiência histórica de fé,
todo o povo, portanto também as lideranças terão como referência a Eleição, o Êxodo e a
Aliança e a partir dos quais deveriam pautar sua história. Todavia, segundo vemos nos
profetas, não era bem isso o que acontecia. O diferencial se dará pela ética profética que
tomará essa referência como critério norteador e avaliativo da prática das lideranças. Serão
profetas como Amós, como porta voz do próprio Javé, que estarão atentos a aproximação ou
afastamento histórico da Aliança e Eleição.
Enquanto nos escritos dessas antigas culturas do Antigo Oriente Médio constata-se uma
série de interesses e uma visão utilitarista da justiça, com garantia de vida longa, riquezas,
reconhecimentos e honrarias, além de vantagens pessoais ou para um governo, no caso de
Amós o que vemos é o avesso. A grande parte resumia-se a palavras exortativas, distante do
que temos como denúncias proféticas ou acusações, como se vê em Amós.
Até onde somos informados pelo próprio livro de Amós, este não tinha uma posição de
político ou religioso para se sustentar, ganhar popularidade em vista de se manter em altos
cargos à sombra do rei ou sobreviver à custa disso. Tampouco tinha uma pregação que lhe
atraísse simpatizantes. Prova disso é que foi banido do lugar. Portanto, seus interesses
estavam distantes de fazer qualquer propaganda de si, usando os pobres, enquanto plataforma
política.
Contextualizando sua atuação dentro da situação de violação do direito e da justiça
instalada em Israel e as consequências de tal situação, a voz profética de Amós quer ser um
grito de condenação contra as estruturas sociais e seus representantes, que distorcem a justiça
“à porta da cidade” (Am 5,10). Sua mensagem compromete-se na defesa do direito do pobre
e do fraco, tendo como assento principal uma crítica social baseada no anúncio do juízo
iminente de Javé, em virtude do evidente desvio ético enraizado numa prática de exploração e
falta de retidão em Israel. A responsabilidade disso tudo recaia sobre um número considerável
daqueles que participam do Estado, tirando proveito próprio sobre a miséria exploração dos
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pobres.291 E são esses mesmos quem se consideravam merecedores da aliança firmada por
Javé, que nada abalaria.
Contudo, o diferencial presente na profecia de Amós assenta-se no apelo ético –
religioso que faz ecoar a exigência de que fé e compromisso com a justiça são inseparáveis.
Mas, o que acontecia em Israel era o oposto. O auge político e econômico fez com que Israel
se tornasse rico e próspero, mas com um agravante: a injustiça impera com toda crueldade, a
começar palas autoridades que como representantes do povo que deveria ter como função
zelar belo bem estar comum da coletividade. Quando na verdade o que fazem é provocar um
“total terror” na vida do povo. É nessa ocasião que ressoam as palavras incisivas de Amós,
anunciando um juízo da parte de Javé sobre Israel, por seus pecados sociais e porque a aliança
com Javé não vigora mais.
Tal situação, do ponto de vista religioso, soa como ingratidão da parte de Israel,
contrastada antiteticamente com a ação libertadora de Deus na história do povo (2,9-16). A
injustiça legal e a opressão dos pobres são as atitudes principais sobre as quais recaem as
críticas de Amós. Tais críticas fazem emergir um tema de relevância da teologia bíblica que é
o de Javé como defensor dos pobres e dos fracos, indicando implicações ético-religiosas para
que a aliança feita por Javé com o seu povo possa ser concreta nas relações sociais.
4.2 Implicações ético - religiosas
É a partir desse ponto que iremos caminhando para o final da nossa discussão, com o
aspecto ético- religioso da profecia de Amós. Está aí o diferencial ante os anseios por justiça
presentes em escritos de povos vizinhos estendendo-se ao Egito e Mesopotâmia. A
interpelação profética vai numa direção que estreita fé e justiça. Sua profecia é um discurso de
Juízo sobre a perversão que se dá nesta relação, conforme vemos, Amós desmascarando culto
e opressão social, combinando acusações e anúncios.
Enquanto profetas estatais como Amasias proclamavam, acima de tudo, a onipotência
de Deus e postulavam exigências cultuais, Amós tinha uma concepção unitária das coisas.
Havia na sua teologia, se podemos assim dizer, uma síntese entre política e ética, entre o
291 SANTANA, 2004, p.57.
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social e o religioso. Por isso, é que sua profecia defendia que, necessariamente, fé e justiça
caminhariam juntas.
Embora na sua abordagem teológica não encontremos na boca de Amós palavras
proferidas diretamente empregando o termo “aliança”, toda a sua profecia supõe esta.292 Ou
seja, a eleição, o êxodo e a aliança que são a referência da experiência de fé em Israel, são a
base do juízo encontrado na profecia de Amós, pois a verdadeira Aliança com Javé deve
traduzir-se na prática. Desse modo, os crimes sociais estavam implicados com o religioso. É
nesse sentido que para Amós procurar a Deus, equivale a procurar o bem, que se traduz em
estabelecer a justiça à Porta (5,15).
Para ele a presença de Deus não é incondicional, mas depende do grau de observância
da justiça por parte do povo, nos negócios públicos ou privados. Assim, o destino de Israel
será definido em função de sua atitude face ao direito, e não em função de ter sido escolhido
por Deus.293 Em razão disso é que Amós denuncia a hipocrisia de um culto que é desmentido
diariamente pelas práticas (5,21-27). Os crimes sociais tornam-se, portanto, pecados
religiosos, pois uma sociedade fundada na injustiça e na iniquidade não pode subsistir diante
de Javé, pois perderam de vista que o servir a Javé é inseparável do servir ao próximo.294
Nesse sentido, trazemos à memória a história de Israel, enquanto povo abençoado,
vivendo em uma terra que foi dádiva de Javé. Segundo a literatura profética, no meio deste
não deveria se conhecer pobreza, pois isto seria uma incoerência, uma vez que Israel é
constituído um povo de irmãos, vivendo numa terra abençoada que lhe foi presenteada. O que
deveria aí prevalecer era a fraternidade e o persistente compromisso de fazer essa benção
perdurar por meio da solidariedade, extinguindo qualquer relação que fosse geradora de
pobreza.295 Entretanto, o povo de Israel acreditava serem suficientes seus rituais de
agradecimentos a Deus pelos bens que possui, deixando de lado a prática da justiça.
A escolha de Israel com o qual Deus fez aliança, antes de ser um privilégio, comportava
uma responsabilidade ética que não foi assumida por um povo que se pretendia escolhido
dentre todos os povos e nações. A partir dessa compreensão, Israel crê que, apesar do seu
292 Lacy, 1998, p.22. 293 SILVA, Aldina. 2001, p. 65. 294 AMSLER, 1992, p. 51. 295 SCHWANTES, 2013, p. 83.
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abuso de poder, opressão sobre os pobres, e toda sorte de desmandos por ele praticados, Deus
jamais retiraria seus favores do meio do seu povo eleito.
A crítica social de Amós e o anúncio do juízo divino articulam a visão de um Deus que
se importa, que toma partido dos pobres e oprimidos. Um Deus que tem sentimentos, que
pode sentir a alegria por causa dos atos humanos, assim como pode também sentir-se
ofendido. Ele sente pena e alegria, piedade e cólera. A cólera de Deus é profunda quando
alguém toca num de seus pequenos, que ele considera como “a menina de seus olhos” (Dt
32,10).296 A cólera divina decorre dos crimes – pecados em Israel, cuja atitude pode ser
resumida no desprezo pelo direito e no escárnio da justiça.
No Antigo Testamento, especialmente nos livros proféticos e nos textos legais há
interpelações para que as pessoas ajam segundo um espírito humanitário e solidário. Estas são
dirigidas a toda a Comunidade, mas querem atingir principalmente aos que têm recursos. Para
que não retenham o manto penhorado do pobre, concedam-lhe empréstimos sem juros,
respeitem o descanso ao oprimido, acolham o estrangeiro, façam a justiça correr como um rio.
Tudo isso se reverterá em gratos votos de benção, não só para o que se beneficiam com esse
agir, em conformidade com o projeto de Javé para seu povo, mas também para o sujeito
desses atos. A ele é afiançado que seu comportamento condizente com a comunidade tem
validade diante de Deus.297
Ora, o que vemos em Amós, ao que parece, é que tais atitudes, não só como prescrições
mas, também, enquanto consciência solidária e fraterna não encontravam mais força em
Israel. Os pobres e os fracos estavam expostos a toda sorte de desmandos das autoridades ou
dos credores. É o que vemos na denúncia de Amós, essa mesma preocupação dos textos
legais, em relação ao pequeno agricultor empobrecido e endividado, procurando sua defesa
junto a quem competia fazê-lo (5,10-13), apesar de não ser atendido no seu direito de defesa e
proteção.
A organização da vida e sociedade em Israel que Amós polemiza, está totalmente
equivocada, porque os israelitas acreditavam que aumentar suas riquezas, entesourando-as era
bênçãos divinas, quando, na verdade, esse bem estar econômico vai ser a causa de sua
296 SCHWANTES, 2013, p. 46. 297 Ibid., p. 72.
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desgraça pela injustiça que o origina e não conduzem a Javé. Israel não se sente concernido
pelas ameaças e julga que sua conduta não é susceptível de nenhuma censura, porque, afinal
de contas, ele não fora escolhido por Javé? Em razão disto, não estaria, ao abrigo de qualquer
condenação?298 Ora, justamente por causa disso seu desastre e destruição não podem ser
detidos, pois decorrem da sua prática, ou seja, da negligência para com o compromisso da sua
fé em Javé.299 Amós desmascara essa postura de um povo que se julga abençoado em razão da
abundância e riqueza.
Amós destaca as consequências de tal segurança de Israel. Bem distante do tema da
Eleição, é colocado o acento na responsabilização e punição da culpa, de modo a relativizar a
posição privilegiada de Israel como povo escolhido. O livro de Amós revela-nos um Deus
que não tolera a injustiça, sendo irrevogável na decisão de punir Israel, executando uma
sentença de destruição inapelável.300
A crítica social feita por Amós e o anúncio do juízo divino, articulam a visão de um
Deus que se importa, que toma partido dos pobres e oprimidos. A cólera divina decorre dos
crimes – pecados em Israel, cuja atitude pode ser resumida no desprezo pelo direito e no
escárnio da justiça. O Deus de Amós caracteriza-se pela sua justiça, por fazer com que seja
respeitado o ético presente na aliança. Por isso, ele vai “ajustar contas” com Israel,
derrubando o que parecia sólido, seja no que se refere ao poderio e estabilidade econômica,
seja no aparato religioso. Javé, ironicamente, entoa um cântico fúnebre pelo povo
dizimado!301
Por tudo isso é que passa a ser evidente na dialética da mensagem de Amós um juízo
inevitável, porque Israel não somente deixa de transmitir a palavra de Javé pelo
descumprimento do que é lei, mas até tenta impedi-la. Em Amós, o que se revela não é um
grupo que está lutando por seus interesses, mas é o próprio Deus de Israel, lutando por “seu
povo” e por seu sonho de uma sociedade justa e humanitária. Nesta, tem que valer, com
parâmetros sociais, condições de vida para os pequenos agricultores e para os pobres, uma vez
que essas pessoas são deterioradas drasticamente.
298 SILVA, Aldina, 2001, p. 40. 299 LACY, 1998, p. 60. 300 SILVA, Aldina, op. cit. p. 40. 301 Idem.
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Ora, a escolha de Israel como um povo não era senão para que esse desse testemunho de
que em seu meio jamais cessaria o bem (3,1-2), a irmandade e a justiça. Quando na verdade o
que acontece é contrário a isso. O privilégio, portanto, só aumentará a severidade do juízo,
com o “Dia de Javé” (5,18-27) que será cumprido pela mão da Assíria, com a invasão do país.
Tudo porque Israel vive na mentira, ligando a fé em Javé com regularidades cultuais e não à
prática da justiça. Portanto, a denúncia que Amós faz em relação ao culto, não é feita porque o
povo tenha se desviado do ritual prescrito, mas porque coloca juntos incenso e injustiça, prece
e opressão, rito e alienação humana.302
A compreensão do “Dia de Javé” que havia em meio ao povo de Israel estaria ligada à
celebração litúrgica baseada na memória salvífica de Deus na história de libertação vivida por
Israel, dando base para um sentimento antecipatório escatológico. Mas, a partir do que temos
em Am 5,18-20 é uma falsa esperança no “Dia do Senhor”, como um dia de vitória sobre os
inimigos. Contudo, será sim um dia de vitória, mas para Deus e contra o seu povo.303
O núcleo central e característico da proclamação amosiana é, pois, o julgamento de Javé
ou “o dia de Javé”, não aquele “dia” que Israel esperava como um tempo de triunfo e vitória,
mas “que será o dia de Javé” (5,18). Será um nocaute para o povo de Deus, em que Jeroboão
II, o seu Estado de injustiça e opressão, com todo o seu aparato e mecanismos de sustentação
ruirão.304 O futuro proclamado por Amós desmascara a segurança altiva e arrogante de quem
diz: “A desgraça não nos atingirá” (Am 9,10).305
A verdade contida nessa mensagem plenamente nova, trazida por Amós, diante da
tradição proclama com insuperável dureza o outro lado da misericórdia de Deus, de que falta
de justiça, levará inevitavelmente a ruína. Mas afinal, quem é esse Javé a partir do qual
pretende Amós que se entenda? Evidentemente é totalmente distinto do Deus das
representações religiosas correntes que Amasias e tantos outros seguem, enquanto defensores
da ordem religiosa estatal. O que Javé diz agora por meio de Amós entra em concorrência
excludente com o anúncio de salvação que foi feito, até então em Israel.
302 BONORA, 1983, p. 23. 303 LACY, 1998, p. 64. 304 BONORA, op. cit. p. 80 305 Ibid., p.81.
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Amós tira toda a segurança, aliás, desmascara a consciência religiosa de Israel,
enumerando de maneira irônica uma larga série de sacrifícios, oferendas, solenidades e
peregrinações feitas com interesse de satisfação própria, passando ao largo do que é justiça de
Deus. Isso fez que surgisse ondas de protestos contra Amós, porque ele questionava o crer de
Israel, uma vez que o refrão que se repetia, na sua consciência, era o de que Javé tirou Israel
do Egito. Ou seja, a sua confissão de fé de que Deus liberta da escravidão, fazia que Israel se
sentisse povo eleito, privilegiado sobre todas as nações, com um futuro garantido. Amós
questionava que esse modo de crer não era mais tão seguro assim. Ele inverte as expectativas
quanto a um tão sonhado “Dia de Jave”, pois este será um “dia mau” sobre os fortes de Israel,
sobre o estado tributário, sobre suas instituições e seus agentes. 306Nas palavras do profeta,
Javé responde a Israel com um anti-Êxodo, não combaterá mais pelo seu povo, conforme fez
no Egito, mas contra o seu povo, em um dia não de salvação, mas de ruína (9,4).307
Em suma, a sociedade é chamada a reconstruir suas relações baseada na justiça e no
direito. Só assim, será possível escapar do juízo divino anunciado. Com certeza, para os
transmissores das palavras de Amós, um Israel que continuava pisoteando o direito, estaria
irremediavelmente perdido. A salvação aconteceria quando Israel praticasse o direito.
Amós provocou no pensar religioso uma verdadeira revolução, diante da ideia de
preferência, apontando Deus como aquele que é Deus também dos tidos como inimigos de
Israel, considerados fora dos benefícios trazidos somente para Israel seu eleito. É por aí que o
autor demonstra de que modo Amós faz uma crítica da autoconsciência religiosa. Desse
modo, anúncio do juízo com a ruína, segundo Amós, e a destruição do Estado com todo o seu
aparato, inclusive o religioso, fundamenta-se na culpa, em uma série de injustiças cometidas
por Israel e, por isso mesmo, este será deportado a começar pela aristocracia, a parte alta, a
cúpula da sociedade que vive de cumprir seus desejos elitistas. Em Israel, guerreia-se contra
os pobres e, como resposta, Javé fará guerra contra os que guerreiam contra os pobres o os
aniquilam. É a concepção de um Deus que não é neutro diante do mal dessa sociedade, não
tolerando a maldade, mas combatendo-a a fim de salvar seus “sonhos divinos” de uma
realidade que espelhe sua bondade e fidelidade. Uma sociedade onde as pessoas possam
usufruir as dádivas da terra e o resultado do seu trabalho.
306 MOREIRA, 2012, p. 58. 307 BONORA, 1983, p. 76.
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Finalmente, no eixo da perícope aqui tratada, Am 5,10-13, esse emparelhamento do
binômio “direito” e “justiça” resume as responsabilidades de Israel, em relação à aliança.
Exatamente porque o juízo e a justiça são atividades essenciais de Javé, eles devem, por sua
vez, passar a ser as responsabilidades fundamentais de seu povo, de modo especial dos
líderes. Essas duas palavras giram em torno da ação na defesa dos pobres e marginalizados. E,
conforme Amós, onde isso não acontecer, a experiência de fé seria considerada sem valor
(Am 5,21-24). Portanto, a prática religiosa tem no seu propósito, conhecer bem a Deus, de
modo que o que Ele é e aquilo que ele faz tornem-se realidades concretas na vida e
comportamento do seu povo.
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136
Conclusão
O longo percurso feito a partir da análise exegética de Am 5,10-13 trouxe à luz
elementos de compreensão do sentido de direito e justiça, cujo binômio está presente na
denúncia feita por Amós, em relação à opressão praticada no Portão. Na análise semântica,
aos poucos fomos percebendo com toda a sua força, um conjunto de elementos revelados
pelos vocábulos e expressões analisadas como “pobre”, “fraco”, “justo”, que nos remeteram
necessariamente ao contexto histórico, social, econômico e político de Israel no qual se
encontram inseridas as “palavras de Amós”.
A realidade vivida no Reino do Norte, partindo da “análise de conjuntura” presente na
profecia de Amós, é um estado alarmante de injustiça e opressão instalado em Israel, “nos
dias de Jeroboão II” (787-747 a.C.). Nas palavras de desgraças proferidas por Amós, há uma
condenação a toda sorte de desmandos e abusos de um Estado tributário opressor e corrupto.
Há também uma denúncia sobre o comportamento imoral e antiético das autoridades locais
responsáveis pela jurisprudência, bem como das classes abastadas de Israel compostas por
grandes comerciantes e latifundiários, que viviam no luxo e ostentação à custa do suor e fome
da população empobrecida, especialmente da classe camponesa. É no auge da prosperidade e
do desenvolvimento econômico em Israel que surgem as primeiras vozes de protestos, como a
voz de Amós, com fortes denúncias e condenações a respeito dessa aristocracia corrupta, da
sua opulência e opressão.
Sua profecia é porta-voz do descontentamento popular, passando a ser uma força crítica
e de resistência que revelava o conflito entre profecia e monarquia. Tal conflito decorria do
modelo de sociedade vivido em Israel. De um lado, a monarquia defendia uma política que
favorecia a cidade, o comércio, a especulação, a venda de terras, o favorecimento dos
negócios, a escravidão, os exércitos coercitivos e um culto suntuoso e centralizado. Do outro,
o movimento profético defendia o povo, as aldeias, o campo, a propriedade familiar da terra, o
trabalho livre, os pequenos santuários que se caracterizavam pelo culto familiar.
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Conforme fomos percebendo, Amós condena o desenvolvimento paradoxal
implantado em Israel, gerador de profundas tensões sociais, à medida que na cidade se
desenvolve uma espécie de capitalismo urbano. Este se baseia na obtenção e retenção do lucro
por parte de uma minoria que detém grande parte das riquezas e dos bens, em benefício do
seu bem estar material. Enquanto alguns vivem bem nutridos, a maioria da população vai
tomando as feições do fraco, nos seus corpos desnutridos.
Pudemos constatar, a partir do nosso objeto de pesquisa (Am 5,10-13), que a denúncia
de Amós recai principalmente sobre a prática da injustiça instalada oficialmente. Isso porque
o tribunal, enquanto instância que deveria ser o principal canal de mediação e garantia de
defesa do direito dos mais fracos e indefesos, se encontra corrompido e num estado de
falência. De forma detalhada Amós detém-se, particularmente, sobre o descaso com a justiça,
a exploração e a corrupção fazendo com que haja a condenação de inocentes pelo suborno dos
juízes no seu exercício junto ao Portão, não fazendo o que é reto, e pela perseguição contra
aqueles que denunciavam a opressão sobre os pobres. Em função dessa justiça fraudulenta, os
camponeses perdiam seus recursos, sendo paulatinamente empobrecidos.
Vimos claramente que a jurisprudência junto ao Portão não estava sendo cumprida em
relação aos pobres, a partir dos direitos que lhes assiste. Ao instaurar um processo judicial os
pobres eram derrotados de antemão através de subornos (5,12b). Desse modo a justiça, bem
como a prática do direito de forma imparcial era impedida de ser praticada, em razão do poder
e do dinheiro, por parte daqueles que estão à frente da administração da justiça. É provável
que estes fossem detentores além do poder judiciário, também das riquezas, representando
famílias ou grupos sociais que detinham a força econômica. A partir de Am 5,10-13, temos
portanto a denuncia e condenação do desvio do direito dos pobres no Portão, pelo descaso
diante da apelação da causa do pobre trazida à instância judiciária.
Partindo dessa preocupação com o direito e a justiça típica da profecia em Israel, a
pesquisa que aqui realizamos procurou também fazer uma aproximação entre todo esse
interesse de Amós com as questões de ordem social em defesa do pobre, e a preocupação com
a justiça social presente no Antigo Oriente Médio. Tivemos como resultado alguns traços
comuns entre escritos encontrados nesses povos das regiões no entorno do antigo Israel e a
perícope aqui analisada.
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Tomando esses elementos comuns e procurando pelas motivações e interesses que
estavam na base de um como de outro, vimos que há um diferencial da compreensão da
profecia em Israel, sobre o que representa a justiça e o direito. O que aí está em questão é a
vida dos pobres, e os seus direitos. O que tinha por trás de uma gama de escritos, decretos e
leis na Mesopotâmia, Egito e outras regiões vizinhas, em que era recorrente a ideia de
proteção a categorias como a viúva, o órfão, o pobre, divergia do que encontramos na profecia
de Amós. Enquanto nos escritos do Antigo Oriente constatamos uma série de interesses, e
uma visão utilitarista da justiça, como garantia de vida longa, riquezas, reconhecimentos,
honrarias, vantagens pessoais para os que se diziam defensores dos fracos e oprimidos, no
caso de Amós o que vemos é o avesso.
Até onde somos informados pelo próprio livro de Amós, este não tinha como profissão
uma posição de político que tivesse o interesse de ganhar popularidade em vista de se manter
em altos cargos ou de sobreviver à custa disso. Nem também tinha uma pregação religiosa
que atraísse simpatizantes. Prova disso é que foi banido do Santuário de Betel e da cidade. A
interpretação de Amasias de que Amós pudesse estar em concorrência com o rei enquanto
ameaça de tomar o poder era totalmente equivocada. Portanto, seus interesses estavam
distantes de fazer qualquer propaganda de si usando os pobres enquanto plataforma política.
Pelo que pudemos compreender o acento principal da mensagem de Amós se encontra
no anúncio de um juízo divino iminente sobre o Estado com todos os setores que lhe
sustentam, pela perversão e falta do direito e da justiça na “casa de Israel”. É em razão da
utilização da ordem jurídica vigente, servindo exclusivamente à expansão do poder, das
posses e do lucro, da elite de Israel, que haverá esse juízo. Por isso mesmo a casa de Israel
passará a ser uma casa mortuária, sobre a qual o profeta tem de entoar o lamento fúnebre, uma
vez que a Porta, o Templo e Palácio real fracassaram como “casa do direito”, e passaram a ser
o contrário, “casa da injustiça”. A profecia de Amós é prenúncio de uma condenação
irrevogável por parte de Javé, porque Israel não seguiu os caminhos da justiça.
A escolha e Aliança que Javé fez com Israel significava que tal escolha traduzia-se em
dar testemunho de que em seu meio jamais cessaria a irmandade e a justiça, quando na
verdade o que estava acontecendo era o contrário a isso. Israel vivia na mentira, ligando a fé
em Javé com regularidades cultuais e não à prática da justiça. Por isso Amós condena a fé
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praticada em Israel, por colocar junto incenso e injustiça, prece e opressão, rito e alienação
humana.
Hoje, fazendo uma memória histórica de 50 anos da ditadura militar no Brasil, temos
presente muitos acontecimentos e pessoas que como Amós são porta voz dos que são
oprimidos e pisoteados, perante uma sociedade que torce o direito dos pobres e põe por terra a
justiça. Queremos trazer presente a memória da caminhada da Diocese de Crateús-CE, onde
trabalhamos durante dez anos, situada em uma das regiões mais pobres do semiárido
brasileiro, com o projeto de ser uma igreja solidária, popular e libertadora em defesa dos
pobres. Nesta Diocese a organização dos trabalhadores rurais e dos empobrecidos, seja nos
sindicatos, nas comunidades eclesiais de base, na Pastoral da Terra tinha como bandeira de
luta a defesa dos seus direitos, a reivindicação por uma reforma agrária e a implantação de
uma política de recursos hídricos, entre outros.
Durante o período da ditadura, encontramos a figura profética de Dom Fragoso que
como pastor veio trabalhar em Crateús no meio do povo, pondo-se do lado do “pobre” e do
“fraco”, como temos em Am 5,10-13. Sem se intimidar, mesmo em “tempos de desgraça”
(Am 5,13), ele denunciava com veemência uma política opressora que beneficiava e
acobertava uma elite voltada para seus próprios interesses. Por isso se negava a estar nos
palanques, banquetes ou missas ao lado dos que praticavam a exploração e opressão sobre a
população. Como consequência foi considerado pelas autoridades locais “Persona non grata”.
Não encontramos nesta prática de Dom Fragoso uma aproximação com Amós, cujas palavras
também “a terra não podia suportar” (Am 7,10)?
Dentro desse mesmo espírito encontramos outro fato ocorrido em Crateús, nessa mesma
época, enquanto testemunho profético de uma senhora, chamada Antonieta, que era
funcionária da agência do INSS naquela cidade, que lutava em defesa da dignidade e dos
direitos humanos. Num determinado dia em pleno expediente de trabalho aproximou-se do
guichê de Antonieta um coronel militar exigindo ser atendido com prioridade, em razão da
patente que portava. Antonieta pediu que esperasse sua vez porque estava atendendo uma mãe
com criança de colo. Diante disso o militar respondeu com arrogância e autoritarismo: “Você
sabe com quem está falando”? Antonieta com toda a sua coragem e firmeza denunciou: “Sei,
sim. O senhor é quem torturou aquele preso na cadeia pública aqui em Crateús”.
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Hoje, temos instalada no país a “Comissão da Verdade”. Esta é composta por cidadãos
militantes representantes de diversos segmentos da sociedade, relacionados com o direito e
justiça. Essa Comissão tem o compromisso e o papel de apurar e fazer com que se cumpra a
justiça diante dos crimes de torturas, prisões, assassinatos e desaparecimentos de milhares de
cidadãos brasileiros, praticados durante a ditadura militar. Assim como as vítimas da ditadura,
esse tipo de Comissão não é senão aquele “justo” (Am 5,12) não conivente com o sistema
político de terror que imperava no Brasil nas décadas de 60-80, e das injustiças de hoje, que
denuncia, condena e age para que haja justiça.
Vemos em Amós o protótipo de tantos outros Fragosos, Antonietas e Comissões da
Verdade, mulheres e homens de todos os tempos e lugares que com sua voz profética saem
em defesa do direito do pobre, do fraco e do oprimido, para que se estabeleça a justiça na
terra. Diante dessa tentativa de aproximação com o profeta Amós, a conclusão a que
chegamos é que nas entrelinhas das “palavras de Amós” há um projeto ético – religioso de
uma nova sociedade, conforme o projeto de Javé, que se apresenta para nós como um convite
e um apelo. Neste, necessariamente, Fé e Justiça caminham juntas, porque procurar a Deus
equivale, segundo a profecia de Amós, ontem como hoje, a “procurar o bem”, e isso se traduz
em estabelecer o Direito e a Justiça - “à Porta” (5,10-13).
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FICHA CATALOGRÁFICA
Si38d Silva, Maria José da
O direito é torcido à porta porque a justiça se encontra deitada
por terra: um estudo sobre o direito e a justiça na profecia de Amós, a
partir de Am 5,10-13 / Maria José da Silva. -- São Bernardo do Campo,
2014.
148fls.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Metodista de São Paulo,
Faculdade de Humanidades e Direito, curso de Pós-Graduação em
Ciências da Religião. São Bernardo do Campo
Orientação: José Ademar Kaefer
1. Bíblia – A.T. – Amós – Crítica e interpretação 2. Direito – Teologia
3. Justiça – Doutrina Bíblia I. Título
CDD
224.806